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Título: PSM – TRÊS

Autor : carlos peres feio


Capa: Chinesa do Norte – Produções sobre desenho de carlos peres feio

© carlos peres feio e chinesa do norte produções , Maio 2008

Composição, paginação, impressão: chinesa do norte – produções, lda

Depósito nº : 0032305/08

2
ainda rebelde o cabelo
sempre viva a esperança
no futuro

carlos peres feio, PSM-DOIS

O que me fascina na poesia do Carlos é a sua


lucidez sobre o nosso lugar no mundo onde,
por vezes, os inertes se revoltam e nada
podemos contra eles a não ser aceitá-los,
talvez tentar compreendê-los e buscar refúgio
na poesia e na amizade.

Vítor Miranda, em Carcavelos, a 20 de


Outubro de 2007, no lançamento de
podiamsermais

3
voo

lancei-me há segundos
sinto a testa fresca
vertiginosos os andares passam
decrescem
sexto quinto quarto
imagino cabelos que se agitam
fustigando-me
no quinto
a memória da meninice
meus olhos incrédulos
de criança

o chão
(2005)

4
Andaluzia

foi preciso atravessares Andaluzia


para sentires ao de leve os seus medos
que a tristeza
essa está em muitos dos seus cantos
aceitas de imediato que não lhe pertences
que não a entendes
mas também há o reconhecimento
de uma força maior
que está nas suas gentes
e adivinhas
que na tua peregrinação de outrora
te cruzaste com gente
a sério
(2003)

5
mass production

basta que aconteça


uma insónia
uma noite calma
uma falta de quorum
a não-dor de cabeça
absentismo na alma
crentes nenhuns
vazio absoluto
calor de todos fazerem aaahh
livros só com capa,
e é o fim.

(1999)

6
Nunca

Nunca me dirás o peso


Nunca saberei como és
Nunca te interessará saber
Se estou trémulo por ti
Nunca me perguntarás nada
Nunca te verei a cores
Nunca saberás ao certo
Se a imagem em minha mente
A preto e branco é a tua
Nunca parecida contigo

Nunca encontrados antes


Porque visíveis agora
Os destinos e os mares
Estavam esquecidos nas nuvens
Apareceram sem aviso
Preparados para remorsos
Espalhados em cima da alma
Nunca sentirei teu peso
Nunca te beijarei a fronte.
(2004)

7
sine die

onde estás?
quem te rodeia?
longas filas de velas
ocultam caras de mulheres
que dizem orações
mas não as sentem

contra esse vazio interior de muros de pedra


arremesso o projéctil do desprezo
pelos grupos ensaiados para louvar o banal
e não contemplar o sublime

sem a frescura da crença


de que o destino é tudo
só o vulgar é visível
adiada fica a beleza
(1999)

8
na dúvida

na minha cabeça
não mais que um esboço
quando te iniciei

eras só olhos
com expressão incrédula
fixavas algo à tua direita
com igual dúvida
desenhei a tua boca
estava lançado o rosto
teu nariz
surgiu
tu própria te penteaste
só tive que te seguir

ficarás para sempre


como A Incrédula
nunca
saberemos porquê
(2007)

9
vejo a meta

senti o arrepio de ter


menos trinta anos

raro é lembrar-me da sensação


de haver um futuro

voltei ao agora
e como música de fundo

só ouço cantatas

quero conhecer Bach quando


cumprir o concerto final

tens o coro afinado


para me receber?
(2000)

10
medir alegria

são muitas as alegrias


diversas e surpreendentes.

quem poderá dizer


minha alegria é grande,
maior que a tua?

a que poderia sentir


se te encontrasse
só é medida
na escala
da grande tristeza
de te não ver.
(2004)

11
repouso no fundo do mar

e depois há o prémio que


ganhas
e ganho
o dos mais esforçados
em tentar
entendimento
em entender
tentação
mas ficamos por aí.

maldito tempo
de encontro
em que fins flutuam
e se afastam
de nós

12
bendita âncora
e alga
a meia altura
de um oceano profundo
e ânfora
como as que sei foram
encontradas
em Tróia
portuguesa ou entalada na Ásia
e o fundo
o coral das nossas vidas
cor de sonho
rigidez de realidade
arranhando o que temos de
antigo
de modernidade

