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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
VV.-r visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IV

37
J A N E I R <

1 9 6
ÍNDICE
p&g.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Em que consiste a chamada lavagem de cránio, t&o fre-


qüente nos países da Cortina de Ferro ?" 3

II. DOGMÁTICA

S) "Como se explica o texto de Gen 1,27 : 'Deus criou o


kontem á sua imagem' ?
Visto que Deus é Espirito i-mortal, todo-poderoso e bom, en- '
quanto o homem é materia mortal, fraca 0 maldosa, como pode
haver semelhanca entre o homem e Deus ?" 9,

III. SAGRADA ESCRITURA •

3) "Como entender os dizeres de Sao Paulo em 1 Cor 4,6 ;


'... para que aprendáis a Ttáo ir além do que está escrito' ?
O Apostólo, com essas palavras, parece recomendar que nao
se adote outra regra de fé fora da S. Escritura. Os ensinamentos
oráis da Tradigáo nao estariam assim excluidos ?" 15

IV. MORAL

U) "Nao é raro dizer-se que algum acontecimento parece


diabólico ou satánico.
Que sentido pode _ ter esta express&o á luz da mentalidade
moderna ? Ndo será indicio de pessimismo exagerado, sugerido
pelas concepcóes fantasistas dos povos primitivos e medievais ?
Pode-se razoávelmente crer em Sata nos nossos dios ?" 17

5) "Que dizer, do ponto de vista cristdo, a respeito dos


prognósticos de fome e calamidades decorrentes do extraordinario
aumento da populag&o do globo ?
Nao tém razio os que preconizam a restrícdo da natalidade ou
o néo-malthusianismo de acardo com métodos farmacéuticos e
medicináis ?" 25 \

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Até que ponto se estende a liberdade de agáo que a Igreja


reivindica para si no mundo moderno ?
Como é que a Igreja considera a sua convivencia com os cre
dos nao-católicos*? Será hostil ou tolerante em relac&o a éles ?" 33 '

CORRESPONDENCIA MIÜDA (o problema do mal) 41

COU APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IV — N* 37 — Janeiro de 1961

CIENCIA E RELIGIÁO

FIGÜEIREDO (Mineiros, Goiás):

1) «Em que consiste a chamada lavagem de cránio, táo


freqüente nos países da Cortina de Ferro?»

A expressáo «lavagem de cránio» (ou «lavagem de cerebro» ou


«limpeza da mente») entrou no vocabulario moderno no flm da última
guerra mundial; parece ser a traducáo do termo chinés «Hsi-Nao».
Designa a aplicacáo de urna serie de recursos da medicina e da
psicología que visam influir no comportamento de urna pessoa a
ponto de mudar (ou, como dizem, «limpar, lavar») por completo o
modo de falar e agir de tal pessoa (a pessoa no caso é simbolizada
por «cránio» ou «cerebro» ou «mente»). Em conseqüéncia de urna
dessas lavagens de cránio, quem, por exemplo, sempre foi infenso
ao sistema marxista, faz declaragdes entusiastas em favor do comu
nismo, denuncia os colegas «anti-esquerdistas», «reconhece» haver
cometido delitos contra o regime vigente; numa palavra: desdiz total
mente seus hábitos e suas afirmacóes de outrora (haja vista o que
se deu com o Cardeal Mindszenry, com o ministro Lavrenti Beria...).
— Por isto, há quem proponha para tal técnica o nome, certamente
mais fiel, de «menticidio».
Tal fenómeno nos interessa aqui na medida em que constituí u'a
manifestacáo requintada de ciencia e técnica humanas, associadas á
hipocrisia sádica, a fim de servir ao odio, á mentira e á deturpagáo
da personalidade. Toda a grandeza da criatura parece assim empe-
nhada em contrariar ao Criador e as leis do Criador — o que e
«satánico».
Abaixo estudaremos os fundamentos científicos da «lavagem de
cránio»; a seguir, descreveremos os seus procedimentos mais comuns.

1. Os fundamentos científicos

Já em «P. R.» 5/1958, qu. 6, lembramos que a inteligencia


e a vontade, facilidades características da alma humana, neces-
sitam, para agir, do concurso do corpo e, em particular, do
cerebro. O cerebro vem a ser quase a «central telefónica» onde
as impressóes captadas pelos sentidos externos e pelo sistema
nervoso em geral sao colecionadas e ulteriormente transmitidas
á inteligencia, a fim de que esta distinga o essencial do aciden-
tai, formule definicóes, avalle as proporcóes entre meios e
fins, etc.
Dai a grande importancia que tem a saúde ou o funciona-
mento normal do cerebro para as manifestacóes da inteligencia

— 3 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961. qu. 1

e da vontade do respectivo sujeito... Ora, conscientes disto,


médicos e psicólogos modernos tém concebido métodos esmera
dos que conseguem influir no sistema nervoso e, por conseguinte
no cerebro de um paciente de modo tal que éste produza mani-
festacóes da inteligencia e da vontade bem diversas das que
ele antes produzáa. Tais métodos consistem ora em parausar
por inteiro ou em parte, urna determinada funcáo do sistema
nervoso ou do cerebro, ora em canalizar essa fungáo a fim
de que ela reaja sempre do mesmo modo.
A lavagem de cránio utiliza muito particularmente as des-
cobertas do fisiologista russo, pai da medicina córtico-visceral
Iva» Petrovitch Pavlov, sobre os chamados «reflexos adquiri
dos» ou «condicionados»: por cérea do ano de 1929, Pavlov
averigüou, sim, que certos estímulos ou agentes extrínsecos
podem provocar ou condicionar reflexos (isto é, reagóes incons-
ientes) táo arraigados em determinado sujeito que éste passa
a reagir de tal modo (mesmo fora de propósito e em circuns
tancias ridiculas) todas as vézes que seja atingido por tal ou
tal estímulo...

Urna das experiencias mals significativas realizadas por Pavlov


versava sobre um cao e urna campainha. —.Sempre que se levava
o alimento a um cao, Pavlov mandava tocar urna campainha: depois
de assim haver feito numerosissimas vézes, o dentista mandou tocar
a campainha, mas nada dar de comer ao animal por essa ocasi&o
Observou entáo estranho fenómeno: o cao, acostumado a comer logo
após ouvlr a campainha, conservou o hábito de salivar abundante
mente a b6ca ao som da campainha, mesmo quando já nao lhe serviam
comida. O animal ficou destarte «condicionado» (como se diz em
linguagem técnica) a responder ao som da campainha como se éste-
som tivesse o odor e o sabor de alimento. — Pavlov veriíicou ainda
que outros estímulos, repetidamente aplicados ao mesmo animal, pro-
vocavam reac6es ou, como se diz, «reflexos» ainda mals complicados.

Ora, de experiencia em experiencia, os dentistas desco-


briram que também o homem é capaz de adquirir reflexos
condicionados inconscientes; o que quer dizer: é capaz de con-
trair certos hábitos e tomar atitudes marcantes (por palavras
ou gestos) mediante a influencia de fatóres mecánicos devida-
mente concebidos pelos psicólogos e médicos.
Esta capacidade do homem nao significa que ele seja mera
máquina, cujo fundonamento se deva a fatóres puramente
mecánicos. — Mesmo quem age por efeito de reflexos condi
cionados, isto é, indeliberada ou cegamente, possui inteligénda
capaz de refletir, assim como vontade dotada de livre arbitrio;
em outras palavras: possui alma espiritual, alma que transcende-
a materia. Contudo os agentes mecánicos, desviando de maneira
forte o fundonamento normal do sistema nervoso e dos apare-

— 4 —
«LAVAGEM DE CRANIO>

Ihos sensitivo e vegetativo que deveriam colaborar com a alma


espiritual, fazem que o respectivo sujeito já nao possa mani
festar as riquezas (isto é, as capacidades de deliberar, de
dizer «sim» ou «nao») de sua alma espiritual. Daí parecer que
o homem, marcado por reflexos condicionados, nao passe de
um conjunto de-elementos mecánicos. A aparéncia, porém,
engaña... Todo homem possui alma espiritual, que é imortal
e néle permanece até a dissolucao do corpo; contudo o Criador
fez a alma humana de modo tal que as suas atividades carac
terísticas ficam sempre dependentes das fungóes do corpo (fun-
cóes estas naturalmente sujeitas á influencia de agentes corpó
reos extrínsecos).
No homem,'a capacidade de adquirir reflexos condicionados
pode ser utilizada para remediar a situagdes doentias e com-
portamentos moralmente viciados da personalidade humana.
Ela pode, porém, ser explorada para o mal, ou seja, para esma-
gar e destruir a personalidade. É isto justamente o que fazem
os «limpadores de cranio» nos países totalitarios (comunistas
e nacional-socialistas).
A técnica longa e complexa da «lavagem> conserva até agora
Índole um tanto misteriosa; as declaracdes das respectivas vitimas
parecem, a certos peritos, tendenciosas, nao-merecedoras de pleno
crédito.
Como quer que seja, pode-ss reconstituir o curso geral de um
processo de Iimpeza de cránio nos termos que váo abaixo delineados
(publicacao da revista «Sclence et Vie> CXHI489 [junho de 1958] 32-37).
ih ,.
2. Gomo se desenvolve o procedimento

Sao tres horas da madrugada. Um marido e pai de familia,


André W., dorme, quando repentinamente quatro holofotes, a
projetar luz fortíssima sobre as suas pálpebras, o despertam
sobressaltado. Ao abrir os olhos, avista quatro homens dissi
mulados sob máscaras, que lhe cercam o leito e o intimam
fríamente a se vestir a fim de os acompanhar.
Qualquer pergunta e qualquer tentativa de resistencia da
parte de André sao baldadas. Nao lhe resta senáo obedecer
sem saber porque (podia ter sido aínda mais infeliz, póis outros
foram despertados mediante veementes bofetóes). Urna vez
trajadq, vé-se ele bruscamente levado para dentro de um- carro,
onde o "fazem sentar entre dois guardas; deixa a casa sém nada
levar consigo... Sem demora, o veículo desenvolve alta velo-
cidade em demanda de um objetivo desconhecido; inútil' é
questionar a comitiva.
Pouco mais tarde, André, olhando em torno de si, vé-se
encerrado em um cubículo de prisáo. Mandam-lhe que troque

5
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961. qu. 1

de vestes, tomando trajes já usados por dezenas de infelizes


antes déle. Essas vestes apreseñtam urna particularidade apa
rentemente secundaria: nao tém botóes; basta isto, porém,
para provocar urna situagáo estranhíssima: André terá que
ficar continuamente sentado ou, todas as vézes que se quiser
erguer, deverá fazer o papel ridículo de segurar as caigas com
as máos.
Apenas dois orificios perfuram ésse cubículo de cimento:
urna boca para a entrada do ar, e urna viseira na porta, atra-
vés da qual dois olhos, de dez em dez minutos, controlam qual-,
quer atitude do prisioneiro. A iluminagáo é fornecida por urna
lámpada elétrica que «pisca» em ritmo regular, produzindo
luz ora vermelha, ora amarela; André pergunta ao vigía porque
a iluminagáo é táo anómala; após a centésima interrogagáo,
respondem-lhe que a instalagáo elétrica «está com defeito»; é,
porém, um «defeito» apto a tornar louco o paciente!

Alias, tudo que se vai sucedendo nesse cubículo, é apto a gerar


a loucura: André nao pode ver a luz natural, mas também nao tem
relógio, de modo que nunca sabe ao certo que horas sao; assim as
nocóes básicas de «dia» e «noite» para ele se váo esvanecendo. Quando
saiu de casa, a esposa e os filhos estavam para voltar das ferias,
ela esperando mais um «nenézinho»; «que susto nao terá ela experi
mentado?», pergunta constantemente o prisioneiro de si para si. Nao
sabe por que nem por quanto tempo se acha na situacáo presente.
Todo contato com o mundo externo lhe é peremptóriamente vedado;
ésse isolamento absoluto tende a desarraigar André e a subtralr-lhe os
pontos cardeals segundo os quais a sua personalidade se orientava
antigamente.

Dentro do cubículo, durante meses a fio verificam-se fenó


menos intrigantes, de índole aparentemente inofensiva ou casual,
mas na realidade todos premeditados e desencadeados de modo
a desconsertar cada vez mais o paciente. Por exemplo, freqüen-
temente dirigem-lhe a questáo: «És realmente André W. ... ?».
Fazem-lhe ouvir discos que imitam a sua voz, em tom de sus-
surro, de modo que André é levado a confundir vozes reais
e a voz do íntimo da sua consciéncia em soliloquio. Um dia, a
refeigáo principal consta de um osso apenas, como se nada
mais houvera na cozinha; há ocasióes em que os olhos do car-
cereiro ficam fixos a espreitá-lo incessantemente durante urna
hora, a ponto tal que o encarcerado comega a duvidar da reali
dade da sua própria visáo. O piscar sistemático da lámpada, o
fato de ter que segurar as caigas ñas máos sempre que se
levante, ainda contribuem para dar á vítima a impressáo de
que está vivendo num mundo novo, mundo em que tudo é
absurdo. Nem sequer lhe permitem dormir um pouco a fim
de esquecer a triste realidade em que se acha! Destarte o

— 6 —
«LAVAGEM DE CRANIO»

sistema nervoso de André se vai esgotando; cedo ou tarde


poderá parecer-lhe que o preto se tornou branco, e que o
tranco «virou» preto...
Finalmente, nesse estado de extrema debilidade e vacila-
cáo mental o prisioneiro recebe certo dia a visita de um hp-
mem... Vira para conversar? — O estranho, munido de ca
pacete de acó, comeca a interrogar...; mas que coisas absurdas
nao pergunta ele!? Mostra-se, além disto, brutal: esbofeteia,
aplica o choque elétrico mediante pingas fixas as partes mais
sensíveis do corpo, e durante quarenta e oito horas continuas
intima-o periódicamente: «Confessa! Confessa! Confessa!».
Após tres visitas désse tipo, o complexo do médo está
implantado na mataría dos homens corajosos; a vitima perde
todo senso de crítica e de resistencia, assemelhando-se a um
animal medroso!
Alguns pacientes, de temperamento fraco, após tais trata-
mentos, se tornam totalmente maleáveis ñas mios de seus
carrascos. Confessam tudo que se Ihes sugira, mesmo as coisas
•que éles reconhecem como falsas.

Durante a guerra da Coréia, unv oiicial da marinha norte-ameri


cana; Frank Schwable, submetido a lavagenr de cránio em prisáo
■chinesa, acabou por assinar a coníissáo de que os Estados Unidos
iaziam a guerra bacteriológica; mais tarde, porém, de volta 4 patria,
lYank declarou: «Ao redigir tal documento, sabia perfeitamente que
a declaracSo era falsa, mas nSo podia resistir».

Admita-se contudo que o «réu» aínda queira contradizer


•aos seus acusadores, mesmo após tais maus tratos. Comeca
entáo um segundo grau de «lavagem» ou de «extorsáo». —
■Outro visitante o vai procurar no cárcere:... alguém que, desta
vez, o parece deixar á vontade e confiante; é um operario, no
•caso do prisioneiro ser um operario, ou entáo um militar, um
intelectual, u'a mulher, um jovem ou um anciáo, de acordó
■com a identidade do «réu». Usa de voz branda, atitudes calmas,
a fim de explorar a situagáo psicológica do paciente: éste,
■vendo-se no extremo abandono, mil vézes hostilizado, tende a
:se deixar catívar espiritualmente pela primeira pessoa que se
lhe mostré benigna. Consciente disto, o «benévolo» visitante
póe-se a aconselhar: «Nao tens esperanca.de escapar, caso nao
•cónfesses. Confessa, e recuperarás teu regime de vida normal,
com tua esposa e teus filhos». Essas palavras, de teor aparen
temente táo amigo, nao podem deixar de impressionar e mesmo
desconsertar a quem só espera maus tratos. A vitima entáo,
já muito debilitada física e moralmente, desarmada como
«enanca, fácilmente se entrega confiante, ou mesmo sentimen-
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 1

talmente, ao conselheiro... E confessa tudo, chegando a in


ventar a narrativa de faltas que lhe sejam sugeridas pelos
acusadores.

