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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questdes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Befíencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
A BRIL

1958

espondere

ANO I
ÍNDICE
Pftg.
I. DOGMÁTICA

1) "De que modo Nossa Senhora é nossa Corredentora ?" 131


2) "Qual o grau de certeza teológica da mediacáo universal
de Nossa Senhora e como conciliar tal mediacáo com
1 Tim 2,5 ?" 1S1
3) "Pelas palavras de Sao Paulo (1 Cor 7,7-0) parece que o
casamento só é permitido em último caso ('se nao se pude-
rem canter'). Tem-se a impresxao de que o Apostólo, além
de proclamar que a virgindade é superior ao matrimonio,
tlcxtwoHurlhn formalmente vsU* último. Porque. ?" 137
i) "Km t¡uc sv hii;i¡n ii Itiri'jn ¡writ tieoiimlhitr «:.• riíti'ii:: que.
n<io se casan no ruine ule '}" 1X0

II. SAGRADA ESCRITUKA

5) "Afbial de contas, convém oh nao ler e mandar ler a Sa


grada Escritura ? Certas páginas do Antigo Testamento nao
se poderiam tornar nocivas ?" H%
6) "Que significa o número da bésta do Apocalipse (13,18)?". US
7) "Como se pode dizer que os irmaos de Jesús eram primos
'do Senhor, alegando que em hebraico nao havia vocábulo
próprio para designar primos ? Em Le 1,36 lé-se que Elisa-
bete, prima de María, concebeu um filho" 140

III. MORAL

3) "Dada a inñdéncút de distocias (partos dificeis) ñas gesta-


cñr.a i!)irr:u;iiui:t di; ii'n. nicsm/i mttlluvr, tlrimis de qnanlns es
tará indinada a HiihiuHjcrliiiiiia (lit/ttfña mi ntrtumi erlirpn-
cSo da trompa) ?" 75»

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

0) "Os manuscritos recém-dcscobertos junto ao Mar Morto pa-


recem indicar que a figura do Divino Mensageiro existiu
entre os essénios milito antes do nascimento de Jesús. Os
principáis acontecimentos da vida de Cristo se terao desen
rolado, por conxeguinlr, antes do advento do Cristianismo" 151
10) "Os manuscritos do Mar Morto tronreram alguma luz sobro
a vida de Jcxux, dos dozc aos trinla anos ?" 151
11) "A figura do Papa Alexandre VI (1402-1503) nao depóe
contra a santidade da Igreja Católica e, por conseguinte,
contra a autenticidnde desta ?" 158
12) "Como se explica o caso de Galilcu ?" Ifí2
13) "Que dizer sobre o segrédo de Fátima a ser revelado emlOGO?
Tenho ouvido as mais desencontradas opinióes" 160
H) "Quisera informacóes sobre a famosa questSo Fátima... Há
urna parte da revelacáo a ser conkecida só em 1060. Segun
do soube, esta demora se deve a urna imposicáo, nao da Vir-
gem, mas do episcopado portugués. Porque ? E os apregoa-
dos tres dias de trevas ?" 169

CORRESPONDENCIA MIÚDA 17U

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

N1 4- Abril de 1958

I. DOGMÁTICA

TERCEIRO FRANCISCANO (Londrina) :

1) «De que modo Nossa Senhora é nossa Corrcdentora?»


CATECÚMENO (Itecifit) :

2) «Qual o grau de certeza teológica da mediacao uni


versal de Nossa Senhora e como conciliar tal mediacao com
1 Tim 2,5 ?»

Um só é o Mediador entre Deus e os homens, a saber,


Cristo. Tal é a doutrina de Sao Paulo (1 Tim 2,5) e da
Tradigáo crista, oportunamente inculcada pelos concilios de
Florenga em 1442 e Trento em 1546 (cf. Denzinger, Enchiri-
dion 711.790).
A unidade, porém, do Mediador nao excluí a colaboragáo
subordinada de María Santíssima na obra da Redengáo. Já do
simples fato de que, por Iivre vontade divina, a Virgem se
naja tornado Máe de Dous ou a criatura mediante a qual
Deus se encarnou, decorre seja ela de algum modo Medianeira;
havendo dado ao mundo á Fonte de todas as grasas, como nao
Ihe dará atualmente cada urna das gracas que recebe ?
Desde a definigáo da Divina Maternidade de María em
Éfeso .no ano de 431, esta proposigáo se foi tornando cada vez
mais explícita na Igreja e é hoje amplamente focalizada.
Eis como a explicam os teólogos contemporáneos :
Dislingam-se dois aspectos da Mediacáo de María :
1) a mediacáo na aquisicao dos méritos de nossa Re-
dengáo ou na Redengáo dita objetiva. Por esta sua fungáo,
María é chamada Corredentora;
2) a mediagáo na distribuicao atual dos méritos outrora
adquiridos ou na Redengáo subjetiva. Tendo tomado parte
na obtengáo da Vitoria, é lógico que María concorra para a
distribuigáo dos frutos da mesma. A éste título, a Virgem
é, própriamente dita, Dispensadora ou Medianeira de todas as
gracas.

— 131 —
cPERGUNTE E RESPONDEREMOS*. 4/1958. qu. 1

Analisemos separadamente cada um désses aspectos da


teologia mariana.

1. A Corredentora

Por éste titulo, entende-se dizer que María, junto com


seu Divino Filho, tomou parte na obtengáo do tesouro de gra-
cas que valeram a reconciliagáo do género humano com o
Pai Eterno.
E quais teráo sido as sabias intengóes de Deus que O
levaram a atribuir a Maria Santíssima táo solene fungáo no
son plano eterno ?
Duas sao as razóos, indicadas pela Escritura e a Tradigao,
' para ilustrar táo elevado designio :
1) o paralelismo vigente entre «o primeiro Adáo e a
primeira Eva», de um lado, e «o segundo Adáo e a segunda
Eva», do outro. Tal correspondencia já é mencionada ligeira-
mente por Sao Paulo, aos Romanos 5,14, e desde o séc. II foi
explanada pela Tradigao crista (S. Justino, S. Ireneu, Ter
tuliano ...).
Aprofundemos o paralelismo.
Conforme o plano de Deus (cf. Gen 2,20-23), a mulher
foi criada para ser a auxiliar semelhante ao homem, sua com-
panheira na luta cotidiana, principalmente na obra de trans
mitir a vida. Scm a mulher, o va rao nao consegue a digni-
dade de pai. Ora, se Deus assim quis proceder na constitui-
gáo da natureza humana no inicio dos tempos, parece que
deve ter procedido de maneira análoga na obra de reconsti-
tuicáo e consumagáo da criatura na plenitude dos tempos.
Na base desta verificagáo, os teólogos afirmam que o plano
divino de recriacáo do género humano obedeceu á mesma linha
que o da criagáo : o Filho de Deus se tomou o novo Pai, o
segundo Adño, do qual lodos os homens devem renascer,
nao na ordem física, mas no plano sobrenatural ; e, em vista
désse renascimento espiritual ou dessa obra de transmitir a
vida sobrenatural, o novo Adáo quis ter por auxiliar subal
terna a nova Eva : Maria. É Sao Bernardo (f 1153) quem o
lembra :
«Irmaos caríssimos, há um homem e u'a mulher que nos prejudi-
caram grandemente, mas, gracas a Deus, há também um homem e
u'a mulher que tudo restauraran!, e com notável superabundancia
de graca... Sem dúvida, Cristo por si só bastava-nos, pois... tudo
que possamos lazer no plano da salvacáo, d'Éle vem; todavía era bom
que o homem nao íicasse só. Havia profunda conveniencia em que
os dois sexos tomassem parte na nossa Redencáo, como haviam

— 132 —
MARÍA MEDIANEIRA

tomado parte em nossa queda» (Sermáo sobre as doze estrélas 1, ed.


Migne lat. 183, 429).

Éste texto faz ressoar a harmonia que caracteriza as obras


de Deus. O Todo-Poderoso age de maneira suave e forte
(cf. Sab 8,1): suave, porque respeita o humano e déle se serve ;
forte, porque revigora o elemento humano decaído que Deus
quer utilizar.

E como terá Maria cumprido o seu papel de nova Eva,


associada á obra da Redencáo ?

Cumpriu-o primeiramente quando pronunciou o seu Fíat


para que o Filho de Deus nela se encarnasse (cf. Le 1,38).
Da aquiescencia da Virgem pode-se dizer que Deus quis fazer
depender a realizagáo da Redencáo (cf. Sao Tomaz, Suma
Teológica III 30, le e ad 1). Destarte, dando a sua carne ao
Filho de Deus, a Virgem colaborou remotamente na obra de
resgate do género humano. Sua fungáo sagrada, porém, es-
tendeu-se mais além : o Filho de Deus nao se encarnou senáo
para oferecer a sua carne padecente ao Pai como hostia de
reparacáo pelo género humano ; conseqüentemen lo o Fíat de
Maria envolvia participacáo da Virgem Máe na oferla do Cal
vario ; ésse Fíat prolongou-se no consentimento que ela deu
a imolagáo do Filho, compartilhando generosamente com Ele
ao pó da Cruz suas penas e dores. E ésse «compartilhar» foi
fecundo ... Pode-se dizer que, depois de haver gerado o
Cristo Cabeca, Maria, padecendo ao pé da Cruz, sofreu as
dores do parto em que gerou o Cristo Místico ou o novo
género humano; foi entáo que ela se tornou a Mñe dos
homens, como insinúa a palavra que Jesús lhe dirigiu na
hora das dores mais cruciantes: «Mulher, eis o teu filho»
(Jo 19,26).

A propósito vem a observaeáo do Sanio Padre Bento XV


na carta «ínter Sodalicia» de 22 de margo de 1918 (AAS 10
[1918] 181-84) :

«Os doutores da Igreja costumam notar que, se Maria, a Virgem


Santíssíma, a qual parecía ausente de toda a vida pública de Jesús
Cristo, de repente se encontra presente á morte de seu Filho Cruci
ficado, isto nao se deu independentemente de um designio divino...
Enquanto o seu Filho sofría e morria, ela sofría e de certo modo mor-
reu com Ele; para a salvacáo dos homens, ela renunciotí nos direitos
maternos sobre o seu Filho {.nao se entenda esta expressáo em sen
tido estritamente jurídico]; a fim de aplacar a justica divina na me
dida em que o podía, ela imolou o seu Filho, de sorte que se pode
dizer com razáo que, com Cristo, ela resgatou o género humano».

— 133 —
-PERPUNTE K KESl'ONDGFtKMOS* M195H, qu. 1 _

Eis como se desenvolve o paralelismo «Adáo, Eva» —


«Cristo, Maria» até se chegar á conclusáo de que a Virgem
Santíssima foi intimamente associada á obra da Redengáo
objetiva.

2) Ainda o seguinte trago fornece fundamento ao título


de Corredentora ; Maria sofreu como Rainha dos mártires,
e, se se dá crédito a tradigáo mais antiga, morreu (note-se
que o Santo Padre Pió XII em 1950 apenas definiu a eleva-
gáo corporal de Maria aos céus, deixando suspensa a questáo
da morte da Virgem, que muitos autores, seguindo os do
cumentos mais antigos, afirmam, mas que outros teólogos,
atendendo antes a razoes especulativas, preferem negar). Ora,
já que Maria fóra preservada do pecado original, o sofri-
mento nao era pena a ela devida. As suas dores só podem
ter sido motivadas pelos pecados alheios e em vista da expia-
£áo dos mesmos ; o que equivale a dizer : o seu sofrimento
foi, unido ao de Jesús, um sofrimento estritamente redentor,
corredentor.
Assim comprovado o fato da Corredencáo, é preciso acen
tuar que ele nao derroga á obra de Cristo.
Com efeito. Maria tornou-se Corredentora porque seu
Divino Filho lhe quis outorgar esta dignidade. Ela mesma,
sem dúvida, foi remida, mas remida de modo próprio e com
a finalidade de ser particularmente associada á obra, da Re
dengáo dos demais homens (a Virgém Santíssima pertence,
como se diz, á linha da uniáo hipostática ; o que quer dizer:
está colocada ácima de qualquer criatura, e tudo que nela se
realiza, inclusive a obra da Redengáo, se realiza de modo
único). Se Maria foi remida, se tudo nela é graca, vé-se que
ela nao tem méritos independentes dos de Cristo nem nos
comunica algo de seu ; ela antes se assemelha á lúa, que
ilumina a térra nao por sua própria luz, mas exclusivamente
na medida em que é iluminada pelo sol. A título de ilustraeáo,
considere-se que o ser de Deus é infinito, e o das criaturas
participado ; que se dá entáo quando Deus cria novos seres ?
Está claro que nao se multiplica a quantidade de ser anterior
á 'criagáo, mas apenas surgem novos suportes ou sustentá
culos do ser anteriormente existente. De modo análogo, os
méritos de Cristo sao infinitos ; Maria nada Ihes pode acres-
centar, mas foi constituido novo e privilegiado receptáculo
désses méritos. Perguntar, pois, porque era necessária a Cor-
redengáo de Maria, já que a Redengáo a ser realizada por
Cristo nos bastava, equivale a perguntar porque era neces-
sário o ser das criaturas, já que o ser de Deus basta para

— 134 —
MARÍA MEDIANEIRA

esgotar toda a linha do Infinito ; vé-se que se trata de neces-


sidade livremente instituida pela soberana e benévola Von-
tade de Deus.
Mais ainda se poderia insistir: Por que quis Deus mul
tiplicar os sujeitos da obra redentora? — Responder-se-á : o
Criador tudo faz com abundancia e prodigalidade ; ora, já
que fez dois tipos humanos destinados a se completar mutua
mente na transmissáo da vida natural, quis também associar
um varáo (Cristo em sua natureza humana) e u'a mulher
na comunicacáo da vida sobrenatural.
Após o que foi ácima visto, conclui-se que negar a Corre-
dcngáo mariana a título de enaltecer a Redengáo adquirida
por Cristo vem a ser, em última análise, nao própriamente
honrar a Cristo, mas antes depauperar a obra do Redentor.
Bossuet (f 1704) observava com muita oportunidade :

«Nao sejamos daqueles que julgam diminuir a gloria de Jesús


Cristo quando nutrem elevados sentimentos para com a Santíssima
Virgem e os Santos... Por certo, seria atribuir a Deus fraqueza de-
plorável crer que se torne invejoso das dádivas e luzes que Ele derrama
sobre as suas criaturas. PoLs que sao os santos e a Santíssima Virgem
se nao a obra das máos e da graca do Criador ? Se o sol fósse animado,
nao conccberia invoja ao ver 'a lúa que preside á noite', como diz
Moisés, e preside com luz táo clara porque toda a claridade da lúa
se deriva déle e é o sol mesmo que a nos refulge e nos ilumina pelo
roflexo de seus raios. Por mnis elevadas que sejam as perfeicóes que
roronhocomos om Mnrin, poderia Jesús Cristo tor-lhes invoja, pois que
d'JSle é que decrorrem e é á gloria exclusiva d'Élo que se reíerem ?>
(3° sermao na testa da Conceicüo da Virgem 1669. Obras t. II. Paris,
1863, 51).