13
deixa-me repousar no leito
do mar
a ver navios afundar
a deitarem-se
comigo
eu que
fui navegador
de tanto ouvir falar nos
avós
portugueses
descanso bem fundo
bem guerreiro
por obrigação marinheiro
náufrago por vocação
(2000)

14
Mar

para se descrever uma tempestade


conhecer o Mar
é preciso ter visto
e Portugal viu
com olhos enviados
com alguns perdidos

somos o Mar
mas também as gentes das serranias
que um dia
rumaram à praia
portugueses de queijos de ovelha
ou cabra
azeite vinho
e sal
emprestado pelo Mar
(2007)

15
ópera alemã no ouvido lusitano

o nosso ouvido lusitano


fruto da escuta de regatos
do sussurrar das brisas
dos segredos da água
marcando ribeiros
entende sons melodiosos
até na terra dos nossos
invasores romanos
aprecia o belo canto
e fica aí.

outros bárbaros
os saxónicos
viriam em tempo próprio
cantar o ouro do nibelungo
o nosso ouvido lusitano
decifra regatos percebe brisas
bebe os sons da água
mas não compreende o canto
da valquíria.
(2005)

16
adivinhar na madrugada

andar às escuras
pela casa
adivinhar antes de
sentir que ainda é

momentos únicos
onde posso garantir
o futuro no gesto
o passado em mim

o presente
roça
de mansinho
(2007)

17
passado

ternuras a que sou estranho


mas entendo
vêm do mergulho dos tempos
e dos ventos
fluxo de amor sublime
que queima

poder manter esse fogo


raios que vi sem ver
e poder reconstruir
todo o meu corpo
e meu ser
(1991)

18
dono de café

o dono do café
faz contas
e eu, do meu canto,
vejo. penso. ausento-me.
vôo

é dono de café,
podia ser
presidente da Rússia
(1995)

19
quadros da minha exposição

difusas figuras de ballet


azuis em dança rostos sem definição
justificam as flores envolventes
vizinhas do arlequim
vestes brancas negro chapéu
imponentes botões
um olhar que nos passa
sobre a cabeça
quando sentimos que o futuro
está por trás de nós não ao lado
no descanso da senhora
listas na blusa saia com pintas
sentada em grande cadeira
pose de eternidade
símbolo de uma calma tão necessária
aproveitada por dois meninos
ele confiante ela não tanto

20
retratos de feira dos setenta
entre barraquinhas com galos de Barcelos
de muitas regiões
três gravuras junto à janela
tinta esmaecida pelos tempos
meu olhar errante detém-se
na escrita dos amantes
que combinam encontros
em secretismo de códigos
a dois cifrados
nos desígnios dos sinais
ele de farda a dizer
sempre te respeitarei
ela de vestido afirmando
para ti
sempre serei bela
(2007)

21
vida vivida

o que fazemos da nossa vida


nem a nós nos diz respeito
sentimo-la vida vivida
num esboço de destino
retorcido e contrafeito
que nos arrasta sem brilho
em contrapeso no peito
correndo como um menino
retardado na subida
em tropeções sem jeito
(1991)

22

pareceu-me entrever Pã
estava calmo – olhava o passar da romaria
mas vigiava os guardadores de rebanhos

o meu Campo na rua onde vivo


as Searas dentro da cabeça
o Mar ali ao fundo

nestas palavras imagino que me ausentei


repouso na minha ideia de Província
os olhos no meu conceito de Cidade

neste ver desfilar dúvidas


que acelerado está o Tempo
(2007)

23
a saudade

aparece sem ser chamada


numa tarde não existe
noutra manhã é uma sombra
filtra o Sol apaga a Lua
teima em crescer
retarda os movimentos
já de si lentos
acende ecrãs com mapas
e longes

na farmácia dos dias longos


procuro medicinas
mas sem resultados
enquanto não voltares
tudo está fora de prazo
(2007)

24
poeira dos caminhos

descobria então a grande cidade


as casas reconstruídas vinte vezes
ao longo de dez séculos
o asfalto colocado sobre as pedras
que sob a terra
violada pelo peso dos tempos
agonizam sem soltar
a poeira dos caminhos

não há cidades eternas


a história sabe
nós não
serão os homens com botas e rodas
a destruírem as estradas
as bestas a eliminarem empedrados
então do húmus
voltaremos a florescer
a encher os olhos de verdes
a paisagem de papoilas
e teremos de novo
a poeira dos caminhos
(2007)