O conselheiro aproveita-se da situacáo para fazer um exame


juntamente com a vitima:
«Nunca disseste tal ou tal coisa?»
«Épossível... creioauesim,... Ah,agoralembro-me: disse-o!».
— «Serias capaz de o confessar em público?»
— «Sim; hel de confessá-lo!»
— «É o melhor. A verdade tem que ser dita. Levarlo em conta
a tua declaragáo espontánea».
Ass'm se processa a autocrítica, muito explorada por ocasiáo dos.'
«expurgos stalinianos» empreendidos pelo govérno russo após a morte
de Stalin. Muitas vézes a autocrítica se efetua numa atmosfera de
«delirio místico» em que a vitima é estimulada a se penitenciar e
sacrificar em prol dos «interésscs da coletividade», chegando mesmo
a aceitar como graca ditosa a pena capital!

Dado, porém, que o segundo grau de «lavagem craniana»,


assim descrito, nao produza todos os efeitos desejados, os téc
nicos conhecem mais um recurso, que constituí o terceiro grau,
de todo irresistível. Utilizam dessa vez táticas nao própriamente
psicológicas, mas fisiológicas e violentas: aplicam, sim, ao
paciente injegóes de insulina e series de choques elétricos. A
insulina queima a glicose do organismo, glicose indispensáyel
para que o cerebro possa controlar as suas percepgóes; assim
o cerebro fica exposto a receber, sem defesa, nem capacidade
da discernimento, todas as palavras e imagens sugestivas que
se incutam á vitima. Os choques elétricos, por sua vez, acabam
de destruir qualquer vest'gio de resistencia. Destarte se destrói
a antiga personalidade moral do individuo, e outra, nova, lhe
poda ser impingida, feita segundo a medida dos «lavadores de
cránio». Como dizem, essa nova personalidade moral é extre
mamente tenaz e desapiedada; a vitima doravante é um autó-
mato sem identidade, «teleguiado» até a morte.

Como se compreende, os resultados obtidos pelos recursos da


«lavagem» dependerá, em parte, do temperamento do paciente: pessoa
colérica reage aos choques mais rápidamente do que pessoa sanguínea;
quem toca o senso prático da realidade, resiste melhor do que um
sonhador ¡solado do mundo em que vive. Conscientes dessas parti
cularidades, os limpadores de cránio tendem a produzir em torno do
povo urna atmosfera de entusiasmo ou delirio coletivo; em vista disto,
costumam promover vultuosas concentracOes de massas, em que
longos decursos, espetáculos e demonstracoes de esporte ou de fórca
bruta, holofotes e gritos apoteóticos marcam profundamente a menta-
lidade dos participantes.
Quem respira dentro de tal atmosfera, difícilmente se subtrai
á sua influencia nefasta. A resistencia á acáo dos limpadores de
cr&nio tem que ser empreendida já a longa distancia. O conhecjnento

— 8 —
O HOMEM. IMAGEM DE DEU5

dos artificios que éles empregam, ceftamente ajuda o individuo a


desmascará-los e a imunizar-se psicológicamente contra éles. Além
disto, para que alguém lhes possa resistir, torna-se necessário que
viva da maneira. mais coerente possível com sua consciéncia, isento
de conflitos internos, de paixSes obcecantes, procurando dominar em
tudo os impulsos e as reagoes de sua sensibilidade. Está claro que
ura tal nivel de vida só poderá ser adequadamente atingido com o
auxilio da graga de Deus, ou seja, mediante um procedimento cristáo
que, removendo toda languidez e rotina de ánimo, utilize em grau
máximo os dons que Deus dá a cada um de seus filhos para que se
torne «sal da térra e luz do mundo» (cf. Mt 5,13s).

Em conclusáo: a tática da «Iimpeza de cránio» que ameaga


os mais inocentes dos cidadáos de qualquer país, nao deixa
abatido o cristáo. Éste, longe de se entristecer com a noticia,
procurará, em resposta á mesma, ser mais integralmente cum-
pridor de seus deveres de bom cristáo; procurará viver mais
perfeitamente a sua vida de filho de Deus na Sta. Igreja. Os
tempos presentes impóem a todo individuo o dilema inelutável:
ou viver 100% a servigo de urna grande causa (a causa de
Cristo) ou «ir na onda», ser arrastado, despersonalizado e
sufocado. Nao sao possiveis atitudes amorfas ou amb guas;
quem nao queira ser coerente com seus principios, é degradado
da sua dignidade humana e perece na onda do mal!

H. DOGMÁTICA
LIVIO (Aracaja):

2) «Gomo se explica o texto de Gen 1,27: 'Deus crion


o homem á sua imagem'?
Visto que Deus é Espirito ¡mortal, todo-poderoso e bom,
enauanto o homem é materia mortal, fraca c maldosa, como
pode haver semelhanca entre o homem e Deus?»

Em resposta, será preciso, antes do mais, analisar os dizeres do


texto biblico; após o que, tornar-se-á possivel urna reílexáo sobre a
sua mensagem.

1. Os dizeres do texto bíblico

Lé-se em Gen 1, 26s:

1,26 -«Disse Deus: 'Fagamos o homem & nossa imagem, conforme


a nossa semelhanca; dominem s6bre os peixes do mar, sobre as aves
do céu, sobre os animáis domésticos, sdbre todos os animáis selvagehs
e sdbre todos os reptéis que se arrastam sobre a térra*.

27 Deus criou o homem;


á imagem de Deus file o criou
varáo e mulher, Ele os criou>.

— 9 —
«PERGUNTC E RESPONDEREMOS» 3,7/1961, qu. 2

No v. 27a omitimos, com bons críticos, o apasto «á sua imagem»,


aposto que quebra o ritmo ou o curso progressivo do pensamento.
O significado do texto ácima no problema da origem do homem
nao é objeto da nossa questao; já tendo sido abordado em «P. R.>
29/1960, qu. 1, deixamo-lo agora de parte; visamos apenas penetrar
no sentido da express&o «...a imagem e conforme a semelhanca de
Deus», express&o que, como se pode supor de antemáo, deve revelar a
razao de ser da criatura humana.

Os exegetas propóem mais de urna explicagáo das palavras


hebraicas selem, imagem, e demut, semelhanga, ocorrentes nos
versículos ácima. .<

Há quem as considere como sinónimas entre si. É o que já íaziam


antigos tradutores do texto hebraico, os quais, por exemplo, na
edicao grega dos LXX e na Vulgata latina, deram a ler: «Facamos
o homem á nossa imagem e semelhanga> (em ver de «á nossa imagem,
conforme a nossa semelhanca»). Suposta a sinonimia, o segundo termo
reforcaria o sentido do primeiro, incutindo que o homem é imagem
seinelhantísslma de Deus.
Nao intencionando discutir as diversas sentengas dos comentado
res, passaremos logo a mais provável de todas.

Selem (imagem) e demut (semelhanca) nao sao vocábulos


sinónimos; contudo em Gen l,26s, justapostos como se acham,
exprimem urna única idéia.
Selem costuma designar no Antigo Testamento «a imagem
material, esculpida», muitas vézes mesmo «os ídolos»; cf. Am
5,26; 4 Rs 11,18; Núm 33,52; 2 Crón 23, 17; Ez 7,20; 16,17;
23,14. Pois bem; o texto do Gen afirma que o homem foi feito
á imagem de Deas (besalmenu)...; a preposigáo a (beth, em
hebraico) parece designar aqui (como, alias, em outros casos
da língua hebraica) a própria esséncia do individuo mencio
nado, ou seja, a esséncia do homem. Ela significa, por conse-
guinte, que o homem foi feito «como imagem de Deus»; o
conceito de «imagem de Deus» vem a ser destarte inerente
ao de «homem»; pode-se dizer entáo que foi para exprimir a
sua perfeigáo que Deus concebeu a perfeigáo da natureza
humana.
Ao lado de selem (imagem), o vocábulo demut (semelhan
ga) parece exprimir certa restrigáo. Com efeito, demut (se
melhanga) ocorre freqüentemente no livro de Ezequiel, signi
ficando que entre dois objetos há analogía e proximidade, sim,
mas nao há identidade. Assim, o profeta vé urna «semelhanga
de seres vivos» (1,5), urna «semelhanga de homem» (1,26),
urna «semelhanga de firmamento» (1,22)...; em tais casos,
o-objeto percebido assemelha-se a um ser vivo, a um homem, ao
firmamento, mas nao é tal.

— 10 —
O HOMEM, IMAGEM DE DEÜS

Aplicando-se éstas nogóes a Gen 1,26, conclui-se que o


homem traz, entre as suas notas constitutivas, algo que muito
o assemelha a Deus, mas certamente nao o iguala ao Senhor,.
Alias, o caráter restritivo da expressáo demut é reforcado pela
partícula ki, conforme, que a precede: «Fagamos o homem á
nossa imagem, conforme a nossa semelhanga».
Eis, em poucas palavras, a análise das expressóes carac
terísticas de Gen l,26s. Permitem-nos concluir: o homem é
imagem que muito se aproxima do seu prototipo, Deus.
Faz-se mister agora aprofundar o vasto alcance de tal
afirmacáo.

2. A mensagem do texto bíblico

Pergunta-se: em que consiste a semelhanca que une táo


estreitamente o homem a Deus, sem, porém, autorizar idehtifi-
cagáo entre ambos?

a) Nao é por seus traeos corpóreos que o homem imita a


Deus. Os israelitas, embora fóssem dados aos antropomorfismos
(modos de falar que assemelhavam Deus ao homem), tinham
consciéncia de que o Altíssimo nao possui corpo, nem pode ser
adequadamente representado por alguma criatura material; cf.
Is 40, 18; 46,5; SI 88,7; Dt 4,15s.
Além disto, considerando-se diretamente o texto de Gen 1,
verifica-se que o autor sagrado nutria um conceito muito ele
vado da transcendencia divina (Deus produz os seres pela sua
palavra soberana, sem ter que plasmar ou modelar, como os
homens fazem). Note-se outrossim que, conforme o escritor, o
homem, criado á imagem de Deus, foi criado «varáo e mulher>
(cf. Gen 1,27); a mulher é, portento, como o varáo, imagem de
Deus. Ora nao há dúvida, os israelitas jamáis pensaram em
admitir alguma divindade feminina (a lingua hebraica nao
possui sequer urna palavra própria para dizer «deusa»).
É, portante, pelo seu espirito ou por sua alma que o homem
se assemelha a Deus.

Em Gen 5,3, lé-se que Adáo gerou Sete «á sua semelhanca, con
forme a sua imagem». Ora, já que entre pai e filho a semelhanca
abrange os traeos corpóreos de ambos (embora nao súmente ésses
traeos), admitem alguns autores que entre Deus e o homem também
deva haver semelhanca corpórea; o Senhor, por conseguinte, teria
corpo como o tem o ser humano. —• Vé-se, porém, que tal conclusao
seria contraria a mentalidade que o autor sagrado e que os israeli
tas em geral alimentavam no tocante a Deus; ademáis o Senhor em
Gen 1 nao gera o homem, como Adáo gera seu filho Sete.

— 11 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 2

b) Em que termos precisos entáo se conceberá a seme-


lhanca náo-corpórea existente entre Deus e o homem?
— Em toda a narrativa de Gen 1, Deus é caracterizado por
sua inteligencia e sua vontade: com urna palavra sabia, Ele
dá origem e ordem harmoniosa a todas as criaturas; a sua
vontade mostra-se plenamente eficaz e, aomesmo tempo, cheia
de bondade para com cada ser. Ora o homem possui urna alma
caracterizada precisamente por inteligencia, e vontade. É, por
conssguinte, mediante a sua inteligencia e a sua vontade que
o homem se assemelha a Deus. Em outros termos: já que
inteligencia e vontade sao os constitutivos carácter'sticos da'
personalidade, deve-se dizer que o homem é imagem de Deus
por ter urna personalidade que se aproxima da personalidade
do Alt'ssimo (Deus certamente nao é substancia neutra, im-
passoal, identificada com a natureza).

A éste propósito podem-se notar os segulntes dizeres do SI 31,9:

«Nao sejais (ó pecadores) como o cávalo e o mulo, que nao tém


inteligencia;
Para domá-los, é preciso usar de Ireio e rédea;
De outro modo, nao se aproximam de Ti (ó Deus)>.

Sem que se queira forcar o sentido destas palavras, elas parecem


incutir que é por sua inteligencia que o homem se aproxima de Deus;
é pela sua inteligencia e, conseqüentemente, por seu amor, que o
homem afirma sua aiinidade com Deus. -
No trecho abaixo, faz-se ouvir S. Agostinho (t430) como autén
tico porta-voz da tradicáo crista ao formular a mesma tese:
«Quod homo ad imaginen» Dei factus dicltur, secundum hominem
interiorem dlci, ubi est ratio et intellectus. — A Escritura diz que
o homem foi feito & imagem de Deas, levando em conta o homem
interior, sede da razáo e da inteligencia» (De Genesi contra Manichae-
os I XVII 27).

c) Quanto ao dominio que o homem exerce sobre os


irracionais e que é mencionado em Gen 1,26 logo após a alusáo
á imagem de Deus, nao constituí a esséncia da semelhanca
com o Altissimo, mas apenas conseqüéncia desta; é, sem dúvida,
por possuir inteligencia e livre vontade que o homem se impóe
as criaturas que físicamente lhe sao superiores (o leáo, o
elefante, a girafa...), mas carecem de intelecto. Leve-se em
conta outrossim que tal dominio é outorgado ao homem com
urna béncáo especial (cf. Gen 1,28), depois de ter sido o pri-
meiro casal criado á imagem de Deus.

O SI 8 desenvolve com grande arte a idéia de que o homem domina


a natureza inteira (animáis terrestres, aves e peixes) por ser como
que o lugar-tenente de Deus neste mundo visivel. O mesmo conceito
reaparece em Eclo 17,3s.

— 12 —
O HOMEM, IMAGEM DE DEUS

d) Naturalmente a dignidade da alma humana imagem


de Deus redunda sobre 6 próprio corpo que lhe está unido. A
Revelagáo bíblica é contraria a toda conceituagáo pejorativa da
materia. Esta é criatura de Deus, como o espirito o é. Em con-
seqüéncia, o.corpo, associado á alma na vida presente, deve
ser mais e mais penetrado e transfigurado por esta, de modo
a se tomar, do seu modo, sinal do Divino na térra. Destarte o
homem todo, embora conste de duas substancias diferentes
(corpo e alma) há de ser expressáo una e homogénea do seu
Autor; os seus atos mais simples, realizados na carne e pela
carne (como o comer, o repousar-se, o trabalhar...), teráo
sempre um significado caracterstico, muito mais rico do que
as agóes paralelas dos animáis irracionais; traduziráo do seu
modo a sabedoria e o amor do Criador á criatura e da cria
tura ao Criador.