2. Alaria, a Dispensadora de todas as Grabas

Se Maria participou na aquisicáo das gragas da Reden


gáo, é obvio que participe outrossim na dispensagáo das mes-
mas. Basta lembrar que a primeira graga espiritual no Novo
Testamento — a santificacáo do Batista no scio materno —
foi dada por meio dé María, como verifica Elisabete no S. Evan-
gelho (cf. Le 1,41-45) ; da mesma forma, a primeira graga
de índole material — a conversáo da agua em vinho — foi
concedida por Jesús mediante a prece de Maria (cf. Jo 2,1-11).
Estes dois episodios podem ser tidos como indicios de urna lei
¿eral da Providencia Divina.
A tradigáo crista desde cedo exprimiu a sua fé na agáo
medianeira de Nossa Senhora, como atesta um papiro grego
(cm 19 X 9,4) do séc. m, encontrado há decenios no Egito,
em que já se lé o texto da famosa oragáo : «Á vossa protecáo

— 135 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958. qu. 1

recorremos, Santa Máe de Deus. Nao desprezeis as nossas


suplicas..., mas livrai-nos de todos os perigos...» (Sub tuum
praesidium...) ; é esta a mais antiga prece á Virgem que se
conhega. Os antigos escritores da Igreja ilustravam a dou-
trina da Medianeira recorrendo a metáforas : María seria a
«Porta do céu, o Aqueduto, a Máe da Vida, a Estréla do
mar, etc.».

Contudo, se se pergunta qual o modo exato como a Vir


gem dispensa todas as gracas, os teólogos se véem diante de
hesitacocs, que alguns chegam a julgar insolúvcis para nos aqui
na térra.

Em meio as dúvidas, há ao menos o seguinte ponto uná


nimemente reconhecido : María dispensa todas as gracas por
sua intercessao. Nao há dúvida. Deus quer salvar as cria
turas mediante as preces de urnas pelas outras (por isto os
cnstáos se acham unidos na Comunháo dos santos que é
comunháo de méritos). Ora María conhece os homens em
Deus, e os ama com solicitude especial ou materna ; se já
aqui na térra a caridade leva os santos a orar pelo próximo,
María no céu nao pode deixar de interceder qual Máe por seus
filhos.

A questáo debatida, porém, é a de saber se a Virgem nao


toma parte mais intima ainda na dispensacáo das gracas, ou
so, iilóm da intervencíio moramente mora! de Intercessora, nao
Ihe compete urna inlervengáo que se diría física, á semelhanca
do que se dá com a santissima humanidade de Cristo e os sacra
mentos.

A solugáo talvez se encontré na seguinte sentenga.


Sabe-se que certamente pela Igreja Deus comunica aos
homens as suas gragas ; é pela Igreja que renascemos e somos
continuamente nutridos na vida sobrenatural. A Igreja é assim
Medianeira de todas as gragas. E note-se que éste papel
medianeiro da Igreja nao se restringe únicamente ao minis
terio dos sacerdotes ; todos os fiéis, cada qual na posigáo que
ocupa no Corpo Místico, participam da funga o transmissora
da graca que a Igreja exerce. Santo Agostinho dizia que,
todas as yézes que urna criancinha é batizada, todos os cris-
íáos participam da atividade generativa da nova vida ou
exercem a Maternidade da Santa Madre Igreja (De diversis
quaestionibus 83, qu. 59 ; In ps 127,12). Faga-se agora a apli-
cagáo desta verdade a María : a Santissima Virgem ocupa
na Igreja urna posigáo eminente e sem par. Se, pois, cada
um dos membros do Corpo Místico participa na mediagáo

— 136 —
MATRIMONIO NO EPISTOLARIO PMTiTNrn

da Igreja, nao apenas por suas preces e seus exemplos mas


pela sua posicao e o seu ser mesmos sobrenaturais com mais
razao se afirmará que a Virgem Santíssima é Medianeira
num sentido físico, e Medianeira num grau de todo próprio
correspondente aos seus estupendos privilegios e á sua san-
tidade.

É o que por ora se poderia dizer em termos breves e sóli


dos sobre o assunto.

PLATAO (Rio de Janeiro) :

3) «Pelas palavras de Sao Paulo (1 Cor 7, 7-9) parece


que o casamento só é permitido em último caso ('se nao se
puderem conter'). Tem-se a impressáo de que o Apostólo, além
de proclamar que a virgindade é superior ao matrimonio, desa-
conselha formalmente éste último. Porque ?»

Em 1 Cor 7 Sao Paulo tece o elogio da virgindade, colo


cando-a ácima do matrimonio. É esta urna das grandes novi-
dades que o Cristianismo veio pregar ao mundo, novidade de-
corrente da consciéncia que o cristáo tem de que, pela graea
santificante, já possui em sua alma um germen da vida eterna
e, por conseguinte, a conduta mais conveniente e coerente é
a de quem procura antecipar neste mundo a atitude una,
indivisa, dos justos na cternidado. Em «Perpunte c Responde
remos» fase. 4/1957, qu. 7 ; fase. 7/1957, qu. 7, foram mais
largamente expostas as razóes por que Sao Paulo estabelecia
tal hierarquia de valores.
Agora é preciso notar que o Apostólo, exaltando a virgin
dade, de modo nenhum entendia negar quanto há de belo e
positivo no casamento. Compreende-se que no contexto de
1 Cor 7 ele o considere predominantemente sob o aspecto de
remedio da concupiscencia : tinha que apresentar o matri
monio como solugáo (nao restava dúvida, muito digna) para
os fiéis que, entusiasmados pelo ideal da virgindade direta-
mente focalizado no capítulo, nao conseguissem observar devi-
damente a vida celibatária : nao desesperassem da salvagáo
eterna, queria dizcr-lhes o Apostólo, mas recorressem ao ma
trimonio. Contudo mesmo em 1 Cor 7 Paulo enuncia, embora
brevemente, outro aspecto (e éste, positivo) do casamento : é
dom de Deus.

«Bem desojaría que todos fóssem como eu mesmo sou icelibatá-


no); mas cada um recebe de Deus um dom gratuilo, um de um modo
outro de outro» (7,7).

— 137 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 4/1958. qu. 3

ísfeste texto, como se vé, o matrimonio é apresentado


qual graga análoga á da virgindade. Os fiéis, portante, que
recebem o sacramento do matrimonio, com a intengáo de servir
a Deus, atendendo as indigencias de sua natureza, sabem que
entram num estado santo, em que encontraráo as gracas nao
apenas «para salvar a alma» mediocremente, mas, sim, para
chegar a perfeicáo crista ou á santidade. Cortamente é Deus
quem distribui as vocacóes particulares ; qualquer chamado
particular, porém, está subordinado a esta vocacáo geral de
todos os cristáos : ser santos ou perfeitos, fugindo de toda me-
diocridade (cf. MI 5/18).

E, para que nao reste dúvida sobre o pensamento do Após


telo, o próprio Paulo nos fornece ainda a passagem famosa de
Ef 5,22-32, em que focaliza diretamente o matrimonio. Eis a
frase culminante do texto :

iÚ° matrimónlo): eu ° d*° ™ vista do

Nestes termos, Paulo apresenta o matrimonio como ima-


gem e participacao da uniáo de Cristo com a sua Igreja
uniáo que comunicou ao mundo a vida eterna. Em cada lar
cristáo, esta uniáo se assenta e se repróduz em miniatura,
qual misterio pequeño dentro do Misterio Grande. O marido
é chamado a fazer as vézes de Cristo, a esposa as da Igreja •
o que quer dizer : um cónjuge é para o outro ministro da gracá
(o sacerdote que assiste ao casamento no santuario é apenas
o representante oficial da Igreja, que abencoa o ministe
rio dos cónjuges). E note-se bem : cada um dos cónjuges é
ministro da graca nao sómente ao contrair o casamento reli
gioso, mas ainda em todo o decorrer da vida conjugal. Des-
tarte, o matrimonio vem a ser, á semelhancja da Eucaristía,
um sacramento permanente, que só se destrói quando se extin
gue a respectiva materia, ou seja, o corpo de um dos con
sortes. Isto implica que os atos mais simples da vida conjugal
sao acompa-nhados de urna graca própria de santifieagáo; estáo
longe de ser atos meramente profanos, religiosamente neutros,
ou concessóes á natureza que derrogucm ao ideal de santidade
dos cónjuges ; há, ao contrario, urna constante comunicacáo
de gracas dos esposos entre si e com seus filhos (cf. 1 Cor 7,
12-14). Verdade é que o estado matrimonial pode oferecer mais
seducóes e perigos do que a cendicáo virginal ; contudo lem-
brem-se os esposos cristáos de que, chamados por Deus as
nupcias, recebem do mesmo Senhor os auxilios necessários para

— 138 —
A IGREJA E A VIUVEZ

superar os obstáculos respectivos e se tornarem imagem muito


viva do Cristo e da sua Igreja.

Os textos do Apostólo, considerados todos devidamente,


permitem-nos agora formular a seguinte conclusáo : embora
em si ou na ordem dos valores objetivos a virgindade seja
superior ao matrimonio, o estado melhor para cada cristáo
em particular é aquéle para o qual Deus em seus insondá-
veis designios o chama : matrimonio ou virgindade. Na sua
vocagáo própria, e nesta só, é que o Senhor reserva a cada
um as gragas necessárias para ser santo. Haja, pois, como
sempre houve, santos que, conforme a inspiradlo do Espirito
Santo, honrem a vida conjugal, e santos que honrem a vida
virginal, até que o Senhor se digne levar todos os seus fiéis
as nupcias da vida eterna, para as quais qualquer vocagáo aqui
na térra nos encaminha.

4) «Em que se baseia a Igreja para aconselhar as viú-


vas que nao se casem novamente ?»

Foi o Santo Padre Pió XII quem moveu recentemente


a questáo, antiga na Igreja, do valor da viuvez. Aos 16 de
setembro de 3957, dirigindo-se aos membros de um Congrcsso
da Uniáo Internacional de Familias, Sua Santidade houve por
bem explanar um aspecto do tema estudado nesse certame :
«A familia destituida de pai». Entendía o Papa focalizar o papel
da viúva crista na sociedade e na Igreja, principalmente o
da senhora que, ainda jovem, perca o marido e se veja a
bracos com a tarefa de educar a prole. — Eis aqui o pensa-
mento do Santo Padre, que exprime auténticamente o da Santa
Igreja.
Pió XII reagia, antes do mais, contra o sentimento de
tristeza, humilhacáo e contra a atitude de resignagáo passiva
e desanimada que o nome de viúva desperta em nao poucas
senhoras, a ponto de quererem ocultar ou desfazer a sua
condigno de viúvas. «Reagáo normal aos olhos de muitos, mas,
digamo-!o bem claramente, reagáo pouco crista : ... deve-se
ao desconhecimento das realidades mais auténticas», observou
o Pontífice.
Com efeito, a viuvez como tal sempre foi tida em alta
estima no Cristianismo. Já Cristo em sua vida mortal Ihe
testemunhava particular benevolencia ; haja vista o elogio
que pronunciou em favor da viúva que oferecera apenas
duas moedinhas em esmola no templo : «Em verdade, eu vó-lo
digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros»

— 139 —
. «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, _qu. J _

(Le 21,2s) ; mostrou-se profundamente compreensivo tambóm


para com a viúva de Naim, cujo filho Ele ressuscitou (cf. Le 7,
11-16) ; quis enfim ser reconhecido e proclamado pela viúva
que passava seus dias em jejum e oracáo no templo
(cf. Le 2,36-38).

Os Apostólos e os antigos cristáos tributavam análoga


deferencia as viúvas (cf. 1 Tim 5,9-16). Aquelas que tives-
sem atingido a idade de sessenta anos e fizessem o propósito
de permanecer viúvas até o fim da vida, comportando-se irre-
preensivelmente, constituiam urna categoría própria oficial
mente reconhecida na Igreja, categoría á qual a comuni-
dade crislñ pivstnva assisienna mutorial o espiritual. Eram-
-lhes especialmente recomendadas as boas obras, entre as
quais a hospitalidade, o servigo de indigentes e principalmente
a oracáo: «Aquela que realmente é viúva e ¡solada, colocou sua
esperanca em Deus e persevera noite e dia em súplicas e preces»
(1 Tim 5,5). Vé-se assim que Sao Paulo e a antiga Igreja ten-
diam a fazer da viuvez um estado especialmente consagrado a
Deus, propondo-lhe o ideal da vida una, indivisa, vida que é
característica do estado virginal; a viúva destarte procuraría
imitar o ideal sublime da virgindade, depois de haver passado
pelo matrimonio. Claro está que, propondo éste programa, o
Apostólo nao intencionava proibir as segundas nupcias ; ao
contrario, recomendava-as a quem nao se pudesse conduzir
condignamente sem olas (cf. 1 Tim 5,14 : 1 Cor 7,9. 39s).
É em vista dcstas riquezas espiriluais da viuvez que o
Santo Padre deseja restaurar a estima a tal estado, impug
nando a mentalidade pouco crista ou paga que julga frustrada
a condicáo de urna viúva. Como se vé, Pió XII nao faz senáo
incutir um tema clássico na Igreja ou urna doutrina bíblica,
talvez difícilmente compreensível para a mentalidade moderna,
inclinada ao gozo.
Sua Santidade, no discurso citado, ilustra a grandeza da
viuvez ainda por outra via, também inspirada por Sao Paulo :
se o matrimonio cristáo é imagem e participacáo das nupcias
de Cristo com a Igreja (cf. Ef 5,22-23; 1 Cor 11,3-9), o estado
da viúva é, de maneira particularmente rica, sinal e imitagáo
da Igreja posta ñas circunstancias da vida presente. Sim ;
Cristo subtraiu á Igreja sua presenca sensível, foi-se corporal-
mente para a mansáo celeste, deixando-a aparentemente só aquí
na térra (embora Ele Ihe assista intimamente) ; a Igreja assim
pode ser ilustrada pela imagem da viúva (alias, na parábola
de Le 18,1-8 a viúva é tida como símbolo da Igreja). A viúva
crista, permanecendo fiel ao falecido esposo, sem procurar

— 140 —
A IGHRTA K A VIUVKZ

segundas nupcias, proclama de novo modo o valor do sacramento


do matrimonio, afirma em novo tom que de fato éste é miniatura
da uniáo de Cristo com a sua Igreja. Na realidade, a alma do
marido defunto nao morre, mas continua a viver junto a Deus
na patria eterna ; por conseguinte, o amor que o cónjuge dedica
a sua consorte aqui na térra, nao se extingue pela morte, mas
ao contrario torna-se aínda mais puro, porque isento de todas
as fraquczas e escorias do egoísmo ; a viúva que em sua fé
crista tenha consciéncia disto, pode conseqüentemente continuar
a viver a sua uniáo com o falecido esposo, e continuar a vivé-la
em disposicóes de alma ainda mais puras, mais espirituais (cm-
bora o scu casamento no plano jurídico o sensívcl estoja des-
feito).

Eis textualmente as respectivas palavras do Santo Padre :

«Longe de destruir os lagos do amor humano e sobrenatural con


traídos pelo matrimonio, a morte os pode aperíeicoar e reforcar Sem
duyida no terreno meramente jurídico e no das realidades sensíveis,
a mstituicao matrimonial (após a morte de um dos cónjuges) nao
existe mais; mas o que constituía a alma da mesma, o qua lhe dava
vigor e beleza, isto é, o amor conjugal, com todo o seu esplendor e
seus votos de eternidadc, subsiste, como subsistem os seros espirituais
e livres que se devotaram um ao outro...