25
foto

supõe que fotografam


o teu interior
a cores, sem dores
na revelação

zonas coloridas de vaidade


transparências sem significado
e aquela mancha negra,
marca da tua ambição,
em tempos uma nódoa
que alastrou
quase toda te tomou

se a estrutura mudar
e tu ficares a nu
a ambição volta ao formato
reduzido
e tu voltas a ser tu
(1984)

26
é triste

saber que a alegria enjoa


e a tristeza me alimenta
eu espero algo?
não saber a resposta
é o motor dos meus dias
vou permanecer
a continuar
(2007)

27
vivência

quem pôde estar no mato


de uma África sem guerra
lembrará sempre o som
que um coro de insectos
oferecia em concertos
de fim de tarde
em pôr-do-sol deslumbrante

a terra quente transmitia


carícias na pele
bálsamo para a tortura que o Sol
durante o dia impunha

a memória fica no interior


onde mais se sente o negro
dos dias ainda por viver
o Mar na costa do Índico
de beleza extrema
é coisa de Branco e Árabe
(2007)

28
touro triste

manhã de neblina
a dos animais inquietos
nos olhares que se cruzam

na mistura de ar e poeira
o raspar dos cascos
reforça o clima
de tensão

na sombra do perigo
morava o desconhecido
de inovador nada se espera

perto do final
a velha lição de sempre
o tormento de uns tantos
para divertimento de alguns
(2007)

29
lugares

não sou religioso


não me confesso a ministro
escrevo versos, existo
os lugares que amo
são feitos disto
escondo-os nas minhas células
e chega.
(1989)

30
tua terra

quem sabe
das saudades salpicadas
de poesia
do desenho dessa nostalgia
derramada na ternura
pelas imagens
do príncipe encantado
que um dia
sob o manto das folhas
já amarelecidas
ressurgirá?

quem conhece
as ruínas pejadas
de histórias
que desvendam
ao longe, entre os
penhascos imponentes
ocultos por
altivas árvores,
o rasto das mulheres
que aí passam
em atávicas cumplicidades
de mães e filhas?

31
ninguém duvida,
os ancestrais segredos
e mistérios
dessa tua terra do interior
só alguns
os podem desvelar
mas
tudo o que antes
só por ti era sentido
fica doravante
entre nós.
(2007)

32
AUTO-RETRATO

em petiz falava
falava
a franja na testa
a cara redonda

na fase de borbulhas
bem espigado já era
se disser magro
poucos acreditam

33
tudo se passou entre
a Lisboa do meu berço
e a longínqua África
de muita selva

voltei ao Tejo, estudante


no cabelo mandam
os Beatles
Guevara a barba comanda

esqueço maquinarias
no papel começo a ver
minhas letras gatinhar
voltear

com pouco peso na Poesia


poeta pesado sou hoje
sobre óculos e rugas
ainda rebelde o cabelo
sempre viva a esperança
no futuro
(2007)

34
dia em que te conheci

leve, a brisa faz do ar movimento


agitadas, searas espelham felicidade

registo o cheiro das flores


não duvido do regresso das emoções
sei chegado o momento futuro
anunciado nas promessas adiadas

cores ganham força redobrada


aceitemos então a boa estrela da sorte
(2007)

35
baloiço

ao fundo, a serra de Sintra


por tecto a ramagem de um
caramanchão antigo

dispensados do inferno dos ruídos


antevemos o paraíso

num baloiço há muito abandonado


ficou o que tínhamos de equilíbrio

por isso levamos a vida


aos tropeções
(2007)

36
nostalgia

a nostalgia do passado
ornamentada de pétalas
em suspensão
que gravitando transmitem
embriagantes odores cristalinos
para o presente não amargar

projecto de um verdadeiro esforço


pode ser
a imaginação de futuros tão diversos
sabendo do bem de viver hoje
passado já
de um amanhã espantoso

amores com esperança


vistos nesse espelho que é milagre
onde os corpos libertos levitam
e numa pureza de síntese

disparam riscando os céus


em órbita de infinito
(2001)

