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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
Vv.r visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
FEVEREÍRO
1958

ERGUNTE

Responderemos

ANO /
ÍNDICE
Pág.
i. filosofía e religiao

1) "Que é a 'Ordem de Rosa-Cruz' ?" 1,3

II. DOGMÁTICA

2) "Queira explicar a origem das indulgencias e a que equiva-


letn os cem días, os trezentos e sessenta e cinco días, os sete
anos... das fórmulas de indulgencias" 48

III. SAGRADA ESCRITURA

3) "Como interpretar o cem por mu da Escritura, prometido aos


que deixam tudo para seguir a Cristo? Significa bens mate-
riais, casas inúmeras, assisténcia religiosa na hora da marte,
maior número de gracas ou dons referentes a vida futura?" 51
i) "Como se explicam as palavras da consagracáo eucarislica :
'.. .sangue, que será derramado por vos e por muitos' ? Jesús
■nao morreu por todos ?" 53
5) "Qital seria a cr.plicacáo das seguintes passagens de Daniel: V
7,~-S c 7,2S-25 ? A que reino se referem ? Ouvi dizer que o
quarto animal ¿ a ígreja Católica e os dez cliifres sao os
povos bárbaros" 54

IV. MORAL

0) "Se pessoas autorizadas afir mam que indispensável é a


educacüo sexual, porque é que outras ainda a proibem e con-
denam ?" 57
7) "A consciéncia moral é uní produto artificial da educagáo ;
nada tem de perene. Basta lembrar o que se dá com crian-
cas que crescem entre animáis selvagens" 60

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

S) "Porque a riqueza do Vaticano? Se o Papa é o representante


de Cristo na térra, porque nao O segué ein sua pobreza,
humüdade e simplicidade ?" ■ 64
9) "Porque é que a ígreja no seu culto usa de metáis preciosos
e vestes solenes ? Será que ela precisa disto para impressio-
nar o povo ?" 70
10) "Jesús disse: 'Reccbestes gratuitamente; dai gratuitamente'
(Mt 10,8). Ora a praxe das esportillas parece contradizer a
éste preceito do Meslre" 73
11) "Quais os motivos que levaram Lntero a querer reformar a
ígreja? Quais eram as indulgencias contra as quais reagiu?" 77

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

N? 2 Fevereiro de 1958

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

A. M. M. (Rio de Janeiro) :

1) «Que c a 'Ordem de Rosa-Cruz'?»

Para apresentar a Ordem de Rosa-Cruz, estocaremos pri-


meiramente o seu histórico; a seguir, a sua ideolo?pa.

1. As origens da Ordem de Rosa-Cruz .

1. Ougamos, antes do mais, o que a «Rosa-Cruz» diz a


respeito de si mesma.

Narram os textos oficiáis que a Ordem teve origem no


Egito, onde o Faraó Tutmosé m (1500-1447 a. C.) reuniu varios
de seus súditos, dotados de sabedoria mais profunda, oculta ao
vulgo, a fim de fundar com éles a «Grande Loja Branca» ou
a «Fraternidade Branca». Os Irmáos constituiram sua sede
principal em torno de um templo na regiáo de El-Amarna (ou
Akhetaton, no Alto Egito).
Do Egito espalharam-se para o Oriente e o Ocidente. Sólon
de Atenas (618-550 a.C), dizem, foi um verdadeiro Messias
(um Iluminado) pertencente á Ordem. Pitágoras entrou na
Fraternidade em Tebas (na extremidade do Egito meridional)
no ano de 531 a.C; havendo passado por todas as iniciacóes
e exames, foi agregado ao Conselho Supremo dos Iluminados e
partiu para fundar a Fraternidade na Magna Grecia ou Italia
Meridional (Cortona).
O próprio rei Salomáo (970-931 a.C), de Israel, haveria
pertencido á Ordem; a sua sabedoria, ele a teria adquirido
numa viagem a Tebas. Na Palestina, dizem que estabeleceu
um núcleo da Fraternidade : a Fraternidade dos Construtores
do Templo de Jerusalém, precursores dos macons atuais.
Os Essénios, faccáo judaica de índole misteriosa, contem
poránea a Cristo, eram também rosacrucianos...
Referem outrossim que Jesús foi essénió. Os seus apostó
los (essénios também éles), difundindo os ensinamentos do

— 43 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 1

Mestre, deram origem á Igreja Crista, que se foi desenvolvendo


cómo corporagáo mais ou menos independente da Grande Fra-
ternidade Branca. Esta, embora se interesse por qualquer mo-
vimento religioso do mundo, nao se identifica com nenhum,
mas paira ácima de todos, como detentora do patrimonio de sa-
bedoria de todas as religióes.
Para explicar a sua projegáo relativamente exigua na his
toria da civilizagáo, os rosacrucianos professam urna lei que,
segundo éles, rege as instituigóes humanas : todas estas se desen-
volvem através de ciclos de atividade e inatividade, cada um
dos quais comprcondc IOS anos; na verdade, os períodos de ina
tividade nao sao senáo fases de oculta e silenciosa operosidade.
Acontece, em conseqüéncia, que, ao renascer de 216 em 216
anos, a instituigáo é como que nova e destituida de relagáo apa
rente com os ciclos anteriores!...
Entre 1610 e 1616 tomou surto em Cassel (Alemanha) urna
onda de Rosacrueianismo, que, segundo os historiadores, teve
por chefe Christian Rosenkreuz; a éste personagem é que, fora
dos círculos rosacrucianos, se atribui a fundagáo da Ordem. Os
rosacrucianos, porem, afirmam que «Christian Rosenkreuz» nao
é senáo o pseudónimo de um varáo ignorado que langou o
brado de renascimento da Ordem naquela época.
O fato é que do séc. XVTI em diante a «Rosa-Cruz» apa
rece na Alemanha, na Inglaterra, na Austria, na Prússia, na
Hungría, na Polonia, na Rússia, com o caráter bem marcado de
escola ocultista, em que tém sido (ou foram) cultivadas a cabala,
a alquimia, a medicina, as ciencias naturais... Atualmente a
«Rosa-Cruz» apresenta afinidade com a Magonaria, se nao por
sua origem, ao menos por suas formas (ritual, graus de ini-
ciagáo, organizacáo administrativa...); do seu lado, a Magona-
ria de rito escocés intitula um dos seus graus de iniciagáo «Grau
Rosa-Cruz».
Depois de ter tido grande voga na Alemanha e na Austria,
a Ordem possui atualmente um de seus maiores centros nos
EE.UU. da América do Norte, sendo abreviadamente designa
da pelas iniciáis AMORC («Antiga Mística Ordem de Rosa-
-Cruz»).
Que dizer de tal descrigáo do histórico da «Rosa-Cruz»?
Mostra-se inconsistente. A sua pretensa origem antiqüís-
sima e sua tradigáo continua sao apenas afirmadas, nao, po-
rém, comprovadas (alias, todo o esbógo histórico se apoia em
noticias de um apregoado arquivo secreto da «Rosa-Cruz», con
servado no Tibe, e inacessível aos náo-iniciados). Principal
mente a dependencia de Jesús e do Cristianismo em relagáo
aos Essénios e ao Rosacrueianismo carece de todo fundamento.

— 44 —
QUE 15 A «ORDEM DE ROSA-CRUZ» ?

Nos tempos atuais, mais do que nunca, se manifesta radical


a diferenga de mentalidades que separa Jesús Cristo e o Cris
tianismo, de um lado, o ocultismo e o essenismo, de outro lado:
com efeito, os famosos manuscritos descobertos sucessivamente
a partir de 1947 junto ao Mar Morto dáo claramente a ver que,
a mentalidade essénia ainda era mais estreita ou fechada
do que a dos fariseus. Ora toda a vida pública de Jesús
foi intersemeada de conflitos com estes ardorosos guardas do
judaismo, pois o Senhor comia com os publícanos e os pecado
res e ultrapassava a letra da Lei, escandalizando o espirito de
faccáo dos fariseus. Por conseguinte, muito menos ainda pode-
ria Cristo ser tido como discípulo e continuador da tradigáo
essénia.

«Foi talvez éste um dos resultados mais sensacionais de Qumran


(grutas do deserto de Judá, junto ao Mar Morto): o de por em realce
a originalidade de Cristo, fornecendo-nos um termo de comparagao
proveniente do mesmo ambiente (palestinense, em que viveu Jesús)»
(J. Daniélou, L'Express, ler. février 1957, pág. 19).

Na verdade, o Rosacrucianismo nao é senáo urna das ex-


pressóes da tendencia ao ocultismo e á constituigáo de socie
dades secretas, tendencia que aparece no género humano desde
remotas épocas. As primeiras manifestagóes de tal tendencia
se verificam no período do matriarcado social (dezenas de mi
lenios antes de Cristo): quando a mulher, em virtude de um re-
gime agrícola vigente, possuia a hegemonía na familia, os va-
roes, visando defender seus interésses próprios, se agremiavam
em grupos fechados, secretos, que tutelavam decididamente os
direitos de seus membros. Ainda hoje, entre os povos primitivos
da África (alias, também ñas grandes nagóes ocidentais), se
encontram tais sociedades, que constituem verdadeira rede
invisível de auxilio mutuo : a cabala medieval, a franco-mago-
naria posterior ao séc. XVI, a gnose antiga e moderna — e
também a Ordem de «Rosa-Cruz» — nao sao senáo cristaliza-
góes mais ou menos densas de tal tendencia. Essas escolas
dependem cada urna de um chefe principal, que viveu em de
terminada época (a «Rosa-Cruz» como tal parece oriunda, sim,
no séc. XVII, embora seus primordios sejam controvertidos).
Contudo, já que o respectivo fundador se valia de idéias antigás,
refundidas segundo modalidades próprias, as sociedades secre
tas costumam dizer que tém origem remotissima e atravessa-
ram ininterruptamente os séculos (para isto, porém, é-lhes ne-
cessário recorrer a artificios semelhantes a lei dos ciclos de
108 anos, explorada pela «Rosa-Cruz»). Note-se ainda que o
ocultismo, por muito inveterado que seja na historia, nao é

— 45 —
-rPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 1

a forma originaria de filosofía ou de religiáo, mas é urna aber-


ragáo do genuino senso religioso ou do senso místico espontá
neo a todo homem; o ocultismo, com suas doutrinas e suas práti-
cas, deriva-se da ambigáo de algung homens que quiseram fas-
cinar e dominar os seus semelhantes, abusando da filosofía
e da religiáo, ou seja, dizendo possuir um tesouro de pretensos
conhecimentos divinos velados ao vulgo.

2. A ideología rosacruciana

O Rosacrucianismo declara nao ser religiáo; diz que fala,


sim, de Deus e da felicidade do homem, mas de maneira com-
patível com os credos religiosos, de sorte que o adepto de qual-
quer religiáo pode estudar as idéias da «Rosa-Cruz» sem ofen
der a sua fé, como estuda química, música, jurisprudencia...
A vantagem singular do Rosacrucianismo seria a seguinte : a
Biblia Sagrada e os credos religiosos apenas exortam de modo
geral a servir a Deus, viver honestamente e ajudar o próximo.
A Fraternidade Branca, porém, revelaría os métodos práticos
para se realizarem tais tarefas, dando conselhos minuciosos
(formulados com aparato matemático e científico) para que o
homem utilize devidamente as suas aptidóes pessoais e as fórgas
da natureza que o cerca (dai o título de escritos capitais
do Rosacrucianismo: «O dominio do destino com os ciclos da
vida», «Principios rosacrucianos para o lar e para os negocios»,
o que quer dizer: normas para atrair clientela e aumentar as
vendas no comercio, fomentar novos negocios; normas para o
empregado de urna empresa, etc.). A Ordem de Rosa-Cruz ins-
tituiu um «Consultorio de Negocios» nos EE.UU. da América
do Norte. O Imperador da Ordem, Sr. Spencer Lewis, foi esco-
lhido por negociantes eminentes de Nova Iorque e outras cida-
des para ser seu conselheiro : tornou-se socio comendatario de
varias firmas comerciáis e industriáis, recebendo, em troca de
seus oráculos, donativos para a sua Ordem! — Os principios
rosacrucianos nao sao ensinados a qualquer homem, porque,
dizem os Irmáos, a massa nao quer melhorar, saindo da rotina
da vida cotidiana. É também isto o que explica a escolha ri
gorosa dos futuros membros da Ordem; antes de ser admitido
definitivamente nesta, o candidato compromete-se por toda a
vida a guardar o silencio sobre os seus Estatutos, mesmo que
abandone a sociedade. Assim a «Rosa-Cruz» toma o aspecto de
entidade leiga, religiosamente neutra, de moralizagáo e bene
ficencia.

— 46 —
QUE É A ORDEM DE ROSA-CRUZ» ?

Todavía, se se léem os livros doutrinários da Ordem, veri-


fica-se que esta professa urna filosofía que é urna visáo inte
gral do mundo; ultrapassa o plano dos métodos práticos de obter
sucesso na vida, para dar resposta as questóes que qualquer
credo religioso considera. Com efeito, a ideología rosacruciana
está estritamente baseada ñas teses fundamentáis do ocultis
mo : admite o monismo (urna só substancia que se manifesta
tanto no homem como na natureza) e a reencarna .áo (o indi
viduo humano estaría sujeito a ciclos semelhantes aos da histo
ria universal; reencar.nar-se-ia de acordó com as «vibragoes
cósmicas»!). É sobro estas duas teses que se basciam os cál
culos rosacrucianos para se alcangar sucesso na vida: quem
conhega a solidariedade que une o homem, os elementos do mun
do e a Divindade (ou a Mente Cósmica, substancia neutra) entre
si, realiza seus estudos, seus negocios, suas viagens, seus na-
moros e casamentos, etc., na época oportuna do ano. Éste, se
gundo os rosacrucianos, está dividido em sete periodos de 52
dias; no quarto periodo, por exemplo, a Mente Cósmica comuni-
ca-se mais vivamente a mente do individuo, tornando-o antáo.
especialmente apto a obras de inteligencia e de senso artís
tico ...

Como apreciar tais concepgóes?

