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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
IL vista cristao a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico ■ filosófica "Pergunte_ e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagao.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO VI

F E V E R E I R

19 6

•■á
ÍNDICE

Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que consta o respeito do famoso müagre de Sao Januá-


rio em Ñapóles ? .

Como se diz, o sangue do mártir se liquefaz todos os anos em


circunstancias extraordinarias" 47

II. ESPIRITUALIDAD*;

2) "Haverd necevnidade de diregáo espiritual para o pro-


gresso lia vida interior ?

O assunto tem sido árduaviente controvertido. Qual a mente


da Igreja a propósito ?" 5J>

3) '-'Que se requer para, que a diregáo espiritual se torne


frutnosa ?" ■•• el

III. MORAL

4) "Volta continuamente á baila o problema dos 'católicos


nao practicantes'.

Como, por exemplo, procederá o pastor de almas em relacáo


nos fiéis qtte habitualmente faltam & Missa nos domingos e dios
santos ?" 70

IV. SOCIOLOGÍA

5) "últimamente tem-se falado de 'Unilabor', revolugáo na


estrutura da empresa. Tratase de urna tentativa de resolver sobre
bases genmnamente cristas o problema das relacóes entre trabalko
e capital.

Em que consiste essa tentativa ? Como avaliá-la ?" 77

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


« P E R G U N t€>E?/,R E.S p o' Ñ D EREMOS»

Ano VI — N« 62 — Fevereiro de 1963

I. CIENCIA E RELIG1A0

GAUCHO (Porto Alegre) :

1) «Que consta a respeito do famoso milagro de Sao Ja


nuário em Ñapóles?
Como se diz, o sangue do mártir se liquefaz todos os anos
em circunstancias extraordinarias».

Proporemos, antes do mais, os tragos característicos do fe


nómeno a ser analisado. A seguir, examinaremos as principáis
tentativas de explicacáo discutidas pelos estudiosos.

1. Em que consiste o prodigio?

1. Sao Januário é o patrono principal da cidade de Ñapóles


(Italia). Julga-se que tenha sido bispo de Benevento, martirizado por
volta de 305. Nao se poderla dizer em que circunstancias padeceu a
morte heroica : um relato («Passio») nao anterior ao séc. VI narra que,
junto com seis companheiros, soíreu a decapitacáo em Pozzuoli, a 14 km
de Ñapóles. Seus despojos mortais foram trasladados para Ñapóles no
séc. IV (315?).ou no séc. V (432?).

2. O nome de Sao Januário é geralmente associado a um


prodigio de liquefagáo de sangue, que tem lugar em Ñapóles mais
de urna vez por ano.

Diz urna narrativa que o bispo Sao Januário, atirado pelos persegui
dores da fé as chamas de urna fornalha, escapou ileso do perlgo. Em
conseqüéncia, é invocado contra os assaltos do fogo, particularmente
contra as erupgSes do Vesúvio; de modo mais geral, é tido como protetor
ñas calamidades que afetam a populacáo inteira (terremotos, peste,
cólera, seca...). Os seus devotos lhe atribuem um patrocinio s6bre toda
a vida humana. Compreende-se assim a grande importancia que atri
buem ao «milagre de SSo Januário> : é tido como sinal de protecáo do
céu, de modo que, qüando por um motivo qualquer o portento nao se
realiza, o povo napolitano se impressiona profundamente.

Pergunta-se entáo : em que consiste o prodigio?


Como se eré, parte do sangue de Sao Januário foi conser
vada em duas ampolas de vidro herméticamente fechadas e
atualmente guardadas mima capelinha anexa á catedral de Ná-

— 47 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 1

poles. As ampolas estáo envolvidas por urna capa de metal, de


tal modo gue láminas de cristal, na parte anterior e na posterior
do relicario, permitem ver o conteúdo dos dois recipientes. Dés-
tes, o menor possui a capaddade de 25 cm3 e apresenta apenas
manchas de sangue espalhadas pelas paredes de vidro. A ampola
maior tem a capacidade de 60 cm3; a metade (ou mais) do seu
interior é ocupada por urna substancia sólida, vermelha escura,
tída como sangue de Sao Januário.
Pois bem; o prodigio consiste em que varias vézes (dezoito
vézes em media) por ano o sangue se liquefaz no decorrer de
cerimónias religiosas públicas freqüentadas por grande assem-
bléia de fiéis e também de incrédulos ou céticos.

3. O fenómeno ocorre tanto em datas fíxas ou habituáis


como em datas esporádicas ou movéis.

As datas fixas sao:

1) o sábado anterior ao 1' domingo de maio (aniversario


da trasladagáo dos ossos de Sao Januário para as suas respecti
vas catacumbas em Ñapóles) e os oito dias subseqüentes;

2) o dia 19 de setembro (aniversario do martirio) e a


oitava seguinte;

3) o dia 16 de dezembro, comemorativo da terrível erup-


Cao do Vesúvio em 1631.
Os dias movéis seriam os de visitas de personagens ilustres,
exposigáo das reliquias por ocasiáo de calamidades públicas, etc.

4. O fenómeno dito da liquefacáo do sangue de Sao Januá


rio, além de ser portentoso em si, apresenta tres aspectos conco
mitantes extraordinarios:
1) a substancia sólida nao tem ponto de fusáo fbco ou
constante, como seria de esperar conforme as leis da Física
(estas a cada substancia ou combinacáo de substancias assina-
lam um ponto de fusáo, que nao varia desde que se mantenha
a mesma pressáo atmosférica).

No tocante ao sangue de SSo Januário, registram-se os seguintes


dados:
em maio de 1795, no primeiro dia do prodigio, a liquefacáo ocorreu
a temperatura de 24*,4 centígrados; no quarto dia, aos 2ff>,4; no quinto
dia, aos 23',8; no sétimo dia, aos 25"; no nono dia, aos 19*,4;
em setembro de 1979, os Professdres De Luca e Gori observaram a
seguinte escala: no primeiro dia, a temperatura de fusáo fol de 30'; no
terceiro día, de 27*; no sétimo dia, de 25».

— 48 —
O MILAGRE DE SAO JANUARIO

A liquefagáo costuma ser total, nao ficandp núcleo sólido


algum. Contudo também pode ser parcial, íicando em.meio ao
líquido um globo sólido. Por vézes produzem-se boinas de ar,
que se acumulam na superficie do líquido, originando urna ca
rnada de espuma; em conseqüéncia, diz-se que o sangue de Sao
Januário ferve — o que nao corresponde á realidade; nao M
ebuligáo, mas apenas formagáo de espuma,
Também é preciso notar que nao se requer a colocagáo do
sangue na presenga do cranio de Sao Januário (como vulgar
mente se refere) para que o prodigio se verifique; basta que se
extraía o relicario do nicho em que éhabitualmente guardado.

2) Varia também o prazo necessário para se produzir á


liquefagáo : as vézes, esta se dá quase sem demora após a expo-
sigáo da reliquia; outras vézes, requer urna hbra ou mais de ex
pectativa; em algumas ocasiSes, a substancia já está derretida
quando comega a ser exposta. Acontece também, embora rara
mente, que nao se dé a aguardada liquefagáo.

Assim, em íuncáo celebrada a 1» de Janeiro de 1662, a fusáo se deu


logo que a reliquia foi colocada sobre o altar. Ao contrario, na presenca
de Filipe V (18 de abril de 1702) a espera íoi de quase tres horas...
Em maio de 1678, no primeiro e no terceiro dia, nao houve demora, ao
passo que no segundo dia foi preciso esperar cérea de dez horas.

3) Ao liquefazer-se, a substancia da ampola maior varia


de volume, massa e peso, embora o recipiente esteja hermética
mente fechado e nao possa receber acréscimo de substancia
de fora. ,
Verifica-se, com efeito, um aumento de 30 cm3 (ou seja, a.
reduplicagáo) do volume do líquido, cujo nivel sobe de 3 cm na
ampola. Táo notáveís diferengas certamente nao se explicam por
dílatagáo do sangue devida ao aumento de temperatura; sao dife
rengas desproporcionáis. — O aumento de massa e.péso foi ava-
liado pelo Prof. G. Sperindeo, que, usando de instrumentos de
precisáo em experiencias diligentes, conseguiu averiguar os se-
guintes dados: o relicario com a ampola cheia chega a pesar
1,0149 kg, ao passo que pesa 0,9871 kg em condigóes normáis,
quando o recipiente só contém metade do volume de sangue.
É no mes de maio que se dá o aumento de volume assim
descrito. No mes de setembro, registra-se diminuicáo do mesmo.
De fato, quando no dia 19 de setembro se faz a exposigáo da reli
quia, costuma haver liquefagáo do sangue; éste.entáo, que enche
a ampola como no mes de maio, comega a baixar de nivel, che-
gando a menos do volume normal (30 cm8); a diminuigáo pode

— 49 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 1
>

estar completa ao cabo de cinco ou seis minutos, como também


se pode ir processando lentamente no decorrer de um dia inteiro
ou dos oito días de festa. Há casos raros em que a substancia,
depois de diminuir de volume nos primeiros diás, torna a aumen
tar no fim da oitava.

5. Os dentistas tém indagado se a substancia sujeita a tais


transformagóes é verdadeiramente sangue humano. Báseados
ñas experiencias de Sperindeo (26/IX/1902), freqüentemente
repetidas pelo Prof. R. Januario (catedrático de Química da
Universidade de Ñapóles), respondem afirmativamente : a subs
tancia foi, sim, sujeita á análise espectral; apareceu sntáo no
espectro depois da linha D (de Fraunhofer), urna banda escura
sobre fundo amarelo, seguida de outra banda sobre fundo verde,
ficando entre ambas urna zona clara, como se dá realmente
quando se trata de sangue humano.

Os resultados do exame íoram confirmados pelas pesquisas do


Prof. P. Silva, que, em 1904 durante oito días consecutivos, comparou
a substancia milagrosa com urna porcáo de sangue de boi colocado ñas
mesmas circunstancias que as da reliquia; idénticas reacSes levaram-no
a afirmar que no relicario há sangue auténtico.

Até o inicio do século presente a liquefagáo do sangue em


Ñapóles já fie havia produzido seguramente mais de 10.000 vézes
no decorrer de cinco séculos e pouco (desde 1389, data da pri-
nieira narrativa escrita do prodigio). Até os nossos dias continua
a ser observada ñas circunstancias descritas. O fenómeno nao
deixa de ser intrigante aos olhos da ciencia; sabe-se que o san
gue coagulado nao volta ao estado líquido em circunstancias
normáis. Submetido, sim, á influencia de certos réagentes quí
micos, pode liquefazer-se; mas geralmente só se liquefaz urna
vez, pois tais reagentes o decompóem, nao permitindo que se
coagule de novo na temperatura ordinaria para, a seguir, lique
fazer-se segunda vez. Na base destas consideragóes, surge espoa-
táneamente a questáo:

2. Tratar-se-á de auténtico milagro?

1. Os estudiosos, mesmo católicos, aplicando os recursos


da ciencia e da critica modernas, tém procurado dar explica-
gáo natural ao estranho fenómeno. Eis as principáis hipóteses
até hoje propostas:

1) Farsa, troque ou fraude.


É esta a explicacáo mais simplória ou gratuita, por isto também a
que mais fácilmente se refuta. Com. éfelto; supSe que durante mais de

■•— 50 —'
O MILAGRE DE SAO JANUARIO

cinco sáculos (isto é, desde 1389, no mínimo) se haja conservado o se-


grédo do truque, sem que algo até hoje tenha transparecido. Tal pres-
suposto seria, como diz Alexandre Dumas, mals milagroso do que o
prcprio milagre. Ademáis as circunstancias públicas e patentes em que
se verifica o portento, sob os olhares curiosos e críticos de multidoes,
tornam muito pouco plausivel a hipótese da fraude ou da farsa.

2) Efeito metapsíquico.

O fenómeno dever-se-ia a um residuo, ñas ampolas, do fluido vital


da pessoa a quem o sangue pertencia... ou á intensa concentragáo do
pensamento ou dos desejos das pessoas que assistem ao portento.
Tais hipóteses sao demasiado vagas ou inconsistentes para merecer
seria consideracáo da parte do estudioso.

3) Efeito físico.

Consoante alguns autores, tratar-se-ia de mero resultado


do calor acumulado no templo pela multidáo posta em presenga
da reliquia...; conforme outros, tratar-se-ia de um efeito do
vapor de agua produzido pelo comparecimentb de tanta
gente..., ou ainda de conseqüéncias fototrópicas e higroscópicas
devidas a passagem da reliquia da escuridáo do seu tabernáculo
habitual para a plena luz do templo sagrado...
Há também quem lembre, com certo ceticismo, que na Italia
meridional se contam outros casos de sangue que se liquefaz
(tais seriam, por exemplo, o sangue de Sao Joáo Batista, o de
S. Estéváo, o de Sao Lourenc.0...). Já que estes outros casos
sao de autenticidade muito duvidosa, nao se poderia ou deveria
admitir o mesmo no tocante ao sangue de Sao Januário?
Num juízo objetivo, porém, deve-se reconhecer que nenhu-
ma das hipóteses racionáis até hoje propostas é capaz dé eluci
dar plenamente o apregoado milagre do sangue liquefeito em
Ñapóles; ao contrario, cada qual dessas tentativas se ressente de
algum ponto, fraco ou vulnerável. O fenómeno continua a desa
fiar a sagacidáde dos estudiosos.

2. Contudo a crítica nao pode deixar de se deter ainda


sobre urna dificuldade : o histórico do milagre de Sao Januário
,é assaz lacunoso, como se verá abaixo. Nao seria isto indicio de
que em toda essa fenomenología há algo de léndário, algo que
nao nos permita ter certeza de que em verdade o sangue de
Sao Januário se liquefaz?
— Vejamos o que consta das fontes históricas.

A primelra noticia de «liquefacáo do sangue de Sao Januário»


deve-se a urna tradigáo meramente oral, nao suficientemente documen
tada. Esta reza que, no séc. IV (em 315?), quando se fez a traslagáo das

— 51 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 1

reliquias do santo mártir de Pozzuoli para Ñapóles, o cortejo passou


pela via Antimana; íoi entao que urna mulher chamada Eusebia se
adiantou ao encontró do bispo de Ñapóles e lhe entregou as duas am-
polas portadoras do sangue de Januário, sangue que ela mésma havia
recolhido e que... naquela ocasiáo logo se liquiíez.
Esta primeira noticia de milagre tem sido, pelos historiadores, tra
tada com reservas bem compreensiveis.

Até a Alta Idade Media nao há mais vestigio de liquefacáo


do sangue de Sao Januário ñas fontes de historiografia. Com
efeito, é sómente no séc. XIV que urna crónica siciliana, de autor
incerto, relatando os acontecimentos principáis de 1340 a 1396,
narra:

«No día seguinte (17 de agosto de 1389) teve lugar grande procis-
sao por ocasiáo do milagre que Nosso Senhor Jesús Cristo realizou, ser-
vindo-se do sangue do bem-aventurado Januário. Éste sangue, encerrado
em urna ampola, se havia tornado liquido como se naquele mesmo dia
houvesse jorrado do corpo do santo» (G de Blasis, Chronicon Siculum
incerti auctoris ab a. 1340 ad a. 1396. Napoli 1887, pág. 85).
Éste documento vem a ser particularmente significativo por referir
um prodigio ocorrido fora das datas costumeiras, sem expectativa nem
sugestionamento da massa popular; o portento relacionava-se com o
fato de que a cidade de Ñapóles voltara a gozar de um pouco de paz
após muitos anos de guerra, recebendo, em conseqüfrncia, novo abaste-
cimento de trigo depois de varios meses de penuria.