Pela aceitacáo da cruz, da separacáo, da renuncia á cara presenca


(do marido), trata-so, para a viúva, de conquistar outrn motlaiirinile de
proscTicn, innis mlimn, mais profunda, mais folie. Prosonta que lam-
bém será puriíioailota, pois quem ve a Deus face a face {isto é, a alma
do cónjuge falecido) nao tolera, naquéles que mais amou durante sua
existencia terrestre, o fechamento em si mesmos, o desanimo as afei-
góes vas.

Se já o sacramento do matrimonio, símbolo do amor redentor


de Cristo á sua Igreja, aplica ao esposo e a esposa a realidade désse
amor, os transfigura, os torna semelhantes, um ao Cristo que se en
trega para salvar a humanidade, a outra á Igreja resgatada, que aceita
participar no sacrificio de Cristo, entáo a viuvez se torna do corto
modo a consumacao fiessa consagragao mutua; ola simboliza a siluacüo
presente da Igreja militante privada da visáo de seu Esposo celeste,
com quem ela nao obstante permanece indefectivelmente unida, enca-
minhando-se para Ele na fé e na esperanca, vivendo do amor que a
sustenta em todas as provagoes e esperando impacientemente o cum-
primento definitivo das promessas iniciáis.

Tal é a grandeza da viuvez, quando é vivida como prolongacao


das gragas do matrimonio e preparagáo do pleno desabrochar das mes-
mas na luz de Deus. Qual o precario consoló humano que jamáis pode-
ria igualar táo maravilhosas perspectivas ? É preciso, porém, merecer
penetrar o sentido e o alcance desta realidade e pedir a compreensao
da mesma por meio de oragáo humilde e atenta e pela aceitagáo
corajosa da vontade do Senhor» (texto transcrito de «Documentation
Catholique» n» 1262, de 13-X-57, col. 1287s).

— 141 —
Em resumo: a Santa Igreja nao condena as segundas
nupcias ; quer, porém, inspirando-se na doutrina de Sao Paulo
chamar a atencáo das viúvas para as possibilidades que seu
estado lhes oferece, de cultivar mais intensamente a vida espi
ritual, principalmente mediante a oragáo e a dedicacáo cari-
dosa ao próximo ; o pouco que a pobre viúva possa fazer pelos
seus semelhantes e pelo Reino de Deus será altamente valioso
aos olhos do Senhor, desde que proceda de um coracáo magná
nimo !

II. SAGRADA ESCRITURA

AMIGO DA VEBDADE (Kio de Janeiro) :

5) «Afinal de contas, convém ou nao ler e mandar Ier a


Sagrada Escritura ? Certas páginas do Antígo Testamento nao
se podenani tornar nocivas ?»

Nao há dúvida, a leitura das Sagradas Letras merece ser


amplamente fomentada.
E porque ?

1) A Sagrada Escritura é, por definicáo, o Livro inspi


rado por Deus (isto nao quer dizer que Deus tcnha revelado aos
autores bíblicos verdades novas, mas, sim, que iluminou a mente
dos mesmos a íim rio que, aludindo aos dómenlos tiesto mundo
segundo o modo de pensar e falar dos orientáis antigos trans-
mitissem fielmente verdades religiosas).
A Sagrada Escritura é, por conseguinte, a palavra de Deus
tornada palavra do homem, fazendo eco ao misterio da Encar-
nacáo, pelo qual Deus se uniu á natureza humana.
Tal prerrogativa compete sómente a. Biblia, ficando todos
os demais escritos, os mais piedosos e eruditos, aquém dessa
dignidade ; os santos e doutores escreveram bem porque se
nutriram copiosamente da Sagrada Escritura.
A mencionada prerrogativa faz que a Biblia seja um
sacramental, isto é, objeto sagrado que comunica a graga a
quem o usa com fé e amor a Deus. Disto se segué importante
conclusáo : a leitura do livro sagrado é frutuosa, nao exata-
mente na medida em que o entendemos com nossa capacidade
natural, mas na medida da fé e das disposicóes sobrenaturais
com que lemos. Há inegávelmente trechos obscuros na Biblia :
torna-se entáo oportuno perscrutar o seu significado mediante
o uso de comentarios e estudos, mas, mesmo que nao se possa

— 142 —
VALE A PENA LER A BIBLIA?

fazer isto ou nao se chegue á plena compreensáo, nao fica vá


a leitura da Biblia, pois tais passagens santificaráo sempre o
cnstao que as ler com espirito de fé e piedade, procurando entrar
em comunháo com a Palavra e a Vida de Deus. É Sao Joáo Cri-
sóstomo (f 407) quem ensina :

«Quem se entrega a urna leitura atenta (dos santos Evangelhos)


é como que mtroduzido num templo sagrado, é iniciado ñas coteas
de Deus; purificado, torna-se melhor, pois Deus Ihe fala por aqueles
osen to s •

Que acontecerá, dizem, se nao entendemos o que os livros (sacra


los. «mi™? Mosmo que nao comprendas o ,,?„. ,„•.?,« ™í, ffs*
lado, lucr.-is grande sanlifira^o j)da IHiura mr-sma.. . '
Se nem pela assiduidade da leitura chegares a compreender o oue
está escrito, procura alguém maiss sabio,
sabio, vai
vai ter
ter com
com um
um mistas
m
Slí8*11
Slíw8*11 ttU gI?nd|
ardente anelo deSj Quand0
deSeja
nao desprezará Qd ¿ tee vir
¿eus
tua vigilancia ^ e.pcTíáo
mo^do
solicitude; Tíá
aínda
que nao haja homem capaz de te explicar o que procuras, Ele mesmo
(c? At 8 30s) 3 Lembra-te d0 eunuco ^a rainha da Etiopia
É impossivel, é impossível, digo, que alguém fique sem fruto se
se da zelosamente á leitura atenta e íreqüente das Escrituras» (De
Lázaro, serm. 3,2s).

2) A autoridade dos Sumos Pontífices, corroborando estas


idéias, tem mais e mais recomendado a leitura da Biblia Eis
como so exprimía S. S. o Papa Pío XII na encíclica «Divino
Arriante Spiritu» :

«SurRe espontánea a conviecáo de que os fiéis e particularmente


os sacerdotes tem o grave dever de aproveitar larga e santamente
aquele tesouro (da exegese católica) acumulado durante tantos séculos
pelos: maiores talentos. Deus nao deu aos homens os Livros Santos nara
satisfazer a sua curiosidade ou para Ihes fornecer materia de estudo e
ínvestigacao, mas... para que estes divinos oráculos nos pudessem
instruir para a salvacáo pela fé em Jesús Cristo' (cf. 2 Tim 315)
Portanto os sacerdotes, que por oficio devem procurar a eterna'sal-
vacao dos fiéis, depois de terem estudado dilieentom<>nto as sagradas
paginas c as terem assimilado com a oraeao c moditacao, distribuam
com o devido zelo nos sermoes, hornillas e práticas as celestes riquezas
da Divina Palavra; confirmem a doutrina crista com sentencas dos
Livros Santos, ilustrem-na com os preclaros exemplos da historia sa
grada, nomeadamente do Evangelho de Nosso Senhor Jesús Cristo- e
tudo isto — evitando diligente e escrupulosamente as acomodaeñes
arbitrarias e estiradas, verdadeiro abuso e nao uso da Divina Palavra-
exponham-na com tal facundia e clareza, que os fiéis nao só se movam
e afervorem a melhorar a própria vida, mas concebam suma veneracáo
para com a Sagrada Escritura».

Já Bento XV recomendava em 1920 :

— 143 —
E RESPONDEREMOS» 4/iflR«, r,.. 5

«Quanto a Nos, conforme o exemplo de Sao Jerónimo nunca dei-


xaremos de exortar todos os fiéis cristáos a que, em le°tura diárfá
revolvam principalmente os sacrossantos Evangelhos de Nosso Senhar'
os Atos dos Apostólos e as Epístolas, e a que os procurem assimilar aó
seu propno sangue» (ene. «Spiritus Paraclitus»)

Vé-se neste trecho como o Sumo Pontífice insinúa um para


lelo entre a comunháo eucarística e a comunháo com a Palavra
de Deus ; assimilando as verdades contidas na Biblia o cristáo
fiel assimila, sim, a Vida Eterna.

A leitura da Biblia foi mesmo enriquecida de indul


gencias :

«Aos fiéis que, ao menos durante um quarto de hora, lerem como


leitura espiritual os livros da Sagrada Escritura com a suma venera-
cao que se deve a Palavra de Deus, é concedida a indulgencia de 300
días» (S. Penitenciaria Apost., 22 de marco de 1932).

Mas dir-se-á : a Biblia contém narrativas que obviamente


sao pouco edificantes, podendo tornar-se mesmo nocivas a pes-
soas simples.

— Nao se afirmará que a Biblia só contém historias de


homens virtuosos, a semclhanca do certas «Vidas de Santos»
modernas ; nem foi para nos dar um repertorio de casos edi
ficantes que o Espirito Santo se dignou inspirá-la. Nao será,
pois, com a preocupacáo de ler exemplos de virtude humana
que abordaremos o texto sagrado. Outra deverá ser a nossa ati-
tude, a qual decorrerá das seguintes consideragóes :

A Biblia quer narrar a historia das relacóes dos homens


com Deus, fazendo tudo convergir para a idéia do Messias ou
Redentor. Ora os homens com os quais o Senhor quis entrar
em intercambio mais íntimo (isto é, o povo de Israel, desti
nado a guardar á fé monoteísta em meio ao politeísmo), se com-
portaram sempre como homens, filhos de Adño ou do pecador,
inclinados ao mal, á infidelidade mais ou menos grosseira.
Deus nao quis corrigir instantáneamente essa natureza desre-
grada dos homens, por mais elevadas que fóssem as tarefas a
éles (Abráo, Isaquo, Jaco, Davi, Salomáo...) confiadas; per-
mitiu simplesmente que o homem «reagisse» aos dons de Deus
como podia, isto é, sem evitar as falhas e os escándalos decor-
réntes da miseria humana. Contudo, permitindo isto, Deus quis
sempre mostrar-se «maior do que o mesquinho coragáo humano»
(cf. 1 Jo 3, 20) ; onde a miseria abundava, a misericordia supe-
rabundava (cf. Rom 5,20) ; assim a Biblia nos apresenta a his
toria do homem que destrói e de Deus que reconstrói paciente-

— 144 —
_O NÚMERO DA RESTA DO APOCALIPSE

mente a sua obra. Nao é, pois, no aspecto sinistro, humano, das


narrativas bíblicas que devemos fixar a nossa atencáo ; tal as
pecto constituí apenas o fundo sobre o qual mais deve sobressair
a Bondade magnánima do Criador ; e é a esta que o cristáo deve
considerar e admirar em qualquer das páginas «escandalosas»
do Antigo Testamento. — O Espirito Santo, nao encobrindo
tais episodios, tinha únicamente em mira mostrar-nos mais
o contraste entre a grandeza de Deus e a pequenez do homem
que o Redentor veio salvar. A indignidade da parte das criaturas
(mosmo das que sao chamadas as mais elevadas fuñe.oes no
Reino de Deus) nao nos deve surpreender, mas o que sur-
preende 6, sem dúvida, a condescendencia, a caridade ¡nesgotá-
vel do Senhor para com a sua criatura. Entendidas desta forma
(que é a única auténtica), também as passagens aparentemente
mais escabrosas da Escritura dáo seus frutos de edificagáo e
uniáo com Deus. Saiba, pois, o cristáo colocar-se nesta perspec
tiva e já nao hesitará em ler o Livro sagrado ; olhe para Deus e
a obra da misericordia mais do que para o homem e o seu pe
cado. E esteja sempre lembrado de que nao terá sido por pouca
coisa que Deus se quis «abalar», inspirando as páginas da Biblia.

Do que foi dito se depreende que nao seria consentáneo


com o Espirito de Deus querer restringir a leitura da Sagrada
Escritura ao Novo Testamento apenas ; tambóm as páginas
do Antigo Testamento foram inspiradas para proveito e"con
soló dos cristáos que as leiam 'á luz das idéias ácima indi
cadas (cf. Rom 15,4). De resto, nao há quem leia com enten-
dimento os Evangelhos ou Sao Paulo e nao se sinta impelido
a procurar conhecer no Antigo Testamento o fundo doutri-
nário e histórico do qual depende qualquer página do
Cristianismo.

Esclarecimentos mais pormenorizados sobre textos difi-


ceis do Antigo Testamento podem-se encontrar no livro de E.
Bettencourt, «Para entender o Antigo Testamento». Editora
AGIR 1956.

NIVALDO (D. F.) :

6) «Que significa o número da bésta de Anocalipse


(13,18) ?» * F

Esta questáo tem ocupado calorosamente leitores e co


mentadores do Apocalipse desde o séc. II da nossa era. Com

— 145 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/195S, gu. 6

efeito S. Ireneu (140-202) refere que já em seu tempo os có-


,cí* d» Apocalipse exibiam duas variantes do dito número
(bbb e blb), sem que se soubesse qual o seu significado exato
(Adv. haer. 5,30, 2).
Contudo será preciso reconhecer que o enigma devia ter
sentido evidente para os leitores imediatos do Apocalipse, ou
seja, para os cristáos da Asia Menor aos quais no fim do séc. I
Sao Joáo se dirigía ; era justamente com o intuito de os orien
tar que o Apostólo escrevia o texto de Apc 13, 18 ; nao Ihes
quería propor um «quebra-cabeca», mas algo de que pudes-
sem tirar proveíto. porque sabia que tinham os meios para o
dorifrar ; infolizmonto, potvm, dosde codo so apajíou nos cris
táos a reminiscencia dos elementos necessários á elucidagáo
(perdeu-se a chave do enigma).
Vejamos o que hoje, coligindo alguns dados seguros, se
pode dizer de mais provável sobre o assunto.
1) O misterioso número deve designar algum homem,
pois o hagiógrafo adverte que é «número de homem»
(13,18).
E como o designa ?
Os gregos e hebreus atribuiam valor numérico a cada
unía das letras do seu alfabeto (os romanos, ao contrario, só
a algumas o atribuiam) ; baseados nisto, compraziam-se' em
contar o valor numérico de determinado nome e, em conse-
qüéncia, de determinada pessoa. Éste proceder, que constituía
a arte chamada «gematria», era muito usual entre os povos
do Mediterráneo (em Pompei, por exemplo, no Sul da Italia,
foi encontrada a seguinte inscricáo : «Amo aquela cujo nú
mero é 545» ; cf. Sogliano, Rendiconti della Reale Accademia
dei Lincei 1901,256-9).
2) Sao Joáo, em Apc 13,18, usou de modo de falar
obscuro, provávelmente porque entendía proferir um juízo
sinistro-sobre algum dos dignitários (ou monarcas) do Impe
rio Romano ; nao quería incorrer no crime de lesa-autoridade
ou de lesa-majestade nem tornar os seus leitores suspeitos
disto; o livro do Apocalipse podia cair em máos de pagaos
que, se compreendessem a alusáo á autoridade, se vingariam
dos cristáos (as primeiras perseguigóes já tinham sido desen-
cadeadas por Ñero em 64). Por isto se referia a Roma men
cionando Babilonia (cf. c. 16), á semelhanca do que fizera
Sao Pedro em 1 Pdr 5,13. — Disto se segué que se deve
procurar o personagem designado pelo número 666 entre
os/chefes do Imperio contemporáneos ou anteriores a Sao
Joáo. Sim ; se os leitores do Apocalipse nao tivessem de ante-

— 146 —
_O JjÜMERO DA BfiSTA DO APOCALIPSK

máo certo conhecimento do varáo mencionado, jamáis pode-


nam decifrar o enigma proposto.