Ja dissemos quáo va é a interpretagño que a «Rosa-Cruz»


da de Cristo e do Cristianismo. Sobre as teses do monismo ou
panteísmo e da re&ncarnagáo, vejam-se respectivamente os fas
cículos de «Fergunte e Responderemos» 1957 n" 7 qu. 1 e
n" 3 qu. 8. No tocante á exploragáo das disposicóes psi
cológicas e fisiológicas do homem, assim como no desfruta-
mento das fórgas da natureza, os principios rosacrucianos se
baseiam nao raro em observagóes válidas (o que lhes dá a apa-
réncia de sistema científico); o individuo é, sim, influenciado
pelo ambiente e, por sua vez, pode influenciar a éste. Daí, po-
rém, nao se segué que urna única substancia universal, á se-
melhanga de urna rede, passe pelo homem e pelos elementos
da natureza. Além disto, poder-se-ia perguntar sobre que cál
culos se funda a tabela rosacruciasia dos ciclos da vida e dos
meses faustosos e infaustos do ano; donde se deduzem os seus
oráculos, as suas previsóes e normas? A «Rosa-Cruz» responde
que, em última análise, se apoia em um depósito de sabedo-
ria arcana e incomunicável, guardado no Tibe... Donde o es
tudioso concluí que difícil ou impossível é, no caso, pesquisar
e raciocinar; faz-se mister ter fé e crer...

— 47 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 2

... Crer em Deus ou crer em u'a mística meramente hu


mana? Será que o Pai do Céu quis assim velar aos homens as
verdades capitais, o caminho para a suprema felicidade? Pa
rece que nao: «Falei abertamente ao mundo; sempre ensinei
na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reunem, e
nada disse as ocultas» (Jo 18,20), afirmou Jesús, e acrescentou :
«Nada há de oculto que nao deva ser revelado, nada de secreto
que nao se deva tornar público» (Le 12,2).

Esta mensagem crista, sim, é digna de Deus, que quer sejam


salvos todos os homens (cf. 1 Tim 2,4)!

II. DOGMÁTICA

MARCELLI (Altinópolis) :

2) «Queira explicar a origem das indulgencias e a que


equivalem os cem días, os trezentos e sessenta e cinco dias, os
sete anos... das fórmulas de indulgencias».

O fundamento da praxe das indulgencias é a distincáo en


tre a culpa e a pena acarretadas por um pecado (cf. «Pergunte
e Responderemos» 1957 fase. 8, qu. 3). A culpa é como que
a nódoa que a acáo pecaminosa, enquanto tal, imprime a alma
do réu. A pena ó a expiacáo que o pecador deve prestar ao
Criador e as criaturas mesmas por haver violado a hierarquia
dos.valores; é como que urna retratagáo especial que a Justiga
Divina e a harmonia do universo exigem da parte do pecador.

Passemos agora ao plano da historia.


Nos primearos sáculos da Igreja, os pecadores nao eram
absolvidos senáo após ter prestado a satisfagáo que, segundo
a apreciagáo do bispo ou do sacerdote, correspondía as culpas
acusadas; por conseguinte, após a confissáo de suas faltas, pas-
savam um período mais ou menos longo (urna quaresma, cem
dias, um ano...) agregados á classe dos penitentes e entregues
a severos exercicios de expiagáo. Destarte procurava-se fazer
que, quando os pecadores (geralmente na quinta-feira santa) re-
cebessem a absolvigáo sacramental, lhes fósse cancelada nao
sómente a culpa, mas também todo o débito de expiagáo decor-
rente do pecado (cf. «Pergunte e Responderemos» 1957 fase. 8,
qu. 4).
Tal rigor penitencial, porém, trazia o inconveniente de
afugentar do sacramento muitos fiéis de saúde ou de ánimo

— 48 —
AS INDULGENCIAS

fracos. As autoridades da Igreja, por conseguinte, viram-se.


obrigadas a mitigá-lo.
Um dos primeiros passos dados neste sentido foi a ante-
cipagáo da absolvigáo sacramental. Esta, no séc. VI, comegou
a ser dada logo após a confissáo das faltas; apagava imediata-
mente a culpa do pecado, mas deixava subsistir a exigencia de
satisfagáo, que, imposta pelo confessor, devia ser prestada após
a absolvigáo. O rigor com que se determinava a satisfacáo, ainda
era notorio nos séc. VH/IX; estavam em uso Livros peni
tenciáis ou tabelas em que se achava estipulada a penitencia
correspondente as faltas mais comuns : reclusáo em um mos--
teiro por todo o resto da vida ou durante dez arios, sete anos,
tres anos.... jejuns mais ou menos prolongados ou repetidos
durante quarentenas ou anos..., oragóes, flagelagóes, esmo-
las, etc.

Contudo também esta praxe foi mitigada. A Santa Igreja,


depositaría dos méritos de Cristo, que frutificaram nos méritos
da Bem-aventurada Virgem María e dos Santos, formando o
tesouro da Igreja, houve por bem aplicar ésses méritos em fa
vor dos penitentes, levando assim em conta os graves incó
modos e a fraqueza física de seus filhos. As severas obras pe
nitenciáis foram sendo comutadas por outras mais brandas in
dulgenciadas, isto é, enriquecidas da remissáo da pena temporal
devida a pecados já pordoados; tais obras mais suaves que os
bispos comecaram a indulgenciar, eram, por exemplo, oragóes
em lugar de jejuns, o pernoitar em um santuario em vez de
longa peregrinagáo, a doagáo de urna esmola em vez de flage
lagóes, etc. A Sagrada Escritura, fio Antigo Testamento, forne-
cia o fundamento auténtico para essa nova praxe, considerando
casos em que as obrigagóes dos fiéis eram leg'.timamente comu
tadas e mitigadas, desde que se tornassem demasiado onerosas
(cf. Lev 5,7.11).
Nos séculos IX e X a prática das comutaóes ou «reden-
góes» de penitencias se foi tornando cada vez mais usual e
branda. No séc. XI os bispos comegaram a conceder indulgen
cias gerais, isto é, indulgencias oferecidas a todos os fiéis, sem
que o sacerdote tivesse que intervir determinando as condi-
góes particulares do resgate da pena; bastaría que os fiéis pres-
tassem a obra indulgenciada, animados de sincero espirito de
penitencia, tendo em vista de maraeira geral a expiagáo dos
seus pecados (praxe ainda hoje vigente). Com isto, as auto
ridades eclesiásticas visavam estimular as obras boas e, em
particular, a colaboragáo dos fiéis em algum empreendimento
de interésse comum (construgáo de urna igreja, de um hospi-

— 49 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 2

tal, de urna escola, de urna ponte, sustento de um santuario, as


cruzadas no Oriente, na Espanha ou no Sul da Franca). Cem
dias, um ano ou sete anos de indulgencias, nesses casos, signi-
ficavam a remissáo da pena que alguém deveria expiar fazendo
cem dias, um ano ou sete anos de penitencia rigorosa, avallada
segundo a praxe da Igreja antiga (aínda hoje, quando se fala
de «tantos dias ou anos de indulgencia», supóem-se a termino-
logia e o costume dos primeiros tempos; no purgatorio nao há
dias nem meses nem anos); indulgencia plenária veio a ser o
perdáo de toda e qualquer pena satisfatória. — Nao há dúvida,
porém, de que tais indulgencias Jiáo podiam (nem podem) ser
lucradas sem que os fiéis houvessem previamente confessado
as suas faltas (as obras indulgenciadas nao obtém o perdáo do
pecado como tal) e sem que excitassem em si o espirito de con-
trigáo que os teria levado a prestar a rigorosa penitencia de cem
dias, um ou mais anos da antiga Igreja; sem éste ánimo inte
rior, nada se poderia (nem se pode) adquirir. Donde se vé que a
praxe das indulgencias está longe de reduzir a religiáo a forma
lismo ou mercantilismo. Em virtude déstes pressupostos, deve
le dizer que na verdade é muito difícil ganhar urna indulgen
cia; quem, ao recitar urna breve prece indulgenciada, pode ter
certeza de estar repudiando os pecados como os generosos pe
nitentes da Igreja antiga, postados sobre cinzas e cilicio durante
semanas ou meses?

Em 1457 o Papa Calisto III, pela primeira vez na historia,


concedeu indulgencias que os fiéis poderiam aplicar ás almas
do purgatorio. Tal aplicagáo, porém, se faz a titulo de sufragio,
nao de absolvicáo; o que quer dizer: a Igreja na térra, nao
tendo poder de jurisdigáo (absolvigáo) sobre as almas dos de-
funtos, apenas pode rogar por elas e apresentar ao Senhor mé
ritos que redundariam em proveito dos vivos, pedi.ndo se tor-
nem proficuos para os defuntos. A eficacia dásses sufragios es
capa a nossa apreciacáo : Deus distribuí os frutos dos mesmos
de maneira que nos fica oculta. Está claro que os sufragios as-
sim feitos nao derrogam á obra redentora de Cristo, pois os me-
recimentos apresentados nao sao mais do que o prolongamento
e os frutos dos méritos do Salvador.

No séc. XV, quando a piedade dos fiéis se tornava mais e


mais exuberante, a praxe das indulgencias gozava de grande es
tima; urna das obras mais freqüentemente indulgenciadas era
a esmola. Em conseqüéncia, acontecía que o anuncio de esmo-
las indulgenciadas, tal como era feito por certos pregadores,
tomava vulto extraordinario, ficando sujeito a desvirtuamento;

— 50 —
O «CEM POR UM» DO EVANGELHO

visando mover o povo, usavam de oratoria que podia ser mal


entendida; além disto, a autoridade civil tinha seus interésses
na distribuicáo das esmolas indulgenciadas, requisitando urna
parte das mesmas para o erario público. Daí os abusos que se
tornaram famosos e concorreram para dar ocasiáo (mais do
que motivo real) ao cisma de Lutero.
A reagáo contra ésses males partiu do íntimo mesmo da
Igreja. Em 1569, o Papa S. Pió V cancelou todas as esmolas
indulgenciadas e proferiu a excomunháo sobre os que tentassem
comerciar com as indulgencias, pena esta que o Direito Canó
nico hoje vigente renovou (cf. can. 2327). Nao há dúvida, po-
rém, de que os desvios verificados no fim da Idade Media nao
afetam a doutrina das indulgencias como tal; esta por si é
apta a estimular os fiéis a obras boas; os documentos oficiáis
da Santa Igreja (bulas dos Papas, decretos das Congregagóes
Romanas) sempre a propuseram em termos puros e ortodoxos,
tendo-se os abusos registrado no procedimento déstes ou da-
queles eclesiásticos em particular.
Em 1669 o Pontífice Clemente IX criou a Congregacáo das
Indulgencias e Reliquias, encarregada de conceder indulgen
cias e controlar o seu uso; supressa essa Congregacáo, é hoje
a Sagrada Penitenciaria que zela por tudo que diz respeito as
indulgencias (cf. Código de Direito Canónico, can. 258 § 2).

III. SAGRADA ESCRITURA

JUÁREZ (Rio do Janeiro) :

3) «Como interpretar o cem por um da Escritura, prome


tido aos que deixam tudo para seguir a Cristo? Significa bens
materiais, casas ¡numeras, assisténcia religiosa na hora da mor-
te, maior número,de grasas ou dons referentes á vida, futura?»

«Todo aquéle que deixar casa, irmáos, irmás, máe, pai, filhos, cam
pos, por causa de Mim e do Evangelho, receberá ao céntuplo, desde já
no mundo presente, casas, irmaos, irmás, máes, filhos, campos — com
perseguicóes — e, no mundo futuro, a vida eterna» (Me 10,29s).

Estas palavras tém dado margem a interpretagóes varia


das, que passamos a analisar brevemente :

a) houve quem as entendesse em sentido material e gros-


seiro, como o Imperador Juliano o Apóstata (t 363), que escar
necía os cristáos perguntando-lhes se esperavam ter cem es
posas.

— 51 —
-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958. qu. 3

b) Outros preferiram interpretá-las como o anuncio de


um reino milenario, visível, de Cristo sobre a térra, anterior ao
juízo universal; nesse período, caracterizado por bonanga, os
discípulos do Senhor receberiam materialmente o céntuplo
prometido.

c) Outros comentadores tomaram as palavras de Jesús em


sentido alegórico. Dizia, por exemplo, Sao Jerónimo (f 420),
ao qual fazem eco varios escritores antigos : «Qui carnalia pro
Salvatore dimiserit, spiritualia recipit. — Quem, por amor do
Salvador, abandona o que ó carnal, recebe o que ó espiritual»
(ed. Migue lal., t. 2(5,139). Por conseguinte, os justos, em troca
da fraternidade com seus familiares, receberiam a fraternidade
com Deus; em lugar de seus campos, receberiam o paraíso, etc*

Nos nossos tempos prevalece, a justo título, a interpretagáo


espiritual. Os exegetas modernos, porém, abrandam o extremo
alegorismo de Sao Jerónimo, embora nao concordem plena
mente entre si sobre o significado positivo dos dizeres de Cristo.

d) O famoso Pe. Lagrange julga que o céntuplo se deve


entender nao no plano da quantidade, mas no dos valores (S.
Marc 277), a saber: o cristáo, seguindo a Cristo, entra numa
familia nova, vinculada pelos lagos da caridade sobrenatural;
os fiéis podem, com efeito, chamar-se iraiaos uns aos outros,
pois, pola Kraca santificante, participam todos da natureza
divina (cf. 2 Pdr 1/1). Süo também lillios ospiriluais dos
Apostólos, que os geraram no Cristo Jesús (cf. Gal 4,19; 1 Cor
15,58; 2 Cor 6,11-13). Te.nha-se em vista igualmente o caso de
Sao Paulo, que saudava como máe sua a máe de Rufo (cf. Rom
16,13), sem dúvida por causa da notável caridade dessa matro
na. É de notar outrossim que, ao receber o batismo, os cristáos
de Jerusalém passavam a viver em comunháo de bens, nao só
espirituais, mas "também materiais (cf. At 2,44; 4,32); de entáo
por diante, usufruiriam da liberalidade de seus irmáos perten-
centes a comunidades mais abastadas do estrangeiro (cf. At 11,
29s; 16,16; Gal 2,10; 2 Cor 8,1-9,15).
O Pe. Huby nota que o quadro de vida da Igreja nascente
(com a sua comunháo de bens materiais) nao se reproduz como
tal nos tempos modernos; julga, porém, que algo de equivalente
se dá até os nossos dias :
«As circunstancias mudaram, mas a palavra de Cristo continua
a se verificar cm sentido aínda mais grandioso. Aqueles que tudo
abandonam para O seguir, estáo seguros de receber, em troca dos
bens naturais que se contam e se pesam,' os valores incomensuráveis
proporcionados pela caridade» (S. Maro 235).