A seguir, na documentacáo registra-se um intervalo de


cérea de setenta anos até a próxima noticia de milagre. Esta é
referida por Enea Silvio Piccolomini (mais tarde Papa Pió II), o
qual residía em Ñapóles no ano de 1456, exercendo as fungóes de
embaixador da República de Florenga. Entre os acontecimentos
notorios que ele refere ter visto em Ñapóles, assinala a lique
facáo do sangue de Sao Januário, apresentando-a como prodigio
habitualmente verificado na cidade : «... mencionarei o sangue
sagrado de Sao Januário, que aparece ora como sólido, ora como
líquido, embora tenha sido derramado por amor a Cristo há mil
e duzentos anos atrás» (Aeneae Ep. Senensis, in libros A. Panor-
mitanae poetae : de dictis et factis Alphonsi regis memorabilibus
commentarius. Basileae 1538, 1. II, pág. 288s).
Depois do testemunho de Piccolomini, encontram-se, em
ordem cronológica, o do médico Angelo Catáo em 1470, o de
Pico de la Mirándola em 1500 aproximadamente, o do bem-aven
turado Ancina no séc. XVI, o do jesuíta Joáo Rho, pregador de
quaresma em Ñapóles no ano de 1643. — Mais recentemente,
merecem atencáo especial o do racionalista francés Montesquieu
em 1728; o do romancista Alexandre Dumas em 1842; o do jor-
nalista Henri Cauvain em 1856; o do químico napolitano Pietro
Punzo, diretor do Gabinete Municipal de Química em 1879.

— 52 —
O MILAGRE DE SAO JANUARIO

Em 1659, as autoridades religiosas e civis encarregadas da guarda


da reliquia resolveram lavrar a ata de cada prodigio de liquefa-
cáo do sangue de Sao Januário que doravante ocorresse. Estas atas tém
sido redigidas até os tempo's presentes, achando-se arquivadas, parte na
cápela mesma de Sao Januário, parte na prefeitura de Ñapóles; estao
franqueadas á consulta dos estudiosos.

Eis um espécimen de tais registros :

«Hoje quarta-feira 7 de maio de 1884, a reliquia do valioso sangue


íoi retirada do seu tabernáculo. O sangue estava solidificado e apre-
sentava volume muito maior do que ontem; liquefez-se ao cabo de
quinze minutos. A tardinha, após o canto das Vésperas, foi recolocado
em seu recóndito, totalmente liquefeito.

(a) Giuseppe de Sangro de' Masii. Deputado leigo. — Mastrogiu-


dice, Tesoureiro. — Giosué, Sacerdote sacristáo».

Eis o que se pode apontar como documentagáo referente ao


histórico do .portento. Reconhecer-se-áo as lacunas. Contudo
será preciso observar: o fato de nao se possuirem noticias do
fenómeno anteriores ao séc. XIV nada quer dizer contra a auten-
ticidade do prodigio tal como ele é hoje verificado. O fato de
nossos dias é, em si mesmo e por si mesmo, um fenómeno... e
fenómeno independente de precedentes históricos. Tal fenómeno,
por ser de índole física, há de ser estudado á luz da Física, e nao
a luz da historiografía. Ademáis note-se que é bem compreensí-
veJ a falta de testemunhos históricos do portento até o séc. XIV:
com efeito, nos sáculos anteriores a éste, a cabega e as ampolas
de sangue de Sao Januário ficaram encerradas em um hipogeu
(«confissáo» ou túmulo de mártir) da nave central da basílica
de Stefania em Ñapóles; nao houve ocasiáo, portante, para a rea-
lizacáo do portento.
3. Em conclusáo de quanto acaba de ser ponderado, poder-
-se-á dizer o seguinte :
Parece inegável que o prodigio da liquefagáo do sangue atri
buido a Sao Januário em Ñapóles é

um fato (se se trata de genuino sangue humano, derramado


em época remota, como tém averiguado os estudiosos, por que
nao admitir que se trata do sangue de Sao Januário mesmo,
como assevera a tradigáo?),
fato aínda em nossos días ocorrente, presenciável,
e fato nao suficientemente explicável por alguma hipótese
de índole científica, psicológica ou meramente racional.
Tratar-se-ia entáo de auténtico milagre, de mais a mais que
o portento se produz em puro contexto religioso, como resposta'
a fé reta e simples do povo de Deus? Cf. «P.R.» 59/1962, qu. 3.

— 53 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 2

As autoridades da Igreja nao se empenham por definir


o caráter milagroso do caso. O assunto nao toca o Credo; nao
pertence ao patrimonio da Revelagáo feita por Cristo e transmi
tida mediante os Apostólos. Em conseqüéncia, fica ao alvitre de
cada fiel e de cada estudioso aceitar ou nao a índole milagrosa
do fenómeno; cada qual ponderará, na honestidade de sua cons-
ciéncia, a fórga dos argumentos apresentados pro e contra á ge-
nuinidade do portento.
Nao desejamos, neste escrito, ir além desta norma de so-
briedade. Nao é nosso intento insinuar ou nao a autenticidade do
apregoado prodigio.

II. ESPIRITUALIDADE

TEU IBMAO (Rio Grande do Sul) :

2) «Haverá necessidade de direcao espiritual para o pro-


gresso na vida interior?
O assunto tem sido arduamente controvertido. Qual a mente
da Igreja a propósito?»

Por «diregáo espiritual» entende-se o auxilio que alguém —


geralmente um sacerdote — proporciona a outra pessoa a fim de
a fazer progredir na vida de uniáo com Deus.

A direcáo própriamente dita supSe certa continuidade; conselhos


esporádicos nao merecem tal designagáo. — Também nao basta a sim
ples coníissáo sacramental leita asslduamente ao mesmo sacerdote; em-
bora a direcáo seja íreqüentemente dada no coníessionário, sup5e, da
parte do dirigido, mais do que a acusacáo dos pecados : o dirigido abre,
p.or completo, a alma ao diretor, manifestando-lhe suas tendencias posi
tivas e negativas, suas diliculdades e aspiracOes; em troca, espera re-
ceber as luzes e os incentivos que o encaminhem para mais elevada
santidade.

Por muito oportuno que pareca éste instrumento de perfei-


cáo, tém-se levantado dúvidas sobre o seu verdadeiro valor. Exa
minaremos, pois, qual a mente da Igreja a propósito.

1. Necessária ou nao?

Há quem duvide da utilidade da direcáo espiritual, apoian-


do-se nos seguintes argumentos :
a) Tal prática pode concorrer para criar ou entreter ñas
almas hábitos infantis ou mesmo deformados, os quais desfigu-
ram, em vez de nobilitar, a personalidade.

— 54 —
NECESSIDADE DE DIRECAO ESPIRITUAL?

Assim, sob o pretexto de procurar direcáo espiritual, alguém se tor


naría introspectivo, tendente a chamar a atengáo para si raesmo, cora
vá complacencia e vaidade. Faria perder tempo ao diretor espiritual,
ocupando-o com bagatelas e questóes secundarias, que só se tornam
«problemas» porque se lhes dá atencáo.

b) A diregáo pode degenerar em urna especie de urania


por parte do diretor. Caso éste seja dotado de vontade prepo
tente, intervirá com autoridade em assuntos que nao sao da sua
aleada, sufocando a liberdade e a iniciativa do dirigido; poderá
mesmo prejudicar a agáo do Espirito Santo ñas almas, efeito
éste totalmente contrario ao que visa a direcáo espiritual.
Ponderando, portante, tais inconvenientes, certos autores
desaconselham a direcáo espiritual.
Tal conclusáo negativa, porém, nao corresponde a mente da
Santa Igreja. Esta julga, de um lado, que os perigos apontados
podem ser devidamente removidos e que, de outro lado, os bene
ficios resultantes da directo espiritual anda sao muito mais pon
derosos do que os riscos enunciados. É o qué se verá no pará
grafo abaixo.

2. «Sim!... Porque...»

1. Quais seriam entáo os argumentos valorizados pelo ma


gisterio da Igreja em favor da diregáo espiritual?
— Ei-los em poucas palavras :
1) O testemunho da Sagrada Escritura.
A Biblia mostra que urna das grandes características do
proceder divino é «guiar os homens mediante os homens»; assim
Javé confiou seu povo, no Antigo Testamento, a Moisés e aos
profetas. A Heli Ele entregou a tutela de Samuel, e a éste a dire
cáo do rei Saúl.

Tomando carne humana, o Filho de Deus tratou de maneira hu


mana com aqueles que o interpelaram, propondo a cada qual a orieñ-
tacjto no respectivo caso; assim fez a Nicodemos, & Samaritana, ao
jovem rico, a Natanael e aos Apostólos em geral. Conhecia suas ovelhas
de per si, «chamando cada qual pelo nome» (cf. Jo 10,3), «discernindo o
que há dentro do homem» (cf. Jo 2,25).
É principalmente nos inicios da historia da Igreja que se manifesta
como a Providencia se serve do instrumento dos homens; mandou, sim,
Paulo recém-convertido ter com Ananias para receber as ordens de
Deus; mandou Sao Pedro & casa do centuriáo Cornélio, a íim de intro-
duzir a éste e'a sua familia na comunháo dos fiéis; enviou, com o mes*
mo objetivo, o diácono Filipe ao encontró do eunuco da Etiopia. Sao
Paulo, por fim deixou cartas «pastorais» a Timoteo e a Tito, além do
bilhete a Filénion, que bem podem ser equiparados a escritos de direcáo
espiritual. . '

— 55 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»» 62/1963, qu. 2

Estes poucos tragos bíblicos insinuam quanto é consentáneo com o


processo de santificado das almas o regime da direcao espiritual.

Ao ensinamento da Escritura Sagrada associa-se

b) O testemunho dos Sumos Pontífices.

a1) O documento mais importante a tal propósito fica


sendo a carta «Testem benevolentiae» do S. Padre Leáo XEtt ao
Cardeal Gibbons (22 de Janeiro de 1899). O Pontífice ai tratara
do Americanismo, tendencia naturalista que, negando o valor
da obediencia, exaltava urna pretensa docilidade «as inspiraeóes
interiores do Espirito Santo», com menosprézo dos conselhos de
um diretor espiritual. Observava entáo o S. Padre :

«Rejeitam (os modernos) toda direcáo espiritual, como se fósse


supérflua e quase inútil para quem quer tender á perfeicáo crista; o
Espirito Santo, dizem, derrama hoje em día ñas almas fiéis dons ainda
mais ricos e abundantes do que outrora; Ele as ilumina e dirige,, sem
intermediario, por urna especie de instinto secreto. Ora seria assaz
temerario querer fixar os limites das comunicacóes de Deus com os
homens...
Firme esta verdade, nao há quem negué que o Espirito Santo tra-
balha ñas almas justas de maneira misteriosa e as estimula com as
suas inspiracdes e os seus impulsos; se assim nao fósse, todo auxilio e
todo magisterio extrínsecos ficariam vaos... Mas (é a experiencia
mesnia quem nó-lo ensina) essas advertencias e moc5es do Espirito
Santo, na maioria dos casos, sao percebidas mediante o auxilio e o pre
paro oferecidos pelo magisterio extrínseco... A leí geral da Providencia
dispós que os homens fóssem, via de regra, salvos por outros homens
e que também os que Ela chama a mais elevado grau de santidade,
fdssem guiados por outros homens até ésse termo... É preciso conside
rar outrossim que aqueles que tendem a maior perfeicáo, pelo fato
mesmo de enveredaren! por via desconhecida á maioria das almas,
estáo mais expostos a se engañar e, em conseqüéncia, mais do que os
outros necessitam de mestre e guia.
Estas idéias tém norteado constantemente a praxe dos cristaos;
tém sido unánimemente professadas por todos os que, no decorrer dos
séculos, vém brilhando pela ciencia e a santidade, de tal modo que
ninguém as poderla rejeitar sem incorrer em temeridade e perigo»
(Acta Sanctae Sedis 31, 474s).
A guisa de breve comentario, pode-se observar que a direcáo espi
ritual, neste texto, é apresentada
como algo de tradicional na Igreja;
como necessidade decorrente da inexperiencia das almas chamadas
a santificacáo e á perfeicáo sobrenaturais (e — note-se bem — nao há
quem nao se deva julgar chamado á santidade e á perfeicáo: «Sede
perfeitos como o Pai celeste é pérfeito, diz a todos os homens o Senhor
Jesús em Mt 5,48).

Seria, sim, temerario quem presumisse reconhecer com exa-


tidáo os seus diversos estados de alma, de modo a dispensar as

— 56 —
: NECESSIDADE DE DIRECAO ESPIRITUAL ?

luzes de um mestre familiarizado com as vias de Deus. Quantos


e quantos nao se tém engañado a respeito dos fenómenos que se
dáo em sua vida espiritual, confundindo reagóes nervosas com
visees e profecías, cedendo á soberba e á auto-suficiéncia, como
se já estivessem muito adiantados, etc.! Perdem tempo, esbah-
jam a graga de Deus, tornando-se muitas vézes vítimas de
Satanaz...

b') Após Leáo XIII, o Papa Pió XII recomendou eloqüen-


temente a diregáo espiritual, levando de novo em conta a men-
talidade moderna e as objegóes levantadas por nossos contem
poráneos contra tal prática. Eis o que escrevia S. Santidade na
exortagáo «Mentí Nostrae», expondo o valor da diregáo para os
próprios seminaristas e sacerdotes :

«Entrando na vida espiritual e caminhando por ela, nao confiéis


demais em vos mesmos, mas com humildade e simplicidade aceitai os
conselhos e pedi o auxilio daqueles que, com sabia discricáo, vos podem
guiar e de antemáo anunciar os perigos que vos ameaeam, indicando-vos
outrossim os remedios adequados; em todas as dificuldadés interiores
e exteriores, éles estarao habilitados a vos orientar com retidlo e pro
pósito, e a vos dirigir ao encalco de urna santidade cada vez mais su
blime, santidade para a qual vos convidam e chamam os exemplos dos
santos e os ensinamentos abalizados dos mestres da ascese crista. Com
efeito, sem ésses prudentes diretores de consciéncia, é muito dificil cor
responder devidamente ás inspirag5es do Espirito Santo e da graca
divina» (Acta Apostolicae Sedis 42 [1950] 674).
Adiante no mesmo documento S. Santidade estimulava também os
diretores espirituais:
«Desejamos dirigir a nossa exortacño paterna de modo particular
aos sacerdotes que, com humildade e ardente caridade, se esforcam pela
santificacáo de seus irmáos a titulo de conselheiros, cónfessores ou di
retores espirituais. O bem incalculável que éles fazem á Igreja, perma
nece, na maioria dos casos, oculto; será manifestó, porém, jio grande
dia, na gloria do reino de Deus. Há poucos anos, e com grande alegría,
concedemos as supremas honras do altar ao sacerdote de Turim José
Cafasso, o qual em tempos muito dificeis foi o guia espiritual, sabio e,
ao mesmo tempo, santo, de numerosos sacerdotes, sacerdotes que ele
fez progredir na virtude e cujo santo ministerio ele tornou maravilho-
sámente fecundo; com plena confianca esperamos que, pelo poderoso
patrocinio de tal santo, nosso Divino Redentor suscite numerosos sacer
dotes dotados de igual santidade, os quais saberáo guiar a si mesmos
e dirigir seus irmáos para tal perfeicáo de vida que os fiéis, admirando
seus exemplos, se sintam estimulados a imitá-los com generosidades
(Acta Apostolicae Sedis ib. 681).