37
perdi-me

perdi-me nas suas imagens de viajante


nas paisagens de um outro Oriente
nas palavras escritas
no canto de esquissos a galope

encontrei-me na distância
duns seios minhas colinas
no dorso que me conduz
ao desenho da garupa desejada
no deslizar do corpo de mulher serpente
no rosto sofrido
nas nádegas e na silhueta
nos peitos apertados
no todo que de ti anseio.
(2007)

38
olhar os vidros

pode ser um êxtase


ou uma dor
boa
o vidro em folha
reflecte um ou outro ponto
de luz
que não conta

mas ilumina-se:
passou o louro de teus cabelos

a dor boa
e a espera
torna-se ritual
com deusa
em altar de vidro
(1995)

39
sentir

na permanente viagem de mim para mim


lanço âncoras faço aguadas
aos mesmos portos sempre retorno

para remendar as minhas cavernas


encontrei estaleiro aberto
nem sempre o mais certo curandeiro

no zénite da minha viagem


aos odores de tuas compressas
e mezinhas me acolho
feiticeira que me tardaste

quando pagar à equipagem


porto de abrigo serás
nos abraços do teu rio
a minha entrega final
(2007)

40
LUA CHEIA

No vagão do leito
de manhã meia,
tudo é sereno.
Parece sol,
é lua cheia.

No rio deslizante
na manhã meia,
o barco é pequeno.
Vê-se o farol
é lua cheia.

Na minha mente,
em manhã meia,
repouso ameno.
O farol é sol
a lua cheia, cheia.
(1986)

41
queda

a tarde pode cair


sobe este verão estranho
as criaturas respiram com dificuldade
há no ar um riso divino
passa o tempo deixando marcas
tu voltas de certeza
faço um esforço para te esperar
não me deixam cumprir
as promessas mais simples
leio registos deixados na pedra
os deuses agora estão sérios
o ar falta de vez
o verão chega ao fim
a noite caiu finalmente
(2007)

42
auto-retrato

enfrentar a câmara
que nos lê o pensamento
pode ser salvação

parecer o que sou


com altura suficiente
em frente olhar
nada ver
nada me apetecer

esgotado na paciência
para grandes projectos
todo o tempo disponível
para os pequenos interesses

sem vontade de ensinar


o aprender dominado
passos perdidos no pensar
e daí tirando vida

por fim mostrar-me


amante que muito ama
o que nesta vida
para alguns é fatal
(2007)

43
come chocolates, pequena

o Mestre determina
que não possa fazer outra que
seguir o Mestre
não no detalhe
não na cópia ou imitação
mas
na linha mestra
(1995)

44
ausência

levantas as narinas
aspiras os ares – os outros
olhos fechados num transe prolongado
haverá momento de maior concentração?
há algum sofrimento no exercício
justificado pela grande presença
da tua ausência
(2007)

45
na Gulbenkian

palavras
para quê
Arménia
Paris
a guerra que ninguém quis
Lisboa
arcos de cidade velha
óleo
e também Iraque
e a arte
de guardar bens
suas filhas
colecção com coração
oriente
arte nova
que outros amores não teria
pelo muito não exposto
planos de fundo
jardins
fundação
sem pilares
Lisboa outra vez
com o Tejo
por toda a parte
rio a escorrer arte
(1991)

46
quando me fiz ao mar

minha barca merecia descanso


de tanto uso ter
de outros a navegarem
por águas onde não me atrevo

mas o Fado era esse


ainda olhei a praia
julgo ter visto tuas lágrimas
nada a fazer

era a espuma o Destino


as marés vivas um susto
conchas amigas diziam
vais não voltas

estava entregue aos corais


que me esperavam no fundo
minha vida cumprida

minha barca - adivinham


a Poesia
(2007)

47
time goes by

Era um tempo de
contacto
com os instrumentos
musicais
e para nós
eram reais.
Veio o tempo do som
em gravação
e ganhou-se
a ilusão
do fácil, do acessível.
Estava por vir o tempo
da imagem em casa.

