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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
ü_ vista cristao a fim de que as dúvidas se
._* dissipem e a vivencia católica se fortalega
* no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
29
M A I C

1 9 6 I

ANO III
ÍNDICE

L CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que pensar de Darwin e da sua teoría evolucionista?


Se o homem provém de viventes inferiores, que resta da dou-
trina bíblica segundo a qual terá sido criado por Deus f" 179

n. DOGMÁTICA

2) "Se Deus quer que todos os homem se salvem, segundo


ensina Sao Paulo a Timoteo (cf. 1 Tim 8J-5), como se pode admi
tir que alguns incorram em condenando eternaí" ..."'..... .-í'.ví ■ - 187

8) "Como se justifica o culto das reliquias tradicionalmente


praticado pelos cristdos, mas difamado por autores modernos ?" . IS4

III. SAGRADA ESCRITURA

U) "Seria possivel determinar a doenca de Sdo Paulo, mis


teriosamente insinuada pelo Apastólo em suas cartas ?" 205

IV. HISTORIA DA EXEGESE

5) "A exegese católica tem mudado suas sentengas, pare-


cendo em muitos pontos concordar com os autores racionalistas
contemporáneos. Nao seria isto traicño ?

Onde vamos parar ao fazer concessóes d, mentalidade liberal


moderna ? Amanhá os exegetas católicos nao trocardo de novo
seus pontos de vista ? Os próprios Evangelhos nao serdo também
interpretados diversamente ?

Nisso tudo onde fiea a infalihilidade da Igreja ?" SOS

V. MORAL MEDICA

6) "Nao é verdade que até o fim da Idade Media a Igreja


proibiu a disseóacáo de cadáveres, entravando assim o progresso
da Medicina ?" '.... SIS

COM APROVAQAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano III — N* 29 — Maio de 1960

I. CIENCIA E KELIGIÁO

R. M. J. (Volta Redonda) :

1) «Que pensar de Darwin e da sua teoría evolucionista?


Se o homem provém de viventes inferiores, que resta da
doutrina bíblica segundo a qual terá sido criado por Deus ?»

A questáo levanta o problema complexo da origem do


homem, problema que muitas vézes é formulado no seguinte
dilema : «Crfacáo ou Evolucáo ?». Ora a questáo assim ex-
pressa está "mal concebida. As dificuldades em grande parte
se esvanecem desde que as formulemos em termos exatos. É
o que tentaremos fazer abaixo, ao explanarmos a vida e a
doutrina de Charles Darwin.

1. Biografía e pensamcnto de Darwin

1. Charles Robert Darwin nasceu em Shrewbury aos 12 de


fevereiro de 1809. Desde cedo revelou grande interésse pela natureza;
seus passa-tempos prediletos eram os de colecionar minerais observar
llores, capturar insetos e pássaros, e cagar em geral; nos anos de
Gínasio, mostrou nao ter memoria para os versos de Hornero e
Virgilio, mas, sim, um pendao positivo para a Geometría e a Química,
o que Ihe valeu, como reíerem os biógrafos, a alcunha de «Gas».
Comecou estudos de medicina em Edimburgo (1825-27). O genitor
de Charles, porém, desejando que éste se tornasse ministro da Igreja
Anglicana, encaminhou-o para o Christ's College de Cambridge; con-
tudo o jovem nao perseverou nos estudos eclesiásticos; voltou, ao
contrario, a dedicar-se á Historia Natural e á Geología levando
sempre conduta de vida assaz libertina.

De 1831 a 1836 realizou sobre a nave «Beagle» urna ;ia-


gem ao longo do litoral da América do Sul e através do Océano
Indico, viagem que havia de marcar decisivamente o resto de
sua vida, pois Darwin entáo observou e colheu os muitos e
variados dados de flora e fauna necessários para arquitetar
suas futuras teorías. De volta á Inglaterra, publicou o diario
désse roteiro com o título «Journal of Researches into the
Natural History and Geology of the Countries visited during
the voyage of H.M.S. Beagle» (Londres 1839).
Em 1842 recolheu-se á aldeia de Donn, onde prosseguiu
incansávelmente até a morte (19 de abril de 1882) os seus

— 179 —
estudos teóricos e práticos; publicou varias obras, das quais
a mais famosa ficou sendo «On the Origin of Species by mean
of Natural Selection» (Londres 1859; 6a. ed. em 1882).

Os 1250 exemplares da primeira edicáo désse livro venderam-se


todos num só dia (24 de novembro de 1859). Ouviram-se natural
mente «pros» e «contras»: Adam Sedgwick, por exemplo, antigo
professor de Darwin, julgou encontrar na obra «partes totalmente
falsas e dolorosamente maliciosas»; Sir John Herschel, cientista e
filósofo, qualificou-a de «Lei da Confusüo». Outros grandes vultos,
porém, como os de Hooker, Lyell e Wallace, deram pleno apoio á argu-
mentacáo de Darwin.

2. A teoría do transformismo já fóra Jangada em 1809


pelo cientista francés Lamarck, o qual admitía o aparecimento
da vida por geragáo espontánea e o aperfeigoamento dos seres
vivos por efeito tanto de um poder evolutivo intrínseco como
por influencia do ambiente. Darwin, após a sua viagem, já
nao alimentava dúvidas sobre o fato da evolugáo ; a sua aten-
gáo voltava-se principalmente para o modo como as especies
se transforman!. A explicagáo lhe foi sugerida pelo processo
de selegáo praticada pelos criadores de animáis domésticos
: (pombos, bois, caes, cávalos...) para obter tipos ou ragas
i cada vez mais úteis ao homem : Darwin julgou que a natureza,
: por sua vez, empreende gigantesco processo de selegáo, esten-
sivo a todos os viventes. Levando em conta outrossim a recém-
-formulada lei de Malthus (1798) segundo a qual os meios
: de subsistencia nao crescem na proporgáo do aumento das
populagóes, Darwin admitiu a luta de todos os seres em prol
da sua subsistencia ; nessa luta devem perecer multidóes nume
rosas, a fim de nao se esgotarem os recursos da térra. Pois
bem ; perecem naturalmente _ os individuos mais fráeos, fi-
cando apenas aqueles que estejam adaptados" ás arduas cir
cunstancias do ambiente de vida ; a necessidade de se adaptar
terá aprimorado, nos animáis e vegetáis primitivos, as formas
variantes mais adequadas, formas variantes que produziram
nao sómente novas ragas, mas também novas especies de vi
ventes. Na obra «The Descent of Man», Darwin considerava
até mesmo o género humano como resultante do desenvolvi-
mento de animáis inferiores: as faculdades intelectuais, a
linguagem, o senso moral e as disposigóes religiosas do tipo
humano nao seriam senáo modalidades biológicas de um
.vívente primitivo, modalidades que, em virtude de sua utili-
dade, se foram conservando até hoje! A existencia, no homem,
do que se chama «o espirito», nao seria senáo um fenómeno
biológico ou o resultado do processo de_adaptagáo ao ambiente.
O cientista inglés nao negava que as especies nos parecem hoje

— 180 —
em dia estáveis e subtraidas á evolugáo, embora aínda se
imponha a luta pela vida ; explicava, porém, que tal aparéncia
é ilusoria, devendo-se exclusivamente á lentidáo das transfor-
magóes, que de fato continuam a se dar.

O principio segundo o qual a necessidade de sobreviver provoca


a formacáo de órgáos adequados levava Darwin a explicar por ésse
modo o aparecimento mesmo dos órgáos mais complexos do corpo
humano. A respeito do ólho, porém, o dentista inglés experimentou
certa hesitacao, que ele conseguiu finalmente vencer; eis o que se
lé em urna de suas cartas: «Até agora o ólho provoca-me arrepios;
mas, ao pensar ñas belas gradagóes conhecidas, minha razáo me
diz que é preciso dominar o espanto» (Vida e correspondencia t. II
pág. 124).

Em outro episodio de sua correspondencia, Darwin reconhecia


que a lei da selecto natural, fundamento de toda a sua teoría, nao
passava de mera hipótese de trabalho, visto carecer de provas devi-
damente claras:

«A crenca na selegáo natural deve hoje fundar-se inteiramente


sobre considerares de ordem geral. Quando deseemos a particulares,
podemos provar que nenhuma especie mudou ou (com outras palavras)
nao podemos provar que urna só especie tenha mudado; também
nao podemos provar que as mudancas pressupostas sejam úteis,
tese que constituí o fundamento da teoría» (carta a Bentham 22
de maio de 1863).

3. É esta, em suma, a teoría evolucionista de Darwin.


Como se vé, caracteriza-se por sua índole mecanicista ou alheia
a todo finalismo. O famoso naturalista nao deu lugar em suas
elucubragóes á acáo de urna Providencia Divina que dirija
soberanamente todos os seres, fazendo que as mudangas entre
as criaturas tenham seu sentido e convirjam para a realizagáo
de um plano sabio e grandioso. Conseqüentemente, o autor
de «The Descent of Man» reconhecia : «Nao ignoro que muitos
rejeitaráo como altamente irreligiosas as conclusóes a que
chegamos nesta obra» (trad. franc. Paris 645).
Na verdade, Darwin foi aos poucos perdendo o senso re
ligioso de sua juventude, chegando no fim da vida a flutuar
entre o deísmo (reconhecimento de um Deus que nao interfere
senáo vagamente no curso déste mundo) e o agnosticismo.
Na edigáo definitiva da obra sobre «A origem das espe
cies» (1882) ele ainda falava do «Criador»; afirmava outros-
sim : «Julgo que minhas concepgóes nao sao necessáriamente
atéias» (Vida e correspondencia, t. n pág. 175). Reconhecia
ademáis que o acaso nao explica éste mundo. O fato, porém,
é que qualquer afirmagáo da existencia de Deus, lógicamente
exigida pela observagáo da natureza, néle era minada pela
dúvida fundamental: Será que as conviegóes da inteligencia

— 181 —
humana, oriunda do psiquismo dos animáis inferiores, tém
algum valor e atingem a realidade objetiva ?
Assím, por exemplo, escrevia Darwin a um amigo em 1881:
«Exprimiste minha conviccao intima,... a saber: o universo nao
é o resultado do acaso. Mas a dúvida me assalta sempre, e pergunto-
{ -me se as conviccoes do homem, que se desenvolveu do espirito de
, animáis inferiores, tém algum valor, de sorte que nelas possamos
de algum modo confiar» (Vida e correspondencia, t. I 368).
Apenas de passagem, antectpando o que mais adiante se frisará
melhor, note-se que a sá Filosofía rejeita a expressáo «espirito de
animáis inferiores». Nos irracionais nio há espirito; cf «P R»
5/1958, qu. 1.

Em sua autobiografía, redigida em 1876, Darwin se pronunciava


de modo análogo, após haver criticado o argumento em favor da
existencia de Deus derivado da conviccao Intima da maioria dos
homens:
«Impressiona-me por seu peso... aínda outro motivo de crer
na existencia de Deus. Tal motivo é a extrema dificuldade ou, antes,
a impossibilidade de conceber o universo prodigioso e imenso em
particular o homem, com sua faculdade de se referir ao passado e
de considerar o futuro, como o resultado de um destino ou de urna
cega necessidade. Refletindo, sinto-me levado a admitir urna Causa
primeira, dotada de espirito inteligente, análogo sob certos aspectos
ao espirito do homem; mereco entáo ser chamado deista. Tal
conclusSo, alias, estava fortemente arraigada em meu espirito enquan-
to me posso lembrar, na época em que escrevi 'A origem das especies'•
foi depois désse periodo que tal conviccao se debilitou muito grada-
tivamente, e com varias hesitac5es. Urna duvida, porém, surge em
mim: o espirito do homem, que, segundo me parece, nao era a principio
mais desenvolvido do que o espirito de animáis inferiores, merecerá
confianca quando ele deduz táo importantes conclusóes?» (Vida e
correspondencia, t. I 363s).
Enfim, parece que, solapado por sua própria teoría evolucionista
Darwin perdeu cada vez mais a nocáo de um Deus Bom e Providente
para cair no quase completo agnosticismo:
«Ñas minhas mais graves oscilacSes, jamáis cheguei ao ateísmo
no sentido próprio da palavra, isto é, nunca neguei a existencia de
Deus. Creio que de modo geral, na medida" em qué vou envelhecendo,
a descricáo mais exata do meu estado de ánimo é a do agnóstico»
(Correspondencia, trad. franc. Paris 1888, pág. 354).

4. O varáo cujo pensamento fica assim delineado, tor-


nou-se no setor da biología empírica um dos maiores vultos
do sáculo passado ; chamando a atencáo para o fator «evolu-
cáo», inegávelmente abriu novos horizontes para muitas pes
quisas científicas (no setor da etnologia, da sociología, da
economía, etc.). A figura do naturalista inglés foi realeada
em 1959, quando se celebrou o primeiro centenario da publi-
cagáo da obra «Sobre a origem das especies». Fica, porém,
no espirito de muitos observadores urna dúvida assim conce
bida : pode alguéni ser evolucionista sem cair, como Darvvin,

— 182 —
no agnosticismo ou mesmo no materialismo puro ? Se a for-
, magáo das especies se explica por evolucáo, onde fica a idéia
de um Deus CriadoS de todas as coisas, visíveis e invisíveis ?
Nao teráo razáo os que propóem o dilema : «Ou Criagáo e
crenca em Deus ou Evolucáo e renegado de Deus ?».
É a tais questóes que vamos dedicar o parágrafo seguinte.

2. Criacáo ou evolugáo ?

1. O dilema ácima formulado é inconsistente, pois os


dois termos nao se excluem mutuamente.
Com efeito. Que se entende por «criagáo»?— Criagáo é
o ato de dar existencia a um ser a partir do nada.
E que se entende por «evolugáo»? — Evolugáo nao é senáo
o desenvolvimento de materia preexistente que tende a formas
de existencia cada vez mais perfeitas.
Ora o fato de que criagáo e evolugáo nao se excluem re
ciprocamente se prova pela observagáo seguinte : quem fala
de materia em evolugáo, tem que explicar donde provém
essa materia.
I Se diz que está eternamente, ou sem principio, em evo
lugáo, afirma algo de impossível ou, mais precisamente, algo
i que a ciencia da termodinámica rejeita:' esta ensina, sim, que
o movimento do universo tende a um estado de equilibrio ou
de repouso; ora, se tende ao repouso, comegou a partir do
repouso; o movimento, portante, teve principio e terá fim ;
o nosso universo, se nao tivesse comegado a se mover em época
relativamente recente, estaría agora em estado de equilibrio
ou de imobilidade. Donde se vé que a materia em evolugáo
nao se explica por si mesma ; ao contrario, ela supóe um Ser
absoluto que lhe tenha dado a" existencia a partir do nada e
o seu respectivo movimento. Ésse Ser absoluto é o Criador,
Deus, sem dúvida alguma diverso da materia. Cf. «P.R.»
6/1957, qu. 1.
\ Em última análise, pois, criagáo e evolugáo nao se ex-
jcluem. Quem é criacionista, pode ser também evolucionista, e
¡vice-versa.
2. Faz-sre mister, porém, examinarmos de mais perto
em que termos se dá a conciliagáo das duas posig5es.
Para explicar o mundo presente, requerem-se natural
mente tantos atos criadores de Deus ou tantas produgóes a
partir do nada quantos sao os tipos de criaturas irrédutíveis
um ao outro. Ora, na verdade dois sao os tipos de criaturas
dos quais um nao se pode derivar do outro: a materia e o
espirito. — A materia pode ser inanimada ou animada, ani-

— 183 —
mada por vida vegetativa apenas ou por vida vegetativa e sen
sitiva. Quanto ao espirito, ele é sempre animado, e animado
por vida intelectiva. Cf. «P.R.» 7/1958, qu. 1.