As palavras de Leáo XIH e Pió XII podem ser tidas como a


resposta que a S. Igreja dá la questáo : é recomendável ou nao.
a diregáo espiritual? O elevado valor que os Sumos Pontífices
atribuem a esta, toma-se tanto maior quanto mais elevado é o
grau de perfeigáo a que urna alma se destina. E, já que ninguém

— 57 —
«PERGUNTE E RESP0NDEREMOS> 62/1963, qu. 2

pode contentar-se com a médiocridade ou deixar de aspirar á


santidade (nao há meio-térmo entre «querer ser santo» e «dei-
xar-se ficar no pecado»; quem nao aspira diretamente á santi
dade, recua na vida espiritual e fácilmente cai no pecado), de-
duz-se que todas as almas hao de estimar grandemente a diregáo
ministrada por um mestre perito: sacerdotes, religiosos e reli
giosas, assim como leigos e seculares, sao assim exortados pela
suprema autoridade da Igreja a que, na medida do nécessário e
do possível, procurem a orientagáo de um diretor espiritual,
principalmente ñas grandes encruzilhadas e opgóes da vida.

2. A necessidade de diregáo pode variar de acordó com as diversas


fases de vida de cada um dos interessados; há, sem dúvida, épocas que
mais a exigem (assim os inicios da vida espiritual, os da vida claustral
regular, os períodos de gracas divinas mais esmeradas, ás quais é pre
ciso dar maior atengáo..., os de tentagñes especiáis..., tribulag8es e
provagóes...); em outras fases poder-se-á admitir diregao mais espa
gada e pálida. — Saiba-se, porém, que a diregáo nao é, de um lado, urna
excecáo ou um recurso extraordinario nem, de outro lado, um meio do
necessidade constante e equiforme para todas as pessoas e todas as
épocas. Ela é, sim, um nécessário canal de santificacSo.

Podem-se apontar alguns tipos de personalidade. para os


quais se faz mais premente a necessidade de diregáo :

as pessoas dadas á escrupulosidades


as pessoas de temperamento fogoso, que fácilmente se deixam
levar aos extremos;
as almas que o Senhor chama de modo especial á vida de uniao e
que precisam de ser tranquilizadas, principalmente nos períodos de pro-
vagSes dolorosas.

3. Poder-se-ia asseverar que alguém, pelo fato de nao pro


curar receber diregao espiritual, comete pecado? — É preciso
responder que nao. A pecaminosidade da omissáo há de ser
avaliada á luz das circunstancias próprias e dos problemas de
cada pessoa; o criterio para se dizer se há pecado ou nao (e, no
primeiro caso, se há pecado grave ou leve) é o risco de esbanjar
a graga de Deus e frustrar o. ideal sobrenatural, risco a que
alguém se sujeita quando se quer guiar por si mesmo. Pode
haver períodos de vida mais ou menos longos em que nao surjam
grandes problemas religiosos; nessas fases entende-se que al
guém nao procure diretor espiritual. Pode haver também perío
dos atribulados, sim, por problemas espirituais, periodos, porém,
nos quais o Senhor Deus nao suscita a pessoa do diretor espiri
tual adequado para tal alma (nao qualquer diretor é idóneo para
qualquer alma, como se dirá adiante); nesses casos a ausencia de
diregáo espiritual nao constituí pecado. Só se pode falar de culpa

— 58 —
NECESSIDADE DE DIRECAO ESPIRITUAL?

em tal setor, na medida em que há, por parte das almas, negli
gencia ou descaso da perfeigáo espiritual.
As normas ácima se tornam ainda mais dignas de pondera»
gao desde que se leve em conta a advertencia do Pe. Godinez :

«Dentre mil pessoas que Deus chama á perfeigao, dez apenas lhe
correspondem; e, dentre cem que Deus chama á contemplagáo, noventa
e nove frustram o convite... É preciso reconhecer que urna das causas
principáis désse estado de coisas é a falta de mestres espirituais...
Estes sao, depois da graca de Deus, os pilotos que guiam as almas
através do desconhecido mar da vida espiritual. E, se nenhuma ciencia,
nenhuma arte, por simples que seja, pode ser aprendida sem mestre,
muito menos se pode aprender sem mestre a elevada sabedoria da per
feigáo evangélica, na qual se encontram táo profundos misterios...>
(Awisi e Sentenze Spirituali: Del Maestro splrituale).

4. Em conclusáo pode-se dizer que a vía normal para se


fazerem progressos na vida espiritual consiste em seguir os con-
selhos de sabio diretor. Fora dos casos normáis, existem os ex-
cecionais e extraordinarios, também regidos pela Providencia
Divina, casos, porém, que nao se podem tomar como padráo.

Se nao fór dado a urna alma encontrar o diretor oportuno, nao


desista de o procurar; antes do mais, ore para que Deus o suscite. En-
quanto a Providencia nao lho apresenta, saiba que nem por Lsto sua
vida espiritual está condenada á estagnacáó e perplexidade; nao há fase
alguma neutra ou destituida da grasa necessária para que as almas
bem intencionadas se santifiquen! cada día mais. Na falta, portanto, de
um diretor, a alma sincera procurará tirar o máximo proveitó dos meios
de santificacáo que lhe estejam & disposigáo : os sacramentos, a leitura
do S. Evangelho, da S. Escritura e de iivros de doutrina segura; a ora-
cáo praticada de acordó com as inspiragóes do Espirito Santo... O
Senhor Deus dispensa os tésouros de sua graca como quer, mas é
corto que os dispensa sempre; valorize, pois, cada alma os instrumentos
de santificacáo que estáo ao seu alcance em cada momento, e nao es
tará perdendo tempo.

Poder-se-ia ainda citar longa serie de documentos de Papas,


concilios ou autoridades eclesiásticas que muito recomendam a
direcáo espiritual. Bastam, porém, os que foram aquí transcritos
para nao deixar dúvida sobre a mente da Igreja no tocante a
tal assunto.

Inégávelmente, será sempre necessário levar em. conta os perigos


de abuso apontados pelos adversarios da diregño espiritual. As perdas
de tempo, a introspecgáo mórbida, a vaidade... poderao ser evitadas
pela observancia das normas a ser enunciadas na resposta n' 3 déste
fascículo.
Quanto ao perigo de prepotencia por parte do diretor, será superado
nao sámente pela fidelidad? a essas mesmas normas, mas também por
urna tomada de posicáo esclarecida diante da questáo abaixo:

— 59 —
¿PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 2

3. Voto de obediencia ao diretor?

1. Antes do mais, considere-se que a diregáo espiritual


pertence á esfera da orientacSo e dos conselhos, nao á dos man-
damentos; portante os alvitres do diretor nao se impóem, nem se
podem impor, como preceitos; a violagáo désses alvitres em si
nao é pecado; so se tornaría pecado, caso a materia violada fósse
materia de pecado ou caso o transgressor as violasse com des-
prézo formal do bem.
Em outros termos: o diretor nao é por si o superior do dirigido;
sobre éste ele nao possui poder de jurisdicáo; por conseguinte nao deve
tratar o dirigido como um súdito, ao qual ele possa dar ordens sem
apresentar razfies (é claro, porém, que há casos nos quais nao convém
que o diretor dé explicares ao dirigido).
O diretor há de ser tido, antes, como um conselheiro, cuja autori-
dade Ihe vem tdda da livre escolha feita pela alma dirigida. — As rela-
c5es entre diretor e dirigido se desenvolvem num clima de liberdade; ao
executar as normas dadas pelo diretor, o dirigido fica sendo responsá-
vel pelos atos que ele assim pratica.
O diretor também nao é o senhor despótico das almas, habilitado a
guiá-las como quelra; é, sim, mero instrumento do Espirito Santo, con-
sisündo o seu papel apenas em ajudar o dirigido a discernir os desig
nios do Espirito de Deus.

Contudo acontece que, a exemplo de alguns santos, certas


almas desejam fazer voto de obediencia ao-diretor espiritual.
Julgam que assim estaráo mais obligadas a seguir os caminhos
da perfeigáo. Será tal voto recomendável?
— Nao; em si mesmo, tal voto nao é recomendável.
As razóes da inconveniencia sao, em. grandes linhas, as se-
guintes:
a) o voto de obediencia afeta a nocáo mesma de diregáo
•espiritual. Esta se baseia num magisterio ou em relagóes de
mestre (diretor) a discípulo (dirigido); tais relagóes, suposto o
voto, passam a ser relaeóes de superior a súdito, o que fácil
mente provoca situagóes de constrangimento, situagóes bem di-.
ferentes daquelas em que a diregáo espirtual se deve desen
volver;
b) os motivos que inspiram ao dirigido a emissáo do voto
de obediencia ao diretor, podem nao ser sempre sobrenaturais :
algo de neurótico ou psicopatológico (escrupulosidade indevida,
inseguranga no agir, imaturidade...) talvez tenha sua influen
cia em mais de um.caso; o voto entretém essa situasáo neuró
tica; fecha a alma numa atitude de passividade exagerada, en-
travando o devido amadurecimento da personalidade.
Também urna ponta de erotismo ou de amor desregrado pode por
vézes sugerir o voto.

— 60 —
NECESSIDADE DE DIRECAO ESPIRITUAL?

Admitem-se, porém, situagóes excecionais em que o voto é


justificado por inclinagóes próprias e legitimas da alma do diri
gido (desejo de morrer mais inteiramente a si mesmo, por exem-
plo). Ao consentir entáo na emissáo do voto, o diretor cuidará
para que se estenda por prazo de curta duracáo e tenha mate
ria bem determinada (versará sobre tais conselhos..., proferi
dos em tais circunstancias...).
Conhecem-se casos famosos, e bem sucedidos, de voto de
obediencia ao diretor espiritual: sao, por exemplo, o de S. Te
resa de Ávila ao Pe. Graciano da Máe de Deus; o de S. Joana
Frémiot de Chantal a S. Francisco de Sales; o da ursulina María
da Encarnagáo a Raimundo de S. Bernardo e, posteriormente, a
Jerónimo Lallemant; o de Adelaide Cicé ao Pe. Pierre de Clori-
viére. Referem-se, porém, casos infelizes, como o da própria
S. Joana de Chantal, da qual narra o seu biógrafo :

«Contente por ter essa santa ovelha ñas maos, (um religioso fér
vido) resolveu ligá-la a sua direcao por quatro votos : pelo primeiro, ela
professava obedecer-lhe; pelo segundo,... jamáis mudar de diretor;
pelo terceiro,... ser-lhe fiel, guardando p segrédo a propósito de tudo
que ele lhe dissesse; pelo quarto,... só tratar da sua vida interior com
o respectivo diretor» (Fr. de Chaugy, Mémoires sur la vie et les vertus
de J. — Fr. de Chantal, lre. p., ch. 10, em «Oeuvres completes» da Santa,
t. 1. Paris 1874, pág. 44).

Quem fez o voto «do mais perfeito» (isto é, de praticar


sempre o que seja mais perfeito), obriga-se á docilidade total
para com o diretor; note-se, porém, que nao se trata, no caso, de
um voto de obedecer ao diretor, mas de tender a maior perfeicáo
mediante maior renuncia a si mesmo.
Pode alguém fazer a Deus o voto de ser dócil ao diretor es
piritual; obriga-se entáo a seguir o alvitre do diretor todas as
vézes que éste seja definitivo. Tal voto nao altera as relajees
normáis entre o dirigido e o diretor, nem liga diretamente um ao
outro.
Em conclusáo : as restrigóes feitas ao voto de obediencia ao
diretor espiritual nao sao, de modo algum, restrigóes á diregáo
como tal; visam, ao contrario, fazer que esta se desenvolva com
toda a pureza e integridade.

3) «Que se requer para que a direcao espiritual se torne


frutuosa?»

Como se compreende, a direcao espiritual frutuosa supOe certas


qualidades por parte do diretor e a fidelidade a certos deveres por parte
do dirigido. É o que vamos agora considerar.

— 61 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 3

1. Qualidadcs do diretor espiritual

S. Francisco de Sales, muito experimentado como era nesse mister,


assinalava ao diretor espiritual tres predicados indispensáveis : caridade,
ciencia e prudencia. Examinemo-los sucessivamente :

a) Caridade.

Caridade, no caso, significa «amor dedicado as almas pelo


fato de que pertencem ao Senhor e a Ele devem estar cada vez
mais unidas». A consciéncia disto ajudará o diretor a evitar ami-
zades particulares, preferencias humanas e accepgáo de pessoas.

Tal caridade deverá traduzir-se em bondade paciente e


abnegada, principalmente para

saber ouvir o dirigido,


suportar as suas fraquezas,
repetir-lhe exortagóes e conselhos,
estimular a sua indecisáo e moleza.

Doutro lado, a caridade do diretor deverá ser firme e cora


josa : nao deixe de admoestar o penitente e combater seus defei-
tos reais; evite o perigo de se deixar dirigir em vez de dirigir.

«Há pessoas muito habéis e maheirosas, que desejam um diretor


espiritual tal que se adate ás suas preíeréncias e aos seus caprichos; em
lugar de diregáo, procuram própriamente aprovacáo para o seu género
de vida> (Tanquerey, Compendio di Teología ascética e mística, 5' ed.
París 1928, 344).

De modo particular no tocante "á diregáo de pessoas do sexo


feminino, requerem-se reserva e firmeza por parte do diretor;
remova qualquer manifestagáo de familiaridade assim como
conversas supérfluas.

b) Ciencia.

Evidentemente o diretor deve possuir sólido conhecimento


dos principios e das normas da ascese e da mística cristas; para
tanto, ser-lhe-á oportuno ler e reler os grandes autores de espi-
ritualidade.
Mas nao sámente a ciencia teórica, também a ciencia prá-
tica ou a experiencia, muito favorecerlo o diretor. Ele deve
conhecer as vias de Deus pela sua própria conduta de vida, ou
seja, por sua docilidade pessoal á graga ou sua santidade (o santo
conhece Deus e as coisas de Deus por efeito de conaturalidade
ou afinidade). É S. Joáo da Cruz quem escreve :

— 62 —
PRERREQUISITOS DE DIRECAO FRUTUOSA

«Na diregáo das almas, embora a ciencia e a discricáo sirvam de


fundamento, o diretor que nao tenha experiencia daquilo que caracte
riza o puro e verdadeiro espirito, jamáis conseguirá colocar as almas
no devido caminho, para o qual Deus as atrai; nem mesmo entenderá ,
essas coisas» (Viva chama 3,3).

