You are on page 1of 46

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoristm)
APRESEISTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
NOVEMBRO
1959

ERGUNTE
e

Responderemos

ANO //
ÍNDICE

ras.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que é a possessáo diabólica ?


Nao coincide com histeria ou alguma doenca que os antigos
nao sabiam devidamente explicar ?" 447

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "Que sentido tem. o episodio do Evangelho ein que Jesús


aparece transferindo para u'a manada de porcos os demonios
que infestavam dois possessox ? Cristo terá causado tanto pre-
juizo aós Iwmens ?" 456

3) "Como avaliar os famosos livros de Charles Marston :


"A Biblia disse a verdade" e de Werner Keller : "E a Biblia
tinka razáo", sendo éste último considerado como um dos maio-
res sucessos da literatura científico-religiosa dos nossos dias ?" 460

III. DOGMÁTICA

U) "Seria pos.iível tracar urna lista don dogmas definidos


pelón Papas no decorrer don séculos ?" 4(W

IV. MORAL

5) "Que ensina a Igreja a respeito da propriedade parti


cular ?
Os antigos bispqs e escritores cristáos nao foram alheios a
ela, inculcando a renuncia aos bens materiais ?" 47U

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Que pensar das famosas Instruyes Secretas dos jesuí


tas, das quais se tem espalhado um ou outro estranlio fragmento
entre nos ?" 484

CORRESPONDENCIA M1ÚDA (añida a infalibilidade papal). 487

COM APROVAQAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano II — N9 23 — Novembro

H. M. (Rio de Janeiro) :

1) «Que é a possessao diabólica ?


Nao coincide com histeria ou alguma doenca que os anti-
gos nao sabiam devidamente explicar ?»

Veremos abaixo sucessivamente o que se entende por


«possessao diabólica» e quais os sinais que comprovem a rea-
lidade désse fenómeno.

1. Em que consiste a possessao diabólica ?

Por «possessao diabólica» entende-se a presenca do demo


nio em determinado corpo, presenga em virtude da qual o
Maligno domina ésse corpo e, mediante o corpo, a alma da
vítima. O demonio nao se une ao corpo como a alma se une
a éste, ou seja (segundo a linguagem técnica), em uniáo subs
tancial. Em relagao á alma, ele é apenas um movente extrín
seco ; só age sobre a alma na medida em que ela depende
do corpo. Age, porém, diretamente sobre os membros désse
corpo, movendo-os a seu capricho, provocando convulsóes, cla
mores, linguagem estranha, ímpetos de furor, etc.

Os possessos também sao ditos «energúmenos», palavra que,


derivada do grego, significa «individuo agitado, influenciado podero
samente por um principio intrínseco».

S. Boaventura (f 1274) assim explica o fenómeno da


possessao:

«Em virtude da sua sutileza ou espiritualidade, o demonio pode


penetrar nos corpos e ai fixar sede; em virtude da sua fdrca, pode
mové-los e agitá-los. O demonio, portante, dada a sua sutileza e
energía,' pode introduzir-se no corpo do homem e atormentá-lo, a
menos que o impega um agente superior. É o que se chama tornar
possesso... Penetrar, porém, no íntimo da alma fica reservado á
substancia divina» (In II Sent., dist. VIII, part. II, a. 1, qu. 1 et 2).

Julgam bons autores que os possessos, nos momentos de


crise, nao tém consciéncia de seu estado anormal.

— 447 —
Da possessáo distingue-se a «obsessáo diabólica», que
consiste em ataques mais brandos de Satanaz, o qual, no caso, t
nao chega a fixar mansáo no corpo da vítima ; foi o que se
verificou na vida de S. Joáo Vianney, o cura d'Ars.

2. Possessáo diabólica e doenca

1. O fato da possessáo diabólica é atestado principal


mente pelos escritos do Novo Testamento, nos quais se dis-
tinguem alguns textos famosos : Me 1,23-28 (o demoníaco da
sinagoga de Cafarnaum) ; Me 5,1-20 (o da térra dos Gera-
sénios) ; Me 7,24-30 (a jovem siro-fenícia) ; Me 9,14-29 (o
possesso ao pé do Tabor) ; At 16,16-18 (a adivinha de Filipes
da Macedónia).
Contudo, vista a semelhanca de sintonías da possessáo
diabólica e de certas doengas, alguns autores medievais e
varios dos modernos (principalmente Charcot et Richer, da
escola da Salpétriére, Franca) tém negado a existencia de
possessos, procurando identificar tanto os casos narrados pelos
Evangelhos como os posteriores com casos de patología na
tural. Assim no S. Evangelho a mulher que Satanaz encurvou,
nao lhes parece ser senáo urna paralítica (cf. Le 13,10-17) ;
o possesso de Gerasa, um louco furioso (cf. Me 5,1-20) ; o
jovem curado após a Transfiguraeáo, um epilético (cf. Me
9,14-29). Tais autores notam outrossim que cada caso de
possessáo está associado a urna doenca: ora o demonio torna
o homem mudo (cf. Mt 9,32; Le 11,14), ora surdo-mudo
(cf. Me 9,24), ora mudo e cegó (cf. Mt 12,22), ora «lunático»
ou epilético (cf. Mt 17,15), ora provoca crises histéricas (cf.
Me 1,26; 9,18-20; Le 4,35).
A identificagáo, porém, de possessáo diabólica com mero
estado patológico seria errónea; e errónea por dois motivos:
a) nos Evangelhos, os autores sagrados distinguem ex
plícitamente entre enfermos e demoníacos:

«(Jesús) curou muitos doentes aflitos por diversas enfermidades,


e expulsou numerosos demonios» (Me 1,34).
«Jesús curou a muitos de suas enfermidades, de seus males e dos
espiritos malignos, e concedeu a vista a muitos cegos» (Le 7,21).
O próprio Cristo mandou aos Apostólos: «Curai os doentes, res-
suscitai os mortos, puriíicai os leprosos, expulsal os demonios»
(Mt 10,8).
Aos fariseus dizia o Senhor; «Ide, anunciai...: eis que expulso
os demonios e fago curas» (Le 13,32).
Entre os sinais característicos dos seus discípulos, o Senhor
mencionava «a expulsáo dos demonios em nome de Cristo, o uso
de línguas novas,... a imposicáo das máos aos doentes, de modo
a serem curados» (Me 16,17s).

— 448 —
Nao se poderia alegar que Jesús e os Evangelistas, no seu
modo de falar, se tenham acomodado simplesmente á con-
cepcáo popular, a qual (dizem os críticos) atribuía as doen-
cas a intervengáp diabólica. Tal acomodacáo equivaleria a
confirmar um erro comum, e erro importante — coisa que
justamente Cristo nao quis fazer quando O interrogaram sobre
a causa da enfermidade que acometía o cegó de nascenga
(pecara ele ou haviam pecado seus pais ?, perguntaram os
Apostólos, recorrendo a urna lógica popular ou infantil). Sa-
be-se que o Senhor entáo fez questáo de dissipar o erro
comum sobre a origem da doenga. Ora Cristo, que em tal caso
assim procedeu, nao teria confirmado sistemáticamente urna
crenga popular errónea concernente á possessáo diabólica.
Mais ainda: quando os fariseus acusaram o Senhor de
expulsar demonios em nome de Beelzebul, Jesús, longe de
replicar que a crenga em exorcismos era coisa vá, muito ao
contrario reivindicou para Si o poder decisivo e absoluto de
exorcizar; em suas palavras, nada transpareceu que fósse
atenuagáo do estrito conceito de exorcismo e, conseqüente-
mente, de possessáo diabólica (cf. Le 11,17-22 ; Me 3,23-27;
Mt 12,25-29).
Observe-se outrossim que em certas ocasióes o Senhor
curou interpelando um ser diverso do paciente, ameagando-o,
mandando-o sair, etc. (tais sao evidentemente os casos de pos
sessáo), ao passo que, em outros episodios, Jesús curou apenas
mediante gestos simbólicos e palavras interpretativas desses
gestos (assim nos casos que parecem ter sido de simples doen-
gas, como o do surdo-mudo da Decapóle, em Me 7,32-35 ; o
do cegó de Betsaida, em Me 8,22-26 ; o do servo paralítico do
centuriáo de Cafarnaum, em Mt 8,5-13).
b) Além de táo claros depoimentos dos Evangelhos, tém-
-se fatos históricos posteriores que comprovadamente atestam
a possessáo diabólica. '

Encontram-se a propósito narrativas bem documentadas na obra


de Zsolt Aradi, El libro de los Milagros (prefacio de Agostinho
Gemelli O.F.M.). México. D.F. 1958; no estudo «Satán», col «Études
Carmélitaines». Paris 1948, assim como no artigo «Possession diabo-
lique» do «Dictionnaire Apologétique da la Foi Catholique» IV Paris
1928, 71-81.
O seguinte episodio, por exemplo. é narrado pelo Pe. Ribadeneira,
discípulo e biógrafo de Sto. Inácio de Loiola (tl556):
O Pe. Ribadeneira conheceu um jovem,. oriundo da Cantabria
na Espanha, e chamado Mateus, o qual no ano de 1541 foi acometido
de estranho mal. Era violentamente prostrado por térra e, deitado,
mal podia ser reerguido por oito ou dez homens robustos. Nao
possuia instruc5¿> nem sabia falar normalmente sen&o a Hhgua
materna; contudo nos momentos de crise discursava fluente e sabia-

— 449 —
mente em diversos idiomas. Nessas mesmas ocasióes, aparecia-lhe
um tumor no rosto; ésse tumor esvanecia-se logo que um sacerdote
lhe aplicasse o sinal da cruz; mas voltava á tona sem demora na
garganta, depois no peito, no estómago, chegando por fim aos pés...
A tal jovem disse urna vez o Pe. Ribadeneira que Inácio de Loiola
estava para voltar á casa e que havia de expulsar o demonio, pres-
suposto causador dos tormentos do rapaz. Ao ouvir tal noticia, a
vitima entrou em grande agitacjío e exclamou: «Nao me fale de Inácio;
é meu maior inimigo, o inimigo mais ferrenho de todos». Ora S.
Inácio de fato foi ter á casa; após lhe haverem relatado o que
acontecía, tomou o jovem á parte... Ninguém soube o que disse ou
fez; o fato, porém, é que em breve Mateus recuperou suas íacuidades,
ficando plenamente livre da tiranía do demonio; féz-se mais tarde
monge camaldulense, com. o nome de Frei Basilio» (Acta Sanctorum,
Julho t. VIII pág. 761, n« 716).
No caso ácima, convém chamar a atencáo para o seguinte: a
a$áo diabólica se evidencia nao tanto pelos fenómenos psíquicos e
somáticos registrados (fenómenos que talvez pudessem ser explicados
naturalmente) como pelos sinais de adversidade á cruz e ao homem
de Deus professados pelo jovem doente.
Els outro caso, datado de nossos tempos, também geralmente tido
como auténtico:
Em 1920 na cidade de Piacenza (Italia) u'a mulher entrou na
sacristía da igreja franciscana de Santa María, e a um dos sacerdotes
presentes disse que sentirá, durante algum tempo, estarem o seu
corpo e a sua alma sujeitos ao dominio de um poder estranho. Por
influencia désse poder, ela cantava operas que jamáis havia ouvido,
dansava até cair exausta, rasgava camisas e lengóls 'Com os dentes,
via coisas a grande distancia, que posteriormente eram comprovadas
como reais!...
O religioso franciscano assim interpelado era capeláo de urna
clínica de psiquiatría; na base de suas experiencias, julgou que a
mulher estava histérica ou louca. Quando esta conclusáo lhe aflorou
á mente, a mulher declarou que nao era enferma em absoluto e que
desejava ser ajudada a se libertar... O sacerdote entáo lhe pediu
que voltasse dentro de alguns días. Tendo ela regressado em breve,
o padre resolveu aplicar-lhe urna fórmula de béncáo (nao de exor
cismo) na igreja; durante éste rito, a mulher pós-se a uivar como
um cao; a seguir.tomando voz de soprano, entoou maviosa cangáo;
depois, repentinamente comec.ou a falar idioma estranho como se
estivesse a conversar com pcssoa invisível; por fim, prorrompeu em
pranto...
Sem demora, o bispo, informado do ocorrido. mandou ao referido
franciscano (que ainda nao se convencerá da pretensa possessáo
diabólica), rezasse o exorcismo sobre a paciente. A primeira aplicacáo
déste rito teve lugar aos 21 de margo de 1920 em presenga de outro
sacerdote franciscano, de dois médicos psiquiatras de Piacenza, da
máe, do esposo e de duas amigas da infeliz vitima.
Logo ao serem proferidas as palavras iniciáis do Ritual («Eu
te exorcizo, espirito imundissimo,...»), a mulher deu um pulo nos
ares e exclamou para o exorcista: «Quem és tu, que ousas medir-te
comigo? Nao sabes que sou Isabó, e que tenho poderosas garras
e fortes punhos?»
O padre a principio julgou que ia perecer, mas, recuperando
ánimo, disse ao Maligno:

_ 450 —
«Sou sacerdote de Jesús Cristo. Pelos misterios da Encarnacáo
da Paixao e da Ressurreicáo de Jesús Cristo, pela sua Ascencáo aos
céus e pela sua promessa de volta no dia do juizo final, mando-te
que nao causes daño algum a esta criatura de Deus, nem aqueles
que lhe assistem nesta casa, nem a algum de seus bens e haveres-
ordeno-te cumpras tudo que eu te disser!»
Prosseguiu entao o exorcista:
«Donde vens?»
— «Ouve bem : queres mandar a mim como se eu íóra teu
escravo», respondeu o Maligno pela boca da mulher.
— «Dize-me: donde vens?»
— «Nao o direi».
— «Em nome de Deus, de Deus a Quem conheces bem, dize-me
donde vens!»
Ao ouvir esta forte íntimagáo, a possessa comecou a retorcer-se
convulsivamente, tomando aspecto desfigurado.
O franciscano insistiu:
«Em nome de Deus, pelo Sangue e a Morte de Cristo, dize-me
donde vens».
— «De desertos lonpinquos».
— «Estás só ou trazes companheiros?»
— «Trago companheiros».
— «Quantos?»
— «Sete».
— «Porque entraste nesse corpo?»
— «Por causa de um amor violento, que nao encontrou correspon
dencia».
— «Nao encontrou correspondencia da parte de quem?»
— «És um idiota».
— «Responde: quem foi que nao correspondeu a ésse amor?»
— «Ésse_ corpo aqui».
E, ao dizer isto, o demonio agarrou invislvelmente a possessa,
espancando-a no tórax.
— «E porque nao quis corresponder?»
— «Porque nao é justo», disse o Maligno em tom de zombaria,
como se a resistencia da mulher fóra ridicula.
Depois de novas sessSes, o demonio, mostrando sempre resisten
cia ao exorcista, declarou entre convulsSes que aos 23 de junho
sairia do corpo possesso! Explicou também que a causa de sua
entrada no corpo da vítima fóra um homem adepto do ocultismo,
o qual quisera aliciar a mulher para as práticas ocultistas, a fim
de se apoderar déla.
Finalmente, chegou o dia 23 de junho, que a paciente esperava
em tensáo frenética. Nessa data o sacerdote dirigiu-se mais urna
vez ao Maligno:
«Ent nome de Deus, conjuro-te a que me obedegas em tudo
que estou para te preceituar».
Nao tendo resposta, mas, ao contrario, vendo a paciente ainda
mais angustiada, prosseguiu:
«Ouvlste?»
Nenhuma resposta.
«Mando-te em nome de Deus e da SSma. Virgem».
Silencio absoluto.
«Se compreendeste o que disse, levanta um braco; em caso
contrario, levanta os dois bracos».
Entáo muito lentamente e como que a contragosto a paciente
levantou um braco.