Vejo-te na tv
que incrível estás!
(1990)

48
depois de 93/94

correu o tempo de uma moeda


ser cunhada.
o nível das águas em Porto Fino
atingiu o passeio das lojas.
e tu,
tu construías o olhar triste,
afiado,
com que virias
a
sequestrar-me.
(1996)

49
nexo

nunca navegues sem bússola


nem te encontres sem papel
sem caneta sem doçura sem fel

as ideias podem passar por ti


sem registos
e era pena se
quando tivesses a razoável,
a única, a suprema,
estivesses sem registos
porque o banal
é fatal
e registado fica
o excepcional

o bom
muitas vezes
é gravado sem fita
internet moscovita
perdoa-me
termino sem
nexo nexo nexo
(1995)

50
sem mim

para quê continuar?


é às zero duas que o vamos resolver?
ouve…ou sente, como dizem em Itália,
ainda tenho que convocar Musas
Tágides ou espíritos de mulheres da Beira
para te convencer?

estás decidida?
acreditas saber o caminho para Sonho?
ingénua… ou tonta, como sempre te chamava,
como podes tu passar,
neste vale de lágrimas em forma de cidade,
sem mim?
(2007)

51
Ribas de Cima

As fotos dos antepassados


o nome da rosa
o poema de Eliot
o século XXI
o rosto de um Pai.

Os destinos traçados
mirandês em prosa
os anjos como mote
a Lua comum
o tempo que se esvai.

Beijos trocados
uma certeza teimosa
algo que não se note
versos mais nenhum
preparação para quem sai.

Planos alterados
doçura venenosa
o mistério do decote
punhal no meu jejum
e acabar sem dizer ai.
(1995)

52
salvação

conto a minha história


de modo simples
por ser percurso
sinuoso
com uma recta final
num ponto
a meta.

mantenho o amor ao figurativo


mesmo ao passar pelo abstracto
e é assim que a minha chegada
ao vazio
se faz
em beleza.
(2001)

53
já eras tu

serve-me de consolo
saber-te do meu voo
o ar
e que sem ele
cairei
e romperei as asas coloridas
do desejo
nas escarpas em abismo
da descida

no pensamento
alma posta a nu
reconheço
que antes
já eras tu
(2007)

54
tecnologia

talvez maltrate a poesia


talvez não
a tinta sobre papeis diversos
borrões, emendas, versos
estão no local certo

mas
que força me transmite
o sentir
que mesmo quando trabalho números
prosas cruas, comerciais,
debaixo dos meus dedos,
num interior de circuitos-veias-
-magnéticas
tenho a minha poesia plantada
num canteiro
disco rígido com memória
de mundo inteiro

estilhaça-se
o vidro fronteira com o passado
autorizo-me então
a continuar a amar caneta e
cheiro a tinta
acariciando teclados portáteis
(1994)

55
recusa

não. não lhe escrevo


ela ia compreender
porque é poetisa
e eu rendia-me
finalmente compreendido

sim. sim volto para outra


não me compreende totalmente
mas tem a janela para
o universo
e amor
inesgotável

talvez. talvez mantenha


as duas
uma para miragem
outra
para paragem

nunca. nunca direi


porque não lhe escrevi
voltei para ti
continuo à espera
e repouso
acordado
(1998)

56
transportado

há nas frases que dizes


a doçura do chocolate amargo
esse vício que nos toma

tens a força da corça


os músculos tensos que se sentem
quando no espasmo da entrega
e nas réplicas que se seguem
tudo se revela

és a mulher toda anca


peitos-bicos
que me ocupa a cabeça
e me aquece o coração

Natal é quando um homem quer


(2007)

57
batalha naval

torpedeei teu submarino de vaidade


com palavras dirigidas
meteste a pique
meu orgulho-porta-aviões
com TNT aos milhões
bandeiras derrubadas
sem que desse sacrifício
desfraldasse
a da esperança

cheguei a sentir
o perfurar da tua blindagem
mas tua submissão
foi miragem
explodiste em crateras de negro
ressurgiste para não me dares sossego
no mar de destroços inventado
por algum tempo objectos flutuaram
o resto do casco salva-vidas
coisas importantes esquecidas

58
o sol põe-se
os vermelhos raios recebem
cinzentos fumos que assinalam
o naufrágio da criança-esperança
o emergir do homem-vazio

resta o leme de uma vida


incompleto
depois dessa batalha
naval
(2007)

59
tem cuidado

tem cuidado
quando te sentares
em banco desconhecido

da anónima companhia
podem vir perfumes
entre o estranho
e o adocicado
pode ainda acontecer
todo o dia os recordares
pensando
porque não está
quem deve estar
comigo?
(2007)