O diretor, portanto, há de ser homem de oragáo e de zélo;


isto lhe dará um discernimento dos designios de Deus tal que ne-
nhum estudo teórico pode comunicar.
Leve-se em conta, porém, que a diré?áo espiritual nos tem-
pos atuais é efetuada em ambientes muito influenciados pela
ciencia e a técnica modernas. — Ciencia e técnica póem a dispo-
sigáo do diretor um conjunto de recursos novos e preciosos para
conhecer o respectivo dirigido, sondar a sua alma, discernir os
seus intentos e impulsos semiconscientes. A psicología contem
poránea, distinguindo melhor as finuras da alma humana, indica
urna serie de fatóres que explicam os vicios e as propensóes dos
individuos, permitindo remediar-lhes com mais acertó.

O diretor tem a obrigacSo de conhecer adequadamente o dirigido;


para o conseguir, nao lhe basta ouvir a éste, pois é obvio que o discí
pulo, apesar de toda a sua sinceridade, só lhe dirá o que lhe aflora á
consciéncia. Ao conselheiro espiritual iica a tarefa de trazer á tona o
subconsciente (na medida em que isto seja necessário ao bem do diri
gido, guardadas sempre a reserva e a reverencia que urna personalidade
humana possa exigir para si); procurará, porlanto, observar discreta
mente a conduta do discípulo, a.°sim como informar-se a seu respeito
junto a testemunhas fidedignas (sem dar crédito ¡mediato e simplório
a todo e qualquer julgamento).
Em particular, deverá o diretor saber avaliar o que é própriamente
religioso e o que é fenómeno psicológico ou fisiológico ñas diversas si-
tuacScs em-que os penitentes se achem. Percebendo a conveniencia ou
a necessidade da colaboragáo de um médico ou psicólogo, nao hesite em
pedi-la ou em enviar o penitente á consulta de um bom especialista
leigo ou de outro sacerdote conhecedor profundo das ciencias profanas.
NSo seria desejável que o sacerdote se improvisasse em médico.
Trate, porém, o sacerdote de escolher bem o médico ao qual ele pedirá
cooperacáo; seja éste dotado nao sdmente de ciencia, mas também de
integra consciéncia crista; é perigosa a intervengáo de especialistas pro
fanos que nao tenham nocóes filosóficas e éticas devidamente esclare
cidas.
A consideracáo dos íatóres psicológicos e somáticos que influem
ñas situacóes das almas (mesmo das que mais se procuram emancipar
da natureza desregrada), nao quer dizer que o sacerdote desconhega a
acao da graga sobrenatural e o poder que esta tem, de superar vicios
e pecados; muito menos quer dizer que o sacerdote reduza os proces-
sos de alma a embates de fatóres naturais eróticos, conscientes e incons
cientes á semelhanga do que faz o freudismo. Existe, sim, o pecado e
a culpa moral; mas também existem os estados patológicos e os dese
quilibrios mentáis, ora mais, ora menas isentos de culpa. Ao diretor
compete procurar discernir isto com fidelidade.

— 63 —
<tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 3

Apraz citar aqui as observares de um dos livros mais modernos e


abalizados sobre o assunto :

«A Santa Sé determinou recentemente que os sacerdotes que se de-


dicam á teología pastoral, tivessem mais um ano de estudos e sugeriu
que se incluissem nesse ano palestras sdbre psicología pastoral. Isto
p5e mais urna vez em "evidencia que a Igreja admite oficialmente a ne-
cessidade de alguns conhecimentos de psicología no sacerdote e sublinha
também que é de desejar a colaboracáo entre o sacerdote e o psicólogo.
O sacerdote deve p6r de lado certos preconceitos contra a psicología e
aproximar-se do psicólogo com respeito. É evidente que tal respeito nao
pode existir, se o sacerdote nao compreender o que o psicólogo pretende
iazer. É táo corrente hoje em dia remeter para o psiquiatra as pessoas
perturbadas que o sacerdote deve compreender os limites da própria
competencia neste campo e nao julgar que pode curar urna enfermidade
mental exclusivamente com meios sobrenaturais.
Por outro lado, o psicólogo tem de reconhecer que o pecado per-
tence mais aos dominios do sacerdote e do teólogo do que do psiquiatra.
Tratando-se de problemas ou dificuldades essencialmente moráis, deve
colaborar com o diretor espiritual ou religioso do doente. O sacerdote
tem á sua disposic&o meios sobrenaturais, dos quais pode lancar mao
para ajudar o penitente a equilibrar melhor a sua vida religiosa e espi
ritual. Ele sabe, no entanto, por experiencia própria, que há casos táo
obstinados que náp cedemde forma alguma perante os meios sobrena
turais que lhes venha a aplicar. A situacáo é, por vézes, táo complicada
que o penitente é, ao mesmo tempo, pecador e neurótico ou psicópata
e necessita tanto dos cuidados do sacerdote como dos do psiquiatra»
(G. Hagmaier e R. W. Gleason, Novas orientacoes de psicología pastoral.
Lisboa 1962, pág. 329 s).

Além disto, note-se que o próprio dirigido se vé obrigado a


tomar posisio diante de movimentos e campanhas inéditos, suge
ridos por correntes filosóficas novas. Em conseqüéncia, enten-
de-se a importancia crescente que, para a diregáo das almas, vai
assumindo o conhecimento de certas ciencias, técnicas e reali-
zacóes da época contemporánea. O bom diretor nao se pode fur-
tar á consideracáo de tais elementos profanos de modo a se ha
bilitar a julgá-los devidamente e daí deduzir normas oportunas
para a conduta de seus dirigidos.

c) Prudencia.

Por «prudencia» entende-se aqui, entre outras coisas, o cui


dado do diretor para guiar as almas nao segundo o seu modo de
ver pessoal e subjetivo, mas de acordó com as mogóes da grasa,
com as inclinagóes sobrenaturais e com o temperamento do pe
nitente.

O diretor esteja convicto de que é mero instrumento do Espirito


Santo; por isto procure superar a si mesmo e colocar-se continuamente
sob o impulso do Autor principal da santificacáo das almas.

R4
PRERREQUISITOS DE DIRECAO FRUTUOSA

Isto quer dizer, com outras palavras, que o diretor será


muito beneficiado no desempenho de sua missáo, se souber ser
humilde; lembre-se de que está a servigo das almas, como está a
servigo do Senhor. Sua tarefa lhe poderá impor atos de verda-
deira renuncia, a fim de que o seu «eu» nao se projete indevida-
mente aos olhos do dirigido. A humildade preservá-lo-á outros-
sim de ser obstinado nos seus pareceres, levando-o a reconhecer
possíveis falhas suas-e a corrigi-las.
Na prática, a prudencia deverá ditar as circunstancias mes-
mas de direcáo : o conselheiro espiritual procurará só consagrar
á tarefa de diregáo o tempo necessário,, evitando conversas su-
pérfluas, gracejos pouco oportunos, perguntas indiscretas; suas
normas seráo, na medida do possível, precisas e claramente ex
postas. Evitará que os dirigidos, por ocasiáo da abertura decons-
ciéncia, caiám em particulares inúteis (que seriam fomento de
instrospecgáo doentia ou de vaidade); tenderá a fazer que os
seus discípulos, com o tempo, possam resolver as dificuldades
ordinarias da vida espiritual por si mesmos, aplicando os princi
pios gerais incutidos pelo diretor ñas entrevistas respectivas.
Está claro que estas observagoes nao visam impedir que o
diretor espiritual seja paciente e saiba adatar-se as necessidades
dos dirigidos tais como éles vém ao seu encontró.

2.. Deveres da pessoá dirigida


Tais ohrigacSes podem resumir-se em espirito de fé, sinceridade. con
fiante e docilidade.

a) Espirito de fé.

A alma dirigida deverá procurar ver em seu diretor o pró-


prio Senbor Jesús. Se toda autoridade vem de Deus (cf.. Rom
13,1), parece que de modo especial se deve dizer isto a propó
sito da autoridade que o Senhor Deus coloca no caminho de umá
alma a fim de a guiar para o Fim Supremo; tal autoridade deve
gozar da assisténcia de urna graga de estado particularmente
eficaz.
Note-se, porém, que «exercer espirito de fé» nao *quer
dizer que a alma aceite de olhos fechados toda e qualquer suges-
táo do seu diretor. «Espirito de fé» significa atitude ¿aseada na
fé ou em verdades sobrenaturais, atitude, porém, que nao extin
gue p exercício da razáo e do bom senso. A alma dirigida, por-
tanto, compete procurar seguir o alvitre do diretor de maneira
consciente e inteligente; apenas se requer que ela se inspire
sempre de urna visáo sobrenatural da realidade ao avaliar a
orientagáo récebida do diretor.

— 65 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 62/1963, qu. 3

O espirito de fé levará o discípulo a evitar criticas ao pai espiritual.


Embora éste possa ter suas falhas, raramente haverá vantagem em
deter ou chamar a atencáo'para elas (criticar em geral só serve para
perder o respeito e desmantelar o ideal ou o fervor das almas); mais
conveniente e construtivo será levar em conta a autoridade e a missáo
do mestre espiritual.
O mesmo espirito de fé sugerirá; á alma que se acautele contra ex-
cessiva familiaridade com o superior, pois nessa familiaridade em geral
se dilui o respeito:

b) Sinceridade confiante.

Como se compreende, a alma dirigida nao deve guardar se-


gredos para com o diretor no tocante -á sua vida espiritual, pois
o pressuposto básico de urna direcáo frutuosa é o exato conheci-
mento de causa por parte do mestre. O discípulo, por conse-
guinte, revelar-lhe-á suas tendencias boas e más, os grandes tra
gos da sua vida passada, seus escrúpulos, suas tentagóes, a ma-
neira como tiver utilizado os conselhos recebidqs, os progressos
que julgue poder registrar, assim como as infidelidades come
tidas.
Tal franqueza nao se pratica com facilidade, pois o amor
próprio, mortificado por tais confidencias, tende sempre a revi-
ver; muitas vézes impede a criatura humana de se considerar
tal como ela é. Ao mesmo tempo que o dirigido revela suas
falhas, o amor próprio pode levá-lo a apresentar a situagáo de
modo que ao diretor espiritual o discípulo acabe parecendo hu
milde e virtuoso, e nao culpado ou pecador. Um tal desvio da
veracidade nao sómente frustra a direjáo espiritual, mas pode
torná-la errónea e nociva.

Há pessoas tímidas que desejariam, sim, ser plenamente abertas


para com o diretor, mas se sentem inibidas quando se trata de manifes
tar o seu intimo. Que faráo? — Revelem essa dificuldade mesma ao pai
espiritual, ¿ste as ajudará, interrogando-as oportunamente; teráo assim
rompido o formalismo ou o gélo das relacOes mutuas, fazendo que dora-
vante o intercambio se torne mais espontaneo.

c) Docilidade.

Como já foi dito, a atitude do dirigido para com o diretor


nao é a de súdito para com o chefe. Isto nao quer dizer que o
dirigido nao esteja, de certo modo, obrigado a fazer caso das
normas recebidas. Quem pede orientagáo, pretende naturalmente
levá-la em conta; quem procura um guia, lógicamente dispóe-se
a segui-lo. Principalmente quando visto á luz da fé, deve-se dizer
que o'diretor espiritual (embora nao seja infal.vel) corre menos
risco de se engañar do que o respectivo discípulo.

— 66 —
■ PRERREQUISITOS DE DIRECAO FRUTUOSA

Bem se vé guanto seña indigno, da parte do dirigido, querer,


mediante artificios, conquistar o diretor para a sua opiniáo, fa-
zendo que o mestre diga aquilo que o discípulo deseja, Táo astuto
procedimento seria altamente nocivo á alma do considérate, pois
esta estaría entáo procurando nao a vontade de Deus, mas a sua
própria vontade, com a agravante de abusar da graca divina
para conseguir fins egoístas. O único anelo do dirigido há de ser
o de cumprir a vontade de Deus por meió do diretor espiritual,
ficando excluida toda extorsáo de parecer ou toda artimanha
para obter alguma aprovagáo ilícita. Será possível engañar o
diretor espiritual; nunca, porém,... iludir a Deus.
Nao há dúvida, o discípulo conserva sempre o direito (por
vézes, até o dever) de comunicar ao pal espiritual as dificuldades
que ele experimente para obedecer a tal ou tal norma; feito isto,
porém, deverá submeter-se á última palavra do diretor espiri
tual; nao se poderá julgar autorizado a recusar um conselho pelo
simples motivo de que cusía conformar-se a ele. É certo que o
pai se pode engañar no seu modo de ver; mas nao é menos certo
que nao se engaña quem, cheio de fé e de amor a Cristo, lhe
obedece mesmo em tal caso (a nao ser que o diretor esteja reco
mendando algo de pecaminoso).
O que acaba de ser dito, completar-se-á no parágrafo
abaixo.

3. Questoes ulteriores

O assunto, complexo como é, oferece ainda alguns aspectos de im


portancia, que vito aqui considerados.

a) Mudar de diretor?

Para que a dire^áo seja eficaz, faz-se necessária a continui-


dade; sem esta, pouco ou nada adianta.
Pode acontecer, contudo, que o diretor espiritual nao seja,
ou deixe de ser, feliz e oportuno na sua orientacáo; nao com-
preende devidamente o dirigido, de modo que a éste acarreta en-
traves mais do que vantagens espirituais. Caso tal situagáo se
prolongue e, na verdade, nao se deva a tibieza ou á má vontade
do discípulo, éste tem motivo justo para mudar de diretor espiri-
tual.-Faca-o entáo, acautelando-se contra qualquer tendencia a
satisfazer a um capricho ou a um desejo de procurar'sacerdote
que aprove as suas paixóes ou a sua falta de mdrtificagáo;
deixe-se mover únicamente pela intengáo de encontrar o auxilio
apropriádo para a sua santificacáo.

Tanquerey enumera diversos motivos insuficientes ou mesmo con-


denáveis pelos quais os fiéis sao por vézes levados a mudar de diretor

— 67 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 3

espiritual ou de confessor; será mendoná-los aqui, a fim de melhor se


discernirem as boas e as más intengñes neste setor :
a) curiosidade: o cristao deseja fútilmente saber como se compor
taría outro sacerdote no seu caso; de resto, ele está, consciente ou in
conscientemente, cansado de ouvir os mesmos conselhos, mormente se
dizem respeito a tarefas arduas;
b) inconstancia: a natureza humana é sempre, em grau maior
ou menor, sequiosa de novidades; custa-lhe sustentar por multo tempo
o mesmo trámite;
c) vaidade: o discípulo deseja estar sob o diretor de maior no-
meada no momento por causa da própria fama;
d) falso acanhamento: a pessoa nao quer referir ao mesmo guia
certas fraquezas humilhantes;
e) tendencia egocéntrica: a alma deseja fazer de si mesma o
objeto da atencáo e dos cuidados de varios mestres ou deseja «tranqüi-
lizar-se» abusando dos prestimos de muitas pessoas abalizadas.

É claro que quem tome consciéncia de estar agindo por algum


déstes motivos, nao deve ceder á tentagáo de mudar de diretor.

Doutro lado, assim se podem enunciar as razóes plausiveis para


mudanca de guia espiritual:

a) o dirigido, apesar de todos os esforcos, nao consegue conceber,


para com o seu diretor, as tres qualidades atrás referidas (atitude de
fé, sinceridade confiante, docilidade). As vézes, nao o consegue por
motivos de temperamento do próprio dirigido (sem que nisto naja
culpa moral), embora o diretor seja em si muito idóneo e venerável;
mesmo em tais casos, o discípulo está, diante de Deus, habilitado a pro
curar outro diretor, com o qual o seu temperamento «sintonize» melhor;
b) o diretor evidentemente nao possui a caridade, a ciencia ou a
prudencia necessárias para o seu cargo. Deixa-se mesmo levar por afel-
cáo demasiado natural ou sensivel ñas suas relacfies com o dirigido.