— 52 —
O «CEM POR ÜM> DO EVANGELHO

A sentenga de Huby, na verdade, combina a interpretado


literal e a alegórica; em última análise, ela identifica a promes-
sa do céntuplo com a promessa, também feita por Jesús, de que
a Providencia do Pai nao abandonaría aqueles que se Lhe en-
tregassem (cf. Le 12,22-31); a sólicitude da Providencia, que
abrange todos os homens, se exerceria de modo particular em
favor dos que tudo deixam para seguir a Cristo.

e) Por muito sugestiva que seja esta interpretagáo, parece


merecer preferencia a seguinte, devida ao Pe. Lebreton : Jesús
pode dizer que o justo recebe o céntuplo neste mundo, porque,
na verdade, a renuncia aos be.ns terrestres nos torna senhores
dos mesmos; liberta-nos de qualquer apego escravizador e dá-
-nos a intuigáo do seu verdadeiro significado, fazendo-nos ver
nessas criaturas materiais o seu valor auténtico : sao sinais da
presenca e da acáo de Deus. Sao Paulo, pobre de bens visiveis,
deu enfática expressáo a tal verdade, afirmando que ele «nada
tinha, mas paradoxalmente tudo possuia» (cf. 2 Cor 6,10). Com
efeito, observa-se que os discípulos de Cristo, no decorrer dos
séculos, quanto mais renunciaram, tanto mais ganharam as
cendencia e dominio sobre o mundo que os cercava; tal foi o
caso de Sao Bento, de Sao Francisco de Assis, dos grandes as
cetas do deserto, aos quais a natureza, os animáis, as plantas,
até mesmo ás epidemias e calamidades, obedeciam; consegui-
ram, sem inlcnyüo preconcebida, poder tal sobre a natureza
qual nunca obtiveram os que acumulam riquezas e prestigio
terrestres.
É certamente e sempre neste sentido muito fino e pro
fundo que se cumpre a promessa de Cristo consignada em Me
10,29s («ao céntuplo, desde já, no mundo presente»). Em cer-
tos casos, porém, nao se negará que a Providencia recompensa
também num sentido um pouco mais material (como o propóe
Lagrange ou Huby) aqueles que tudo abandonam por amor de
Cristo.
Por fim, o cristáo nao deixará de levar em conta a pro
messa de perseguigóes que Jesús justapóe as demais, na frase
de Me 10,30. Éste trago dá a ver que o Senhor nao entendía
colocar diretamente ante os olhos de seus discípulos bem-estar
e fartura; isto seria totalmente contrario ao espirito de Cristo,
que ensina: «O servo nao é maior do que o seu senhor; se per-
seguiram a mim, também a vos perseguiráo» (Jo 15,20). Será,
sem dúvida, com a cruz e por meio da cruz que o cristáo rece-
berá o céntuplo.

— 53 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 4

DEODATO (Sao Paulo) :

4) «Como se explicam as palavras da consagracáo euca-


rística : '.. .sangue, que será derramado por vos e por muitos'?
Jesús nao morreu por todos?»
A expressáo «por muitos» na fórmula da consagracáo eu-
carística se deriva de Me 14,24; «Éste é o meu sangue, o sangue
da Alianga derramado por muitos» (cf. Mt 26,28). Por sua vez,
as palavras de Jesús na última ceia fazem eco a urna afirmagáo
anterior de Cristo : «O Filho do Homem nao veio para ser
servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos»
(Me 10,45; cf. Mt 20,28).

Ora .tiestas passagens, principalmente na segunda, o Senhor


parece reproduzir um texto de Isaías, em que Javé declara :
«Quando meu servo tiver oferecido sua vida em resgate, verá
urna posteridade... Por seus sofrimentos meu servo justifi
cará a muitos. Por isto Eu lhe darei multidóes em partilha»
(Is 53,10-12).
A palavra hebraica rabbim, ocorrente nesta passagem do
Antigo Testamento, indica nao simplesmente um grande nú
mero de homens, mas a massa, que é também a totalidade dos
homens. O profeta e, por conseguinte, também Jesús enten-
dem realgar o contraste entre um, que será sacrificado, e o
grande número, a massa ou lambóm os otitros, que seráo resba
lados. Por isto aluuns comen)ndoivs modernos do Mt o Me-
traduzem o texto evangélico por «derramado em favor dos ou-
tros», nao «...de muitos». Esta interpretagáo é confirmada
pelo texto de Sao Paulo, Rom 5, 12.15-19; o Apostólo, referin-
do-se ao fato de que por um só homem, Adáo, a coletividade do
género humano foi constituida pecadora e por um só homem,
Cristo, foi justificada, emprega como equivalentes um ao outro
os termos hoi pollói (o grande número) e pántes (todos). Tal
modo de falar tem significado positivo e enfático : inculca que
a totalidade dos homens se compóe nao de poucos individuos,
mas de muitos; de modo nenhum quer dizer que alguém esteja
esteja excluido do número dos remidos.

Ainda em confirmacáo de quanto está ácima dito, devem-se


citar os manuscritos recém-descobertos no deserto de Judá (Pa
lestina) ; nestes documentos, de extraordinaria importancia para
a exe^ese do Novo Testamento, a expressáo ha-rabbim signi
fica a assembléia geral, nao um grupo restrito (cf. J. T. Milik,
Dix ans de découvertes dans le désert de Juda. Paris 1957, 65s).

— 54 —
OS QUATRO REINOS DO PROFETA DANIEL

IVANILDO (Campiñas) :

5) «Qual seria a explicacao das seguintes passagens de


Daniel: 7,7-8 e 7,23-25? A que reinos se referem? Ouvi dizer
que o quarto animal é a Igreja Católica e os dez chifres sao os
povos bárbaros».

Eis os textos cujo sentido nos propomos averiguar :


Dan 7,7 «Depois disto, eu continuava olhando ñas visóes da noite,
e eis aquí o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual
tinha dentcs grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedamos, e pi-
sava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animáis que
aparcceram antes déle, e tinha dez ponías (ou chifles).
8 Estando eu considerando as pontas (ou chifres), eis que entre
elas subiu outra ponta (ou chifre) pequeña, diante da qual tres das
pontas primeiras foram arrancadas; e eis que nesta ponta havia olhos,
como olhos de homem, e urna boca que falava grandiosamente.
.. .23 Disse assim (o anjo): 'O quarto animal será o quarto reino
na térra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda
a térra, e a pisará aos pés, e a fará em pedacos. 24 E, quanto as dez
pontas, daquele mesmo reino se levantaráo dez reis; e depois déles se
levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a
tres reis. 25 E proferirá palavras contra o Altissimo, e destruirá os
santos do Altissimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e éles seráo
entregues na sua máo por um tempo, e tempos, e metade de um tempo'»
(tradugáo de Ferreira de Almeida).

Urna regra básica de exegese manda que se procure a inter-


pretacáo de um texto no respectivo contexto ou ñas páginas es
critas polo mesmo autor; ó preciso averiguar a menlalidade, as
regras de estilo e o vocabulario do escritor para que se perceba
o que ele quería dizer e nao se lhe atribuam teses estranhas.
Ora é assaz evidente que a visáo dos quatro animáis, aos
quais se sucede o reino messiánico, em Dan 7 é paralela á visáo
da estatua confeccionada de quatro metáis, que também cede
ao reino messiánico, em Dan 2: a estrutura e a conclusáo das
passagens sao as mesmas; Dan 7, por conseguinte, deverá ser
ilustrado por Dan 2.

Numa primeira aproximagáo, deve-se dizer que, no estilo


profético e apocalíptico, animáis (reais ou fantásticos) muitas
vézes designam nagóes; cf. Is 27,1; 51,9; Ez 29, 3; 32, 2 (veja-se
também SI 67,31; 74,13). É o que se verifica no livro de Da
niel : éste autor quer designar os quatro grandes reinos que su-
cessivamente entraram em relacóes com o povo de Israel antes
da vinda do Messias.

O primeiro animal (leáo com asas de águia) simboliza o


reino neo-babilónico (625-539 a.C), cujo principal monarca foi

— 55 —
jj^ERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 5

Nabucodonosor (604-526); com efefto, no c. 2 a cabega de ouro


da estatua é explícitamente identificada com Nabucodonosor e
seu reino (cf. 2,37s). Dizendo que o leáo perdeu as asas e re-
cebeu um coragáo de homem (cf. 7,4), o autor sagrado quería
talvez aludir a. cena do c.4 : o monarca se tornou mais humano
após reconhecer o verdadeiro Deus.

O segundo animal (urso que se erguía sobre um dos seus


lados apenas e tinha na boca tres costelas) significa o reino dos
medos, que, conforme as perspectivas de Daniel (cf. 6,1), se su-
cedeu ao dos babilonios. Corresponde ao peito e aos bracos de
prala da estatua vn\ Dan 2,32.39. Esta inti>rnreln<;áo ó confir
mada por Dan 8,20. O reino dos medos, sendo mais fraco que
o de Nabucodonosor (cf. 2,39), é apresentado em estado de dese
quilibrio (erguido sobre um dos seus lados apenas).
O terceiro animal (leopardo com quatro asas e quatro cabe-
gas) representa o reino dos persas (538-333 a.C.); corresponde
ao ventre e as coxas de cobre da estatua, em 2,32.39. Também
em Dan 8,20 se obtém a confirmagáo desta exegese. As qua
tro asas simbolizam os quatro cantos do mundo aos quais se es-
tendeu o dominio persa; os quatro chifres sao quatro reis da
Pérsia, os únicos (dentre nove) que o autor sagrado parecía
conhecer (Ciro, Cambises, Darío I e Xerxes I; cf. 11,2).
A quarta fera finalmente nao se assemelha a algum dos
animáis da térra : tinha dez chifres, entre os quais surgiu repen
tinamente outro pequeño chifre, que arrancou tres dos anterio
res. É, de acordó com Dan 2,40; 8,5.21; 11,3, o símbolo do
imperio macedónio de Alexandre Magno (336-323 a.C.). Os dez
chifres sao os tres generáis e os sete reis que se sucederam a
Alexandre no govérno da Siria; a estes seguiu-se Antioco IV
Epifanes (175-163), o pequeño chifre, que só obteve prestigio
depois de haver eliminado alguns de seus rivais (designados
pelos tres chifres arrancados, em 7,8).
Antioco IV é o perseguidor do povo judaico que provocou
a heroica resistencia dos Macabeus. Os tragos com que é des
crito em 7,7s e 7,23-25 coincidem com os que o caracterizan!
em 8,9-14. 23-25; 11,21-45; estes trechos posteriores ajudam a
compreender o c. 7. Vé-se que Antioco Epifanes era tido como
figura do Anticristo; Sao Paulo mesmo, em 2 Tes 2, 3-10, des-
creve o Anticristo aludindo aos dizeres de Daniel. Conforme
Dan 7,25, o perseguidor sirio (o pequeño chifre) procurou mu
dar os tempos e a lei, porque quis proibir aos judeus a observan
cia do calendario sagrado (cf. 1 Mac l,41s.43-52); oprimiu o
povo eleito durante «um lempo, tempos e meio-tempo», isto é,

— 56 —
EDUCACAO SEXUAL

durante tres anos e meio (desde a missáo de Apolónio em Jeru-


salém no mes de junho de 168 até a nova dedicacáo do Templo
em dezembro de 165); cf. Dan 4,13; 8,14; 9,27; 12,7. O número
«tres e meio», metade de «sete» (que é o símbolo da perfeigáo,
segundo a mentalidade antiga), designa na Escritura a calami-
dade, calamidade, porém, que nao chega a devastar tudo, pois é
oportunamente detida por Deus.
Justamente durante a perseguicáo de Antíoco Epifanes
(entre 168 e 165) parece ter sido redigido o c. 7 do livro de Da
niel. O hagiógrafo visava corroborar o ánimo dos judeus opri
midos, fazcndo-lhes ver como a historia, desdo os lompos de
Nabucodonosor, so desenrolava sob as disposigóes da Providen
cia Divina. Curta e frustrada, queria ele dizer, seria a perse-
guigáo movida por Antíoco (era caracterizada pelo número 3,5);
a ela se seguiría o reino messiánico, o reino do Filho do Homem
e dos santos, cuja instauracáo é solenemente descrita em 7,9-14;
tal reino seria eterno, jamáis sujeito á destruigáo. Que se avi-
vasse, pois, a esperanca dos leitores judeus, acabrunhados pela
luta religiosa!
Como se vé, ao redigir o c. 7 de Daniel, o hagiógrafo, por
volta de 165 a. C, tinha em vista a historia pretérita e as cir
cunstancias em que se achava o povo de Israel; era a tais ele
mentos que ele queria aludir mediante os seus símbolos, parti
cularmente mediante a figura dos quatro animáis poderosos Se
ria erróneo, portanto, procurar a interpretado do quarto ani
mal na historia posterior ou na época do Cristianismo; neste caso
quebrar-se-ia a linha de pensamento do hagiógrafo; o livro de
Daniel perdería sua estrutura e deixaria de significar algo para
os seus leitores. Quando o hagiógrafo alude ao futuro (o que
se dá depois de haver introduzido as quatro feras), descreve-o
com todo o otimismo : é a viuda do Filho do Homem e a obra
déste, a Igreja, que ele propóe como farol de esperanga aos seus
leitores; de modo nenhum visa incriminar o advento de Cristo
no limiar da era crista nem a Igreja em que Jesús vive e reina
através dos séculos.
Percebe-se assim, após urna reflexáo serena, quáo desca
bido é identificar o quarto animal de Dan 7 com a Igreja Cató
lica.
IV. MORAL

PEDRO J. (Rio de Janeiro):


6) «Se pessoas autorizadas afirmam que indispensável é a
educagáo sexual, porque c que otitras aínda a proibem c conde-
nam?»