60
o segredo

mergulhar na mente
procurar nos livros
ver nas gravuras
mais do que lá está
não deixar baixar as rotações
inventar a roda
esquecer para aprender
de novo e para sempre
o que podemos desejar
de melhor
para um ano novo?

mantermo-nos vivos
uns pelos outros
(2 008)

61
directo

a preparação dos papeis que vais legar


requer programação cuidada
nada deves deixar
ao acaso.

parte da tua vida está escrita


outra distribuída
só ambas reunidas
te fariam reviver.

queres escrever mais mas não podes


porque o peso das letras
não é para os dias
que hoje tens.
(1998)

62
tenho uma máquina

tenho uma máquina


que não é minha
de onde
de maneira incerta
me saem poemas

faltam-me nela
todos os versos que não li
antes de saber que existia

transformei
a fria copiadora
em meu altar de descrente
(2001)

63
varanda

da varanda da minha casa


não vejo nascer o sol
não porque não haja vista
mas porque estou ausente

quando o astro está mais alto


sofro toda a plenitude
num exílio
que queima duas vezes

da varanda da minha casa


não vejo o pôr-do-sol
embora seja possível
só o não posso fazer
por ter lançado a viagem
num destino sem regresso
(2008)

64
no país dos fragmentos

venho de longe
da fusão do verde com o cinzento
ao caminhar
descubro o céu azul e branco
dádiva e esplendor não esperados

noutra margem com recortes de medo


fica um país sem cor
a minha busca é a de peças
dispersas em mim próprio

porque me deram nome de santo


se não remendo nada
se na verdade
só desejo ser pó?
(2002)

65
liberdade

nascemos com ela


e logo a perdemos
com o primeiro respirar

quem me pode devolver


a liberdade?

a mãe que na esfera


da protecção
nos deixa por vezes
tropeçar

o pai que muito nos ensina


e mais deixa
por aprender

os portugueses
os da minha língua
se nos deixarem voar
mais alto e melhor

que a liberdade aconteça


de janeiro a dezembro
também em Abril
(2008)

66
Romanov

que raio de sorte


esta de ter nascido assim –
nobre?
este meu olhar é só exterior
forçado a ver por cima

contrariado
gostava de ser outro
não posso
os antepassados pesam sobre mim
queria ser lavrador
escritor ou contador de histórias

deixem-me com a espada


o mosquete a lança
terei sempre um ar superior –
no retrato
(2008)

67
DOURO-D’OURO

o Douro está como nunca


espelho de água, lâmina,
neblina.
pescadores
fim de dia fim de vida.
fugiu o sol, luzes frágeis
reflexos.
tem preço esta visão?

o cheiro a madeira
que queimam
vem de longe
outra margem
casamento perfeito
odores, luz, calma,
leve aragem.

não estamos
no princípio
nem no fim,
mas
que este meio
do mundo
se mantenha
assim.
(2008)

68
eclusa

quando construíste a parede


de granito
revestida com aromas
do bosque
foi para conter
e preservar
teus amores

quando decidiste
abrir a eclusa
da tua emoção
as águas
do teu amor
com teus cheiros
correram para foz

onde eu te esperava
(2001)

69
troca

entregar dias de sucesso


no que não me interessa
para de volta receber
uma noite prolongada
de valor incalculável
sem minutos
sem segundos

quem me dera trocar


todos os dias
vazios
sem inspiração
por uma noite
de poesia
de solidão
(2008)

70
ortodoxo

não interessa se hoje me sinto ortodoxo


que me importa que no mosteiro da Transfiguração
tenham os cruzados sentido a solidão

o meu espírito esse sim


abandona muitas vezes o corpo
deixa repousar as válvulas do meu coração
navega entre as ilhas gregas

nas viagens que não podia evitar


pegadas na areia recordam amores
mas a vontade única
é de voltar
para os meus versos
meus lápis de cores
(2008)

71
poema de amor

ao ler
deves sentir que
esta fúria de paixão
desejo estertor rendição
tem como endereço
teu corpo mente
coração
e que sou eu
o remetente
(2008)