Nao se deve admitir com facilidade que tais casos se déem.


Contudo desde que se verifique alguma situagáo dessas, o peni
tente use da sua liberdade para procurar outro diretor ou con
fessor, tendo em vista únicamente o ideal da santidade.

2) Direcáo espiritual ministrada por leigos?

O instrumento normal da diregáo espiritual é o sacerdote,


pois éste é o continuador direto da missáo pastoral de Cristo;
é ao sacerdote que compdie, por excelencia, procurar levar as
almas a Deus. Para bemTiesempenhar esta missáo, o padre é
dotado de ciencia adequada (ou seja, de formacáó teológica, as
cética e mística) que outros mestres nao costumam possuir.
Contudo outras pessoas, nao revestidas do sacerdocio, po
dem ser chamadas a exercer diregáo espiritual, desde que a

— 68 —
PRERREQUISITOS DE- DIRECAO FRUTUOSA - ,

Igreja, administradora dos tesouros da Redengáo, as encarregue


disto. Entre essas outras pessoas, citam-se em primeiro lugar
os superiores e as superioras de mosteiros e conventos, os mes;
tres e as mestras de novigos.
As leis da Igreja, neste particular, t§m sido inspiradas, cada
vez mais no decorrer dos sáculos, pela prudencia e pelo respeito
para com as almas; distinguen! nítidamente entre assuntos de
administragáo externa, foro externo, govérno de comunidades,
de um lado, e, de outro lado, assuntos de foro interno ou de cons-
ciéncia.

A mente da S. Igreja se exprime com toda a clareza no


canon 530 do Código de Direito Canónico:
. «1. Fica severamente proibido a todos os superiores religiosos, in-
duzir (como quer que seja) os seus súditos a lhes fazer abertura de
consciéncia.

2. Contudo aos súditos nao é vedado abrir-se livre e espontánea


mente aos superiores. É até recomendado que por si mesmos se dirijam
em confianga filial aos superiores e, caso estes sejam sacerdotes, lhes
exponham também suas dúvidas e ansiedades de consciéncia».

Como se vé, a S. Igreja, mediante estes dispositivos, coloca


a diregáo espiritual numa atmosfera de liberdade e confianga
filial por parte dos súditos, isentando-a de normas jurídicas cons-
trangedoras. Note-se outrossim como o § 2» ácima transcrito
póe em realce a afinidade do sacerdote com a tarefa de guiar
as almas.

. A diregáo por parte de mulheres é exercida íreqOentemente por


monjas e Religiosas nos parlatorios de mosteiros e conventos; as pes
soas secular.es as váo procurar por perceberem nelas as tres qualidades
características do bom diretor espiritual (caridade, ciencia e prudencia);
a S. Igreja nao se op5e a tal recurso. Nos primeiros séculos do Cristia
nismo .os monges, embora nao fóssem sacerdotes, eram por excelencia
tidos como diretores espirituais dos fiéis; supunha-se neles — e com
razáo — urna experiencia muito intima das coisas de Deus.

É o abade Isaias (séc. V) quem assim exorta :


«Se queres consultar alguém a respeito do teu modo de pensar,
abre-te livremente áquele no qual tenhas confianza de que guardará
teus segrédos. Nao leves necessariamente em conta aqueles que tém
Idade mais avangada, mas, sim, os que se caracterizam por doutrina,
obras e experiencia espiritual; nao reíiras os teus sofrimentos se, em
conseqüéncia, as tuas penas se aumentassemí- (Regra c. 43).
Lugar muito oportuno para se ministrar a direcáo espiritual é o
confessionário, caso o diretor seja, ao mesmo tempo, confessor do diri
gido (o que nem sempre é possível ou desejável). A conveniencia do
confessionário é particularmente notável em se tratando da diregao de
pessoas do sexo feminino; a seriedade do local contribuí para se evita-
rem divagagoes supérfluas.

— 69 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 4

A correspondencia epistolar é pouco recomendável para a directo,


pois está sujeita á interferencia de terceiros e nem sempre permite as
explanagóes necessárias a urna orientagáo segura.

m. MORAL

APOSTÓLO (Salvador) :

4) «Volta continuamente a baila o problema dos 'cató


licos nao praticantes'.
Gomó*, por exemplo, procederá o pastor de almas em rela-
gáo aos fiéis que habitualmente faltam a Missa nos domingos e
dias santos?»

Um católico que nao freqüenta a S. Missa nos dias de pre-


ceito, comete, aos olhos da fé, urna culpa grave. Aos olhos de
quem nao tem fé, ele é ao menos um incoerente, pois na prática
contradiz a solene mandamento da santa Religiáo que em teoría
ele professa.
Ora tanto a culpa grave (para o homem de fé) como a ü>
coeréncia (para o homem sem fé) sao males que revelam o de
sajuste de urna personalidade e que exigem, da parte dos pasto
res de almas, atengáo especial.

Diante de alguém que falte habitualmente a Missa do domingo por


negligencia, a tendencia mais espontanea é a de inculcar o preceito e a
severa obrigacáo de o cumprir, obrigacao á qual estáo anexos castigos
para os transgressores. Assim fazem muitos : apelam para a gravidade
do dever. O que dizem está certo; contudo verifica-se que tal método
pouco éxito consegue. Isto, alias, bem se compreende : a prática da Re-
ligiáo nao pode ser motivada pelo médo do castigo; esta base negativa
é insuíiciente para um valor positivo tao grande quanto é a Religiáo.
Esta tem que ser praticada por razoes mais dignas da personalidade hu
mana, que é dotada de inteligencia e amor (devendo viver da yerdade
e do bem).

Procurando, porém, examinar de perto como se comportam


a inteligencia e a vontade (a capacidade de amar), os psicólogos
modernos afirmam — e com razáo — que elas sofrem profunda
influencia da parte das emogóes ou de afetos subconscientes.
Estes muitas vézes regem a conduta do homem; nao sao domina
dos pelas facilidades superiores, mas ao contrario dominam o
comportamento do individuo... E isto se dá sem que a própria
pessoa ou algum de seus companheiros ou mestrés á primeira
vista o perceba.

Em o%ros termos : é difícil admitir uma só atitude do homem que


seja motivada únicamente pelo raciocinio e a fórca de vontade. Geral-

— 70 —
CATÓLICOS QUE NAO.VAO A MISSA

mente, a forma de pensar e deliberar do individuo é dirigida (ora de


mais perto, ora de mais longe, ora de maneira mais evidente, ora de
maneira menos evidente) pelos sontünentos, as emogoes, as paixoes...

Por isto, para dar remedio á conduta errada de determinada " tó


pessoa, verificarse hoje em dia que é preciso muitas vézes pene-, i.
trar no intimo da sua subconsciencia a fim de ai descubrir os affr-* ■
tos ocultos que expliquem a conduta defeituosa; urna vez deseo-
berta a raiz do mal, pode-se-lhe dar o corretivo adequado, e con-
segue-se maior éxito na educagáo dos jovens ou na diregáo das
almas.

De maneira especial, nota-se que os mais influentes sao os afetos


que se despertaran! e foram formando no individuo em seus tenros
anos, ou seja, antes mesmo do uso da raza o; freqüentemente marcam
de modo decisivo o comportamento da personalidade. Isto é táo verí
dico que se tem atribuido tanto a Hitler como a Freud como também
a outros homens que formaram a mentalidade do público, o adagio:
«Confiai-me a crianca até que complete os seto anos de idade; depols
fazei déla o que quíserdess.
Enquanto o uso da razáo nao está plenamente desenvolvido no pe-
quenino, o principal motivo q.ue impulsiona o seu comportamento é o
sentimiento ou a emocao. Já se disse que a crianca recém-nascida «é um
pouco mais do que um feixe de sentimentos. As suas únicas necessida-
des sao o alimento e o calor. As únicas experiencias significativas da
sua vida sao
a irritacáo e a frustracáo, quando senté fome ou frió,
a satisfacáo, quando é bem alimentada e se senté acarinhada» (cf.
Hagmaier-Gleason, Novas orientaedes de Psicologia Pastoral. Lisboa
1962, pág. 19s).
Em conseqüéncia, entende-se a grande importancia das emocSes
que os acontecimentos imprevisíveis ou o sistema de educacáo preme
ditado despertam na crianca em seus seis ou sete primeiros anos de
vida; sómente depois do uso da razáo — e ainda assim, com muitas
íalhas... é que a pessoa consegue moderar os seus afetos; antes
disto, fica grandemente sujeita aos mesmos, de modo que nao raro a
vida intelectiva e volitiva do adulto se ressente da influencia (benéfica
ou maléfica) das emocóes experimentadas na infancia.

Conscientes disto, os estudiosos tém-se esforcado por des-


cobrir as raízes emotivas, mais ou monos latentes, da omissáo
voluntaria da Missa de domingo por parte dos fiéis. As conclu-
s5es da analise levam a apontar, entre outras causas, quatro
grandes razóes emotivas que podem estar causando a incoerén-
cia ou o erro na conduta de quem falta habitualmente á Missa.
Caso se verifique que de fato a pessoa está sendo vítima de crise
emocional, torna-se mais ou menos inútil incutir-lhe o preceito,
pois isto nao atinge o ámago do problema; é preciso, antes,
sanear a parte afetiva ou emocional da questáo.
Quais entáo poderiam ser as razóes ocultas e profundas da
ausencia á Missa de domingo?

— 71 —
<PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 4

Ei-las : . .

1) Nocáo ponco exata do qae sejam a Fé e, em geral, a


Religiáo.

Em muitas pessoas a indiferenga frente & Missa nao é senáo


um símbolo da sua indiferenga para com a própria Fé. O pro
blema nao consiste em assistir regularmente á Missa, mas, sim;
em ter convicgáo do valor da Fé,... em perceber o que a Fé
representa na realidade para a criatura humana e, em particu
lar, para o cristáo.
Está claro que exortagóes e repreensóes, no caso, pouco re
sultado positivo obtém; sao incapazes de substituir o papel da
convicgáo religiosa como tal.
O que se deve fazer com tais pessoas, é tentar urna reeduca-
$5o religiosa (talvez mesmo nunca tenham recebido educagáo
religiosa própriamente dita). Mostrar-se-lhes-á o que é Religiáo
no sentido auténtico : entrega incondicional a Deus, entrega que
naturalmente só pode ser empreendida e sustentada na fé (pois
Deus é invisível) e na humildade (pois Deus é, por definigáo,
maior do que nos). Essa entrega pode exigir sacrificios, pode
exigir imperiosamente atos que paregam de pouca monta...
Tais atos, porém, o homem religioso os cumpre sem discutir,
porque sabe que nao lhe é lícito «fazer» ou inventar a Religiáo;
sabe também que, em última análise, «servir a Deus é rei
nar»; ... sabe que Religiáo nao é sistema de depauperamento
da personalidade (bom para quem nao nutre grandes aspira-
góes), mas é enobrecimento da criatura humana, justamente
porque faz que o individuo saia do próprio «eu» ou do seu mun-
dozinho egocéntrico, a fim de se «dilatar» em Deus, vendo as
coisas como o Senhor as vé e amando-as como o Senhor as ama.
Quem tem consciéncia disto e, ao mesmo tempo, sabe que a
S. Missa constituí obrigacáo religiosa — e obrigacáo que a Reli
giáo diz ser grave — nao hesitará em cumprir ésse dever: a
principio talvez o faga com ánimo um tanto alheio ou mesmo
constrangido; aos poucos, porém, o Senhor Deus lhe mostrará
que a verdadeira alegría do homem está em dar-se,... e em
dar-se a Deus ácima de tudo.

Para ajudar a-reajustar o conceito de Religiáo, pode-se aqui mate


urna vez citar o adagio do sabio hindú, já comentado em «P. R.» 28/
1960, qu. 4 : «Deus é a Unidade, íora da qual tudo é zero ou nada».

Com eíeito, imagine-se urna serie de zeros, no fim da qual esteja


colocado o número 1:
000 000 000 1

— 72 —
CATÓLICOS QUE NAO VAO A MISSA

Esta longa cadeia de figuras pouco significa; compreende muitos


slnais, mas quase nenhum valor possui.
Coloque-se a gora o número 1 em penúltimo lugar... A serie passa
a valer um pouco mais : «dez» em vez de cun». E porque? <— Nao por
que se lhe tenha acrescentado algo de novo, mas únicamente porque o
algarismo «um» mudou de lugar :

000 000 0010

Deslocando-se o mesmo número 1 para o antepenúltimo lugar, a


serie comeca a valer 100. E á medida que a unidade passa para a frente,
a serie cresce de valor (mil, dez mil, cem mil) até chegar a «um
milhSo»:
1 000 000 000

Surpreendente! Os mesmos sinais «zero», que nada valem, tomam


significado grandioso apenas pela deslocacáo da figura «um»...
Algo de análogo se dá com Deus na existencia do homem : se Deus
é colocado no fim do programa de vida de alguém, Ele e a Religiáo
pouco ou nada valem; tornam-se mesmo um fardo incómodo e supér-
fluo; a própria existencia profana se torna eníadonha. Desde, porém,
que com coragem a pessoa dé mais e mais entrada a Deus em sua vida,
o mesmo curriculo (vivido no mesmo ambiente, com os mesmos com-
panheiros e os mesmos objetos) vai tomando significado crescente;
Deus e a Rellgiáo passam a valer mais para tal pessoa e, com
lsto, também as criaturas sSo mais valorizadas; todas as coisas v&o
tomando sentido novo, até atingir o máximo do seu valor no momento
em que Deus e a Religiáo sao colocados simplesmente á frente ou ácima
de tudo. O gesto ousado, aparentemente tolo, de dar a Deus (o Invisivel
e o Maior) a dianteira em tudo num programa de vida encerra o se-
grédo da verdadeira felicidade. A desgraca do homem está precisamente
em colocar Deus-num lugar que nao Lhe convém, ou seja, após estas ou
aquetas criaturas, ou após todas as criaturas; muitos mercadejam e
regatéiam «o seu servicó a Deus; tais pessoas enganam-se, julgando
que possuem Religiáo- e que Religiáo é realmente coisa que deve ser
arrestada como fardo mais ou menos sufocador e odioso...
Remova-se éste conceito caricaturado de Religiáo. Que tais pessoas
mudem a posicáo de Deus em sua vida, dando ao Senhor a prlmazia
absoluta! E elas passario a viver com coragem e alegría, encontrando
profundo prazer tanto no trato com Deus como no contato com as
criaturas. Ou Deus ocupa o primelro lugar na vida do homem ou sim
plesmente pode-se dizer que nao ocupa lugar algum.
Urna vez reajustadas as nocfies de Deus e de Religiáo, nao haverá
mais problema de MIssa aos domingos.

Outra causa oculta de habitual ausencia ao culto sagrado


poderá ser

2) Rebeldía contra sistema de educacáo religiosa muito


rígido.

