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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
P_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO VI -jfi\
índice \

I. TÉCNICA E RELIGIAO
Pág.

1) "Vida na cidade ou vida no campo ? Os homens de hoje '


tendem a abandonar o campo para residir e trabalhar nos cidades.
A conseiéncia crista teña algo a dizer a tal propósito?" S51

H. DOGMÁTICA

2) "A confissao dos pecados já era praticada na, antiga Igre-


ja como condicáo para que kouvesse remissdo da parte de Deus?
Nao se fazia a confissao diretamente ao Senkor, que per- i
doava os pecados sem o ministerio dos sacerdotes ?
A sobriedade dos documentos antigos sobre a confissao parece,
confirmar estas dúvidas" • sss

S) "A confissao feita ao sacerdote será realmente secreta,


de modo tal que dal nao possam decorrer conseqüéncias prejudi-
ciais para mim ?
Que seria o chamado 'sigilo da confissao' ?" 37i

UL SAGRADA ESCRITURA

4) "Como se ká de entender o livro da Sagrada Escritura


dito 'do Eclesiastes', que proclama a vaidade de todas as coisas? ^
Será um eco antecipado do existencialismo de Sartre ou urna
expresado de materialismo debochado ou de epicurismo gozador ,
da vida terrestre ?
Ou contém algum misticismo conciliável com o Evangelko ?" 379
h

IV. DTOEITO CANÓNICO


•i

5) "Os jomáis tém noticiado que o Cardeal Feltin, de París,


estabeleceu classe única para casamentos e enterros, evitando di- 1
ferentes aparatos do cerimonial e abolindo as espórtulas ou taxas \
que se costumavam dar em tais ocasióes. i
Esta medida provocou estranhos protestos por parte de eerto ,
público. i
Por que ? Gomo julgar o caso ?" S88 j

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano VI — N* ó9 — Setembrp.de

I. TÉCNICA E

SOCIÓLOGO (Sao Paulo) : £.* KBUCECfl CluSJl£L


V
1) «Vida na cidade ou vida no campo
hoje tendem a abandonar o campo para residipV-trat
ñas cidades.
A consciencia crista, toña algo a dizer a tal propósito ?»

Responderemos considerando primeiramente o fenómeno


da «urbanizagáo» de nossos tempos, para depois fixar-nos sobre
as conseqüéncias moráis do fenómeno.

1. O fato da urbanizacao

Por «urbanizagáo» entende-se o afluxo de populacho dos


campos para as urbes ou cidades.
O fenómeno é característico dos últimos 150 anos, de modo
que alguns estudiosos o consideram como o fenómeno típico do
séc. XX: «Vamos vivendo a era das cidades mais aínda do
que a era do átomo ou do espago», dizem certos sociólogos.
Ora a mudanca do quadro de vida dentro do qual os homens
se situam, significa sempre revira-volta da historia e comégo
de era nova. Sem dúvida, a humanidade de hoje vai sentindo
os choques materiais e moráis que os novos ambientes de vida
lhe acarretam.
O fato da urbanizagáo se deve, em grande parte, ao da
industrializado ou ao grande progresso da industria e das fá
bricas. Em 1800 o famoso dentista Volta inventou a pilha elé-
trica. Tres anos mais tarde (1803) comegaram a funcionar a
primeira locomotiva e a primeira nave a vapor. Até ésse pe
ríodo os homens eram quase todos camponeses situados em
quadros de vida e de economía medievais.
Dessa época em diante, o aproveitamento da eletricidade
ocasionou o desenvolvimento e a multiplicagáo das usinas e
das fábricas, centros de trabalho que exígiam grande número
de operarios; daí se originou um afluxo crescente de popula-
g5es para- os grandes setores industriáis, o que deu inicio ou
ao menos impulso a muitas das cidades contemporáneas. O
afluxo tomou ritmo galopante, desde que em meados do sáculo
passado se desenvolveram as estradas de ferro e as necessi-