72
dimensão

sou pássaro
que de propósito
se deixa cair da árvore

mascaro-me no som do órgão


que na nave da Sé
comprime o pesado silêncio

mostro-me como partícula


na cadeia do DNA
de toda a humanidade

volto à árvore
num esforço de bater de asas
ressuscito

apareço agora como sou


da máscara
ficam os elásticos

por fim sou mais


do que as células permitem
e é o mundo que cabe em mim
(2008)

73
aniversário

fez ontem anos


que não me encontrava
a mim
sexta feira vou
ser assim
assim

no fim de semana
quero sentir
o fim do mundo
tomar decisões
decretar inferno
praticar ressurreição

viver antes
ser feliz depois
viajar entre pausas
devorar a náusea

rever Instambul
numa Madragoa
endereçar meus olhos
destino Lisboa
(1994)

74
CHIADO

num tempo perfeito de uma Lisboa


em Fevereiro,
no local certo de um Pessoa em bronze
de um outro Fernando,
amigo e poeta com sugestões de
longe,
de África e da América,
li o poema certo

de súbito, na mente
nas ideias,
um circuito se acende,
vira área iluminada,
faz correr o fluxo da criação,
encontra a solução
sempre esperada
revista, ensaiada
em cidades e aldeias

em mágica luz Europeia


truque de monge
no circo onde andamos
crentes num espaço aberto
onde hoje somos dois e ontem
talvez onze
num mesmo tempo perfeito
Otava também em Fevereiro.
(1990)

75
para entregar a quem passa

manifesto
próprio dos nossos dias
a entregar em mão
(talvez até mesmo tocando
a mão)
e em simultâneo
lançar um olhar desfocado
aos de agora e aos vindouros
reclamando
não digo justiça
que não sei o que é
mas compreensão para tudo
menos para o que se vai vivendo
– a sem esperança manifesta
( 2008)

76
habitação ocupada

revendo a longa lista de poetas


nas suas diferenças nas suas
crenças
recriando lugares ocultos em
versos
agrupando uns isolando outros
olho para trás para anos de
solidão
e penso
século vinte
lotação esgotada
(2001)

77
a dança

como vejo a dança?


como uma luva
que a bailarina veste
levando algum tempo
a meter-se nela
depois vem o ajuste
o estender e enrolar de dedos
e quando a luva se molda
os músculos aquecem
e o sangue chega
ao mínimo vaso capilar
o bailado está vestido
a arte acontece
(2008)

78
baloiçar-te

quero ver-te de novo


olhar-te perto e longe
mas no meu jardim
quero sentir-te as ancas
baloiçar-te muito toda a tarde
ficar tonto nos movimentos
ébrio de teu perfume
de jasmim
(2008)

79
febre

quando me assalta
é boa
faz-me sentir na ribalta
Berlim
ou
Lisboa

escrevo sem mexer a mão


alguém faz força por mim
aspiro energia dos que partem
Virgílio
Duras

gostava de me libertar das grilhetas


passar fome ficar magro
ser a vergonha dos empregados
despedidos em estreia
mas receber em troca
uma alegria completa
morrer assalariado
nascer poeta
(1996)

80
estrada marginal

na linha do horizonte vê-se


o mar
que novidade
mais para a direita, sobre pequenas ondas
um risco de terra, com edifícios
mesmo assim belos ao longe
esquecidos que nas entranhas
são feitos de
cimento areia cal vigas pré esforçadas
outros elementos da beleza amorfa
mas à vista
predominam cristais
os da água os da paisagem e os dos nossos olhos.

(2002)

81
universos paralelos

não pode ser de outra maneira


ou não resistiria
quando estou em Monserrat
quando vejo a lua na varanda de cima
quando o jardim da Gulbenkian tem vida
acredito que tudo acontece
ao mesmo tempo,
não pode ser de outra maneira
nos meus universos paralelos
(2001)

82
não consigo

não consigo viver só o meu conforto


a minha água quente da torneira para o corpo
não resisto ao apelo do princípio
misturando o ritual do dia a dia da infância
com a ternura que agora vertes sobre mim
num misto do sonho, que não aconteceu,
e do viver intenso, que me belisca,
− e sou eu.
(1994)