3) Conseqüentemente vé-se que será no vocabulario grego


ou no hebraico (com os quais estavam familiarizados os des
tinatarios do Apc) que se deverá buscar a solugáo. Nao entra
em questáo o latim, pois éste no séc. I da nossa era nao pas-
sava de dialeto confinado ao Lacio (península itálica), dialeto
que ficava alheio as cogitares dos leitorcs imediatos da obra
de Sao Joáo. .

4) Feitas estas aproximares, só roslam tros solueóos


mais ou monos plausivois para o nosso enigma : as nomes
j C?^I°.S KAISAR (Gaio césar> designacáo de Calígula
KAISAR THEÓS (César é Deus). Estas sao duas expres-
soes gregas cujas letras somadas dáo o total de 616. Ou entáo
QESAR NERÓN (César Ñero), termos gregos que es
critos em caracteres hebraicos, perfazem a soma de 666 •
Q = 100; S = 60; R = 200; N = 50; R = 200; 0 = 6; N = 50
(as vogais e e a nao se contavam em hebraico).
Dcstas tres interprctacóes, a mais plausível ó a última.
Proposta pela primeira vez entre 1830 e 1840 por Fritzsche,
I Bénary, Hitzig, tem aliciado grande número de exegetas.'
Oferece, entre outras vantagens, a de explicar as variantes
666 c 616 dos antigos códices : alguns copistas influenciados
pela forma latina Ñero teráo omitido o n final que figura no
j nome grego Nerón, diminuindo assim de 50 unidades a soma
I total das letras. Note-se que, das duas variantes do número,
a que parece originaria e merece a clara preferencia tanto
! de S. Ireneu (séc. II) como dos melhores códices, é 666. Tería-
j mos, pois, em Apc 13,18, urna alusáo ao famoso Imperador
| Ñero.
t

< Verdadc ó que éste soberano já morrera quando Sao Joáo


| escrevia o Apocalipse ; o Apostólo, porém, tomava-o como per-
j sonificacáo do poder imperial hostil aos cristáos, pois Ñero fóra
j o iniciador das perseguicóes e ficava marcado, na reminiscencia
j dos pósteros, como o tipo do perseguidor cruel e vicioso ou como
a figura do Anticristo.

Poder-se-ia objetar que a solugáo QESAR NERÓN supóe


urna ginástica mental assaz forcada : trata-se de dois nomes
gregos que se pressupóem escritos em caracteres hebraicos,
num livro destinado a leitores que pouco deviam conhecer o
hebraico. A esta dificuldade replica-se que Sao Joáo bem

— 147 —
_~PKRC;VNTK r. RESPONDEREMOS,. 4/m5S. c,u. fi

pode ter chamado a atencáo dos seus leitores para éste arti
ficio ; nao chegou a escrever tal advertencia para nao se trair
e nao se expor a alguma represalia da parte dos pagaos • mas
por vía oral terá instruido a respeito os cristáos que levaram
o Apocalipse de Patmos para a Asia Menor. Será preciso tam-
bém tomar em conta que havia bom número de judeus ñas
cidades da Asia Menor as quais se dirigia o Apostólo. — A hi-
pótese se torna ainda mais provável se se tem em vista que,
quando os gregos em seus papiros gregos, queriam aludir a pes-
soa ou coisa misteriosa, recorriam nao raro a vocábulos hebrai
cos ou somííiros.

5) Á luz do que foi dito, vé-se que qualquer senlenca


que procure na língua latina ou entre personagens posterio
res ao sec. I a interpretado do número, está fora de propósito ;
Sao Joáo teria frustrado seu designio de esclarecer e acaute-
lar os leitores gregos e judeus da Asia Menor aos quais ele
escrevia.

Varias, porém, sao as tentativas de solugáo que incor-


rem em tais incongruencias. Eis alguns dos nomes para os
quais apontam : o Imperador Juliano o Apóstata (f 363) o
invasor huno Afila (séc. V), Maomó (f 632), o Papa Boni
facio VIII (v 1303), Inácio de Loiola (y 1556) Lutero
(v 1546), o rei Luís XIV de Franga (v 1715), o imperador
NapoloAo (v 1821), Adolfo nilh.r, ole. — Ilá lambóm quem
diga que o Papa traz na tiara o Ululo latino de V1CAKIUS
FILII DEI e que esta expressáo perfaz a soma de 666 (V = 5 ■
1 = 1; C = 100 ; 1 = 1; U = 5 ; 1 = 1; L = 50 ; II = 2 i
D = 500 ; I — 1). O mesmo total é obtido por outro título que
dizetn ser característico do Sumo Pontífice : LATINUS REX
SACERDOS. Na verdade, a tiara de pontífice nlo traz inscricao
alguma. Quanto ao título que se costuma atribuir ao Papa é o
de VICARIUS CHRISTI.
Nao será necessário perder tempo em demonstrar que
todas estas explicares carecem de fundamento no texto sa
grado ; sao produtos arbitrarios da fantasía. Táo longe tem
ido os autores movidos por preconceitos que chegaram a ver
no número 666 a soma das letras hebraicas do nome JESÚS
NAZARENO : YSW NCRV. O próprio Jesús Cristo seria,
entáo a bésta do Apocalipse ou o Anticristo ! Tal foi a sen-
tenga do rabino Davi Berman («Mercure de France», 1918,
190), o qual seguía Valentim Weigel, pseudo-místico do séc. XVI
e discípulo de Paracelso (cf. Corrodi, Geschichte des Ch¡-
liasmus III 32-s). — O caso do rabino Berman mostra bem
que quem quer identificar a bésta do Apocalipse com o Papa,

— 148 —
. ___. IRMAOS OU PRIMOS DE JESÚS?

nao tem motivo para nao a identificar com o próprio Cristo


Arbitrariedade por arbitrariedade, urna equivale á outra.
Por sua vez, o escritor norte-americano David Goldstein
advertiu que o nome de ELLEN GOULD WHITE, a profetiza
dos Adventistas do Sétimo Dia, tem o valor numérico de 666 :
EL L EN GO V L D W (= V V) II I TE
50 50 5 50 500 5 5 1 '-666
Vé-se assim quáo vá é a polémica moderna em torno do
assunto.

Voll anclo ¡«ora a unía refloxáo serena, porie-se observar


que, segundo a menlalidade mística antiga, o número 666 indi-
cava essencialmente precariedade ou derrota. Compóe-se, sim
do algansmo 6, que é um 7 (símbolo da perfeicáo) truncado
ou um 12 (outro símbolo da perfeicáo) cortado pela metade'
Por consegumte, o individuo designado por tres «seis» justa-
postos está, a duplo título, entregue á ruina; tal era a sorte
que Sao Joáo quería atribuir a Ñero, ou seja, aos perseguido
res dos cristáos e ao Anticristo.
Em oposicáo a 666 está o número 888, soma das letras
gregas do nome JESOUS. Se seis era o algarismo típico da
imperfeigáo, cito (que equivale a 7 + 1) designava a perfei
gáo em toda a sua énfase ; por conseguinte, tres oito justa-
postos simbolizarían! milito eloqüontomonlo as riquezas do
sabedoria o bondade do Redentor. K o que a Sibila (1 321-331),
antigo apócrifo cristáo, fazia notar com muito garbo no inició
da nossa era.

MACARIO (Sao Paulo) :

7) «Como se pode dizer que os irmaos de Jesus eram


primos do Senhor, alegando que cni hebraico nao havia vocá-
bulo próprio para designar primos ? Em Le 1,3(5 lé-se que
Elisabete, prima de Maria, concebcu um filho».
Em «Pergunte e Responderemos» fase. 3/1957, qu. 13
dissemos que os hebreus, em seu vocabulario deficiente, davarn
o nome de irmáos nao somonte a filhos do mesmo leito conjugal,
mas também a familiares e próximos consanguíneos. E mosfrá-
vamos como os irmaos de Jesus de que fala o Evangelho, nao
podem ser senño primos do Senhor.
Está claro que a interpretagáo da S. Escritura, como alias
a de qualquer documento, há de ser feita na base do texto
original ; urna afirmagáo científica que reivindique autoridade

— 149 —
«PERGUNTE E_RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 7 e 8

para si, nao pode ser fundada em traducoes. Ora a dificuldade


apresentada na pergunta ácima está baseada, exclusivamente,
numa tradugáo vernácula do texto sagrado. O original do Evan-
gelho de Sao Lucas, redigido em grego, dá a ler em 1,36 :
Elisabet he suggenís sou; o que significa própriamente:
«Elisabete, a tua parenta, consanguínea, ou familiar...». Re-
trocedendo, pois, ao original do texto analisado, nao encontra
mos o vocábulo que causa o problema : prima. Assim se mostra
inconsistente a objegáo proposta.
A título de ilustracáo, seja acrescentado o seguinte : pes
quisando a literatura antiga, verifica-se que Taciano, autor
que no sc'<e. II traduziu os Sanios Evangelhos do grego para
o sirio (lingua milito próxima ao hebraico o ao aramaico bíbli
cos), empregou em Le 1,36 o termo atach, tua irmá. Nao há,
porém, quem insista em afirmar que Maria e Elisabete eram
irmás no sentido estrito ; ao contrario, os exegetas de autori-
dade ou se negam a precisar o grau de parentesco que unia
Maria a Elisabete, ou julgam que esta era tia daquela (pois
Elisabete, por sua adiantada idade, já era estéril, quando
Maria em idade juvenil recebia o anuncio do anjo ; cf. Le 1,36).
No caso, portanto, os vocábulos suggenís em grego, atach em
linguagem semita, dizem apenas afinidado entre Maria e Eli
sabete ; nem se poderia afirmar com seguranga que ambas per-
tenciam á mesma tribo, pois Elisabete era certamente da tribo
de Levi (cf. Le 1,5), ao passo que Maria descendía provável-
mente da linhagem de .Tuda e Davi, como Siio José (neste caso,
Elisabete o Maria seriam parentas em virlude de um matri
monio realizado outrora entre um varáo da tribo de Levi e u'a
mulher da tribo de Judá; era lícito, sim, aos sacerdotes ou levitas,
tomar esposa em outra tribo que nao a de Levi). Em conse-
qüéncia do ácima dito, vé-se que inadequada é a tradugáo por
tuguesa que dá ao termo suggenís de Le 1,36 o sentido de prima ;
melhor é dizer : «Elisabete, tua parenta».

III. MORAL

N. F. (Rio de Janeiro) :

8) «Dada a incidencia de distocias (partos difíceis) ñas


gestacoes sucessivas de u'a mesma mulherj depois de quantas
estará indicada a salpingectomia (ligacáo ou mesmo extirpacao
da trompa) ?»

Em caso nenhum, nem mesmo após repetidos perigos no


parto, será lícito extrair ou ligar as trompas que em si nao

— 150 —
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

cstejam doentes. Tal operagáo equivaleria a mutilar a natu-


reza e fazer que as fungóes sexuais fiquem destituidas da sua
finalidade primaria (procriagáo da prole) para á qual o Cria
dor as instituiu. Por conseguinte, a paciente que sofra de dis
tocias, procurará desvencilhar-se das conseqüéncias destas por
outro meio que nao a mutilagáo de.um órgáo em si sadio.

Caso, porém, as trompas estejam diretamente afetadas


por molestia ou defeito, nao há dúvida de que é permitido extraí
das, se éste é realmente o único meio indicado para salvaguar
dar a vida da paciente. O médico deverá julgar em consciéncia
as indicagóes e contra-indicaqóes cirúrgicas e clínicas de cada
caso. Extirpando as trompas doenlc-s (cancelosas, por excmplo),
ele estará eliminando o foco direto e certo de um perigo mortal
para a paciente, ao passo que, eliminando as trompas sadias,
estará realizando antes de tudo urna operagáo esterilizadora, nao
absolutamente necessária á conservagáo da vida da mulher (ope
ragáo em si ilícita : cf. «Pergunte e Responderemos», fase.
6/1957, qu. 9 ; 8/1957, qu. 12). É isto que modifica a moralidade
das duas operagóes.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

M. P. C. (Rio de Janeiro):

0) «Os manuscritos rcccin-dcscobcrtos junto ao Mar


Morto parecem indicar que a figura do Divino Mensageiro
existiu entre os essénios muito antes do nascimento de Jesús.
Os principáis acontecimentos da vida de Cristo se terao de
senrolado, por conseguinte, antes do advento do Cristia
nismo. ..»

A. A. M. I,. (Redfe) :

10) «Os manuscritos do Mar Morto trouxeram alguma


luz sobre a vida de Jesús, dos doze aos trinta anos ?»

Para se responder devidamente a estas questóes, deve-se


primeiramente recordar

1. A procedencia e o conteúdo dos manuscritos

A partir de 1947 estáo sendo descobertas e exploradas a


NO e O do Mar Morto (Palestina) grutas que, em profusáo
surpreendente, contem manuscritos da Sagrada Escritura e

— 151 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 9 e 10

de obras de piedade inspiradas pela mentalidade judaica an-


tiga. Encontraram-se também em localidade nomeada Qum-
ran (na mesma regiáo) os destrogos de vasta habitacáo huma
na, auténtico mosteiro judaico, no qual se identificaram urna
ampia sala de leitura, um escritorio comum, um refeitório,
urna dispensa, cozinha, aquedutos, etc., e um cemitério, onde
jazem cérea de 1100 cadáveres, na maioria de varees (poucas
mulheres e mangas — o que é indicio da vida geralmente celi-
batária dos habitantes da regiáo).

Depois de haver lido e analisado cuidadosamente os prin


cipáis documentos adiados em Qumran (manuscritos, moe-
das, cerámica), os arqueólogos podem hoje, com certa segu-
ranga, reconstituir nos seguintes termos a historia que os
concerne :

No séc. II a.C. (sob o chefe judeu Jónatas Macabeu,


160-142 ? Ou sob Joáo Hircano, 134-104 ? Ou sob Alexandre
Janeu, 103-76 ?), um grupo de sacerdotes e fiéis israelitas se
retiraram para o deserto de Qumran, a fim de levar urna vida
toda dedicada á oragáo e ao trabalho ; julgavam nao poder
coexistir com seus correligionarios em Jerusalém, pois a fé
dos dirigentes de Israel Ihes parecía contaminada pelo espi
rito mundano helenista. Queriam preparar na solidáo o reino
de Deus, o qual devia irromper chefiado por dois Cabegas :
o Messias de Aaráo, que, representando o sacerdocio, estaría
encarregado de ensinar a Palavra de Deus e promulgar a Nova
Lei, e o Messias de Israel, ao qual tocaría o poder regio de
Davi. Ésse grupo de homens piedosos (que os eruditos geral
mente identificam com os Esscnios, dos quais falam historiado
res judaicos antigos) era inicialmente dirigido por um sacerdote
intitulado o «Mestre de Justiga», intérprete das Escrituras Sa
gradas, o qual ensinava aos seus discípulos que se afastassem
da vida paga e.renovassem sua fidelidade á Lei de Moisés.
O Mestre de Justiga tinha por antagonista um personagem de
Jerusalém, chamado nos manuscritos de Qumian «o Sacerdote
ímpio», o qual se esquecera da Lei de Deus ; o malvado chegou
a ir a Qumran, tentando vencer a resistencia passiva dos dissi-
dentes. Seus esforcos, porém, foram baldados ; ele, o tirano (e
nao o Mestre de Justica), foi aprisionado pelos gentíos, que o
condenaram á morte.