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 1

dades de máo de obra se foram tornando ainda mais prementes,


para atender a .novas e novas descobertas ou realizagóes das
ciencias e das técnicas modernas.
Eis alguns dados numéricos dos mais expressivos :

Existem hoje no mundo cérea de 30.000 cidades com mais de 5.000


habitantes (cada qual), ao passo que em 1800 se contavam apenas 750
dessas aglomeracóes. Existem também 1050 cidades de mais de 100.000
habitantes (cada qual), ao passo que so havia 45 désse tipo em 1800.
A populacho das cidades multiplicou-se por vinte em um século e mcio,
ao passo que a populacho mundial apenas se triplicou.

Segundo o Anuario Demográfico das Nacóes Unidas publicado em


1960, há atualmente no globo 20 nacSes ñas quais mais de metade (mais
de 50%) dos habitantes reside ñas cidades, e 5 nacóes em que esta
cota ultrapassa os 70%. — A media e o ritmo de urbanizacáo nao
deixam de se aumentar continuamente no mundo inteiro, de sorte que
alguns estudiosos julgam que, daqui a ceñí anos, 90% da populacao
do mundo viveráo em cidades. Em confronto com isto, nota-se que a
populacao urbana no ano de 1800 devia atingir apenas a cota de 3%
da populacao mundial; com efeito, calcula-se que em 1800 tenha havido
906 milhSes de homens sobre a térra, dos quais sómente 27.200.000
residiam em cidades.

Seguem-se algumas indicares ainda mais minuciosas.


Sao consideradas nacóes muito urbanizadas
a Holanda, em que 14 cidades de mais de 100.000 habitantes (cada
qual) compreendem 33,1% da populacao nacional;
o Japáo, em que 115 cidades, com a densidade de moradores ácima,
compreendem 41,2% dos habitantes do país;
a Inglaterra, em que há 40 cidades, também com mais de 100.000
habitantes, abrigando 51% da populacao nacional;
a Australia, que conta 8 cidades de mais de 100.000 almas, corres
pondentes a 57,4% da populacao nacional.
Há em algumas grandes cidades, arranha-céus em que, ñas horas
de expediente diurno, trabalham mais de 20.000 pessoas.

Para se ter mais clara nocáo do ritmo de aumento do urbanismo,


ainda seráo úteis as seguintes observacSes :
na Franca, durante o periodo de 1954 a 1962, a cldade de Grenoble
viu sua populacao aumentada de 36%; a de Rennes,... de 24%; a de
Tolosa,... de 20%; a deParis,... de 11% (de 5.800.000 a 6.500.000
habitantes);
Roma conta um acrésdmo medio de 80.000 habitantes por ano;
a Rússia, que em 1926 possuia 31 cidades com mais de 100.000
almas, conta hoje 148 désse teor;
nos Estados Unidos, a cidade de Houston (Texas) de 1950 a 1960
passou da cota de 596.000 habitantes á de 938.000, saltando do 14' ao
7' lugar entre as grandes cidades norte-americanas.
Na Asia e na África, os aumentos ainda sao mais vultuosos.
O Egito, em 1937, apresentava tres" cidades de mais de 100.000 ha
bitantes; atualmente apresenta doze. O Japáo possui 115. Na India,
Bombaim, de 1941 a 1960, saltou de 1.695.000 habitantes a 4.941.000;
Calcuttá de 3.534.000 a 5.909.000; Delhi, de 659.000 a 2.409.000. Cal
cula-se que em geral as grandes cidades da Asia, entre 1900 e 1950,
tenham contado um aumento de 450% de habitantes.

— 352 —"
URBANIZACAO MODERNA E CONSCIÉNCIA CRISTA

Na América Latina, também é impressionante a progressáo :

o México, que em 1940 tinha quatro cidades de mais de 100.000


almas, .hoje conta 18;
na Venezuela, Caracas, que reunía 359.000 moradores em 1941, em
1959 já contava 1.356.000. Nesse mesmo espago de tempo, duplicou-se a
populacho do Rio dé Janeiro.