83
da física dos velhos

distância
um conceito físico
moeda com seus dois lados
grandeza mensurável
a falta que me fazes

tempo
o dia e a noite
aquele que passo contigo
o da tua ausência

densidade
leveza do ser
dizem insustentável
o ar pesado
quando não estás

calor
no vapor da chaleira
já o sabor do meu chá
teus olhos castanhos
são a suave manta
sobre os meus joelhos
(2008)

84
sei como
sei como aguçar a tua lucidez
mas tenho medo de o fazer
é que tu
lúcida
vais sofrer mais

mas quero o melhor para ti


e enches a minha vida
de ti
do lado bom de mim
e o mundo só não melhora
porque não te ouve

a raiva que tenho é a do tempo


já gasto sem endereço
e agora
quando as coisas me caem
das mãos
quando não me lembro
do que há minutos era fatal
para mim
saboreio este digestivo de
fim de vida
com a muita raiva
do pouco estar para a frente

a vida foi gasta


e o investimento feito
mas na proporção errada
só contam os amigos
só conta o amor,
a música
(1998)

85
roleta

os amigos
começam a partir
ficam fotos
pensamentos

a roleta
determina
com grande
imprecisão
o fim dos nossos
tormentos
(1996)

86
da janela da cozinha

pela primeira vez olhei


o exterior
céu cinza
folhas em movimento
os ventos as magnetizam

na estranha sensação
de não ter visto nada antes
senti uma nova religião

o lado direito do meu cérebro


sem ouvir
ouvia Dvorak
inventando a sinfonia
do novo mundo

agora o céu
água profunda
árvores e arbustos
banco de coral
não se via ninguém
esvoaçou o mensageiro
da ideia
pássaro negro
com destino marcado
criado estava um novo credo
e eu seu primeiro adorador

assim me passei a chamar


amigo do vento
(2008)

87
Serralves ― a história

na abertura de um portão
já estamos noutro mundo
falo do lado da casa
do museu nem o projecto

entro na casa saio da casa


quase vejo a família
quando a felicidade aqui morava

cem anos depois


ou quase
as linhas direitas
as arestas
são ainda austeras
e nunca esquecerei
que no seu interior
conheci Tàpies

cem anos depois


do projecto só o museu
com a casa esquecida
espera-nos o parque

ainda hei-de ir a Viana


mas antes contigo
a Serralves
(2008)

88
ao longe

quando te olho
as palavras dentro da cabeça
silenciam os lábios por pasmo
o meu ser é um sol nascente onde
todo o bosque celebra um só pássaro
a tranquilidade que se segue
depois do êxtase
acelera a queda no poente

o recado está dado


a felicidade é isto
(2008)

89
4 voo
5 Andaluzia
6 mass production
7 Nunca
8 sine die
9 na dúvida
10 vejo a meta
11 medir alegria
12 repouso no fundo do mar
15 Mar
16 Ópera alemã no ouvido lusitano
17 adivinhar na madrugada
18 passado
19 dono de café
20 quadros da minha exposição
22 vida vivida
23 Pã
24 a saudade
25 poeira dos caminhos
26 foto
27 é triste
28 vivência
29 touro triste
30 lugares
31 tua terra
33 AUTO-RETRATO
35 dia em que te conheci
36 baloiço
37 nostalgia
38 perdi-me
39 olhar os vidros
40 sentir
41 LUA CHEIA
42 queda
43 auto-retrato
44 come chocolates, pequena
45 ausência
46 na Gulbenkian
47 quando me fiz ao mar

90
48 time goes by
49 depois de 93/94
50 nexo
51 sem mim
52 Ribas de Cima
53 salvação
54 já eras tu
55 tecnologia
56 recusa
57 transportado
58 batalha naval
60 tem cuidado
61 o segredo
62 directo
63 tenho uma máquina
64 varanda
65 no país dos fragmentos
66 liberdade
67 Romanov
68 DOURO-D’OURO
69 eclusa
70 troca
71 ortodoxo
72 poema de amor
73 dimensão
74 aniversário
75 CHIADO
76 para entregar a quem passa
77 habitação ocupada
78 a dança
79 baloiçar-te
80 febre
81 estrada marginal
82 universos paralelos
83 não consigo
84 da física dos velhos
85 sei como
86 roleta
87 da janela da cozinha
88 Serralves – a história
89 ao longe

91
chinesa do norte-produções
Maio de 2008. Lisboa

92

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