É o que em esquema assim se pode reproduzir:

INANIMADA: mineral

MATERIA ESPÍRITO: animado por


(vegetal vida intelec
tiva
sensitiva
(animal irracional)

Por conseguinte, as grandes etapas da origem do mundo


e do homem assim se poderiam, a rigor, reconstituir :
Deus, por um ato criador (isto é, produzindo a partir do
nada), terá dado existencia á materia primitiva (informe, em
estado de nebulosa oü como a ciencia"julgár ihais verossímil).
ij'A essa materia inicial o Criador haverá comunicado as leis
!j !de seu sucessivo aperfeigoamento (ou de sua evolugáo) : a
materia entáo, sob o regime da Providencia Divina, terá pas-
sado lentamente pelas transformagóes que os astrónomos e
geólogos apontam, de modo a constituir o nosso sistema pla
netario e, dentro déste, o globo terrestre com suas rochas e
seus minérios. A vida vegetativa e a vida sensitiva, sendo
ambas derivadas de um principio material (que, conforme
ensinam os filósofos, é eduzido da materia e reabsorvido por
esta), podeniter aparecido-por evolugáo da materia, sem que,
a rigor, tentiam sido diretamente criadas a partir do nada.
A materia animada (o reino animal) se terá desenvolvido até
chegar ao grau de complexidade e perfeigáo necessário para
ser sede da vida espiritual ou intelectiva. Entáo, após táo longa
fase de evolugáo, necessáriamente Deus terá intervindo de
!!jiovo mediante um ato criador (a rigor, poderia ser o segundo
I ato criador) para produzir a alma humana... Esta, em abso
luto, nao pode provir da materia, ppis, como foi demonstrado
em «P. R.» 5/1958, qu. 1, ela é espiritual, e o espirito se dis
tingue essencialmente do corpo.

Em poucas linhas, todo o plano se poderia assim resumir:

Ato Criador EVOLUCAO REGIDA PELA PROVIDENCIA Ato Criador

ProducSo da Ma- Aparecimento Apareclmento Aparecimento Produc&oda


téria Primitiva dos Minerais dos Vegetáis dos Animáis Alma Humana
Irraclonais

— 184 —
Tornam-se oportunas algumas observagóes ao esquema
ácima:
1) Nao há dúvida, toda e qualquer alma humana, no
decorrer dos sáculos, tem a mesma órigem, ou seja, é direta-
mente criada por Deus.
2) Entre os dois atos criadores ácima notados, é claro
que Deus pode ter efetuado outros atos criadores. Nao poucos
estudiosos julgam que a vida, mesmo em seu grau ínfimo (que
é o grau vegetativo), nao se pode explicar por simples pro-
cesso evolutivo da materia (a vida vegetativa nao poderia estar
contida dentro da potencialidade da materia, embora o seu
principio vital seja material) ; em tal caso, tornar-se-ia evi-
__dente que Deus interveio no mundo para criar os primeiros
seres vivos. Há também quem julgue impossível a transicáo
dé urna especie para outra nos reinos vegetativo e sensitivo;
Deus entáo terá interferido com sua potencia criadora tantas
vézes quantas sejam necessárias para explicar as diversas
■especies de viventes (note-se, porém, que é difícil delimitar
as especies e que as intervencóes criadoras de Deus nao sao
perceptíveis ao dentista, pois nao deixam vestigios diretos ñas
carnadas dá térra).
y Ao confeccionar o esquema ácima, o que nos interessava era
'únicamente mostrar o que, no mínimo, se deve admitir no tocante
aos atos criadores de Deus; as duas intervencóes apontadas bastam,
a rigor, tanto aos olhos da Filosofía como aos da Revelacáo crista,
para explicar o mundo presente.

3) A quem pergunta se «o homem foi criado por Deus


ou é proveniente do macaco» (é assim que popularmente se
costuma formular a questáo), dever-se-á necessáriamente res
ponder mediante urna distincáo :
a alma humana, em toda e qualquer época, é criada por
Deus;
o corpo humano pode-se ter originado por evolugáo de
' corpo já animado ; quem deve decidir e explicar a questáo sao
os homens de ciencia, pois a Revelacáo nao tem doutrina pró-
pria sobre o assunto. Hoje em dia os estudiosos diriam que
o corpo humano, caso seja produto de evolucáo, descende nao
dos macacos atuais, mas de um vívente mais primitivo, do
qual tanto o homem como os simios modernos sao oriundos.

3. Mais urna vez Darwin...

De quanto acaba de ser dito, percebe-se que o que a sá razao e a


Religiáo tém a objetar a Darwin nao é, de modo algum, o íato de
ter ele apelado para a evolucáo a íim de explicar a origem das

— 185 —
especies. Duas outras sao as dificuldades que o filósofo e o teólogo
formulam contra o darwinismo: ^

1) a Índole mecanicista da evólugáo apregoada pelo


dentista inglés. Nao levando em conta o finalismo do universo
(inanimado e animado), Darwin entrou em conflito com a
nQ£áo^e^ejJs^.to_e_pjrpyidente. Éste se compraz, sim, em
utilizar as criaturas e süá potencia evolutiva para atingir
fins grandiosos, mas nunca teria abandonado as criaturas a
urna luta cega e mecánica em prol da própria subsistencia.

O finalismo dos diversos processos evolutivos é hoje em dia


geralmente admitido; quanto mais os estudiosos conhecem os seres
vivos, tanto mais néles percebem a tendencia a conservar sua estrutura
característica, ao mesmo tempo que se adaptam ás necessidades da
luta pela vida; tenha-se em vista, por exemplo, o mimetismo de
muitos organismos, que tomam colorido e formas acomodadas ao
ambiente onde se acham (sabem até mesmo «imitar o morto»...);...
os olhos com lentes bifocais no peixe tetroftalmo, que, vivendo á
tona da agua, precisa de ver tanto debaixo da agua como fora
desta;... as varias simbioses, como a da alga e do cogumelo;...
a vasta escala de instintos nos animáis, alguns dos quais visam
acontecimentos posteriores á própria morte dos agentes (assim há
borboletas que pOem seus ovos dentro da planta necessária para
alimentar a futura larva após o desaparecimento da borboleta
máe...);... a distribuigao das fdlhas nos ramos de modo a se ofe-
recerem a luz...
I' Verificando tais e outros fatos, muitos estudiosos modernos (ca-
itólicos e náo-católicos) professam o evolucionismo, evolucionismo,
Iporém, finalista (orientado por urna Inteligencia suprema, que parece
ter deixado um vestigio de Si em cada ser vivo).

2) O sistema de Darwin é falho outrossim por nao re-


conhecer a diferenca entre espirito e materia. Darwin mesmo
foi vítima dessa posigáo, pois julgava conseqüentemente nao
poder atribuir grande valor as suas faculdades intelectivas,
', visto que as considerava quais meras excrescencias do psi-
iquismo do animal bruto ou irracional.

Em termos positivas, a distlncao entre espirito e materia já foi


explanada em «P. R.» 5/1958. qu. 1.

Em conclusáo : o que no século passado tornou o darwi


nismo infenso -as escolas católicas, foram as idéias filosóficas
com as quais o naturalista inglés e seus discípulos associaram
as teses evolucionistas. Com o decorrer dos tempos, verificou-se
que tal associagáo nao é em absoluto necessária. Há distin$ao
nítida entre darwinismo e evolucionismo,' como foi evidenciado
atrás; salva-se a doutrina da evolugáo biológica, sem que se
renegué a Providencia de Deus, que criou a materia e o es
pirito e que tudo governa.

— 186 —
Nao se poderia encerrar a presente resposta sem urna referencia
aos fascículos de «P. R.» nos quais sao elucidadas as páginas da S.
Escritura atinentes k origem do mundo e do homem. Veja-se:

«P. R.» 26/1960, qu. 4 (criacáo do mundo em seis dias?);


«P. R.» 7/1958, qu. 1 (origem da vida);
«P. R.» 4/1957, qu. 1 (origem do primeiro homem e da primeira
mulher) ;
«P. R.» 7/1957, qu. 2 (origem das ragas humanas);
<P. R.» 9/1958;;qu. 1 (teoría de Teilhard de Chardin);
<P. R.» 20/1959, qu. 4 (monogenismo ou poligenismo? Um ou va
rios casáis na origem do género humano?).

H. DOGMÁTICA

PENNA (Belo Horizonte) :

2) «Se Deus quer que todos os homens se salvem, se


gundo ensina Sao Paulo a Timoteo (cf. 1 Tim 2,1-5), eomo
se pode admitir que alguns incorram em condenacao eterna?»

Antes do mais vamos colocar o problema em termos cla


ros ante os nossos olhos; a seguir, analisaremos a sua solugáo
clássica.

1. O problema

1. Compulsando a Sagrada Escritura, o leitor nela en-


contra urna serie de textos que afirmam a vontade salvífica
universal de Deus (ou o desejo que o Senhor tem de salvar
todos os homens).
a) Assim desde os inicios do Antigo Testamento ressoá
a promessa de um futuro Redentor destinado a todos os homens
sem restrigáo: «Porei inimizades entre a linhagem da mulher
e a linhagem da serpente...» (cf. Gen 3,15s).

Quando em 1800 a. C. Deus escolhe Abraüo e seus descendentes


para constituirem a estirpe do Messias, prediz que por essa dispo-
sicao seráo largamente agraciados todos os povos: «Todas as nagóes
da Térra serao abencoadas por teu intermedio» (Gen 12,2s; cf. 22,18).
Por meio de Israel Deus quis proporcionar a salvacáo ao género
humano inteiro, como, alias, freqüentemente inculcam os Profetas:
cf. Is 49,6; 53,11; 60,1-4; 66,18-23; Zac 8,20-23; 14,16-19.

Por fim, o Senhor mais de urna vez ñas Escrituras Sagra


das declarou explícitamente que «nao quer a morte do pecador,
mas, sim, que se converta e viva» (Ez 33,11; cf. 18,27s), pois
Ele ama todas as criaturas, principalmente os pecadores peni
tentes (cf. Sab ll,24s; 12,16-22).

— 187 —
b) Muito mais rico em testemunhos congéneres é o Novo
Testamento, onde Jesús aparece como «o Cordeiro de Deus
que tira os pecados do mundo» (cf. Jo 1,29) ou como o Filho
que Deus Pai, por amor, entregou para salvar o mundo (cf. Jo
3,16). É Sao Paulo quem com a máxima clareza desvenda o
designio divino:

«Antes do mais, exorto a que se íacam preces, oraches, súplicas e


acñes de gracas por todos os homens... Isto é bom e agradável aos
olhos de Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus
e um só Mediador entre Deus e os homens: Cristo Jesús homem,
que se deu em resgate por todos» (1 Tim 2,1-6).
Qualquer interpretacáo restritiva do texto seria alheia á intencño
do Apostólo: a salvagáo é universal, porque Cristo, o único Salvador,
morreu por todos. Note-se, alias, a tríplice ocorréncia do termo
«todos» na passagem ácima.

Sao Pedro, por sua vez, faz observar que «o Senhor...


procede com paciencia..., nao querendo que alguém pereda,
mas, ao contrario, désejando que todos recorram á penitencia»
(2 Pdr 3,9).
Em conclusáo, os textos até aqui citados dáo a ver que
da parte de Deus nao há restrigáo alguma á salvagáo dos
homens ; todos recebem o mesmo chamado e os mesmos meios
para entrarem no gozo da bem-aventuranga eterna.

2. É inegável, porém, que, nao obstante essa vontade


salvífica universal, nem todos os homens de fato se salvam,
conforme atesta a Sagrada Escritura mesma.
Chama-nos a atengáo, por exemplo, o trecho no qual Cristo
descreve o julgamento final, prevendo certo número de homens
colocados á sua esquerda, onde ouviráo a sentenga de repro-
vagáo : «Retirai-vos de Mim...!» «Estes, diz o Senhor, iráo
para o castigo eterno, ao passo que os justos entraráo na vida
eterna» (cf. Mt 25,41. 46).
É notorio também o fecho da parábola das dez virgens,
das quais cinco, retardatarias por sua negligencia, batem a
porta do Esposo, ouvindo por resposta : «Em verdade vos
digo : nao sei quem sois !» (Mt 25,12).

De resto, as parábolas escatológicas (ou concernentes ao fim dos


tempos) costumam referir urna sentenca de condenacáo para os que
tiverem desprezado a graca de Deus; cf. Mt 25,30 (parábola dos/
talentos)! Le 19,24-27 (parábola das minas); Mt 24,50s (parábola do
servo infiel); Mt 22,13 (parábola dos convidados as nupcias).

Sao Paulo enumera mesmo algumas categorías de peca


dores que nao poderáo possuir o Reino de Deus :

— 188 —
«Nao sabéis que os injustos nao hSo de possuir o Reino de
Deus? Nao vos iludáis! Nem os fornicadores, nem os idólatras, nem
os adúlteros, nem os efeminados, nem os infames, nem os fraudulentos,
nem os avarentas, nem os ebriosos, nem os caluniadores, nem os
ladrOes possuiráo o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9s).

Em outra passagem acrescenta o Apostólo:


«As obras da carne sao estas: fornicacáo, impureza, libertinagem,
idolatría, magia, inimizades, contenda, ciume, ira, rixas, discordias,
faccóes, sentimentos de inveja, embriaguez, orgias e outras coisas
semelhantes. Já vos admoestei e de novo admoesto: aqueles que
praticam essas coisas, nao teráo parte no Reino de Deus» (Gal 5,19-21).

3. Recapitulando a doutrina da Sagrada Escritura, veri-


fica-se que duas proposigóes sao, com igual certeza, incutidas
pelo texto bíblico:
Deus qucr, sim, salvar todos os homens;
na verdade, porém, nem todos se salvaráo.
Daí resulta um problema nao desprezível. Com efeito;
nada acontece em contrariedade a soberana vontade de Deus,
nem mesmo a ruina dos pecadores ; como entáo conciliar a
vontade salvifica universal do Criador com a perda dos repro
bos de que falam Jesús e o Apostólo ?

A resposta a esta questao foi-se esbocando desde o séc. III


(Tertuliano); chegou á sua formulacáo adequada nos escritos de Sao
Joüo Damasceno (t749), formulacáo que Sao Tomaz explicitou e
sancionou definitivamente. Consideremo-la rápidamente.

2. A solucáo clássica

1. Nada acontece sem a participacáo da vontade de


Deus, dizia-se atrás.
Faz-se mister, porém, distinguir entre vontade antece
dente c vontade conseqüente.