Para completar o quadro, é oportuno mencionar também os traeos


contrarios da situacáo: apesar de todos ésses Índices ascendentes,
deve-se registrar que a populacáo de cidades representa atualmente
apenas 1/3 da populacáo mundial. Os homens que habitam em cidades
de 100.000 almas ou mais, constituem apenas 13 ou 14% da populacáo
mundial. Na India, as 97 cidades de mais de 100.000 habitantes só
abarcam 8,6% dos habitantes da nagáo; na China, a proporcáo paralela
é de 102 cidades, e 8,3% da populacáo chinesa.

Como se compreende, táo avultado fenómeno nao pode deixar de


repercutir no intimo dos homens contemporáneos, influindo de maneira
marcante em sua formacáo cultural e moral. Sao estas conseqüéncias,
de capital importancia, que passamos a considerar.

2. Vida de cidade e vida humana

O ser humano, que vive dentro do movimento moderno de


urbanizagáo, é psico-somático, ou seja, consta de alma e corpo.
Ora é, sem dúvida, no corpo ou na sua saúde física que
o homem ¡mediatamente ressente os efeitos do respectivo tipo
de vida. Conseqüentemente, sua alma e sua conduta moral se
véem outrossim afetadas. Detenhamo-nos, pois, sucessivamente
sobre cada um déstes dois aspectos do problema.

1) Condicoes higiénicas

Ar contaminado : em um editorial recente escrevia o pre-


feito do Sena (Franca):

«Em demanda de conforto sempre crescente, o homem moderno


tornou-se escravo de técnicas novas, que ele vai descobrindo, e está a
ponto de perecer asfixiado por ter esquecido que ele tem pulm3es».

Com efeito, as usinas proporcionam todos os anos ao


homem novos instrumentos e aparelhos que concorrem para
tornar mais suave e agradável a vida cotidiana; ao mesmo
tempo, porém, desprendem na atmosfera toneladas de poeiras
mais ou menos tóxicas, provenientes das combustóes que rea-
lizam. Para combater éste mal, outras usinas fabricam apa
relhos que filtram e desintoxicam o ar atmosférico; contudo
também isto só se pode obter mediante o lancamento de novas
cargas de tóxicos na atmosfera.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 1

Há grandes cidades, como Londres, Paris, Pittsburgh, Los Angeles,


em que por vézes a fumaga permanente dos ares nao se distingue mais
das nuvens e do nevoeiro, criando um ambiente sempre sombrío e tris-
tonho. Pittsburgh era até 1962 «a cidade sem sol», pois mesmo nos dias
de tempo bom a luz do sol íicava detida pelas ondas de fumaga que ha-
bitualmente pairavam sobre a regiáo. Em Los Angeles, nos dias de
nevoeiro os moradores parecem chorar, pois entáo os vapores que esca-
pam dos automóveis e demais veiculos motorizados se concentram a
pouca altura do solo, provocando irritacáo nos olhos dos cidadáos. As
mais nocivas emanagóes gasosas emitidas pelas usinas e fábricas sao as
de óxido de carbono (CO), anidrido sulfuroso (SO3) e benzopirene.
Embora estas substancias nao matem ¡mediatamente, sua agáo daninha
nao pode deixar de debilitar a resistencia dos organismos; encontrando
um cidadáo já predisposto para a doenga, seu efeito será rápido e alta
mente nocivo, pois desencadeará, como catalisador, a molestia em tal
pessoa. — De modo particular, vem a ser prejudicial o benzopirene,
desprendido por certos veiculos, assim como por chaminés de lareiras
domésticas e fábricas, pois tal tóxico parece cancerígeno, isto é, respon-
sável pelo cáncer pulmonar. As estatisticas indicam que esta molestia
é muito mais íreqüentc em ambientes urbanos do que em meios rurais;
e, em ambientes urbanos, revelam que os casos de cáncer pulmonar sao
práticamente táo numerosos entre os cidadáos qué nao f umam quanto
entre os que fumam (dir-se-ia em tal situacáo que nao é o fumo que
motiva a molestia, mas outro fator próprio das cidades).