É á luz desta verdade que se en tende a proibicao de homicidio


formulada em Gen 9 6:
«Todo aquéle que derramar o sangue humano,
Terá seu sangue derramado por um homem,
Porque a imagem de Deus foi feito o homem».

Como se vé, a vida do homem no corpo é cara a Deus, porque


deve espelhar, no seu plano próprlo, a Perfeigáo Divina.
Para ilustrar quanto o corpo-humano pode e deve ser penetrado
pela alma, a í'm de se tornar espélho ou símbolo de urna realidade
superior (da inteligencia humana e, em última análise, da Sabedoria
Divina), seja aqui citado o seguinte episodio:
Certas pessoas nascem surdas, mudas e cegas simultáneamente:
sao as chamadas «almas encarceradas» (encarceradas, porque tais
almas nao se podem manifestar pelos seus meios de comunicagao
normáis, que sao os olhos, os ouvidos, o aparelho fonético, etc.).
. Pois bem; aconteceu que urna dessas almas encarceradas, María
Heurtin, se achava certa vez em urna clínica. Tinha grande apego a
um cañivete de seu uso... Certo día, a Religiosa que a tratava, resol-
veu fazer urna experiencia, tirando-lhe tal objeto. A paciente muito
se irritou. A irmá entáo lho devolveu, colocando-lhe, porém, as maos
urna sobre a outra em sinal de cruz. A seguir, repetiu a experiencia
um certo número de vézes, no fim das quais a enferma já por si
mesma fazia o gesto de cruzar as maos para pedir o cañivete. Desde
entáo éste objeto nao lhe foi mais retirado. A Religiosa empreendeu
aínda experiencias semelhantes com outros objetos aos quais a menina
tinha apego. Assim a crianca foi associando a idéia abstraía de pedir
com o sinal concreto, corpóreo, de cruzar as mitos; ésse gesto do corpo
vinha a ser símbolo ou espélho de urna atitude da alma. Com o
decorrer do tempo, a crianca aprendeu a fazer novas e novos gestos,
para designar os seus sentimentos internos; o seu corpo se foi tornando
mais e mais símbolo. Iniclaram-na entáo no alfabeto Braille, destinado
aos cegos. Ao íim de certo tempo, Marie Heurtin sabia apreender e
exprimir as idéias mais abstraías que possam estar no comum dos
homens; cega, surda e muda, compreendia e falava, usando de voca
bulario assaz ampio.

— 13 —
«PKRGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 2

Eis um exemplo frisante de como o «orpo é feito para exprimir a


alma, ou seja, a inteligencia e o amor que constituem o homem
«Imagem e semelhanca de Deus»; niesmo quando os órgáos normáis de
transparencia íaltam, a alma é capaz de tornar transparentes outros
órgáos do mesmo corpo.

e) Quanto á distincáo sexual vigente entre varáo e


mulher, ela nao acarreta detrimento para a dignidade de
imagem de Deus que compete ao tipo humano como tal. Com.
efeito, ao criar o ser humano á sua semelhanga, Deus criou
logo o varáo e a mulher; ambos portante participam dos mes-
mos deveres e das mesmas esperarlas perante o Soberano
Senhor.

De passagem, note-se: alguns rabinos antigos e medievais julga-


vam que o primeiro individuo humano reunía em si os dois sexos,
os quais sómente maU tarde teriam sido dissociados; esta suposicáo,
porém, é contraditada pelo próprio texto bíblico, o qual assevera que
«Deus os criou, varáo e mulher», ambos á sua imagem (cf. Gen 1,27).

f) Por último, nao se poderla deixar de observar que a


consciéncia da dignidade estupenda e mesmo misteriosa do
homem é táo espontánea a quem reflita sobre o ser humano,
que até fora da literatura bíblica se encontra a afirmagáo de
que o homem foi feito á imagem da Divindade.

Assim, entre os babilonios a epopéia de Gilgamesch (I 33s)


narra que a deusa Arara «formou em seu coracáo urna imagem de
Anu» (o deus supremo) antes de formar do barro o herói Ea-bani.
Na literatura latina, é Ovidio (t 17/18 d. C.) quem escreve: «Finxit
in effigiem moderantum deorum. — ... plasmou (o homem) segundo
a imagem dos deuses regentes» (Metam. I 83).

Tais assercóes extra-biblicas nao significam que a doutrina


judaico-cristá da imagem de Deus seja oriunda de religióes
pagas e inspirada por mentalidade grosseira e politeísta... Tais
assergóes devem, antes, ser tomadas como indicio de que em
todo homem está profundamente arraigada a consciéncia de
que a natureza humana só se consuma ultrapassando-se a si
mesma e voltando a Deus, ou seja, voltando ao Prototipo
que deixou a sua imagem indelévelmente gravada em cada um
de nos. As relacóes que ligam o homem a Deus sao algo de
inerente á natureza humana; quem lhes dá a devida expansáo,
amando a Deus mais do que ao próprio «eu», «realiza-se» e
encontra sua verdadeira face; quem, porém, as sufoca, fechan-
do-se em seu egoísmo, desfigura-se e acarreta sobre si o mais
lamentável dos tormentos!...

— 14 —
«NAO ALÉM DO QUE ESTA ESCRITO»

. SAGRADA ESCRITURA

A. F. P. (Belo Horizonte):

3) «Como entender os dizeres de Sao Paulo em 1 Cor 4,6:


'... para que ... aprendáis a nao ir além do que está escrito'?
O Apostólo, com essas palavras, parece recomendar que
nao se adofe outra regra de fé fora da S. Escritura. Os ensi-
namentos oráis da Tradicáo nao estariam assim excluidos?»

Em primeiro lugar, observaremos que a passagem citada, nos


códices antigos, apresenta algumas variantes de importancia, o que
torna a reconstituicao do texto original e a respectiva exegese um
tanto dificeis. Como quer que seja, pode-se assegurar que o Apostólo,
por seus dizeres, nao intenciona abordar a questáo das íontes da fé
crista (Biblia só ou Biblia e enslnamento oral?).
Eis a explanacáo apresentada pelos maLs modernos e credenciados
comentadores do texto.

A traducüo exata da frase de Sao Paulo vem a ser:

«Nisso tudo, irmáos, tomei a mim e a Apolo como exemplos, por


causa de vos. Quis que em nossos casos aprendáis a máxima: 'Nada
além do que está escrito', a fim de que ninguém tome orgulhosamente
o partido de um contra o outro» (1 Cor 4,6).

E que quer dizer tal texto?


— Sao Paulo tem em vista estranha situagáo entre os
fiéis de Corinto: impressionados pelos predicados dos diversos
arautos do Evangelho (Paulo, Apolo, discípulos de Sao Pedro,
etc.), dividiam-se em partidos alimentados pela soberba e o
mau espirito: enquanto um cristáo declarava ser da facgáo de
Paulo, outro professava pertencer á de Apolo, um terceiro a
de Pedro, etc. (cf. 1 Cor 1,10-12).
Ora, para reprimir tais abusos, Sao Paulo, em 1 Cor, a
partir de 3,5, lembra quem sao o próprio Paulo e seu compa-
nheiro Apolo, que os corintios querem constituir em chefes de
partido: sao meros ministros de Deus; o que dizem e fazem de
belo, é fruto da graca divina a éles concedida: «Eu plantei,
ApolO7regou; foi Deus, porém, quem fez crescer» (3,6). Por
conseguinte, se há colaboracáo entre Paulo e Apolo e se ambos
sao meros instrumentos de Deus, é que váo querer colocar
os seus nomes á frente de facgóes antagónicas. O próprio Sao
Paulo nao julga a si; apenas procura viver com a consciencia
reta, aguardando a vinda final do Senhor Jesús (cf. 4, 1-5).

— 15 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, gu. 3

Após afirmar tais coisas, o Apostólo formula a frase trans


crita no inicio desta resposta (4,6); diz que, ao falar de meros
ministros de Deus, ele mencionou os casos concretos de Paulo
mesmo e de Apolo. Essa mencáo sirva para que os corintios,
de maneira geral ou em relacáo a todo e qualquer pregador,
se abstenham de proferir juízos meramente humanos, partida
rios e sóberbos...
É a esta altura que se devem considerar as palavras
obscuras: «.. .para que aprendáis... a máxima: 'Nada além
do que está escrito'».

Há exegetas que julgam tratar-se de textos da S. Escritura (ou


os textos de Is 19,14; Jer 9,24; Jó 5,13; SI 93,11, citados em 1 Cor
1,19. 31; 3. 19s..., ou o Antigo Testamento inteiro...).
Outros comentadores (como Ciernen) julgam que se trata de um
apócrifo; cf. «P. R.» 35/1960, qu. 3.
Sao Joüo Crisóstomo (t407) admitía tratar-se de urna frase de
Cristo.
Heinricí, exegeta moderno, supunha alusSo a um estatuto escrito
observado pela comunidade para manter a boa disciplina entre os
irmáos, como era costume ñas corporac.6es gregas.

Essas sentengas sao todas inconsistentes. Na verdade, o


Apostólo parece ter em vista um proverbio usual entre os
corintios. Tal proverbio visava as pessoas que, depois de assi-
narem um contrato claro e explícito, se póem a fazer cavilares
e chicanas em torno do mesmo; retorcem e complicam as cláu
sulas, disputando em váo e disseminando desordem. Contra
tais cidadáos é que se dizia na linguagem cotidiana dos corintios:
«Nao vas além do que está escrito»; isto é: nao queiras usar
de dialética sutil e vazia, perdendo tempo, quando teus direitos
e deveres já estáo claramente formulados.
É á situacáo désses dialéticos disputadores que Sao Paulo
agora compara a atitude dos cidadáos de Corinto: perdem-se
em devaneios inúteis sobre as pessoas de Paulo, de Apolo, de
Pedro...; julgam-nos, opóem um ao outro, cedendo em última
análise ao orgulho (váo-se inchando á semelhanca de ras, cheias
de si). Ora — concluiría o Apostólo — vedes que tal procedi-
mento é ridículo e hediondo; deve ser ¡mediatamente reprimido.
Tal é, sem dúvida, a licáo que, citando o proverbio, Sao Paulo
quer incutir aos seus leitores.

Como se depreende, ésse versículo do Apostólo nao tem que ver


com a quest&o das fontes da fé crista (Tradicáo oral e escrita ou
Tradicáo escrita apenas?). Tal tema ficava por completo fora dos
horizontes de Sao Paulo quando escrevia 1 Cor 4, 6. Por conseguinte,
seria desonesto querer deduzir do citado versículo alguma conclusáo
sobre um problema que no momento o Apostólo nüo tinha em vista.

— 16 —
SATANISMO

IV. MORAL

HOMEM MODERNO (Rio de Janeiro):

4) «Nao é raro dizer-se que alguin acontecimento parece


diabólico on satánico.
Que sentido pode ter esta expressáo a luz da mentalidade
moderna? Nao será indicio de pcssimismo exagerado, sugerido
pelas concepcoes fantasistas dos povos primitivos e .medievais?
Pode-se razoavelmente crer em Sata nos nossos dias?»

Já em «P. R.» 6/1958, qu. 5 tratamos da existencia de Sata, assim


como do pecado e da irrevogabilidade da sorte do Maligno.
Sem voltar diretamente a tais assuntos, interessa-nos aqui abordar
o pequeño misterio que os termos «satánico» e «satanismo» sugerem
na llnguagem cotidiana.
Sata está realmente em foco nos tempos atuais e é alvo de contra-
digao... Ao lado dos pensadores que, movidos por frió racionalismo,
sorriem céticamente ao ouvir íalar de Sata e demOnio, há grupos
intelros de pessoas que se dedicam férvidamente ao culto de Sata
e seus satélites (haja vista o que se dá nos rituais da magia).
Diante da contradicho verificada em torno de Sata, procuraremos
abaixo delimitar o que há de certo e o que há de fantasista no assunto.
Comecaremos por recordar brevemente o que se deve entender por
Sata; a seguir, analizaremos as características da mentalidade dita
«satánica» ou «satanismo»; por fim, deduziremos algumas conclusSes
úteis para a vida do homem contemporáneo.

1. A realidade de Sata

Um dos principáis motivos pelos quais o homem moderno se


mostra cético em relacáo a Sata, é a maneira imperfeita pela qual
lhe vem apresentado éste conceito. Fácilmente, ao se falar de Sata,
afloram á mente
ou as concepQóes mais ou menos grosseiras e fantasistas da icono
grafía primitiva e infantil (o diabo com seus chifres, cauda, lancando
fogo pela boca, emergindo de um tanque de enxófre ardente, etc. ...),
ou o conceito de urna substancia por si má, co-eterna com Deus,
disputando com Deus, de igual para igual, o dominio déste mundo.
Está claro que urna e outra destas concepcoes se chocam com
a razáo humana.

Na verdade, Sata é urna criatura de Deus Criador; é


espirito nao unido á carne (o que também chamamos «anjo»).
Aos anjos Deus doou urna natureza boa, chamando-os a ser
perfeitós e felizes mediante adesáo ao Sumo Bem. Os anjos,
porém, como criaturas inteligentes (todo espirito é dotado de
inteligencia), nao podiam encontrar felicidade sem amor (pois
o amor é urna das propriedades típicas dos seres intelectivos).
Nao há, porém, amor sem liberdade (amor extorquido ou
encomendado nao é amor). E nao há liberdade sem escolha.

— 17 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 4

Daí decorre a necessidade de que os anjos optassem livremente


por Deus (o Sumo Bem) ou contra Deus, a fim de obter a
sua sorte definitiva (feliz ou infeliz).
• Ora os anjos, submetidos a urna provagáo, em parte peca-
ram, abusando da sua liberdade de arbitrio. Já que nao pos-
suiam corpo, o seu pecado só podia ser o de orgulho: cairam,
sim, na soberba de pretender ser como Deus, emancipándose
totalmente de Deus. E o seu alheamento a Deus é irrevogável, ,
pois os anjos dotados de inteligencia muito mais perspicaz do
que o homem, logo no inicio da sua existencia com urna só;
intuicáo puderam claramente ver o programa que deviam abra
car; nada lhes ficava obscuro ou oculto. Sua primeira decisáo,
por conseguinte, baseada em pleno conhedmento de causa e
tomada com todo o empenho de sua personalidade, devia por
isto ser definitiva (em caso contrario, a dignidade dos anjos
seria vilipendiada; ser-lhes-ia denegada a responsabilidade de
seu ato). Urna vez tomada essa decisáo, quer para o bem, quer
para o mal, Deus a respeitou e respeita; nao mutila a liberdade
de arbitrio que Ele concedeu, permitindo, em conseqüéncia, que
cada criatura goze da sorte definitiva que ela mesma escolheu.
Dentre os anjos maus (também ditos «demonios»), costu-
ma-se realgar um, chamado Sata (em hebraico, «o Adversa
rio») . Éste, o mais inteligente de todos os anjos rebeldes, veio
a ser «o Adversario n* 1» do Senhor Deus, consoante o adagio:
«Corruptio optimi pessima. — O melhor, quando se corrompe,
torna-se o pior de todos os seres». O Criador lhe concede, den
tro dos limites tragados pela sabia Providencia Divina, exer-
cer neste mundo a sua influencia a fim de acrisolar a fé e a
virtude dos homens, ou seja, em vista de urna finalidade boa.

Sata (ou Satanaz), por conseguinte, apresenta-se aos homens


como um imitador de Deus ás avessas ou, no dizer do cristao Tertu
liano (séc. m), como o macaco ou o palhaco de Deus («simia Dei»);
Eliphas Lévi (t 1875) o caracterizava nos seguintes termos (que
devem ser devidamente temperados): «Daemon est inversus Deus. •
— O demonio é Deus invertido ou ao avésso» (Dogme et Rituel de la
Haute Magie).