Há, sim, pessoas que dizem ter assistido á S. Missa para o


resto da vida, pelo fato de haverem sido constrangidas a fre-

— 73 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 4

qüentar o ato sagrado diaria ou amiudadamente em seus anos


de infancia. Sentem-se revoltadas e abandonam todas ou quase
todas as práticas religiosas da sua juventude.
Está claro que, junto a tais pessoas, é váo insistir em pre-
ceitos e sangóes; isto só as irrita mais. Ao pastor de almas e ao
amigo benévolo compete apelar para a compreensáo ou a capa-
cidade de discernimento désses fiéis : fagam-lhes ver que a Reli
giáo nao se identifica com determinado sistema educacional. Se
os educadores nao sao, em tal ou tal caso, oportunos e felizes, a
Religiáo (que é encontró com Deas através dos homens) fica
sendo, nao obstante, fonte de felicidade e imprescindível valor.
Nao queiram, pois, essas pessoas transferir para a própria Reli
giáo o desagrado que. experimentaram no contato com seus pais
e mestres (talvez demasiado austeros ou pouco esclarecidos).
Sirvam e amem a Deus através dos homens, nao, porém, por
causa dos homens.

Bem se vé que ninguém deve ser religioso por causa do éxito da


educacáo que recebeu, como também ninguém há de abandonar a Re
ligiáo por causa das táticas educacionais a que foi submetido.

Algo de semelhante se dirá aqueles que nao praticam a Fé


alegando que foram decepcionados pelo trato com os sacerdotes.
Há, sem dúvida, ministros de Deus que procedem inoportuna
mente tanto em sua conduta pessoal como no desempenho da
sua missáo. Será preciso, porém, incutir ñas almas a consciéncia
de que os sacerdotes sao meros cañáis ou instrumentos de Cristo;
Deus se quer servir déles; Ele vem aos homens pelps homens
(em particular, pelos padres), mas certamente nao se deixa
amesquinhar pela possível mesquinhez dos seus portadores;
Deus nao perde o seu valor, ainda que os homens de Deus dei-
xem de corresponder á dignidade da sua vocagáo.

Nao é a santidade dos padres que dá valor a Deus e a Rellgiao,


como também nao é o pecado dos sacerdotes que pode tirar o valor a
Deus e á Religiáo; o Senhor vem sempre aos homens pelos cañáis que
Ele instituiu (os sacerdotes, sejam dignos, sejam indignos); por isto
nao nos é licito procurar uniao com Deus independentemente da Igreja
e dos seus ministros. Desde que o padre exerga validamente o seu mi
nisterio, ele é canal, mesmo que nao possua a graga em sua alma..
Cientes disto, os íiéis nao se devem surpreender nem abater ao veri
ficar a fraqueza de um ou outro dos Ungidos do Senhnr. Em vez de cri
ticar, procurem remediar... E a melhor forma de remediar será a ora-
cao. .. Rezem, pois, a Deus pelo seu clero.
A fim de favorecer a prece pelos sacerdotes, transcrevemos em
apéndice urna bela fórmula que, além de ser oracao, é verdadeira licáo
a respeito do modo como os fiéis háo de julgar a debilidade moral dos
sacerdotes.
CATÓLICOS QUE NAO VAO A MISSA

Considerem-se outrossim como possíveis causas de afasta-


mento da Missa de domingo

3) Os problemas moráis ocultos ñas consciéncias.

Encontram-se pessoas que vivem a bragos com vicios serios,


dos quais nao se conseguem libertar (é o que.se dá principal
mente no setor da castidade). Julgam entáo que seria hipocrisia
freqüentar a S. Missa com regularidade, urna vez que nao sao
capazes de viver plenamente de acordó com a Lei de Deus. Além
do mais, sentem-sp constrangidas todas as vézes que se acham
em um ambiente sagrado,- pois éste lhes recorda quanto a sua
vida destoa do ideal. Por tais motivos, afastam-se da S. Missa
ou mesmo da Religiáo.
A essas pessoas será preciso dizer que a Eucaristía nao é
sámente — nem primeiramente — premio para a virtude dos
homens, mas é, antes do mais, remedio que possibilita e fomenta
a prática da virtude. Nao teria genuino espirito cristáo quem
pretendesse obter Vitoria sobre as suas más tendencias indepen-
dentemente da graga de Deus (que é normalmente comunicada
pelos sacramentos). O cristáo nao é um «estoico pagáo», especie'
de atleta espiritual que domina a natureza únicamente pelo seu
próprio esfórgo. Por conseguinte, a genuína atitude de quem
quer lutar contra seus vicios, consiste em procurar nos sacra
mentos a graga para os vencer : faga regularmente a sua confis-
sáo sacramental, excitando em si contrito sincera e bom pro
pósito; a seguir, vá á S. Missa e comungue sem hesitagáo; o que
Deus requer do pecador, é um coragáo contrito e humilde. Caso
alguém se lhe aprésente assim disposto, o Senhor nao lhe recu
sará os meios para obter a vitória sobre o mal.
Vé-se assim que os problemas moráis, longe de constituir
obstáculo para que o cristáo participe da S. Missa, devem, antes,
tornar-se incentivo para que o pecador mais e mais procure o
remedio da graga, a qual se obtém nos sacramentos mediante
um coragáo sinceramente contrito.

O grande «parádoxo» da mensagem crista consiste justamente em


afirmar que Deus ama o pecador (embora odeie o pecado). Quando o
homem se julga cheio de méritos, com facilidade eré que o Pai do céu
o ama : o amor de Deus, eni tal caso, lhe parece devido, é «justificado:»
eos olhos da razáo. O Cristianismo, porém, veio dizer ao mundo que
Deus ama mesmo a quem nao tem méritos, a quem possui apenas um
coracáo vazio, destituido, sim, de egoísmo e sinceramente aberto para a
graga. Certamente nao é fácil crer nisto, pois tal proposicáo ultrapassa
as mais otimlstas das expectativas; requer-se muita humildade para que
alguém admita essa verdade e se coloque na presenca do Senhor sem
titulo de recomendacao a nao ser-0 de pecador contrito; o amor próprio

— 75 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 4

e o orgulho do homem tendem sempre a recusar o dom gratuito («nao


comprado») de Deus.
Nao obstante, faz-se mister inculcar insistentemente nos fiéis ésse
aspecto da «Boa Noticia» do Cristianismo e, em conseqüéncia, incitá-los
a procurar a gra.ca de Deus como ela é comunicada pelos sacramentos.
Nao julguem que nao adianta confessar-se e comungar enquanto nao
sao puros, pois será sámente pela confissáo e a comunháo que se pode-
ráo tornar puros, evitando o pecado. Nem pensem que haja hipocrisia
quando um pecador recebe os sacramentos, pois ninguém pode ser tldo
como santo ou virtuoso antes de receber o dom de Deus. Urna só coisa
requer-se para que nao haja hipocrisia : arrependimento sincero e firme
propósito de empregar os meios necessários para evitar o pecado. Se
o pecador possui tais disposicóes, nao recele aproximar-se dos sacra
mentos.

Por fim, merece atencáo

4) A inegável dificuldade de compreender a língna e os


ritos de celebragáo da S. Missa.

Nao sao raras as pessoas que alegam pouco ou nada enten


der do que no culto católico se realiza. — Nao seria pedagógico,
mas antes inútil, apenas inculcar-lhes o preceito da S. Missa.
Faz-se mister outrossim explicar-lhes os textos, o cerimonial e,
'principalmente, o significado teológico de tal celébraselo. Mais
ainda, será necessário tornar-lhes a S. Missa mais atraente, fa-
zendo que participem mais ativamente da mesma mediante dia-
logacáo, canto e outros meios que a S. Igreja sugere.
O Concilio Ecuménico pretende dar impulso notorio á participado
dos fiéis ñas celebracóes da S. Liturgia; em conseqüéncia, nao pode
haver pastor de almas ou catequista que nao se interesse profunda
mente pelo movimento, possibilitando e ensinando ao povo de Deus o
uso désses recursos que tanto podem atralr os fiéis á igreja. O acesso
á Liturgia nao é questáo de luxo espiritual ou gdsto particular, mas
vem a ser elemento indispensável para revigorar a piedade do povo
católico. Quem nao leva isto a serio, já nao faz trabalho pastoral (em-
bora julgue ser sensato e prudente); antes concorre para a atrofia da
vida espiritual dos fiéis, favorecendo a tibieza e a Indiferenca, sem jus
tificativa alguma.

Eis algumas dificuldades e sugestóes de solugáo que se de-


preendem de urna análise do indiferentismo religioso de nossos
dias. Possam elas merecer atengáo da parte dos interessados, e
muito resultado positivo se obterá em conseqüéncia!

APÉNDICE

ORAQÁO DE UM LEIGO PELOS SACERDOTES


Antes de tudo, Senhor, eu Te agradece» por terem ésses homens
aceito tornar-se nossos vigários e missionários. Se, por acaso, tivessem

— 76 —
A EMPRESA «UNILABOR»

preferido, como nos, urna companheira, um lar, que seria de nos? E, se


isso tivesse acontecido em todo o mundo? Por isso, eu Te agradeco,
meu Deus, porque lhes deste a coragem do sacrificio. Gragas a éles, nos
podemos ser alimentados com o Pao da Vida, podemos fundar lares
sólidos, purificar nossa alma e marrer em paz. „
Obrigado, Senhor, pelos defeitos de nossos padres... Os homens
períeitos suportam mal a fraqueza dos outro3; os que estáo sempre com
saúde, desprezam as naturezas iracas. Tu, Senhor, viste mais claro
que nos.
E agora, Senhor, eu Te rogo pelo ministerio dos nossos padres. Que
éles tenham sucessos, mas nao triunfos; e, se sofrerem revezes, nao de-
sanimem. Teu sinal característico nao é o sucesso nem o insucesso, mas
o amor... Conserva, pois, nossos padres em Teu amor.
Nossos padres sao uns fenómenos. De fato, éles tém de ser mestres
para as criangas, psicólogos consumados para a juventude, eminentes
homens de ciencia e de experiencia no confessionário, especialistas ém
questóes conjugáis e familiares. Em seus contatos com as pessoas cul
tas, devem estar a par do último romance da moda; devem também
discutir com os simpatizantes do comunismo sobre o confuto entre o
capital e o trabalho, até os mínimos pormenores.
Ia-me esquecendo de que éles devem responder na rúa a todos os
cumprimentos, sem distincáo de pessoas; que devem responder a todos
sorrindo, mesmo que o coracáo esteja sacudido pela tempestade e o
corpo moldó pela fadiga.
Ia-me esquecendo também de que devem ser (todos os domingos e
dias de festa) oradores, cantores, instrutores, ás vézes até organistas, e,
durante a semana, eletricistas, marceneiros, pintores, mecánicos, ensaia-
dores, músicos, artistas dramáticos, jornalistas e quanta coisa mais...
Senhor, faze que nos julguemos estes «especialistas universais»
com a indulgencia exigida por seu programa incoerente e desumano.
Senhor, também quero pedir-Te que nos tenhamos caridade para
com os nossos padres, em pensamentos e sobretudo em palavras.
Se meu vigário se ocupa com Acáo Católica Feminina, nao digam
que a paróquia é dirigida por «mocinhas». Se ele fica todo contente por
estar com as criangas, nao concluam que tem urna religiáo infantil. Se
está com boa aparéncía, Senhor, nao pensem que nao se priva de coisa
alguma; e, se pelo contrario está magro e pálido, nao digam que anda
moldo de remorsos ou nao está de acordó com os superiores.
Concede-me a graca, Senhor, de lhe perdoar os erros e os atos de
impaciencia. Que eu compreenda, enfim, que só tenho um vigário a su
portar, enquanto ele tem todos os paroquianos ás suas costas.
Ainda, Senhor, peco-Te que ele tenha a consolagáo de sentir que nao
é cercado de indiferenga ou de hostilidade.
Dá-me, enfim, Senhor, a perseveraba na oracáo pelos sacerdotes.
Sem dúvida, será essa a melhor graca para mim e o dom mais útil para
todos os sacerdotes. Amém.

IV. SOCIOLOGÍA

ASSISTENTE SOCIAL (Salvador) :

5) «Ültimamente tera-se falado de 'Unilabor', revoluto


na estrutura da empresa. Trata-se de urna tentativa de resolver

— 77 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 5

sobre bases genuinamente cristas o problema das relacSes entre


trabalho e capital.
Em que consiste essa tentativa?.Gomo avaliá-lá?»

A empresa «Unilabor» é, pelo seu próprio idealizador e promotor,


Frei Joáo Baptista Pereira dos Santos O.P., apresentada ao público no
livro do mesmo nome (Livraria Duas Cidades, Sao Paulo, SP).
As páginas que se seguem, procuraráo resumir o histórico e a mén-
sagem de táo original empreendimento.

1. O histórico

Os problemas sociais merecem a atencáo nao sómente dos sociólo


gos e economistas, mas também da Igreja e de seus ministros. A Igreja
tem, sim, alguma coisa a dizer desde que se trate de dar ao homem um
nivel de vida condizente com a sua dignidade. Eis por que o S. Padre
Joáo XXin se pronunciou a respeito na encíclica «Mater et Magistra»...;
eis por que alguns sacerdotes se tém envolvido na organizagáo de obras
que abrem estradas para resolver a questáo social. Entre tais homens
de Deus, está o írade dominicano Frei Joáo Baptista Pereira dos Santos, .
com a sua arrojada empresa.
Como terá surgido essa obra?

Frei Joáo Baptista foi enviado á Franga após a guerra de


1939-45, com a missáo de estudar «Economía e Humanismo»
sob a orientagáo do famoso Pe. Lebret O.P. Observou entáo o
empreendimento da «Communauté Boimondau», perto de Gre-
noble, e resolveu fundar algo de semelhante no Brasil.
Tratava-se de urna cómunidade de trabalho ou de urna
empresa de co-gestáo, empresa em que os operarios tomam
parte na gestáo ou na administracáo da firma em que labutam.

Nótese que o sistema vigente de remuneragao do trabalhador con


siste em dar a éste um salario monetario ou mesmo urna participagáo
nos lucros da empresa. Tal sistema excita freqüentemente o desejo de
maiores salarios, provocando conflitos; na verdade, porém, constituí
remuneracáo assaz engañadora, pois muitas vézes, em lugar de erguer
e nobilitar o nivel de vida do trabalhador, só serve para o degradar:
melhores salarios tornam-se nao raro ocasiáo de maiores despesas em
■jógo, bebida e deboche... Em vista disto, os estudiosos tém pensado,
nos últimos tempos, em remunerar o trabalhador de maneira menos
material e mais humana, atribuindo-lhe responsabilidade no andamento
mesmo da empresa (isto nao pode deixar de beneficiar profundamente
o operario, excitando né-le os valores da inteligencia e da dedicagao,
promovendoo no plano social e jurídico, nao sómente no plano ma
terial).