— 451 —
A vista disso, o sacerdote em tom solene ordenou ao demonio
que abandonasse ¡mediatamente o corpo da possessa.
Urna voz débil e alquebrada respondeu em tom de lamúria:
«Vou a...»
A possessa entáo prostrou-se por térra; foi acometida de tremen
das convulsoes. pondo-se a vomitar grande número de objetos miste
riosos. O exorcista continuou a dar suas ordens com renovada
seguranca:
«Deixa-a, deixa-a...!»
Em breve a mulher ergueu-se; sorriu, tomou a atitude natural
e a voz suave de urna jovem, exclamando:
«Estou curada».
Durante os ritos de exorcismo, o demonio se referira_ varias
vézes a um pequeño globo que a mulher fóra forcada a ingerir havia
sete anos. O psiquiatra Dr. Lupi exam'nou a bacia que a mulher
usara para lancar seus vómitos: no íundo da mesma, encontrou
realmente um pequeño globo de carne de porco em estado duro e
seco, do tamanho de urna avelá, munido de sete saliéncias pontia-
gudas... Misterioso troféu...
Quanto á mulher, nunca mais tornou a ser acometida pelo
demonio a sentir os incómodos físicos anteriores. Aínda vivía há
poucos anos atrás num povoado dos ar.redores de Piacenza, como
avó muito feliz em meio aos seus familiares.
O caso ácima, tido como de auténtica possessáo diabólica, é
cartamente raro no seu género. O relato foi extraído da obra «La
entrevista de Alberto Vecchi con el Diablo», ed. Paoline. Modena 1954.
Tornou-se famoso também o caso do Pe. Surin S. J. (séc. XVII),
que passou a ser possuído pelo demonio que ele expulsara da Irma
Maria dos Anjos.

2. Pergunta-se agora : se há auténticos casos de pos


sessáo diabólica, quais os criterios de que se servem as autori
dades competentes para os discernir ?
Sao criterios, sem dúvida, severos. A fé crista nao é pro-
ponsa a admit'r a intervencáo de fórgas ocultas e estranhas
todas as vézes que um fato surpreendente chame a atengáo
do público A Igreja só admite a hipótese de acáo preterna
tural ou sobrenatural, caso nao haja explicacáo natural possí-
vel para o fenómeno analisado ; as manifestagóes de telepatía,'
clarividencia, percep:áo extra-sensorial, desdobramento da per-
sonalidade, que até o presente sáculo eram tidas como efeitos
de espirites superiores ao homem e, por conseguinte, como
sinais de possessáo diabólica, sao hoje em dia consideradas
como fenómenos meramente naturais, estudados pela Parapsi
cología ; nao podem, pois, ser aduzidas como indicios de agáo
demoníaca num paciente.
Em geral, a Igreja recomenda aos sacerdotes, «nao creiam
com faclidade que alguém esteja possuído pelo demonio, mas
Icvsr^ devidarrente em conta os sinais pelos quais o possesso
so distingue dos que sofrem de... alguma doenga» (Ritual

— 452 —
Romano, De exorcizandis a daemonio n. 3). Em presenga de
um pretenso possesso, portante, o cristáo aplicará o chamado
«principio de economía» (economía de explicacóes preterna-
turais), isto é, primeiramente procurará elucidar o caso se
gundo os mais modernos conhecimentos da psicología e da
medicina, proporcionando ao paciente o íratamento que estas
ciencias Ihe possam eventualmente indicar. Sómente se tal
terapéutica se mostrar de todo vá, será plausível pensar em
intervengáo preternatural. E, para que se possa falar propria-
mente de possessáo diabólica, tornar-se-á necessário outrossim
que o paciente dé sinais de evidente revolta contra Deus ou
de impiedade, imoralidade, falsas érenlas, etc., de sorte que
nao se possa admitir seja o Senhor ou algum dos santos a
causa dos fenómenos analisados. — Ás vézes, dizem os teólo
gos, sao sómente estes sinais de oposigáo a Deus que caracte-
rizam o estado de possessáo diabólica ; os síntomas concomi
tantes de neurastenia podem nao se diferenciar, em absoluto,
dos que acompanham a epilepsia ou a histeria. Verifica-se,
pois, que há estados patológicos (histéricos, epiléticos, neuró
ticos ...) causados por possessáo diabólica, assim como há os
que nada tém que ver com tal intervengáo do Maligno : por
vézes, é difícil, á primeira vista, distinguir entre uns e outros.
O demonio parece mesmo servir-se de certas propensóes pato
lógicas da vítima para manifestar a sua presenga no corpo
da mesma.

A propósito citamos o testemunho de famoso médico francés,


Jean Lhermitte, membro da Academia Nacional de Medicina de
Franga, o qual se especializou no diagnóstico de verdadeiros e falsos
possessos:

«O Maligno pode, com a permissáo de Deus, aproveitar-se da


desordem que urna doenga mental tenha introduzido no composto
humano, para provocar ou intensiiicar urna perturbacáo funcional,
perturbagáo que assim vem a ser síntoma da presenca do Maligno
no corpo do paciente.
Disto se segué, segundo a teología católica, que a... possessáo
diabólica é quase necessáriamente... acompanhada de disturbios
mentáis e nervosos, que a influencia do espirito mau intensifica ou
ás vézes mesmo chega a produzir diretamente.
O médico que queira ser complato em sua profissáo, nao pode
excluir de antemáo a possibilidade de urna causa transcendente na
producSo de certas psico-neuroses cuja origem natural escape ao
estudioso» (Vrais et faux possédés. Paris 1956, 310.
Muito semelhante a ésse é o depoimento de Zsolt Aradi, estudioso
húngaro que se consagrou a tais assuntos:
«Quem é realmente possesso, apresenta tais deficiencias psicoló
gicas e somáticas que o demonio se aproveita délas com facilidade...
Em outras palavras: do caso de psiquiatría ao de verdadeira possessáo,
pode nao haver mais do que um passo de distancia. Urna pessoa
obcecada pelo isolamento, pelo complexo de culpa, pela soberba

_ 453 —
ou pelo complexo de inferioridade... pode ser fácilmente levada ao
estado de possessáo almejado pela malicia do demonio (a pessoa aflita,
porém, nao chegará a tal estado, se consultar o sacerdote e o médico)»
(El libro de los Milagros 73s).

Nao obstante a íntima associaeáo de doenga e possessáo,


o Ritual proibe aos sacerdotes, receitem ou apliquem medica
mentos ou drogas farmacéuticas a quem se aprésente para o
exorcismo ; o uso de remedios naturais ficará era tais casos
estritamente reservado aos cuidados dos médicos, a fim de
que se evite todo aspecto de «curandeirismo religioso» na
Igreja : «Caveat exorcista ne ullam medicinam infirmo vel
obsesso praebeat aut suadeat, sed hanc curam mediéis relin-
quat» (Ritual Romano, De exorcizandis a daemonio).

Ainda urna advertencia: afirmam os teólogos que nao podem,


sem mais, ser considerados casos de possessáo diabólica as situagóes
de obsessáo, impulsionamento ou inibigáo que contrariam o tempera
mento habitual do paciente, embora éste esteja convencido de ser
vítima de urna íórca estranha e maligna.
Há, por exemplo. pessoas que, em teoria, repudiam veemente-
mente atos desonestos, mas se entregam a éles com surpreendente
íacilidade, como se fóssem movidas por cegó poder extrínseco. Outras
pessoas dizem ter ¡menso desejo de orar, mas, ao entrarem numa
igreja, sentem misteriosa angustia; as pernas lhes desfalecem, expe-
rimentam vertigem, os labios lhes iicam cerrados, etc. Basta que se
queiram recolher para ser assaltadas pelos pensamentos mais
obscenos a respeito de Deus, de Cristo, da Virgem Ssma., ou para
que sejam impelidas ai negar proposicóes de íé es blasfemar, etc.; ao
procurarem a S. Comunháo, a garganta se lhes fecha e nao podem
engolir... Sao, em suma, situacSes em qu« a pessoa age como que
irresistlvelmente em desacordó com o que desejaria.
Diante désses casos, o vulgo muitas vézes eré que o demonio
está de posse do paciente, quando na verdade nao há elemento algum
preternatural, mas apenas funcionamento psicológico anormal, que
pode ser saneado mediante psicoterapia congrua, sem recurso a
exorcismo.

Após quanto acabamos de observar, entende-se que a


Igreja tenha repetidas vézes no decorrer da historia admoes-
tado os cristáos a nao darem fácil crédito a apregoados casos
de possessáo.

A título de ilustragáo, ainda vai aqui citada urna exortagáo do


concilio regional reunido em Reims no ano de 1583:
«Antes que o sacerdote empreenda algum exorcismo, deve dili
gentemente informar-se a respeito da vida do paciente, da sua
eondigáo, da sua fama, da sua saúde e de outras circunstancias.
Deve deliberar a respeito com pessoas sabias, prudentes e de alvitre
sensato, pois muitas vézes quem é demasiado crédulo se engaña e nao
raro pessoas melancólicas, lunáticas ou dadas a bruxaria iludem o
exorcista, dizendo que estáo possessas e atormentadas pelo demonio.
Na verdade, tais pacientes mais precisam dos remedios do médico

— 454 —
do que do ministerio dos exorcistas (documento citado por F. X.
Maquart, em «Satán» 330).
Ainda nos últimos anos, ou seja, em 1953, a sabedoria da Santa
Igreja se reafirmava pela palavra do Arcebispo Mons. Afonso Carinci,
Secretario da Sagrada Congregacáo dos Ritos:
«Muitos católicos julgam servir aos interésses de Deus e da
Igreja, uns negando o sobrenatural, outros atributado quase todos
os íenómenos a urna acáo sobrenatural.
A Igreja, sociedade sobrenatural, admite necessáriamente a pos-
sibilidade e a existencia de íatos sobrenaturais, mas Ela exige,
para os mesmos, provas seguras, que pairem ácima de qualquer
dúvida. Ela quer a verdade, nao a probabilidade, por maior que
esta seja.
... A Igreja é amiga da Verdade; recorre a todos as meios para
chegar a ela, e nao tem escrúpulos em nao admitir como milagre
um íato que dé ocasiáo á mínima uuspeita de ter sido produzido por
um agente natural» (transcrito de «Documentation Catholique» t.
LVI, 7 juin 1959, col. 718).

3. Quanto ao motivo pelo qual Deus permite a possessáo


diabólica, ensina S. Boaventura que o Senhor a permite «ora
para manifestar sua gloria (obrigando o demonio, pela boca
do possesso, a confessar, por exemplo, a Divindade de Cristo),
ora para punir o pecado,, ora para corrigir o pecador, ora para
nos instruir. Mas qual seja precisamente a causa por que Deus
deixa o demonio agir, é coisa que escapa á sagacidade huma
na ; os juízos de Deus nos ficam velados. O que há de certo,
porém, é que nao sao injustos» (In II Sent, dist. VIII, part.
II, qu. 1, art. unic).
Muito sabia é a advertencia final do S. Doutor : desista o
homem de sondar as causas precisas dos casos reais de pos
sessáo diabólica ; baste-lhe saber que o Pai do céu nao comete
injustiga ao dispór os caminhos dos homens. Apenas se poderia
acrescentar que, conforme os teólogos antigos, o estado de
possessáo seria geralmente conseqüéncia de pecado grave ; os
modernos admitem ao menos urna imperfeicáo de alma na
origem de tal estado. Todavía o cristáo, na vida prática, tem
certeza de que nada pode prevalecer sobre um coracáo since
ramente contrito e humilde a clamar pela Misericordia do Pai.
4. Em conclusáo, diremos: dentro das reservas que a pru
dencia impóe, a Santa Igreja admite casos de possessáo demo
níaca, os quais em geral ocorrem associados a doengas ner
vosas mais ou menos declaradas. A mesma S. Igreja reconhece
que em épocas passadas houve quem, com demasiada facili-
dade, apelasse para intervengóes diabólicas a fim de explicar
fenómenos extraordinarios (tenham-se em vista principalmente
as «historias de bruxas», muito em voga nos fins da Idade
Media). Em nossos dias o demonio nao é menos ativo no
mundo do que outrora ; sómente sua agáo é mais dissimu
lada. .. Um de seus maiores triunfos é justamente o de fazer
os homens crerem que ele nao existe ; em conseqüéncia, ele
age de maneira mais livre e mais natural!

II. SAGRADA ESCRITURA

R. M. (Rio de Janeiro) ;

2) «Que sentido tem o episodio do Evangelho em que


Jesús aparece transferindo para u'a manada de porcos os de
monios que infestavam dois possessos ? Cristo terá causado
tanto prejuízo aos homens ?»

O episodio dos porcos possessos se encontra em Mt 8,28-34;


Me 5,1-20 e Le 8,26-39. Sendo S. Marcos o mais minucioso dos
relatores, vai abaixo transcrita a recensáo déste Evangelista, que
servirá á análise do episodio:
Me 5, 1 «Chegaram á outra banda do mar, á regiáo dos Gerasé-
nios. 2 E, logo que Jesús desembarcou, íoi-Lhe ao encontró, saindo
dos sepulcros, um homem possuído de um espirito impuro. 3 Tinha
sua morada nos sepulcros; nem mesmo com cadeias podia alguém
prendé-lo, 4 pois muitas vézes lhe tinham p6sto grilhoes e cadeias,
e ele quebrara as cadeias e despedacara os grilhñes; ninguém tinha
fórga para subjugá-lo. 5 Incessantemente, de noite e de dia, ia ele
por entre os monumentos e pelos montes, gritando e íerindo-se com
pedras. 6 Vendo de longe Jesús, correu e prostrou-se diante d'Éle,
7 clamando com voz forte: 'Que queres de mim, Jesús, Filho do
Deus Altissimo? Por Deus te conjuro que nao me atormentes'. 8 Jesús,
com eieito, lhe dissera: 'Sai désse homem, espirito impuro'. 9 E
perguntou-lhe Jesús: 'Qual é o teu nome?' Respondeu ele: 'Legiáo
é o meu nome, pois somos muitos'. 10 E suplicava-lhe insistente
mente, nao os lancasse íora daquela regiáo. 11 Como houvesse ali,
no monte, grande manada de porcos pastando, 12 os espíritos impuros
rogaram a Jesús: 'Envia-nos aos porcos, para que entremos néles'.
13 Ele lhes permitiu tal. Entáo precipitaram-se e entraram nos porcos,
e a manada, em número de dois mil. precipitou-se pelo barranco
no mar, afogando-se neste. 14 Os pastores lugiram e propagaram
a noticia pela cidade e pelos campos, de sorte que a gente acorreu
a ver o que sucederá. 15 Chegando a Jesús, viram o demoniaco
sentado, vestido e em gozo de seu juízo, ele que lora possuído por
urna legiáo; em conseqüéncia, conceberam temor. 16 As testemunhas
contavam-lhes o que se dera com o possesso e os porcos. 17 Entáo
puseram-se a rogar a Jesús que se afastasse de seu territorio.
18 Subindo Ele no barco, suplicava-lhe o demoníaco que lhe permi-
tisse aeompanhá-lo. 19 Jesús, porém, nao lhe permitiu, antes lhe
disse: 'Vai para tua casa e para junto dos teus, conta-lhes quanto o
Senhor fez contigo, e como teve misericordia de ti'. 20 Ele se foi,
portante, e comecou a anunciar na Decapóle quanto lhe fizera Jesús.
E todos se maravilhavam».
Percorreremos abaixo o texto sagrado, procurando elucidar as
dúvidas que sugere.