— 57 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 2/1953, qu. 6

Há quem diga que a excitagáo febril e a depravagáo moral


da juventude moderna provém de insuficiencia de ensinamento
referente á questáo sexual. Em conseqüéncia, propugnam um
tipo de educagáo sexual que, sem observar limites, desvenda ao
discípulo tudo que concerne ao assunto, nao levando em conta
idade, temperamento, reagóes do adolescente, etc.
Esta tese moderna, por muito capciosa que seja á primeira
vista, na prática mostra-se extremamente nociva.
A Moral crista nao desaprova a educagáo sexual; chega
a recomendá-la a fim de se contrabalangarem ou impedirem in
fluencias daninhas sobre o adolescente. Requer, poróm, seja
feita dentro de certas cláusulas :
1) toca aos pais, tutores ou mestres honestos falar aos jo-
vens sobre a vida sexual; fagam-no antes que colegas, emprega-
dos ou estranhos o empreendam. Distingam, porém, entre edu
cagáo e iniciacJLo sexual: ao passo que a iniciagáo visa apenas a
fisiología, a educagáo se dirige ao homem todo (incutindo a dis
ciplina das paixóes e a formagáo da vontade).
2) A educagáo sexual nao deve ser feita em público, á
guisa de aula na escola, e de maneira igual para todos os ou-
vintes. Ao contrario, será levada a efeito em caráter particular,
e graduada de acordó com as necessidades e a receptividade de
cada jovem de per si, a fim de nao se despertarem prematura
mente a atcngfio e o instinto sexuais — o quo criaría proble
mas serios tanto de ordem psíquica como de ordem fisiológica.
Na escola, o mestre se limitará a afirmagóes gerais de biología
e a ética ou formagáo do caráter para a vida sexual.
3) Ao mesmo tempo que se vai desvendando ao jovem o
que concerne á fisiología, é indispensável procurar educar a
sua vontade, dando-lhe sadia concepeáo geral da vida e mos-
trando-lhe a fhralidade das tendencias espontáneas do homem.
Assim o educador fornece ao adolescente os meios de dominar
(sustentado, sim, pela graga de Deus) os movimentos que a ini
ciagáo fisiológica néle pode desencadear.
É a negligencia na formagáo do caráter que constituí urna
das grandes Iacunas dos métodos modernos de educagáo sexual.
Apenas consideram o aspecto material, fisiológico, do problema;
e se dirigem táo sómente á inteligencia, descuidando-se de pre
parar e enriquecer a vontade. Tal proceder nao pode deixar de
acarretar desequilibrios no funcionamento psico-físico do ado
lescente. É preciso, pois, que o educador sexual fornega ou-
trossim urna educagáo geral sadia : seja um pedagogo completo,
capaz de se servir de todos os recursos da pedagogía a fim de

— 58 —
EDUCACAO SEXUAL

garantir a preservagáo sexual; em caso contrario ele dá á so-


ciedade uns gozadores mórbidos, viciados, nao os construtores
do mundo de amanhá. Diz-se com razáo que as atitudes se-
xuais de um adolescente vém a ser o produto e a pedra de toque
de sua educagáo geral.
A razáo de ser das restricóes ácima, ditadas pela Moral
crista, nao é de modo nenhum a falsa crenca de que os atos
da sexualidade sejam por si pecaminosos ou de que o primeiro
pecado (a culpa de Adáo e Eva no paraíso) tenha sido pecado
sexual. Sao exclusivamente inspiradas pela consciéncia de que
a desmedida reflexáo sobre a fisiología humana e, em parti
cular, sobre a fisiología do sexo ó, tanto do ponto do vista fí
sico como do ponto de vista moral, nociva ao individuo; assim
como a excessiva análise do funcionamento do coragáo ou do
aparelho digestivo pode perturbar gravemente o funcionamento
do organismo, assim também a consideracáo indiscreta da se
xualidade e de seus movimentos profundos é capaz de produzir
desajústamenos. A natureza quer ser respeitada; quer que
suas funcóes decisivas fiquem até certo ponto recobertas^ pelo
véu do inconsciente (é nesse inconsciente, alias, que está im
portante fator de auto-defesa da natureza).
O Santo Padre o Papa Pió XII, repetindo normas de seus
antecessores, lembrou mais de urna vez ao mundo a neces-
sidade de recato no tocante a educagáo sexual:
día um toiTotln no qual a oilueacfio íla opiniao pública, a sua
rotiíiciicáo, se impóem com urgencia trágica...
Queremos íalar aqui de escritos, livros e artigos acerca da ini-
ciacáo sexual, os quais muitas vézes obtém hoje enormes éxitos de li-
vraria e inundam o mundo inteiro, invadindo a infancia, submergmdo
a gcracáo que sobe para a vida, perturbando noivos e jovcns casáis.
Essa literatura... parece nao levar em conta a experiencia
geraide ontem, hoie e sempre, a qual, fundada na natureza, atesta
que na educacao moral, nem a iniciagáo nem a instrucáo apresentam
de si qualquer vantagem e que pelo contrario sao gravemente malsas
e prejudiciais., se nao váo fortemente unidas a urna constante disci
plina a vigoroso dominio de si mesmo e sobretudo ao uso das torcas
sobrenatural da oragáo e dos sacramentos» (Discurso aos País de
íamilia franceses, proferido aos 16 de setembro de 1951; transcrito da
«Revista Eclesiástica Brasileira» XI [1951] 965s).
«Referimo-nos á iniciacáo sexual completa, que nada quer ocul
tar nem deixar na escuridüo. Nao há nisso urna excessiva e perni
ciosa estima do saber? Existe também urna educacao sexual eficaz,
que com toda a seguranca ensina na calma e objetividade o que o
jovem deve saber para se guiar a si mesmo e tratar com o seu meio.
De resto, há de se insistir, na educacao sexual, como alias em toda a
educacao, sobre o dominio de si mesmo e a formacáo religiosa» (Dis
curso aos Psicoterapeutas, proferido aos 13 de abril de 1953; transcrito
da «Revista Eclesiástica Brasileira» XIII [1953] 484).

— 59 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 7

SILVIO (Rio de Janeiro) :

7) «A consciéncia moral é uní produto artificial da edu-


cacao; nada tem de perene. Basta lembrar o que se dá com
enancas que crescem entre animáis selvagens».

Primeiramente vejamos o que se entende por consciéncia


moral.
Esta expressáo designa o ditame que espontáneamente se
afirma ao homem, indicando-lhe normas para o consecugáo do
seu Finí Supremo ou da perfrie.no de sua personalidade (perso-
nalidadc que tem por característica a sede do conhecer a Ver-
dade e amar o Bem); ésse mesmo ditame que antecede os atos
do individuo, faz ouvir o seu juízo, de aprovagáo ou condenagáo,
após cada um déstes.

1. Pergunta-se agora, diante de recentes descobertas da


medicina e da sociología, se a consciéncia moral nao é produto
de preconceitos e convengóes.
A Psicología, tanto racional como empírica, responde que
nao. Em toda criatura humana existe um imperativo muito
simples, anterior a qualquer deliberagáo : «Faze o bem, evita
o mal»; a conduta dos homens de todas as épocas e regióes
pressupóe a consciéncia dessa norma, que vem a ser a conscién
cia da moralidade ou a consciéncia moral. Percebendo tal nor
ma, o homt;m percebe que sua natureza tem um Autor, o qual
a dolou de tal faculdude reguladora, Autor (Deus) que, me
diante ésse mesmo ditame interno, o está continuamente a cha
mar para voltar ao Principio do qual procedeu. O preceito
básico «Faze o bem, evita o mal» em cada individuo se explí
cita em prescrigóes mais minuciosas, aplicadas á realidade coti
diana. Por exemplo, o homem perceberá que «fazer o bem»
implica «cultuar devidamente a Deus, honrar pai e máe, res-
peitar a fama e á dignidade do próximo, etc.»;. . . «evitar o mal»
quer dizer «nao malar, nao roubar, nao abusar dos praze-
res, etc.».
A explicitagáo da norma fundamental admite graus diver
sos. Há, sim, urna consciéncia simples, primitiva, como a da
crianga, a dos selvagens, a dos justos do Antigo Testamento,
que nao véem (ou nao viam) plenamente o alcance de seus atos
e, por isto, nao percebem (ou percebiam) o mal moral néles
contido; tais individuos, embora dotados de boa fé subjetiva, nos
podem parecer laxos na sua maneira de se trajar, de julgar a
mentira, a poligamia, etc.; Deus só os julga na medida em que
tém consciéncia do dever, ou na medida em que o ditame inte-

— 60 —
CONSCISNCIA. MERO PRODUTO DO AMBIENTE?

rior Ihes fala. Há também a consciéncia plenamente desenvol


vida, que é a do cristáo bem formado; éste percebe que «pra-
ticar o bem» significa nao apenas «pagar o bem com o bem»,
mas também «pagar o mal com o bem» e «fazer ao próximo
tudo aquilo que quiséramos fósse feito a nos mesmos» (cf. Mt
5,44s; 7,12). Há, além disto, consciéncias cauterizadas, ou seja,
consciéncias cuja voz nao se faz ouvir (ao menos em tal ou tal
ponto particular), porque inveterados hábitos maus do individuo
ou da sociedade as sufocaram; véem-se, em tais casos, homens
cometer graves aberragóes com aparéncia tranquila, nao porque
nao tenham nogáo de moralidadc, mas porque se habituaram a
resistir aos protestos da mesma.
Embora o desenvolvimento da consciéncia moral varié de
individuo a individuo, ele se processa segundo a mesma diregáo
em todos os homens e em todas as épocas. Em outros termos :
a consciéncia é imutável, como imutável é a natureza humana;
por conseguinte, matar, roubar, abusar dos prazeres e os demais
atos vedados espontáneamente pela consciéncia, assim como nos
«velhos tempos» eram abomináveis, sao também na época mo
derna agóes indignas do homem. As normas capitais da Ética,
portanto, nao estáo sujeitas a mudancas «existencialistas», isto
é, a derrogagóes ditadas pela situagáo contingente em que se
ache o individuo. Váo c destarte o «existencialismo ético», que,
negando valores perenes, adota como único criterio da morali
dadc a conseciis'áo do bem-estar que o individuo julga dever al
canzar na situacáo em que se encontré. A inuilabihdade da
consciéncia se deriva do fato de nao ser ela senáo um reflexo
da santidade de Deus; é o Deus Santo que, por meio da cons
ciéncia, chama o homem a ser santo ou a imitá-Lo. Ora, assim
como Deus nao sofre alteragáo (por ser a propna e infinita
Perfeigáo), assim também sua voz espontánea em nos nao
conhece mudanca (ao contrario, podem ser alteradas pelo
próprio Deus as leis divinas positivas, isto é, as leis que o Criador
nao exprime diretamente pela natureza humana).
Na explicitagáo da consciéncia humana tres falóres decisi
vamente combinam entre si a sua agáo; tais sao :

1) o desenvolvimento de certos órgáos do corpo, entre


os quais tem importancia máxima o cerebro (sede da fantasía,
do senso comum);
2) os hormónios, que ativam o funcionamento de tais
órgáos;
3) a educagáo, ou seja, a devida intervengáo dos adultos
no desabrochar das faculdades latentes da manca.

— 61 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 7

A influencia dos elementos 1) e 2) se deve ao fato de que


a personalidade humana nao reside apenas na alma ou .na
parte espiritual do homem; ao contrario, éste é essencialmente
um composto de alma e corpo, de tal sorte que só pode atingir
a sua perfeicáo mediante a colaboracáo harmoniosa dos dois
componentes; por conseguinte, se o corpo nao fornece a sua
contribuigáo (em virtude de lesáo cerebral, por exemplo, ou de
deficiente metabolismo), a alma nao pode expandir as perfei-
góes que o Criador lhe deu. — A necessidade de educagáo se
deriva também da natureza humana, que é social, incapaz de
atingir isoladamente a sua eonsumagáo em qualquer setor que
seja (económico, científico, técnico e também moral).
As falhas de um ou mais dos elementos ácima produzem
as taras e os individuos tarados.
2. É á luz destas verdades que se deve considerar o caso
das chamadas «criangas selvagens».
O Professor Zingg, da Universidade de Denver (U.S.A.),
em 1940 publicou a descrigáo de vinte e cinco casos de criangas
que, adotadas por animáis, cresceram ñas selvas, levando vida
inteiramente selvagem. Gesell cansagrou recentemente um
estudo as gémeas de Midnapor — Amala e Kamala —, as quais
viveram entre lobos durante varios anos, sendo, a seguir, reco-
lhidas por um pastor hindú, que as observ.ou minuciosamente.
Essas criangas, quando descobertas, caminhavam sobre as
máos e os joclhos («a quatro patas») e com tanta rapidez
que um homem adulto difícilmente as podía acompanhar;
iam á caga com os lobos, participando das peripecias déstes e
dilacerando com os dentes os animáis captados, sem se servir
das máos. Quando os homens mataram os lobos nos antros dos
quais viviam as criangas, estas se defenderam com garras e
dentes, á semelhanga das feras. Nao falavam, mas apenas emi-
tiam os gritos Jhabituais dos lobos, imitados á perfeigáo. Até
o fim da vida, *as meninas preferiram a companhia das feras
á dos homens; os lobos capturados nao se espantavam quando
se Ihes aproximava Kamala como se espantavam quando um
ser humano normal se Ihes chegava perto. Amala, a mais jo-
vem, morreu em breve. Com dificuldades as duas criangas
aprenderam a caminhar sobre os pés apenas e a pronunciar al-
gumas frases simples de linguagem humana.
Que dizer de tal fenómeno?
Zingg rejeitou peremptóriamente a hipótese segundo a qual
as criangas selvagens seriam idiotas; Kamala, na educagáo que
recebeu posteriormente, compreendia sem demora o que déla
se desejava, e deu provas de urna inteligencia prática ou técnica

— 62 —
CONSCIfiNCIA, MERO PRODUTO DO AMBIENTE?