Os essénios de Qumran, para nutrir sua piedade, dispu-


nham, como se entende, de boa biblioteca, integrada pelos
livros da Sagrada Escritura, comentarios dos mesmos (entre
os quais se distingue o «Comentario ao profeta Habacuque»),

— 152 —
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

urna Regra de vida comunitaria ou «Manual de Disciplina»,


textos de cánticos, hinos a Deus, livros apócrifos.. . Em suma,
cérea de seiscentos manuscritos foram até hoje encontrados
na regiáo do Mar Morto (e cré-se com razáo que ainda há
novo material por descobrir), dos quais urna quarta parte
apresenta textos bíblicos. Os principáis désses documentos
foram escritos ou copiados na época em que os essenios se
estabeleceram no mosteiro de Qumran, ou seja, nos séc. II./I
a.C. ; em conseqüéncia, o mundo possui hoje manuscritos bí
blicos mil anos mais velhos do que os mais antigos até
há pouco conhecidos (o confronto entre uns e outros evi
dencia fidelidade surpreendente na transmissáo do texto sa
grado).

Aconteceu, porém, que em 68 d.C, quando os exércitos


romanos assolavam a Palestina, aprestando-se a tomar Jeru-
salém, os monges essenios julgaram oportuno abandonar o mos
teiro. Entáo, para por os livros a salvo, ocultaram-nos ñas
grutas dos arredores, esperando poder retirá-los logo depois de
passada a borrasca. Nao conseguiram, porém, voltar, de sorte
que a partir de 68 d.C. a regiáo de Qumran foi habitada por
tropas militares, romanas ou judaicas, e desde 135 está práti-
camente abandonada. Quanto aos manuscritos, permaneceram
até 1947 inexplorados ñas suas cavernas.
Eis o histórico do importante material de Qumran. Inte-
ressa-nos agora considerar

2. O significado dos manuscritos para a interpretagao


do Novo Testamento

Antes do mais, qual seria a espiritualidade que se exprime


nos documentos do Mar Morto ?

Como indica o histórico dos essenios, é urna espirituali


dade religiosa muito férvida. Os habitantes de Qumran viviam
na expectativa ardente da vinda do Reino de Dous ; julga-
vam ser éles os únicos israelitas incontaminados, os filhos
da luz em meio aos filhos das trevas. O seu isolamento topo
gráfico no deserto significava também isolamento de espi
rito ; em virtude de sua mentalidade estreita, particularista,
nao queriam intercambio com os moradores das cidades (nesté
ponto iam, pois, muito mais longe do que os fariseus). Ao
lado disto, porém, nutriam concepgóes religiosas bastante ele
vadas, estimando os bens invisíveis, a vida eterna e afastan-
do-se do ideal de um messianismo político ; os maus, para éles,
nao coincidiam própriamente com os romanos ou pagaos!
— 153 —
_ -PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/iflSB, g.. 9 e 10

mas com os seus compatriotas representantes da religiáo oficial


de Israel, os quais lhes pareciam pactuar com os costumes
PclgclOS.

Éste fundo de idéias já nos dá a ver que entre os essénios


eos cnstaos ha pontos de contato como há pontos de diver-
3G1IC13..

1. Comecemos por analisar estes últimos.


™in m fA meníaIif!ade essén¡a ou a mentalidade apregoada
pelo Mestre de Justica parte de um pressuposto bem diferente
do que Cnsto apregoa. Ao passo que o Mestre de Justica se
soqucsirava no dosorlo com sou Kmpo do discípulos para
evitar o contalo com os homcns imundos. Jesús razia quostao
comer com os pecadores, de dizer que viera salvar as ovelhas
perdidas, .. .que nao sao os sadios, mas os doentes aue Dre-
cisam de médico (cf. Me 2,16; Le 5,30). Fazendo isto, des-
toava dos fanseus e os escandalizava ; muito mais teria escan
dalizado os essénios, cuja Regra mandava «odiar todos os filhos
das trevas» (110) ; Cristo pregava o amor estensivo até mesmo
aos inimigos (cf. Mt 5,44; 22,40). Por conseguinte, já se vé
que váo seria querer fazer de Jesús urna «segunda edicáo» do
Mestre de Justica ou um discípulo dos essénios, um continuador
da mentalidade déstes.
Outros tópicos concorrem para realgar as diferengas :
b) Ao passo que o Mestre de Justiga aguardava o fim
dos lempos e a inst.aunic.uo do Reino de Deus, por obra de dois
Messias, Jesús tinha consciéncia de ser o Messias pelo qual
estas realidades se iniciaram no mundo : «Eu sou o Messias,
que te falo» (Jo 4,26) ; «É agora o julgamento do mundo»
(Jo 12,31) ; «O Reino de Deus está em meio a vos» (Le 17,21).
c) Além disto, o Mestre de Justiga afirmava repetida
mente sua distancia em relagáo a Deus, confessando-se indigno
pecador ; Jesús, ao contrario, nao manifestava em absoluto a
consciéncia de pecado (cf. Jo 8,46). lile mesmo perdoava
as culpas com desassombro, provocando voluntariamente a
admiragáo dos fariseus, que exclamavam : «Quem pode per-
doar os pecados se nao Deus ?» (Me 2,7). Se a consciéncia
do pecado é a marca dos santos, a falta desta consciéncia em
Jesús, que nao obstante possuia urna alma profundamente
religiosa, constituí um enigma para quem O observa á luz da
mera razáo.

d) Em Jesús nao se encontram vestigios do esoterismo


ou ocultismo que caracterizava os essénios em geral Nada
ha de mais oposto á ideología de Cristo do que urna inicia-

— 154 —
O§LMANUSCRITOS DO MARJttORTO

gao reservada a poucos ; Ele mesmo pregou as claras, em


publico, e mandou aos discípulos anunciassem sobre os te-
lhados o que tivessem ouvido em cubículos (cf. Mt 10,28s ;
Jo 18,20).

2. Apesar de todas estas divergencias de mentalidade,


há quem diga que Jesús foi discípulo dos essénios no periodo
que vai dos doze aos trinta anos de idade ; tena entáo vivido
no deserto ou no monte Carmelo, iniciando-se no esoterismo.
Sem dúvida, os manuscritos do Mar Morto nao sómente nao
oferecem base para esta hipótese, mas, como se depreende das
compnrnc.f)o.s ácima, lovam a rejeilñ-ln. Por sou laclo, o texto
do Evantíelho ó contrario a la) suposigáo, pois refero que, quando
Jesús comecou a pregar em Nazaré, sua patria, os seus concida-
dáos exclamavam :

«Qual é essa sabedoria que lhe íoi dada e que grandes milagres
sao ésses que se fazem por suas máos ? Nao é ésse o carpinteiro o
filho de Maria, o irmáo de Tiago, José, Judas e Simáo ? E suas irmás
nao habitam conosco ?» (Me 6,2s).

Como se vé, os conterráneos de Jesús conheciam perfeita-


mente sua identidade ; sabiam o que fizera até se manifestar em
público : fóra carpinteiro, bem notorio a éles ; daí a surprésa
que experimentaram, quando de seus labios ouviram urna sabe
doria nao adquirida em escola humana.

Contudo os fautores da identidade entre Jesús o o Mestre


de Justiga (nomeadamente Wilson e Allegro) julgam. poder ape
lar para analogias, que eis aqui:

a) O Mestre de Justiga pregava como Doutor inspirado,


reagindo contra o falso espirito religioso de seu povo ; em
conseqüéncia, sofreu perseguigáo por parte dos dirigentes da
nacáo. Nestes pontos coincide com Jesús Cristo.

Nao consta, porém, que naja sido condenado a morte ;


ao contrario, os textos de Qumran dizem que «se reuniu a
seus pais» — expressáo que designa a morte tranquila dos
Patriarcas. Em parte alguma é anunciada a sua ressurreicáo.
Quanto á sua volta no fim dos tempos para julgar o mundo,
só pode ser defendida na base de contcstáveis interpretagóes
dos textos. Numa reflexáo serena verifica-se que os tragos carac
terísticos do Mestre de Justiga coincidem com os que os israeli
tas atribuiam a Elias e aos profetas ; só o assemelham a
Jesús na medida em que Jesús se assemelhou aos profetas.

— 155 —
^PERGUNTE E_ RESPONDEREMOS^ 4/1958, qUj_9 o 10

b) Os monges de Qumran, distanciando-se um tanto do


judaismo oficial, celebravam urna ceia sagrada á noitinha,
em que consumiam pao e vinho bentos. Essa refeigáo era
considerada a antecipagáo do banquete a que o Messias de
Aaráo havia de presidir no fim dos tempos. Ora Jesús, dizem,
celebrou ceia análoga com seus discípulos e mandou repeti-la
em seu nome...

Para avaliar o significado de tal analogía, tenha-se em


vista que ceias sagradas sao rito muito freqüente no culto reli
gioso como tal. Além disto, note-se que, apesar da semelhanca
de ritual, Cristo den á ceia crista (eucaríslica) um sentido
novo, sentido do consumaeáo em relac/io 'ñ coia cssónin ; afir-
mou, sim, que o pao o o vinho sao a sua própria carne e o
seu sangue imolados em sacrificio para selar urna nova e defi
nitiva Alianca de Deus com os homens, em substituigáo da
Alianga travada por intermedio de Moisés ; os essénios em
absoluto nao tinham a idéia de um sacrificio redentor do
Messias, muito menos a idéia de participar désse sacrificio
mediante urna ceia sacramental. — Sendo assim, reconhecer-se-á
que o gesto de Cristo na última ceia podia ter urna fórga de
evocagáo muito particular para os seus discípulos, pois nao era
inédito em seu aspecto exterior ; era, porém, portador de reali-
dade totalmente nova...

Conseqüentemente a tais observacóes, nao há em nossos


dias exegeta de autoridade que, na base dos manuscritos de
Qumran, queira identificar Jesús com o Mestre de Justiga ou
com um essénio. O autor que é tido como protagonista desta
tese, A. Dupont-Sommer, apenas fez insinuá-la de longe, nunca,
porém, a propós como tal. Eis o que ele mesmo declarava em
urna de suas últimas obras (Nouveaux apergus sur les manus-
crits de la Mer Morte. Paris 1956, 206s) :

«Eu osbocara um liROiro paralelismo cjuo visavn rlpsportar a curio-


sidado do loilor, si'in protomior do modo nl^uin solucionar, por incio
de simplificaciio excessivn, um problema dos mais complexos... Soja-
-me lícito lembrar o inicio : «O Mestre Galilcu, tal como nó-lo ¡iprc-
sentam os escritos do Novo Testamento, aparece sob inais de uní
aspecto como surpreendente rcencarnacáo do" Mestre de Justina». Ao
passo que eu me exprimía co incaútelas intencionáis, os meus leitores
suprimiram as palavras essenciais, atribuindo-me a seguinte írase:
«Jesús nao é mais do que surpreendente reencarnacáo do Mestre de
Justica!» Isto implica confundir «ser» e «parecer», implica deixar de
lado urna precisao importante; quem diz «sob mais de um aspecto»
nao dá a entender que a semelhanca nao é total ?».

c) Passando agora aos escritos do Novo Testamento, ve


rificaremos que entre éles e os documentos de Qumran há

— 156 —
expressóes e vocábulos paralelos; chama a atengáo princi
palmente a metáfora de «luz e trevas» para designar a Ver-
dade (ou a Vida) e o erro (ou a morte) ; cf. Le 16 8- Jo 3 19-21-
12,35s ; 2 Cor 6, 14-17 ; Col 1,12. Até o inicio do nosso séculó
sustentavam alguns eruditos que o Evangelho de Sao Joáo
e as epístolas de Sao Paulo adulteraram a mensagem de Jesús
estritamente vasada nos moldes do Antigo Testamento, pois
ousaram mesclar-lhe idéias e expressóes oriundas do mundo
helenista pagáo ; alguns por isto chegavam a denegar ao Apos
tólo Sao Joáo a autoría do quarto Evangelho, julgando que um
judnu nunca loria podido oscrever cm moldes !ño helenistas.
Orn o conhccimoiilo dos textos de Qumran permito hojo dizer
que precisamente os escritos joaneus e paulinos sao os que mais
afinidade de temas e vocabulario apresentam com o Judaismo.
Todavía semelhanga nao implica necessáriamente dependencia ;
pode-se mesmo dizer que nao há tema ou vocábulo comum aos
docum&ntos do Mar Morto e do Novo Testamento que nao esteja
germinalmente contido em algum dos escritos mais antigos da
literatura bíblica.

O estudioso, por conseguinte, nao se deixará transviar


pelas semelhancas que se apontem entre Essenismo e Cristia
nismo. Antes, voltará sua atencáo para a mensagem positiva
e valiosa dos manuscritos do Mar Morto : revelam-nos urna face
nova do Judaismo contemporáneo a Cristo. Ao passo que até
estes últimos anos nos era conhecida quase exclusivamente a
mentalidade legalista, formalista da faegáo farisaica, aparece-
-nos agora o aspecto de um Judaismo interiorizado, profunda
mento religioso e místico, aspeólo que muito mclhor concorda
com a mensagem do Cristianismo. Os documentos de Qumran,
no que éles tém de sadio, nos permitem acompanhar a transigáo
lenta e orgánica da espiritualidade do Antigo Testamento para a
do Evangelho. Constituem o fundo imediato (fundo que nunca
pudéramos reconstituir com tanta precisáo como agora) sobre o
qual se realca com mais clareza e pujanca a mensagem de Jesús
Cristo. Esta se mostra, de fato, correspondente ás sás expecta
tivas do Judaismo ; é o cumprimento das promessas feitas aos
Patriarcas de Israel, deixando de lado, porém, todo particula
rismo e nacionalismo.

— 157 —
^PERGUNTEJE RESPONDEREMOS» 4/1958. qu. 11

M. P. (Volta Redonda) :

11) «A figura do Papa Alexandre VI (1492-1503) nao


depóe contra a santidade da Igreja Católica e, por conseguinte,
contra a autenticidade desta?»

1. Para se proferir um juizo adequado sobre o Papa Ale


xandre VI, torna-se oportuno reconstituir brevemente o seu
curriculo de vida e a mentalidade da época respectiva.

Os sáculos XV e XVI sao marcados pela chamada «Renas-


cenen», movimonio de inlolocluaís o artistas que queriam
restaurar as formas da antiga cultura greco-romana Esta
restauracao, porém, nao devia ficar no plano meramente 'in
telectual (como haviam ficado, no decorrer da Idade Media
os renascimentos carolíngio, otónico, bolonhés...); os homens
dos seculos XV/XVI queriam, segundo matizes diversos fazer
a experiencia de urna vida imbuida da mentaiidade dos clás-
sicos pagaos. Daí se originou naturalmente um ambiente em que
o espirito cristáo, que inspirava a Alta Idade Media, se ia
dilumdo cada vez mais ; a fé se debilitava em nao poucos, o
luxo e a dissolucáo dos costumes iam penetrando as altas cama-
das da sociedade. de sorte que crimes e escándalos nao eram
raros nem mesmo etn familias largamente prestigiadas.