Chama-se vontade antecedente a vontade que se aplica ao seu


objeto considerado em si mesmo, ou abstracto feita das notas con
cretas acidentais de que ésse objeto se possa revestir na realidade.
Vontade oonseqüentc, ao contrario, é a vontade que visa o seu objeto
tal como ele existe na ordem real, concreta, ou tal como ele se
apresenta no plano da historia. Pode acontecer que certo objeto,
considerado em si mesmo ou em suas notas essenciais, deva ser
tido como bom; visto, porém, a luz das circunstancias concretas em
que ele realmente existe, poderá merecer apreciagáo totalmente
diversa.
Aplicando a distincao á questáo focalizada, diremos:

Deus, em sua vontade antecedente, quer que todos os


homens se salvem. Com efeito ; Deus outorgou a todos a
mesma natureza sequiosa do Bem infinito. Por conseguinte,

— 189 —
considerando o homem segundo as notas essenciais da sua
natureza, Deus certamente quer a salvagáo ou a posse da
bem-aventuranea para todos os homens ; foi em vista da feli-
cidade eterna, e sómente em vista desta, que o Senhor criou
o género humano.
Considerando, porém, cada individuo humano de per si,
tal como comparece perante o juízo de Deus após o currículo
desta vida, o Senhor nao pode querer que todos tenham indis
tintamente a mesma sorte bem-aventurada, pois nisto haveria
injusticia. Na realidade, alguns homens, abusando do livre ar
fa'trio, frustram sua vocacáo para a bem-aventuranga eterna,
aderindo incondicionalmente as criaturas. Sobre ésses o Se
nhor Deus tem que proferir sentenga diversa da que compete
as almas retas. Portante, em sua vontade consecuente, Deus,
justo como é, nao pode querer a salvagáo de todos os homens,
mas há de querer o castigo dos maus (alias, ésse «querer o
castigo dos maus», em última análise, nao é senáo «respeitar
a livre opgáo dos que se quiseram saciar com as criaturas»,
como ainda mais claramente diremos abaixo).

Um caso análogo ilustra bem a doutrina proposta. Um juiz, antes


que se ponha a julgar as causas dos acusados, quer, cm volitado ante
cedente, absolver a todos, se possível. Acontece, porém, que, após
examinar processo por processo, em sua vontade conseqüente, ele
tem que querer a punicao dos réus. Absolver a todos, sem d'stingáo
de inocentes e culpados, nao seria justo nem contribuiría para o
bem comum.

2. Algumas observagóes tornam-se agora oportunas a


fim de se apro fundar quanto acaba de ser dito.
a) Como se entende, a distincáo entre vontade antece
dente e vontadt! conseqüente nao implica imperfeigáo em Deus.
Na verdade, tudo é simultaneo perante o Senhor ; contudo
as criaturas, ás quais se aplica a vontade divina, podem e
devem ser consideradas segundo modalidades diversas, ou
seja, ora em si mesmas, no plano das meras idéias, ora reves
tidas de suas notas concretas e contingentes, no plano das
realidades históricas. É o que nos habilita a falar de vontade
antecedente e vontade conseqüente em Deus.

b) Note-se aínda que a vontade antecedente do Senhor, que quer


salvar todos os homens, nao é mera veleidado estéril. Nao; é vontade
eficaz, no sentido de que ela quer e prepara para todos os homens,
indistintamente, os meios necessários á salvacáo; contudo o Senhoi-
dignou-se condicionar os resultados désses meios á aquiescencia do
livre arbitrio do homem, de sorte que, embora tudo esteja preparado
da parte de Deus, nenhum fruto positivo de salvacáo se obtenha,
caso o homem recuse as gracas outorgadas pelo Pai do céu. Em

— 190 —
outros termos: Deus, ao querer a salvagSo de todos os homens em sua
vontade antecedente, quer salvar sem extinguir o livre arbitrio do
homem; antes, ... envolvendo a livre colaboragáo da criatura; o
Todo-Poderoso nao quis dotar o homem de livre arbitrio para redu-
zí-lo, no momento decisivo, á categoría de autómato.

c) A vontade conseqüente segundo a qual Deus nao


quer que tal ou tal individuo em particular se salve, é vontade
meramente permissiva. Na verdade, o Senhor apenas permite
que o homem se condene ; nunca decreta a condenacáo da
criatura por um ato positivo e explícito. Todas as vézes que
urna alma humana se perde, deve-se dizer que foi essa criatura
quem escolheu livremente tal sorte, desprezando os auxilios
da graga a ela dispensados pelo Criador ; Éste apenas reconhece
o alvitre do livre arbitrio criado ; nao o violenta, porque a
violentagáo equivaleria a contradigáo e incoeréncia por parte
do Criador (é por nao levarem em conta éste pormenor que
tantas pessoas nao véem como conciliar a bondade de Deus
com a infelicidade postuma do homem).

d) Naturalmente o estado de condenacáo nao tem fim.


Nao é necessário que Deus decrete isto por um ato explícito
de sua santissima vontade; a perpetuidade da condenacáo pos
tuma é simples conseqüéncia do fato de que a alma humana
é por si imortal (nao consta de partes que se possam decompor,
acarretando a morte); ela permanece, portanto, indefinida
mente na disposicáo mesma em que a morte colheu o res
pectivo indiv'duo.
E porque nao poderia a alma mudar de disposigóes após
a morte ?
Ela nao o pode porque é sómente em uniáo com o corpo,
nesta vida mortal, que a alma pode adquirir novas idéias e,
mediante estas, novos afetos ou novas tendencias... Tal é a
psicología humana.

e) Eis como em poucas palavras Sao Joáo Damasceno resume


toda a doutrina da vontade salvífica de Deus:
«Deus quer. por sua vontade primaria e antecedente, que todos
os homens sejam salvos e feitos participantes do seu Reino. Com
efeito, Ele nos cria, nao para nos punir, mas porque é bom, para nos
fazer usufruir da sua bondade. ... Essa vontade primaria e ante
cedente coincide própriamente com o desejo de Deus; em Deus está
a causa dessa vontade. A outra vontade [ou modalidade do querer]
é chamada conseqüente; consiste apenas numa permissáo; ela tem
sua raiz em nossos atos» (De fide orthodoxa II 29).
Eis os respectivos textos de Sao Tomaz: In I Sent, dist. XLVT
<]u. 1, a. 1. ad 2; De verit. qu. XXIII a. 2; S. Theol. I qu. XIX a. 9;
qu. XXII a. 2; qu. XXIII a. 5 ad 3.

3. Voltando agora ao texto de Sao Paulo, 1 Tim 2,1-5, observa


remos um pormenor assaz significativo:

— 191 —
Ao afirmar que Deus quer a salvacao de todos os homens o
Apostólo emprega o verbo thélo (thélei, em 1 Tim 2,4). Ora tal verbo
nos hvros do Novo Testamento em geral, significa freqüentemente
um designio que Deus mesmo se digna condicionar a certos fatóres
sem Ihe atribuir eficacia absoluta (cf. Mt 23, 37: «Jerusalém, Jeru-
salém, ... quantas vézes quis [ethélesa] Eu reunir teus filhos como
a galinha reúne os pintinhos debaixo de suas asas... e tu nao o
quiseste!»). Ao contrario, quando os escritores sagrados tencionam
exprimir um decreto absoluto da vontade divina usam o verbo bóulo-
mai! ct. 1 Cor 12, 11; Le 10,22; 22,42; Hebr 6,17; Mt 11,27; Me 15,15;
Al JOO6 2O2T

Esta nota filológica corrobora bem a conclusáo ácima exposta


de que a vontade salvífica universal de Deus nao é absoluta, mas é,
pelo • próprio Senhor, condicionada á livre colaboracáo da criatura
humana.

4. A titulo de ilustracáo, seguem-se algumas sentengas menos


felizes, propostas por S. Agostinho para conciliar a vontade salvífica
universal de Deus com a perda dos reprobos:
a) explicacao distributiva; Deus nao quer própriamente a sal
vacao de cada criatura individual, mas a de representantes de todos
os tipos humanos (reis, nobres, plebeus, doutos, indoutos, etc.); cf.
Enchir. 103;
b) explicacáo restritiva; Deus quer a salvacao de todos os homens
que de fato venham a ser salvos; aqueles que se salvam só se salvam
porque Deus o quer. — OS. Doutor ilustra esta interpretacáo me
diante a seguinte imagem: dado que numa determinada aldeia só
haja um mestre de escola, diz-se que todos os habitantes da aldeia
recebem déle a sua lnstrucao; é verdade que nem todos vao á escola,
mas o fato é que os que vao á escola e aprendem letras só as aprendem
por intermedio de tal mestre... Ora, de modo semelhante. conforme S.
Agostinho, dir-se-ia que Deus quer salvar todos os homens, nao
porque de fato todos se salvem, mas porque os que se salvam, só
se salvam por vontade de Deus; cf. De praedestin. sanct. 8,14;
c) explicacüo pedagógica. Na verdade, S3o Paulo apenas teria
intencionado dizer: Deus quer que nos queirantos a salvacao de todos
os homens. Cf. de corrept. et gratia 15,47.
5. Agostinho só propós tais sentencas a guisa de hipóteses e
nos últimos escritos de sua vida; visava, com isso, reprimir o otimismo
herético dos pelagianos, que atribuiam a natureza humana plena
capacidade para se salvar por si mesma, sem o auxilio da graca
divina. O S. Doutor, porém, nunca retratou a sentenca clássica, que
ele mesmo adotara em seus escritos anteriores, sentenca segundo a
qual a salvacao é oferecida por Deus a todos os homens sem excecüo.
Conseqüentemente, nao se dará grande peso a alguma das hipóteses
ácima recenseadas.

3. Declaracoes do magisterio eclesiástico

Nao se poderla encerrar a presente explanagáo sem se


citarem algumas importantes afirmacóes de concilios e Sumos
Pontífices... Daráo a ver melhor como a Santa Igreja sem-
pre repeliu qualquer concepeáo pessimista a respeito da sal
vacao eterna, afirmando que só se perdem os homens que

— 192 —
livremente resistem á graga divina. Eis os textos que mais
interessam ao estudioso da questáo:

1) O símbolo niceno-constantinopolitano no séc. IV professa:


«O Filho de Dsus.... por causa de nos, homens, e da nossa salvacáo,
desceu dos céus... também foi crucificado em nosso favor» (Den-
zinger, Enchiridion 86).
2) O concilio regional de Arles (475) promulgou urna carta
assinada por doze bispos, a qual, entre outras teses, condenava as
seguintes: «Aquéle que pereca, nao recebeu os meios para se salvar»
(can. 2); «Cristo nao morreu por todos, nem quer que todos os
homens se salvem» (can. 6).
3) O concilio regional de Quierzy (853) teve que tomar posigáo
frente a Godescalco, heresiarca segundo o qual Deus desde toda a
eternidade predestinou os reprobos para a condenacño eterna. Eis
como se pronunciaram os Padres conciliares:
«Deus Todo-Poderoso quer que todos os homens. sem excecáo,
sejam salvos. Se certos dentre éles se salvam, isto se faz por dom
d'Aquéle que salva; se, porém, certos perecem, isto acontece por
culpa dos que perecem» (can. 3);
«Nao há, nao houve, nem haverá jamáis algum homem, do qual
Cristo Jesús, Nosso Senhor, nao tenha tomado a natureza. Da mesma
forma, nao há, nao houve, nem haverá jamáis homem por quem
Ele nao tenha sofrido, se bem que nem todos se beneficiem do resgate
mediante o misterio de sua Paixáo. O fato de que nem todos se
beneficiam do resgate mediante o misterio de sua Paixao, nao afeta
de modo algum a grandeza e a abundancia do prego, mas deve-se
únicamente á atitude de quem nao tem fé ou de quem nSo possui
a fé que age pela caridade. O cálice da salvacáo humana, preparado
para a nossa fraqueza pelo poder divino, contém o necessário para
aproveitar a todos; mas, se alguém nao o beber, nao será por ele
curado» (can. 4).
4) Em 855 o concilio de Valenga (Franca) afirmava:
«Ninguém é condenado por um juízo previo de Deus, mas, sim,
porque o mereceu mediante a sua própria iniqüidade. Os maus,
portanto, perecem nao porque nao puderam ser bons, mas porque
nao o quiseram e por sua culpa permaneceram na massa condenada
em conseqüéncia do seu demérito original ou mesmo atual» (can. 2).
«Reprovamos com horror aqueles... que créem nessa monstruo-
sida.de, a saber: que alguns tenham sido predestinados ao mal pela
potencia divina... de tal sorte que nao possam ser senáo maus...»
(can 3).
5) Em 1547, o concilio ecuménico de Trento repetia palavras
de S. Agostinho assim concebidas:
«Deus nao preceitua coisas impossíveis; sempre que preceitua
algo, Ele exorta o homem a fazer o que esteja em seu alcance, e a
pedir o que ultrapasse ésse seu alcance» (Denzinger, ob. cit. 804).
6) Em 1653, o Papa Inocencio X condenava, entre outras pro-
posicdes de Cornélio Jansénio, a seguinte:
«É semipelagiano (isto é, herético) dizer que Jesús Cristo morreu
ou que derramou o seu sangue por todos os homens» (Denzinger 1096).
Essa proposicáo, interpretada no sentido de que Cristo só morreu
pelos predestinados, foi tida como impía, blasfematoria, injuriosa,
ofensiva á bondade divina e herética.

— 193 —
7) Em 1690 Alexandre VIII anatematizava mais as seguintes
sentencas jansenistas:
«Cristo se ofereceu a Deus Pai em sacrificio por nos, nao pelos
escolhidos apenas, mas também por todos as íiéis, e sómente por
estes» (Denzinger 1294).
«Os pagaos, os judeus, os herejes e outros homens semelhantes
nao recebem influxo algum de Jesús Cristo; donde deduzirás que
sua vontade está destituida de todos os recursos para se impor,
assim como de toda graca suficiente» (Denzinger 1295).

Os teólogos modernos tém estendido os seus estudos aos


mais variados aspectos do problema : salvagáo dos pecadores
obstinados, dos apóstatas, dos pagaos, das criangas falécidas
sem batismo, etc. Concordam em afirmar que Deus quer a
salvagáo de todos, concedendo a cada individuo as gragas su
ficientes para isso ; divergem, porém, entre si, ao tentarem
indicar o modo como o Senhor distribuí suas gragas ; em
última análise, o motivo dessa divergencia acidental é a sobe
ranía do comportamento divino, cujas sabias normas o homem
jamáis poderá discernir cabalmente.
Após quanto foi até aqui ponderado, o cristáo fará con-
seqüentemente um ato de incondicional entrega as disposigóes
da Providencia Divina, que certamente tudo dirige para a
santificagáo dos fiéis. O discípulo de Cristo procurará viver
dessa certeza, sabendo que cada um de seus atos o pode e
deve encaminhar para a vida eterna. E deixará de lado ques-
tóes sutis, que só servem para desviar dos verdadeiros valores
a atengáo dos homens curiosos !

ALICE (Rio de Janeiro) :

3) «Como se justifica o culto das reliquias tradicional-


mente praticado pelos cristáos, mas difamado por autores
modernos ?»

Por «reliquias» entendem-se própriamente os despojos


mortais (fragmentos, da carne ou dos ossos) dos santos. Em
sentido largo, compreendem-se também os objetos que de
algum modo entraram em contato com ésses santos (vestes,
trastes, pedagos de paño, etc.).
Já que tais elementos gozam de culto público na Igreja,
interessa-nos aqui averiguar, antes do mais, os inicios désse
culto. A seguir, consideraremos o seu significado teológico,
assim como as normas promulgadas pelo Direito Canónico
para evitar abusos nesse setor.