assaz aguda. Embora o semblante das meninas fósse desti


tuido das expressóes ou dos sinais habituáis da mímica humana,
Kamala derramou uma lágrima quando morreu Amala, sua
companheira. Tais manifestagóes, embora sobrias, dáo a ver
que as mencionadas criangas possuiam em germen as faculda-
des características do ser humano (eram auténticas criaturas
humanas); essas facuidades, porém, nunca haviam saído do
seu estado latente ou virtual, por falta de educagáo; tendo vi
vido num ambiente de feras, as quais falta totalmente a cons
ciéncia moral (ou seja, a apreciagáo do bem e do mal moral,
assim como de um Legislador Supremo), as duas meninas nunca
tiveram ocasiáo de despertar e exercer a sua consciéncia moral;
esta, porém, existia nelas e transpareceu quando colocadas em
ambiente própriamente humano. Désse fenómeno, portante,
concluir-se-á o seguinte: assim como nao é normal ao homem
engatinhar, assim também nao lhe é normal carecer de vida
moral; contudo, assim como por carencia de educagáo ou por
defeito do ambiente ele pode viver á semelhanga de uma fera
(sem deixar de ter verdadeira natureza humana), assim tam
bém pode viver sem mostrar consciéncia moral (embora a pos-
sua sempre latente). Tais casos, porém, sao anómalos (como os
dos individuos tarados), e nao podem servir de padráo para se
julgar o auténtico psiquismo humano.
Para corroborar a afirmagáo de que a consciéncia moral
nao é mero artificio incutido ao homem pelo ambiente, deve-se
notar o fenómeno inverso ao das criangas selvagens : o prog~esso
moral da humanidade se deve, em grande parte, a individuos
que experimentaram em seu íntimo o desejo imperioso de reagir
contra os costumes da sociedade que os cercava e tendía ao
conservativismo e a degenerescencia. A vida moral assim mostra
ser nao o efeito de pressáo sobre o homem, mas uma exigencia
do ser humano como tal, exigencia que se manifesta periódica
mente nos surtos de individuos e grupos que procuram ultrapas-
sar moralmente a si mesmos.
Convém notar outrossim que a consciéncia moral nao é, em
última análise, senáo u'a manifestagáo do sentimento religioso;
sim, pela consciéncia o homem apreende a existencia de uma
lei e de um Legislador (Deus) aos quais ele está sujeito inde-
pendentemente da sua vontade (é absurdo falar de u'a Mo
ral leiga; a Moral só se pode basear em Deus). Ora o senti
mento religioso, longe de ser um artificio de educagáo, é, antes,
um característico da natureza humana; como o comprovam as
mais recentes pesquisas etnológicas entre os indios da Térra do
Fogo, os pigmeus, os esquimos, etc., nao há povo que nao o

— 63 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 8

possua, ao passo que nenhum animal irracional manifesta (nem


mesmo em esbógo) o mínimo sentimento religioso. Isto é tanto
mais significativo quanto se sabe que certas formas inferiores
de religiosidade, como a superstigáo, a magia, muito conviriam
ao animal desejoso de conjurar a sorte e conciliar-se as boas
gracas désse «semi-deus» que é o homem. Vercors, no seu livro
recente «Les animaux dénaturés», ao mesmo tempo que faz
afirmagóes tendenciosas, insinúa ser o fetichismo (infelizmente,
forma de religiáo aberrante) o criterio mais nítido que diferen
cia a natureza do homem da do irracional.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

DELICADA (Ribeirao Preto) :

8) «Porque a riqueza do Vaticano? Se o Papa é o repre


sentante de Cristo na térra, porque nao O segué cm sua pobreza,
humildade e simplicidade ?»
A respeito da «riqueza do Vaticano» propagam-se ditos
notoriamente exagerados. Procuremos perceber qual o seu fun
damento e qual a razáo de ser do poder temporal do Papa, re
presentante de Jesús Cristo sobre a térra.
Quem considera a historia, verifica que a soberanía terri
torial dos Papas nao se deve a urna pretensa ambigáo dos Pontí
fices, nem é o resultado de plano premeditado, mas constitui a
afirmagáo espontánea da fé do povo cristio.
1. A origcm da ascendencia temporal dos Papas se acha
nos primordios da historia da Igreja.
Em 330 o Imperador Constantino transferiu a capital do
Imperio Romano para Bizáncio no Oriente, o que representa
um verdadeiro desvio no curso da historia : Roma .no Ocidente
ficou entregue a "administragáo de um conselho municipal, que
tinha o nome de Sonado, e de funcionarios cncarregados de
julgar as causas judiciárias e cobrar os impostos. Bizáncio
mais e mais se esquecia de Roma, descuidando-se do seu rea-
bastecimento e da conservagáo de seus monumentos; as incur-
sóes dos bárbaros na península itálica tornavam as condigóes
de vida da populagáo cada vez mais precarias e dolorosas. Eis,
porém, que, em meio 'á anarquía, urna figura ia ganhando es
pontánea veneragáo : a do bispo de Roma, considerado pela
populagáo crista como o pai comum, no qual todos depositavam
canfianga. Correspondendo a éste afeto filial, os Pontifices
Romanos foram-se tornando os tutores do bem público nao
sómente no plano espiritual, mas também no temporal e social :

— 64 —
A «RIQUEZA» DO VATICANO

em 452, por exemplo, o Papa Sao Leáo Magno dirigiu-se ao en


contró de Átila e do exército huno, que se aprestavam para de
vastar Roma e a Italia meridional, conseguindo deté-los em
Mantua.

Nos séc. VI-VII acontecía nao raro que principes e nobres,


ao entrar no mosteiro ou ao morrer, doavam seus bens ao Papa,
em testemunho de piedade filial; foi-se assim formando o cha
mado «Patrimonio de Sao Pedro» na península itálica e ñas
ilhas adjacentes. Ésses latifundios, de extensáo cada vez maior,
permitiam ao Pontificc Romano uma posicáo de certa indepen
dencia frente ao Imperador bizantino e colocavam sob a sua
jurisdiejio, religiosa e civil, grande número de cidadáos, que
trabalhavam nos territorios papáis ou déstes se beneficiavam.
Enquanto o Papa se tornava cada vez mais o amparo das po-
pulagdes infelizes do Ocidente, os Imperadores bizantinos e
seus exarcas (representantes estabelecidos em Ravena) se mos-
travam impotentes ou indiferentes diante das calamidades que
as afetavam.

No séc. VIII os acontecimentos se precipitaram.

O Papado se viu premido entre duas potencias hostis : no


Oriente, os bizantinos favoreciam as heresias (a respeito de
Cristo e do culto das imagens), os Imperadores subtraiam tér
ras á jurisdigáo eclesiástica dos Papas; no norte da Italia, os
lombardos, pagaos ou arianos (heréticos), ameacavam constan
temente saquear Roma e os territorios meridionais, constituin-
do um perigo nao sómente civil, mas também religioso. Nessas
circunstancias, os Pontífices Romanos se lembraram de recor
rer ao auxilio de um dos novos povos do cenário europeu : os
francos, que, desde o batismo de seu reí Clóvis em 496, cons-
tituiam uma nacáo crista de crescente valor cultural; em 732,
seu mordomo, Carlos Martelo, tinha conjurado o perigo mu-
culmano vencendo os árabes cm Poiüers. Os francos conser-
vavam fidelidade á reta fé e possuiam energías novas, enquanto
Bizáncio já significava um mundo velho, vítima tanto das su
tilezas de seu genio («bizantinismo» na arte, na filosofía, na
teología ) como dos exércitos estrangeiros (principalmente
dos persas); o verdadeiro esteio da cristandade já nao estava
no Oriente (onde as sutis discussoes teológicas debilitavam a
fé) mas no Ocidente, em particular no reino dos francos onde
a fé era empreendedora. Porque entáo nao apelariam os Papas
para estes filhos da Santa Igreja, a fim de impor uma ordem
de coisas crista aos povos cristáos?

— 65 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 8

Foi o que Estéváo II resolveu fazer, dirigindo ao mordomo


franco um pedido de auxilio diante das ameagas dos lombar
dos. Pepino o Breve atendeu-o em 756, movido por amor á
fé e aos interésses da Igreja : em duas expedicóes venceu os
lombardos e confirmou o Papa na posse do Patrimonio de Sao
Pedro. Estava assim fundado, por magnificencia da piedade
crista (dos nobres da Italia e dos francos), o Estado Pontificio
independente de Bizáncio. Em compensagáo, Pepino foi sagra
do rei dos francos pelo Papa Estéváo II, e seu filho Carlos Magno
recebeu do Pontífice Leáo III, em 800, a coroa de Imperador
do Imperio Romano, restaurado no Ocidente corn o título de
Imperio sacro ou cristiío.
Ésses fatos tém sido calorosamente comentados pelos his
toriadores. Pergunta-se se nao houve nisso tudo usurpagáo de
direitos, jógo de interésses políticos dos Papas e dos francos.
Após urna reflexáo serena, responder-se-á que nao. Os
acontecimentos mencionados nao foram senáo a «oficializagáo»
de urna situagáo que de fato já existia : o Papa já exercia as
fungóes de soberano no Patrimonio de Sao Pedro, sem possuir
o título respectivo; os mordomos francos, do seu lado, já go-
vernavam o reino (sob a dinastía dos reís merovioigios ditos
«fainéants», indolentes), embora nao trouxcsscm as insignias
de monarcas; Pepino o Breve e Estéváo II, Carlos Magno e
Leáo III só fizeram tornar a situacáo definida e patente aos
olhos do mundo. A restauragáo do Imperio Romano no Oci
dente nao pode ser tida como violencia cometida contra Bizán
cio, nem foi um gesto surpreendente e brusco, mas o remate
orgánico de um processo histórico iniciado em 330 e lentamente
amadurecido no decorrer de mais de quatrocentos anos (até 756,
ou melhor, até 800).
2. O Estado Pontificio, fundado em 756, perdurou inin-
terruptamente até 1870, quando cedeu ao movimento de uni-
ficagáo da península itálica. Registraram-se, no decorrer dés-
ses muitos séculos, obras grandiosas, que a soberanía temporal
dos Papas possibilitou; mas verificaram-se outrossim certos
abusos, gestos de prepotencia política e de luxo mundano, prin
cipalmente no período da Renascenga. A Santa Igreja, guiada
pelo Espirito Santo, é a primeira a reconhecer e condenar tais
desvíos; ela nao se identifica irrestritamente com nenhum de
seus membros, mas, na qualidade de Esposa de Cristo, trans-
cende a todos, até mesmo aos mais altamente colocados (pois
cada um traz até certo ponto o lastro do pecado); também .nao
se surpreende ao verificar os abusos de seus filhos; estáo bem
na linha da parábola evangélica do joio e do trigo...

— 66 —
A «RIQUEZAS DO VATICANO

Etn 1870, tendo caído o poder temporal dos Papas, foram


amplamente debatidas as vantagens e os inconvenientes da
conservacáo do Estado Pontificio (tratava-se da «Questáo Ro
mana»)- Apesar de toda a pressáo adversaria, Pió IX, Leáo
XIH, Sao Pió X, Bento XV e Pió XI julgaram nao poder abrir
máo dos seus antigos direitos; conscientemente, pois, tomaram
essa posigáo. E qual o motivo que levava os Pontífices a proce
der désse modo?
Pió XI o explicou com a máxima clareza por ocasiáo do
tratado do Latráo ou da restauragáo do Estado Pontificio, aos
11 de fevereiro de 1929 :
«Podemos dizer que nao há urna linha, urna exprcssáo do tra
tado (do Latráo) que nao tenham sido, ao menos durante uns trinta
meses, objeto particular de nossos estudos, de nossas meditag5es e,
mais aínda, de nossas oracees, oracóes que pedimos outrossim a grande
número de almas santas e mais amadas por Deus.
Quanto a Nos, sabíamos de antemáo que nao conseguiríamos
contentar a todos, coisa que geralmente nem o próprio Deus con-
segué...
... Alguns talvez achem exiguo demais o territorio temporal.
Podemos responder, sem entrar em pormenores e precisóes pouco
oportunas, que é realmente pouco, muito pouco; foi deliberadamente
que pedimos o menos possivcl nessa materia, depois de ter refletido,
meditado o orado bastante. E isso, por varios motivos, que; nos parc-
cem válidos e serios.
Antes do mais, quisemos mostrar que somos sempre o Pai que
trata com seus íilhos; cm outros termos: quisemos manifestar nossa
intencSo de nao tornar as coisas mais complicadas e, sim, mais sim
ples e mais facéis.
Além disto, queríamos acalmar e dissipar toda especie de inquieta-
gao; queríamos tornar totalmente injusta, absolutamente infundada,
qualquor roeriminnefio levantada ou a sor levantada em nomo de...
iríamos dizer: urna supersticfto de integridade territorial do país
(Italia).
Em tercelro lugar, quisemos demonstrar de modo peremptorio que
especie nenhiuna de ambiguo terrestre Inspira o Vigário de Jesús Cristo,
mas únicamente a consciéncia de que n&o é possível nao pedir, pois
urna cert» soberanía territorial é a condicáo umversalmente reconhecida
como indispensável a todo auténtico poder de jurisdicao.
Por conseguinte, um mínimo do territorio que baste para o exer-
cicio da jurisdigáo, o territorio sem o qual esta nao poderia subsis
tir... Parece-nos, em suma, ver as coisas tais como elas se realizavam
na pessoa de Sao Francisco : éste tinha apenas o corpo estritamente
necessário para poder deter a alma unida a si. O mesmo se deu com
outros santos: seu corpo estava reduzido ao estrito necessário
para servir á alma, para continuar a vida humana e, com a vida,
sua atividade benfazeja. Tomar-se-á claro a todos, esperamo-lo, que o
Sumo Pontífice nao possui como territorio material senao o que lhe
é indispensável para o exercício de um poder espiritual confiado a
homens em proveito de homens. Nao hesitamos em dizer que Nos
comprazemos neste estado de coisas; comprazemo-Nos por ver o
dominio material reduzido a limites táo restritos que... os homens

— 67 —
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS.) 2/195S, qu. 8

o devem considerar como que espiritualizado pela missáo espiritual


¡mensa, sublime e realmente divina que ele é destinado a sustentar e
favorecer» (trecho da alocucao publicada pelo «Osservatore Romano»
de 13 de íevereiro de 1929).