A posicao de Satanaz, que equivale á renegacáo constante e siste


mática de Deus, mas que, apesar de tudo, se acha englobada dentro
dos sabios designios da Providencia Divina, é muito claramente esbo-
eada pelas palavras que Goethe (tl832) atribuiu ao Maligno:
«Sou o espirito que sempre nega...
Pertenco a essa Fdrca que sempre comete o mal,
Mas que só consegue servir ao Bem».
(Faust, prólogo). >

Em sua atitude de continua renegagáo a Deus, Sata nao


pode deixar de negar também qualquer criatura de Deus; cai

— 18 —
SATANISMO

outrossim em perene conflito consigo mesmo ou com sua natu-


reza feita por Deus e para Deus. Em urna palavra: pode-se
dizer que Sata, por definicáo, é a contradigáo subsistente contra
todos e contra tudo.

Na literatura, antiga e medieval, tomaram-se clássicos alguns


tópicos que visavam realcar o caráter contraditório de Sata. Eis, a
titulo de ilustracáo, alguns dos mais significativos:
Os homens que cultivavam o simbolismo dos números, por exem-
plo, atribuiam a Sata a cifra «dois», pois, se o número <um> significa
principio, simcplicidade e perfeisáo, o número «dois» designa natural
mente oposic£ot divisao e contradigáo.' O número «dois» lembra a
encruzilhada na qual se bifurca o caminho,-dando um derivativo que
leva para a perdicáo e a morte. — Assim se explica que o demonio
na iconografía seja representado com dois chifres, com,' os pés fendidos
e com um cajado de duas pontas ou bidente na mao.
Na Idade Media registrou-se o aparecimento de um feiticeiro
chamado Eon, camponés da Bretanha, que, na base de pretensas
visóes místicas, propugnava urna subversáo total da sociedade em
sentido socialista ou comunista. Ora Eon usava urna forquilha das
que os agricultores empregam para revolver o feno, e dizia que,
quando a erguía com o cabo para cima, era Deus quem mandava;
quando, porém, a voltava com os dentes para o alto, era Sata (ou
a divisao e contradicho) quem ordenava. Destarte era simbolizada a
característica de inversa© ou contradigáo que clássicamente assinala
Sata.
Os últimos fundamentos da crenca na existencia de Sata se
acham explanados em «P. R.» 6/1958, qu. 5. A irrevogabilidade da
sua sorte é explicada nao sonriente nesse artigo, mas também no que
dissemos sobre o inferno em «P. R.» 3/1957, qu. 5.

Urna vez proposta a genuina nogáo de Sata, importa-nos


analisar o. que se chama em nossos dias

2. Mentalidade satánica ou Satanismo

Após breve reflexáo, verifica-se que «satánico», no modo


de falar contemporáneo, vem a ser tudo aquilo que, assumindo
proporcóes titánicas, gigantescas, se ergue com toda a veemén-
cia contra o Supremo Ser tradicionalmente reconhecido como
tal (Deus). N
O satanismo equivale assim a um desafío ou repto do
homem contra Deus. Quem é Deus, por definigáo? — O Abso
luto. "^- Ora no satanismo o homem se equipara, ou melhor,
se sobrepóe a Deus, mesmo que nao creía em Deus. Em outros
termos: o satanismo se apresenta como um contraste que por
suas dimensóes parece atingir o limite extremo das possibilida-
des humanas: tudo aquilo que há de grandioso dentro do homem
é posto em oposigáo aquilo que os homens sempre julgaram

— 19 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 4

ser o único Valor simples'mente grandioso: Deus. O satanismo


é o misterio do contingente que pretende ser absoluto ou do
finito que pretende ser infinito ou do mortal que pretende ser
imortal.

O gigantismo désse contraste se acha cristalizado na filosofía


de Nietzsche (tl900), que proclamava a morte de Deus e saudava,
conseqüentemente, o surto próximo do Super-Homem!
O homicidio é sempre algo de surpreendente e espantoso. Nao
obstante, tudo que há de espantoso no homicidio é sem comparagáo
ujtrapassado pelo satanismo, que vem a ser o delcidio, ao menos
intentado, como se já nao bastasse a malicia humana matar o próximo,
mas fósse necessário tentar ferir o Infinito mesmo.
Tais sao as características marcantes do satanismo.

2. Consideremos agora algumas das realizagóes do ho-


mem contemporáneo que bem parecem reproduzir atitudes
satánicas.

a) O mito de Prometeu e o Marxismo.

Todo o satanismo do mundo grego está resumido no mito


de Prometeu.

Prometeu é o herói da mitología gregá que desafiou Júpiter, o


Pai dos deuses, em nome do homem que se erguía contra a Divindade
ou em nome da térra que se levantava contra o céu. Roubou o fogo
dos deuses, e o entregou aos homens. O mito de Prometeu representa
o papel do homem que arroga a si o poder de construir o mundo
por suas próprias fdrgas, dando íogo (luz e calor, bem-estar) aos
seus contemporáneos, em vez de esperar ésses bens do Alto.

Ora Karl Marx escrevia numá das páginas iniciáis da sua


obra literaria:
«No calendario filosófico (marxista), Prometeu ocupa o primelro
lugar entre os santos e os mártires» (DIfférence de la philosophie
de la nature chez Démocrite et chez Epicure, avant-propos).
Marx tinha consciéncia de reproduzir a atitude de Prome
teu ou do herói que arroga a si o poder de comunicar aos seus
semelhantes aquilo que outrora éles esperavam do céu: verdade
e felicidade.
Por sua vez, o marxismo contemporáneo, constituido em
ateísmo- militante, parece ser a continuacáo fiel do satanismo
de Prometeu e de Karl Marx; tenha-se em vista o «gigantis
mo» das declaracóes e das previsóes que o comunismo moderno
langa ao mundo!

b) O «Fausto» de Goethe e a sede de saber.


Em nossos tempos, mais aínda do que Prometeu, é Fausto
evocado como tipo da mentalidade do homem moderno: Fausto

— 20 —
SATANISMO

representa o homem que tenta arrebatar nao própriamente o


poder de Deus, mas o saber transcendente, á custa de um pacto
com Sata ou á custa de «satanificagio».

Fausto parece ter sido um astrólogo e adivinho charlatáo de


nacionalidade alema, que térá vivido de 1485 a 1540. A seu respeito,
multo escreveram os poetas e romancistas europeus, como se houvesse
realizado maravilhas com o auxilio do demdnio, tendo finalmente a
sua alma sido levada por Sata quando faleceu.
O poema alemao de Lenau (1836) dá a forma mais explícita
a essas lendas, forma que também se vé no poema de Goethe.
Na obra de Lenau, Fausto aparece á procura dos segredos da nature-
za; nao os encontra nem nos anfiteatros de anatomía nem nos labo
ratorios de química nem nos misterios das florestas, onde ele passeia
sequioso. Finalmente defronta-se com Meíistófeles...
O nome «Mefistófeles» vem provávelmente de «Megistophiel».
Ophiel, do grego ophis (serpente), era o sobrenome de Hermes Tris-
megistos, patrono dos feiticeiros da antigüidade. O vocábulo grego
«megistos» significa «máximo». Na literatura do séc. XVI, Meflstó-
feles (a Serpente Máxima ou o Mago Máximo) foi classificado entre
os sete principes infernáis.
Encontrando-se com Mefistófeles, no poema dé Lenau, o «Dr.
Fausto» resolve vender a sua alma, & condicáa de que todas as suas
aspiracSes de saber sejam satisfeitas. Comeca entáo a passar por urna
serie de diversissimas aventuras, ao termo das quais se senté exausto
e desgostoso. Pracipita-se entáo do alto de urna rocha, e marre, cabido
a sua alma sob as garras de Mefistófeles, que a leva consigo.

Pode-se ver no Fausto da literatura o tipo do homem con


temporáneo, que, estribando-se na ciencia, tenta fazer a con-
corréncia ou a guerra a Deus.

Comentando as figuras de Prometeu e Fausto na bibliografía


moderna, Nicolás Corté observa:
Grave té um certo titanismo contemporáneo, que eiva de ciencia
e de técnica e pretende bastar tanto a si como ao género humano,
com desprézo de todas as elevadas aspiragóes que Cristo despertou
no mundo.
A palavra de Cristo: 'De que serve ao homem conquistar o uni
verso se vem a perder a sua alma?', Ssse titanismo responde orgu-
lhosamente: 'De que serve ao homem salvar sua alma, se ele renuncia
a ganhar o universo?'
O homem moderno nutre as ambigOes do> antigo Prometeu. A
descoberta dos misterios do átomo parece abrir-lhe posibilidades
indefinidas. Em. conseqüéncia, existe em estado difuso até noseio
das massas um satanismo latente, que consiste em tudo esperar da
ciencia e da técnica, em nada mais esperar de Deus em vender cada
um a sua porcao de paraíso em/troca do prato de lentilhas do conforto
terrestre» (Satán, L'Adversaire. París 1956, 111).
Urna das aplicagSes mais requintadas do poder e da técnica ao
servigodo satanismo é a chamada «lavagem de cranio», de que trata
a qu. 1 do presente fascículo.

— 21 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 4

c) O culto de Satanaz e o senso religioso do homem


moderno.

Por mais incrível que isto parega, Satanaz, que clássica-


ote desperta ñas almas atitudes de horror e espanto, tem
siojf em nossos próprios dias objeto de culto organizado e

Assim, aos 29 de marco de 1948, faleceu em Londres um. persona-


gem importante, Harry Prlce, dado á Metapsiquica, á demonologia e
ao culto de Sata, secretario perpetuo do «Conselho de pesquisas psíqui
cas» («Council for psychical investigation») da Universidade de Lon
dres. Em um de seus relatos Price observava:
«Em todas as zonas de Londres, centenas de homens e mulheres,
de elevada cultura e de familias distintas, adoram Satanaz e prestam-
-lhe culto perpetuo; a magia negra, a bruxaria, a evocacáo do Diabo,
essas tres formas de 'supersticáo medieval' sao hoje praticadas em
Londres numa escala e com licenciosidade desconhecidas na Idade
Media» (citado por A. Romeo, Satanismo, em «Enciclopedia Cattolica»
XI 1959).
Aos 2 de dezembro de 1947 morreu em Brighton (Inglaterra) com
mais de 70 anos de idade, um Sr. Aleister Crowley, Gráo-mestre da
magia negra, fundador de duas revistas especializadas em Satanismo:
«Gnosis» e «Lucifer». Abriu em Londres um templo satánico, ainda
agora dedicado ao culto de Sata; neste cantam-se hinos redigidos por
Crowley, cujos títulos significativos sao: «Coletas para a MLssa Gnós-
tica, Hiño a Sata...». Os discípulos de Crowley repetem tais canti
lenas sobre o túmulo-do mestre, juntamente com o célebre «Hiño a
Sata» de Carducci.
Também é certo que em algumas lojas da Maconaria se praticou
a prófanagáo de hostias eucar&ticas consagradas no culto católico.
Assim em Friburgo (Suica), a Rúa Grand-<Fontaine n« 41, ainda hoje
se pode visitar numa ampia gruta urna capelinha católica al fundada
para substituir um templo em que se praticavam ritos satánicos de
profanagáo eucaristica.
Sabe-se também que no século passado estéve em uso a chamada
«Missa Negra», verdadeira pantomina que caricaturava a celebracao
da Sta. Missa, copiando de certo modo o ritual dos «sabás» das bruxas
medievais; para fazer isso, eram convidados, na medida do possivel,
sacerdotes apóstatas. — Tal prática bem mostra como Sata é o
«macaco de Deus», pu seja. o instigador de artes e ritos que visam
parodiar as coisas de Deus.
Por fim, seja mencionado como expressáo de satanismo algo que
em aparéncia é mais vago, mas nao deixa de ser muito sintomático:

d) O relativismo da mentalidade contemporánea.

O mundo moderno tendé inegávelmente a cancelar os limi


tes da Verdade e do erro, do Bem e do mal, fazendo do erro
a verdade..., do mal um bem, e vice-versa.
Ésse relativismo toma as formas mais variadas e elegantes
possíveis, das quais algumas merecem especial destaque: >

— 22 —
SATANISMO

a') o destemor e a aparéncia de legalidade tranquila com que se


pratlcam os pecados mais estridentes. J. K. Huysmans, alias, definía
o satanismo como sendo «a alegría proibida de transferir para Satanaz
as homenagens 6 as preces devidas a Deus..., a alegría de cometer,
para ultrajar mais gravemente a Cristo, os pecados que Ele mais
explícitamente condenou: a contaminagáo do culto sagrado e a orgía
da carne».
b') O laicismo, que propugna a educacáo e a vida na sociedade
em profissáo de fé religiosa, como se fósse possivel a neutralidade
diante do dilema; «Por Deus ou contra Deus». Na verdade, essa
pretensa neutralidade encobre elegantemente urna hedionda falsidade:
quem nao faz de Deus o centro de toda a sua vida, O renega simples-
mente, pois, por deíinigáo, Deus nao pode estar em lugar secundario
ou periférico.
A respeito do laicismo veja-se «P. R.» 5/1958, qu. 8.
c') O cinismo da literatura, do cinema, do teatro e das artes
Icontemporáneas em geral. Tende-se a colocar urna «pitada de sal
picante», urna nota pouco moral, em cada quadro apresentado por
romancistas, poetas e artistas contemporáneos. A mentalidade que
norteia ésse comportamento, é bem expressa pelas palavras de Jacob
Boehme, ocultista protestante do séc. XVII (1575-1624): «O diabo é o
cozinheiro da natureza; sem ele a vida nao seria mais do que urna
papa sem sabor».
Nao há düvida de que o gdstc pela pornografía e pelo vilipendio
dos mais nobres ideáis tomou hoje em dia proporcOes satánicas. Dese-
jando tornarle popular, um escritor sabe que o conseguirá mediante
a exploracao requintada de certos temas impúdicos; para isso encon
trará sempre público ávido.
d') Por iim, note-se a tendencia desenfreada a afirmar a autono
mía da consciéncia humana. O próprio «eu» procura ser valorizado
de maneira absoluta, de sorte que qualquer restrigáo imposta ao indi
vidualismo e aos instintos cegos da natureza é tida como fruto de
cultura e educacáo antiquadas. Ésse individualismo tem urna de suas
expressóes mais recentes e características na mentalidade existencia-
lista, principalmente no sartrismo. Para Sartre, tudo é absurdo, tudo
é objeto de náusea, de tal modo que «o inferno sao os outros» (afir-
macáo esta satánica, porque diametralmente oposta á mensagem crista,
segundo a qual os outros ou os semelhantes sao a continuagáo de
Cristo na térra; cf. Mt 25,40).

3. Conclusa»

1 A mentalidade moderna está inegávelmente marcada por um


contraste, por aquéle contraste que caracteriza justamente a figura
de Sata na teología crista e na crenca comum dos povos e que, por
ísto, bem pode ser chamado «satanismo». Ésse contraste consiste na
colocacáo de tudo que há de belo e grande no homem a servigo de
urna luta contra o Belo e Grande por excelencia; o relativo assim se
ergue titánicamente, num heroísmo quase sobrehumano, contra o
Absoluto; e nesse afá encobre-se sob os véus da mentira, procurando
fazer crer aos homens que os valores da «esquerda» sao os da «direi-
ta», e vice-versa.
O homem moderno tende a nao crer em Satanaz, relegando a éste
para o setor da fábula... Ora é esta precisamente a maior de todas

— 23 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 4

as Vitorias de Sata no decorrer dos tempos: impor seu jugo, sera ser
reconhecido como tal. «A mais notável das farsas de Satanaz é a de
nos fazer crer que ele nao existe», aflrmava cora razSo Baudelaire
(t 1867).
Todavía, para quem quer ver, a existencia de Satanaz nao se
dissimula; íica sendo evidente, como atesta a sabedoria popular crista
lizada num proverbio da Galicia: «O diabo, por multo que se esconda,
deixa sempre o rabinho de fora». É, sim, pelo «rabinho» que vamos
atualmente reconhecendo a presenga e a agSo de Sata no mundo.