294
1. Fundamento e origem do coito das reliquias

A. Os fundamentos bíblicos

Em se tratando de reliquias, torna-se particularmente im


portante distinguir entre o Antigo e o Novo Testamento.

a) No Antigo Testamento, verifica-se respeito notável no sepul-


tamento de deíuntos insignes, como Abraáo (cf. Gen 25,9s), Jaco
(cí. Gen 50,12s), José (cf. Gen 50,24-26; Éx 13,19), Davi (cf. 3 Rs
2,10)... O texto sagrado refere também como Deus, mediante o
manto de Elias, se dignou realizar um milagre: Eliseu, ferindo as
aguas do Jordao com essa reliquia do grande profeta, conscguiu
separá-las em duas bandas (cf. 4 Rs 2,14); lé-se outrossim que os
ossos de Eliseu, postos em contato com um cadáver, tornaram-se
instrumentos para a ressurreicao do mesmo (cf. 4 Rs 13,21).
Em geral, porém, o judeu nao podia deixar de ser muito sobrio
no seu apreso a despojos mortais, pois as leis rituais do Antigo
Testamento tinham o cadáver na conta de objeto legalmente imundo,
ou seja, objeto cujo contato alheava do culto sagrado. Era preciso
que na consciéncia do povo de Deus tomasse vulto a idéia da futura
ressurreigáo dos corpos para que se estimasse melhor o valor do
corpo humano, valor que subsiste mesmo após a morte do respecfivo
individuo.
Ora a crenca na glorificacüo final dos corpos íoi amadurecendo
aos poucos em Israel até ser afirmada com toda a clareza depoís
que Jesús Cristo se mostrou aos homens como novo Adáo ressuscitado,
ou seja,

b) no Novo Testamento. No conjunto de escritos assim


designados, encontramos alguns textos que contém em cerne
a justificativa do culto das reliquias :

a') At 19,lls: «Deus realizava milagres extraordinarios por


intermedio de Paulo, de modo que lencos e outros panos que haviam
tocado o seu corpo, eram aplicados aos doentes; entáo afastavam-se
déstes as molestias e eram expulsos os espiritas malignos».

Nesta passagem, como se vé, certos objetos consagrados


pelo contato com o corpo de um santo (ainda que vivo) sao
utilizados por Deus como instrumentos de milagres ; os fiéis
parecem ter estimado e guardado tais trastes com profunda
veneragáo. Note-se também que, pouco depois de referir o
episodio ácima, Sao Lucas faz questáo de dissipar a impressáo
de que os milagres efetuados por intermedio de Paulo tenham
tído algo de comum com as artes mágicas de judeus ou pagaos:

«Muitos dos que haviam acreditado (em Cristo), iam confessar


e declarar as suas obras. Muitos também, que tinham exercido artes
mágicas, ajuntaram os seus livros e queimaram-nos em presenca
de todos. Calculou-se o seu valor, e achou-se que montava a cmqüenta

— 195 —
mil moedas de prata. Foi assim que o poder do Senhor fez crescer
a palavra e a tornou sempre mais eficaz».

b') Mt 9,20s: o Evangelho nos refere como u'a mulher


hemorroíssa se víu curada por haver tocado a orla do manto
de Cristo :

«Eis que u'a mulher que, havia doze anos, sofría de um fluxo
de sangue, se aproximou d'Éle (Jesús) por tras e Lhe tocou a orla
do manto. Dizia consigo: 'Se eu tocar ainda que seja apenas as
suas vestes, serei curada'. Jesús voltou-se entáo e, vendo-a, lhe disse:
'Tem confianca, minha filha, a tua fé te salvou'».

Neste episodio chama de modo particular a nossa atencáo


a aprovagáo indiretamente dada por Jesús as palavras da
pobre enferma, que atribuía imenso valor ao simples contato
com a vestimenta do Divino Mestre ; com razáo julgava ela
que o Senhor poderia fazer désse objeto o instrumento de
urna graca extraordinaria.

Está claro que a estima tributada aos objetos santificados pelo


uso dos Apostólos e principalmente do Senhor Jesús nao se extinguiu
com a morte déstes. O apologista cristáo Quadrato, por exemplo,
refere no séc. II que em Nazaré (cidade da infancia de Cristo) a
populacáo ainda conservava relhas de arado confeccionadas por Jesús.
Sabe-se também que ñas comunidades visitadas ou catequizadas por
Sao Pedro, Sao Paulo, Sao JoSo os fiéis guardavam tudo que lhes
pudesse lembrar ésses dignos obreiros do Senhor (em primeiro lugar,
sem dúvida. as suas cartas e os scus despojos mortais; além disso,
poréxn, os objetos de uso dos mesmos).

Os cristáos nao podiam deixar de se sentir estimulados a


essa praxe ao lerem o elogio proferido pelo Senhor a respeito
de María de Betánia, que ungirá o corpo do Mestre pouco
antes do desenlace final :

c') Me 14, 6-9: «Ela me fez urna boa obra;... embaLsamou anteci-
padamente o meu corpo para a sepultura. Em verdade vos digo: onde
quer que fór pregado no mundo éste Evangelho, será narrado o que
ela acaba de fazer para se conservar a lembranca dessa mulher» (cf.
Mt 26,9-12; Jo 12,7).

Com estas palavras Jesús aprovava solenemente a vene-


racáo postuma do seu corpo sagrado. Os dizeres do Divino
Mestre implicavam outrossim um convite a que se tratassem
de modo semelhante os despojos de todos os justos que Ele
no decorrer dos tempos enxertaria em seu Corpo Místico, a
fim de néles prolongar a vida da Cabeca, ou os misterios da
Redencáo.
Foi, sem dúvida, o que as posteriores geragóes cristas
depreenderam dos ensinamentos do Evangelho e dos Apostólos.

— 196 —
B. Os primeiros marcos da Tradicáo crista

Já os fiéis contemporáneos aos Apostólos aparecem na


historia a prestar estima especial, ou própriamente religiosa,
aos despojos moríais dos homens de Deus.

Os dois mais antigos documentos relativos a essa praxe sao:


a Ata do «Martirio de Santo Inácio de Antioquia», redigida em 110
(tres anos após a morte désse santo bispo) e a do «Martirio de Sao
Policarpo», bispo de Esmirna (Asia menor), escrita logo após o
desenlace do heról cristáo (156 ou 157).

1. Notem-se os termos com que se encerra o relato do


«Martirio de S. Inácio», o qual foi publicamente devorado
pelas feras:

«únicamente as partes mais duras de seus santos despojos haviam


escapado (aos dentes das íeras): íoram recomidas, levadas para
Antioquia e depositadas num cofre, k guisa de inestimável tesouro;
assim íoram elas entregues á santa assembléia dos fiéis por causa
da graca que reside no mártir» (Funk, Patres apostolici II 284).

Por muito breves que sejam estes dizeres, dáo-nos a ver


como os cristáos percebiam nos despojos materiais do mártir
a graca ou o valor espiritual que a tais elementos se prendia;
a piedade dos fiéis, portante, para com as reliquias era toda
relativa, pois se dirigía própriamente a pessoa do santo, que
se tornara perfeito membro de Cristo, e, em última análise,
ao próprio Cristo.

É, alias, o que o próprio S. Inácio insinuava ao se referir ao


seu futuro martirio:
«Sou o trigo de Deus; pelos dentes das feras serei moido, para
que me torne pao puro de Cristo» (Aos Romanos 4,1).

2. Aínda mais explícito é o testemunho do «Martirio de


S. Policarpo» (carta circular dos cristáos de Esmirna), que
assim descreve o desfecho do suplicio :

«Os judeus da cidade imaginaram que os cristáos íñssem fazer


de Policarpo [já martirizado] um outro Cristo. Vendo entáo que os
judeus se agitavam, o centuriáo [romano] mandou colocar o corpo
Lde Policarpo] no meio da praca e, de acordó com o costume, fé-lo
queimar. Em seguida, nos, tomando os ossos, mais preciosos do que
parolas de grande valor e mais puros do que o ouro acrisolado,
colocamo-los em lugar conveniente. Nesse local, enquanto possível,
reunir-nos-emos em exultacao e alegría; e o Senhor nos dará, a graca
de celebráronos o aniversario do martirio de Policarpo para recordar-
mos aqueles que já deixaram o combate e a fim de exercitarmos e
prepararmos os outros que o martirio ainda aguarda» (Martirio de
Policarpo XVIII).

— 197 —
Ésse texto, a mais de um titulo, é importante. Supóe, sim,
que, logo após o desenlace do mártir Policarpo na cidade de
Esmirna, os cristáos se dispunham a usar do seu direito legal
de sepultar honoríficamente os despojos do defunto. Contudo
os judeus se insurgiram contra tal praxe, percebendo o ca-
ráter profundamente religioso que os discípulos de Cristo atri-
buiam ao sepultamento dos mártires; por isto o oficial ro
mano resolveu mandar queimar os restos moríais de Policarpo.
Feito isto, os cristáos, nao se dando por vencidos, ainda reco-
lheram as preciosas cinzas, levaram-nas para lugar oculto,
onde as depositaram ; de entáo por diante, propuseram-se reu-
nir-se lá anualmente a fim de celebrar religiosamente o ani
versario do mart'rio (ou melhor, segundo o vocabulario dos
antigos :... o natalicio para a vida eterna) de Policarpo.
Como se depreende do teor geral do documento, os judeus
se opuseram ao sepultamento do santo mártir, por temerem
que os cristáos o praticassem em espirito pagáo, endeusando,
ao lado de Jesús Cristo, um mero homem... Esta atitude dos
israelitas, longe de quebrantar o ánimo dos cristáos, provocou,
ao contrario, da parte déstes urna tomada de posigáo ainda
mais consciente : o autor da Ata se viu obrigado a explicar
aos leitores (em fórmula breve, mas rica) a mentalidade que
animava os cristáos ao cultuarem os mártires e suas reliquias:

«O mártir Policarpo apareceu em nossos tempos como mestre


apostólico e profético [isto é, como continuador dos Apostólos]...
Adoramos Cristo como Filho de Deus; quanto aos mártires, amamo-los
como discípulos e imitadores do Senhor, por causa do seu eminente
devotamento ao próprio Rei e Mestre. Oxalá possamos também nos
tornar-nos consortes e condiscípulos dos mártires!» (Martirio de
Policarpo XVIII).

Visando, portante, cultuar o Cristo mesmo em um de


seus justos, ou em um dos membros de seu Corpo já consu
mado pela Redengáo, é que os cristáos deram inicio á celebra-
cáo anual do martirio (ou do natalicio) de Sao Policarpo.
Como se vé, tal culto se dirige propiamente ao Filho de Deus,
tomando apenas como ocasiáo de O glorificar a obra realizada
por Cristo em seu disc'pulo e mártir. Essa atitude nada tem
que ver com as apoteoses pagas.
3. Os dois documentos que acabamos de analisar ainda
a outro titulo dáo a ver que a veneracáo dos mártires e de
suas reliquias na Igreja nao é prát'ca heterogénea ao espirito
do Cristianismo : ésse outro título é a antigüidade de tais do
cumentos. Com efeito, as datas de 110 e 157 nos levam para
urna época em que os cristáos, perseguidos como eram pelo
Imperio pagáo, nutriam nítida aversáo para com os usos dos

— 198 —
gentíos; davam a vida justamente para nao pactuar com os
costumes de seus concldadáos e mesmo de seu familiares poli
teístas. — Note-se outrossim que os dois documentos se refe-
rem á veneracáo das reliquias em termos táo claros e serenos
que nao parecem estar insinuando urna inovagáo. Duas comu
nidades cristas importantes — urna, de Antioquia, capital da
Siria; a outra, de Esmirna, cidade luzeiro da Asia menor
só podiam proclamar no inicio do séc. II, perante as demais
comunidades do mundo romano, a sua estima para com os
despojos de seus bispos e mártires, caso tal atitude já estivesse
realmente contida em germen dentro do ensinamento dos
Apostólos e, por conseguinte, do próprio Cristo.

Nos séculos subseqüentes a devogáo aos mártires ou, de maneira


mais geral, aos santos e as suas reliquias foi tomando incremento
em toda a cristandade, sem que se levantasse contestacao por parte
de bispos ou autoridades da Igreja. No séc. III, Tertuliano, famoso
escritor, enunciava em poucas palavras a causa mais remota de tal
deyocao: «Christus in martyre est. — Cristo está no mártir» (De pudi-
citia 22), Esta frase confirma bem quanto verificamos atrás: o culto
dos heróis cristáos nao era tido senáo como urna faceta do culto
prestado ao Senhor Jesús.

4. No in:cio do séc. V féz-se ouvir a primeira voz contra


ria ao culto das reliquias : era a de Vigiláncio, da Aquitánia,
que atacava a virgindade e o celibato, a vida monástica, assim
como diversos pontos da sagrada Liturgia. Sao Jerónimo
(t 421) escreveu-lhe urna réplica, que assim se pode resumir:

O adversario se escandalizava por lhe parecer que os cristáos


adoravam os mártires. — Estivesse tranquilo, retrucava Jerónimo:
os cristáos só adoram a Deus; nao esqueceram os exemplos de Paulo
e Barnabé, os quais rejeitaram as honras divinas que os pagaos da
Licaónia lhes queriam tributar (cf. At 14,14); nem esqueceram a
conduta de S. Pedro, o qual recusou igualmente a adoracáo que
Cornélio tentava prestar-lhe (cf. At 10,26). Nao obstante, julgam
poder tributar veneracao (o que nao é aaoracáo) a membros huma
nos santificados pelo servico de Deus... Invocando os mártires, os
fiéis se inspiram da mais pura intengáo religiosa: quem admite que
a oracáo de um Moisés, de um Estéváo. de um Paulo, teve valor
durante a vida terrestre désses homens de Deus, como nao reconhe-
cerá que ela ainda tem maior valor, agora que estáo na gloria
celeste?
Vigiláncio alegava outrossim desordens verificadas junto aos
túmulos dos mártires ñas noites de vigilia sagrada. — Jerónimo,
em resposta, íazia-lhe ver que tais inconvenientes eram acidentais
e nño bastavam para se condenar a própria instituigáo da vigilia.
O oponente aíirmava também que os milagres registrados junto
as sepulturas dos mártires serviam aos incrédulos, nao, porém, a
quem já tinha fé. — A ésse fraco argumento o apologista replicava
que nao importa tanto saber em favor de quem sao realizados os
milagres como saber por que poder sao éles efetuados; ora era
evidente que a Onipoténcia Divina se manifestava em tais portentos,

— 199 —
confirmando a íé e a devocáo dos que a Ela recorriam por intercessáo
dos mártires.

Era nesses termos que Sao Jerónimo concebía a defesa


do culto das reliquias. Os autores posteriores, tanto medievais,
como modernos, só fizeram corroborar e desenvolver as idéias
do S. Doutor.

2. O significado do culto das reliquias.


Normas da Igreja.