A Igreja, por voz de seus Papas, tem dado aprovagáo a tal


sistema. Considerem-se, por exemplo, as palavras da encíclica
«Mater et Magistra» de Joáo XXIII:

— 78 —
A EMPRESA «UNILABOR»

«Seguindo a direcáo indicada pelos Nossos Predecessores, também


Nós.j digamos que é legitima nos trabalhadores a aspiracao a participa
ran* ativamente na vida das empresas em que estáo inscritos e traba-
lham... Cremos que devem ser atribuidas aos operarios partes ativas
nos negocios das empresas em que trabalham, sejam estas de particula
res, sejam do Estado; deve-se tender sempre para que a empresa se
torne urna comunidade humana por cujo espirito sejam totalmente in-
íluenciadas as relaedes individuáis, o número e a variedade dos oficios»
(n' 38).
Naturalmente, a participagáo dos operarios na gestáo ou na admi-
nistracáo de urna empresa sup5e, da parte dos mesmos, certo preparo
ou certo nivel cultural e técnico; por íalta disto, fracassaria qualquer
tentativa de tal género.

Ora foi justamente um ensaio de co-gestáo ou de comuni


dade de trabalho que Fr. Joáo Baptásta comegou a planejar
desde que regressou ao Brasil em setembro de 1948. Contudo
sómente em setembro de 1954 conseguiu realizar o intento : em
um pobre barracáo de 20 x 10, na Estrada Vergueiro (Sao
Paulo), o frade instalou-se com tres socios : Justino Cardoso,
engenheiro industrial; Geraldo de Barros, artista e bancário, e
Antonio Thereza, ferramenteiro. Depois de alguns ensaios. re-
solveram dedicar-se á fabricagáo de movéis, constituindo urna
empresa intitulada «Unilabor», palavra forjada em latim para
designar «comunidade de trabalho» : «uni» significaría «comu
nidade; «labor», trabalho. A fim de iniciar a obra, erguendo o
barracáo num terreno doado e comprando modesta maquinaria,
Frei Joáo Batista conseguiu, ao cabo de um ano de conversa-
góes e demarches, levantar um emppéstimo de 200.000 cruzeiros.
Desde que se colocou ao encalco déste dinheiro, ouviu os comen
tários mais desalentadores possíveis : passava por sonhador e
louco, até que um belo dia, tendo exposto o plano de criar urna
comunidade de trabalho ao Diretor-Presidente de famoso banco
paulista, ouviu a seguinte resposta : «Depois dizem que a Igreja
Católica é atrasada e o clero reacionário; ai está urna revolugáo
na estrutura da empresa que o nosso Banco se sentirá por certo
muito honrado em financiar». Dito isto, o Diretor abriu-lhe o
crédito de 200.000 cruzeiros, renovável de seis em seis meses.
Postas estas bases, a empresa, aos 15 de outubro de 1954,
obteve na Junta Comercial o seu registro de sociedade por quo-
tas de responsabilidade limitada, com sede a Estrada Vergueiro,
3662 (Sao Paulo, SP) e capital social de duzentos e um mil cru
zeiros; sua denominagáo completa seria «Unilabor, Industria de
Artefatos de Ferro, Metáis e Madeira, Ltda.».
Desde os primeiros meses de funcionamento, foi elaborado o
regimentó interno ou a Constituigáo de «Unilabor», documento
curto e simples, que em parte reproduz as normas de Boimon-

— 79 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 5

dau. Dada a importancia de tal documento, váo aqui transcritos


os seus parágrafos mais salientes :

«1 Da Finalidade e da Organizacáo Interna da Empresa

Art. 1») A Unilabor... funcionará... como comunidade de traba-


lho, íora do regime capitalista. Nao haverá portante nela distingáo entre
empregado e empregador.
Art. 2?) Todos os que nela entrarem, após alguns meses de estágio,
no máximo um ano.'deveráo ser admitidos como companheiros, com
participacáo no lucro e na direcáo.
Art. 4.") A participagáo na propriedade nao coníere contudo a
cada membro o direito de se considerar proprietário de urna íragáo da
fábrica. O proprietário será a comunidade, que deverá ser considera
da como urna pessoa constituida de todos os seus membros.
Art. 8*) Os lucros, se os houver, serao divididos anualmente em
tres paites iguais: — urna terca parte cabera aos companheiros, urna
outra terca parte irá para o fundo de reserva da comunidade e a última
terca parte será aplicada em obras de cultura e aperfeigoamento hu
mano e social...
Art. 9°) Como comunidade nao significa ausencia de autoridade,
haverá um chefe de comunidade, eleito pela Assembléia geral por maio-
ria absoluta e para um periodo de tres anos, podendo ser reeleito.

2 — Da Moral Comum aos Companheiros

Artigo único — A Comunidade de Trabalho Unilabor nao poderá


ser compreendida nem seu espirito respeitado, se nao houver entre seus
membros um entendimento básico sobre certos valores mínimos, como
sejam a vida e o homem, a familia e a sociedade, o trabalho e o bem
comum, etc. Numa palavra, nao pode haver comunidade sem moral
comunitaria. Por isso, nos, companheiros da Unilabor, aceitamos e subs-
crevemos para devida observancia os seguintes pontos dessa moral
comum :

1«) O homem nao pode viver sem ideal. Cada companheiro deverá
escolher uma finalidade para a sua vida e ser capaz de justificar essa
escolha a qualquer momento.
3») Todo companheiro se compromete a respeitar as regras "mo
ráis mínimas da Comunidade, que sao :

— Amarás a teu próximo.


— Nao te apossarás dos bens alheios.
— Nao mentirás.
— Serás fiel á palavra empenhada.
— Ganharás teu pao ao suor de teu rosto, isto é, com teu trabalho
honesto.
— Respeitarás o teu próximo, sua pessoa e sua liberdáde.
— A fim de lutar contra o mal que há no mundo, lutarás .primeiro
contra ti mesmo, contra todos os vicios que diminuem o homem, contra
todas as paixóes que o escravizam e impedem a vida social: orgulho,
avareza, luxúria, inveja, gula, cólera, preguica.

— 80 —
A EMPRESA «UNILABOR»

— Tu sustentarás que existem bens superiores á própria vida: a


liberdade, a dignidade humana, a Verdade, a Justiga.
4') A disciplina livremente aceita é a condigáo primeira para a
vida social. Todo aquéle que obedece ou trabalha só porque é vigiado, é
um covarde e nos o expulsaremos da Comunidade.
5«) Nao há vida social possivel sem um mínimo de amor pelo pró
ximo. Ora é impossivel aos homens se amarem senvse conhecerem: Nos
procuraremos conhecer-nos melhor uns aos outros e nos interessaremos
pelos problemas uns dos outros.
6") A verdade é indispensável á vida social. Expulsaremos do
nosso meio a mentira e os mentirosos.
V) O orgulho é o inimigo número um de todo o progresso moral;
lutaremos contra ele em qualquer de suas íormas : inveja, ciúme, ran-
cor, susceptibilidades...

8*) Toda a nossa luta será em campo aberto. Será urna luta con
junta. O que se chama vulgarmente espirito de porco nao terá lugar
entre nos.
9*) Os erros proíissionais e as faltas moráis de qualquer um de
nos deveráo servir para a educagao de todos.
10') Cada qual é livre de optar pro ou contra urna idéia. Mas nao
zombará nunca nem fará pouco caso da idéia dos outros.
II9) A comunidade nao será formada de seres perfeitos. Ela acei
tará cada qual como ele é, só lhe pedirá que caminhe com boa vontade
e energía rumo ao ideal escolhido.
12*) Mas a falta desta boa vontade e energía, se persistir depois.
de varias advertencias, será motivo para exclusao da comunidade. Todo
companheiro deve saber que o individualismo é o pior inimigo do ideal
comunitario.
139) Os homens sao iguais em natureza, mas desiguais em valor.
Nem todos receberam os mesmos dons. Devem, pois, aceitar que a
Comunidade os utilize segundo seu valor humano total.

14*) O Chefe da Comunidade deVerá ser sempre o melhor, isto é,


aquéle que para urna dada fungáo possui o maior valor humano total,
file deve ser aquéle que dá o exemplo, que educa, que ama, que se de
dica e que serve.

15*) Devemos lutar contra toda manifestagáo de individualismo.


N&o toleraremos que alguns se sirvam da Comunidade para fins indi
viduáis, que sao sempre mesquinhos.
Mas sustentaremos que a Comunidde está a servigo da pessoa hu
mana. A dignidade da pessoa humana está ácima da Comunidade. A Co
munidade existe para que a pessoa humana dos que nela trabalham
possa desenvolver-se, adquirir maior valor e assim realizar seu destino
na térra.

16') A nossa meta final, o motivo pelo qual nos reunimos .em
comunidade é elevar o homem e torná-lo digno do seu destino espiritual,
e nao construir um formigueiro no qual o homem seja apenas um nu
mero, um elemento e nada mais. Somos comunitarios, mas personalis
tas. Somos contra o individualismo capitalista. Mas somos também con-

— 81 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963. qu. 5

tra toda transfo.rmac.ao do homem em mero fator económico, em sim


ples peca de urna imensa máquina coletiva de produzir riquezas.
17°) A nossa comunidade de trabalho se situará, pois, na luta
social como urna célula-testemunho entre a anarquía individualista e o
Estado invasor dos direitos da pessoa.
18*) Todos os companheiros se comprometem a Jevar urna vida
particular, familiar e pública, no sentido da moral mínima da Comu
nidade.

19') files autorizam a Comunidade e os companheiros a Ihes faze-


rem as advertencias necessárias e igualmente se comprometem a adver
tir os outros sempre que julgarem necessário.
20*) Cada companheiro se compromete a adotar urna posicáo reli
giosa ou filosófica, entendendo-se aqui por filosofía o modo de encarar
o homem e a sua vida na térra, o universo e as suas leis.
21*) Todos se comprometem a observar a mais larga tolerancia
e a respeitar sinceramente as diferentes crencas ou posicóes ideológicas.
22°) A comunidade facilitará a prática ou o estudo e mesmo a
procura livre de urna fé ou posicáo filosófica, por parte de qualquer
de seus membros.

23*) SancSes graves seráo aplicadas contra todo companheiro que


deixar de respeitar ésse compromisso que a Comunidade Unilabor con
sidera essencial».

«Tal é a constituicáo que até hoje vem regendo a vida interna e a


evolugáo da Unilabor. Alguns artigos do capitulo primeiro sofreram com
o tempo alteracáo. No artigo 2*, por exemplo, em vez de 'no máximo um
ano' leia-se 'no máximo dois anos'. A experiencia levou-nos a prolongar
mais um ano o período de estágio. O artigo 8* que trata dos lucros foi
alterado também» (Unilabor, pág. 40-48).

A Constituigáo de «Unilabor», notoria pela elevada mentalidade que


a inspira, será comentada no parágrafo 2 déste artigo.

Para completar o esbógo histórico iniciado, apenas realgare-


mos que no seu primeiro ano de funcionamento a empresa sofreu
forte abalo financeiro, devido á exigua experiencia dos respecti
vos membros no trato de dinheiro. Contudo mediante um em-
presumo de cem mil cruzeiros a longo prazo e juros babeos,
assim como maior esmero na administragáo da obra, conjuraram
em poucos meses o perigo.
' Novos companheiros foram sendo admitidos, atingindo hoje
o total de cinqüenta membros na empresa. As reuniSes de dire-
gáo passaram a realizar-se com a máxima regularidade todas
as sextas-feiras; por elas os operarios dirigiam de fato a firma,
pois nada de importante era decidido e efetuado sem que dessem
o respectivo voto.

A «Unilabor» tem prosperado... Atualmenté, conta com


urna fábrica que funciona em área de 1.500 m2, dispóe de qua-

— 82 —
A EMPRESA «UNILABOR»

renta e oito máquinas e aparelhos diversos, além de importante


guantidade de ferramentas de máo e apreciável estoque de ma-
deira e diversos metáis. Possui outrossim um escritorio bem
montado e duas lojas na cidade de Sao Paulo, sendo que urna
destas, destinada a venda de movéis, se acha no centro da
capital paulista, em plena Praga da República, atrás da Escola
Normal; foi aberta.dois anos depois de fundada a empresa, isto
é, em Janeiro de 1957; ocupa área de mais de 100 m2 e possui
telefone, decoragáo e pintura modernas: tudo, pela irrisoria
quantia de 50 mil cruzeiros.... O patrimonio da «Unilabor», de-
vidamente somado, atingía em abril de 1962 a casa dos dez mi-
Ihóes de cruzeiros, (dez milhóes que se fizeram a partir de um
empréstimo de duzentos mil cruzeiros em 1954!). Ora tais resul
tados vém a ser inegável testemunho nao sómente da béngáo de
Deus, mas também da benevolencia com que os homens, mesmo
os mais céticos, tém acolhido o ideal da «Unilabor»; éste tem-se
imposto por si mesmo. — Dai o interésse que agora nos leva a
considerar de mais perto

2. A mensagem de «Unilabor»

Vamos resumir em algumas proposic6es as idéias-mestras que


«Unilabor» representa e transmite ao mundo de hoje :

1) Nem individualismo egoísta (que fomenta o capitalis


mo) nem socialismo (que despersonaliza), mas estima da pes-
soa humana e dos seos deveres para com a sociedade.

Como se pode depreender da Constituidlo de «Unilabor», um dos


grandes principios que norteiam esta empresa, é o respeito á pessoa
humana.
Por «pessoa humana» entende-se o ser humano na medida em que
é dotado de inteligencia e vontade,... na medida em que é aberto para
outros valores que nao os da materia e do tempo,... na medida em que
é aberto para o Invisivel, para o Infinito...; nessa medida, o ser
humano é indevassável a qualquer criatura, e goza de direitos que nin-
guém lhe pode contestar nem subtrair.
Esta concepcao de personalidade é, sem dúvida, crista. Mas nao é
sámente crista; nao depende de fé; é filosófica e racional; depende
apenas de bom senso e reto raciocinio. Por isto, a «Unilabor», erguen-
do-se sobre ésse conceito, nao limita a sua mensagem aos trabalhadores
cristSós, mas dirige-se a todo e qualquer homem de bem.
Contudo o respeito á personalidade humana nao quer dizer que a
esta seja licito gozar de irrestrita liberdade no desenvolvimento de seus
planos e atividades. Nao; a liberdade irrestrita redundarla em libera
lismo egoísta ou egocéntrico, com graves perigos para o bem comum;
cobica e ganancia seriam assim estimuladas, acarretahdo acumulo de
muitos bens em maos de poucos (capitalismo). Donde se.vé que, pelo
fato de dar primazia á personalidade humana, o cristño Cou simples-

-83 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS:» 62/1963, qu. 5

mente o homem de bem) nao apregoa liberalismo egoísta nem capita


lismo. O cristáo sabe múito bem que, além de ter urna abertura para o
Alto ou para Deus, a pessoa humana possui também urna abertura
para o lado ou para o próximo, para a sociedade e a vida temporal.
Isto quer dizer : o personalismo cristáo é social, comunitario.. O cristáo
se preocupa com os mesmos problemas que solicitam a atencáo do
socialista e do comunista; nao menos do que o marxista, deve ele pro
curar servir ao próximo e remover as injustigas sociais. Contudo o
cristáo se diferencia do comunista num ponto essencial: o comunista
coloca a personalidade totalmente a servigo da coletividade, íazendo de
cada cidadao urna simples unidade produtora utilizada pela grande
máquina que vem a ser a sociedade ou o Estado; destarte o comunismo
despersonaliza, desconhece direitos indevassávels e liberdade dos cida-
daos; o Absoluto, aquilo que faz as vézes de Deus no sistema comu
nista, é o Estado; a éste o cidadáo cede incondicionalmente os seus
direitos e servigos. — É claro que um cristao nao pode compartilhar
tais idéias; o discípulo de Cristo afirma, antes, que o cidadáo tem deve
res para com a sociedade e o Estado; o desempenho, porém, désses
deveres visa apenas fazer que a sociedade e o Estado possam por sua
vez desincumbir-se de seus deveres para com cada cidadáo, favore-
cendo a expansáo da personalidade de cada um.