Pergunta-se entáo: que atitude se há de tomar diante do


satanismo contemporáneo?
— Distinguiremos duas mensagens:

1) Para os amigos de Deus...

a) Removam qualquer das concepgóes erróneas que cos-


tumam dificultar hoje em dia a crenca no demonio. Satanaz
nao tem chifres nem cospe fogo, nem é principio independente
de Deus, mas é criatura (ontológicamente) boa de Deus bom,
que abusou da sua liberdade para se revoltar contra o Criador.
É sempre sob o controle da Providencia désse santíssimo Criador
que ele exerce atualmente qualquer das suas atividades.
b) Enfrentem as maquinagóes de Satanaz em atitude de
confianga. Na verdade, como observava Goethe, Sata é a fórga
que sempre deseja o mal, mas só consegue contribuir para a
vitória do Bem. Quem vive em estado de graga, nada tem que
temer das artimanhas do Maligno; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 1.
c) A medida que se vai aproximando o fim dos tempos
(nao importa aquí previsáo alguma sobre o assunto), a sanha
diabólica se torna cada vez mais astuciosa... Entrementes o
Apocalipse exorta os fiéis de Deus a se tornarem também cada
vez mais zelosos na prática do bem: dado que «o iníquo cometa
mais ainda a iniqüidade e o imundo mais aínda se manche,
deve o justo praticar mais ainda a justiga e o santo mais aínda
santificar-seh> (Apc 22, 11). Os amigos de Deus deveráo, por
sua conduta de vida, representar de maneira ainda mais mar
cante («gigantesca», se é possível dizer) o que é á Verdade
e o que é a Virtude numa hora em que Verdade e erro, Virtude
e vicio tendem a ser confundidos.

2) Para quem vive longe de Deus, incumbe refletir sobre


as desgragas de que sofre a sociedade contemporánea. As causas
de tantos males nao sao meramente casuais; os horrores em.
que se debate o mundo moderno (o qual praticamente se vendeu
a Satanaz), constituem talvez o sinal mais expressivo de que
ninguém brinca impunemente com o demonio. O remedio para
a sociedade atual está, antes do mais, na reforma dos costumes
e na tomada de consciéncia de que, como diz Sao Paulo, nossa

— 24 —
O NÉO-MALTHUSIANISMO

verdadeira Iuta se desenrola contra Sata, e todos os anjos que


o seguiram (cf. Ef 6,11-18).

JORNAJLISTA (Rio de Janeiro):

5) «Que dizer, do ponto de vista cristao, a respeito dos


prognósticos de fome e calamidades decorrentes do extraordi
nario aumento da populacáo do globo?
Nao tem razao os que preconízam a restricao da natalidade
ou o néo-malthusianismo de acordó com métodos farmacéuti
cos e medicináis?»

Já se tem dito que «o mais grava problema dos nossos


tempos e dos tempos vindouros é o aumento espantoso da popu-
lagáo do globo» (Julián Huxley), ou, em termos de linguagem
cotidiana, a «inflagáo populacional». É esta urna conseqüéncia
lógica dos progressos da Medicina: de um lado, tem-se conse
guido diminuir a cota de mortalidade infantil e, de outro lado,
debelando-se epidemias e outros males da saúde, váo-se evitan
do desenlaces prematuros ou mesmo vai-se prolongando a dura-
gáo de vida dos andaos.

A titulo de ilustragáo, váo aqui transcritos alguns dados estatís-


ticos referentes á populacáo do globo (o leitor, porém, terá em vista
o caráter relativo e precario que as cifras e os prognósticos nao
podem deixar de ter nesse setor).

O Anuario Demográfico da ONU em 1957 comunlcava:

Populacáo mundial: 2.700 milhCes de almas,

por dia: 120.000 almas


Aumento
por ano: 43.800.000 almas

Há quem estabeleca as seguimos previsdes:

Populacho (em milhSes)

Ano Países subdesenvolvldos Outros países Total


1980 2.900 1.020 3.920
2005 4.000 1.150 5.150
2055 5.400 1.490 6.890

Nos Estados Unidos da América do Norte, a longcvidade era


em 1901
homens 41 anos
mulheres 67 anos
em 1950
homens 68 anos
mulheres 72 anos

— 25 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 5

A «inflacSo demográfica» a muitos parece especialmente maligna


pelo íato de que se dá em coeficientes mais elevados justamente ñas
nacoes subdesenvolvidas do Oriente, da África e da América do Sul
(a Asia, a África e a América Latina contribuiram com 70% do
aumento dos habitantes da térra, de 1951 a 1955; sómente a China,
com seus 625.000.000 de almas, representa 1/4 da populado total
do mundo). — Já que os povos subdesenvolvidos tendem a melhorar
suas condicSes de vida higiénica, económica e cultural, há quem
preveja, com temor, que o eixo da hegemonía política se desloque
dos seus atuais detentares — os europeus ocidentais e os norte-ame
ricanos — para as populacóes do Oriente e da América do Sul, as
quais neste caso poderiam fácilmente proporcionar ao regime mate
rialista de Marx o avanco sdbre o globo inteiro.
Além disto, os prognósticos de fome crescente acabrunham nüo
poucos dos nossos contemporáneos:
Existe no mundo já atualmente a fome de alimento corporal: 2/3
da humanidade sao mal alimentados. Mais precisamente: 20% dos
habitantes do globo tém alimento em quantidade excessiva; outros
20% tém o estritamente necessário para se alimentar. Quanto aos
60% restantes, nao possuem a ragáo suficiente; um hindú deye geral-
mente contentar-se com 3/4 da porcáo normal de alimento diario.
Existe também no mundo fome de instrucáo: 45% dos adultos
sao analfabetos. Em algumas regides, tal cifra vem a ser multo mais
elevada: assim sobe a 92% na India e na Indonesia; a 85% no Egito;
na Bolivia; a 70% na Turquia; a 57% no Perú e no Brasil...

Estes e outros dados semelhantes solicitam a atengáo nao


sómente dos estadistas, mas também a de todos os cidadáos
na hora presente. Qualquer solucáo que se pretenda dar ao
problema, envolverá sempre alguns principios de Filosofía e
de Religiáo ou de Moral; é por isto que nos dedicamos aqui á
consideragáo do assunto, distinguindo duas etapas na nossa
explanacáo: 1) o remedio mais comumente preconizado; 2) um
juízo sereno sobre o problema debatido.

1. A solncao mais comumente preconizada

Ouve-se freqüentemente em nossos dias apregoar solucáo


semelhante á que o ministro anglicano Roberto Malthus, há
cento e sessenta anos atrás, propunha ao mundo para evitar a
fome coletiva e a morte do género humano.

1. Malthus baseava-se no pressuposto de que a populagáo do


orbe cresce em progressáo geométrica, ao passo que os meios de
vida se aumentam apenas em proporcáo aritmética; assim, dizia
Malthus, enquanto o número de seres humanos se desenvolve segundo .,
o esquema 1, 2, 4, 8, 16..., a quantidade de víveres cresce • apenas
segundo o ritmo 1, 2, 3, 4, 5... Na base dessa premissa, o estudioso
inglés propunha, como remedio para as futuras calamidades, a limi-
tacao da natalidade. Concebía, porém, esta medida dentro das normas

— 26 —
O NÉO-MALTHUSIANISMO

mais estritas da moral crista; com efeito, distribuía os «fatores limi


tantes» da natalidade em duas classes:

Fatóres repressivos: guerras, epidemias, ondas de £orne...


Fatóres preventivos
involuntarios: esterilidade natural, doen-
cas naturais, etc.
voluntarlos

Os fatóres voluntarios consistiriam em abstengáo de relacdes con


jugáis antes do matrimonio, continencia por parte dos cdnjuges que
nao pudessem gerar ou educar prole sadia, retardamento da idade
habitual do matrimonio, etc. Como se vé, tais recursos sao plena
mente consentáneos com as leis da natureza, nao envolvendo emprégo
de algum meio anticoncepcionista artificial.

2. Nao é, porém, em termos táo trádicionais que os autores


modernos propugnam a diminuigáo da natalidade. Visam, em
primeira linha,«a utilizagáo de produtos e tratamentos que con-
trariam as fungóes da natureza. A Medicina e a Farmacéutica
contemporáneas tém catalogado urna serie de recursos que
possam promover o anticoncepcionismo com o mínimo de in
convenientes higiénicos e financeiros.

Eis em sintese o que referem as últimas publicares a tal respeito:


O aborto legal e gratuito nao pode ser preconizado como solucáo
universal, pois causa aversáo á maioria dos povos.
A solucáo «ideal» deve ser simples, de longa duracao e de custo
íinanceiro módico. Há de se prestar outrossún a campanhas de pro
paganda promovidas pelo Estado em larga escala.
Procurando aproximar—se désse objetivo, alguns dentistas propa-
lam o uso de pílulas de progesterona ou produto semelhante. — Sabe-
-se que, após a ovulacáo, o organismo feminino segrega um hormónio
denominado «progestefona», o qual tem por efeito impedir a formacao
de outros óvulos durante o ciclo menstrual; ora, já que a progesterona
reprime a formacáo de óvulos durante a segunda metade do ciclo,
é lógico supor que doses fortes de progesterona, sob forma de pílulas
artificiáis, impecam totalmente a ovulacáo na mulher a quem sejam
aplicadas; conseqüentemente háo de impedir a concepcáo, sem contudo
obrigar os cdnjuges á continencia sexual. Esta tese fol abracada
principalmente pelos Drs. Gregory Pincus e John Rock (U.S.A.), os
quais tém fabricado varios compostos sintéticos mais fortes do que
a própria progesterona; o tratamento pode ser reduzido ao mínimo
de urna pilula diaria a partir do quinto dia da menstruacáo. — Con
tudo ainda muitas incertezas pairam sobre tal método...; varias
restricóes, do próprio ponto de vista clínico, se lhe impSem: na ver-
da de, apesar da simplicidade do tratamento, muitas senhoras nao
suportam o impacto emocional que ele provoca; nao poucas também
se queixam de efeitos secundarios desagradáveis, como náuseas, ton-
teiras e dores de cabeca, efeitos estes que, prolongados, poderiam
causar graves danos ao organismo. Por finí, o elevado prego de venda
do produto dificulta enormemente a sua difusao.
Como se vé, já sob o ángulo visual médico, o anticoncepcionismo
está longe de ser solucáo clara e viável para a chamada «inflacao
demográfica».

— 27 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 5

3. Contudo, abstraindo de determinado método, o anti-


concepcionismo tem sido incentivado até mesmo por sociedades
das quais nao se esperaría tal atitude. Haja vista, por exemplo,
o que se dá a) na China comunista e b) em certos ambien
tes religiosos liberáis.

a) A Filosofía do comunismo é por si contraria ao con


trole artificial da natalidade e ao aborto, pois, segundo sua
ideologia, «o homem é a mais preciosa forma de capital do
mundo»; donde se compreende que limitar a natalidade na ■
China pode vir a ser considerado como «meio de matar chineses
sem derramamento de sangue». Contudo, embora a República
popular chinesa siga em geral a orientagáo de Moscou, o pre
sidente Mao-Tsé-Tung resolveu aceitar oficialmente, a título
provisorio, a limitagáo dos nascimentos, estabelecendo em
1955-1957, através do Ministerio da Saúde Pública, milhares
de clínicas para o controle da natalidade.

b) Doutro lado, urna comissáo de 21 membros do «Con-


selho Mundial das Igrejas» (entidade protestante) publicou no
inicio de outubro de 1959 um documento que afirmava: «A
limitagáo de filhos é tese moralmente sadia»; e acrescentava
nao haver distingáo a fazer, do ponto de vista moral, entre a
continencia periódica e o anticoncepcionismo artificial — o que
equivalía, segundo a intengáo dos declarantes, a proclamar a
liceidade déste sistema.

O bispo anglicano James A. Pike, de San Francisco (U.S. A.),


explicou tal ponto de vista, asseverando que condenar o anticoncepcio
nismo equivale «a condenar milhSes de pessoas a fome, & servidao,
á miseria e ao desespero, em regides desfavorecidas do globo, ñas
quais a maioria dos habitantes nao sao católicos romanos e, por
conseguinte, nao deveriam ser obrigados a se conformar aos escrú
pulos dos católicos no tocante aos métodos anticoncepcionistas».
O Presidente Eisenhower, intimado a se pronunciar sobre o assun-
to, houve por bem íicar á margem do debate: «Enquanto eu fór pre
sidente, o govérno americano nao tera dou trina positiva sobre o pro
blema do controle da natalidade. É coisa que nao nos diz respeito».
Acrescentava que tal questáo «tem para certas grandes coníissoes
um significado religioso», particularmente para a Igreja Católica,
«urna das que admiro e respeito».

O que foi dito até aqui é suficiente para delinear a posigáo


dos que preconizam o neo-malthusianismo como solugáo para
prognósticos de futuro desastroso da humanidade.
Examinemos se tal atitude é realmente a posigáo sadia
e necessária na hora presente.

— 28 —
O NÉO-MALTHUSIANISMO

2. Um juízo sereno

A fim de proferir um ju!zo adequado, distinguiremos os dois


aspectos que a questáo a presenta: o aspecto moral e o as
pecto científico.

a) O ponto' de vista moral.

1. Aos olhos da consciéncia moral, o neo-malthusianismo


é simpJesmente condenável. Se o anticoncepcionismo em si já
é algo de hediondo (cf. «P. R.» 5/1957, qu. 4), milito mais re-
provável se torna quando se lhe quer dar caráter oficial e
coletivo. Em urna palavra: nao é lícito ao homem intervir ñas
leis da natureza, a fim de.usufruir de vantagens e prazeres
independentemente da finalidade (no nosso caso:... a procria-
gáo) a que estáo naturalmente subordinados tais deleites- Só
se pode conceber um método honesto de limitagáo da natalidade:
a continencia periódica observada de acordó com a tabela de
Ogino-Knaus.

Em resposta á declaracao do «Conselho Mundial das Igrejas»


ácima citada, o sacerdote jesuíta Pe. John Foíd, professor de Teología
Moral na Universidade Católica de Washington, lembrava com todo
o acertó: <Há diferenca essencial entre abster-se de um ato e realizá-lo
de maneira mutilada ou truncada. Ao passo que a abstencáo é consen-
tánea com a natureza, a mutilacao se opóe a esta».
Como se vé, a Igreja Católica é contraria ao anticoncepcionismo
nao por causa de alguma lei positiva eclesiástica, lei positiva sujeita a
reformas de acordó com a evolucao dos tempos; a posigáo da Igreja
se deve simplesmente ao fato de que Ela é guarda e tutóra das leis
da natureza, fundamento de qualquer programa de santificagao sobre
natural.