— 456 —
1. Jesús, certa vez tendo atravessado o mar ou lago de
Tiberíades, foi ter á regiáo dos Gerasénios. Dispensando-nos
de discutir as questóes que tal nome propóe aos críticos, dire
mos que com probabilidade éste territorio ficava a SE do
citado lago. O Senhor terá desembarcado na localidade hoje
chamada Koursi (em grego Chorsis), a qual corresponde á
cidade mencionada em Mt 8,33 ; Me 5,14; Le 8,34; ao sul
de Koursi ficava o promontorio de Moqa' a'dla, largo de 30 m
apenas (há vinte séculos devia ser ainda mais estreito), donde
os porcos se teráo precipitado ñas aguas, conforme Mt 8,32 ;
Me 5,13 ; Le 8,33.
Já esta reconstituicao de ambiente geográfico elucida
um dos pontos obscuros do episodio. Costuma-se indagar como
pode Jesús defrontar-se com u'a manada de 2.000 porcos,
quando o consumo de tais animáis era proibido aos judeus
pela Lei de Moisés. — Leve-se em conta que a regiáo de Gerasa
era habitada em grande maioria por pagaos ; a cidade de
Gadara, que ai ficava, foi o bergo de varios homens ilustres,
poetas ou filósofos, todos pagaos. Flávio José narra que, ao
se revoltarem contra os romanos no séc. I d. C, os judeus,
sob a chefia de Justo de Tiberíades, devastaram os territorios
de Gadara e Hippos; em conseqüéncia, os habitantes destas
duas cidades se yingaram, condenando á morte ou ao cárcere
os judeus que nelas moravam (Bel. jud. II XVm 1 e 5). As
circunstancias etnográficas, portanto, explicam muito bem a
cria^áo de porcos em Gadara ; os numerosos habitantes pa
gaos da regiáo nao estavam sujeitos as proibigóes da Lei de
Moisés.
2. Eis que, ao desembarcar, Jesús viu caminhar ao seu
encontró dois possessos (segundo S. Mateus) ou um só (se
gundo S. Marcos e S. Lucas).
A divergencia nao causa dificuldades a quem tem pre
sente a distingáo, observada pelos autores semitas, entre o
uso precisivo e o uso exclusivo dos números (cf. E. Betten-
court, Para entender o Antigo Testamento, cap. IV). Na rea-
lidade, admitam-se dois possessos, como refere S. Mateus ; os
Evangelistas S. Marcos e S. Lucas, ao falarem de um só, pres-
cindiram ou abstrairam do outro, mas nao o excluiram nem
negaram (prescindiram, porque provávelmente um só demo
níaco chamava de fato a atengáo ; ademáis bastava men
cionar urna só das duas vítimas para que a narrativa fósse
testemunho do poder taumaturgo de Cristo).

A respeito da possessáo diabólica, de seus síntomas e de sua


realidade, veja-se a questáo 1' déste fascículo.

— 457 —
3. Os demoníacos mencionados pelos Evangelistas habi-
tavam em sepulcros ou cavidades rochosas habitualmente re
servadas aos mortos (na Palestina as sepulturas eram, sim,
abertas artificialmente na roca, quando nao se podiam apro-
veitar grutas, naturais para colocar os cadáveres ; eram táo
espacosas que sem dificuldade podiam servir de mansáo a um
homem). A permanencia dos possessos em tais lugares en-
tende-se pelo fato de que se haviam tomado indesejáveis aos
concidadáos ; nao podiam viver senáo em lugares desertes,
dada a agressividade de suas atitudes no convivio social. Nem
causará estranheza a circunstancia de que Satanaz, o intro-
dutor da morte néste mundo, levasse suas vítimas para a
regiáo dos mortos.
As manifestagóes de furor que S. Marcos atribui ao pos-
sesso, explicam-se bem á luz de quanto foi dito atrás : pode-
ráo ser tidas como reacóes doentias, neurasténicas ; nao resta
dúvida, porém, de que Satanaz as fomentava. Sim ; a posses-
sáo diabólica no caso é evidente, pois Jesús, ao ver o infeliz,
ínandou ¡mediatamente que os espíritos impuros o abando-
nassem. Ao que estes replicaram (segundo Mt) : «Porque te
ocupas conosco, Filho de Deus Altíssimo ? Vieste antes do
tempo atormentar-nos ?». Dotados de ciencia penetrante, os
demonios haviam reconhecido em Jesús um Mensageiro Di
vino, cuja vinda possivelmente acarretaria o juízo final da
historia.
O título «Filho de Deus Altissimo», na linguagem usual
de Israel aqui pressuposta, nao era própriamente um título
do Messias ; muito menos significava, ocorrendo nesta passa-
gem do Evangelho, que o demonio tivesse conhecimento do
misterio da Encarnacáo. No caso apenas servia para exprimir
o receio que os maus espíritos tinham de estar diante de urna
hora decisiva para a sua sorte : nao há dúvida, éles sabiam,
e sabem, que até o juízo final a Providencia Divina lhes con
cede tentar os homens sobre a térra, a fim de que estes com-
provem sua fidelidade a Deus ; nao ignoravam, porém, nem
ignoram, que no fim dos tempos os anjos maus seráo definiti
vamente entregues á sua sorte no inferno ; cf. Jud 6 (é o in
ferno que éles designam pelo nome de «abismo» em Le 8,31).
Enquanto tentam os homens sujeitos á provagáo desta vida,
os demonios nao deixam de experimentar em seu íntimo o
tormento do inferno (que é primariamente o tormento de
haver repudiado a Deus) ; contudo aínda se «consolam» me
diante o exercício de suas artimanhas contra os mortais. Era
a cessagáo déste consoló precario que os demonios gerasénios
temiam ao verem Jesús aproximar-se.

— 458 —
4. O Senhor perguntou entáo aos maus espirites qual o
seu nome, nao porque o conhecimento do nome fósse neces-
sário para realizar o exorcismo, mas porque era útil aos Após
telos saberem exatamente o alcance do feito de Jesús. Os
demonios responderam que constituiam urna legiáo. — A legiáo
romana nos tempos de Augusto contava 6.826 homens (6.100
infantes e 726 cavaleiros). Está claro que o vocábulo, no epi
sodio do Evangelho aquí analisado, significa apenas que grande
era o número dos espirites que infestavam os dois possessos.
Os demonios rogaram entáo ao Senhor que os deixasse
entrar nu'a manada de 2.000 porcos situada ñas cercanías.
Estranho pedido !... Entende-se, porém, tal súplica : os maus
espirites sabiam que estavam á mercé de Cristo e que, por
conseguinte, deveriam sair de suas duas vítimas humanas,
como lhes mandara Jesús; contudo, a fim de nao abandona-
rem a térra, visando prosseguir mais tarde sua agáo nefasta,
desejavam encontrar abrigo ao menos em animáis irradonais
da regiáo. Possivelmente também julgavam que, prejudicando
o gado, tornariam os ánimos dos gerasénios infensos a Jesús.
O Senhor concedeu aos malvados o que desejavam. Em
conseqüéncia, os suínos entraram, por sua vez, em estado de
convulsáo diabólica, e convulsáo táo veemente que, já nao
podendo controlar os seus passos, se precipitaran! no lago. A
perda, que provávelmente nao estava ñas intengóes dos espi
rites maus, causou notável prejuízo aos habitantes da re
giáo... Quanto ao possesso, referem S. Marcos e S. Lucas
que ele imediatamente se viu livre, em plena posse de suas
faculdades, sentando-se como discípulo aos pés de Jesús.
Fergunta-se, porém : por que motivo terá Jesús permi
tido o afogamento dos animáis ?
Esta questáo, que preocupa o moderno leitor do Evangelho,
parece nao ter tido importancia aos olhos dos Evangelistas.
Com efeito, nenhum déstes experimentou a necessidade de
explicar e justificar o procedimento de Jesús : parecem só ter
focalizado os beneficios daí decorrentes para os habitantes
do país, os quais foram destarte libertados da tremenda sanha
diabólica. Observam alguns comentadores que nem os mora
dores do territorio parecem ter ressentido mágoa contra o
Senhor Jesús ; em verdade, o texto sagrado nao refere queixa
alguma dos mesmos contra Cristo ; apenas narra que, cha
mados a tomar conhecimento do ocorrido, se surpreenderam
por verem o antigo possesso sentado aos pés de Jesús a ouvir
o Divino Mestre em plena compostura. O contraste entre o
que o homem fóra e o que ele era, os terá impressionado :
pagaos em maioria como eram, devem ter percebido que es-

— 459 —
tavam em presenga de uma fórga sobrenatural; nao sabendo
donde vinha nem de quem era, foram conseqüentemente aco
metidos de temor (nao, porém, de furia nem de odio) ; é, sim,
espontáneo ao homem conceber timidez todas as vézes que se
sinta em presenga do Divino. Atemorizados em sua mentali-
dade simples, pediram entáo ao taumaturgo desconhecido (Je
sús) que se retirasse da regiáo (á semelhanca, alias, do que
fez Sao Pedro ao tomar consciéncia de que estava em pre
senga do Filho de Deus, por ocasiáo da pesca milagrosa ;
cf. Le 5,8-10).
O prejuízo material perde o seu significado diante dos
beneficios espirituais que o episodio acarretou tanto para os
Gerasénios como para os Apostólos. É evidente que o Senhor
Jesús podia ter realizado o exorcismo sem permitir a perda
dos porcos. Nao toca a nos, porém, pobres criaturas, pedir-Lhe
contas de seus gestos ; nem Ele tem obrigagáo de no-las pres
tar. O que podemos dizer com certeza, é que, em toda e qual-
quer hipótese, a conduta de Cristo nao foi injusta ; o Senhor
procedeu conforme a sua sabedoria e santídade, manifestan
do-nos, da maneira que Ele julgou oportuna, seu absoluto do
minio sobre todas as criaturas : sobre os irracionais, sobre
as almas e os corpos humanos, até sobre os demonios, que os
homens tanto costumam temer! Os maus espíritos nada po-
dem sem a permissáo de Deus...
Eis as idéias que devem guiar a mente do cristáo ao ler
o episodio dos possessos libertados em detrimento de uma
vara de suínos.

G. J. M. (Diamantina) :

3) «Como avaliar os famosos livros de Charles Maratón:


«A Biblia disse a verdade» e de Werner Keller: «E a Biblia
tinha razáo», sendo éste último considerado como um dos
maiores sucessos da literatura científico-religiosa dos nossos
días?

Em nossa resposta focalizaremos diretamente o livro de W.


Keller; os principios explanados aplicar-se-ao outrossim á obra de
Marston.
O volume «E a Biblia tinha razáo» se deve a um jornalista
alemáo que, em viagens pelo Oriente e o Egito, confrontou as
páginas da Escritura do Antigo e do Novo Testamento com os
documentos da arqueología, da paleontología, assim como com as
condlg5es geográficas e climatéricas locáis, concluindo finalmente
haver estupenda concordia entre o que a Biblia descreve e o que os
dados da ciencia atestam. Os resultados das suas averiguares, ele
os consignou numa obra de 440 páginas (original alemao), a qual

— 460 —
deu o titulo triunfante: «Und die Bibel hat doch rceht! — E, apesar
de tudo (o que a crítica racionalista tem dito), a Biblia tem razáo!»
O livro se apresenta como eloqüente apología em favor da
Escritura Sagrada e da fé crista, de mais a mais que o seu autor nao
íaz profissáo de determinado credo religioso, mas, no limiar do
volume, se apresenta como observador objetivo. Nao poucos leitores
da obra reconhecem ter sido largamente beneficiados por ela, corrobo
rando a sua fé. Tendo aparecido em outubro de 1955 numa tiragem
de 10.000 exemplares, a edicao alema tres meses depois, ou seja,
em Janeiro de 1956, já estava na sua sexta tiragem, atinando um
total de 100.000 exemplares publicados. As traducSes se tém repro-
duzido em diversos idiomas.
Tal é o livro qué devemos agora submeter a urna apreciacáo
serena.

1. «Pros» e «contras»

1. Nao deixaremos de realgar em primeiro lugar o que


a obra tem de valioso.
Nao há dúvida, o estudo de Keller contribuí poderosa
mente para se reconstituir o cenário histórico e geográfico de
muitos episodios bíblicos que até época recente eram tidos
por certos críticos como fábulas. Keller mostrou, de maneira
acessível a grande número de leitores, que de fato existem
os dados de cultura humana sobre os quais tal e tal narrativa
bíblica se constrói; apontou outrossim varios fenómenos ainda
hoje verificados ñas térras bíblicas, fenómenos que muito se
assemslham aos de algumas narrativas do Antigo Testamento,
dando assim a ver que a historia sagrada nao é táo estranha
quanto parece e que o Senhor Deus nao precisava de fazer
milagres inéditos para realizar varias das interven^óes de que
fala a Escritura.

Na verdade, sabemos que o Todo-Poderoso costuma servir-se


de instrumentos para produzir certos dos fonómenos que nos impres-
sionam. Tém-se entáo fatos milagrosos nao por sua substancia, mas
apenas pelo modo (repentino, duradouro, fora da estagao normal...)
como foram provocados. Tal terá sido o caso, por exemplo. das
pragas do Egito, excetuada apenas a última: conforme- diz Keller,
aluvlóes extraordinarias dos lagos abissínios terao comunicado ás
aguas do Nilo um colorido pardo avermelhado, lembrando o do
sangue (donde dizer-se que as aguas «se converteram em sangue»;
cf. Éx 7,14-24). No tempo das endientes do rio, as ras e os mosquitos
se multiplicam no Egito, ás vézes de modo a tornar-se verdadeiras
pragas.(cf. Éx 7,26-8,15); por toda a parte entáo seguem-se pestes
de animáis (cf. Éx 9,1-7)... As nuvens de gafanhotos sao flagelo
tipleo das regioes do Oriente (cf. Éx 10,1-15). O mesmo se diga das
trevas que repentinamente recobrem a térra: devem-se ao chamsin,
também chamado sbnum, vento ardente que levanta grandes massas
de areia, encobrindo o sol, de modo a produzir atmosfera escura
em nleno d'a (cf. Éx 10,21-23). Veja-se a propósitfla^fcjSaR^^da II
parte do livro de Keller.

- 461 - /©*»
A travessia do Mar Vermelho, sugere aínda Keller (Parte III
cap. 1), se terá dado por meio de um vau que em determinadas
épocas se abria (como atestam documentos arqueológicos) e que o
Senhor Deus terá tornado transitável íora das previsóes comuns,
precisamente pelo espaco de urna noite, para dar passagem á caravana
israelita (note-se bem: o maravilhoso do íenómeno terá consistido
na modalidade segundo a qual se abriu a via entre as aguas, n&o
na própria abertura de passagem no mar). Por parte da fé católica,
nada se opoe a tais interpretares dos fenómenos do éxodo de
Israel, pois, como foi dito atrás, Deus costuma utilizar as leis e os
acontecimentos naturais para realizar seus designios acerca dos
homens.
Embora estas verificac6es concorram para dar ás narrativas
bíblicas um sentido vivo e bem assentado na historia, impóem-se
contudo importantes restricóes ao método e á obra de W. Keller.