1. Está claro que o culto das reliquias nao visa objetos


materiais como tais ; toda a veneragáo a estes prestada é re
lativa ; ela se refere, sim, aos santos e, em última análise, ao
Senhor Jesús, fonte de toda a santidade. As reliquias nao
podem nem devem ser estimadas senáo por causa do contato
que tiveram com as pessoas santas a que se referem; conse-
qüentemente, urna de suas fungóes primarias é a de lembrar
vivamente tais pessoas, a fim de excitar o amor dos fiéis para
com elas.

O culto das reliquias exprime outrossim a visáo grandiosa


que o cristáo tem do corpo humano e da materia em geral.
Longe de julgar em termos pessimistas essas criaturas de
Deus, o discípulo de Cristo sabe que o corpo de um justo, por
tador da graga santificante, é templo de Deus e que seus
órgáos sao «instrumentos que o Espirito Santo utiliza para
toda obra boa» (S. Agostinho) ; portador de um germen de
imortalidade aqui na térra, o corpo do cristáo nao sucumbe
simplesmente á morte ; embora passe por esta, ele está desti
nado a vencé-la e a ressuscitar. É por isto que os despojos dos
justos falecidos após urna vida particularmente unida a Deus
sao particularmente venerados ; a Igreja vé néles represen
tado o misterio da morte do Cristo e dos • cristáos : é morte
toda perpassada pela imortalidade ; tais despojos sao sinais
«ambiguos», pois tanto lembram a ruina induzida no mundo
pelo pecado como prenunciam o triunfo sobre a ruina.

Éste apreco dos despojos mortais explica a aversáo que a


Igreja nutre em relacao á cremacáo dos cadáveres. A incineragáo,
em verdade, nao se op6e ao dogma cristáo da ressurreicáo da carne;
esta, com efelto, se processará independentemente da sorte que possa
tocar aos corpos dos defuntos (cf. «P. R.» 26/1960, qu. 2). Contudo
os motivos que tém inspirado os arautos da cremacáo, do séc. XVIII
a nossos dias, sao de índole materialista; os que a preconizam,
visam incutir, de modo prático, a tese de que o corpo humano, após
a morte, perde todo o seu valor e pode ser tratado como lixo, pois
nao há alma espiritual nem vida postuma; principalmente em vista

— 200 —
dessa tese anticristá, acidentalmente associada a modernas campa-
nhas em prol da incinera gao, tem sido a Igreja levada a repelir
tal procedimento funerario (cf. «P. R.» 5/1957, qu. 5).

Ainda outra expressáo da mente da S. Igreja no tocante


ao culto das reliquias é o fato de que nao se consagra altar
algum, seja fixo, seja portátil, sem que, na respectiva pedra
de ara, naja um «sepulcro» com reliquias de varios santos ou
ao menos de um mártir (cf. can. 1198 § 4). Éste fato atesta
bem como a Esposa de Cristo une numa só visáo o sacrificio
de Cristo e a morte dos justos cristáos ; é a morte do Senhor
que se prolonga na de cada fiel, principalmente quando éste
sofre martirio cruento. — A Eucaristía, banquete sacrifical,
colocando o corpo imortal de Cristo dentro dos corpos moríais
dos discípulos, prepara-os para ressusdtarem, configurados á
carne gloriosa de Cristo. Daí a estima dedicada aos despojos
désses corpos.
2. Contudo ninguém ousará negar que a devogáo dos
fiéis para com as reliquias mais de urna vez se desvirtuou no
decorrer da historia, explorada nao raro pelos interésses de
homens sacrilegos. A literatura profana nao deixou de caus
ticar tais males. As autoridades da Igreja nao foram menos
severas sempre que os averiguaram, como se perceberá através
dos exemplos abaixo citados.
Todavía os erros acidentais nao devem, aos olhos dos
estudiosos, encobrir verdades essenciais : o culto das reliquias
tem que ser julgado á luz dos principios donde procede, e nao
á luz de desvíos devidos a ignorancia dos simples ou á per-
versidade dos maus. Ora nao há dúvida de que as proposicóes
teológicas que fundamentam a devocáo as reliquias, sao bem
coerentes com a Revelagáo crista, como se depreende de
quanto foi exposto no inicio desta resposta. O mesmo culto é
outrossim baseado na tendencia natural que todo homem ex
perimenta, de honrar seus antepassados, prestando deferencia
aos despojos moríais dos mesmos. Na ordem sobrenatural,
em que vive o cristáo, tal tendencia só podia ser corroborada
ou colocada sobre as suas bases mais auténticas.

3. De resto, as autoridades eclesiásticas sempre vigiam para


evitar todo abuso com relacao as reliquias.
Para citar dois exemplos apenas, lembraremos que em 1697 a
S. Congregagao dos Ritos proibia expor pretensas reliquias de Mel-
quisedeque assim como «a pedra em que Nosso Senhor se sentou
para compor a oragáo do Pal Nosso». O Direito Canónico manda aos
prelados diocesanos, subtraiam prudentemente á pública veneragáo

— 201 —
reliquias cuja náo-autenticidade lhes conste com certeza (can. 1284);
quem expSe ao público urna falsa reliquia, conhecida como tal, incorre
imediatamente em pena de excomunháo (can. 2326).
S. Tomaz mesmo admoesta a que, no culto das reliquias, se
evite toda especie de supersticao, seja por excesso de veneracáo,
seja pela observancia de práticas vas que nao se conciliem com a
reverencia devida a Deus e aos santos (cf. Suma Teol. II/II 96 4 ad
3; III 54, 2 ad 3).
Em termos positivos, o Direito Canónico exige que toda reliquia
proposta ao culto público seja devidamente autenticada por documento
oficial assinado por um Cardeal ou pelo Prelado ordinario do lugar
(can. 1283) (1). Quanto ás reliquias que gozam de culto muito
antigo, existe presuncao de direito em seu favor, de sorte que se
requerem argumentos seguros para se negar a sua autenticidade
(can. 1285 § 2); a piedade dos fiéis e os beneficios espirituais alcan-
Cados na veneracáo de tais objetos sao títulos que conferem a essas
presumidas reliquias um caráter sagrado, independenteniente da
qiiestáo da respectiva autenticidade. Dado que o documento de genui-
nidade de urna reliquia se tenha perdido por desordens civis ou por
qualquer outro motivo, o Direito eclesiástico prescreve, nao seja tal
reliquia entregue á pública veneracao antes que o Ordinario local,
tendo realizado um inquérito minucioso sobre as vicissitudes ocorridas,
conceda novo atestado de autenticidade (can. 1285 § 1).
Como se compreende, é proibida qualquer venda de reliquia (can.
1289 § 1). Os Prelados ordinarios e em geral os sacerdotes que tém
cura de almas, devem cuidar para que, por ocasiáo de herancas ou
de vendas de bens, nao sejam auténticas reliquias vendidas nem
sejam entregues a pessoas nao católicas. A venda de reliquias ver-
dadeiras, como a fabricacáo e a distribuido de falsas reliquias,
sao punidas imediatamente por excomunháo (can. 2326).
Quanto ao caso do anel de Sao Pío X que, conforme os jomáis,
devia ser públicamente vendido em leilao na cidade do Rio de Janeiro
em fevereiro de 1960, considere-se o seguinte:
Trata-se de urna peca que o citado Pontifice recebeu como
presente quando foi nomeado bispo de Mantua em 1884. Ao morrer,
Pió X doou-a por testamento ao seu amigo Dr. José Ricaldoni, o
qual naturalmente se tornou legitimo possessor da mesma. Ora a
familia Ricaldoni emigrou para o Brasil e dispóe-se agora a leiloar
a joia...
No caso, o anel de S. Pió X está sendo tratado qual reliquia
histórica ou qual objeto que pertenceu a um grande vulto da historia
moderna, e nao como objeto sagrado, destinado á veneracáo religiosa
dos fiéis. Nao se pode, portanto, falar de venda de reliquia reíigiosa
nem de simonía (venda de bens espirituais). Ademáis o mencionado
anel está subtraido á jurjsdicao das autoridades eclesiásticas, tendo-se
tornado propriedade da familia Ricaldoni; por conscguinte, o que se
fizer com essa venerável peca, far-se-á independentemente de algum
mandato dos superiores religiosos.

(1) Por «Ordinario do lugar» entende-se o pastor supremo de


urna circunscricáo eclesiástica (diocese, prelazia. Abadía «Nullius»);
ésse pastor é geralmente bispo (no caso normal de urna diocese); pode,
porém, ser simplesmente sacerdote dotado de plena jurisdigáo para
governar o respectivo. territorio eclesiástico.

— 202 —
III. SAGRADA ESCRITURA

PRIMO (Niterói) :

4) «Seria possível determinar a doenga de Sao Paulo,


misteriosamente insinuada pelo Apostólo em suas cartas ?»

Os santos de Deus sao figuras grandiosas, em que xnuitas


vézes os contrastes se associam, de modo a se perceber que
nao foram éles que se fizeram grandes, mas, sim, a gratuita
liberalidade divina.

A luz desta aíirmacáo deve ser considerada a personalldade do


Apostólo Sao Paulo. Realizou grandes viagens m'ssionárlas, na prl-
meira das quais deve ter percorrido mais de 1000 km; na segunda,
ao menos 1400 km; na terceira, cérea de 1700km (o percurso das
viagens apostólicas posteriores, nao mais referidas pelos Atos dos
Apostólos, nao pode ser devidamente calculado). Essas enormes tra-
jetórias (desde que nao fóssem marítimas), Sao Paulo as efetuava
geralmente a pé, através de regióes inóspitas e perigosas, comendo o
exiguo alimento que podía encontrar, dormindo quando e como lhe
era possível; caso fizesse estada mais loriga em algum lugar, punha-^se
a trabalhar com as próprias máos (era curtidor de peles!) a íim
de ganhar o pao cotidiano; além do mais. era solicitado por noticias
e prcocupacáo variadissimas, as quais, embora lhe aíetassem direta-
mente o espirito, nao podiam deixar de lhe abater também o corpo.
— Pois bem; Sao Paulo, durante anos a fio, levou tal género de vida
(de 45 a 67, descontando-se talvez tres ou quatro anos de prisáo),
o que cortamente é prova de estupenda íórea de vontade.
Contudo nao é menos certo que desde o ano de 43 o Apostólo se
via minado por molestia crónica, que muito o fazia sofrer. Longe
de se deixar abater, ele via justamente nesse fato a prova de que
Deus, e nao simplesmente a fórga humana, sustentava o seu bri-
lhante apostolado: «É na fraqueza do homem que se revela plena
mente a íórga de Deus» (cí. 2 Cor 12,9s).
Interessa-nos averiguar qual tenha sido a famosa enfermidade
de S. Paulo, a qual vem sendo explicada dos mais diversos modos
possiveis.
Dois sao os principáis textos que importa analisar: Gal 4,13-15
e 2 Cor 12,2-9. Considercmo-los separadamente.

1. GAL 4, 13-15

No ano de 54 aproximadamente, escrevendo aos cristáos


da Galácia (Asia menor), Sao Paulo lhes lembrava o seguinte:

«Sabéis que foi por causa de urna enfermidade que vos anuncie!
o Evangelho pela primeira vez. E, apesar de meu corpo enfermo ser
para vos urna provagSo, nenhum desprézo ou desgasto manifestastes.
Pelo contrario, vos me recebestes como um anjo de Deus, como o
Cristo Jesús... Dou-vos meu testemunho: se fósse possivel, terieis
arrancado vossos olhos para mos dar» (Gal 4,13-15).

— 203 —
Estas palavras dáo-nos a saber que certa vez, estando o
Apostólo de viagem pela Galácia, foi acometido de grave mo
lestia, que o obrigou a interromper o seu itinerario; aproveitou
entáo o ensejo para comunicar a mensagem de Cristo á po
pulacho que o acolhera.
Sao Paulo nao explica qual tenha sido a doenga. Certa-
mente reduziu o paciente a situagáo humilhante, capaz de
causar repugnancia em quem o visse. Sim; o Apostólo, no
v. 14 ácima traduzido, dizia ao pé da letra : «A tentacjío que
o meu estado corporal vos suscitava, nao provocou em vos
desprézo nem vos fez cuspir = (oudé exeptúsate)».

A origem desta última expressáo (oudé exeptúsate) deve-se a um


costume pré-cristáo: quando viam um enfermo de aspecto degradante,
os pagaos cuspiam diante déle, visando com isto afugentar o espirito
maligno que devia estar infestando o paciente. Principalmente a
epilepsia provocava tais reagóes; era o «comitialis morbus» ou «adoenga
dos comicios, a doenca que por excelencia estragava qualquer comido»,
pois, se ocorresse um caso de epilepsia durante urna assembléia
popular, os maus presagios levavam os chefes a anular as delibera-
cóes tomadas e a dispersar o agrupamento.

Pois bem ; os gálatas, considerando a coragem e a tran-


qüilidade com que Paulo suportava a molestia, longe de de
monstrar horror, lhe deram as provas da mais ardente cari-
dade ; teriam mesmo arrancado os próprios olhos em favor
de Paulo, caso isto fósse possível...
Poder-se-ia concluir desta observagáo que o Apostólo na
Galácia padeceu de molestia da vista ?
A ilagáo seria forjada, pois a expressáo «arrancar os pró
prios olhos em beneficio de alguém» tinha outrora (como
aínda hoje em algumas línguas modernas) sentido figurado;
significava «estar pronto a fazer os mais arduos sacrificios em
proveito do próximo» ; os olhos sao, sem dúvida, os mais
preciosos órgáos do corpo humano.

Já o exegeta Seligmüller observou que quem quisesse tomar ao


pé da letra a mencionada expressáo para dai concluir algo sobre a
molestia de Sao Paulo, deveria outrossim admitir que o Apostólo
sofría grave enfermidade no pescoco, pois, como diz Sao Paulo em
Rom 16,4, Priscila e Aquila se expuseram a «perder a nuca» para
salvar a vida do Apostólo (o que certamente se deve entender em
sentido metafórico).

Também nao se poderia afirmar que S. Paulo na Galácia


haja sofrido de ataques de epilepsia. Embora esta seja urna
das doengas que mais desfiguram o paciente, causando horror
nos espectadores, outras realizam semelhante efeito, desde que
provoquem febre alta com delirio.

— 204 —
Em conclusáo : de Gal 4,13-15 apenas se pode deduzir que
Sao Paulo foi no ano de 51 (aproximadamente) acometido de
grave molestia. Qual terá sido essa enfermidade ? Deverá ser
identificada com a doenga habitual a que o Apostólo se refere
em 2 Cor ? — Sao questóes que nao é possível elucidar pe-
remptóriamente. Tentemos, porém, aproximar-nos um pouco
mais da solugáo.