A éste propósito, apraz citar parte da declaragáo coletiva


que o episcopado norte-americano publicou sobre o assunto aos
26 de novembro de 1959:

«No decurso déstes últimos anos, assistimos a urna campanha


de propaganda destinada a influenciar a opiniao internacional, nacio
nal e individual, em favor do controle dos nascimentos...
É estranho que... certos organismos nacionais e internacionais
tenham feito declaracóes segundo as quais a limitagao artificial dos
nascimentos no estado de matrimonio é cada vez mais admitida, mesmo
na Igreja Católica. Isto é mui simplesmente falso...
Os .católicos dos Estados Unidcs acredilam que a limitacáo arti
ficial dos nascimentos é maneira desastrosa de resolver o problema
da populacüo sob o ponto de vista moral, humano, psicológico e polí
tico. Ésse meio... rejeita as bases da verdadeira solucáo: um esforco
constante no sentido da solidariedade humana. Os católicos estáo
prontos a consagrar-se a ésse esfórco, que já é empreendido de
maneira tao promissora nos meios nacionais e internacionais. Entre
tanto, éles nao daráo seu apoio a nenhum auxilio público... a

— 29 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 5

programas de limitagao artificial dos nascimentos, de aborto ou


esterilizagao.
A razáo fundamental dessa atitude é que com isso se incentiva
um mal moral, objecáo bem pesada e nao baseada únicamente mima
doutrina típica e exclusivamente católica, mas na lei moral e em
consideragdes de ordem moral...
O próprio homem é o mais precioso agente de producáo. Portanto,
o progresso e o desenvolvimento económicos sao mais bem assegura-
dos criando-se as condigSes favorávels para o seu maior desenvolvi
mento. Ésse progresso supñe disciplina, controle de si mesmo, supSe
que alguém esteja pronto a fazer os proveitos futuros passar á frente
das satisfacóes atuais. O uso generalizado dos contraconceptivos,
antes que favorece-la, frearia a aquisicáo das qualidades que sao ■
necessárias para a transformacáo económica e social dos países sub-
desenvolvidos...
Na sua solicitude pelos países subdesenvolvidos, os Sovietes nao
lhes prop5em a limitacáo artificial dos nascimentos como um remedio
para os seus males. Atraem-nos, antes, para a órbita comunista,
oferecendo-lhes possibilidades de educagáo, empréstimos, urna ajuda
técnica ou comercial, e gabam-se de que o seu sistema económico
permite utilizar os homens em trabalhos construtivos e responder a
todas as necessidades déles. O delegado russo á relativamente recente
reuniSo da Comissáo Económica das Nagóes Unidas para a Asia e o
Extremo Oriente proclamou que 'a chave do progresso nao reside
na limitagáo da populagáo por meios artificiáis de controle dos nasci
mentos, mas sim numa Vitoria sobre o atraso económico désses países'.
Ó desprézo bem conhecido dos comunistas pelo valor da vida humana
traz um desmentido a essa propaganda hipócrita, mas, para os povos
que aspiram ao desenvolvimento económico e á independencia política,
o logro nao é assim táo imediatamente claro».

2. Entre outros tópicos do documento ácima, é oportuno


sublinhar a observacáo de que o neo-malthusianismo nao só-
mente se evidencia contrario a moral, mas, na época presente,
constituiría outrossim a fuga do homem frente ao verdadeiro
problema que o infelicita: as ameagas de desgraga coletiva da
humanidade nao provém de insuficiencia da natureza para ali
mentar a populagáo do globo (veremos, a seguir, que os recur
sos naturais sao múltiplos), mas provém de desequilibrio dos
processos de exploragáo e distribuigáo dos bens da natureza,
desequilibrio que, em última análise, se deve ao egoísmo e á
falta de senso cristáo do homem moderno: «O maior mal do
mundo nao é a pobreza dos necessitados, mas a inconsciencia
dos abastados e dos fartos» (L. J. Lebret, Suicidio ou sobrevi
vencia do Ocidente? Sao Paulo 1960, 356).
Requer-se, portanto, antes do mais, o reerguimento do
nivel moral da humanidade contemporánea. Haja mais hones-
tidade na consciéncia de cada cidadáo e mais compreensáo de
que o próximo (compatriota ou estrangeiro) merece a caridade
de todos.

— 30 —
O NÉO-MALTHUSIANISMO

A fim de corroborar quanto até aguí foi dito, abordaremos


a seguir

b) O ponto de vista científico da questáo.

Numerosos dentistas nao compartilham os prognósticos de


desgraga coletiva do género humano; chegam mesmo a prever
bonanca sobre a térra, caso haja aproveitamento consciencioso
dos recursos naturais.

Já o passado inflige, de certo modo, um desmentido ao pessimismo


de Malthus e dos contemporáneos: se. de um lado, a populacho do
globo aumentou extraordinariamente, a producto alimentar seguiu
ritmo igual ou aihda mais acelerado.
Assim de 1920 a 1948 a populacáo se acresceu de 28,4%; entre-
mentes os cereais para a confeccáo do pao se acresceram de 33,8%;
o acucar, de 66%; as batatas, de 54%; sdmente o arroz nao acompa-
nhou o ritmo, acusando um aumento de 8% apenas.
Na industria pastoril, mediante selecáo de gado, vaclnas e fecun-
dacáo artificial, tém-se obtido animáis de escol, que asseguram pro-
dutos superiores em quantidade e qualidade. Assim a cota de leite
arrecadado foi ültimamente duplicada na Franca e na Italia; foi
quadruplicada na Bélgica, e sextuplicada na Holanda. Na Bélgica e
na Holanda, racas selecionadas de galinhas tém dado a media anual
de 280 ovos. Mediante injec&es de hormónios especiáis, certa especie
de ovelhos que só davam um cordeiro por ano, chegaram a produzir
oito cordeiros.
Encontrar-se-ao enunciados na obra de Lebret, «Suicidio ou sobre
vivencia do Ocidente?» pág. 254-260, varios exemplos de como se tém
obtido e se poderáo obter por via artificial materias primas e alimen
tos sintéticos.

Em reuniáo recente da Sociedade Británica para o Pro-


gresso da Ciencia, realizada em Cardiff, o Dr. Wright, Diretor
adjunto da FAO («Food and Agriculture Organización»), órgáo
da ONU, declarou, por sua vez, que, «ao contrario da crenga
generalizada, as estatísticas provam que a producáo mundial
de alimentos aumenta, na época presente, em ritmo ligeira-
mente superior ao do aumento da populacho, por mais que
falte uniformidade ao incremento da producáo em muitas
regióes».
Para firmar sua posigáo tranquila, os estudiosos lembram
que os tesouros da natureza estáo, na maioria, ainda inexplo
rados pelo homem.

Neste particular, as cifras variam multo. Em todo caso, váo aqui


citadas algumas apreciacóes de autoridade:
Baudhuin, economista belga, estima que a superficie do solo
utilizado representa apenas 25% das térras continentais.
O Dr. Josué de Castro apresenta os seguintes dados: 50% do
solo que pisamos, nao é aproveitávelj 10% apenas é, de fato, utilizado;
íica ainda a quota de 40% disponível.

— 31 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 5

A FAO julga, por exemplo, que num país pouco desenvolvido,


como a India, seria possível em dez anos aumentar de 30 a 50% a
produgáo de trigo por hectare; na Franca, onde há mais recursos
de técnica agrícola, o acréscimo poderla ser de 50 a 60% em dez anos.
Tem-se verificado que certas áreas, até há pouco nlo exploradas
pela lavoura, sao assaz fecundas. Assim na Rüssia e no Canadá a
zona agrícola tem progredido em direcáo do Polo Norte, apresentando,
entre outras coisas, um rendimento de batatas muito satisfatório.
Merece outrossim mencáo a obra dos israelenses na Palestina: á custa
de sagacidade e esfórgo denodado, váo éles transformando o deserto
em hortas e pomares.

Além disto, os estudiosos observam que o recurso a eletrónica


abre ao homem possibilidades ainda mais ampias de multiplicar os
seus meios de subsistencia, principalmente no setor agrícola. Urna
nova ciencia, a Radiobiología, vai orientando nova técnica, capaz de
revolucionar a lavoura; seu setor de experiencia tem sido os campos
de Brookhaven nos Estados Unidos, onde o Professor Singleton tem
conseguido resultados notorios.

O principio sobre o qual se baseia tal ciencia, é o seguinte: tdda


planta vem a ser urna especie de fábrica, que recebe simultáneamente
do solo e do ar as materias primas a ser transformadas em fó'.has,
flores e frutos. Ésse trabalho é lento, e precisa continuamente de luz
do sol e de agua. Já tem sido possível acelerá-lo mediante planejados
sistemas de adubo e de temperatura artificial obtida em estufas. Eis,
porém, que a Radiobiología abre novas perspectivas: aplicando-se
substancias radioativas, tem-se intensilicado o processo bioquímico
dos vegetáis; a produgáo destarte tem sido extraordinariamente aumen
tada; além do que, novas especies de vegetáis, que outrora só no
decorrer de vinte anos eram fornecidas pela natureza, vém sendo
alcancadas na duragáo de um ano apenas. Nao há dúvida, a explo
racáo sistemática dessa nova técnica proporcionará ao género humano
multiplicados recursos de vida, contribuindo para remover o assustador
espectro da fome.

Enfim, pode-se dizer que imprevisíveis sao os recursos que


a ciencia póe á disposicáo do homem, a fim de possibilitar a
sobrevivencia de bilhóes de individuos sobre a face da térra
(tem-se falado mesmo da possibilidade de nutrir 22,4 bilhóes
de habitantes no globo terrestre). Por conseguinte, seja lícito
frisar que o terror de tantos contemporáneos, pessimistas ao
considsrarem o futuro, nao se deve a alguma deficiencia da
natureza como tal; é, antes, produto de urna crise moral, crise
que só será devidamente solucionada quando os homens apri-
morarem em si a consciéncia de que nem todos os valores sao
valores materiais; existem, sim, valores espirituais, á luz dos
quais se comega a entender a paradoxal senten^a do Senhor
Jesús: «Há mais bem-aventuranga em dar do que em receber!»
(At 20,35); há, sem dúvida, mais bem-aventuranga em cultivar
e distribuir a favor dos indigentes do que em guardar e absor-
ver a favor do próprio «eu».

— 32 —
LIBERDADE DA IGREJA

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

POLÍTICO (Sao Paulo):

6) «Até que ponto se estende a liberdade de acao que a


Igrcja reivindica p?ra si no mundo moderno?
Como é que a Igreja considera a sua convivencia com os
credos náo-católicos? Será hostil ou tolerante em relacao a
éles?»

1. A Igreja tem consciéncia de ser, como diz Sao Paulo


(cf. Col 1, 24), «o corpo de Cristo» prolongado através dos
sáculos; tem consciéncia, portante, de ser a portadora da Ver-
dade e da Vida para todos os povos. Existente neste mundo,
Ela se defronta com grupos humanos que nao lhe aderem e que
chegam mesmo a disseminar erros filosóficos e religiosos. Póe-se
entáo a questáo, abordada desde os inicios do Cristianismo: que
fazer em relacáo a tais grupos? Será oportuno usar de violen
cia para reprimir a sua agáo ou mesmo sufocar a sua existen
cia? Ou mais valerá recorrer á tolerancia, esperando-se que no
fim dos tempos o Pai do Céu separe do trigo o joio, e dé a
cada qual a respectiva sancáo?
É éste segundo alvitre, sem dúvida, o que o Senhor no
Evangelho incute (cf. Mt 13,30). A Igreja, portante, há de
reconhecer livre existencia a grupos de religiáo ou filosofía
náo-católicas.
De outro lado, porém, a Igreja, consciente de haver rece-
bido de Deus o depósito da Verdade, sabe que lhe toca o dever
de transmitir a Verdade a todos os homens; nem Lhe é licito
tornar atitudes ambiguas, que de algum modo concorram para
encobrir a face da Verdade perante as multidóes. A Verdade
tem seus direitos, e impóe severos deveres a todos os homens
(tanto aos que estáo dentro da Igreja como aos que estáo
fora déla), pois todo homem, já pelo fato de possuir inteligen
cia, tem a obrigacáo primaria de nortear seus passos pela
Verdade. Daí a responsabilidade que incumbe a Igreja, de nao
adotar «tolerancia» tal que possa ser interpretada como incer
teza de possuir o patrimonio da Verdade ou como indiferen
tismo.
Eis os termos em que se póe o problema das relasóes da
Igreja com as entidades civis (governos de Estado) e com as
confissóes náo-católicas que existem neste mundo.

Éste problema tem sido focalizado com interésse crescente, prin


cipalmente a partir do séc. XVI (surto do Protestantismo), merecendo
nos últimos decenios especial atencao por parte dos teólogos católicos.

— 33 —
<PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 6

Está íora de dúvida que nao se pode pretender chegar a urna solucáó
«padrao», válida para todos os tempos e países. A historia do Cristia
nismo mesma aponía urna serie de atitudes diferentes da Igreja ao
configurar as suas relacfies com as entidades déste mundo: houva ora
maior tolerancia, ora colaboracao (em toda a extensáo em que era
possivel), ora choques e lutas... Essas diversas atitudes foram mo
tivadas pelo íato de que a S. Igreja na sua atuacáo pública tem e
terá que observar sempre
a) certos principios rígidos, dos quais nao Lhe é licito abrir
mao, pois sao os direitos da Verdade, incutidos objetivamente peía
hierarqula dos valores ou pelo próprio Deus;
b) as circunstancias variáveis da historia, que exigem adaptacáo ,
dos principios, adaptacáo, porém, que nunca pode equivaler a traicao
ou desvirtuamento.
Esta adaptacáo (homogénea) dos principios imutáveis as circuns
tancias mutáveis dos tempos tem sido incutida pelos Papas principal
mente a partir de Leao XIII, cujas palavras váo aquí citadas:
«Ao descernios das abstracSes para o terreno dos fatos concretos,
preservemo-nos de renegar os principios estabelecidos: pcrmanecem
inabaláveis. Encarnando-se, porém, nos íatos, ésses principios se reves-
tem de u'a nota de contingencia devida ás circunstancias do ambiente
ao qual éles sao aplicados» (ene. «Em meio ás solicitudes», de 1892).
SSo palavras de Pió XII:
«O que chamamos Ocidente ou mundo ocidental, sofreu profundas
modificaedes a partir da Idade Media: a cisáo religiosa do séc. XVI,
o racionalismo e o liberalismo, que produziram o tipo de Estado do
séc. XIX, a política da prepotencia e a civilizagáo laicizada. Era, pois,
inevitável que as relacSea da Igreja Católica com o Ocidente mudassem
de aspecto» (Alocucao ao X Congresso Internacional das Ciencias his
tóricas, de 7/IX/1955).
Sendo assim, apresentaremos a resposta á questáo do cabegalho,
observando o seguinte roteiro: 1) breve consideragáo de alguns qua-
dros da historia das relacoes da Igreja com as entidades nSo-católicas;
2) proposicáo dos principios que constituem o mínimo de exigencias
da Igreja frente ás potencias déste mundo.

1. Alguns quadros da historia do Cristianismo

Distinguiremos abaixo tres'quadros, que significam as tres grandes


etapas das relacoes da Igreja com os poderes da térra.