Ora os homens da Igreja eram filhos de tal sociedade ;


o patrimonio mot-il c os cwomplos que rocobiam no lar, eram
assaz precarios. Urna vez promovidos as ordens sacras, é de
crer que no exercicio das suas fungóes eclesiásticas dificilmente
se desvencilhassem da mentalidade renascentista ; para tanto,
fóra preciso que Deus superasse de maneira quase extraordina
ria o que néles havia de humano. O Senhor, porém, nao costuma
intervir extraordinariamente no curso das criaturas sem fim
proporcional ; Ele sabe nao ser absolutamente necessário á
missáo da Igreja que seus ministros sejam pessoalmentc exem-
plares de virtudes, pois Ele dá o que quer por quem Ele quer.
Permitiu, portanto que os eclesiásticos dos séc. XV/XVI se com-
portassem como homens e filhos do seu tempo ; e o permitiu
a fim de demonstrar mais eloqüentemente o vigor de sua Igreja ;
quis evidenciar que nao sao os homens que a sustentam e santi-
ficam, mas é Deus mesmo ; ela é divino-humana, e nao mera
mente humana, pois as vicissitudes de seus membros nao con-
seguem abater a sua tempera. Com efeito, a Igreja atravessou
incólume a época corrupta, e continua hoje a denunciar o pe
cado, mesmo que haja sido cometido por seus filhos mais
graduados.

— 158 —
O PAPA ALEXANDRE VI

É á luz destas idéias que se deve considerar a figura do


Cardeal Rodrigo de Borja, eleito Pontífice com o nome de Ale-
xandre VI.
Éste prelado nasceu na Espanha em 1430 ou 14^1 f™
sobradlo do Papa Calixto ni (1455-58), que o chamou naía
SsSao6Jhe riCOnferÍU,em 1456 a pÚrPUra cSinaS sem que
modriín 2d° sa.cerd?te - costume freqüente naquela época
(Rodugo de Borja so recebeu as ordens maiores
es em
em 1468
1468
SfonS n°Tad°
SfS
aa Bolonha, Tafd-°
onde fez b¡?°/e Alb3)
Alb3no)-
estudos de S tioi tamb¿m o enviou
Seu
jurisprudencia.
O Cardoal Rodrigo ora nolávolmonlc inlcli^.nl.- milito
hábil no trato com os homens. Falava com eloqüóncia e impu-
nha-se pelo garbo de seu porte. Contudo, após a morte de
L-aJixto UI comecou a viver desregradamente ; em 1470 uniu-se
a urna senhora casada, Vanozza de Cataneis, da qual teve quatro
twios: Cesar, Juan, Jofre e Lucrecia. Em 1460 o Papa Pió II
dingiu-lhe urna carta de censura, nao conseguindo, porém,
demove-lo do seu género de vida.
Quem examina as crónicas da época, verifica que a socie-
dade de entáo nao se mostrava escandalizada com os costu-
mes do Cardeal Borja ; estes, afinal, nao destoavam dos de
muitos dignitarios e nobres renascentistas. O que, antes des-
pertava a atengáo e a admiragáo públicas na pessoa do prelado
eram suas qualidades de administrador, diplomata, varáo gene
roso para com os artistas o humanistas ; a estos títulos gozava
tic estima.

Em 1492 morria o Papa Inocencio VIII. Rodrigo de Borja


entao, prometendo beneficios aos eleitores, féz-se promover á
cátedra pontificia... Embora se percebesse que a eleicáo fora
simoníaca (pois Borja nao era candidato em vista) a opiniáo
pública nao se desconsertou pelo fato. Houve mesmo contenta-
mentó geral pela ocorréncia, tanto na península itálica como
no estrangoiro : já que Rodrigo de Borja linha aptidáo para
administrar, julgavam muitos que era o homem indicado para
dirigir o Papado, cujo poder temporal precisava realmente de
bom govérno (a respeito do poder territorial dos Pontífices,
veja-se «Pergunte e Responderemos» fase. 2/1958, qu. 8). Con-
seqüentemente em Roma os festejos oficiáis e populares por
ocasiáo da coroacáo do novo Papa se revestiram de briiho
extraordinario. Quanto ao estrangeiro, eis como o cronista ale-
máo Hartmann Schedel poucos dias após a coroagáo apreciava
o Pontífice :

«O eleito é varáo de grande caráter e grande sabedoria, pruden


cia e experiencia política. Em juventude estudou na Universidade

— 159 —
-PERGUNTEE RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 11

de Bolonha, onde granjeou fama crescente de virtude, aplicacáo ao


trabalho e habilidade em todas as coisas, de sarte que o Papa Ca
lixto III, irmáo de sua máe, o nomeou Cardeal... Gracas á sua
experiencia e ao conhedmento de todas essas coisas, ele se tornou
mais apto que qualquer outro para governar e dirigir o barco de
Sao Pedro... Néle estao associadas a nobreza dos modos, a veraci-
dade, a sa razao, a piedade e o conhecimento de todas as coisas que
convem a tao elevada dignidade o situacáo. Bernaventurado aquéle
que 6 ornarlo do tantas virtudes o elevado a tüo alto gran de superiori-
dado! Esperamos que trabaliu; com utilidado para o hem enmum da
cristandade, que saiba encontrar seu caminho cm meio aos furiosos
assaltos da tempestado e através dos altos e porigosos escolhos do
mar. <> atingir ;i desojada sonda <ln «loria reíoslo- (Chron. Clironicar
Nur(>nihorj: II!).'?. fo. 277b).

Éste juízo é certamente unilateral, nao podendo ser tomado


como criterio para se apreciar objetivamente a pessoa de
Alexandre VI. Reveste-se, porém, de importancia para se
perceber o estado de ánimos do mundo contemporáneo a Ale
xandre VI: a consciéncia moral parece ter estado debilitada,
de sorte que sem grande embarago o público passava por cima
dos vicios e mais atendía aos valores técnicos e intelectuais das
pessoas públicas. Éste fator ajuda a compreender como Rodrigo
de Borja podo sor oloito Papa.

Os primeiros a I os do governo de AJexandre VI confirma-


ram os contemporáneos ñas suas esperangas. Procurou orga
nizar a administracáo e a justiqa em Roma, e entrou em re-
gime de economía tal que seus antigos convivas se subtraiam
aos convites para se sentar á mesa do Papa. Escrevia o embai-
xador de Ferrara, por exemplo :

«O Papa manda servir um só prato... Ascagno, Sforza e outros


convivas ordinarios da Sua Santidadc, julgando desagradável essa par-
cimónia, furtam-se á sua companhia e fogem todas as vézes que o
podem» (citado por Grogorovius, L. Borgia, 87-88).

Em breve, poróm, verifieou-.se que Aloxandro VI nao tinha


energía para manler seus propósitos. O afolo desmedido para
com seus familiares sobrepujou néle o zélo dos interésses
comuns. Foi vitima principalmente do genio ambicioso e vio
lento de seu filho César Borja, dominador político e guerreiro,
diante do qual Alexandre chegava a tremer.
Em 1497 o Papa foi gravemente abalado pela morte de
seu filho Juan, misteriosamente assassinado. Considerando o
golpe como advertencia do céu, tomou medidas para reformar
sua vida pessoal e os eostumes da sociedade ; chegou a nomear,
para éste fim, urna comissáo de seis Cardeais, o que muito
alegrou o povo cristáo. Os projetos, porém, ficaram sendo letra

— 160 —
O PAPA ALEXANDRE VI

morta, pois Alexandre carecia da fórca de vontade necessária a


tal tarefa.

Finalmente aos 18 de agosto de 1503 faleceu de febre


malaria perniciosa, após se ter canfessado ao bispo de Carinóla
e haver recebido a S. Comunháo. Nao tem fundamento o rumor
de que haja sido envenenado ; as testemunhas oculares dos
tatos, como eram os embaixadores estrangeiros em Roma
ignoram tal versño nos relatos que nos transmitiram.
A opiniáo pública se pronunciou logo muito severamente
contra Alexandre VI, nao raro caindo em exafíoros cic sorte
que nao se pode dar crédito a tudo o que se tem propalado
(principalmente em romances e teatros) sobre a sua figura.
2. Que dizer agora do Papa Alexandre VI e da santidade
da Igreja ?
Váo seria querer justificar a vida moral désse Pontifice •
faz-se mister reconhecer a sua indignidade pessoal. Mas nao
e a fraqueza dessa criatura que deve chamar a atengáo do
historiador desapaixonado (o católico lembrar-se-á da pala-
vra da Escritura : «O homem vé na face ; Deus, porém vé
no coracáo», 1 Snm 16,7). Errar ó tño humano (ó coi.sa'fáo
minha) que nao surproende o observador sincero. Deus podia,
sim, usar de providencia especial a fim de preservar do erro
moral os seus ministros na térra ; nao o quis, poróm. Isto
nao seria consoantc ao misterio da Encarnacáo, misterio se
gundo o qual a Majestade Divina se digna vir ao homem sob
as aparéncias do humano e do inepto. Por éste misterio o
Senhor nos ensina que nao é de fórcas e valores criados que
recebemos nossa santificacio, mas é estritamente de Deus,
que se digna apenas utilizar um representante visível. Sem
extinguir a fraqueza humana, sem violentar a vontade livre
dos seus instrumentos, o Senhor apenas nos assegura que as
falhas dos ministros do altar nao constituom obstáculo a
santiricaoáo dos JYms que por cíes procuram a Deus. A I«i-cja
nao deixa de ser santa (ou de possuir a santidade de Deus)
pelo fato de que nem todos os sacerdotes sao santos; a
Igreja e, por ela, o Cristo dáo mais do que aquilo que o
sacerdote, como homem, pode dar, embora só o déem através
do sacerdote.
É o que a figura do Papa Alexandre VI comprova elo-
qüentemente. Em vez de se deter sobre pormenores «sensa-
cionais» da vida déste Pontifice, dilate o observador o seu
horizonte e considere a continuacáo da historia; verificará que,
apesar de todos os seus desmandos, tal Pontifice nao infli-

— 161 —
j.PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 12

giu danos decisivos á Igreja de Deus: nao promulgou urna


só lei que visasse deturpar a disciplina crista (antes, tendeu
mais de urna vez á reforma) ; também nao publicou urna só
definigáo oposta ao dogma, definigáo que servisse para justi
ficar as suas desordens moráis. Ao contrario (e isto talvez
parega paradoxal), Alexandre VI mostrou sempre solicitude
por questóes atinentes á piedade e á vida espiritual, apesar
de suas tarefas de guerreiro e Senhor de corte ; dispensou larga
protecáo as Ordens religiosas a fim de favorecer o fervor e
as atividades das mesmas. — O católico, alias, sabe que a
infalibilidade papal só se exerce quando o Sumo Pontífice
define solcncmcntc, como Mestre supremo da cristandade, que
tal ou tal verdade pertence ao depósito da fé ou da moral
cristas. Nunca é infalível, porém, em atos de sua vida indivi
dual ou em declaragóes que faga como pessoa particular.
Em suma, a historia ensina que o ouro de Deus na Igreja
passa, puro e incontaminado, aos homens, mesmo quando o
Senhor o quer transmitir por meio de máos manchadas e
indignas. Os homens, mesmo os mais próximos do altar, podem
causar mal á Igreja, mas jamáis a puderam, nem poderáo,
destruir.

É esta a mensagem que se prende á figura do Papa Ale


xandre VI, para nos, homens do séc. XX.

H. L. M. (Salvador) :

12) «Como se explica o caso de Galileu ?»

Para se entender o caso de Galileu, torna-se indispensável


reconstituir em primeiro lugar

1. O ambiente religioso e científico


dos séc. XVI/XVn

A Idade Media foi animada pelo ideal da «Cidade de Deus»,


em que o homem procürava unir em harmoniosa síntese os
valores naturais e sobrenaturais, em particular a Ciencia e a
Religiáo. O Humanismo ou Renascimento do séc. XVI foi sola
pando éste ideal, afirmando os valores do homem em termos
ora mais, ora menos autónomos. No inicio do séc. XVII, os sín
tomas de mentalidade leiga, mesmo atéia, já eram tantos que
comegaram a inquietar os ánimos tradicionais.

Foi-se alastrando, sim, um ateísmo revestido da capa de


ciencia. Esta, sem dúvida, progredira muito no séc. XVI: já se

— 162 —
O CASO DE GALILEU

apoiava em observagóes empíricas, levadas a efeito segundo


métodos novos, afastando-se, assim, das conclusóes formula
das de antemáo, sem muito contato com a realidade concreta,
quais eram as conclusóes da Filosofía e da Física medievais.
Enfim, a ciencia, dotada de instrumentos de trabalho cada vez
mais esmerados, tendía a se emancipar da Filosofía e de qualquer
argumento de autoridade (inclusive da fé). A «vertigem da
inteligencia» ia-se apoderando de alguns pensadores, que de ma-
neira mais ou menos confessada chegavam a lancar um brado
de «morte a Deus»; tal é, por exemplo, a exclamagáo de Cam-
panela (1568-1639), frade que chegou a abandonar momentá
neamente a sua profissáo religiosa (mas que acabou tranquila
mente os seus días no convento de Saint-Honoré em París) :

«Alguns cristáos descobriram a imprensa, Colombo descobriu um


novo mundo, Galileu novas estrélas... Acrescentai o uso dos canhóes,
da bússola, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas invengóes
maravilhosas. Os pensadores de ontem eram mangas junto a nos!
Nos somos livres!».

A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de


adulto, julgava que para o futuro poderia dispensar a «tutela
de Deus».

Ao lado dos que nos termos ácima se entusiasmavam por


urna ciencia quase absoluta, havia os céticos, representados
principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que nao
menos perigosamente corroiam as tradicionais concepcóes
cristas. Montaigne peregrinava aos grandes santuarios da Eu
ropa, mas, como dizia um seu contemporáneo, o Pe. Garasse
S. J., «sufocava suavemente, como que com um cordel de
seda, o senso religioso», mediante as suas proposigóes am
biguas.
Diante dessas novas correntes do pensamento, que atitude
tomavam as autoridades eclesiásticas ?

Nos casos de flagrante impiedade e ateísmo, reagiam for-


temente, desconfiando da nova ciencia, movidas pelo desejo de
preservar a verdade e a síntese de todos os valores da cultura
(daí a sua reacáo contra Campanella, Tanini, Teófilo de Viau).
Quando, porém, a rebeldía era hábilmente dissimulada por seus
autores, parece que os juízes eclesiásticos nao avaliavam ple
namente a gravidade do perigo; Montaigne, por exemplo,
submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos cen
sores eclesiásticos ; estes em resposta delicada lhe pediram que
em consciencia tratasse de retocar o que julgasse dever
retocar !...

— 163 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1953, qu. 12

Estas reagóes sao sintomáticas, pois revelam bem um


período de transigáo e incertezas em que os pensadores (sejam
tradicionais, sejam inovadores) ainda nao véem plenamente o
significado de valores novos que váo surgindo no cenado da
civilizagáo. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte dos
inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar
á justa assimilagáo dos elementos em causa ou á incorporagáo
dos elementos novos na síntese antiga.