3. As palavras ácima definem bem a mente da Igreja a


respeito do poder temporal, de que nao quis abrir máo durante
os sessenta anos em que déle estéve despojada. Em última
análise, vé-se que o Papa considera a sua soberanía territorial
como o corpo Ímprescindivel ao exercício das atividades de urna
alma ou como condiráo indispensávol para o cumplimento de
sua missáo religiosa; assim como a alma noslo mundo nao age
• normalmente sem corpo, assim a tárela espiritual da Igreja
seria impedida, caso lhe faltasse tal suporte temporal.
A comparacáo ilustra fielmente a verdade. Tenha-se em
vista que a Igreja, por definicáo, exerce autoridade nao ape
nas sobre os corpos e o comportamento exterior dos homens,
mas também sobre o setor mais íntimo e importante dos indi
viduos : sobre as almas; e exerce-a independentemente de
fronteiras nacionais, abrangendo centenas de milhóes de fiéis
do mundo inteiro : onde quer que esteja comprometido o espirito
do homem, mesmo nos planos aparentemente mais indiferentes
á religiáo, como o esporte, o cinema, a medicina, o comercio,
a Igreja tem que estar ai presente, a fim de orientar a conduta
das almas que assim entram em contato com o mundo material.
T.il autorklado <'• roa I monto colossal. Em conseqüéncia, os
filhos da Igreja e os homens que eompreendem o que essa au
toridade significa, nao podem deixar de desejar que tanto
poder nao sofra influencia de alguma fórca estranha, nao se
torne jeguéte ñas máos de soberanos políticos, mais ou menos
arbitrarios. Por isto, cedo ou tarde havia de aflorar á conscién-
cia dos cristáos a idéia de que o govérno e o Chefe Supremo da
Igreja devem ser independentes de qualquer soberano político
nacional, devem enfim ser táo livres quanto qualquer govérno
déste mundo. Em caso contrario, estaría frustrada a sua
missáo.
Esta última conclusáo, a historia se encarregou de a com-
provar. Com efeito, nao faltaram no decurso dos séculos tenta
tivas das autoridades civis que visavam submeter o soberano
Pontífice á jurisdigáo do monarca de tal ou tal país (que ótimo
jógo nao seria utilizar a autoridade moral dos Papas em favor
de interésses nacionais!). Quando o conseguiram, a tarefa reli
giosa da Igreja se viu enormemente prejudicada. Foi o que se
deu, por exemplo, durante o chamado «Exilio de Avinháo» : de
1309 e 1376, os monarcas franceses obtiveram que os Papas
residissem em Avinháo (Franca), onde, carecendo de soberanía

— 68 —
A «RIQUEZA» DO VATICANO

temporal, ficaram sujeitos á influencia do govérno civil. Nesse


período, os Pontífices foram perdendo parte da sua autoridade
perante a opiniáo pública internacional; os cristáos de fé (o
rei Carlos IV da Alemanha, o poeta Petrarca, Sta. Brígida,
nobre viúva sueca, Sta. Catarina de Sena) se alarmavam, per-
cebendo que, se a situacáo se prolongasse por muito tempo, o
Papado deixaria de ter o prestigio sobrenatural e católico (uni
versal) que deve ter. Basta recordar que o Pontífice Joáo XXII
(1316-1334) entrou em confuto com o rei Luís IV da Baviera,
animado de pretensóes cesaropapistas; excomungado pelo Papa,
o monarca responden que Joño XXII servia aos interésses dos
Valois de Franca; por isto nao hcsilou cm criar um antipapa
(Nicolau V), alegando que a Franga tinha «seu» Papa.
Tais idéias e fatos evidenciam quáo necessária á missáo
religiosa da Igreja é a soberanía política (por muito limitada
que seja) de que os Pontífices tém tradicionalmente usufruido
e que ainda recentemente reivindicaram (diga-se mesmo sem te
mor de exagero : o interésse comum dos fiéis jamáis permitiría
abrissem máo de tal direito).

4. Mas que dizer do cerimonial de que o Papa se cerca?

Note-se logo que o fato de ser o Pontífice soberano de um


pequeño territorio acarreta certo aparato em torno de sua pes-
soa. Tal cerimonial, porém, é concebido como homenagem de
ferida nao a pessoa do Pontífice como tal, mas a autoridade
que a pessoa representa. Aos olhos da fé, nao ha dúvida, o
Chefe visível da Igreja significa algo de muito grande (é o
Vigário de Jesús Cristo); quem o compreende, nao pode deixar
de querer exprimir essa consciéncia por gestos de aprégo. Mui-
tas das demonstracóes de reverencia em uso na corte pontificia
devem ter surgido do espontáneo afeto dos cristáos; os cató
licos as entendem como profissáo de fé no Cristo e na Igreja.
Por éste motivo mesmo, pode-se dizer que os Papas, nem a título
de humildade, tém o direito de se lhes furtar de todo. O próprio
Jesús, que habitualmente nao tinha onde repousar a caoega
(cf. Le 9,58), nao recusou as homenagens dos que O aclamavam
quando entrou em Jerusalém, poucos dias antes de morrer:
permitiu que tecessem de vestes e ramos a via pela qual pas-
sava, montado em um jumentinho; permitiu que, com cantos nos
labios, os hebreus O aclamassem Rei e Filho de Davi, profes-
sando seu entusiasmo pelo Messias (cf. Mt 21,1-11).
O cerimonial de que foi alvo Jesús, como o cerimonial pon
tificio, nao impede simplicidade interior e desapego de espi
rito. Se houve Papas que deram importancia pessoal e excessiva

— 69 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 9

a ésse aparato, constituem casos contingentes, que nao derro-


gam á legitimidade do principio geral.

5. Quanto 'ás propaladas «riquezas» do Vaticano, é pre


ciso dizer que os rumores a seu respeito ultrapassam de muito
a realidade.
A Cidade do Vaticano é, do ponto de vista territorial, a
mínima do mundo. Quando após 1870 se discutía a «Questáo
Romana», diziam muitos que, em caso de restauragáo da sobe
ranía temporal, um Estado do tamanho da República de Sao
Marinho (60,57 km2) seria suficiente para os Fontífices; ora o
Estado Pontificio ressurgiu com 0,44 km- apenas — o que no
século passado parecía incrível! Kssc Estado constituí a sim
ples carcassa de urna alma e tem por exclusiva fungáo possi-
bilitar o exercício das atividades da respectiva alma ou da
Igreja.
As obras de arte que se encontram no Vaticano, sao, em
grande parte, a expressáo da fé de pintores e arquitetos cristáos,
que quiseram glorificar a Deus mediante o seu talento. Os
Papas — alguns com prodigalidade talvez excessiva — os in-
centivaram, porque a Igreja só pode favorecer as artes que
contribuam para a exaltagáo do Criador (veja-se a resposta
n° 9 déste fascículo).
Os objetos contidos nos Museus do Vaticano foram, em
grande parte, doados aos Pontífices por cristáos sinceros (reis,
cruzados, viajantos, exploradores, etc.), em testemunho de
fé. Pertencem ao patrimonio do genero humano; os Papas nao
véem motivo para nao os conservar para o bem da cultura uni
versal. O famoso telefone de ouro do Vaticano (se é que ainda
existe) foi doado por urna firma comercial.. .
Nao há razáo, pois, para que o mundo se detenha cobigo-
samente sobre as apregoadas riquezas materiais do Vaticano.
Volte, antes, a sua atengáo para os imensos tesouros espiri-
tuais que daquele recanto territorial emanam para o género
humano. Queiram-no ou nao os homens, ó ainda do Vaticano
que se faz ouvir a palavra da Verdade e da Vida em meios ás
teorías mórbidas e a confusáo ideológica de nossos tempos.

9) «Porque é que a Igreja no seu culto usa de metáis pre


ciosos e vestes solenes? Será que ela precisa disto .para impres-
sionar o povo?»

O mobiliario e o vestiario do culto sagrado nao visam hon


rar os homens (nem os ministros do culto nem os fiéis) nem
impressionar a massa, mas dirigem-se primariamente a Deus.

— 70 —
A «RIQUEZA» DO CULTO CATÓLICO

O homem, rei da criagáo, foi incumbido pelo Criador de esta-


belecer ordem no mundo (cf. Gen 1,28); toca-lhe, portanto, o
dever de fazer que as criaturas inferiores, inanimadas, concor-
ram do seu modo para proclamar a grandeza de Deus; é esta
a sua fungáo quando utilizadas na arquitetura, na pintura das
igrejas ou na confeccáo de objetos atinentes á Liturgia sagrada.
Se os templos católicos fóssem apenas lugares de reuniáo
do povo fiel ou meras salas de oragáo e pregacáo, compreende-
-se que estivessem destituidos de todo ornamento. Na concepcáo
católica, porém, a igreja é, antes do mais, a Casa de Deus,
onde o Senhor se torna de modo especial presente na Santa
Eucaristía. K a consciéneia disto que sompro movcu o ainda
niovc os fi'Jis a consagraren! ao decoro da Casa de Deus o que
possuem de melhor, tanto do ponto de vista material como do
ponto de vista estético ou artístico.
De resto, o próprio Deus no Antigo Testamento se dignou
legislar minuciosa e carinhosamente sobre a arquitetura, o mo
biliario e os utensilios da liturgia israelita. Se nao fósse a
concepgáo de que a natureza inteira deve testemunhar a gran
deza do Criador, nao se entendería urna passagem como a se-
guinte :
«•Moisés disse a toda a assembléia dos filhos de Israel : "Eis o
quo prescreveu o Senhor : oferoeci dos vossos bons urna parle para
o Senhor. Que lodos os varóos generosos levem essa contribuicao
voluntaria ao Senhor : ouro, prata, bronze, púrpura violeta c escar
íalo, rarmozim. linho fino o polo (lo cabra, polos <lo oarnoiro Impidas
do vormolho, como fino o matloira <io aoáoia: óloo para ¡i lamparilla,
perfumos para o crisma e incensó fino aromático, podras do cornalina
c pedrarias para incrustar no eíode e no peitoral. Todos os mais habéis
artesáos dentre vos venham executar tudo que Javé prescreveu : a
Morada, sua tenda e sua cobertura, suas argolas e seus quadros,
suas travessas, suas colunas, seus pedestais,... as vestes de aparato
para oficiar no santuario, as vestes sagradas destinadas ao sacerdote
Aaráo e as que seus filhos revestiráo no exercicio do sacerdocio»
(Éx 35, 4-11.19).

Veja-sc ainda o que se segué a esta passagem, om Kx 36-40.


Muito mais rico de pedras e metáis preciosos era o Templo cons
truido em Jerusalém por Salomáo, sob a mspiracáo do mesmo
Senhor; cf. 3 Rs 5,11-8,66.

Tenha-se em vista outrossim Éx 31, 1-5 :

«O Senhor falou a Moisés, dizendo : 'Eis quo chame! pelo nomo


a Beselel... Enchi-o do Espirito de Deus, de sabedoria. de inteligencia
e de ciencia para toda qualidade de obras, para inventar o que se pode
íazer com ouro, prata, cobre, mármore, para talhar madeira e executar
toda especie de obras'»
i».

— 71 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 9

No Novo Testamento, lé-se que Cristo nao recusou a libra


de perfume muito precioso com que O ungiu Maria, irmá de
Lázaro e Marta. A Judas, que se escandalizava pelo aconteci-
mento, lembrando que o ungüento podia ter sido vendido em
beneficio dos pobres, o Senhor respondeu que a mulher fizera
ótima obra, pois honrara a sua Divina Pessoa enquanto isto lhe
era facultado (cf. Jo 12,1-8; Mt 26,6-13). De resto, o Evange
lista nota que Judas, aparentemente táo zeloso dos pobres e
da caridade, era, na verdade, movido pela avareza e a cupidez,
quando protestava contra o «desperdicio» de perfume (cf. Jo
12,6). A historia, por sua voz, atesta quo níio poucos daqueles
que despojaram os templos e o culto sagrados em nomo da fi
lantropía, só o fizeram para servir a seus interésses pessoais;
através dos sáculos foram muitas vézes os grandes, e nao os
pequeninos, que se enriqueceram com os bens seqüestrados á
Igreja. Ora nao merece atencáo o fato de que o primeiro a
protestar contra o «esbanjamento de valores preciosos» no culto
do Senhor foi um avarento e traidor?
Nao seria lícito, porém, ao cristáo esquecer os pobres sob o
pretexto de atender <á dignidade da sagrada Liturgia. O erario
eclesiástico é, na verdade, distribuido de modo a servir a Deus
tanto no culto como na pessoa dos indigentes; a Igreja, ao lado
de seus templos, tem suas obras de assisténcia social, assim
como seus Religiosos e Religiosas que se dedicam ao servigo
dos doeni.os, órlaos, andaos, ote. Em lempos de calamidades
públicas, os bispos nao tém hesitado em vender utensilios do
culto a fim de aliviar os males da sociedade.
Tal venda, porém, só é indicada em casos extraordinarios,
pois ñas circunstancias habituáis da vida pública o despoja-
mento das igrejas nao seria compensado por real alivio da mi
seria comum : se se fundisse o metal precioso e se vendesse a
pedraria dos utensilios de culto, para distribuir dinheiro aos
pobres, nao há dúvida de que exigua seria a porcentagem dos
beneficiados; os milhóes de almas de um povo quase nao ex-
perimentariam beneficio material, mas por certo sentiriam a
imensa lacuna espiritual acarretada por um culto destituido
de suas belas expressóes sensíveis. Note-se, alias, que o que
dá valor aos utensilios sagrados muitas vézes nao é a quanti-
dade de material precioso que entra em sua composicao, mas,
sim, a finura estética e o gósto de suas linhas.

Talvez se diga por fim : Jesús apregoou o culto «em espi


rito e verdade» (cf. Jo 4, 23), parecendo com isto excluir todo
o aparato sensível da Liturgia.

— 72 —
ESPÓRTULAS OU COMERCIO?

A esta observacáo responder-se-á que Jesús com aquelas


palavras entende suscitar nos seus fiéis um culto vivido e ce
lebrado primariamente no intimo da alma de cada um; sendo
o homem composto de espirito e materia, é no seu espirito, na
sua parte mais nobre, que ele tem, antes do mais, de glorifi
car a Deus (nao necessáriamente em Jerusalém, nem no monte
Garizim, como pensavam respectivamente os judeus e os sa-
maritanos mencionados no contexto de Jo 4); se nao provém da
inteligencia e do amor da alma sinceramente unida ao seu Se-
nhor, vá é qualquer demanstracáo externa de culto. Urna vez,
poróm, que o cristáo no seu intimo reverencie a Deus, nao lhe
seria lícito furtar-se á exigencia de o manifestar por atos sen-
síveis; é a sua constituigáo natural, psico-somática, que lho
impóe, fazendo que ele seja naturalmente levado as realidades
invisíveis mediante as visíveis. Entende-se bem que, do seu
lado, Deus, tendo-nos constituido em alma e corpo, queira que
também esta sua criatura, o corpo humano, O glorifique na
medida do possível, ou seja, como expressáo de um espirito
cheio de fé e amor.