2. 2 COR 12, 2-9

Em 57 S. Paulo, dirigindo-se aos corintios, aludia mais


urna vez a urna enfermidade sua... Referia-se a um episodio
ocorrido havia quatorze anos, ou seja, no ano de 43 :

«Conheco um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arreba


tado até o terceiro céu — se no corpo, nao sei; se íora do corno, nao
sei; Deus o sabe.
E sei que ésse homem — se no corpo ou lora do corpo, nao sei;
Deus o sabe — íoi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefávois,
que a um homem nao é licito revelar.
Quanto a ésse homem, eu me gloriarei; quanto a mim, de coisa
alguma me gloriarei, a nao ser de minhas Iraquezas...
E por causa da sublimidade dessas revelacóes, para que nao me
encha de orgulho por causa délas, loi-me posto na carne um espinho
— emissário de Satanaz para me esmurrar. — a fim de que nao
me ensoberbeca. A ésse respeito, por tres vézes roguei ao Senhor que
o fizesse aíastar-se de mim. Respondeu-me: 'Basta-te minha graca,
porque é na íraqueza que a fórca se manilesta plenamente'».
Nesta passagem importam-nos de maneira especial as alusSes
a «um espinho na carne» e a «um emlssário de Satanaz que esmurrava
(kolaphizein, em grego; nao rhspizein, esbofetear) o Apostólo». Pro
curemos o sentido de urna e outra dessas locugóes:

a) o «espinho na carne» sempre foi entendido, pela tra-


dicáo crista grega e latina, como enfermidade corporal que,
desde a mencionada época, terá acometido S. Paulo. O vocá-
bulo «carne» no caso nao tem sentido pejorativo, mas designa
simplesmente o corpo do Apostólo, que parecía estar sendo
continuamente aguilhoado. S. Paulo associa essa doenga a
urna especial agáo de Satanaz que destarte visava hostilizar o
Apostólo. Sim; a doenga era
b) «um emissário (ángelos) de Satanaz que esmurra
va...». O yocábulo grego original «ángelos» nao parece neste
caso significar própriamente um espirito maligno (demonio)
enviado por Satanaz, mas deve ter sentido impessoal, desig
nando apenas um efeito produzido por Satanaz... A expressáo
se explica bem desde que se tenha em vista a opiniáo, comum
entre os judeus antigos, de que as doengas eram provocadas
pelo Maligno.

— 205 —
O Génesis ensina que o sofrimento físico é conseqüéncia do
pecado e que éste, por sua vez, foi desencadeado no mundo por agáo
de Satanaz (cí. Gen 3); dai a associacáo de «doenca» e «demonio»
na mentalidade judaica e, de certo modo, também na mentalidade
crista. Jesús ao ver u'a mulher paralítica, interrogou: «Essa filha
de Abraáo, havia dezoito anos, estava presa por Satanaz; nao devia
ela ser libertada dessa prisao em dia de sábado?» (Le 13,16).

A análise de termos ácima leva a concluir que a interpre-


tacáo de toda a passagem focalizada depsnde do sentido da
expressáo «espinho» ou «aguilháo na carne». Ora esta tem
índole metafórica e assaz vaga, de sorte a nao permitir clara
visáo do que Sao Paulo quer dizer.
Algumas observagóes, porém, seráo oportunas.
1) Certos escritores cristáos antigos e maior número de
autores modernos de espiritualidade interpretam o aguilháo
no sentido nao de doenca física, mas de tentagóes de inconti
nencia continuamente suscitadas contra Sao Paulo por algum
demonio («anjo de Satanaz»). Cornélio a Lapide, escritor
relativamente recente (t 1637), asseverava que tal interpre
tado era comum entre os fiéis de seu tempo. Adotando-a, os
autores de ascese elaboravam, para as almas castas violenta
mente tentadas, exortagóes á perseveranga estimulada pelo
exemplo de Sao Paulo ; quanto nao poderia encorajar as almas
a noticia de que o grande Apostólo também fóra tentado con
tra a castidade !
Tal interpretagáo, porém, parece muito mais ditada por
preocupagóes moráis e parenéticas (exortatórias) do que pela
leitura do texto em si. Note-se também que tal sentenga se
apoia em grande parte na tradu^áo latina vulgata de 2 Cor 12,7:
«stimulus carnis meac — aguilháo da minha carne» ; esta
tradugáo dá fácilmente a entender que a carne manejava urna
arma contra o espirito de S. Paulo, quando, na verdade, con
forme o texto grego, o Apostólo queria dizer que em sua carne
(corpo) fóra plantado um aguilháo, ou seja, um motivo de
sofrimento físico continuo. — Também se deve levar em conta
que Sao Paulo nao parece ter sido muito sujeito aos pecados
da carne: já antes da conversáo ao Cristianismo, podia ele
dizer que levava vida «irrepreensivel conforme a Lei» (Flp 3,6);
após a conversáo, afirmava viver celibatário ou em perfeita
continencia, sem .que se possam presumir especiáis dificuldades
nesse seu género de vida (cf. 1 Cor 7,6-9). Ademáis, longe de
ser útil aos fiéis, Sao Paulo, mencionando suas tentagóes á
incontinencia numa carta dirigida aos cristáos de Corinto,
muito assaltados pela corrupto da sua cidade, teria feito obra
nociva ; varios dos leitores teriam talvez concluido : «Se o

— 206 —
Apostólo mesmo tanto tem que lutar, como pederemos nos,
fráeos discípulos, resistir á seducáo ?».
Na base destas observagóes, os exegetas em nossos dias
já nao aceitam a suposigáo que acabamos de focalizar.

2) Ficando no plano moral, alguns comentadores julgam que


Paulo alude aos remorsos geradas em sua consciéncia pela recordado
de haver perseguido a Cristo no principio de sua vida. Outros pensam
tratar-se da dor experimentada pelo Apostólo em vista da injeredu-
lidade úc Israel. Ha também quem diga que Paulo se referia as
injurias que lhe causava um inimigo seu pessoal, como Alexandre
(mencionado em 2 Tim 4,14).

Essas sentengas gozam de pouca probabilidade, pois as


imagens do espinho na carne e dos murros desferidos por
Satanaz sugerem um padecimento físico ou urna doenga.
3) Contudo, ao procurar definir a molestia corporal,
muito divergem uns dos outros os exegetas.

A opiniáo mais antiga é referida por Tertuliano no séc. 711:


«... urna alma que, no Apostólo, era reprimida por murros, isto é,
a quanto dizem, por urna dor de ouvido ou de cabeca» (De pudicitia
XIII 16). Outros comentadores sugeriram a doenca da gota (Nicetas,
no séc. V), urna doenca de visceras (S. Tomaz de Aquino), reumatismo
(Renán), surdez, violentas dores de dentes, lepra (Preuschen), etc.
Essas conjeturas sao tddas, em grau mais ou menos acentuado,
arbitrarias.
Gozou de mais aceitacáo, principalmente no século passado, a
suposicüo de epilepsia ou outro desequilibrio nervoso; aos críticos
racionalistas a hipótese era cara, pois explicaría a conversáo e as
visóes do Apostólo como meros fenómenos de alucinacáo, destituidos
de valor sobrenatural. Apontavam-.se, como casos análogos aos de
Paulo, grandes heróis da historia, os quais teriam sido igualmente
epiléticos (assim Julio César. Maomé, Ferdinando o Católico, Crom-
well, Pedro o Grande, Napoleáo, muitos artistas e literatos...); de
resto, no fim do século passado predominava a escola de Lombroso,
que afirmava haver afinidade entre desequilibrio mental (epilepsia)
e genialidade; Sao Paulo, por conseguinte, haveria sido um désses
grandes desajustados da historia...
Em breve, porém, verificou-se que va era tal suposicüo; a tese
de Lombroso carece do devido fundamento; além do que, temerario
seria querer diagnosticar á distancia os varóes ácima nomeados.
Sabe-se outrossim que o epilético nao guarda senáo recordagáo con*
fusa do que lhe acontece nos estados de crise; Paulo, ao contrario,
conservou sempre consciéncia muito clara da sua visáo em Damasco
e do seu arrebatamento místico (cf. At 22, 6-21; 26,12-19; 2 Cor 12,2-9).
Mais aínda: está averiguado que cérea de tres quartos das pessoas
epiléticas sofrem de defeitos intelectuais e moráis que as tornam
incapazes de dirigir almas; Sao Paulo, ao invés, comprovou dos
mais variados modos a sua tempera de chefe cheio de coragém e
iniciativa.
Mostra-se estéril, por conseguinte, o recurso á hipótese de epi
lepsia ou mesmp histeria ou ainda outra doenga nervosa no grande
Apostólo.

— 207 —
4) Em termos positivos, dever-se-á dizer que qualquer
interpretagáo verossimil há de levar em conta as seguintes
características: tratava-se de doenga muito dolorosa («espi-
nhosa»), manifestada em acessos violentos («murros de Sata-
naz») e de Índole crónica (cf. 2 Cor 12, 8s).

Ora, na opiniáo de Alio, Ramsay, Seligmüller. Sickenberger e


outros bons autores, dentre todas as conjeturas, a que mais parece
satisfazer a essas caracteristicas é a que atribuí a Paulo urna febrc
malaria, também dita «febre de Malta» ou «íebre napolitana», nao
rara na bacía do Mediterráneo: causa enxaquecas e outras fortes
dores, delirios noturnos, esgotamento íisico por vézes deprimente,
queda dos cábelos (conforme os apócrifos «Atos de Paulo», o Apos
tólo era calvo) e pode acarretar a própria morte do paciente.
Sao Paulo terá contraído tal molestia na sua patria mesma
¡(Cilícia, na Asia menor) ou em sua primeira viagem missionária
(45-48) nos pantanos da Panfilia. Em qualquer caso, o inicio da
doenca deve-se ter seguido, sem grande intervalo, á visáo de que
fala o Apostólo em 2 Cor 12; Sao Paulo compreendeu muito bem
que a Providencia Divina permitirá tal enfermidade a fim de o
preservar de ilusSes a respeito de suas exiguas capacidades humanas:
a doenga, excitando constantemente no missionário a consciéncla de
sua própria fraqueza, o conservarla humilde, apesar das grandes
gracas recebldas a dos notáveis sucessos obtidos na tarefa de evange-
lizacáo. Como sugere Sao Jerónimo, a molestia terá desémpenhado
junto a S. Paulo o papel do escravo que costumava acompanhar o
triunfante romano, repetindo-lhe: «Homineni te esse memento. —
Lembra-te de que és homem» (cf. S. Jerónimo, epist. XXXIX 2).
É bem possivel que a crise mencionada em Gal 4 nao tenha
sido senáo urna das manifestagóes do estado patológico habitual do
santo pregador. Mais ainda: talvez se deva explicar de modo seme-
Ihante o misterioso obstáculo mediante o qual Satanaz por duas vézes
impediu Sao Paulo de ir a Tessalonica (cf. 1 Tes 2,18).

Eis o que com verossemelhanga se pode dizer a respeito


da molestia do Apostólo Sao Paulo... De novo, sobriedade e
reserva se recomendam na explanagáo do assunto.

IV. HISTORIA DA EXEGESE

PRUDENTE (Sao Paulo) :

5) «A exegese católica tem mudado suas senteneas, pa-


recendo em muitos pontos concordar com os autores raciona
listas contemporáneos. Nao seria isto tratcao ?
Onde vamos parar ao fazer concessóes á mentalidade li
beral moderna ? Amanhá os exegetas católicos nao trocará»
de novo seus pontos de vista ? Os próprios Evangelhos nao
seráo também interpretados diversamente ?
Nisso tudo onde fica a infalibilidade da Igreja ?»

— 208 —
As questóes formuladas deixam de constituir pro
blemas desde que se esclarecam os dois seguintes pontos:
a) por que motivo a exegese moderna mudou varias senten-
c.as professadas pelos autores medievais ? b) qual tem sido
no caso a atitude da autoridade infalível da Igreja ?
Elucidemos, pois, sucessivamente estes dois itens.

1. Porque a exegese mudou ?

Quem de maneira superficial observa a historia dos debates


filosófico-religiosos dos últimos 150 anos, talvez colha a impressáo
de que o genuino pensamento católico é inienso ás inovac5es moder
nas em materia de exegese. A prova disso seria a resistencia que os
estudiosos católicos opuseram ás primeiras teorías dos críticos e
evolucionistas em meados do século passado. Parece, porém, que
essa .relutáncia se mostrou inútil, dada a evidencia com que aos
poucos se íoram impondo as teses da critica moderna. Em conse-
qüéncia, os exegetas católicos (ou, como se diz comumente, a Igreja)
haveriam resolvido pactuar com a ciencia contemporánea, a íim de
nSo capitularem por completo. Assim procedendo, porém, haveriam
realizado lamentável obra de traícSo.
Esta interpretagáo dos fatos, por muito plausivel que pareca,
nao corresponde á realidade. Fica entáo aberta a questao: quais
seriam os motivos da dupla atitude das escolas católicas perante as
tendencias da crítica moderna?

Reconstituamos com brevidade a genuína historia dos


acontecimentos.
1. Urna bomba explode : alarme. . . Até o inicio do sé-
culo passado, os exegetas seguiam fielmente urna norma de
valor indiscutível para a interpretaejio de qualquer texto de
literatura : «O intérprete nao se deve afastar do sentido literal
do texto, a menos que haja claros indicios de emprégo meta
fórico das palavras» (norma ainda oportunamente incutída
pela Pontificia Comissáo Bíblica aos 23 de junho de 1905 ;
Enchir. biblic. n' 154). — Supóe-se sempre que quem fala
ou escreve, esteja empregando os vocábulos em sentido próprio,
e nao em santido improprio.
Ora, lendo as primeiras páginas da Biblia, os antigos nao
tinham indicio algum de que tais textos nao deviam ser en
tendidos ao pé da letra : com efeito, a geología, a paleontología,
a astronomía, etc. na Idade Media nada tinham a opor á con-
cepgáo de que o mundo foi criado em seis días de 24 horas,
... o sol, a lúa e as estrilas apareceram depois da luz,... o
homem foi formado a partir do barro...
Eis, porém, que, a contar dos primeiros decenios do século
passado, as ciencias naturais foram descobrindo dados novos
e formulando hipóteses inovadoras; surgiram, sim, teorías evo-

— 209 —
lucionistas no setor da biología, da antropología, da sociología;
aventou-se a possibilidade de que o Pentateuco (os cinco livros
de Moisés) e outros opúsculos bíblicos tenham sido redigidos
a partir de documentos-fontes, mediante a colaboragáo de
autores diversos, etc.
Tais teses nao sómente eram inovadoras ; elas vinham
outrossim apregoadas por autores de mentalidade atéia ou, ao
menos, pouco crista, como Wellhausen, Darwin, Haeckel, Karl
Marx, Augusto Comte...

Urna das figuras mais representativas dos exegetas racionalistas


do séc. XIX é Wellhausen. Éste autor servia-se da tese das fontes
do Pentateuco para arquitetar a respeito da historia sagrada urna
teoría evolucionista e anticristá: o povo de Israel teria sido politeísta,
e só gradativamente haveria purificado sua religiosidade para chegar
em época tardía ao monoteísmo. Na Biblia haveria vestigios dessa
mentalidade paga do povo de Deus!