1) Após a queda do Imperio Romano antigo, cuja civi-


Iizacáo estava baseada no paganismo, a Igreja reergueu a socie-
dade ocidental, comunicando aos povos germánicos e latinos
a fé de Cristo, juntamente com a cultura clássica. Formou-se
assim a cultura medieval, cujos alicerces eram o Evangelho e a
vida crista; o Ocidente medieval, cristáo como era, adotava o
ideal da «Cidade de Deus» ou da «Respublica christiana», isto
é, visava urna ordem de coisas ém que a fé e a adesáo a Deus
(ao único Deus revelado por Cristo e pela Sta. Igreja) cons-
tituiam o primeiro valor; a autoridade eclesiástica e a autori-
dade civil eram tidas como «ministerios» do próprio Deus, des-

— 34 —
LIBERDADE DA IGKEJA

tinadas a colaborar Intimamente entre si a fím de instaurar


mais e mais a Cidade Santa neste mundo.
Nessas circunstancias, qual era o modo de proceder dos
cristáos em relagáo aos náo-cristáos?

— Note-se logo que ésse tema nunca foi objeto de definicao do


magisterio oficial da Igreja na Idade Media. As atitudes concretas
eram sugeridas pelos teólogos e adotadas por eclesiásticos e leigos
de acordó com as circunstancias da época.

- S. Tomaz (t 1274) resume bem nos seguintes termos o


pensamento dos cristáos medievais:

1) Os governantes cristáos podem tolerar em seus terri


torios o exercído de cultos náo-cristáos; embora ésses cultos
professem erros religiosos e por si nao tenham direito a exis
tencia legal, pode haver circunstancias que justifiquen) o seu
exercicio, circunstancias tais como um bem a obter (conversáo,
por exemplo, dos náo-cristáos, que pela violencia talvez nao se
convertessem) ou um mal maior (litigios, divisóes, escánda
los...) a evitar.

Eis o texto lapidar de S. Tomaz:


«O govérno exercido pelos homens é participacáo do govérno que
Deus exerce; por isto, deve Imitar a éste. Ora Deus, embora seja
todo-poderoso e sumamente bom, permite acontecam no mundo alguns
males que Ele poderia evitar; permite-o, pois, se impedisse tais males,
ou seriam impedidos maiores bens ou maiores males se seguirlam.
Conseqüentemente, também no govérno exercido pelos homens,
os governantes com razáo toleram alguns males, a fim de nao impedir
certos bens ou nao promover maiores males... Assim, embora os
que nao tém a reta fé errem por seus ritos, podem ser tolerados,
seja por causa de algum bem que déles se derive, seja por causa de
algum mal a ser evitado» <S. Teol. n/n 10,11c).

O tratamento assim preconizado dever-se-ia aplicar, conforme


o S. Doutor, tanto aos pagaos como aos judeus e aos muculmanos,
pols nao se pode pela fdrca constranger quem quer que seja a abra
car a reta fé ou a tornar-se fiel cristáo (principio solene ja formulado
por S. Agostinho, In Jo 26,2, multas vézes repetido por S. Tomaz, e
ainda recentemente recomendado pelos Pontífices Leao XIII e Pió XII).

2) Em relagáo, porém, aos herejes (cristáos que se des-


viam da reta fé), S. Tomaz propunha outra atitude: nao admi
tía, pudesse haver tolerancia para com os seus cultos. Reco-
nheciaT sim, a todo e qualquer individuo plena liberdade, para
abragar ou nao a reta fé; mas, urna vez que alguém tivesse
aceito a fé, julgava que lhe incumbía a estrita obrigagáo de a
guardar: «Ninguém está obligado a fazer urna promessa; todos,
porém, tém a obrigagáo de cumprir as promessas que hajam
feito. Assim também a aceitagáo da reta fé a ninguém se

— 35 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 6

impóe; a conservagáo, porém, da fé aceita é obrigatória. Por


isto os herejes tém que ser compelidos a guardar a reta fé»
(S. Teol. II/n 10, 8 ad3).

A última razáo de tao rígida atitude é a consciéncia profunda


que os medievais tinham do valor da fé. Esta, para éles, representava
um bem táo evidente que a apostasia ou o desvio da fé só lhes parecia
explicável
ou por culpa própria do hereje ou do apóstata; éste estaría
nutrindo más intencdes, servindo a interésses indignos, combatendo
conscientemente a verdade;
ou por irresponsabilidade moral do sujeito. Éste, se nao
tivesse culpa, deveria ser considerado como inconsciente de seus a tos.

Em ambos os casos, porém, o cristáo medieval julgava


haver motivos que o obrigavam a intervir com medidas opor
tunas. Ora a fé era tida como um bem nao sómente da Igreja
e do foro religioso, mas também do Estado e do foro civil;
em conseqüéncia, era obvio, aos olhos do medieval, que tanto
o poder eclesiástico como o civil se deviam empenhar na re-
pressáo das heresias; leis semelhantes ás que puniam os delitos
contra o bem comum temporal deveriam ter aplicagáo nos
casos ds delito contra o bem comum eterno dos cidadáos ou
da «Cidade de Deus»; a polícia do Estado, portanto, devia entrar
em a-áo também nestes casos É claro, porém, que os processos
empreendidos contra as heresias nao visavam primariamente
fazer os herejes professar de novo a reta fé (embora isto fósse
muito desejável), mas tinham, antes do mais, por objetivo
impedir o alastramento de suas atividades, tidas como nocivas
a Igreja e ao Estado, ou seja, visavam extinguir o perigo de
seducáo do erro.

É tal mentalidade, comumente implantada na Idade Media, que


explica a instituicao da Inquisicáo. Esta, considerada em si mesma
ou em seus principios doutrinários e jurídicos, n5o sámente nada tlnha
de repulsivo para o medieval, mas devia, antes, parecer algo de bom
e necessário. É de lamentar, porém, que na prátiea se hajam dado
abusos, devidos em parte á fraqueza de certos oficiáis eclesiásticos,
mas devidos também em proporcáo nao exigua á demasiada ingeren
cia do poder secular em assuntos que eram do foro estritamente
religioso.
A tática e a mentalidade da Inquisicáo se acham, de resto, expla
nadas em «P. R.» 8/1957, qu. 9.

2. Urna vez terminada a Idade Media, do séc. XVI aos


nossos dias, as correntes de pensamento e as circunstancias
concretas da vida pública tém mudado constantemente em
diregáo da apostasia e do materialismo. Daí também a mudanga
de atitude das autoridades da Igreja em relagáo aos grupos
náo-católicos.

— 36 —
LIBERDADE DA IGREJA

No séc. XVI, com a irrupgáo do Protestantismo, os fiéis


católicos se viram ladeados por populares inteiras filiadas á
heresia; o Protestantismo chegou mesmo a ser a religiáo das
autoridades civis em algumas regióss da Europa. É o que ex
plica um primeiro passo dado pelos teólogos católicos no sentido
de alargar a tolerancia que S. Tomaz preconizava ao tratar de
judeus, mugulmanos e pagaos: também aos protestantes as
autoridades católicas deveriam reconhecer liberdade de culto
desde que se pudesse esperar com isto conseguir algum bem ou
evitar mal maior.

É o que em 1584 preconizava Joáo Molanus, Reltor da Universi-


dade de Lovánia, no tratado «De fide haereticis servanda»; Molanus
admltia mesmo que os católicos se comprometessem por utn pacto
a garantir a liberdade de culto dos protestantes, «iustis et gravitáis
de causis», desde que, para isso, houvesse causas justas e ponderosas
(m c. 17; cf. I c. 23).
Após a consolidacao da ps.-Reíorma protestante a posicao de
Molanus tornou-se clássica entre os católicos do séc. XVII.

3. Um passo ulterior foi dado no sáculo XEX, quando


os teólogos estenderam o mesmo principio de tolerancia as
relagóes dos católicos com as ideologias náo-católicas em geral
(ao lado do Protestantismo, grande número de outras escolas
tomou vulto na mesma sociedade em que vivem os católicos).

Um dos primelros arautos dessa posicáo muito larga íoi a revista


dos jesuítas italianos «Civiltá Cattolica», em seu número de 2/X/18S3:
condenava em principio as ideologias erróneas da época moderna,
mas reconhecia que em certos casos, por motivos imperiosos, os go-
vernos católicos as poderiam tolerar nos seus territorios. Ora tal
atitude íoi reafirmada em 1885 por S. Santitíade o Papa Le§o XIlI
na encíclica '«Immortale Deis:
«Se, de um lado, a Igreja julga nao ser licitó colocar' os diversos
cultos em pé de igualdade legal com a verdadeira Religláo. E'á, de
outro lado, nao condena os Chefes de Estado que, em vista de um
bem a atingir ou um mal a impedir, toleram, na prática, que ésses
diversos cultos tenham seu lugar no país».
Esta me?ma fórmula foi ma's urna vez incutida pelo S. Padre
o Papa Pió XII, que assim confirmou, para os católicos de nossos días,
quanto já fóra dito por Pontífices e teólogos anteriores:
«O dever de reprimir os desvíos moráis e religiosos nao pode ser
tomado como norma suprema de acao. Deve ser subordinado a nor
mas mais elevadas e mais gerais que em certas circunstancias per-
mitem que se imponha... como o melhor alvitre o de nao impedir
o erró, a fim de ¿e promover um bem maior...
Um olhar para a realldade das coisas... mostra que o erro e o
pecado se encontram no mundo em larga escala. Deus os reprova;
nao obstante, permite que existam. De outro lado, verifica-se que
mesmo á autoridade humana Deus nao impos um preceito absoluto
e universal (de repressao violenta) nem no setor da fé nem no da

— 37 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 6

moral... Para nao falarmos aqui de outros textos da S. Escritura...,


Cristo na parábola do jólo fez a advertencia seguinte: 'No campo
do mundo deixal crescer o joio juntamente com a boa sementé por
causa do trigo* (Mt 13,24-30)>.
Donde concluí o Santo Padre: «Primeiramente: o que nao corres
ponde á verdade e a lei moral, nao tem objetivamente direito & exis
tencia, nem a propaganda nem á ativldade. Em segundo lugar: nao
obstante, em vista de um bem superior e maior, pode-se justificar
o fato de nao se impedir por leis do Estado e melos coercitivos a
existencia do mal acuna apontadot (Discurso aos juristas católicos
italianos, em 6/XII/1953).

Éste texto exige algumas observagóes:

1) A posigáo de Pió XII está longe de significar relati


vismo doutrinário ou descaso da distingáo entre Verdade e erro.
Muito ao contrario, o Pontífice frisa muito claramente que
existem no mundo erros doutrinários e mofáis e que estes em
absoluto jamáis poderáo ser «legalizados».

2) A tolerancia que o S. Padre preconiza para com tais


erros (tolerancia que nao significa compromisso doutrinário,
mas apenas convivencia pacata) deve ser sempre motivada por
razóes imperiosas, isto é, deverá ter sempre em vista a possi-
bilidade de se obter um bem maior do que o que se tem presen
temente; nunca, portante, poderá estar fundada sobre covar-
dia ou displicencia. Tal «fechar de olhos» covarde, longe de
ser construtivo, tornar-se-ia contrario aos interésses da huma-
nidade; a tolerancia católica está, antes, baseada na esperanca
de que o homem, usando de sua inteligencia e de sua liber-
dade (como de direito Ihe compete), chegue a apreender a
Verdade.

Sobre verdade e tolerancia, veja-se «P. R.> 36/1960, qu. 6.

3) A largueza de vistas de que os Papas Leáo Xm e


Pió XII deram provas, nao implica em derrogagáo a principios
dogmáticos anteriormente afirmados pela Igreja, nem significa
«oportunismo traicoeiro». Ao contrario, como consta do esbdco
histórico que apresentamos, é coerente com as atitudes da
Igreja adotadas em épocas passadas: portadora de principios
imutáveis, a Igreja se viu e v§ continuamente convidada a dar
sentido vivo e preciso a ésses principios ñas fases contingentes
e mutáveis por que passa a historia dos homéris. O próprio
Pío XII explica ésse procedimento da Igreja:

cA Igreja, estendendo-se no mundo lnteiro, passou no decorrer


dos sáculos por mudencas diversas (de periferia); em sua esséncla,
porém, Ela sempre permaneceu idéntica a si mesma, pois a multidao
de elementos que Ela recebeu, foi desde o inicio constantemente

— 38 —
LIBERDADE DA IGREJA

subordinada as mesmas leis fundamentáis» (Discurso ao X Congresso


Internacional das Ciencias históricas, em 7/IX/1955).
4. Posto o principio da tolerancia nos termos formulados por
Pió XII, deve-se dizer que a Igreja nao possui nenhum esquema
elaborado de antemáo e rígido, ao conceber hoje em dia as suas
relagSes com as potencias déste mundo. Ela é capaz de se adaptar
as circunstancias de vida de cada pais, desde que nao entrem em
causa artigos de fé e de moral crista; é justamente em vista dessa
adaptacáo que as autoridades eclesiásticas tém assinado concordatas e
tratados com os governos civis desejosos de regrar questSes afins
aos interésses da Religiáo e do Estado. Tais concordatas estáo longe
de corresponder sempre as mais íntimas aspiragóes da Igreja, como
nota Pió XII no discurso aos juristas católicos da Italia proferido em
6/XII/1953; em todo caso satisfazem ao mínimo de exigencias de que
a Esposa de Cristo nao pode abrir máo.
A guisa de éxemplos, váo aquí alguns tópicos das concordatas
mais recentes:
Em 1801, assinando urna convencáo entre a Sta. Sé e a Franca,
Napoleáo recusava a expressáo clássica «Religiáo de Estado», reco-
nhecendo apenas que o Catolicismo era «a Religiáo da grande maioria
dos cidadáos franceses». Contudo a concordata assinada em 1929 entre
o Estado italiano e o Vaticano designava o Catolicismo como «Reli
giáo do Estado». Com a Espanha Pío XII assinou urna concordata
em que o govérno espanhol reconhece: a Religiáo católica «continua
a ser a única da nagáo espanhola; gozará dos direitos e privilegios
que lhe competem de acordó com a Lei divina e o Direito canónico».
Com Portugal, porém, foi travado em 1940 um. acordó que nao atribui
ao Catolicismo o título de «Religiáo de Estado» nem estipula subsidio
algum para os ministros do culto. A concordata com a Alemanha em
22/VII/1933 apenas reconhecia á Igreja «o direito de organizar e
administrar suas tarefas de maneira autónoma dentro dos limites do
direito comum».
É assim que espontáneamente se póe a questáo abordada no
parágrafo abaixo.

2. O mínimo de exigencias no mundo moderno

Os «principios inabaláveis» de que falava Leáo Xin (texto


citado á pág. 34), ou o mínimo de reivindicagóes que a Igreja,
consciente de sua missáo divina, apresenta ao mundo, podem-se
resumir nos seguintes termos (o ensaio abaixo se deve a A. de
Bovis S. J., L'Église dans la société temporelle, em «Nouvelle
Revue Théologique» 79 [1957] 225-247).

1) Liberdade de pregar o Evangelho em todos os tempos


e lugares, a todos os homens. É o que decorre do mandato de
Cristo:-«Ide e ensinai a todos os povos» (Mt 28 19).

2) Direito de ministrar educacáo crista a juventude.

Pode-se dizer que até o século passado ninguém contestava á


Igreja essa faculdade; foi no séc. XIX que o Estado comesou a reivin
dicar para si o poder exclusivo de educar. Desde entáo os Papas (a

— 39 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961, qu. 6

partir de Pió IX, em 1864) tém feito ouvir a sua voz lirme e dará,
sendo que Pió XI em 1929 redigiu um dos documentos mais expres-
sivos a tal respeito: a encíclica «Divini illius Magistri», da qual seja
aqui destacada a seguinte passagem: «Todo ensinamento... é neces-
sáriamente dado em íuncáo do íim último do homem. É o> que explica
que nenhuma forma de magisterio possa estar isenta das normas da
Lei de Deus, da qual a Igreja é a guardia, a intérprete e a Mestra
infalivel» (Acta Apostolicae Sedis 22 [1930] 54).
Sobre a chamada «educagáo leiga», veja-se «P. R.> 5/1958, qu. 8.