2. Com efeito. Quem afirma que a Biblia tem razáo por


que se encontraram dados arqueológicos que comprovam suas
narrativas, deve precaver-se contra grave ilusáo que daí po-
^deria decorrer : a ilusáo de crer que a Biblia foi escrita a fim
de ensinar aquilo mesmo que as ciencias naturais ensinam,
ou de crer que, quando a Biblia alude a natureza, á geografía
e á historia, alude a isso com o mesmo objetivo que as ciencias
naturais visam.. .
As ciencias naturais intencionam, sim, descrever os fenó
menos e sua evolü;áo. Tal, porém, nao é a finalidade visada
pelos autores sagrados : referem-se ao homem e ao universo,
isto é, as mesmas criaturas de que tratam as ciencias natu
rais, nao para dizer quais as causas próximas (causas geoló
gicas, biológicas, antropológicas...) dos fenómenos, e, sim,
para indicar qual a Causa Suprema de todas as criaturas e o
que cada urna destas vale á luz de Deus e da etemidade. Na
verdade, poder-se-ia dizer que a mensagem da Biblia comega
onde a das ciencias naturais termina ; nao há própriamente
convergencia, mas superposigáo de objetivos no caso : a cien
cia visa explanar a «Física», isto é, o aspecto natural e tem
poral, das criaturas, ao passo que a Escritura se propSe ensi
nar a «Metafísica», isto é, o valor sobrenatural e eterno das
mesmas criaturas. Onde o dentista suspende seus estudos por
falta de microscopio e telescopio necessários para prosseguir
a observagáo dos fenómenos, ai comega própriamente a falar
a Escritura Sagrada, explanando o aspecto transcendental
dos mesmos fenómenos ou dos últimos elementos da materia
(energía, eletrónios, nebulosa primitiva, etc.). É o que se po-
deria reproduzir pelo seguinte esquema :

«METAFÍSICA» (aspecto transcendente da realidade): objeto da Es


critura
«FÍSICA» (aspecto natural e empírico da realidade): objeto das
ciencias

— 462 —
Está claro que, ao expor o sentido «metafisico» das cria
turas, a Biblia tem que aludir a um ou outro dos aspectos da
«Física» ou das ciencias humanas. Tais aspectos, porém, sao
acidentais na perspectiva da S. Escritura, ao passo que éles
sao essenciais dentro do programa do dentista. Donde se vé
que, indepsndentemente do que as ciencias naturais fornecam
para comprovar as narrativas bíblicas, estas tém sua mensa
gem própria e muito importante : mensagem religiosa, teo
lógica. É para esta que o exegeta deve voltar primeiramente
a sua atencáo e a dos seus discípulos. Caso se encontrem do
cumentos que ilustrem a queda dos muros de Jericó ou as
guerras dos israelitas contra os cananeus ou episodio bíblico
semelhante, o exegeta agradecerá ao dentista tal documen-
tagáo ; nunca, porém, se julgará obrigado a «forjar» teorías
e hipóteses aptas a colocar urna narrativa bíblica no plano
das descricóes profanas, como se ésse «forjar» fósse traba-
lho de importancia decisiva para se dizer que a Biblia tem
razáo. O exegeta bem orientado sabe de antemáp que nao há
contradicáo entre ciencia e fé e que, por conseguinte, quando
os autores sagrados desceram ao plano dos dentistas, nao
cometeram falhas (desde que os seus dizeres sejam entendidos
dentro das regras do género literario que adotaram; muitas
vézes bastava-lhes falar de maneira pré-científica, popular,
geralmente aceita entre os homens nao imbuidos de técnica);
o exegeta, porém, sabe que os hagiógrafos geralmente versa-
vam num plano superior ao dos estudiosos da natureza e que,
conseqüentemente, as coincidencias com as afirmacóes déstes
sao de certo modo acidentais.
Pois bem ; a posigáo que Keller mediante o seu livro po-
deria sugerir, é a que acabamos de censurar : seria a posigáo
de quem pensa estar obrigado a encontrar documentos pro
fanos que comprovem os quadros bíblicos á luz da razáo
humana, como se nao houvesse outra mensagem, e mensagem
muito mais importante, a deduzir das páginas sagradas, O
sentido sobrenatural, teológico da S. Escritura se esvaneceria
em conseqüéncia dessa posigáo exegética. - ^

2. O concordismo.. .

1- A atitude que ácima aponíamos como inadequada,


toma técnicamente o nome de concordismo, nome que por si já
indica quanto ela tem de pouco plausível: é a tendencia a
estabelecer, por vézes de maneira artificial e pouco convin
cente, concordia entre as narrativas bíblicas e as ciencias na
turais, como se necessáriamente aquelas e estas visassem des-

— 463 —
crever o mesmo objeto do mesmo ponto de vista (isto é, a
face externa, emperica da realidade).

Um dos casos mais típicos de concordismo é o que se refere


á interpretacao das elevadas cifras dos «anos de vida» dos Patriarcas
bíblicos (cf. Gen 5 e 11): Adao teria vivido 930 anos, Matusalém
980, Henoque 365, Lameque 777 anos, etc. Somando essas cifras, os
concordistas pretendem afirmar, em nome da Biblia, que do primeiro
homem até Cristo decorreram cérea de 5000 anos apenas; já que
esta proposicáo entra em confuto com evidentes dados da ciencia,
procuram resolver a difícil ldade ora asseverando que faltam alguns
poucas nomes ñas tabalas genealógicas de Gen 5 e 11, nomes que,
se fdssem acrescentados, permitiriam a plena concordia..., ora
asseverando tratar-se, nessas tabelas, de anos lunares, o que redu-
ziria um pouco a extraordinaria longevidade dos Patriarcas, etc.
— Essas explicac5es pressupóem que o autor bíblico tenha intencio
nado, á semelhanca de cronista profano, atribuir valor matemático,
de-cronometría, aos mencionados números. Ora éste pressuposto é
totalmente erróneo. O autor sagrado estava longe de querer descrevar
o mesmo objeto que um cronista; mediante os números que ele
utilizou. ele visava apenas designar qualidades ou predicados dos
Patriarcas nomeados, isto é, os predicados da venerabilidade e da
autoridade que, para um oriental antigo, eram s'mbolizados por
veneranda velhice. Desista-se. portanto. de fazer «concordia» entre
a cronología profana e a pretensa cronología bíblica, em Gen 5 e 11;
esta pretensa cronología bíblica nos dois capítulos do Gen simples-
mente nao existe; o hagiógrafo visava em tais seccóes a «Metafísica»
ou a Filosofía religiosa, nao a «Física» ou a historia profana concer-
nente a AdSo, Matusalém, Henoque, Lameque, etc. Cf. «P. R.»
17/1959, qu. 5.
Outro exemplo de concordismo versa sobre a interpretacáo do
«hexaémeron» ou dos «seis dias» da criagáo, em Gen 1, 1-2, 4. Verifi
cando que o mundo nao apareceu feito ao cabo de urna semana, os
concordistas asseveram que os seis dias sao períodos longos ou
indefinidos, que éles fazem corresponder a seis eras geológicas de
que falam as ciencias naturais; e assim julgam chegar a estupenda
concordia... Na verdade, nao percebem que o autor sagrado nao
queria em absoluto descrever as fases de formacáo do mundo e do
homem; mencionando a criacáo dentro de seis dias de trabalho e
um de repouso. visava referir nao urna tesa de geología, mas incutir
iim preceito de moral religiosa, isto é, a lei da observancia do sábado;
queria, sim, dar fundamento e autoridade a esta, apresentando a
semana de um operario humano como que consagrada e santificada
desde o inicio do mundo pelo próprio Deus. O Cr'.ador, por tal
motivo, é concebido poéticamente a produzir o mundo dentro do
currículo de urna semana! — Mais urna vez desista-se de concordia
artificial no caso, e leve-se em conta a finalidade puramente teológica,
nao cosmológica, visada pelo texto bíblico...

2. Por fim, será preciso frisar que o criterio para se


admitir ou nao uma das interpretagóes naturalistas que os
autores modernos costumam dar aos fenómenos bíblicos (pra-
gas do Egito, travessia do Mar Vermelho, maná do deserto,
queda dos muros de Jericó, etc.), o criterio, dizemos, nao é
nem o «médo» dos milagres ou do sobrenatural (a existencia

— 464 —
déstes nao «espanta» o exegeta católico) nem também o
«gósto» do maravilhoso ou o désejo de contemplar a Onipo-
téncia de Deus a se manifestar continuamente através da
historia sagrada. Nao ; nem racionalismo nem mística precon
cebidos poderáo servir de normas de orientagáo para o exe
geta ; éste interpretará o texto bíblico norteando-se prima
riamente por criterios literarios e filológicos, pois a Biblia é,
segundo o seu primeiro aspecto, um documento literario, redi-
gido conforme as leis do estilo e do expressionismo orientáis
e, como tal, ela tem que ser abordada (Pió XII na ene. «Di
vino afilante Spiritu» lembrava que toda interpretagao teoló
gica da S. Escritura há de se basear estritamente no sentido
literal do texto bíblico). O exegeta sabe que, procedendo dessa
maneira objetiva, destituida de preconceitos (preconceitos
ditados ou pelo «médo» dos milagres ou pelo «gósto» do ma
ravilhoso), chegará sempre a conclusóes aptas a fomentar a
edificagáo e a piedade. Para tirarmos um proveito espiritual
da leitura da Biblia, nao é preciso que de antemáo ditemos
aos estudiosos quais as proposigúes de piedade ou de ciencia
natural a que éles devem chegar, mas deixemo-los trabalhar
sem preconceitos, a Iu2 da filología e da Revelagáo bíblicas
em geral, e certamente os resultados obtidos redundaráo em
sólido alimento da piedade.

Em conseqüéncia déstes principios, verilica-se que nao se podem


de antemáo nem condenar nem aprovar as interpretacOes naturalistas
que Werner Keller e outros autores modernos d&o a certos fenómenos
bíblicos. Apenas de antemáo se reconhecerá que Deus, conforme a
sua sabedoria, se pode ter servido (como, alias, costuma servir-se
aínda hoje) de causas segundas ou de agentes naturais, para se
manifestar aos homens. Se de fato se serviu de tais causas segundas
em tal ou tal episodio biblico, é esta urna questáo que se há. de
estudar caso por caso, analisando o estilo de cada texto biblico em
particular.
Keller parece exagerar por vézes a busca de interpretacSes naturais
para alguns episodios escriturísticos, como, por exemplo, a aparigáo
da estréla aos magos (cf. Mt 2, 2. 9). Em vez de procurar na historia
profana um fenómeno semelhante ao que narra o S. Evangelho
(procura sutil e pouco convincente), reconheca-se no caso, com a
maioria dos bons exegetas, tratar-se de fenómeno realmente mila
groso; cf. «P. R.» 3/1958, qu. 9.

Eis as observagóes que se poderiam fazer á obra do fa


moso jornalista alemáo : é trabalho em varios pontos louvável,
o qual, porém, acarreta o perigo de se obliterar o ponto de
vista próprio e a mensagem principal, perene, da Escritura
Sagrada.

— 465 —
III. DOGMÁTICA

ESTUDIOSO (Rio de Janeiro) :

4) «Seria possível tracar urna lista dos dogmas defini


dos pelos Papas no decorrer dos séculos ?»

A questáo é assaz oportuna, pois exprime urna idéia que muitas


vézes aflora ao espirito de quem ouve falar de definigóes papáis:
nao poucos tém a impressáo de que os católicos caminham a toques
de autoridade, e de autoridade arbitraria... Estudaremos, portanto,
o assunto, analisando primeramente o significado de urna definicáo
pontificia e, a seguir, focalizando as definicóes papáis que os documen
tos da historia nos deixaram consignadas.

1. O significado de urna definicáo pontificia

1. Tenha-se consciéncia, antes do mais, de que urna de


finicáo papal nunca é imposicáo brusca ou repentina de al-
guma sentenga. As definigóes representam geralmente o termo
final de um processo lento, durante o qual urna verdade con-
tida no depósito tradicional da Revelagáo vai aflorando ple
namente á consciéncia da hierarquia sacerdotal e dos fiéis
em geral. Em outros termos : as definigóes nao sao senáo
a formulacáo explícita e solene de u'a maneira de ver já im
plícitamente existente na Cristandade desde os tempos de
Cristo. E o motivo pelo qual se dá essa formulagáo solene é
geralmente o surto de alguma heresia que tente negar ou
obliterar a sentenga em foco. As definigóes pontificias, por
conseguinte, tém sempre caráter extraordinario, excecional.
Quanto ao magisterio ordinario da Igreja, ele se exerce pela
pregagao unánime do episcopado unido ao sucessor de S. Pedro,
o Papa. Donde se vé que nao é necessário, seja urna verdade
solenemente definida pelo Sumo Pontífice, para que pertenca
ao depósito da fé ; basta, para isto, tenha sido sempre e em
toda a parte professada pelos cristáos («quod ubique, quod
semper, quod ab ómnibus creditum est, hoc est etenim veré
proprieque catholicum. — O que todos em toda parte e sempre
acreditaram, isso é verdadeira e própriamente católico», diría
Vicente de Lerins em meados do séc. V).

Das nog5es ácima também se depreende que nao se «criam»


dogmas na Igreja. Assim como num organismo vivo nao nasce nem
se cria algum órgáo da noite para o dia, mas, ao contrario, qualquer
fenómeno somático é expressáo da estrutura e da vitalidade perma
nentes do individuo, assim também na Igreja nao se praticam inova-
cOes de estrutura; ao contrario, qualquer aíirmaeáo auténtica dos
cristáos nao é senáo o desdohramento do depósito da Palavra e da
Vida que Cristo colocou em seu Corpo Místico e que Ele conserva

— 466 —
sob a assisténcia do Espirito Santo. Nunca se poderá inculcar demais
que a Igreja nao é simplesmente urna escola, muito menos urna
Cámara Legislativa, mas um organismo vivo, o Corpo de Cristo
prolongado na térra, Corpo onde tudo se processa segundo as leis
da vida, ou seja, passo por passo, homogéneamente, mediante a
colaboracáo de membros superiores e membros inferiores.

2. Voltando a focalizar diretamente as definigóes papáis,


observaremos que tres condigóes devem ser necessáriamente
preenchidas para que alguma proposicáo do Romano Pon
tífice tenha a autoridade de sentenca infalível (cf. «P. R.»
14/1959, qu. 3) :

1) Requer-se que o Papa fale «ex cafhedra», isto é, como Pastor


e Mestre da Cristandade, nao como doutor particular.
Nao há, porém, trámite prescrito para o pronunciamento do
Pontífice. Nao se exige, portanto, que o Santo Padre, antes de se
definir, consulte algum concilio, pois éste requisito suporia que o
concilio possa exercer influencia restritiva sobre a autoridade papal
ou esteja ácima do Papa no govérno da Santa Igreja.
2) O objeto da definigáo infalivel sao apenas proposigóes de
fé e de moral, isto é, normas relativas ou k crenga ou á conduta
dos cristáos neste mundo.
3) É necessário outrossim que o Sumo Pontífice intencione
proferir sentenca definitiva sobre o assunto focalizado.
Sómente tal sentenga definitiva goza do privilegio da infalibi-
lidade. Éste nao se estende nem aos argumentos previamente apre-
sentados para fundamentar a definigáo nem ás conclusóes que
desta decorram.

Quanto aos sinais pelos quais se pode reconhecer urna


definipáo infalível, deve-se dizer que nao há fórmula de reda-
gáo obrigatória. Basta que o Pontífice manifesté explícita
mente sua intencáo de declarar alguma doutrina como perten-
cente ao depósito da fé ou como contraria a éste. Os termos
habitualmente usados sao : «definimus, auctoritate apostólica
definimus...» ou «definitive damnamus et reprobamus, aucto
ritate Dei et beatorum apostolorum Petri et Pauli damnamus
et reprobamus...».