10) «Jesús disse : 'Recebestes gratuitamente; dai gratuita


mente' (Mt 10,8). Ora a praxe das espórtulas parece contradi-
zer a éste preceito do Mestre».

A atual praxe das espórtulas tem seus precedentes, que nao


poderiamos deixai1 de levar em conla.

1. A Religiáo, desde que se afirmou em suas formas


principáis na antigüidade, professou, como norma, que os fiéis
devem contribuir materialmente para a celebracáo do culto
sagrado; sabe-se, por exemplo, que no Egito, em virtude das
doagóes feitas pelos faraós e os ricos, os templos dos deuses
eram possuidores de urna terca parte dos bens do país; em
Roma C'cero (De natura deorum 13 fim) se referia a seme-
lhante costume de beneficiar o culto divino. Entre os romanos,
alias, estava em vigor o principio seguinte, enunciado pelo Di-
reito público : os servigos prestados pelas profissóes liberáis
(medicina, advocacia, magisterio, etc.) nao podiam ser objeto
de salario própriamente dito; mas quem os recebia era con
vidado a reconhecer o beneficio ou munus, remunerando o ben-
feitor (o médico, o advogado, o mestre, etc.); a remuneracáo era
feita pela entrega de um honos ou honorarium (testemunho da
honra devida ou de reverencia); éste a principio era espontá
neo, depois tornou-se obrigatório (dever de justiea). Ora o
culto religioso era pelos romanos aproximado das artes liberáis;

— 73 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 10

merece atengáo, por exemplo, o fato de que Ulpiano (t 228 d.


C.) enumerava as artes liberáis entre as coisas sagradas (res
religiosa*; cf. Dig. l.IV, tit. XIV, lex 1,4,5).
2. No povo de Israel, a Revelagáo sancionou a praxe vi
gente entre as nagóes orientáis; introduziu-se a lei do dízimo
obrigatório em favor do culto e dos indigentes (cf. Lev 27,30-33;
Núm 18,21-32; Dt 14,22-29); o costume estava em vigor ainda
nos tempos de Jesús (cf. Mt 23, 2s).
No Novo Testamento, Cristo corroborou o dever que in
cumbe nos Fiéis do susleniar o servieo religioso; lembrava, por
exemplo, que «o operario moroco o sou salario»; por isto os
pregadores do Evangelho poderiam entrar ñas casas dos fiéis
e comer o que Ibes fósse oferecido (cf. Le 10,7; Mt 10,10).
Sao Paulo repetiu o mesmo principio em 1 Cor 9,13. Nos Atos
dos Apostólos lé-se que os primeiros cristáos punham espontá
neamente os seus haveres á disposicáo dos irmáos, possuindo
tudo em comum (cf. At 4,32).
Estes precedentes da religiáo natural e da Revelagáo so
brenatural mostram suficientemente que o costume de se sus
tentar o servieo religioso mediante contribuigóes dos fiéis é
plenamente legítimo; dir-se-ia mesmo : obrigatório.
3. No Cristianismo variou através dos séculos o modo de
observar tal norma. Nos primeiros lempos as ofertas geral-
monlo nao oram laxadas ncm impostas por loi positiva da aulo-
ridade eclesiástica; os documcnlos, porém, dos séc. III-1V, ao
mesmo tempo que as recomendavam, atestam a genorosidade
dos fiéis.
Aos poucos, os bispos e concilios, seguindo o exemplo da
legislacáo do Antigo Testamento, resolveram estabelecer como
quota obrigatória o dizimo ou a décima parte dos rendimentos
naturais dos fiéfs; no fim do séc. VI parece que tal lei já era
vigente na Gália; tornou-se geral em todos os países cristáos.
O poder civil, a partir do séc. VIII, na Franga corroborou a in-
jungáo eclesiástica, a qual ficou em vigor entre os franceses
até a Revolugáo de 1789; por esta ocasiáo foi oficialmente ab-ro-
gada na maioria das nagóes católicas, permanecendo contudo
em uso em algumas regióes.
No decorrer dos tempos, implantara-se entre os cristáos
outra praxe mediante a qual atendiam as necessidades do culto
e das respectivas paróquias : nos primeiros séculos, os fiéis, por
ocasiáo da Liturgia eucarística, levavam ao altar oferendas de
dons naturais (pao, vinho, leite, mel, azeite, frutas...), dos
quais urna parte de pao o vinho era destinada a ser consagrada
na S. Missa, devendo o resto reverter em beneficio do culto,

— 74 —
ESPÓRTULAS OU COMERCIO ?

do clero e dos irmáos pobres. Aconteceu, porém, que o rito de


celebragáo da S. Missa, por razóes diversas, foi sendo simplifi
cado; entre os meios de simplificado, estava certamente a subs-
tituigáó das dádivas naturais por dinheiro; sendo assim, já no
séc. V levava-se ao altar dinheiro (junto com outras dádivas
ou sem estas) por ocasiáo do ofertorio da Missa (é o que S.
Agostinho atesta na epist. 22,1,6). Esta praxo, porém, nao se
sustentou diante da necessidade de simplificar mais ainda a
Liturgia eucarística; em canseqüéncia, o dinheiro, expressáo
de urna entrega interior e do desejo do doador de participar
mais intimamente dos frutos da Missa, comecjou a ser entre
gue ao sacerdote fora da Missa o fora da ¡groja, como hoje
ainda se faz (sobre a possibilidade de se aplicarem os frutos
da Missa em favor de urna intengáo especial, veja-se «P.R.»
3/1958, qu. 4).
Já S. Beda, por volta de 679, narra que os fiéis, fora da Missa,
davam aos sacerdotes dinheiro para que celebrassem a S. Missa por
alguma intencao dos doadores (Historia Anglorum IV 22K No séc. XI,
o costume já estava muito propagado, pois até as criancas o pra-
ticavam; Sao Pedro Damiáo, por exemplo, quando crianca, encon-
trou u'a moeda que ele se apressou por levar a um sacerdote a fim
de que oferecesse a S. Missa pelo repouso da alma de sou faloeido pai
(Vita, ed. Migne lat. 144,117).

A Igreja no séc. XVI reconheceu definitivamente a legiti-


midade dessa. praxe que chamamos a «praxe das esportillas»
(leita apenas a ressalvn de so so aceitar urna esmola por Missa),
c passou a fixar o valor das espórtulas de Missa, assim como as
quotas correspondentes a outros atos do culto (batizados, casa-
mentos, cnterros...). Compreende-se esta atitude da Igreja : o
culto e as obras paroquiais exigem despesas, as quais, sem essas
contribuigóes dos fiéis, nao poderiam ser devidamente cobertas.
Depois que os dízimos caíram em desuso, sao as espórtulas da
das por ocasiáo do servigo religioso que constituem a fonte mais
comum de sustento do culto, dos sacerdotes e dos empreendi-
mentos de apostolado.
Note-se bem que tais taxas nao sao, em absoluto, conside
radas como a paga dos dons sobrenaturais — o que seria simo-
nia, contraria ao texto de Mt 10,8. Pió VI em 1794 rejeitou
peremptóriamente esta interpretagáo propalada pelo sínodo de
Pistoia em 1786 (veja-se também Sao Tomaz, Suma Teol. IL/U
100, 2 ad 2). As espórtulas nao sao, em absoluto, condigáo para
que os sacramentos sejam administrados; a Igreja nao os dene-
ga a quem nao possa contribuir. Positivamente, a praxe das
espórtulas nao é senáo a modalidade com que hoje em dia se
pratica um costume tradicional no povo de Deus, costume

— 75 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1953, qu. 10

sancionado pela autoridade da Revelagáo. Esta modalidade se


originou orgánicamente entre os fiéis, significando a prontidáo
dos cristáos a unir o seu sacrificio com o de Cristo ou, aínda,
traduzindo um desejo de participar mais intimamente do sa
crificio do altar e, conseqüentemente, colhér do mesmo mais
abundantes gragas (toda S. Missa produz frutos aplicáveis a
tal ou tal intengáo particular; sao estes frutos que os fiéis, por
sua devogáo especial expressa na esmola, procuram granjear).
Distinga-se, pois, de qualquer tipo de comercio a praxe das es-
pórtulas; esta é urna instituicáo estritamente religiosa, que há
de sor observada como verdadoiro ato de culio (hoje em dia des
membrado do rito de celebracáo da Missa); os nomos honos,
honorarium (em francés honoraire) dizem tratar-se de urna
expressáo de reverencia e religiosidade sadias, nao de urna
compra. Sao as espórtulas que permitem aos sacerdotes con
sagrar toda a sua vida ao servigo do próximo, tomando-se
benfeitores por profissáo, nao por ocasiáo ou por acídente
apenas.

4. É inegável, porém, que o sistema de emolumentos hoje


vigente se presta a mal-entendidos, ocasionando seus dissabo
res. Em vista disto, delineia-se entro bispos a sacerdotes a ten
dencia a abolir as taxas anexas ao culto e voltar ao antigo cos-
tume dos dízimos ou simplesmente confiar na caridade generosa
e espontánea dos fiéis. Experiencias tém sido feitas em tal sen
tido com resultados muito benéficos (naja vista principalmente
a paróquia de St. Alban, perlo de Liáo, Franga). Assaz signi
ficativas a éste respeito sao as conclusóes do II Congresso Na
cional de Vocagóes Sacerdotais, realizado em Sao Paulo de 4 a
9 de novembro de 1956 :
«a) Seria desejável a abolicáo das taxas c emolumentos por oca
siáo dos atos litúrgicos.

Para tanto caberiam as medidas ¡mediatas de

b) constituicáo de um patrimonio paroquial, do qual retirassem


os sacerdotes os meios de sustento, estabelecendo-se um ordenado íixo
para párocos e cooperadores,

c) educar o povo no sentido de contribuir livremente para as


despesas da paróquia,

d) formacüo de um patrimonio diocesano, destinado a amparar


as paróquias desprovidas de meios suficientes» (transcrito da «Revista
Eclesiástica Brasileira» XVII [1957] 111).

Assim se vé que as modalidades das espórtulas, que em si


sao plenamente justificadas, estáo talvez fadadas a desaparecer
num futuro próximo.

— 76 —
MOTIVOS DA REFORMA LUTERANA

SANTOS (Rio de Janeiro) e DEODATO (Sao Paulo) :

11) «Quais os motivos que levaram Lutero a querer refor


mar a Igreja? Quais eram as indulgencias contra as quais rea-
giu ?»

Para entender o gesto de Lutero (1483-1546), torna-se im-


prescindivel reconstituir tanto o cenário histórico em que viveu,
como o problema próprio que atormentou o dito «Reformador».

1. O cenário histórico

Os sóculos XIV c XV foram períodos de grandes prova-


cóes, de transformagóes sociais, assim como de declinio no setor
da cultura em geral.

a) Em política, manifestavam-se tendencias particularis


tas, nacionalistas (na Franca, com Filipe IV o Belo; na Alema-
nha, com Luís TV da Baviera; na Espanha, .na Inglaterra, ñas
cidades da península itálica), que contradiziam á unidade do
Sacro Imperio e acarretavam detrimento para os interésses co-
muns dos povos.

b) Na vida social, os camponeses e os cavaleiros, que ha-


viam sustentado os grandes feitos da historia medieval, eram
ridicularizados por urna classe ascendente : a dos habitantes das
ciclados, os burgueses. Propalavnm-se novas teorías c reivindi-
cacóes sociais (por vézes, utn certo socialismo ou comunismo)
contrarias as instituigóes vigentes.

c) A Filosofía e a mentalidade dos homens também passa-


vam por crise. Parece que os doutos se haviam cansado de fa-
zer uso da razáo e seguir as normas da lógica ou do intelecto;
davam primado cada vez mais acentuado á vontade («volunta
rismo»), ensinando nao haver verdade nem bem absolutos; se
Deus o quisesse, os mais hediondos vicios, até mesmo o odio
ao Criador, poderiam ser atos meritorios. Ésse voluntarismo
acarretava conseqüéncias funestas :
relativismo, indiferentismo, frente á verdade;
excessiva estima das representagóes da fantasía, conse-
qüente ao descrédito em que caira o raciocinio;
cultivava-se a dialética vazia, a ginástica da mente para
provar as teses que menos prováveis parecessem (assim Gui-
lherme de Occam, t 1349, abusando dos termos e quase zom-
bando da lógica, quería demonstrar proposicóes como : «A ca-
bega de Cristo é o pé de Cristo»; «O ólho de Cristo é a máo de
Cristo»).

— 77 —
->PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 11

d) Mesmo os que estudavam as ciencias positivas, envol-


viam-nas em um sistema pouco racional, de sabedoria oculta.
Certo Agripa de Nettesheim (t 1535), seguindo tendencias an
teriores, fundou em París urna fraternidade secreta que, culti
vando a Alquimia, se propunha descobrir a pedra filosofal, a
qual operaría a transmutagáo dos metáis em ouro; Joáo Reuch-
lin (t 1552), bom conhecedor do hebraico e do grego, continuan
do a cabala, ensinava que cada letra do alfabeto hebraico en-
cerra um poder próprio de ar;áo...

o) Em t;il nmlm\nti\ o aulonlioo sonso religioso dos c.ris-


táos nao podía doixar do so rossonlir. Nao ha dúvida, oxlslia
fervor notávcl no sea XV. Contudo essa piedade era poueo
esclarecida, tendendo, por iste, a cair no sentimentalismo super
ficial, no subjetivismo. Eis, por exemplo, como pregava Geyler
von Kayserberg, famoso orador do séc. XV :

^Cristo é o nosso páode-ló, o qual consta da farinha de lentilhas


da Divindade, da velha íarinha de centeio do corpo e da farinha de
trigo da alma. Acompanha-0 o mol da misericordia».