3) Liberdade de se pronunciar sobre qualquer questáo


debatida na vida cotidiana, desde que algum interésse de índole
religiosa ou moral esteja em jógo. Em outros termos: á Igreja
toca o direito de intervir em todo e qualquer assunto aparen
temente profano, nao para dirigir positivamente os rumos
temporais do mundo, mas para lembrar, em nome de Deus,
os ditames da lei moral ou da consciéncia que possam estar
implicados no caso (intervengáo «ratione peccati», diz a fór
mula antiga). É o que Leáo XIII assim formula: «Tudo que
ñas coisas humanas... toca a salvagáo das almas e o culto
de Deus (seja por sua natureza mesma, seja por estar relacio
nado com determinado objetivo), tudo isso é do alcance da
autoridade da Igreja» (ene. «Immortale Dei», Denzinger 1866).

Sao múltiplas as aplicagóes práticas déste principio: confere á


Igreja o direito de se pronunciar em
questSes de Deontologia profissional, principalmente de Medicina
(ciencia que de multo perto toca o intimo do homem); as realizacSes
modernas de transplantagao de órgáos e tecidos, eutanasia, fecunda-
cáo artificial, anticoncepcionismo, etc. afetam a consciéncia, isto é,
as relacBes da criatura com o Criador; estáo por isto sujeitas á palavra
da Igreja (pois nao há Ética meramente leiga; em qualquer de seus
atos o homem toma posicáo diante de Deus, em favor... ou contra...) ;
sobre «Moral leiga» veja-se «P. R.» 7/1958, qu. 5;
questfies de modas, dangas, concursos de beleza, esportes. Também
as diversóes sao, em última análise, norteadas pelo Fim Supremo do
homem: elas sao tais que ou se podem conciliar com a Leí de Deus
ou nao (neste último caso, a Igreja tem a obrigacao de as denunciar);
questSes de Sociología e Política... A Santa Igreja nao está
associada a partido político algum. Ela pode conviver tranquilamente
com qualquer regime que lhe reconhega os direitos impreteriveis':
«A Igreja Católica nao se identifica com cultura nenhuma; sua essén-
cia lho proibe. Ela está pronta a entreter relacfies com qualquer tipo
de cultura. Reconhece e deixa subsistir o que, nelas, nao se opoe á
natureza» (Alocugáo de Pió XII ao X Congresso Internacional das
Ciencias históricas, em 7/DC/1955). — Desde, porém, que um homem
público, um partido político ou um govérno contradigan!, por seu
programa, suas declaracOes ou suas atltudes, á Lei de Deus e do
Cristo, cabe á Igreja o grande dever de o Indicar a seus filhos
e á sociedade em geral.
Em suma, nao há setor de atividade humana própriamente dita
em que nao esteja envolvida a consciéncia moral (a Filosofía ensina
que todo homem, em última análise, sempre age em vista do seu

— 40 —
CORRESPONDENCIA MIÚDA

Fim Supremo). Por conseguinte, também nao há um setor da vida


aparentemente profana dos homens em que a Igreja esteja desclas-
sUicada para proferir a palavra de Deus (na medida em que o bem
e o mal moral ai entrem em causa).

A lista de direitos da Igreja que acaba de ser proposta,


revela a aspiragáo básica da Esposa de Cristo: é a de dar alma
ou estrutura a sociedade, fazendo que os homens, as instítuipóes.
e a cultura sejam portadores e comunicadores de um espirito-
— do espirito do Cristo —, .. .sejam, por conseguinte, porta
dores da Verdade e do Amor de Deus Pai. Pió XII o dizia.
muito claramente: «Hoje, como no passado, a Igreja é o fer
mento do género humano» (Alocugáo aos curas e pregadores.
de Roma, em 8/HI/1952).
Para poder desempenhar no tempo e no espago essa sua.
missáo, a Santa Igreja muito deseja a colaboragáo amigável
do poder civil (desde que esta nao implique em avassalamenta
da autoridade eclesiástica): «A Igreja nao dissimula que Ela.
considera... como um ideal... a unanimidade de agáo entre
Ela e o Estado» (Pió XII, alocugáo ao X Congresso Internacio
nal das Ciencias históricas). A medida de tal colaboracáo será
variável, desde que permanegam incólumes as liberdades capi-
tais da Santa Igreja; esta, contudo, jamáis poderá deixar de
desejar que o Estado a reconhega como sociedade sobrenatural,
como depositaría da Verdade, enfim como realidade transcen
dente que nao pode ser simplesmente tratada segundo as normas
do direito comum ou do direito que rege as demais entidades
existentes neste mundo.

CORRESPONDENCIA MIÜDA

A MUITOS LEITORES : As perguntas referentes á existencia


do mal no mundo sao constantes. Já mais de urna vez abordamos o
assunto nesta revista. A fim de evitar repetigóes, propomos aqui a lista
dos artigos de "P. R." que tratam da questáo :

existencia e significado do mal no mundo — 5/1957, qu.l ;


sofrímente dos bons e prosperidade dos maus — 15/1959, qu. 6 ;
falhas da natureza e Bondade de Deus — 32/1960, qu.3 ;
responsahilidade moral e taras ou defeitos mentáis — 5/1958, qu.6 ;
Deus, causa do pecado ? — 36/1960, qu.2 ;
existencia « sentido do inferno — 3/1957, qu.5 ;
como pode Deus, sumamente bom, condenar um filho a castigo
eterno ? — 31/1960, qu.4.

Visando facilitar a tarefa do leitor, voltamos aqui a fúcar um ou


outro ponto mais importante do problema.
1) Um dos focos mais freqüentes de dificuldades neste setor é o
erróneo conceito de mal.

— 41 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961

Somos propensos a conceber o mal como um corpo ou urna entidade


nociva a nos, assim como somos espontáneamente levados a crer que as
trevas sao um corpo compacto oposto á luz. Na verdade, as trevas nao
tem entidade, sao mera ausencia de luz ; assim também o mal nao é
um ser, mas é justamente a ausencia de ser onde éste deveria existir.
Assim a falta de olhos numa criatura humana é um mal. Outro exemplo:
a febre ou o aumento de temperatura é um mal, nao porque consiste em
calor (entidade positiva), mas porque tal calor (entidade boa em ai)
está localizado num corpo humano e carece de proporcáo com as leis
dSsse organismo; o mal da febre só é mal porque tal grau- de calor
nao está em harmonía com o conjunto de elementos do corpo humano ;
o mesmo calor posto num motor qualquer poderia ser ótimo elemento
por estar dentro das proporcóes ou exigencias désse motor.
Disto se deduz urna conseqüéncia importante : o mal nao tem pró-
priamente causa. Ele é ocasionado por um agente que produz o bem,
mas o produz lacunosamente. Tal agente nunca pode ser Deus, O Qual
por definigao é infinitamente perfeito (um Deus capaz de imperfeigáo
seria contradigáo, nao seria Deus); só pode ser urna criatura. — Na
verdade, toda criatura, finita como é, é capaz de falhar na produgáo do
bem; pode entáo dar origem ao mal (urna criatura por si mesma ónfalí-
vel seria um absurdo ; deveria ser infinitamente perfeita ; ora nao
pode haver mais de um Ser infinitamente perfeito, Deus).
2) 0 Criador deixa que na realidade as criaturas deem origem
ao mal.
— Como é isto possível, se Ele é todo-ciente, todo-poderoso e todo-
-bondoso ? Como conciliar entre si estes tres atributos do Altíssimo ?
— Deus é todo-exente. Sabe o mal que os homens lívremente estío
para cometer. Sabe..., mas nao obriga a cometé-lo ; apenas permite.
— E porque permite, se é todo-poderoso e pode evitar ?
— Deus nao usa da sua onipoténcia para evitar o mal, porque fez
liwes as criaturas humanas (para que estas fóssem mais dignas do
que os autómatas) e nao lhes retira o dom da liberdade que outorgou.
Qualquer intervengáo mutiladora seria indigna de Deus ; o Senhor nao
quis fazer criaturas livres "teleguiadas". Isto seria o mesmo que fa
bricar flores artificiáis ; sabemos que, para que a flor tenha a sua
grac.a, o seu perfume e frescor, é preciso que seja natural,... que nasga
e morra.

— Mas entáo como se salva a bondade de Deus, se Ele prevé o mal


das criaturas..., se Ele tem poder para o impedir e, nao obstante, nao
o impede ?
— A bondade de Deus se salva plenamente pelo fato de que Ele,
embora deixe cada criatura enveredar pelo catninho que ela queira, faz
que finalmente todas concorram para a v.itória do bem. Nenhum ser
criado, por mais que abuse dos dons do Senhor, escapa á finalidade su
prema da criasáo, que é proclamar o Bem. "Deus escreve direito por
linhas tortas", diz a sabedoria popular... Éste adagio encerra profunda
verdade : as linhas sao tortas nao por causa do Senhor, mas porque as
criaturas livres nao recebem devidamente o impulso reto de Deus ; con-
tudo a bondade e a onipoténcia do Altíssimo se manifestam no fato de
que, sem violentar ou mutilar algum ser criado, o Senhor faz que tudo
convirja para um único objetivo : servir finalmente á causa do Bem.
S. Agostinho e, depois déle, S. Tomaz formularan! famoso axioma :
"Deus jamáis permitiría que algum mal existisse em suas obras, se Ele

— 42 —
CORRESPONDENCIA MttrDA

nao fósse bastante poderoso e bom para tirar do próprio mal o bem"
(Enchiridion 11 ; S. Teol. I qu. 2. a. 3 ad 1).
O poeta Goethe, por sua vez, embora nada tivesse de católico, atri
buía a Satanaz ó seguinte dístico :

"Sou o espirito que sempre nega...


Pertenco a essa Fdr;a que sempre comete o mal, -
Mas que só consegue servir ao Bem."
(cf. pág. 18 déste volume)

Veremos plenamente o triunfo do Bem sobre o mal quando tiyer


terminado a historia déste mundo ; por enquanto, estando nos debaixo
da tempestade, nao podemos pretender. contemplar o céu azul que na
realidade cerca as nuvens, antecedendo-as, acompanhando-as e suce-
dendo-lhes.
3) Outro foco de mal-entendidos é o conceito de castigo infligido
por Deus.
Fácilmente se pensa que o Todo-Poderoso inventa e cria punieres
para os homens ("como pode Deus criar o inferno ?", pergunta-se). Em
conseqüéncia, julga-se que Deus poderia ser mais brando ou condescen-
dente ao "imaginar" os castigos das suas criaturas ; poderia fazer um
"abatimentozinho"...
Na verdade, Deus nao imagina castigos especiáis para as criaturas.
Com efeito, riáo é preciso que Ele delibere sobre a sangáo que merecem
os infiéis : esta se desencadeia normalmente, como simples conseqüéncia
da desordem acarretada pelo pecador na natureza. Sim ; o homem,
alheando-se a Deus, coloca-se, pelo seu ato mesmo de se alhear, na
mais dolorosa situadlo possíyel. — Porque ? — Porque contradiz a lei
fundamental do seu ser ; feito para Deus, ele se constituí num estado
de retorsáo e dilaceracáo subsistentes. Ora o inferno consiste prima
riamente nesse tormento ; o chamado "fogo do inferno" sobrevém ; é
pena infligida por um agente físico cuja natureza nao se pode precisar
exatamente. Assim o pecado traz em si a sua própria sangáo ; quem
come demais, contradizendo ás leis da sua natureza, sofre a represalia
da natureza, sem que haja necessidade da intervencSo especial de Deus
ou de algum juiz para determinar a pena.
A retorsáo no. inferno nao tem f.im, porque o reprobo se endurece
na sua aversáo a Deus, e em absoluto nao quer reconciliac.áo com o
Senhor. Na verdade, a natureza humana é tal que ela só muda de dis-
posi;des enquanto a alma está unida ao corpo e pode captar novas im-
pressóes por meio dos sentidos. Se o reprobo mostrasse no inferno o
mais leve desejo de voltar a Deus, seria ¡mediatamente recebido pelo
Pai do Céu. Em última anáLise, estejamos certos de que, se nos, pobres
homens, temos o senso da Justina, milito mais Deus o tem ; o Senhor
nao comete injusti;a para com criatura alguma.
4) Mais um ponto freqüentemente focalizado é a aparente desordem
na distribuiíáo das sortes : as pessoas virtuosas sao muitas vézes atri
buladas, ao passo que os maus parecem prosperar tranquilamente.
Em resposta, note-se que nao se pode avaliar o grau de felicidade
de alguém pelo afluxo de bens temporais que lhe ocorram. Mesmo os
que parecem afagados pelo curso visível da vida, sofrem ou sofreráo.
Ademáis, no estado atual da humanidade, o padecimento vem a ser
o verdadeiro valor : burila a personalidade, desprende o potencial de
heroísmo e nobreza que cada um traz dentro de si e que fica sufocado

— 43 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 37/1961

quando os bens temporais acariciam ; é o sofrimento que quebra a


crosta de egoísmo de cada um. Por isto o Pai do céu nao dispensa as
suas criaturas de sofrer ; ao contrario, tanto mais as visita com a
cruz quanto mais as deseja elevar na escala da grandeza e da santidade,
—■ Daí se compreende que o justo, longe de se inquietar por ter que
sofrer, abrasa a sua cruz com generosidade ; ele, ao contrario, se per
turbaría se tudo lhe corresse a gósto (pois entáo temería ser sufocado
pelo polvo do egoísmo).
Eis o que, em resumo, se pode dizer sobre os aspectos do problema
do mal mais comumente visados.

ADVENTISTA DO V DÍA (Sao Paulo) : O bispo que levantou


dificuldades contra a definicáo da infalibidade papal no Concilio do
Vaticano (1870) chamava-se José Jorge Strossmayer. Rui Barbosa es-
creveu, sim, alguma coisa a respeito. V. S. encontrará noticias sobre
estes assuntos em "P. R." 7/1958, qu. 10.

RENATO (Volta Redonda) : As provas da existencia de Deus se


acham expostas em "P. R." 6/1957, qu. 1. Sobre a canonizacáo 'dos
santos, veja "P. R." 13/1959, qu. 5. Quanto á severidade de Deus no
Antigo Testamento, aguarde resposta num dos próximos números de
"P. R." ; por enquanto, encontrará explicacáo no livro de E. Bettencourt,
Para entender o Antigo Testamento cap. IX.

AMIGO DAS DIFICULDADES (Rio de Janeiro) : V. S. apresenta


longo- qúestioríárip,.■.. Merece felicitacóes pelo seu desejo de penetrar
a verdadfe-;' pesa-nos, porém, nao termos um enderégo ao qual possamos
enviar as devidas respostás. Coagidos pela falta de espaso na revista,
deyemo-noa contentar com a citacáo de "P. R." 6/1957, qu. 12 (vela
acésa e agua benta); 17/1959, qu. 2 (intercessáo dos santos e vontade
de Deus).

• D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.

«PEKGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual de 1961 Cr$ 200,00


Assinatura anual de 1961 (vía aérea) Cr$ 250,00
Número avulso de 1961 Cr$ 20,00
Número de ano atrasado Cr$ 25,00
Colecáo >encadernada de 1957 Cr$ 320,00
Colecáo encadernada de 1958, 1959, 1960 .. Cr$ 450,00 (cada)

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