Há casos, porém, em que o documento pontificio é redigido de


tal modo que a simples análise dos termos1 nao permite aos teólogos
dizer se estáo diante de alguma definigáo «ex cathedra» ou nao. Em
tais circunstancias, será licito julgar que nao se trata de sentenca
obligatoriamente imposta á íé dos cristáos, pois ensina a Moral:
«Non est imponenda obligatio de qua certo non constat. — Nao se
deve irripor obrigacao de que nao conste com carteza». Todavía,
mesmo em tais casos, pode haver para os cristáos grave dever de
crer na proposigáo focalizada, dever decorrente de outra fonte, isto
é, do ensinamento comum dos Sumos Pontífices ou do episcopado.
É o que se dá, par exemplo, quando se examina a encíclica
Arcamun do Papa Leáo XIII (10 de fevereiro de 1880). Éste documento
professa a instituigáo divina do casamento, a indissolubilidade do

— 467 —
mesmo, assim como a autoridade integral e exclusiva da Igreja
sobre o matrimonio cristáo. A redacSo das frases, porém, nao permite
asseverar que tais doutrinas estejam ai solenemente definidas; nao
obstante, a todos os cristaos incumbe estrito dever de as aceitar,
porque sao verdades ensinadas pelo magisterio universal e trad'cio-
nal da Igreja. — O mesmo se diga da encíclica Providentissimus Deus
(18 de novembro de 1893), em que o mesmo Pontífice afirma a nocáo
católica de inspiracáo bíblica, assim como a absoluta verac'dade do
texto sagrado. S. Santidade, embora nao tenha ai usado as expressóes
características de urna definicáo solene, incutiu verdades que, em
vista do ensinamento comum da Igreja, sao obrigatórias para
todos os fiéis.

Destas observares se depreende quáo pouco a Igreja ou


os Papas fazem questáo de definir dogmas ! Qualquer defini-
gáo é sempre algo de extraordinario no seio da Cristandade.
Feitas estas ponderagóes, examinemos o catálogo dos
documentos pontificios que sao geralmente tidos como por
tadores de definicáo infalivel.

2. A lista das definigoes pontificias

De acordó com a ordem cronológica, eis a serie dos do


cumentos :
1) Em 449, a carta do Papa S. Leáo Magno a Flaviano,
bispo de Constantinopla, expunha com autoridade a sá dou-
trina referente ao misterio da Encarnagáo: em Cristo há urna
só Pessoa (a Divina) e duas naturezas (a Divina e a huma
na) ; cf. Denziger, Enchiridion 148. Esta carta foi enviada
pelo Papa á assembléia geral do Concilio ecuménico de Calce
donia em 451 no intuito de dirimir, urna vez por todas, as
dúvidas teológicas concernentes ao assunto. Os Padres conci
liares consideraran! o documento como definitivo e estrita-
mente obrigatório para todos os fiéis. A tradicáo católica, em
particular a profíssáo de fé do Papa S. Hormisdas (datada
de 517; cf. Denziger 171), sempre reconheceram autoridade
máxima a tal documento.

A controversia assim .rematada por S. Leáo Magno é a seguinte :


Desde os inicios da era crista, perguntava-se como pod'a Cristo
ser simultáneamente Deus e homem. A primeira tentativa de solucáo
íoi a dos Docetos no séc. II, os quais ensinavam que o Salvador nao
fóra verdadeiro homem, pois nao tivera senáo urna aparéncia de
corpo humano (dokéo, parecer, em grego). — Tal solucáo nao tendo
conseguido implantar-se, no séc. V propós-se outra fórmula: Nestório,
Patriarca de Constantinopla, asseverava que Cristo era táo real
mente Deus e homem que néle havia duas Pessoas (a Divina e a
humana) e duas naturezas (a Divina e a humana). — Sabemos que
em linguagem técnica «natureza» vem a ser a esséncia ou a estrutura
de um ser, ao passo que «pessoa» é o sujeito consciente ou o «Ku»
que age por meio de determinada natureza; cf. «P. R.» 6/1957 qu. 3.
A sen tenca de Nestório, admitindo duas pessoas ou dois «Eu»
em Cristo, cindia a unidade do Salvador; foi, por isto, rejeitada

— 468 —
no Concilio de Éfeso (431). — Tomou vulto entáo, á guisa de reacjio
contra o erro condenado, a teoría oposta, propugnada por Eutiques,
de Constantinopla, e Dlóscoro de Aloxandria: em Cristo haveria urna
só natureza (a natureza divina, a qual teria ahsorvido a natureza
humana). Tal era a doutrina do Monofisltismo... Pois bem; S. Leáo
Magno rejeitou esta tese como contraditória ao genuino conceito de
Encarnac.üo, asseverando em 449 haver em Cristo urna só Pessoa
(ou um só «Eu»), a Pessoa Divina, a qual se manifestava por duas
auténticas naturezas (a Divina e a humana) nao mutiladas nem
confundidas. Destarte punha-se fim a urna etapa importante da
Cristologia.

2) Em 680 a carta do Papa S. Agatáo «aos Imperadores»


afirmava, também em termos definitivos, haver em Cristo
duas vontades distintas, a Divina e a humana, sendo, porém,
que a vontade humana ficava em tudo moralmente submissa
á vontade divina ; cf. Denziger 288.

Como se vé, o Pontífice reprimía, em última análise, u'a modali-


dade nova de Monofisitismo: o Monolclitismo, que afirmava em
Cristo haver 'únicamente a vontade divina. O documento foi enviado
autoritativamente pelo Papa á assembléia do Concilio de Constanti-
nopla III (680/81), a qual aceitou com aplausos a sentenga de
Roma, proclamando que Pedro acabara de íalar por Agatáo. — De
entáo por diante na historia, nao haveria mais serias dúvidas sobre
a ur.iáo do Divino e do humano em Cristo.

3) Em 1302, a bula Unam Sanctam do Papa Bonifacio


VIII é tida como portadora de definigáo dogmática em sua
parte final, onde o Pontífice «declara, afirma, define e pro
nuncia (declaramus, dicimus, definimus et pronuntiamus)» que
toda criatura humana está sujeita ao Romano Pontífice ; cf.
Denziger 468.

Esta sentenca há de ser entendida no seu respectivo quadro


histórico.
Desde os tempos de S. Agostinho (t430), os cristáos conceberam
o ideal de urna «Cidade de Deus», ou seja, de urna organizagáo civil
que fósse toda penetrada pelos principias de Cristianismo, íicando
os interésses e afazeres temporais totalmente subordinados aos
espirituais. Dentro desta perspectiva, criou-se em 800, pela coroagáo
de Carlos Magno, o Sacro Imperio Romano dos Francos, ao qual
no séc. X sucedeu o Sacro Imperio dos Germanos. Sob o Papa
Inocencio III (1198-1216) o ideal tomou vulto assaz concreto. Pouco
depois, porém, f izeram-se ouvir no cenário europeu vozes nacionalistas
que tendiam a criar um Estado leigo, independente da religiáo; um
dos primeiros arautos dessa córtente foi o rei Filipe IV o Belo da
Franca (1285-1314). Pois bem: foi contra essa tendencia á laicizacáo
do Estado que se pronunciou o Papa Bonifacio VIII, asseverando
que o poder temporal está subordinado ao espiritual e que, por
conseguinte, todas as criaturas humanas, mesmo os monarcas, estáo
sujeitas ao Vigário de Jesús Cristo na térra.
Tem-se discutido a respeito da mente do Pontífice na bula
Unam Sanctam. Em qualquer caso, interpretar-se-á a sentenca final

— 469 —
(cujos dizeres sao assaz gerais) no sentido da chamada «potestas
indirecta», nao no da «potestas directa»; o que quer dizer: o Romano
Pontífice tem jurisdieao sobre toda e qualquer criatura humana
«ratione peccatb, isto é, na medida em que a consciéncia e a morali-
dade estáo em causa ou na medida em que as atividades de determi
nada pessoa dizem respeito á vida eterna; foi, com eíeito, a Pedro
e aos sucessores de Pedro que Cristo confiou as chaves do Reino
dos céus. Nao pertence á missáo dos Papas interferir na técnica
administrativa dos governos civis.

4) Em 1336, a Constituicáo Benedictas Deus de Bento


XII definía que, logo após a morte corporal, as almas total
mente puras sao admitidas a contemplagáo da esséncia de
. Deus face a face ; cf. Denziger 530s.

Esta declaragáo se deve ao fato de que alguns cristáos tanto


estimavam o dogma do Corpo Místico que difícilmente concebiam
pudessem algumas almas atingir a sua felicidade consumada, enquan-
to outras aínda lutavam na térra; em conseqüéncia, asseveravam
que a visáo beatífica só seria outorgada no fim dos tempos, isto é,
após a ressurreicáo da carne e o juízo universal. — Contra éste
parecer, a fé crista formulada por Bento XII, de acordó com varios
textos da S. Escritura (cf. Le 23,43; Jo 17,24; Hebr 8,17s; 10,19s; 1 Cor
13,8s; 2 Cor 5,6s; Flp 1,23), afirma que, logo após a morte corporal,
se dá o juizo particular, entrando, a seguir, as almas na posse da
sua sorte eterna.

5) Em 1520, a bula Exsurge Domine de Leáo X con-


denava 41 proposic.6es de Lutero como heréticas ; cf. Denzi
ger 741-781.

S&bre as doutrinas do Reformador e seus erras, já foi dado um


esclarecimento em «P. R.» 17/1959, qu. 4.

6) Em 1653 a Constituigáo apostólica Cuín occasione de


Inocencio X reprovava as cinco seguintes proposigóes extraí
das da obra «Augustinus» de Cornélio Jansénio, tachando-as
de heréticas :

«1. Há preceitos de Deus que, vistas as exiguas energías do


homem, nao podem ser cumpridos por justos que os desejem observar
e se esforcem por conseguí-lo. A ésses justos falta também a graga,
que tornaría possíveis tais preceitos.
2. No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir
á graga interior.
3. Para merecer e desmerecer no estado da natureza decalda,
nao se requer liberdade que exelua necessidade (interior); basta a
liberdade que exelua coagáo (exterior).
4. Os Pelagianos admitiam a necessidade da graga interior
preventiva para cada ato particular, mesmo para o inicio da íé;
eram herejes por asseverarem que essa graga era tal que a vontade
podia ou resistir-lhe ou obedecer-lhe.
5. É semi-pelagiano dizer que Cristo morreu ou derramou o
seu sangue por todos os homens sem excegáo» (Denziger 1092-1096) ¿

— 470 —
«Pelagianos» e «Semi-pelagianos» foram herejes dos séc. V/VI
que acentuaram exageradamente as possibilidades da natureza humana
no tocante a salvagáo eterna.
O Jansenismo, ressentindo-se dos debates excitados por Lutero
sobre as conseqüéncias do pecado original, nutria um conceito pessimis-
ta da natureza humana, julgando-a escravizada á concupiscencia e
ao pecado; em conseqüéncia, admitiam que o homem só pode praticar
o bem em virtude de irresistivel iníluxo da grasa divina. O pessimis-
mo jansenista ainda era acentuado pela tese de que Cristo nao
remiu todos os homens, mas apenas os predestinados. — Como se
vé, tais proposites sao totalmente alheias á genuina mensagem
do Evangelho, que visa nao abater, mas soerguer o homem pecador,
lazendo que as almas considerem mais a Misericordia do Salvador
do que a própria miseria. É o que explica a condenacáo proferida
por Inocencio X.

7) Em 1687, a Constituigáo apostólica Caelestis Pastor


de Inocencio XI condenou como heréticas 68 proposicóes quie-
tistas de Miguel de Molinos (f 1696) ; cf. Denziger 1221-1288.

O Quietismo era urna tendencia mistica que íazia coincidir a per-


feicáo espiritual com tranqüilidade e passividade da alma tais que
o cristáo nao desejaria mais a sua bem-aventuranga eterna, nem
a aquisicáo da virtude; qualqucr tendencia néle estarla extinta. A
alma colocada nesse estado de aniquilamento nao pecaria mais,
mesmo que por sua conduta* externa parecesse violar os mandamentos
de Deus ou da Igreja; ser-lhe-iam desnecessárias oraches vocais,
práticas de penitencia e resistencia as tentares.
Evidentemente, tais idéias contradizem á genuina mente crista,
que S. Agostinho táo bem exprime na fórmula; «Deus, que te criou
sem ti, nao te salva sem ti». O ideal do cristáo nao é própriamente
a apatia estoica, ou seja, a ausencia de todo e qualquer afeto sensível,
mas, sim, a metriopatia, ou seja, o dominio sobre os afetos tal que
possam servir á vida sobrenatural.

8) Em 1699, a Constituigáo Cum alias de Inocencio XII


condenava 23 proposigóes de Frangois de Salignac Fénelon,
extraídas da obra «Explications des máximes des Saints sur
la vie intérieure» ; cf. Denziger 1327-1349. As sentengas pre-
tsndiam renovar o Quietismo, apresentando-o qual modalidade
de purissimo amor a Deus.

9) Em 1713, a Constituigáo Unigénitas de Clemente XI


condenou 101 afirmagóes do livro «Réflexions morales» de
Pascásio Quesnel (t 1719) ; cf. Denziger 1351-1451. Era de
novo o Jansenismo, com suas concepgóes pessimistas, que o
Sumo Pontífice assim denunciava.

Embora as escolas jansenistas tenham perdido em breve a sua


voga, a mentalidade jansenista até os últimos decenios ficou, até
certo grau, impregnada no espirito de muitos cristáos, alimentando
urna piedade intimidada, alheia aos sacramentos e, por isto, anémica.

— 471 —
Justamente em plena crise jansenista se deram as aparigoes do
Sagrado Coragáo de Jesús (1673-1675), que, sob forma simbólica,
queriam lemhrar ao mundo que Deus é o Amor, e o Amor que
se fez companheiro dos homens.

10) Em 1794, a Constituigáo Auctorem fidei de Pió VI


visava 85 teses heréticas promulgadas em 17S6 pelo sínodo
de Pistoia (Toscana) ; cf. Denziger 1501-1599.

As idéias dos conciliares de Pistoia nao eram senáo a expressao


extremada do nacionalismo e do despotismo de Estado que hav.am
comegado a tomar vulto nos tempos de Filipe IV o Belo da Franca
.e de Bonifacio VIII (ver o documento n° 3 da presente lista). No
fim do séc. XVIII ésse nacionalismo se havia apoderado das cortes
européias em geral, levando os soberanos católicos a pretender criar
Igrejas regionais, mais ou menos independentes do Sumo Pontífice;
tal tendencia tomou vulto na Franca de Luís XIV, em Portugal
do marqués de Pombal, na Espanha de Aranda e Florida Branca,
na Austria de José II e, de maneira especial, no Grao-Ducado da
Toscana, cujo titular, o Gráo-Duque Leopoldo, era irmáo de José II.
Leopoldo obteve o apóio do episcopado da Toscana, chefiado por
Cipiáo Ricci, bispo de Pistoia, para 57 artigos que visavam profundas
reformas da estrutura e da disciplina da Igreja, em grande parte
inspiradas por idéias de Jansénio e de Quesnel: entre outras medidas,
preconizavam a subordinagáo da Igreja ao Estado e a quase absoluta
independencia dos bispos em relagáo ao Sumo Pontífice; a aboligáo
da devocáo ao S. Coracáo de Jesús, das procissóes, das imagens, da
praxe das indulgencias, dos honorarios de S. Missa e de servicos
religiosos em geral; apregoavam a reducáo das Ordens e Congrega-
góes Religiosas a um só tipo norteado pelo exemplo de Port-Royal
(mosteiro jansenista próximo a Paris); queriam outrossim a cele-
bracao da liturgia em vernáculo, o que em si nada tem de reprováyel,
mas era contingentemente associado a reivindicac5es heréticas (isto
foi suficiente para que o postulado da liturgia em vernáculo se
tornaste mais urna vez suspeito aos olhos de Roma, como se tornara
suspeito auando os reformadores o formularan! no séc. XVI). — Antes
mesmo que Pió VI condenasse as proposicóes de Pistola, já o povo
toscano havia mostrado sua veemente indignacáo contra elas, de
tal modo eram alheias á genuína tradicáo crista; o próprio bispo
Ricci submeteu-sc ao alvitre de Pió VI.