Apraz citar aquí urna passagem em que o.próprio fundador de


«Unilabor» expóe esta sua posicao intermediaria entre individualismo
liberal, egoísta, fautor de capitalismo, e comunismo nivelador, sufoca-
dor da personalidade:
«Para os comunistas, a pessoa humana nada é e nao tem direito
algum. O que deve existir e possuir todos os direitos, é a sociedade hu
mana, sociedade industrial constituida de individuos essencialmente prc-
dutores.
O erro dos comunistas é pensar que o cristao, por ser personalista,
é individualista, e favorece o capitalismo considerado como sistema de
apropriacáo individual dos bens produtivos...
Somos comunitarios e personalistas. Somos contra o individualismo
capitalista, mas somos também contra toda transformacáo do homem
em mero íator económico, em simples peca de urna imensa máquina
coletiva de produzir riquezas.
... Devemos lutar contra toda manifestacáo de individualismo. Nao
toleraremos que alguns se sirvam da comunidade para fins individuáis,
que sao sempre mesquinhos. Mas sustentaremos que a comunidade está,
a servico da pessoa humana. A comunidade existe para que a pessoa
dos que nela trabalham se possa desenvolver, adquirir maior valor e
realizar assim seu destino na térra» (ob. cit. pág. 64s).
Seja licito frisar bem: o ideal de tUnilabor> —que é o ideal do
bom senso e, naturalmente, do Cristianismo — consiste em promover o
equilibrio entre pessoa e comunidade, de modo a nao haver sufocacáo
nem de urna nem de outra, mas, ao contrario, pleno desabrochar dá
personalidade livre dentro do servico prestado & coletividade. O cristáo
nao é favorável nem ao comunismo nem ao capitalismo, pois em um e
outro déstes sistemas é o capital que prevalece sobre a pessoa humana
é a esmaga: no caso do capitalismo, é, sim, o capital detido ñas máos
de poucos proprietários que avassala a massa proletaria; no caso do
comunismo, é igualmente o capital, desta vez detido ñas máos do Estado
apenas, que subjuga a populacho inteira.

— 84 —
A EMPRESA «UNILABOR»

' • De resto, o autor de «Unilabor» lembra oportunamente que hinguém


pode deixar de ser contrario ao comunismo sem ser igualmente contra
rio ao capitalismo, pois no fundo (embora parecám contrapor-se) capi
talismo e comunismo coincidem entre si: «... piada que circula, dizem,
nos paises soviéticos : capitalismo é exploracSo do homem pelo homem;
comunismo é exatamente o inverso» (ob. cit, pág. 28).

2) Para se manter a igual distancia tanto do capitalismo


como do estatismo on comunismo, o cristáo valoriza de maneira
especial o trabalho.

O trabalho é, sim, a expressao da personalidade humana, da sua


inteligencia e do seu amor, ao passo que o dinheiro ou o capital as vézes
nao representara a personalidade, mas antes a deturpam; por isto é
normal (admitindo-se naturalmente excecóes necessárias) que todo cida-
dáo viva do seu trabalho, seja estimulado neste e colha os frutos cor
respondentes ao mesmo. Foi justamente a oportunidade de vlver ple
namente do seu trabalho que «Unilabor» quis proporcionar aos seus
membros, criando urna «comunidade de trabalho» (em oposicao a urna
«empresa económica»)/

Deixemos que o fundador mesmo de «Unilabor» exponha o que ele


entende por «comunidade de trabalho» :
«Estudando a realidade social da 'Communauté Boimondau', o
Pe. Lebret concluí ser impossivel agrupar comunitariamente os homens
em tdrno de urna atividade exclusivamente produtiva.
A Comunidade de trabalho ideal seria, pois, aquela que considerasse
como trabalho toda e qualquer atividade humana capaz de conduzir
realmente.o homem a seu fim, ficando entendido que a atividade pro-
dutora é apenas urna entre multas outras, tanto ou mais necessárias a
urna verdádeira comunidade de homens.
A comunidade de trabalho ideal seria entáo aquela que agrupasse
em seu selo nao só os produtores de bens económicos, mas todos aqueles
que se dedicam a atividades complementares : professdres, médicos, en-
fermelras, auxiliares domésticas e todas as familias dos companheiros,
visto serem as atividades da mulher em casa e as da crianza na escola
tSo indispensáveis a urna comunidade humana integral quanto as ativi
dades da producto. Os recursos desta última deveriam ser repartidos
entre todos os membros em razao direta da sua lnsergSo nao na vida
profissional, mas na vida comunitaria.
A comunidade de trabalho ideal seria, pois, urna comunidade de fa
milias que.através do trabalho descobrissem progressivamente seu des
tino comum e procurassem realízalo...
Vé-se logo por ai que, para tornar-se humana, urna comunidade de
trabalho tem que perder seu caráter de empresa exclusivamente econó
mica. A-empresa passa a constituir a funcao económica da comunidade.
... Qualquer solucao do problema social que vise exclusivamente a
repartlgao equitativa e justa dos bens produzidos ñas fábricas e nos
campos está fadada ao íracasso. Aquilo de que os homens preclsam, é
urna scciedade humana,, e, nao urna sodedade meramente económica,
simples produtora e distribuidora de bens.'
... O que temos a fazer no mundo desumano de hoje é isto:
pensar o homem como ele é, evitar conflná-lo em compartimentos estan
ques onde ele tem que viver urna serie de vidas paralelas que nunca se

— 85 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 5

podem encontrar: urna vida religiosa que nada tem a ver com a vida
em familia, urna vida de familia que nada tem a ver com a vida que
se leva na industria ou no comercio de bens ou na troca de servicos,
urna vida profissional que nada tem a ver com a vida do espirito, com
a arte, a cultura, a política e a religiáo» (ob. cit. pág. 50-53).

Mais urna proposigáo faz parte integrante da mensagem de


«Unilabor» :

. 3) Como se vé, o cristáo nao precisa de recorrer a ideolo


gías estranhas para propor a solugao da questao social.

Em outros termos: inconsistente ou falso é o dilema freqüente-


mente sugerido ao discípulo de Cristo em nossos dias : «Se nao és
marxista ou esquerdista, és capitalista, burgués, fascista, reacioná-
rio, etc.». A encruzilhada assim proposta impressiona muitos católicos
que, para nao passar por amigos do capitalismo ou do totalitarismo da
extrema direita, abracam a designacáo de «católicos da esquerda» e
aceitam colaboracáo com o comunismo.
O dilema nao passa de um sofisma. Na verdade, existem principios
e valores genulnamente cristaos, que sao independentes tanto do mar
xismo como do capitalismo, e que bastam para dar solugao aos proble
mas da sociedade contemporánea. É o que as encíclicas papáis tém
demonstrado amplamente no plana doutrinário; é o que os empreendi-
mentos de «Unilabor», Boimondau e outros congéneres tém evidenciado
no plano prático ou concreto.

Tenha mais urna vez a palavra o fundador de «Unilabor», que no


inicio do seu livro explica :

«Podemos dar á historia o sentido de marcha triunfante para a


frente e para o alto, sqm precisar para tanto de nos inspirar em outra
fonte que nSo seja a Igreja de Cristo.
Por que havemos nos, nesta época táo decisiva da historia do mun
do, de nos desviar déla, como se Ela nao mais pudesse livrar-nos da mi
seria e da fome ? Ela é Máe. MATER. E essa mae com vinte sáculos de
historia tem multo que nos ensinar. ET MAGISTRA.
Ai vai, pois, urna historia, urna historia pequenina e breve; de um
punhado de homens semelhantes a todos os outros, que realizaram urna
empresa industrial e comercial, tendo em vista os principios cristaos
que aprendemos da Igreja. \
Esta historia aconteceu realmente. E acho que vai continuar acon-
tecendo por muitos anos aínda. Porque ela tem urna lógica : a lógica
da Encarnacao. E ela tem um dinamismo : o dinamismo da fé. Fé em
Deus que nos salva e nos oferece todos os-meios. E fé no homem que é
filho de Deus, no homem que trabalha e produz e pode comprar e ven
der e organizar a sua vida da térra sem dobrar os joelhos ante os
falsos deuses do mundo que se chamam o Poder, o Dinheiro, a Domina-
cáo e a Gloria» (ob. cit. pág. lis).

Mais adiante, diz o escritor com muita sabedoria :

«O cristáo, enquanto cristáo, é obrigado a rejeitar o capitalismo,


... enquanto éste significa egoísmo, injustica e opressao.

— 86 —
A EMPRESA «UNILABOR» VI

O cristáo, enquanto cristáo, tem que rejeitar igualmente o mar


xismo, nao que ele tenha algo- contra a organizacáo socialista do mundo,
mas porque marxismo significa sempre no fundo violencia e exterminio,
opressáo é construyo insolente da cidade dos homens sem Deus e con
tra Deus.
Nao se pense, porém, que ser cristáo é ser essencialmente reacioná-
rio, direitista, capitalista, fascista ou imperialista. O cristáo, para ser
cristáo, nao precisa de ser nada disto, nem ser anti coisa alguma, nem
ser de direita ou de esquerda. Ele precisa só de ser do Cristo. Ser cristáo
é fazer mais do que revolucionar as estruturas do mundo; é renovar
constantemente a si próprio e ajudar os outros a se renovarem a si.
mesmos. A renovacáo do homem por dentro: eis a revolucáo verda-
deira, a mais difícil de se íazer, mas também a mais eficaz. Pois o
homem renovado por dentro é o que renová as estrutura:; do mundo.
... Nao basta humanizar as estruturas; o que é preciso é humani
zar o próprio homem, fazé-lo voltar ás fontes do humano, destruindo em
si mesmo o que é de origem diabólica e principio do anti-humano»
(ob. cit. pág. 131-33).

Com outras palavras : verifica-se que


4) O cristáo também apregoa urna revolucáo na hora
presente.

Revolucáo, porém, no sentido cristáo e no quadro que aqui visamos,


nao significa subversáo da ordem nem emprégo de violencia contra os
homens, mas renovacáo ou volta &s fontes, revigóramonto das estru
turas básicas e centráis do Cristianismo; etimológicamente, o conceito
de «volucao» lembra o de «volta»; o conceito de «revolucáo» lembra o
de «retorno» ou de «volta as fontes».
«Há revolucao e revolucáo.
Péguy dizia que revolucáo auténtica é sómente aquela que ultra-
passa a realidade histórica em profundidade, apelando de urna tradicáo
menos perfeita a urna tradicáo mais perfeita e remontando das Aguas
paradas do imobilismo e do conservantismo a urna fonte mais profunda
de renovacáo constante e de progresso. Literalmente, urna revolucáo é
urna volta ás fontes ou, como ele dizia em francés, 'un ressourcement1.
É isto mesmo: a revolucáo crista, comunitaria e personalista, é
urna volta ás fontes do humano. É um humanismo verdadeiro, ou me-
lhor, urna re-humanizacáo do mundo, sempre ameacado de perder seu
centro, que nao está no homem, mas ácima déle, em Deus. E é nisto que
reside justamente a sua atualidade permanente. Em qualquer período
da historia humana, o Cristianismo é sempre unía fdrca revitalizante e
renovadora. De onde se concluí que, para ser revolucionario, o cristáo
nao precisa absolutamente renegar as suas fontes. Quanto mais remon
tar a elas, quanto mais apelar para a sua origem, mais 'original' ele é,
e mais atual e mais humano também» (ob. cit. pág. 141s).
Esta observacáo é altamente significativa : o cristáo que quiser ser
útil ao mundo na hora presente, torne-se mais perfeito cristáo, mais
consciente e cioso dos valores que ele traz no próprio patrimonio da
sua íé. A esperance do cristáo na hora presente está baseada única
mente e simplesmente no valor mesmo do Cristianismo ou no revigora-
mento da vida crista em cada um de seus membros. É o que Fr. Joáo
Baptista diz do seu modo, relatando o seguinte episodio :

— 87 —
— «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 62/1963, qu. 5

«Certo dia, em conversa com um amigo... militante comunista que


fez movéis na Unilabor, tive que responder a um ataque déle contra a
Igreja, 'essa Igreja que se mete na política, que só faz clericalismo oü
proselitismo e nao cumpre nada daquilo que. Ela mesma diz que tem
missáo de pregar á humanidade1. Eu disse sómente a ele: 'Vocé é ba-
tizado, meu amigo, essa Igreja que vocé critica é vocé também, a Igreja
somos todos nos. Os erros, as faltas e as omiss5es que a ela atribuímos,
somos nos que cometemos. Nos todos somos... infléis á Igreja, tendo
apenas por cima de nos a capa de cristáos1.
Se quisermos ser cristáos no pleno sentido da palavra, comecemos
por fazer o que fez o Cristo. Ele, para abalar o mundo, nao foi' atrás do
que é grande ou descomunal... Mas durante anos a fio, humilde e silen
cioso file segurou ñas máos a plaina e o martelo, elevando assim o
trabalho humano a dignidade de urna agáo divina» (ob. cit. pág. 159).
Justamente o que faz o segrédo do avanco do marxismo no mundo
presente, é a crenca que os seus militantes tém em seus principios
ideológicos, é a sua fé no poder de renovar o universo que éles atribuem
ao regime comunista.
É mais urna vez o fundador de «Unilabor» quem escreve:
«Agora eu lhe direi por que é que a teoría marxista parece nova e
por que exerce ela tanta atracáo sobre os espirites jovens e generosos
mesmo dos países já desenvolvidos, tanto ou mais até que nos países
desprovidos de progresso material...
É que o marxismo, muito mais que urna teoría sócio-económica, é
urna filosofía, urna visao do mundo e do destino humano, e muito mais
que urna filosofía, é urna fé, urna especie de religiáo secular, urna mís
tica da humanidade em marcha, um messianismo, urna doutrina da
salvacSo, urna esperanca dá redencáo que vira através de urna luta, a
luta de urna classe inocente e justa, oprimida e sofredora, que é a classe
dos que trabalham na produgáo dos bens» (ob: cit. pág. 128s).
Nao permita, pois, o cristáo, por sua inercia, que os valores religio
sos sejam usurpados, contra a Religiáo por homens que dizem nao ter
" ReligiSo, mas que na verdade nao fazem senáo aspirar a Deus e á ver-
dadeira Religiáo. Que o cristao viva mais e melhor a sua Religiáo, nao
sómente na igreja, mas também no lar, no escritorio, na fábrica, na
escola...
Nos quatro tópicos que acabam de ser mencionados, parece resu-
mir-se o essencial da mensagem do Cristianismo aos seus discípulos
e ao mundo na hora presente, mensagem sólidamente credenciada pela
experiencia de «Unilabor» e das empresas similares. Oxalá tais vozes
encontrem o merecido acolhimento por parte dos homens sequlosos

Estévao Beítencoürt O. S. B.

TPEiRGÜNTÉ. E RESPONDEREMOS»
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