Crencas mais ou menos supersticiosas se mesclavam a cer


tas afirmncóes religiosas do povo; assim se mulliplicavam as
historias de bruxas, ou seja, de mulheres que tinham pacto
ou comercio carnal com os demonios; dava-se voga á astrologia,
como se o curso da historia dependesse dos anjos que dirigem
os planetas no firmamento. Com ou sem propósito, os homens
falavam de monslros, cómelas e outros sinais exóticos!
Da parte dos homens da Igreja (alto e baixo clero), varios
sences eram ocasiáo de mau exemplo e descontentamente pú
blico : o chamado «exilio dos Papas em Avinháo», de 1309 a
1376, e o grande cisma do Ocidenle (1378-1417), durante o qual
dois e mesmo tres caberas visíveis (um Papa legitimo e dois an
tipapas) eram piopostos a cristandade, acarretaram notável
detrimento para a vida crista.
f) As calamidades (peste e fome) decorrentes das guerras
e das desordens sociais despertavam ñas massas um sentimento
de médo; muitos julgavam que o Anticristo e o fim do mundo
estavam próximos. Qucriam premunir-se conira os castigos,
multiplicando as peregrinagóes, o culto das reliquias, as devo-
góes aos sa.ntos, dos quais esperavam milagres, aparigoes, etc.
Certos grupos de penitentes, chamados «Flagelantes», percor-
riam a Europa, professando idéias religiosas fanáticas, revolu
cionarias. A autoridade da Igreja nao deixava de reprimir as
aberragóes, mas com exiguo resultado (notável, por exemplo,

— 78 —
MOTIVOS DA REFORMA LUTERANA

é a bula de Inocencio VIII «Summis desiderantes», de 5 de


dezembro de 1484).
Estes pbucos tragos já dáo a ver que a mentalidade do
séc. XV era assaz irrequieta; pairava no ar a expectativa de
urna novidade, a qual jorrava da consciéncia de que era preciso
reformar o estado de coisas vigente, reformar até mesmo certos
costumes da vida crista. A insatisfacáo geral fácilmente explo-
diria, bastando para isto urna centelhazinha, um brado forte que
soubesse interpretar e explorar o sentimento das massas.
Nao se poderia deixar de mencionar ainda o movimento
ronascentista ou humanista, que muito marcou a segunda me-
ladc do sóc. XV c o inicio do scc. XVI. A Renascenca já era de
certo modo urna resposta ao desejo comum de renovacáo, res-
posta, porém, que, junto com grandes méritos, teve o demérito
de muitas vézes acentuar o individualismo, o relativismo já vi
gentes; varios humanistas queriam até certo grau experimentar
e viver a mentalidade dos antigos pagaos; tentavam combinar
a ideología crista com os modos de falar e pensar dos clássicos
greco-romanos. Tais autores (dos quais o principal foi Erasmo
de Rotterdam, f 1536) contribuiam para diluir elegante e sorra-
teiramente o vigor da fé crista, assim como a integridade do
dogma.
2. O problema pessoal de Lutero

Foi dentro de tal quadro histórico que viveu Martinho


Lutero (1483-1546).
Educado em ambiente de familia assaz severo, Lutero em
1505 resolveu entrar para o convento dos Agostinianos de Er-
furt (Alemanha); dava éste passo, movido nao própriamente
pelo amor de Deus (ele o tinha, nao há dúvida) e o ideal da
vida claustral, mas principalmente pela impressáo de temor
que experimentara quinze dias antes, ao ser colhido por urna
tempestade em viagem : «Sant'Ana, exclamara entáo, vinde em
meu auxilio, e tornar-me-ei monge!».
No convenio, Lutero procurou ser fiel a sua fíegra, mas
ressentiu-se continuamente de angustia e tristeza; além de nao
ter genuína vocagáo, era, por seu temperamento melancólico,
levado a pensar obsessivamente no juízo de Deus e na predes-
tinacáo, o que lhe causava apreensóes, nao compensadas por
filial abandono á Providencia Divina : «Estás louco, dizia-lhe
o seu confessor, caracterizando o seu estado de alma; nao é
Deus que está irado contra ti, mas és tu que te achas encole
rizado contra Ele» (Tischreden t. II n. 122).
Aos poucos, Lutero foi concebendo a «solugáo» para o seu
caso; julgando-se impotente para vencer a natureza desregrada,

— 79 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, qu. 11

resolveu desistir do combate angustioso; a fim de se emanci


par da inquietude que o atormentava, propós-se a questáo :
quem sabe se a fé em Cristo por si só nao basta para a salvagáo
eterna, independentemente de quaisquer boas obras? Para afir
mar isto, Lutero teria que reformar toda a Teología crista; va
rias proposigóes dogmáticas seriam entendidas de novo modo ou
simplesmente rejeitadas. Nao hesitou, porérri. Veio a ensinar
que, desde que alguém tenha confiahga nos méritos do Salva
dor, estes lhe sao imputados, sem que a concupiscencia e o pe
cado sejam extirpados; a justificagáo ou santificagáo é mera
mente jurídica, ela nao reforma o íntimo do cristáo. Por con-
seguinte, embora o pecado permanega no individuo, este nao
se deve perturbar, pois a natureza humana foi irremediável-
mente viciada pela culpa de Adáo; que o erente confie aínda
mais fortemente em Jesús, e Éste o recobrirá, dando-lhe urna
filiagáo divina nominal, nao real nem ontológica (a graga é
mero título). Impulsivo como era, Lutero julgava que nenhum
homem possui liberdade de arbitrio para resistir as paixóes e
praticar o bem. — Estas sao as proposigóes centráis do lutera-
nismo, das quais outras decorrem lógicamente (a rejeigáo do
santo Sacrificio da Missa, do sacerdocio hierárquico, do purga
torio, das indulgencias, das obras de penitencia, etc.).
A explosáo do drama íntimo de Lutero se deu em 1517.
Naquela época, pregadores percorriam a Alemanha incitando
os fiéis a contribuir com esmolas indulgenciadas para a recons-
trugáo da basílica de Sao Pedro em Roma; o modo exagerado
como o faziam (tornou-se famoso neste particular Joáo Tetzel)
deu ocasiáo a que o frade agostiniano langasse o seu brado de
protesto; segundo ele, a vida crista devia ser reformada, e ele
a reformaría de acordó com a sua compreensáo pessoal, eman
cipado de qualquer escola ou tradigáo. A «solugáo luminosa»
que ele concebirá para o seu problema pessoal, ele a formulou
nos termos teológicos ácima enunciados e a propós ao mundo
como novo modo de entender o Cristianismo; Lutero assim pro-
jetou a sua individualidade, fazendo do seu «caso» pessoal um
«caso» comum, ao qual «em nome de Deus» ele quis dar a sua
solugáo subjetiva.
Nao é necessário descrever o andamento da revolugao lu
terana. O fato é que ela encontrou o terreno preparado, dado
o descontentamento religioso e social vigente na Europa.

Eis agora, em sintese, os fatóres que explicam d surto e o


progresso do luteranismo :
1) o subjetivismo, o individualismo, que se alastravam
nos diversos setores do pensamento e da atividade dos homens

— 80 ~ •
MOTIVOS DA REFORMA LUTERANA

desde o séc. XIV. «Eu e a minha Biblia, que julgo ser a Pa-
lavra de Deus», eis a posigáo que Lutero toma para reformar a
Religiáo. E qual o criterio para interpretar essa Palavra de
Deus? Nao é um magisterio extrínseco ao individuo, mas a
experiencia subjetiva, o sentimento (ou o sentimentalismo) do
crente.
Lutero se atribuía (com que direito objetivo?) u'a missáo
recebida do Deus para reformar a Igreja («Deus me revelou
esta doutrina», eis urna afirmacáo freqüente em seus escritos).
Ora, bem poderia dizer qualquer discípulo do Reformador: se
admito como válida a posicáo de Lutero, nao vejo porque nao
possa tambóm eu ser um Iluminado, que Deus chama a «re-
descobrir» o Evangelho. Foi isto o que de fato pensaram cen
tenas de «reformadores» subseqüentes a Lutero, os quais, to
mando a Biblia em máos, passaram a interpretá-la do seu modo,
fundando novas e novas seitas protestantes, fazendo as reformas
da reforma... Porque acreditariam mais em Lutero do que
no seu próprio sentimento de piedade? Donde se vé o dilema:
ou aceitar os ensinamentos da tradigáo que sempre ilumina-
ram a Biblia .no decorrer dos séculos, ou simplesmente abrir
máo de toda norma de fé, renunciar á própria Biblia.

2) A Filosofía decadente do séc. XV. O Nominalismo


tendía a negar conteúdo ontológico aos nomes; os títulos (jus-
tificagáo, graga) seriam meras fórmulas, que nada supóem no
sujoito. A demasiada estima atribuida á vontade (o volunta
rismo), em detrimento da lógica, dava a Lutero a impressáo de
estar diante de um Deus caprichoso, «voluntarista», que ele,
apesar de todo o seu esfórgo ascético, jamáis podia ter certeza
de haver contentado.

3) A mentalidade humanista, que, em alguns de seus ex-


poentes, era paganizante; diluía o significado de certas verdades
cristas.
4) Os costumes abusivos vigentes na sociedade, sem ex-
cegáo do clero; luxo, tendencias mundanas haviam penetrado
no espirito dos mais altos dignitários da Igreja. A piedade do
povo, em conseqüéncia, era superficial, necessitando de ser
reestruturada no dogma e na Sagrada Escritura. Entre outros
males, deve-se reconhecer a leviandade com que se tratavam as
indulgencias, dando a impressáo de mercantilismo religioso.
5) A isso tudo sobreveio a personalidade de Lutero. Tri
buno, escritor popular, que se deixara levar pela paixáo mais
do que pelo raciocinio objetivo e sobrio (gostava do bom vinho
e da boa mesa), Lutero apresentou-se ao povo alemáo como

— 81 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 2/1958, gu. 11

«o homem do momento»; soube explorar nao sómente os quei-


xumes religiosos contra a suprema autoridade da Igreja, mas
também urna inveterada animosidade política que distanciava
de Roma e da Italia a populagáo da Alemanha; fazia questáo
de se dizer o Enviado de Deus á nagáo (haja vista o seu livri-
nho intitulado «Á nobreza crista da nagáo alema»).

Em conclusáo, dever-se-á reconhecer que Lutero tinha urna


alma profundamente religiosa, capaz de intuigóes e gestos no-
táveis. Foi, porém, vitima da mentalidade de seu tempo, á qual
deu expressáo muito concreta no seu cisma religioso. Lutero
quis reformar a Igreja e a tradigáo, arvorando o próprio Eu
como arbitro posto ácima de qualquer outror criterio. Isto equi-
valia a negar o caráter transcendente da Religiáo e cair no an-
tropocentrismo ou no egocentrismo. Na verdade, nao era a
Igreja, em seu dogma e em sua estrutura essencial, que neces-
sitava de reforma, mas eram os homens (clérigos e leigos) que
faziam parte da Igreja; esta (como está dito na resposta 8 déste
fascículo) nao se identifica plenamente com nenhum de seus
membros, mas transcende a todos, porque, na qualidade de Es
posa de Cristo, é indefectível; mesmo quando os cristáos pe-
cam, a Igreja nao peca, mas é a primeira a denunciar as falhas
e também a lhes propor o remedio salutar. Por isto nunca se
poderá falar de necessidnde de reforma da Igreja, mas, sim,
de necessidade de reforma na I«reja. Oxalá o Ps.-Rcformador
tivesse compreendido isto!
Sendo assim, o prestigio que Lutero obteve no setor reli
gioso, foi decaíndo; no decorrer dos tempos apareceram «re
formadores da reforma luterana». A outro título, porém, Lu
tero é profundamente estimado pelos nossos contemporáneos :
quando nos anos de 1917/1919 se celebrou em Worms o quarto
centenario da Reforma, o que se exaltou nao foi tanto o seu
papel de mestre religioso, mas o de herói nacional, benemérito
peía sua monumental tradugáo alema da Biblia e principalmen
te pelo seu ardoroso patriotismo. Como religiáo, o luteranismo
é a expressáo de urna época e de sua mentalidade depauperada.
D. Estcvao Bettencourt O.S.B.

ERRATA

Fascículo 8 de 1957 (dezembro) :


á pág. 36, linha 37, leia-se «nao é ilícita», em vez de «.. .licita»
a pág. 37, linha 15, leia-se «qu. 9», em vez de «.. .97».

— 82 —
Pergunte e Responderemos
Caro amigo, nao ha quem so ponha a pensar o nao conceba
sem demora Importantes problemas (ocAflnal que faco neste
mundo? Qiial o sentido da vida presente? Que se lhe seguirá?»).
Nao sufoque ncm despreze essas questScs. Sem luz Bobre tais
assuntos ninguém so pode sentir plenamente tranquilo e feliz.

1'nrii o ujildar na procura lias hiiIiicArh qtlft lile IntereMNiim,


V. S. tcm a sua dlHpimlviin lima Caixa Postal e lim fascículo
mensal de 40 paginas publicado sob os cuidados de D. EstSvño
Bettcncourt O. S. B. rodera propor qucstScs filosóficas, moráis e
religiosas ao seguinte cntlcrcco:

«PERGUNTE D RESPONDEREMOS»

Caixa Postal 2660

Rio do Janeiro

A resposta será enviada gratuitamente a V. S. em fascículo


lmpresso. Queirn, pois, indicar enderOco e pseudónimo.

A colecüo dos fascículos «Fergunte o Responderemos» pode-


-no obter tumliém por assinatura (a sirle se Inlolou em mure»
de 1057). l'rcco da assinaturai anual: Cr$ 400,00. Número avulso :
CrS 40,00. Pedidos a Rúa Real Grandeza, 108, Botafoc» — Rio
d« .laniiiro <tcl. : 211-1822).

N. B.: — Tudo que se refere a REDACAO devo ser enviado a


D. Estflvao Bettcncourt O. S. B. (ou «I'ergunte e Responderemos»),
Caixa postal 2666, Rio de Janeiro. O que diz respeito a ADMI-
NISTRACAO soja dirigido a Rúa Real Grandeza, 108, Botafogo,
Itio de Janeiro.

DEPÓSITOS:

RIO DE JANEIRO :

Instituto Pío X <lo Río do Janeiro — R. Real Grandeza, 108 —


Botafogo;
Livraria alaimcn Christi» — Caixa Postal 2668;
I.lvrarla «Vozcs Ltila» — R. Senador Dantas, 118-A;
Llvraru» Mlsslon&rla — R. 7 de Setcmbro, G5-A.

SAO PAULO (Capital) :

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