Diante de tal corrente de pensamento, entende-se que a


primeira reacáo dos católicos tenha sido a de repulsa : em
vista da associacáo (contingente, sem dúvída, mas bem real)
que se dava entre ciencia moderna e filosofía anticristá, a
muitos parecía que, para manter a fé religiosa, era preciso
fechar os olhos as mencionadas teorías inovadoras ou mesmo
condená-las em bloco ; nao sómente teólogos, mas também pre
lados da Santa Igreja, julgaram-se obrigados a tomar tal ati-
tude, justamente para nao atraigoar o patrimonio da fé.
Formaram-se assim dois setores bem delimitados: de
um lado, estavam os que desejavam guardar a fé em Deus
e no Cristo e, por ísto, julgavam dever conservar as posicóes
exegéticas antigás, distanciando-se cada vez mais da evidencia
científica ; do outro lado, puseram-se os que preferiam seguir
os resultados da ciencia e, por isto, julgavam dever rejeitar a
fé em Deus e ñas Escrituras Sagradas. No tocante as origens
do mundo e do homem em particular, o dilema se formulava:
Ou criacáo (com a Biblia) ou evolucáo (com a Ciencia)...
Durante algum tempo, as posigóes pareciam irreclutiveis.
Aos poucos, porém, elas se foram aproximando...

2. Primeiro ensaio de conciliagáo: o «concordismo». Urna


primeira tentativa de conciliacáo foi o chamado «concor
dismo». Seguindo éste sistema, o exegeta olhava para as mais
recentes teses da ciencia e procurava interpretar a Biblia de
acordó com elas, sujeitando-se por vézes a professar sentengas
artificiáis e violentadoras do texto sagrado. Embora os resul
tados désse método fóssem harmonía e concordia (ao menos
aparentes) entre ciencia e fé, a nova tática exegética era con*

— 210 —
denável, pois de certo modo equivalía a urna traigáo. Com
efeito, a atengáo que tais «concordistas» dlspensavam á letra
da Escritura Sagrada era insuficiente; os criterios adotados
na exegese eram as teorías das ciencias naturais (astronomia,
biología, etc.) ; a Biblia vinha assim acomodada a padróes
náo-bíblicos; seus intérpretes, sem o saber nem querer, a
desvirtuavam e esvaziavam...

Eis um ou outro espécime de textos didáticos inspirados pelo


método concordista:
Moigno, na obra «Les splendeurs de la foi», em 1881 asseverava:
«Está claramente comprovado, como disse antes de nos o grande
Ampére, que Moisés teve, em ciencias, urna erudicáo táo profunda
quanto a do nosso século — ou que ele era divinamente inspirado».
Tal autor exaltava «essa intuicáo de genio que adivinha os misterios
da natureza, em harmonía com os oráculos da ciencia mais adiantada».
Alias, já em 1810 J. de Maistre opinava: «O Génesis basta para
sabermos como o mundo comecou».
Em 1848 o famoso pregador Lacordaire afirmava: «Moisés pos-
suia, quinze séculos antes da era crista, urna ciencia que só devia
desabrochar tres mil anos mais tarde».
Lapparent parece ser o autor de sentenca muito famosa: «Se eu
tivesse que resumir em quarenta linhas as conclusOes mais auténticas
da geología, copiarla o texto do Génesis, isto é, a historia da criacáo
do mundo tal como a tracou Moisés» (citado em «Essai sur Dieu,
l'hommp et l'univcrs», enciclopedia dirigida por J. de Bivor't de la
Saudée, 1951, 156).
A «Bible populaire» de Drioux, publicada em 1864, trazia a seguin-
te Introdugüo: «É certo que se encontram na Escritura... todos os
preceitos políticos, todas as modalidades de estilo... Coisa estu
penda:... nosso século. que é tao maravilhoso por suas invencOes
e descobertas, parece só ter apreendido os segredos da natureza e
rasgado os véus que recobrem seus misterios, para se aproximar dos
dados fornecidos pelos livros sagrados sobre a origem do homem
e a criacáo de todos os seres» (pág. I e II).
Robeaux, na «Bible de l'eníance, de la jeunesse et des familles»,
em 1898 escrevia: «A narrativa de Moisés, diz Buffon, constituí um
relato preciso e filosófico da criacáo...
Jafé foi o pai dos povos da Europa e do norte da Asia; Cá, o pai
dos povos da África, e Sem, o dos outros povos da Asia, em parti
cular, dos hebreus... O estudo das línguas provou realmente que
todos os povos se podem agrupar em tres grandes familias» (pág.
6 e 19).
Já propusemos crítica minuciosa do concordismo em «P. R.»
23/1959, qu. 3. Em poucas palavras: o concordismo falha gravemente
por pressupor que a Biblia Sagrada visa explanar o mesmo objeto
que as ciencias profanas, isto é, os fenómenos da natureza. Na ver-
dado, os autores bíblicos apenas aludem em termos pré-científicos a
ésses fenómenos a fim de elevar o leitor á compreensao de verdades
sobrenaturais. Nao é, portanto, necessário que Moisés tenha tido
a erudicáo cientifica do séc. XX!

3. Segundo ensata de conciliagáoi o Modernismo. En-


quanto os concordistas tentavam, do seu modo, realizar a

— 211 —
aproximagáo dos exegetas com os dentistas, no inicio do
séc. XX verificava-se outra tentativa de obter o mesmo efeito,
tentativa, porém, que só contribuiu para disseminar entre mui-
tos teólogos ortodoxos aínda maior desconfianga para com as
teses da ciencia e da filosofia modernas. Tal ensaio era o cha
mado «Modernismo».
O Modernismo representa, sim, um esfórgo (esfórgo infe
liz, porém) de adatar a doutrina crista (em particular, a exe-
gese bíblica) á mentalidade contemporánea; guardando a
nomenclatura da teología tradicional («dogma, fé, inspiraqáo,
revelagác», etc.), os modernistas esvaziavám o seu conteúdo,
pois atribuiam á mensagem crista um caráter relativista : a
religiáo, em suma, nao seria senáo a expressáo do senso místico
subjetivo do homem condicionado pelas circunstancias de sua
respectiva época ; em conseqüéncia, o que é verdade religiosa
em determinada fase da historia, já nao é tal em outros tem-
pos. Mais urna vez o conceito de evolugáo entrava em jógo
para servir a urna filosofia anti-cristá... !• Alguns sacerdotes
católicos, fascinados pela «elegancia» das proposicóes moder
nistas e possivelmente desejosos de realizar urna catequese
mais adatada ao homem do séc. XX, aderiram aos novos erros,
tornando-se apóstatas notorios (entre éles sobressaiam Loisy,
Tyrrell, Buonaiuti, Murri, Minocchi).
Em reagáo ao Modernismo, muitos exegetas ortodoxos se
fecharam em posigóes medievais. A Pontificia Comissáo Bíblica
em Roma chegou a publicar instrugoes que restringiam a li-
berdade de trabalho dos estudiosos católicos, principalmente
no que dizia respeito ao Antigo Testamento.

4. A obra do Pe. Lagrange. É de certa importancia notar,


a éste propósito, o que se deu com o famoso Pe. Marie-Joseph
Lagrange O.P. (1855-1938).

Em 1890, a mandado dos Superiores religiosos, Lagrange dava


inicio á Escola Bíblica de Jerusalcm, onde procurou de todos os
modos atualizar os estudos bíblicos, utilizando os mais variados recur
sos da cultura moderna; a principio, o Rev. Padre regia pessoal-
mente as cadeiras de hebraico, assirio, árabe, arqueología e introdu-
cáo geral na S. Escritura. Em 1892 íundou a «Revue biblique», e em
1902 a colegáo «Études bibliques», destinada a comentar a S. Escri
tura do ponto de vista doutrinário, histórico e literario. Em 1903 foi
nomeado por Leáo XIII membro da recém-íundada Pontificia Comissáo
Biblica.
A orientacao de trabalho do Pe. Lagrange se resumía na fórmula
que ele mesmo concebeu: «Em espirito católico e em espirito cientí
fico» (Revue biblique 1892, pág. 11). Asslm inspirado, o exegeta
serviu-se muito dos métodos de critica do texto postos em prática
pelos autores liberáis e modernos; preconizou a existencia de géneros
literarios na Sagrada Escritura, isto é, de regras de estilo e redagáo

— 212 —
acomodados a cada um dos diversos assuntos explanados na Biblia;
em conseqüéncia, trechos da Biblia tidos sem restricto como textos
de historia deveriam ser interpretados menos literalmente. Embora
o professor de Jerusalém guardasse em tudo a mais pura ortodoxia
e fidelidade absoluta ao magisterio da Igreja, algumas de suas pro-
posicóes pareciam pouco oportunas na época, prestando-se a equívo
cos mais do que á edificacáo.
Á vista disso, o Patriarca de Jerusalém em 1903 chamou a atencáo
do Santo Oficio para as idéias aparentemente revolucionarias do Pe.
Lagrange; o Papa Leao XIII, porém, defendeu o exegeta. Os anos
de 1905-1914 foram penosos para o douto religioso, que sentia pesa-
rom sobre si suspeitas gerais de heterodoxia. Os Superiores em 1912
o removeram do magisterio e da cidade de Jerusalém. Voltou, porém,
a esta em 1913, menos de um ano depois de partir, e em breve reto-
mou suas atividades de professor e escritor. Finalmente, o Papa
Bento XV, logo que subiu ao pontificado (1914), impós silencio ás
vozes temerosas contrarias ao Pe. Lagrange.
Ao 3er momentáneamente afastado da cátedra em 1912, Lagrange,
conservando o auténtico espirito sobrenatural, escreveu em suas notas
intimas: «Poderia alguém justificar-se indefinidamente contra as
suspeitas? Tinha eu recurso mais seguro do que o silencio e o apelo
a Deus?» Na mesma época escreveu ao Papa S. Pió X: «Meu primeiro
movimento foi, e meu último movimento será, o de me submeter
com o espirito e o coracáo, sem reserva, ás ordens do Vigário de
Jesús Cristo...». Alguns meses mais tarde, declarava em um de seus
sermdes: «Filhos de celtas que somos nos. estamos habituados a
dedicar-nos inteiramente; nao sabemos marcar o passo. Se o Papa
quiser moderar nossos esforcos, se mandar que nao nos adiantemos
na diregáo para a qual nos impele a generosidade, será essa a nossa
provacáo... Ainda que o Papa dissesse aos seus soldados: 'Nao
sois feitos para combater, ide vigiar a bagagem', obedeceríamos com
alegría...».

5. Finalmente, a solucáo. Passou-se a crise modernista.


O exemplo do Pe. Lagrange e de outros beneméritos estudio
sos católicos demonstrara claramente que é possível unir a
erudigáo moderna com a mais auténtica doutrina crista; evi
denciara, portante, quáo contingente e desnecessária era a
associagao dos dados das ciencias naturais com urna filosofía
materialista. Em conseqüéncia, foi-se avultando entre os inte-
lectuais católicos a tendencia a utilizar todo o aparato da cul
tura moderna para melhor ilustrar a verdade revelada, prin
cipalmente as páginas bíblicas ; a própria Santa Sé foi sus-
pendendo as medidas coibitivas tomadas nos anos da crise...
Do outro lado, os homens de ciencia passaram a distinguir
mais nítidamente entre os resultados das pesquisas empíricas
e as interpretagóes filosóficas que a tais resultados haviam
dado os materialistas do séc. XIX e do inicio do séc. XX. O
fruto dessa revisáo geral de posigóes foi a elaboragáo de sínte-
ses harmoniosas, em que tanto a erudigáo humana como a fé
crista estáo empenhadas no entendimiento mais profundo da
Sagrada Escritura e de questóes filosófico-religiosas em geral.

— 213 —
Toda a tendencia católica á sintese, no campo da exegese, chegou
ao seu ponto de cristalizacáo oficial quando em 1943 o S. Padre Pió XII
publicou a encíclica «Divino afilante Spiritu», encíclica que foi saudada
como «urna rajada de ar fresco, de' ozónio, depoLs da tempestade»
(Monsenhor Charue, bispo de Namur, no prefacio á edigáo de L.
Cerfaux: Encyclique sur les études bibliques. Bruxelles 1945).

O pcnsamento de Pió XII nesse documento assim se pode


resumir:
A Biblia é, em sua prímeira face, urna pega literaria: apre-
senta u'a mensagem divina envolvida dentro de veste lingüística
humana. Por conseguinte, o único Criterio auténtico para se
penetrar no seu conteúdo doutrinário será a análise da letra
ou do sentido literal do texto. Nao há dúvida, os autores sa
grados, ao redigirem as páginas bíblicas, serviram-se dos di
versos recursos de linguagem que estavam em voga no mundo
oriental onde viviam. — Á vista disso, torna-se imprescindível
ao exegeta reconstituir fielmente o ambiente histórico, geo
gráfico, assim como a mentalidade e o expressionismo dos
homens antigos ; é necessário, em outras palavras, que o in
térprete moderno retroceda em espirito até os sáculos pré-
cristáos para entender devidamente o que os autores bíblicos
queriam, dizer ao usarem ta!si e tais expressóes. Ora nessa
tarefa' o exegeta é valiosamente auxiliado pelos resultados
modernos da arqueología, da filología, da assiriologia, da
egiptología, etc., de sorte que, longe de estabelecer divorcio
entre tais disciplinas profanas e a ciencia sagrada, o estudioso
católico tem a obrigagáo de se servir délas para bem realizar
a sua missáo religiosa.

Tenha-se em vista, entre outras, a seguinte advertencia do


S. Padre:
«Os nossos especialistas de estudos bíblicos... nao desprezem
descoberta alguma da arqueologia ou da historia antiga ou da ciencia
das antigás literaturas, que possa servir ao melhor conhecimentp da
mentalidade dos antigos escritores, do seu modo e arte de raciocinar,
narrar e escrever. E neste campo saibam os seculares católicos que
nSo só contribuiráo para o progresso das ciencias profanas, senáo
que também prestaráo assinalado servico á causa crista, se. com a
devida diligencia e aplicacáo se derem a exploragáo e ao estudo da
antigüidade, e concorrerem assim para a boa solugáo de problemas
até agora aínda mal solucionados e obscuros. Pois todo conhecimento
humano, embora nao sagrado, por isso mesmo que é urna partlcipac&o
finita da infinita ciencia de Deus, tem já de per si urna sua dignidade
e excelencia própria; mas eleva-se a nova e mais alta digniáade e
quase consagracáo, quando se emprega em fazer brilhar com clara
luz as coisas divinas...
E todos os demais filhos da Igreja lembrem-se de que devem
julgar nao só com justica, mas com a maior caridade as fadigas désses
valiosos operarios da vinha do Senhor; gvardem-se daqufile zélo pouco

— 214 —
prudente que eré dever atacar ou declarar suspeita qualquer novidade
únicamente pelo fato de ser novidade» (transcrito da «Revista Eclesiás
tica Brasileira» 4 [1944] 459-61).

Em outros termos: o Pontífice recomendava a conside-


ragáo do género literario próprio de cada livro sagrado. Tal
consideragáo, conforme o Sto. Padre, nao deve ser tida como
recurso de apologética desesperada nem como traigoeira con-
cessáo á mentalidade moderna, mas constituí um instrumento
normal de exegese, pois a Biblia é livro no qual a Palavra de
Deus se «encarna» na palavra do homem, tomando tudo que
esta tem de estilo e expressionismo circunstancial, regional
e temporal...