Foi, por conseguinte, num ambiente de certa reagáo contra


a ft\ roagíio encabezada por urna ciencia aparente, que viveu
Galilco Galilci (1564-1642). Examinemos agora

2. O processo de Galileu

O sistema geocéntrico de Ptolomeu (f 150 d. C.) estivera


em vigor durante toda a Idade Media, quando em 1543 o
cónego Nicolau Copérnico publicou o livro «De revolutionibus
orbium caelestium», em que sugería outra concepgáo : a térra
e os demais planetas giram em torno do sol. A obra foi dedi
cada ao Papa Paulo III, que a aceitou sem contradigáo. Os
doze Pontífices Romanos subseqüentes nao se mostraram em
absoluto infensos a Copérnico ; verdade é que, por falta de
pravas seguras, ninguém atribuía grande verossimilhanga á
nova teoría. Quando, porém, Galileu entrou no cenário da histo
ria, esta mudou notíivelrrmnfo do face.

Galileu, depois de ter aderido ao sistema ptotemaico, a


partir de 1610 professou as idéias de Copérnico, baseadas
sobre observacóes de astronomía recém-realizadas. Com isto
mereceu numerosos encomios, principalmente por parte de
sabios jesuítas (Clavius, Griemberger e outros), que o aplau-
diram como «um dos mais célebres e felizes astrónomos do
seu tempo». Em margo de 1611, tendo ido a Roma (era na
tural de Pisa), lá foi recebido pelo Papa Paulo V em audiencia
particular: prelados e príncipes pediram-lhe que lhes expli-
casse as maravilhas que havia descoberto. O Cardeal Del Monte
em carta ao Gráo-Duque de Florenga atestava :

«Galileu convenceu cabalmente da veracidade de suas dcscobertas


todos os sabios de Roma. E, se estivéssemos ainda nos tempos da
antiga República Romana, nao há dúvida de que, em homenagem ás
suas obras, Ihe mandariam erguer urna estatua no Capitolio» (Favaro,
Le opere di Galilei XI 119).

Até essa época Galileu se mantivera exclusivamente no


dominio da astronomía. Era inevitável, porém, que entrasse

— 164 —
O CASO DE GALILEU

no da Teología. Com efeito, havia quem desconfiasse das teses


de Galileu e o quisesse impugnar em nome de textos bíblicos,
como SI 103,5 ; Jos 10, 12-14 ; Ecle 1,4-6. Foi o que fez Ludovico
delle Colombe.

Galileu defendeu-se em carta a seu discípulo Benedetto


Castelli O. S. B., fazendo consideragóes escrituristicas que foram
posteriormente ratificadas pelos exegetas e até hoje conservam
seu pleno valor na Igreja :

"A Sagrada Escritura nao podo nem mentir nom .se engañar. A
veracidado das suas palavras ó absoluta o inatacável. Aqueles, po-
rém, que a explicam e interpretam, podemso engañar de diversas
maneiras; cometer-se-iam funestos e numerosos erros se se quisesse
sempre seguer o sentido literal das palavras; chegariamos a contra-
dicóes grosseiras, erros, doutrinas impias, porque seríamos forcados
a dizer que Deus tem pés, máos, olhos, etc Em questóes de cien
cias naturais a Sagrada Escritura deveria ocupar o último lugar.
A S. Escritura e a natureza provém ambas da Palavra de Deus;
aquela foi inspirada pelo Espirito Santo, esta executa fielmente as
leis estabelecidas por Deus. Mas, ao passo que a Biblia, acomodando-se
á comprcensáo do comum dos homens, fala em muitos casos, e com
razao, conforme as aparéncias, e usa de termos que nao sao destinados
a exprimir a verdade absoluta, a natureza se conforma rigorosa e
invariávelmente as leis que lhe foram dadas; nao se pode, pois, em
nome da S. Escritura, por em dúvida um resultado manifestó adquirido
por maduras observacóes ou por provas suficientes... O Espirito
Santo nao quis ensinar-nos se o céu está em movimento ou se é
imúvol; so torn forma do globo ou forma de disco; so ole ou a térra
so mnve ou permanece em repouso... JA que o Espirito Santo nño
intcncionou instruir-nos a respeito dessas coisas, porque isto nfio im-
portava aos seus designios, que sao a salvacao das nossas almas, como
se pode, agora,^ pretender que é necessário sustentar nesses assuntos
tal ou tal opiniáo, que urna é de fé e a outra é errónea ? Urna opiniáo
que nao diz respeito á salvacao da alma, poderá ser herética ?» (Fa-
varo, Opere V 279-288).

Por mais sabias que fóssem as ponderagóes de Galileu, a


muitos católicos pareciam naquela época inovagóes inspiradas
pelo principio do «livre exame da Biblia» propugnado por Lu-
tero. Foi o que deu novo aspecto ao curso da historia, motivando
a intervengáo do Santo Oficio : urna comissáo de teólogos, tendo
examinado as teses do helioceíitrísmo de Copérnico, acabou por
dar parecer contrario as mesmas aos 24 de fevereiro de 1616 ;
em conscqüéncia, o Santo Oficio comunicou a Galileu a ordem
de «abandonar por inteiro a opiniáo que pretende que o sol é
o centro do mundo e imóvel, e que a térra se move», assim como
lhe proibiu «sustentasse essa opiniáo como quer que fósse, a
ensinasse ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena

— 165 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 12

de ser processado pelo S. Oficio» (Favaro, Galilei e l'Inquisi-


zione 62).

O astrónomo aceitou dócilmente a intimagáo. Em conse-


qüéncia, aos 5 de margo de 1616 a Congregagáo do índice con-
denou as obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até
que fóssem corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de
Galileu. O processo do S. Oficio fóra secreto e o sabio astrónomo
voltou para Florenga a fim de continuar seus estudos, plena
mente prestigiado pela Santa Sé.
Terminou assim a primeira fase da historia de Galileu.
Comprecnde-sc, porém, que, continuando a estudar as1.ro-
nomia, o famoso autor nao podia deixar de se envolver no novo
no sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se
pronunciar sobre o assunto, passou a defender em termos
cautelosos o heliocentrismo ; em 1623 chegava a propugná-lo
no escrito «II Saggiatore»; éste opúsculo, ofertado ao novo
Papa, Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu (ambos eram
poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontifice. O Cardeal
Hohenzollern, por essa ocasiáo pediu mesmo a Sua Santidade
que se pronunciasse em favor do heliocentrismo ; Urbano VIII
respondeu que esta doutrina jamáis fóra condenada como heró-
tica e que pessoalmente ele nunca a mandaría condenar, em-
bora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de impor
tancia, pois sugere que o decreto da Congregagáo do índice
emanado em 1616 era tido como decreto meramente disciplinar,
nao como decisáo doutrinária).
Muito estimulado pelos sucessos, Galileu pós-se a escrever
nova obra em favor do copernicismo : o célebre «Diálogo...».
Tendo-a submetido á censura eclesiástica, esta lhe concedeu o
«Imprimatur» com a condigáo de que propusesse o heliocen
trismo nao como tese certa (os argumentos apresentados ainda
nao eram tais que fornecessem certeza), rnas como hipótese.
Galileu, porém, nao o fez ; em 1632 publicou o livro como estava,
incluindo, além do mais, a aprovagáo dos censores de Roma e
Florenga !
Éste gesto causou grande agitagño em Roma ; o sabio
deixava naturalmente de gozar da confianga da autoridade
eclesiástica.

Chamado perante o Santo Oficio, Galileu respondeu insis


tentemente que em consciéncia jamáis admitirá como cei'to e
definitivo o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia
apurar, o processo foi encerrado em junho de 1633 : o astrónomo
teve entáo que abjurar públicamente o heliocentrismo e foi

— 166 —
O CASO DE GALILEU

condenado a prisáo branda, onde, com alguns amigos, continuou


a se dedicar aos estudos. Morreu finalmente em Florenga aos
8 de Janeiro de 1642, tendo recebido em seu leito de morte a
béncáo do Sumo oPntifice. Galileu, tido como réu, foi tratado
de maneira que, á luz da praxe vigente na época, era notável-
mente benigna (foi detido como prisioneiro em palacios de
nobres e embaixadores).

3. Um juízo sobre a condenacao de Galileu

A qucstáo «Galileu» tem provocado calorosos debates cujo


interósse se compreende, feito o seguinte raciocinio :

A Igreja ensina que goza da assisténcia de Cristo, a qual


lhe garante infalibilidade em materia de crencas religiosas. Ora,
no processo de Galileu, ela se pronunciou erróneamente em as-
suntos de crencas religiosas. Por conseguinte, váo é o dogma da
infalibilidade da Igreja.

Para se rebater éste silogismo, tém-se feito consideragóes e


distingóes varias. Há quem diga que os decretos da autoridade
eclesiástica nao tinham caráter doutrinário, mas meramente
disciplinar ; nao resta dúvida, porém, de que a doutrina do helio-
centrismo foi de perto ou de longe atingida pela condenagáo
pronunciada sobre as obras de Copérnico e sobre Galileu. Na
verdade, a solugáo do problema religioso é muito mais simples
do que parece.

Concedamos que Galileu foi condenado porque o heliocen-


trismo era tido como heresia (parecia, sim, contradizer a certas
afirmagóes da S. Escritura). Ora, tal condenagáo aínda nao re
dunda em detrimento do magisterio infalivel da Igreja.

Com efeito, éste só se exerce quando um concilio ecumé


nico (universal) ou quando o Sumo Pontífice, ex cathedra, isto
é, exercendo o seu cargo de pastor e mestre de toda a cris-
tandade, define que determinada doutrina dogmática ou moral
deve ser aceita pela Igreja universal. Ora, nom o Papa Paulo V
nem Urbano VIII proferiram, no caso de Galileu, urna definieño
ex cathedra. Os decretos de 1616 e 1633 foram promulgados nao
pelos Sumos Pontífices, mas por Congregacóes Romanas, que
sao órgáos do governo eclesiástico. É verdade que estas Congre
gacóes trabalharam de acordó com os Papas : Paulo V e Ur
bano VIII intervieram ñas fases do processo de Galileu, deram
instrugóes a respeito do mesmo, mas as decisóes fináis foram

— 167 —
«PERGUNTE E,JM5SP0NDEREMOS» 4/_195gL_qu. J2_

assinadas pelos membros das Congregagóes do índice e do


Santo Oficio, nao pelo Papa reinante, de sorte que as Congre-
gacóes eram jurídicamente responsáveis pelos decretos refe
rentes a Galileu. Outro é o trámite de urna infalível definicáo
pontificia : o Papa fala entáo diretamente ; pode pedir o parecer
das Congregagóes Romanas, mas apenas a título de consulta ; o
autor da definigáo fica sendo o Sumo Pontífice.

Muito interessante é que grandes pensadores e críticas católicos


contemporáneos de Galileu entenderam bem que a condenacüo do
astrónomo nao punha cm causa o magisterio infalível da Igreja (ó o
que atesta o cstudo recém-publicado por Léon Petit: L'Affairc Ga-
lileo vue par Descartes ct Pascal, em «XVIIe. siécle», junho de 1955,
231-239). Em 1634, por exemplo, Descartes comunicará, ao Pe. Mer-
senne que nutria dúvidas sobre a condenagáo de Galileu porque pro-
vinha apenas da «Congregacáo de Cardeais nomeados para a censura
dos livros». Em abril de 1634, Descartes declarava ao mesmo corres
pondente que ele (Descartes) tinha o direito de sustentar o seguinte:
«o que os Inquisidores de Roma haviam decidido nao era artigo de
fé, pois para tanto seria necessária a intervencáo de um Concilio».

Conclui-se entáo que os teólogos e certos órgáos particula


res do govérno eclesiástico — os quais nao coincidem com os
órgáos do magisterio infalível da Igreja — se manifestaram
erróneamente no caso de Galileu. Isto nao surpreende o cató
lico. Fora os casos ácima mencionados, o Senhor nao extingue
a deficiencia humana nos seus ministros, apenas providencia
para que esta nao redunde cm detrimento da salvacáo das
almas.

Mas ainda se insistirá : como entender táo drástica rea-


qáo dos homens da Igreja contra Galileu, que objetivamente
tinha razüo ?

Como dissemos, o modo de ver da Idade Media ainda estava


muito arraigaSo em certos círculos eclesiásticos posteriores á
Renascenca.

A Biblia, dentro desta perspectiva, era o manual utilizado


para todos os estudos («psalmos discere», aprender os salmos,
significava entáo «aprender a ler»). Era, por conseguinte, á
Biblia que os medievais iam pedir um juízo sobre as suas nogóes
de astronomía.

Ora eis que, no inicio do séc. XVII, depois de alguns inova-


dores, surgiu Galileu : quería ter razáo propugnando como certa
urna tese de astronomía que parecía contradizer á Biblia.
E, note-se bem, Galileu só podía apresentar argumentos dé-
beis, ainda sujeitos a discussáo científica ; nao obstante, nao

— 168 —
O SEGRÉDO DE FÁTIMA

cedia as intimagóes da autoridade que lhe pedia proferisse suas


idéias como simples hipótese. Além disto, intervinha no terreno
da exegese, formulando principios para a interpretagáo da Escri
tura. Ora ésse proceder nao podia deixar de desagradar ao zélo
dos homens da Igreja.
Auscultando depoimentos proferidos no séc. XVII mesmo,
cré-se que, se Galileu houvesse ficado no plano de urna hipó
tese e nao se tivesse explícitamente envolvido em questóes de
exegese, nao teria provocado a intervengáo do S. Oficio.
As descobertas da ciencia aos poucos deram a ver aos teó
logos que a Biblia nao quer ensinar conhecimentos profanos ;
passaram entáo a distinguir e aceitar o que no sóc. XVII parecia
quase monstruoso, isto é, dois planos que nao se contradizem
mutuamente, mas nao interferem um no outro : o plano das cien
cias naturais e o da Biblia ou da Teología.
A fim de ilustrar quáo arduo devia ser a um cristáo imbuido da
mentalidade dos séc. XVI/XVII admitir o heliocentrismo, seia aquí
observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema •
Lutero julgava que as idéias de Copérnico eram idéias de louco
que tornavam confusa a astronomía.
Melancton, eompanheiro de Lutero, declarava que tal sistema era
fantasmagoría e significava a rebordosa das ciencias.
Kepler (1571-1630), astrónomo protestante contemporáneo de Gali
leu, teve que deixar a sua térra, o Wurttemberg, por causa de suas
idéias copernicianas.
Em 1659, o Superintendente Geral de Wittemberg, Calovius, pro-
olamava altamente que a razáo se «leve calar quando n Escritura falou;
vcriíicava com prazer que os teólogos protestantes, até o último, reiei-
tavam a teoría de que a térra se move.
Em 1662 a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de
Estrasburgo, afirmou estar o sistema de Copérnico em contradicáo com
a Sagrada Escritura.
Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia),
condenou Nils Celsius por ter defendido o sistema de Copérnico.
Ainda no séc. XVIII a oposicño luterana contra o sistema de Copér
nico era forte: em 1744 o pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava
enérgicamente que a teoría do heliocentrismo era abominável invencáo
do diabo.

T. F. (Londrina) :

13) «Que dizer sobre o segrédo de Fátima a s»>r revo


lado cm 1960 ? Tenlio ouvido as mais desencontradas opi-
nioes».