11) Em 1854, a bula Ineffabilis Deus de Pió IX definiu


o dogma da Imaculada Conoeigáo de Maria : dizia o Pontífice,
apelando para testemunhos da Escritura e da Tradigáo, que
a Virgem Santíssima, desde o primeiro instante de sua con-
ceicáo, foi preservada do pecado original, ou seja, da nódoa
com que nascem todos os filhos de Adáo ; isto se deu por apli-
ca?áo antecipada dos méritos do Redentor, a fim de que a
criatura que devia ser mansáo do Verbo Encarnado, jamáis
ficasse sujeita ao hediondo imperio de Satanaz e do pecado
(Maria, portante, nao deixa de ser tributaria ao Redentor;
ela foi remida).

— 472 —
Antes da deíinigao do dogma da Imaculada ConceigSo, pergunta-
vam alguns teólogos que motivo havia para que o Sumo Pontífice
se pronunciasse em tom solene e extraordinario sobre urna proposigáo
que era pacificamente professada pela Cristandade. A tal questáo
foi dada a seguinte resposta: a afirmacáo de alguma verdade concer-
nente a María equivale sempre á afirmacáo sucinta de toda a
dogmática crista; com efeito, em María a fraqueza do homem e a
graca de Deus, a Encarnacao, a RedencSo, 0 misterio da Igreja
e a gloria final se acham compreendidos de maneira estunenda. Em
conseqüéncia, urna definigáo mariológica em meados do século
passado teria o valor de urna profissáo compendiosa de fé crista
frente ao racionalismo e ao materialismo que pesavam sobre a cultura
da época. Tal foi o sentido profundo do pronunciamento de Pió IX.

12) Em 1950, o Papa Pió XII em sua Constituieáo Mu-


nificentissimus Deus definiu o dogma da Assuncáo Corporal
de María : a Máe de Deus, ao deixar éste mundo, foi, sim, glo
rificada em corpo e alma, sem conhecer a corrupcáo do se
pulcro. Esta proposigáo está intimamente ligada com o dogma
da ImaculadaConceicáo : na verdade, se María nunca estéve
sujeita ao pecado, compreende-se que nao tenha ficado sob o
imperio da morte, a qual nao é senáo urna conseqüéncia do
pecado (Pió XII, porém, nao quis definir a questáo até hoje
aberta: terá Maria ao menos atravessado a morte antes de
ser glorificada ou haverá sido preservada mesmo de morrer,
de modo a passar sem hiato, desta vida para a gloria celeste?).

A crenga na Assungáo corporal de Maria nao sofría contestagáo


antes de ser definida; a definicáo, porém, foi justificada por motivos
análogos aos que ácima indicamos: o presente século continua
sujeito ás influencias do racionalismo e do materialismo; principal
mente nos últimos decenios a materia ou o corpo do homem tém
sido lamentávelmente vilipendiados pelo libertin'.smo dos costumes
e pelos morticinios coletivos (bombardeios) das grandes guerras.
Nesta época, portanto, a afirmacáo da Assuncao corporal de Maria
lembra ao mundo o destino transcendente do corpo humano e o
valor sobrenatural que o Criador a éste quis atribuir.

Os teólogos tém perguntado se algum dos documentos


dos Pontífices recentes contrarios ao racionalismo, ao moder
nismo e ao comunismo (a ene. Quanta cura e o Sílabo de
Pió IX, a ene. Pascendi e o decreto Lamcntabili de S. Pío X)
nao gozam da autoridade de declaracóes infalíveis. Exami
nando, .porém, o teor preciso désses textos, assim como as
circunstancias em que se originaram, a maioria dos comen
tadores é inclinada a crer que os dois mencionados Papas, ao
promulgar ésses documentos, nao intencionaram fazer uso de
sua prerrogativa de infalibilidade doutrinária, embora nao
reste dúvida de que tenham interpretado a mente de Cristo

— 473 —
e da Igreja nos termos mais auténticos possiveis, merecendo
por isto plena aquiescencia por parte dos fiéis.
» * *

Eis os casos em que, conforme ensinam os teólogos, os


Papas, no decorrer da historia, fizeram uso de seu magisterio
infalível para formular alguma sentenga dogmática. Doze vé-
zes em vinte séculos !... Táo exigua cifra talvez surpreenda
nao poucos leitores, pois, quando se fala da infalibilidade pon
tificia, fácilmente se tem a impressáo de que os católicos vi-
vem num regime de imposigóes procedentes do capricho de
um mestre humano. Tal impressáo, como se vé, está longe
de corresponder á realidade.

Nao queremos dizer, é claro, que os dogmas cristáos se reduzem


ás proposigoes ácima enunciadas. Também nao negamos que há
definieses emanadas de Concilios ecuménicos; cf. «P. R.» 18/1959,
qu. 2. O que nos interessava. porém. na redacao desta resposta,
era apenas mostrar o sentido exato de urna definicuo papal: esta
(o mesmo se pode dizer também de urna definigao conciliar) é sempre
algo de extraordinario e esporádico, suscitado pelas necessidades
do povo de Deus posto em perigo de perder a sua fé; urna definieao
solene é sempre a resposta a um problema, a urna dúvida. Ñas
circunstancias normáis de sua historia, o povo de Deus professa
a íé que ele recebeu de Cristo e dos Apostólos e que vai sendo
pacificamente transmitida de geragáo a geragáo, sob a tutela do
«episcopado, que o Espirito Santo estabeleceu para apascentar a
Igreja de Deus» (cf. At 20,28).

IV. MORAL

PACIFICO (Rio de Janeiro) :

5) «Que ensina a Igreja a respeito da propriedade par


ticular ?
Os antigos bispos e escritores cristáos nao foram alheios
a ela, inculcando a renuncia aos bens materiaís ?»

Por «propriedade» entende-se a relagáo de soberania ou dominio


que urna pessoa venha a adquirir, a titulo legitimo, sobre determinado
objeto, de modo a poder livremente dispor désse objeto.
Distingue-se a propriedade perfejta (ou dominio perfeito) da
propriedade Imperfelta (ou dominio imperfeito). A propriedade
perfeita confere direitos nao sómente sobre o uso de determinado
objeto, mas também sobre a substancia do mesmo, de modo que o
proprietário possa até vender ou destruir o objeto possuido. A pro
priedade imperfeita, ao contrario, só confere direito
ou sobre a substancia do objeto, ficando o uso déste, ao menos
temporariamente, reservado a outra pessoa (é o que se chama
dominio direto)
ou apenas sobre o uso désse objeto (é o que se chama dominio
útil ou usufruto).

— 474 —
Esquemáticamente, tem-se o seguinte quadro :

perfeita: direito sobre a substancia e o uso de


um objeto

dominio direto: direito apenas


Propriedade sobre a substancia do objeto
imparfeita
dominio útil (usufruto): direito
tínicamente sobre o uso do
objeto

A Igreja, fazendo as vézes, no caso, de intérprete da lei


natural, ensina que todo individuo humano tem direito á
propriedade particular perfeita. Interessa-nos, porém, averi
guar em que sentido preciso se deva entender esta afirmapáo,
para considerarmos, a seguir, a posicáo de alguns antigos
autores cristáos, assim como o testemunho dos povos primitivos.

1. O direito a propriedade particular

Já que o direito a propriedade particular decorre da lei natural


mesma, ele há de ser comprovado, antes do mais, pelo raciocinio
ou por argumento filosófico, argumento que a Revelacao crista
confirma e explícita. Em conseqüéncia, distinguiremos duas partes
na nossa explanagáo: a) o ditame da lei natural e b) a confirmagáo
por parte da fé crista.

a) O ditame da lei natural

1. Todas as criaturas sao, por definigáo mesma, orde


nadas para o Criador como para seu Fim último.
Dentre as criaturas déste mundo, algumas há que podem
atingir o Criador ¡mediatamente, pois, dotadas de inteligencia
e vontade, reconhecem a Deus e Lhe prestam sua adesáo
submissa : tais sao os homens.
As demais criaturas visíveis nao podem atingir a Deus
em Si, pois carecem de inteligencia e vontade, faculdades in-
dispensáveis para que se apreenda o Puro Espirito que é
Deus. Por conseguinte, só mediante o homem, ou seja, ser-
vindo ao homem, é que se ordenam para Deus ou servem a
Deus. A grandeza e a dignidade das criaturas irracionais con
siste,pois, em concorrer para a subsistencia e a afirmagáo
cada vez mais explícita do homem («os seres imperfeitos exis-
tem em vista dos mais perfeitos», assevera S. Tomaz, S. Teol.
II/II q. 66 a.l). O homem, por sua vez, afirmando e exer-
cendo devidamente suas prerrogativas neste mundo, preenche
a sua finalidade que é dar gloria a Deus.

— 475 —
Em conseqüéncia, verifica-se que ao homem toca o direito,
que também é dever, de fazer que as criaturas inferiores sir-
vam a ele, para que ele, homem, possa servir a Deus.
Acontece, porém, que as criaturas irracionais nao servi-
riam ao homem se éste nao tivesse sobre elas dominio per-
feito, isto é, se nao as pudesse vender, transferir ou mesmo
destruir (há seres que só podem prestar servigo ao homem
destruindo-se : tais sao os alimentos e as vestes). Disto se
segué naturalmente que o homem possui sobre os seres infe
riores o direito de propriedade ou de dominio perfeito. Tal
direito compete a todo e qualquer individuo como tal, nao
sómente á sociedade, visto que todo individuo precisa das
criaturas inferiores para viver como homem, desenvolvendo
as suas faculdades características, e dar assim a devida gloria
a Deus.
Donde se conclui que legítima é a propriedade particular.
2. O argumento filosófico que acabamos de expór, foi
no séc. Xm explicitado por S. Tomaz de Aquino, o qual para
isto se valeu de doutrinas já expostas por Aristóteles (t 322
a.C.) em seus livros de «Política».
O Doutor Angélico, na S. Teol. TL/Il q. 66, a.2, obser
vando a realidade social concreta, ensina que a propriedade
particular é elemento necessário ao sadio desenrolar da vida
humana pelos tres seguintes motivos :
a) a propriedade particular estimula o trabalho. Com
efeito, todo homem é espontáneamente atraído pela perspec
tiva da recompensa direta e pessoal de seus esforgos; é esta
que incita nao poucos a aceitarem tarefas arduas, tarefas que
éles de outra forma nao empreenderiam ou só empreenderiam
negligentemente.

É o que o Sto. Padre o Papa Leáo XIII assim comenta: «O


homem possui tal natureza que a perspectiva de trabalhar sobre
um fundo que lhe pertenca, duplica seu ardor e sua aplicagao>;
donde conclui Sua Santidade que a supressáo da propriedade particular
acarretaria, «fóssem o talento e a habilidade destituidos de seu
estimulante e, conseqüentemente. ficassem as riquezas estagnadas
em suas fontes; em lugar da igualdade sonhada (no tocante a posse
dos bens materiais), haveria igualdade no desnudamente, na indigencia
e na miseria» (ene. «Rerum novarum»).

b) A propriedade particular fomenta a boa ordem. Sim;


onde há distribuigáo de bens, há também distribuigáo de ta
refas, cada urna das quais é desempenhada com sistema e
rigor. O trabalhador proprietário, a quem esteja assinalada
certa porgáo de bens materiais, se preocupará com a conse-
cugáo de resultados bem planejados e duradouros, em vez de

— 476 —
se contentar com um gasto de esforcos meramente mecánico
ou mesmo dispersivo.
c) A propriedade particular favorece a paz entre os
liomens. Com efeito ; se cada individuo possui o dominio dos
bens de que precisa, é menos tentado a empreender rixas e
-contendas, que se verificam nos casos em que todos possuam
indistintamente os mesmos direitos sobre os mesmos objetos.

Poderíamos ampliar esta afirmagáo de S. Tomaz, lembrando


■que a propriedade particular possibilita aos homens levar urna vida
de nivel genumamente humano: ela possibilita e alimenta a inicia
tiva pessoal e, com esta, a alegría e o entusiasmo; mediante a
prcpriedade particular, o homem tem nao sómente de que viver,
mas também um porque viver mais concreto e imediato — o que
para muitas pessoas é de grande auxilio a fim de que desenvolvam
sua genuina personalidade (nao resta dúvida de que o porque supremo
-da vida de todo homem íica sendo Deus e a adesáo a Deus; a posse
de bens materiais só pode servir de instrumento a urna procura
mais desembaracada e plena da uniáo com o Criador).
Em outros termos: abolir a propriedade particular seria .restringir
ou mesmo suprimir o setor no qual mais espontáneamente se exerce
a liberdade do homem; seria, por conseguinte, causar injuria á
personalidade do mesmo: «O homem ficaria sendo metafisicamente
(ou num plano meramente teórico) livre; físicamente, porém, ele
seria dependente, assujeitado e, na verdade, semelhante a um
animal... Seria, sim, como um animal bem nutrido talvez, mas
um animal, isto é, um escravo de diretivas alheias» (J. Tonneau,
Propriété, em «Dictionnaire de Théologie catholique» XIII 1, 772).
A propósito vém as palavras de Pió XII:
«A revolugáo social se vangloria de levantar ao poder a classe
operaría : vas palavras e mera aparéncia de urna realidade impossivel!
Com efeito, vedes que a populagüo trabalhadora fica ligada, subjugada
e constrangida pelo poderío do capitalismo do Estado, o qual domina
e esmaga a todos, tanto as familias como as consciéncias, e transforma
o operariado em gigantesca máquina de trabalho» (Discurso de 13
de junho de 1943, n» 6).

3. Os argumentos filosóficos ácima desenvolvidos rece-


beram nos últimos tempos, por parte dos Sumos Pontífices,
um complemento relativo ao papel dos governos civis perante
a propriedade particular. — A estes, ensinam os Papas, nao
é l:cito frustrar, como quer que seja, o uso do direito que os
seus súditos tém, á posse individual, pois isto seria violar a
personalidade humana. Toca, porém, aos legisladores civis re-
grar o emprégo dos haveres particulares em vista do bem
comum, nao estabelecendo o regime ditatorial da «economía
dirigida», mas, por exemplo, retirando do dominio particular
alguns bens que interessam a seguraba pública ou que con-
feririam aos seus proprietários um poder exagerado, .. .orga
nizando institui^óes de controle (regime'de cadernetas e cer
tificados, supervisáo da gestáo de certos capitais.. .) que coí-

— 477 —
bam as injustigas e fraudes, .. .procurando fomentar a cola-
boracáo de empregadores e empregados, ... estipulando os
títulos legítimos de apropriagáo, etc.

Tenham-se em vista as lamosas encíclicas de Leáo XIII («Rerum


novarum»), Pío XI (*Quadragésimo anno») e o discurso de Pió XII
que em 1941 comemorava o 50' aniversario da «Rerum novarum».

b) A confirmagáo por parte da fé crista

A visáo estritamente crista da realidade corrobora quanto


até aqui foi explanado.
1. O Santo Padre Leáo XIII observava que o direito de
propriedade particular é táo condizente com a Lei de Deus
que esta chega a proibir a cobica desregrada ds bens alheios:
«Nao desejarás a mulher do teu próximo, nem sua casa, nem
seu corpo, nem seu servo ou sua serva, nem seu boi, nem
seu asno, nem coisa alguma que lhe pertenga» (Dt 5,21, ci
tado na ene. «Rerum novarum»).

A S. Escritura, no Antigo Testamento, apresenta o exemplo de


numerosos justos (Abraáo, Isaque, Jaco, Davi. Jó...) que, em meio
mesmo as riquezas, se tornaram amigos de Deus.

No Novo Testamento, o Senhor reconheceu a legitimi-


dade das posses temporais, anunciando salvagáo ao rico publi-
cano Zaqueu (cf. Le 19,7-10), permitindo que mulheres abas
tadas O servissem em seus itinerarios apostólicos (cf. Le 8,1-3),
maniendo boas relacóes com José de Arimatéia e Nicodemos
(cf. Jo 19,38s)... Cristo ensinou a praticar a esmola e a be
neficencia corporal (dar de comer, de beber, de vestir...), o
que supóe naturalmente a posee de bens materiais e o direito
de dispor déles (cf. Mt 25,31-46; Le 21,1-4). Note-se outrossim
que S. Joáo Batista, ao pregar penitencia, nao impunha aos
soldados renunciassem ao seu salario, mas apenas quería que
se contentassem com o que ganhavam (cf. Le 3,10-14).