Alias, poucos anos antes da publicagáo da encíclica «Divino


afilante Spiritu>, registrara-se episodio muito significativo.
Um pequeño grupo de eclesiásticos da Italia dirigirá ao episcopado
e aos Superiores Religiosos daquela nacao um opúsculo intitulado:
«Um grave perigo para a Igreja e as almas: o sistema crítico-cientí
fico no estudo e na interpretagáo da Sagrada Escritura». A obra
denunciava os métodos científicos de exegese como se fóssem mani-
festagóes de racionalismo, naturalismo e modernismo. Pois bem: em
1941 a Pontificia Comissáo Bíblica rejeitava os dizeres do libelo
incutindo desde entáo a orientagáo dada pela encíclica «Divino afilante
Spiritu»: acautelem-se os exegetas e pregadores contra a errónea
tendencia a provocar a edificacao dos fiéis, apresentando-lhes alegorías
piedosas e fantasistas em lugar do sentido obvio do texto sagrado;
toda explicacáo edificante da Sagrada Escritura há de ser baseada
no sentido literal da mesma; é éste sentido que o pregador e o
comentador tém que averiguar com exatidáo antes de proporem qual
quer ligáo ascético-mística em nome da Biblia Sagrada.

6. Reflexoes fináis. Nao se poderiam conceber diretivas


mais sabias para os estudos bíblicos do que as que se acham
consignadas nos dois documentos do pontificado de Pió XII
que acabamos de citar. Como se vé, nao é, de um lado, nem
o médo dos milagros nem o desejo de agradar á mentalidade
moderna, nem, de outro lado, o gósto dos milagres e a aspira-
gáo a exaltar a agáo extraordinaria de Deus, que deve guiar
o leitor e o comentador da Sagrada Escritura ; o criterio é
objetivo e igual para todo e qualquer estudioso : é o exame
do sentido literal do texto com sua escala de matizes que deve
ser tomado como base de qualquer interpretagáo religiosa
da Biblia.
Feita esta observagáo, verifica-se outrossim o que se há
de responder á pergunta : onde vamos parar na remodelagáo
da exegese ? — Dizíamos que o criterio para remodelar ou
nao remodelar nao é nem o racionalismo nem a mística, mas
é a filología do texto... Ora inegávelmente esta, nos últimos
decenios, pode ser mais explorada, pois tém sido descobertas

— 215 —
bibliotecas e pegas literarias dos antigos assírios, babilonios,
egipcios..., cuja lingüística comparada com a das páginas
bíblicas ajuda valiosamente o exegeta a penetrar no sentido
literal da Escritura. É possível que para o futuro aínda novos
documentos orientáis váo sendo descobertos e decifrados de
modo a projetar ainda mais luz sobre os textos bíblicos. Na
medida, portante, em que se pode esperar melhor conheci-
mento da lingüística oriental (seja israelita, seja nao israelita),
pode-se também admitir, para o futuro, alguma conclusáo nova
em pontos acidentais de exegese do Antigo Testamento (os
pontos essenciais já estáo esclarecidos e documentados).
Quanto ao texto dos Santos Evangelhos, deve-se observar
que foi redigido segundo as categorías da historiografía do
inicio da era crista ; ora essas categorías já nos sao suficien
temente conhecidas, de sorte que nao restem dúvidas sobre o
género literario dos Evangelhos e sobre a mensagem própria
de cada Evangelista.
Mais urna vez ssja lícito frisar : sao criterios sempre obje
tivos, independentes de gósto ou moda, que norteiam a posigáo
do exegeta católico diante das perguntas assinaladas no cabe-
galho déste artigo.

2. E a infalibilidadc da Igrcja ?

1. Antes do mais. será oportuno recordar que o magisterio inía-


Hvel da Igreja

a) só se exerce em materia de fé e de costumes;

ordinariamente: pelo ensinamento unánime


do episcopado unido ao Su
premo Pastor o Papa;
por urna definigáo de
Concilio ecuménico;

por urna definicjSo pa


b) é manifestado pal «ex cathedra» (de-
extraordinariamente f inic.áo em que o Papa
intenciona falar como
Vigário de Jesús Cris
to, dirigindo-se a todus
os fiéis em materia de
fé e de costumes).

Sobre a infalibilidade do magisterio da Igreja, veja-se «P. R.»


14/1959, qu. 2 e 3.

2. Agora, para se entender a atitude da Igreja no de-


correr da historia da exegese, levar-se-á em conta o seguinte :
Na antigüidade e na Idade Media, os exegetas, seguindo
urna obvia regra de hermenéutica (já comentada no inicio

— 216 —
déste artigo), costumavam tomar ao pé da letra os capítulos
da Biblia que envolvem questóes de ciencias profanas (nao se
viam motivos para atitude contraria). Já que essa interpreta-
cáo era serenamente admitida por todos os cristáos, o magis
terio da Igreja nunca se viu solicitado a se pronunciar solene-
mente sobre ésse proceder, de mais a mais que versava em
grande parte sobre questóes pertencentes nao á fé e aos cos-
tumes, mas as ciencias profanas.

As escolas católicas medievals, portante ensinavam as teses de


que o mundo foi íeito em seis dias de 24 horas, ... de que o género
humano tem 5 ou 7 mil anos de existencia, ... de que o diluvio foi
geográficamente universal, etc. Tais proposites nao constituem o
ensinamento do texto bíblico como tal nem foram alguma vez ratifi
cadas pelo magisterio infalível da Sta. Igreja; representavam simples-
mente a interpretacüo que os teólogos e exegetas (homens da Igreja,
mas nao a Igreja como tal) davam ao texto bíblico. — Essas propo
sicóes eram, sem düvida, inconsistentes do ponto de vista das ciencias
naturais; observe-se, porém, que nao estava, nem está, dentro da
missáo da Igreja ensinar alguma coisa sobre tais assuntos de índole
profana; as incumbencias da Igreja sao religiosas, visando santificar
as almas, isto é, levá-las a Deus e á vida eterna. Por isto, as mencio
nadas sentencas podiam ser transmitidas de geragüo a geragáo, sem
que sofresse detrimento a tarefa específica da Santa Igreja; na ver-
dade, ¡numeras almas se santificaran!, mesmo abracando aquelas
proposicOes que no setor das ciencias eram deficientes; tais concepgOes
nao estorvavam a salvacáo dos fiéis (para a obtencao da vida eterna,
que importa saber quantas racas e sub-ragas de animáis viveram sobre
a Térra?).

Tcrminou-se a Idade Media... Quando, em época mo


derna, as novas teorías dos dentistas pareceram solapar as
concepgóes cristas, os teólogos e prelados reagiram contra elas.
Note-se, porém, que também dessa vez o magisterio infalível
da Igreja nao se pronunciou sobre o assunto ; houve, sim,
declaragóes de Congregagóes e de Comissóes da Santa Se, etc.,
mas nunca alguma definicáo solene sobre as novas técnicas
exegéticas e suas conclusóes. Quando finalmente Pió XII es-
timulou os estudiosos católicos a utilizarem o cabedal da
ciencia moderna para penetrarem no sentido do texto sa
grado, Pió XII nem falou «ex cathedra», nem se opós a algum
pronunciamento anteriormente emanado do magisterio infa
lível da Igreja.

Como se depreende, em toda essa mudanca de exegese estáo


envolvidas apenas as personalidades de teólogos e estudiosos católicos,
nao, porém, a infalibilidade da Sta. Igreja como tal. Nem é necessario
que o magisterio solene da Igreja se exerca a propósito de qualquer
questáo, mesmo que esta toque o dogma ou a moral; as definieres
de concilios ecuménicos ou do Romano Pontífice sempre foram oca
sionadas por controversias dogmáticas, heresias. em suma, por cir
cunstancias extraordinarias da vida da Igreja.

— 217 —
No tocante á Sagrada Escritura em particular, Pió XIX iazia
observar na encíclica «Divino afilante Spiritu» que poucos sao os
textos cujo sentido haja sido definido pelo magisterio extraordinario
da Igreja:
«Tenham os fiéis presente que as diretivas e leis dadas pela
Igreja versam sobre assuntos de fé e costumes, e que, entre as
muitas coisas que se léem nos Livros Santos..., poucas sao aquetas
cujo sentido tenha sido declarado pela autoridade da Igreja; nem
sao mais numerosas aquelas das quais tenhamos a sentenca unánime
dos Padres. Restam, pois, muitas e muito importantes questdes em
cuja discussáo e explicacáo se pode e deve exercitar livremente o
genio e a perspicacia dos intérpretes católicos» (transcrito da «Revis
ta Eclesiástica Brasileira» 4 [1944] 461).

Quanto as deficiencias de interpretagáo dos exegetas an-


tigos, sabemos que nao podem ser tidas como deficiencias do
texto bíblico como tal (os homens pensavam que o texto bí
blico falava de um determinado modo, quando de fato ele assim
nao falava), nem se devem a descuido de tais estudiosos. Elas
se explicam simplesmente pelo fato de que os homens antigos
nao dispunham dos recursos de trabalho, ou seja, dos conhe-
cimentos filológicos, arqueológicos, historiográficos... de que
hoje usufruimos para melhor interpretar a face humana da
Biblia. Nao houve culpa nisso, nem houve detrimento para
a salvacáo das almas. Nao queira, portante, o observador mo
derno julgar os antepassados com rigor que éles nao merecem!

V. MORAL MÉDICA

H. L. M. (Salvador) :

6) «Nao é verdade que até o fim da Idade Media a


Igreja proibiu a dissecacao de cadáveres, entravando assim o
progresso da Medicina ?»

1. Partindo de premissas remotas, notaremos primeira-


mente em nossa resposta que a Igreja, de modo geral, dedica
grande respeito ao corpo humano, mesmo depois de morto. A
razáo profunda desta estima é o misterio da Encarnagáo, me
diante o qual a carne humana foi dignificada ao extremo e
destinada a configurar-se ao corpo glorioso de Cristo. O pen-
samento cristáo a tal respeito acha-se bem resumido no
seguinte trecho de discurso do Papa Pío XII a esportistas
italianos:

«Em verdade, a Igreja sempre deu provas de solicitude e reve


rencia para com o corpo humano, que o materialismo, em seu culto
idolátrico, jamáis concebeu. Isso é muito natural. O materialismo
só vé, só reconhece, no corpo, a carne material, cujo vigor e beleza

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nascem e ílorescem para definhar e morrer á semelhanca da erva
dos campos que se torna cinza e lama. Multo diversa é a concepcáo
crista. Segundo esta, o Senhor fez o corpo humano como obra prima
entre as criaturas visiveis. file o destinou a crescer aquí na térra
e a se expandir imortal na gloria do céu... Nao foi Deus quem
tornou mortal o nosso corpo, mas, sim, o pecado. Por causa do pecado,
o corpo, tirado do pó, deve voltar ao pó; o Senhor, porém, de novo
o tirará déste para lhe restituir a vida. Mesmo reduzidos ao pó, a
Igreja respeita e honra os cadáveres, destinados a ressuscitar um
dia» (Alocucáo proferida aos 20 de maio de 1945).

2. Quando o Cristianismo, com esta sua concepcáo oti-


mista do corpo, se difundiu pelo mundo, encontrou entre os
médicos antigos a praxe (violada apenas em casos relativa
mente raros) de nao se dissecarem cadáveres humanos para
estudos de anatomía. Crengas religiosas (embora muito dife
rentes das crencas cristas) inspiravam tal atitude dos médi
cos pagaos.

Sabe-se que ocasionalmente no séc. IV a. C. um ou outro estu


dioso se entregou ao estudo da anatomía dissecando cadáveres. No
séc. III a. C. as escolas de Alexandria no Egito, tendo por expoentes
Herófilo e Erasistrato, praticaram tal arte, como que por privilegio
ou excecao — excecao que se explica pelo fato de que os egipcios,
para embalsamar seus mortos, já costumavam infligir-lhes incisSes
e talhes.
Chama a atencao em particular o caso do sabio helenista Galleno
de Pérgamo (130-200), o qual, junto com Hipócrates, é tido como um
dos mais notáveis médicos da antigUidade; conforme os autores, sua
influencia na historia da medicina se terá exercido até o séc. XVII.
Rigoroso como era em seus estudos, Galleno procurou elevar a arte
da medicina ao nivel de verdadeira ciencia. Contudo, por xespeito
ao costume vigente, só praticou a dissecacáo de animáis irracioniis,
especialmente do macaco; por muito que lamentasse tal restricto,
Galieno nao pode deixar de a observar.

3. Em tais circunstancias, compreende-se que os médicos


cristáos nada tenham inovado : como os seus colegas náo-cris-
táos, abstinham-se de utilizar cadáveres humanos para estu
dos de anatomía. Aínda no séc. XII a Escola de Salerno (Ita
lia), que se tornou famosa por seus progressos em medicina,
logrou mais exatos conhecimentos de anatomía mediante a
dissecagáo sistemática do porco, animal considerado como
sendo «interiormente» o mais semelhante ao homem.

4. Finalmente no séc. XIV a praxe comegou a ser alte


rada ; as autopsias iam sendo mais e mais praticadas, abrindo
assim a via a dissecacáo sistemática dos cadáveres.

Diz-se que o Gráo-Conselho de Veneza, por decreto de 27 de maio


de 1308, autorizava urna dissecacáo por ano, sem parecer considerar
tal concessáo como algo de ¡novador (alguns historiadores, porém,
corrigem a data de 1308 para 1368). Sabe-se que em Janeiro e margo

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de 1316 na cidade de Bolonha, o famoso Mondino dei Luzzi, retalhou
e examinou dois cadáveres de mulheres, consignando logo seus mé
todos e suas observacSes num pequeño tratado de anatomía.

O novo costume se foi implantando sem resistencia do


magisterio da Igreja. Atribui-se ao Papa Bonifacio vm urna
condenagáo da dissecagáo ; na verdade, porém, éste Pontífice
nao fez senáo publicar a bula «De sepulturis», na qual proibia,
se fizesse ferver o cadáver de pessoas falecidas fora de sua
patria a fim de se levar apenas o esqueleto para o respectivo
torráo natal. Em 1345, Guido de Vigevano refere-se a urna
proibigáo eclesiástica de dissecagáo ; parece, porém, que nao
se tratava senáo de urna medida disciplinar emanada do bispo
de París.

Um traco significativo da época é-nos. antes, atestado por um


manuscrito da Biblioteca colombina: descreyendo a vida universitaria,
o cronista narra como as autoridades eclesiásticas mandaram abrir
o cránio de um estudante que acabara de morrer em orgia; a disseca
gáo fóra praticada no intuito de se comprovar aos colegas do defunto
a veracidade da aíirmacáo do sabio árabe Avicena segundo a qual
todos os excessos sexuais se produzem com detrimento para o cerebro!

Dentre as Universidades, a que primeiramente adotou a


praxe da dissecagáo de cadáveres, foi a de Bolonha. Em París
as primeiras operagóes désse tipo so se verificaram em 1407,
tornando-se comuns apenas a partir de 1477. Nesses séculos
XIV/XV nao era própriamente a ideología religiosa que entra-
vava tal tipo de estudos, mas, sim, o mau ánimo dos cirurgióes
contra os médicos ; aqueles nao raro se enfureciam contra
estes, acusando-os de ensinar anatomía aos barbeiros, pseudo-
concurrentes dos cirurgióes !
Enfim, por parto da Moral crista nada há que opor aos
estudos de anatomia em cadáveres, contanto que nessas ope
ragóes se observem recato e reverencia. Sobre o assunto já
sairam esclarecimentos em «P.R.» 26/1960, qu. 6.
D. ESTÉVAO BETTENCOUBT O- S. II.

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