AFLITO (Distrito Federal) :

14) «Quisera inform^oes sobre a famosa questáo Fá


tima ... Há urna parte áa revelacao a ser conheckla só cm

— 169 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958. au. 13 e 14

1960. Segundo soube, esta demora se deve a urna imposicáo nao


da Virgem, mas do episcopado portugués. Porque ?»

Sem querer em absoluto derrogar á estima devida á men


sagem de Fátima, é mister lembremos, antes do mais, que Fá
tima representa na Santa Igreja urna revelagáo particular, e
nao pública, isto é, revelagáo cujo teor nao se impóe como objeto
de fé a todos os fiéis, mas sómente aqueles que tenham con-
viccáo absoluta de que o Céu falou por meio dos videntes. Nao
há dúvida de que as autoridades eclesiásticas, o de modo todo
particular S. S. o Papa Pió XII, tém repetidamente aprovado a
mensagem de Fátima, conferindo-lhe notáveis títulos de estima
e respeito : aos 13 de outubro de 1930, por exemplo, o bispo de
Leiria, terminado o rigoroso inquérito que urna comissáo de
sete membros levara a efeito durante sete anos, proclamou
diante de mais de cem mil fiéis a autenticidade das famosas apa-
rigóes da Cova da Iria. Aos 31 de outubro de 1942, quando se
encerravam as festas jubilares de Fátima, o Sto. Padre Pió XII,
atendendo á mensagem da Virgem, consagrou o mundo ao Cora-
gáo Imaculado de María, e aos 7 de julho de 1952 repetiu a con-
sagragáo da Rússia á Máe do Céu.

Os estudiosos verificam que a historia de Fátima, a prin


cipio conhecida através do inquérito realizado pelo Cónego
Formigáo em setembro/outubro de 1917, tcm sido última
mente anunciada á luz de nova fonte de informaeSes, que sao
as Memorias de Lucia, escritas entre 1936 e 1942, por ocasiáo
do 25* centenario das aparigóes (1917-1942). Lucia ou (no
Carmelo de Coimbra, onde está) Irma Maria Lucia do Coragáo
Imaculado tem^. enriquecido suas narrativas contando fatos
outrora nao divulgados e fazendo apelo a novas comunicagóes
do Alto. Em consecuencia, as revelagóes de Fátima se tém feito
por etapas sucessivas, sendo que ñas últimas alguns autores
julgam difícil discernir os pormenores que pertencem estrita-
mente ao teor da mensagem daqueles que a vidente profere
em seu santo fervor (cf. H. Maréchal, Memorial des Apparitions
de la Vierge dans l'Église. París 1957,146).

Quanto ao segrédo de Fátima, ele se prende á terceira apa-


ricáo de Nossa Senhora, verificada aos 13 de julho de 1917.
Nesta ocasiáo, Lucia recebeu urna comunicagáo da Ssma. Vir
gem, com a ordem expressa de nao a transmitir a quem quer
que fósse. Aproximando-se, porém, o 25« aniversario das apa-

— 170 —
O SEGRÉDO DE FÁTIMA

rigóes, o Exmo. Sr. Bispo de Leiria deu ordem á vidente para


que pusesse por escrito tudo quanto ñas circunstancias da hora
se pudesse revelar. Lucia, entáo, «tendo obtido licenca do Céu
e agindo por pura obediencia», redigiu quatro Relatos de Memo
rias (datados de 1936, 1937, agosto e dezembro de 1941), com
letra clara e fluente, que denota natureza sadia e bem equili
brada, destituida de qualquer pretensáo literaria.
É no terceiro Memorial, datado de 31 de agosto de 1941
que a Religiosa se refere ao segrédo, dedicando-lhe cérea dé
quinze páginas, ñas quais diz brevemente o seguinte :
A mensagem consta de tres parles, duas das quais seriam
ímediatamente reveladas, devendo ficar a terceira ainda oculta
Com efeito, o Cardeal Schuster, arcebispo de Miláo, em sua"
carta pastoral da quaresma de 1942, deu publicidade ás duas
pnmeiras segóes. A terceira se encontra em envelope lacrado
sobre o qual se lé : «Nao abrir antes de 1960» ; interrogada
sobre o motivo desta restrigáo, Lucia responde invariávelmente :
«A Ssma. Virgem o quer assim».

A primeira parte compreendia uma visáo do inferno : Lucia,


Francisco e Jacinta perceberam como que um grande mar de
fogo e néle mergulhados os demonios e as almas. Estas asseme-
lhavam-se a brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com
forma humana, as quais eram arremessadas para todos os lados
como fagulhas num enorme incendio. Os demonios distinguiam-
-se por ter a forma asquerosa de animáis espantosos e desco-
nhecidos, transparentes como negros carvóes em brasa. Está
claro que nao se deve dar valor estrito a estas expressóes : o
demonio nao tem a forma de animal espantoso, pois nao possui
corpo, nem as almas dos reprobos se apresentam com forma
humana. Trata-se de meras imagens literarias, único artificio
apto para incutir 'ás criangas uma nogáo aproximada dos horro
res espirituais ou da dilaceragáo interior que é o inferno.
Na segunda parte do segrédo, Nossa Senhora se referia á
Rússia :

4. guerra (de 1914-1918) vai acabar; mas, se nao deixarem de oíen-


der a Deus, no reinado de Pió XI comecará outra pior.
Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei
que é o grande sinal que Deus vos dá, de que vai a punir o mundo de
seus crimes por meio da guerra, de íome e de perseguicóes á Igreja
e ao Santo Padre.
Para impedir, virei a pedir a Consagraeáo da Rússia a meu Ima
culado Coracáo e a comunháo reparadora nos primeiros sábados.
Se atenderem a meus pedidos, a Rússia converter-se-á e teráo paz;
se nao, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e per-

— 171 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 13 e 14

seguigoes á Igreja. Os bons serao martirizados; o Santo Padre terá


muito que sofrer; varias nacoes seráo aniquiladas...
Por fim, o meu Imaculado Coracáo triunfará!».

Nesta mensagem chama-nos a atengáo, entre outras coisas,


a predigáo de nova guerra mundial (1939-1945), predigáo feita
sob o govérno do Papa Bento XV (1914-1922), a qual se refere
ao pontificado de Pió XI (1922-1939), e nao de Pió XII. O ana
cronismo nao causa dificuldade a Lucia : está convicta de que a
Virgem nomeou explícitamente o Papa que devia assistir ao
comégo da nova catástrofe; para a vidente, o auténtico inicio
das hostilidades teve lugar quando Hitlcr comeQou a executar
os seus planos de conquista na Europa ; conseqüentemente, ao
se travar o acordó de Munique em 1938, ela, longe de se reju-
bilar como se estivesse removida a calamidade, entristecia-se
persuadida de que a guerra já estava em curso.

Quanto ao grande sinal previo á nova conflagragáo, Lucia


julga ter sido a extraordinaria aurora boreal que iluminou o
céu na noite de 25 para 26 de Janeiro de 1938 (das 20,45
horas á 1,15 hora, com ligeiras intermitencias). Ao verificar o
fenómeno, a vidente recordou-se de terrível predigáo da Virgem,
e empenhou-se por obter da Santa Sé as medidas que pareciam
condizer com o oráculo da Máe do Céu. Já, porém, que nao
revelava o segrédo, comunicando explícitamente os desejos de
Nossa Senhora, teve de verificar que ainda nao era chegada a
hora da misericordia e que o mundo devia passar realmente por
dura punigáo.

Finalmente em 1941 Luda, muito estimulada a isto pelas


autoridades eclesiásticas, revelou explícitamente duas partes do
segrédo da Virgem de Fátima. Ao fazé-lo, tratou de dar res-
posta á questáo cruciante : porque esperara vinte e quatro anos
para tornar públicas predicoes de tanta importancia ?

«Pode ser que a alguém parega que eu devia ter manifestado todas
estas coisas há mais tempo, porque a seu parecer teriam, há alguns
anos, dobrado valor. Assim seria, se Deus tivesse querido apresentar-
•me ao mundo como profeta; mas creio que tal nao foi o intento de
Deus... Se assim fósse, pensó que, quando em 1917 Ele (Deus) me
mandou calar — a qual ordem foi confirmada por meio dos que O
representavam —, ter-me-ia mandado falar.

Julgo, pois,... que Deus apenas quis servir-se de mim para recor
dar ao mundo a necessidade que lia de evitar o pecado, e reparar as
ofensas de Deus pela oracao e pela penitencia...
Nao encontrando palavras exatas para me exprimir, teria dito
ora urna coisa, ora outra; querendo-me explicar, sem o conseguir,

— 172 —
O SEGKÉDO DE FATIMA

formaría, assim, talvez, urna tal confusáo de idéias, que viriam (quem
sabe ) a estragar a obra de Deus. ...Minha repugnancia a manifestar
(a mensagem) é tal que, embora tenha sob os olhos a carta na qual
V. Excia. (o Sr. Bispo de LeiriaK me manda anotar tudo de que me
possa lembrar e eu sinta Intimamente que é a hora marcada por Deus
para o fazer, estou hesitante, em verdadeira luta, ponderando se vos
enviarei éste escrito ou o queimarei... Acontecerá o que o Bom Deus
quiser. O silencio tem sido para mim urna grande graca...

Por isso don grabas a Deus, e creio que tudo o que Ele faz
está bem».

Pouco depois de publicada a mensagem, o Sto. Padre,


consoante os dizeres da mesma, consagrou o mundo ao Cora-
gáo Imaculado de Maria (31-X-1942). Ve-se que nao o fez
antes, porque Lucia ainda nao comunicara o segrédo ; esta dila-
cáo, por sua vez, nao se deve a urna imposigáo da autoridade
eclesiástica, mas antes a disposicáo insondável e certamente pro
videncial da Sabedoria Divina, que até nova ordem pedirá silen
cio a vidente. «Creio que tudo o que Ele faz, está bem», concluia
Lucia. Segundo o plano de Deus, a mensagem de Fátima devia
ser, e é, independentemente de qualquer revelagáo profética,
urna exortagáo a emenda dos costumes ou a penitencia e á
oragáo. É isto que absolutamente importa aos homens a fim de
que nao percam os valores verdadeiros e eternos ; qualquer
predigáo do futuro dentro da mensagem de Fátima desempe-
nha papel secundario, servindo apenas para estimular os ouvin-
tes as mencionadas práticas da oragáo e da penitencia.

Guardem os cristáos de nossos dias esta conclusáo, e nao


se deixem agitar pelos comentarios geralmente pouco fundados
que se propalam em torno do segrédo revelado e a ser revelado
(a fantasía popular e certos doutrinadores náo-cristáos explo-
ram indevidamente o misterio). Se queremos responder digna
mente 'á mensagem de Fátima, oremos pela conversáo dos peca
dores e procuremos emendar nossos costumes, depositando com
cega confianga o futuro do mundo ñas máos de Deus e da Máe
do Céu. Fazendo isto, poderemos estar certos de nao haver ne-
gligenciado a voz do Alto ; o que acontecer (conhegamo-lo ou
nao com antecedencia), acontecerá sempre para a gloria de
Deus, e a salvagáo das almas. «Para quem ama a Deus, tudo
coopera para o bem», diz Sao Paulo (Rom 8,28).

Quanto á terceira parte do segrédo, que deve ficar oculta


até 1960, é bem possível que explane a promessa final da
Santíssima Virgem : «Por fim o meu Imaculado Coragáo triun-

— 173 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 4/1958, qu. 13 e 14

fará!» Talvez explique como e quando éste triunfo se dará. Como


quer que seja, procurem os cristáos viver no dia de hoje e cons
truir desde já um mundo novo, exercitando-se em crescente fide-
lidade ao Senhor e á Santa Madre Igreja.

É inútil frisar que nada tem a ver com o segrédo de Fátima


o propalado rumor de que em breve haverá tres dias de trevas
sobre a térra. Esta última «predicáo» se apresenta com creden-
ciais muito Iábeis, de sorte que procedem bem aqueles que nao
se deixam impressionar por seus dizeres. A emenda dos costu-
mes dos individuos o. da sociedade será a única resposta oportuna
a (al «profecía».

CORRESPONDENCIA MIÜDA

E. E. T. (Distrito Federal): — Lamentamos nao saber seu cnde-


a fim de lhe dar pronta resposta. Eis o que temos a lhe dizer :

a) A respeito da pena de morte e a opiniáo da Igreja, veja "P. e


R." 7/1957, qu. 16 ;

b) as questóes referentes ao S. Sacrificio da Missa e as suas re-


lardes com a oblagáo do Calvario, á Tradicáo e á origem da abstinencia
de carne, responderemos nos próximos fascículos. O caso de Galileu é
considerado no presente ;

c) em absoluto nao é lícito a um católico participar de sessáo es


pirita. Pode assistir a casamento na sinagoga ou em templo protes
tante, caso haja^motivo para isto e se entenda que o compareeimento do
católico é mero ato social, o qual nao implica participacáo religiosa alguma.

PETRUS ROMANUS (Distrito Federal) : A propósito do sentido


do pecado, queira ver "P. e R." 6/1957, qu. 2.

CRISTINA (Distrito Federal) : — Como vé, a historia de Galileu vai


estudada ueste número. Sobre o transformismo, veja "P. e R." 4/1957,
qu. 1 ; a propósito do Índice dos livros proibidos, "P. e R." 6/1957 qu. 10.
Seguirá resposta sobre a Igreja e o teatro, -r- O abrandamento da dis
ciplina da Igreja em nossos dias nao implica retratagáo de algum dogma,
por conseguinte nao envolve a infalibilidade do magisterio da Igreja.

SOS (Distrito Federal) : — Vamos aos poucos respondiendo ás suas


perguntas ; continuaremos nos próximos números. Oxalá tivessemos seu
enderéco para nao o fazer esperar tanto !

— 174 —
CORRESPONDENCIA MIÚDA

LAUDELINA (Matías Barbosa) : 0 diluvio bíblico niio foi uni


versal (distinga-se do diluvio geológico) ; nao rccobriu a térra inteira
nem exterminou todos os homens, animáis e plantas que nao estavam na
arca. A catástrofe foi restrita a pequeña regiáo e aos respectivos habi
tantes, isto é, ao cenário que interessava a historia sagrada (sendo Noé
e os seus familiares, no caso, os representantes da humanidade justa e
temente a Deus, ao passo que os homens com quem Noé convivía repre-
sentavam os impíos) ; as expressóes "toda a carne" e "toda a térra" sao
hipérboles habituáis entre os semitas ; designarn, em Génesis 6-9, apenas
o ambiente em que se achavam Noé e seus vizinhos ¡mediatos, único am
biente que interessava o autor sagrado (a linhagem dos cainitas ou dos
maus que se haviam dispersado sobre a térra, fica fora do horizonte do
Livro do Génesis, após Gen 4,24 ; ésses ímpios continuaran! a viver tran
quilamente), i

O texto bíblico nao <|urr dizor <\w o diluvio teiihu <Im-;ulo Jí>0 día» ;
emprega números evidentemente simbólicos.

Veja E. Bettencourt, CIENCIA E FÉ NA HISTORIA DOS PRI


MORDIOS, 3'' ed., AGIR (Rúa México, 98-B, Caixa Postal 3291, Rio
de Janeiro).

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O.S.B.

— 175 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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Rio de Janeiro Tel. 26-1822 — Rio de Janeiro

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