Verdade é que urna ou outra passagem do Novo Testamento


parece impo.r restricóes ao uso dos bens déste mundo; tais textos,
porém, nao implicam condenacáo da propriedade particular, como
se verá abaixo.

2. Prolongando a voz de Cristo, o magisterio da Igreja,


através dos séculos, rejeitou, como erróneas, sucessivas ten
dencias a negar ou a restringir exageradamente o direito de
propriedade.

Registrou-se, por exemplo, na aníigüidade e na Idade Media,


o surto periódico de conceptees pessimistas ou dualistas que tinham

— 478 —
a materia e o uso dos bens materiais na conta de algo de mau ou
de satánico; assim o Ebionitismo (de ebion, pobre, em hebraico) no
séc. II, o Maniqueismo nos séc. III/IV, as correntes dos Cataros,
dos Valdenses e dos Joaquimitas, do séc. XI ao séc. XIII.
Verlficaram-se também, entre as cristáos, tendencias socialistas
e comunistas anarquistas, que a Igreja reprovou: no séc. II, por
exemplo, o gnóstico Epifánio preconizava o comunismo integral,
apelando para a justica de Deus, como se esta tivesse outorgado
a todos os homens os mesmos dtreitos sobre toda e qualquer coisa;
no séc. III apareceram os «Apostólicos» ou «Apóstatas» (= os que
renunciavam), os quais se gloriavam de imitar os Apostólos, nada
possuindo. No séc. XIV urna corrente mística franciscana exagerava
a pobreza de Cristo e dos Apostólos, negando-lhes o direito de
possuir ou mesmo de usufruir, íósse em particular, fósse em
comum..., negando-lhes, por conseguinte a liceidade de se servir
de bens materiais. de os vender, comprar ou trocar...; tais teses
provocaram explícita declaragáo por parte do Papa Joáo XXII:
«Será considerado hereje todo aquéle que sustentar que Jesús
Cristo e seus Apostólos, em relacáo as coisas de que se serviram,
nao praticaram senao o mero uso de fato (nao de direito); dal se
poderia concluir que tal uso era ilícito, conclusáo esta que seria
blasfematoria» (Constituigáo «Quia quorumdam» de 10 de novembro
de 1323; cf. outrossim a bula «Cum Ínter nonnulos» de 12 de
novembro de 1323, Denziger 494).
Tal é o chamado erro da «pobreza absoluta de Cristo».
No séc. XVI os Anabatistas provocaram a guerra das camponeses
na Alemanha (1522-1525), pregando com anarquia e pilhagem a
vinda de novo Reino de Deus, em que haveria comunháo de bens.
Nenhum désses movimentos subversivos da propriedade parti
cular prevaleceu na Cristandade, porque, em última análise, signifi-
cavam a negacáo da Encarnagáo, ou seja, da .santificado de tudo
que há de humano e material, pela vinda do Filho de Deus a éste
mundo; também a materia íoi. do seu modo, objeto da Redencáo,
ensina o misterio da Encarnaeáo; em conseqüéncia, toca a todo
individuo humano nao sómente o direito, mas também o dever,
de a dominar e a fazer concor.rer para a gloria de Deus.

Os Papas, a partir de Leáo XIII, vém com insistencia rea


firmando o tradicional conceito cristáo de propriedade, tendo
em vista,
de um lado, as modernas teorías do socialismo e do mar
xismo, que querem absorver no totalitarismo económico e
político o individuo e seus direitos,
de outro lado, o liberalismo económico, que leva ao capi
talismo e á opressáo.

O principal problema contemporáneo versa sobre os bens pro-


duzidos por colaboragáo do capital do empreiteiro e do trabalho dos
operarios. Lembram as Pontífices que qualquer exclusivismo, seja
por parte dos capitalistas, seja por parte dos trabalhadores, se
torna injusto; preconizam que o trabalho nao seja considerado como
simples mercadoria e que o salario respectivo exprima a dignidade
pessoal do operario, facultando a áste a constituigáo e o desenyol-
vimento da familia e possibilitando-lhe a elevagao do padráo de vida.

— 479 —
2. Os dizeres de antigos autores cristaos

A doutrina da Igreja de nossos dias, ácima resumida,


parece sofrer contradigáo por parte de bispos e escritores
cristaos de outrora, que, como se eré, teráo sido contrarios a
propriedade particular, propugnando regime socialista bas
tante avanzado : «As riquezas nao sao nem verdadeiras nem
vossas. — Non sunt divitiae verae nec vestrae», dizia S. Agos-
tinho (serm. 50,3).
A aparente contradigáo se esvanece desde que se leve em
conta o ponto de vista próprio dos mencionados autores :
a) Movia-os militas vézes a concepgáo grandiosa, for
mulada no Antigo Testamento, segundo a qual o Senhor Deus
é o único Proprietário de todos os bens e o homem é minis
tro do Altissimo na gestáo déste mundo. Tal concepgáo esteva
associada ao regime teocrático do povo de Israel; nao deixa,
porém, de ser verídica na ideología do Novo Testamento. O
cristáo sabe que o Senhor costuma conceder ao homem urna
participacáo nos seus direitos ; justamente consoante ésse pro
ceder, plenamente evidenciado pela Encarnacáo do Filho de
Deus, o cristáo sabe que o Criador comunicou á criatura
humana certo dominio sobre os seres inferiores.
Disto se segué que o direito de possuir, no homem, está
sujeito a urna prestagáo de contas ; nenhuma criatura é o
termo decisivo de referencia dos seus haveres ; ao contrario,
todos os que possuem, possuem para realizar um plano que
o Senhor Deus estabeleceu. Essa sujeigáo do homem proprie
tário aos designios do Altissimo implica, de um lado, profundo
desapego ; de outro lado, exige o uso caritativo dos bens ma-
teriais ; é para que o individuo, dentro de certa escala, reparta
com os seus semelhantes que o Senhor o torna proprietário ;
toda posse particular impóe á consciéncia do possuidor o dever
de exercer, dentro de certas proporgóes, a beneficencia.

Tais idéias se léem com muita clareza no seguinte texto de-


S. Astério, bispo de Amaséia na Asia Menor (t cérea de 410):

«ó homem, nada pertence a ti; és apenas um servo. Tudo que é


teu, pertence ao Senhor. O servo nao pode dispor do seu peculio
a seu bel-prazer. Vieste á térra, despojado de todas as coisas; tudo que
ten,o, tu o recebeste da Lei de Deus... Por conseguinte. recebeste
o que nao te pertence. Vejamos, porém. o que te foi prescrito e quai
deva ser o modo de administrar ésses bens. Dá a quem tem lome;
veste aouéle que está nu: trata do doente; nao te descuides do pobre
estendido ñas encruzilhadas; nao te preocupes com o que será de
ti amanhá. Se assim procederes receberás encomios daquele aue te
impes essas leis. Se. porém, transgredires o seu mandamento, serás

— 480 —
entreque a terriveis castigos» (hom. II sobre o ecónomo infiel, ed.
Migne gr. 40, 188).

Como se vé, Deus outorga gratuitamente aos homens a


posse de bens temporais, impondo-lhes, porém, a obrigagáo
de auxiliar os indigentes. Disto nao se segué, segundo a Moral
crista, que o pobre tenha estrito direito a receber tal ou tal
esmola ; embora aos ricos incumba a obrigacáo de dar, aos
indigentes nao é lícito extorquir o que quer que seja ; esta
extorsáo soria furto; o rico deve dar livremente. Se nao der,
prestará contas a Deus, e a Deus só, da sua omissáo. É nisto
que a doutrina dos antigos autores cristáos se distancia do
comunismo hodierno. Os Padres, sem dúvida, protestaram
contra os abusos da riqueza, mas nunca disseram aos ricos :
«Obrigamo-vos ou forgar-vos-emos a dar», nem aos pobres :
«Tomai com violencia a parte do fundo comum que toca a
vos». Sómente em caso de extrema necessidade é que a cons-
ciéncia crista permite ao pobre apoderar-se de um bem alheio
necessário para que nao morra de fome :

«Em caso de extrema necessidade, todos os bens sao comuns.


A quem padega tal penuria, torna-se lícito tirar dos haveres alheios
o que íór necessário ao seu sustento, caso nao encontré quem lhe
queira dar esmola» (S. Tomaz, S. Teol. II/II qu. 32 a. 7 ad 3).

O comunismo, portante, como ele é hoje entendido, nunca


foi apregoado pelos cristáos, nem mesmo nos tempos da pri
mitiva comunidade de Jerusalém, a respeito da qual o livro
dos Atos dos Apostólos refere o seguinte:

«A multidáo dos fiéis tinha um só coracao e urna só alma.


Nenhum déles dizia ser sua qualquer das coisas que possuia, mas
tudo entre éles era comum... Nao havia entre éles indigente algunv
pois todos os que possuiam térras ou casas vendiam-nas e, trazendo
o produto da venda, o depunham aos pés dos Apostólos. Fazia-se
a distribuigSo a cada um, de acordó com sua necessidade» (4,32. 34s).

O fervor religioso que levou os cristáos de Jerusalém — durante


periodo de tempo, alias, assaz curto — a vender o que tinham para
colocar a respectiva importancia á disposicao dos Apostólos e dos
irmaos. nao poderia ser invocado como ponto de apóio bíblico para
o comunismo moderno. Com efeito, a comunháo de bens em Jeruia-
lém era totalmente espontánea, nao imposta, muito menos extorquida.
Sao Pedro, o lembrou claramente a Ananias, dizendo-lhe que nao
precisava de vender o seu campo e que, mesmo após o ter vend'do.
lhe era lícito guardar a quantia correspondente; o que o Apostólo
lhe censurava, era que prometerá a Deus a importancia total e. nao
obstante, fraudulentamente retivera urna parte desta <cf. At 5,3s).
O regime da espontánea comunháo de bens praticado outrora
em Jerusalém se perpetua no seio das Ordens e CongregacSes Reli
giosas da Santa Igreja.

— 481 —
b) Considere-se outrossim que os antigos autores cris-
táos, ao manifestarem pessimismo no tocante ás posses tem-
porais, se deixavam por vézes guiar pela consciéncia do perigo
que os bens materiais podem acarretar para o respectivo pro-
prietário: fácilmente, sim, excitam a cobica desregrada e,
mediante esta, o pecado. Em vista disto, já o Senhor no Evan-
gelho afirmava ser difícil aos ricos entrar no Reino dos Céus,
ao passo que os pobres sao muito mais felizes sob ésse ponto
de vista (cf. Mt 19,24 ; 5,3 ; Le 6,24, , aqueles tém freqüen-
temente o coragáo embotado e o ólho da mente fechado para
. os bens espirituais, enquanto estes se acham livres das ilusóes
que os haveres materiais ocasionam, podendo, por conseguinte,
muito mais certeramente aderir ao Bem Infinito, Deus ; daí
a exortagáo de Cristo a que o discípulo venda tudo que possui
e abrace a pobreza voluntaria (Mt 19,21).

Éste convite, íreqüentemente repetido pelos autores cristáos, de


modo nenhum é inspirado por urna concepeáo dualista, hostil á
materia, mas, sim, pelo desejo de proporcionar aos fiéis as condieñes
de vida ideáis para a salvagáo eterna. Nao constituí um preceito,
mas mero conselho, visto que também pode haver salvagáo para
quem possua bens temporais e os administre de modo a se enriquecer
de boas obras e méritos; «ser rico para Deus» é o ideal do cristáo
(el. Le 12,21).

Em conclusáo, as palavras de Cristo e dos Padres da Igreja


que focalizam o perigo das riquezas, nao significam condena-
gáo da propriedade particular, mas apenas lembram aos fiéis
que os bens temporais sao meios, nao fim, e que, por conse
guinte, o cristáo nao pode permitir que déles dependa a sua
verdadeira felicidade.

O parágrafo abaixo concorrerá para melhor aínda evidenciar


quanto a doutrina crista até aqui proposta está baseada na lei natural.

3. O testemunho dos povos primitivos

Nao poucos sociólogos do sáculo passado julgavam que o género


humano inicialmente vivia em absoluta comunháo de bens e mulheres,
regendo-se cada individuo pela lei do egoísmo e da «luta de todos
contra todos». As pesquisas recentes de Etnología, porém, desfi-
zeram essas concepgoes, demonstrando que os povos primitivos (as
quais, por sua cultura rudimentar, representam a primeira etapa
da humanidade) conhecem o direito de propriedade, assim como o
valor moral e religioso da mesma. É o que atestam os seguintes fatos:

Os povos de civilizagáo mais antiga (os Negritos das Fili


pinas, os Negrilhos da África, os Indios da Térra do Fogo, os
Semang da Malasia, etc.) se distribuem em grupos de 30/70
pessoas, geralmente consanguíneas entre si. Cada qual disses

— 482 —
grupos habita seu territorio bem delimitado, ao qual membros
de outro clá nao tém acesso a nao ser que os proprietários o
permitam ; em geral, um clá só concede que outro penetre
no seu territorio, caso ésse outro nao encontré mais na térra
que habitava, os meios de subsistencia necessários.
No interior de cada grupo, as familias gozam de inde
pendencia económica ; cada qual possui sua cabana própria,
onde marido e mulher guardam as provisóes alimentares. Tudo
que um individuo produza mediante o seu trabalho, assim como
tudo que receba de presente, é-lhe reconhecido como proprie-
dade pessoal: assim armas e utensilios, vestes e ornamentos,
canoa e a própria cabana.. .
Ésse direito de propriedade é unido a elevado sentimento
altruista, de sorte que entre tais povos é comum o costume
de dar presentes. Também sao habituáis as visitas de amizade
entre as familias, as vézes mesmo á custa de urna caminhada
de varios dias. Verifica-se outrossim que as familias mais
abastadas nao desdenham emprestar aos indigentes, sem exi
gir compensacáo; por sua vez, quem recebe emprestado, cos-
tuma devolver com pontualidade. Os estudiosos sao unánimes
ao reconhecer a honestidade désses clás: os selvagens geral-
mente nao tocam nos objetos dos exploradores brancos, mesmo
que fiquem expostos ao público; utensilios esquecidos ou per
didos sao restituidos aos respectivos proprietários, ainda que,
para encontrar o destinatario, o selvagem deva percorrer
grandes distancias.

Entre as tribos que levam vida pastoril, sao muito estimados


o «prego da esposa» e o dote que a mesma leva ao seu marido. O
preco da esposa é a compensacáo que o marido dá á familia da
consorte em vista das despesas efetimdas pelos pais em favor déla.
— Quanto ao dote, consiste geralmente em vestes e ornamentos,
utensilios e outros objetos de uso feminino. podendo também constar
de gado, gado, porérñ, do qual nao é licito ao marido dispor sem
o consentimento da esposa.

Ésses povos primitivos manifestam também a consciéncia


de que a propriedade individual tem significado religioso, pois,
diriam éles, é dádiva da Divindade aos homens. Por isto cos-
tumam oferecer a Deus o sacrificio das primicias, ou seja,
parte da orésa recém-capturada ou dos produtos da térra re-
cém-colhidos.
A importancia das observares que acabamos de enunciar,
está em que os povos assim explorados, por sua índole extre
mamente rude, parecem reproduzir, como dissemos, a pri-
meira fase de cultura do género humano. Donde se conclui
que nos primordios da historia deve ter estado em vigor entre

— 483 —
os homens semelhante direito de propriedade, com o caráter
religioso e moral que ainda hoje os etnólogos assinalam. Cf.
«P. R.» 13/1959, qu.l.

«O apregoado caos moral dos primordios do género humano


jamáis se verificou; trata-se de postulado decorrente de pretenciosas
teorías evolucionistas do sáculo passado. A realidade comprovada em
pesquisas conscienciosas feitas entre os povos mais antigos desmentiu
categóricamente tal postulado» (W. Schmidt).

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

CLAUDOMIRO (Rio de Janeiro) :

6) «Que pensar das famosas Instrugóes Secretas dos je


suítas, das quais se tem espalhado um ou outro estranho frag
mento entre nos ?»

A questáo se refere a um opúsculo intitulado Mónita Secreta


(«Instrucóes Secretas») ou também «Arcanos da Companhia de Jesús,
Anatomía da Companhia de Jesús, O Gabinete Jesuítico», opúsculo
do qual analisaremos abaixo o conteúdo, o histórico e a autoridade
de que possa gozar aos olhos da crítica moderna.

1. O conteúdo das «Instnieocs Secretas»

O libelo Mónita Secreta se apresenta ao seu leitor como


obra reservada exclusivamente aos Superiores e a membros
iniciados da Companhia de Jesús; pretende conter as normas
capitais (de índole hipócrita e maquiavélica) mediante as
quais os jesuítas se deveriam nortear para obter o domi
nio sobre a vida pública das nagóes! Através dos dezes-
sete capítulos do opúsculo, vasados num estilo de cinismo e
falsa ungáo, colhe-se a impressáo de que os discípulos de S.
Inácio se propóem recorrer a todas as táticas a fim de conse-
guirem dos poderosos déste mundo os favores désejados; quais-
quer meios seriam lícitos em vista de tal fim.

A título de exemplo. vai aqui citado um ou outro dos tópicos


mais característicos do libelo: .
Os jesuítas tendo em vista enriquecer-se, deverao fundar colegios
exclusivamente'ñas cidades ricas, pois o fim da Companhia é imitar
Cristo que vivia de preferencia em Jerusalém e apenas transitava
por localidades menos importantes (cap. I; seja licito observar que
que a exegese do S. Evangelho aqui pressuposta é de todo falsa).
Os Superiores faráo ver ás pessoas ricas e piedosas a extrema neces-
sidade em que se encontrarem suas casas; e, ao receberem alguma
esmola distribui-la-áo ostensivamente aos indigentes, pois isto causará
boa impressáo e lh.es merecerá ainda maiores favores.
Os capítulos mais curiosos do opúsculo sao os que se referem
ás viúvas ricas (cap. VI-VIII). Sacerdotes provectos, mas de ánimo

— 484 —
juvenil, serao designados para agir junto a elas; visitá-las-áo, exaltarao
o seu estado de viuvez, procurando dissuadi-las de novas nupcias.
Trataráo de por a seu servigo um grupo de domésticos dedicados
aos jesuítas. Caso alguma viúva adoeca, enviar-lhe-áo um médico
de confianca, que ponha os Religiosos a par de possivel perigo de
morte. Se as viúvas tiverem filhos, os padres as exortarao a mandar
as donzelas para o convento e esforcar-se-áo por ganhar os rapazes,
junto com a respectiva heranga. para a Companhia.
Mas nao sómente o dinheiro dos ricos, também o favor dos
príncipes e poderosos há de ser captado pelos jesuítas. Bajularáo,
por conseguinte, os governantes civis, imiscuindo-se em seus litigios
para terem a honra e a vantagem de os apaziguarem; trataráo de
obter missóes junto aos nobres vizinhos e aos grandes monarcas.
Os Superiores colocaráo á disposigáo dos principes alguns casuistas
relaxados, que optem pelas solugóes mais cómodas para os monarcas.
Também junto aos prelados e dignitários eclesiásticos exerceráo
urna atividade de conquista, prestando-lhes grandes homenagens e
procurando ediíicá-los pela pregagáo de exercícios espirituais: assim
os jesuítas ganharáo para si priorados, paróquias e beneficios ecle
siásticos (sic!)...
Em suma, para obterem a prosperidade temporal da Companhia,
os seguidores de S. Inácio sao exortados nos Mónita Secreta a sacri
ficar Deus e os homens, a própria alma e a vida eterna!...

2. O histórico do libelo

Em agosto de 1614, apareceu pela primeira vez tal opús


culo em Cracovia (Polonia), com o título de «Mónita privata
Societatis Jesu» (mais tarde, também dito «Mónita Secreta»
ou «Arcana»). Trazia a data de 1612 e, como lugar de edigáo,
o nome de «Notobirga», cidade até hoje nao identificada nos
mapas geográficos. A página de título acrescentava tratar-se
de manuscrito espanhol encontrado em Pádua (Italia) ; extra-
viara-se dos arquivos da Companhia, fóra entáo traduzido
para o latim, mandado a Viena e, por fim, a Cracovia, onde
era dado ao público \

Contudo nem todos os estudiosos da época (séc. XVII) se deram


por satisfeitos com tal explicacao. Puseram-se, por conseguinte, a
contar historias diversas: segundo uns, os holandeses haviam desco-
berto o manuscrito a bordo de urna ñau que por conta dos jesuítas
atendia ao comercio com as indias; outros pretendiam que um
capitáo prussiano apreendera o documento nos arquivos dos jesuítas
de Glatz (Prussia); terceiros asseguravam que a peca provinha de
um esconderijo aberto na parede de um sótao do Colegio de Heidel-
berg (Alemanha); por fim, nao íaltava quem dissesse que os «Mónita»
haviam saído da Congregagáo da Propagagáo da Fé de Roma, o
que ocasionou urna edigáo do libelo com a rubrica: «Roma, tipografie
della Propaganda, con permissione»...

Em breve, porém, descobriu-se o verdadeiro autor da


pega: após minucioso processo, apurou-se que fóra Jerónimo

— 485 —
Zahorowski, desde 1613 membro egresso da Companhia. Em
virtude de desafetos varios, resolverá difamar seus antigos
Irmáos de hábito ! — Tal assergáo é hoje comumente aceita
pelos críticos mais abalizados.
Como se compreende, o panfleto foi, sem demora, con
denado pelo bispo de Cracovia e, em 1616 e 1621, colocado
no Índice dos Livros proibidos pela Igreja. Embora Zahorowski,
antes de morrer, se tenha arrependido da sua fraudulencia,
como sugerem alguns cronistas, o opúsculo mereceu grande
crédito no decorrer dos sáculos XVH-XDC : a pega era, sim,
muito hábil, pois deixava de parte as graves calúnias (acusa-
góes de assassinios, envenenamentos, tiranicidios...) comuns
nos panfletos protestantes da época, para recorrer á male
dicencia moderada e velada, suficientemente burilada, porém,
para impressionar a fundo a opiniáo pública. O número de
reedicóes do opúsculo, ora intato, ora retocado e aumentado,
se" multiplicou, espalhando-se pela Italia, a Franca, a Espa-
nha, Portugal e a Alemanha; nao faltavam a Companhia
inimigos varios... (cf. «P. R.» 20/1959, qu. 6). Apesar das
múltiplas refutacóes que iam sendo opostas ao libelo, havia
sempre quem respóndesse com Ch. Sauvestre : «Os jesuítas
negam.. .; por conseguinte, é verdade !»

3. O juízo da critica contemporánea

Já nao há historiador serio que defenda a autenticidade


dos «Mónita Secreta». Negam-na explícitamente os autores
protestantes Gieseler, Hubert, Tschackert, Reuscha, Paulus,
Nippold, assim como os «Velhos Católicos» (irmáos separados
de Roma após 1870) Dollinger e Friedrich (Janus). Deve-se
a A. von Harnack, o crítico liberal, a seguinte observacáo:
«É lamentável, hajam sido explorados contra a Companhia
de Jesús falsos documentos, como os Mónita Secreta. Procure
mos precaver-nos, nos, protestantes, de falsos testemunhos
contra o próximo» (Theolog. Literatur Zeitung 1891, 122).
Merece atengáo outrossim o fato de que, quando se tra-
tava de extinguir a Companhia de Jesús na Franga do sé-
culo XVIII, apareceu em 1761 nova edigáo dos «Mónita Se
creta» em latim e francés atribuida ao ano de 1661. Contudo
nem o Parlamento de Franga, nem os autores dos «Extraits
des Assertions» (colegáo de textos anti-jesuítas) exploraram
o libelo, o que é geralmente tido pelos críticos como teste-
munho do discrédito langado sobre tal documento. Pascal,
alias, que se valeu das obras de varios autores para impugnar
os jesuítas, silenciou por completo o opúsculo polonés ; donde

— 486 — .
se depreende que os informantes do filósofo provávelmente
Ihe fizeram ver o caráter espurio dessa pega.
Ademáis alguns comentadores observam o seguinte : en
tre os «Mónita Secreta», de um lado, e, de outro lado, as
Regras oficiáis e outros documentos normativos, certamente
genuínos, da Companhia de Jesús, verifica-se por vézes fla
grante contradigáo. Assim, por exemplo, sempre vigorou entre
os jesuítas expressa proibigáo de aceitarem dignidades ecle
siásticas (a nao ser que o Sumo Pontífice o mande) ; pois
bem, os «Mónita Secreta» contradizem frontalmente a essa
proibigáo. A «Instrucáo aos Confessores dos Principes» bai-
xada pelo Superior Geral Pe. Aquaviva em 1602 prescreve
aos Religiosos manterem-se á parte dos movimentos políticos
e recusarem qualquer favor ou presente ; ora é ao mesmo Pe.
Aquaviva que se atribuem os «Mónita», os quais promulgam
orientacáo oposta a esta...
Nao nos alongaremos na enumeracáo de dados e depoi-
mentos. Os que foram citados já bastam para evidenciar que
os «Mónita Sscreta» carecem de credenciais para ser utili
zados por algum historiador consciencioso. Constituem um
depoimento contra os adversarios da Companhia e da Igreja
antes do que contra os próprios jesuítas. Sim ; quem precisa
de recorrer á fraude para impor urna tese, parece defender
causa desesperada !

CORRESPONDENCIA MIÚDA

V. M. (Nova Venida) e OUROPRETANO (Minas): Os dois amigos


transcrevem passagens de periódicos e panfletos em que sao citados au
tores medievais e modernos a endeusar aparentemente os Pontífices
Romanos ; seriam testemunhos de aberrac,óes cometidas pelos fiéis cató
licos no decorrer dos sáculos. Perguntam-nos: que pensar désses trechos?
Já que dispomos de pouco espac.o, analisaremos apenas o principal
documento citado ; o resultado da análise mostrará quáo pouco fidedignas
e convincentes sao as outras citacóes.
O mais importante trecho aduzido é de S. Roberto Belarmmo
(1542-1621), doutor da Igreja. — Para dar urna idéia de quanto os
adversarios do Catolicismo sao, por vézes, mal informados ao fazerem as
suas objesóes, transcrevemos aqui o teor original de tal texto e do seu
respectivo contexto. Tratando do segundo objeto da infalibilidade papal
(a Moral), escreve o S. Doutor:
"Quod non possit Pontifex errare in moribus per se borns, vel malts,
probatur. Nam tune Ecclesia non posset veré dici sancta, ut in Symbolo
Apostolorum voeatur ; nam sancta dicitur potissimum ob sanctam pro-
fessionem, ut alibi ostendimus, quia nimirum legem et professionem
sanctam profitetur, quae nihil docet falsum, nihil praecipit malum.
Secundo, quia tune necessario erraret etiam circa Fidem. Nam Fides
Catholica docet, omnem virtutem esse bonam, omne vitium esse malum.
Si autem Papa erraret praecipiendo vitia, vel prohibendo virtutes, id est,
praecipiendo aliquod opiis quod esset revera vitiosum sed non manifesté

— 487 —
vitiosum, vel prohibendo opus virtutis, sed non manifesté opus virtutis,
teneretur Ecclesia credere vitia esse bona et virtutesjmalas, nisi vellet
contra conscientiam peccare. Tenetur enirn inrebus dubiisEcclesiaacquies-
cere indicio summi Pontificis, et faceré quod ille praecipit, non faceré
quod ille prohibet, ac ne forte, contra conscientiam agat, tenetur credere
bonum esse quod ille praecipit, malum quod ille prohibet" (S. Roberto
Belarmino, Controversiarum de S.ummo Pontífice 1. IV, c. V).
Segue-se a tradugáo da passagem ácima :
"Eis como se. prova que o (Sumo) Pontífice nao pode errar ao de
finir assuntos referentes aos costumes, sejam virtudes, sejam vicios.
Suposto que pudesse errar, a Igreja nao poderla ser chamada
santa, tal como é dita no Símbolo dos Apostólos... ,
Em segundo lugar, suposto que o Papa pudesse errar no caso ácima,
também a Igreja erraría em materia de fé. Sim ; a fé católica ensina
que toda virtude c boa e todo vicio é mau. Ora, se o Papa errasse, pre-
eeituando vicios ou proibindo virtudes..., a Igreja, se nao quisesse pecar
contra a sua consciéncia, estaría obrigada a crer que os vicios sao bons
e as virtudes más... Pois a Igreja em casos dúbios é obrigada a aquies
cer ao juízo do Sumo Pontífice e a fazer o que ele manda e_a deixar
de fazer o que ele proibe; para nao agir contra a sua consciéncia, ela
está obrigada a crer que é bom o que ele (o Papa) ordena, mau o que
ele proibe". ., . _
Como se vé, éste texto de modo nenhum visa atribuir ao Romano
Pontífice os poderes de mudar as categorías do bem e do mal, como insi-
nuam os adversarios. Ao contrario, a intengáo de S. Belarmino é a de
afirmar que o Papa, ao promulgar urna definigáo moral válida para a
Cristandade inteira, jamáis pode preceituar algo que seja vicio ou proibir
algo que seja virtude. Porque, diz o S. Doutor, se pudesse errar désse modo,
a Igreja escaria obrigada a crer que o vicio é coisa boa e a virtude é coisa
má. Tal crenca, porém, seria um verdadeiro absurdo, urna inconcebível
hediondez. Por isto, concluí o Santo, seria também um verdadeiro absurdo
imaginar que o Papa pudesse mandar praticar o vicio e evitar a virtude;
o Sumo Pontífice, por conseguinte, ao promulgar algum preceito para to
dos os fiéis, só pode promulgar coisa boa e santa; o Espirito Santo o pre
serva de erro em tal caso, isto é, garante-lhe o dom da infalibiLidade, de
que tratamos na qu. 4 déste fascículo, assim como em "P.K." 14/1959, qu. 3.
Para tentar insinuar algo contra a fé católica mediante os dizeres
de S. Belarmino, os adversarios tém que isolar do seu contexto algumas
frases, as quais atribuem sentido exatamente oposto ao do autor, como
se ésse oposto fósse o sentido mesmo ensinado pelo S. Doutor ! Talvez,
porém, seja mais provável que os adversarios jamáis tenham visto as
obras que eitam, nem tenham lido os textos origináis de S. Belarmino e
de outros autores católicos. Citam posslvelmente de segunda ou tercena
máo, sem conhecer o terreno em que pisam...
Na verdade, só combate a Igreja de Cristo quem nao a connece
devidamente. _ ,
Rogamos a nossos demais coi-respondentes que nao nos manuaram
enderéco, tenham a bondáde de nos dizer como lhes poderemos enviar
resposta. Muito desejaríamos ser-lhes úteis ; mas isto so sena possivel
por carta.

D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O. S. B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
REDAgAO .huiiihih ADRIDíISTBAg&O
Caixa Postal 2666 ^^^j' H XL-^t^Granüexa, 108 —Botafogo
Eio de Janeiro J^MB II. M&WlNS2 ~ BI° de Janeir0

You might also like