Agua nao potável. Nao somante os ares, mas também


as aguas sao contaminadas pelas instalagóes das grandes
cidades.

Outrora a agua potável era levada para os centros urbanos direta-


mente a partir das fontes. Hoje éste recurso já nao basta para satisfa-
zer as ¡mensas necessidades das industrias e dos cidadáos. O volume de
aguas captado ¡mediatamente das fontes tornou-se por vézes irrisorio.
As grandes cidades utilizam os ríos que freqüentemente as irrigam.
Essa agua é evidentemente impura, pois nela sao langados os mais
diversos detritos que as populacóes e as fábricas elíminam; é preciso
tratá-las adequadamente para que possa ser fornecida ao público
urbano. Existem, portanto, grandes postos de saneamento que visam
purificar as aguas de consumo das cidades; nesses estabelecimentos o
precioso liquido é submetido á agáo de produtos desinfetantes e final
mente testado por «provadores de agua» de quinze em quinze minutos;
a seguir, passam para os canos da rede de distribuicáo urbana. Em algu-
mas cidades, até mesmo as aguas já usadas s&o dessa forma recupe
radas; é o que se dá, por exemplo, em Paris, onde 20% das aguas elimi
nadas sao de novo aproveitadas.
Verifica-se, porém, que o processo de purificacáo concorre, do seu
modo, para contaminar o precioso liquido: antibióticos, pesticidas, hi-
drocarbúrios, ingredientes químicos e lubrificantes (que servem para
limpar e entreter as máquinas de saneamento), atuando sobre as aguas,
nao deixam de exercer sobre elas certa agáo nociva, tornando-as pouco
favoráveis á vida vegetal e animal, e, conseqüentemente, prejudiciais á
saúde publica. Contra éste perigo — é preciso recórihecéJo — os labora
torios de higiene vém últimamente.trabalhando denodadamente.

— 354 —
URBANIZACAO MODERNA E CONSCOBNCIA CRISTA

Entrementes insistem os estudiosos em dizer que a agua


dita «potável» ñas grandes cidades nerri sempre merece irres-
tritamente tal título.

Ruido e agitacáo. Além do ar e da agua, há outros fa-


tores, menos perceptiveis, de molestias dos cidadáos. Entre
estes, deve-se apontar o barulho dos grandes centros urbanos,
barulho que dizem ser táo nocivo quanto o ar contaminado.

Inegavelmente, sao múltiplas as fontes de ruido ñas cidades : vei-


culos em tráíego ñas rúas, piquetes, perfuradores e máquinas de edifi
cios em construcáo, de calcadas e arterias em reparo, aviSes que sobre-
voam as casas, etc. — Avalia-se em 10 decibéis o ruido de urna conversa
tranquila; em 30, o de urna rúa de suburbio, e em 80 o de urna grande
arteria de cidade.

E quais seriam, para a subsistencia humana, os efeitos


do barulho ?
Em primeiro lugar, aponta-se a surdez, que é considerada
como urna das doengas da civilizagáo moderna.

Um especialista inglés declarou recentemente que, a partir dos


trinta anos de idade, um cidadao moderno já nao goza de audicáo per-
felta, e corre 50% de risco de se ver surdo aos 65 anos. Ao contrario,
ñas regióes mais remotas da África e da América do Sul, onde nao há
prdpriamente cidades, 90% dos habitantes nativos ainda possuem ou-
vido perfeito aos 65 anos de idade.

Além disto, o barulho pode provocar perturbac5es fisio


lógicas. Aplicou-se ao estudo déstes fenómenos o Médico Coro
nel Dr. P. Grognot, Diretor de Pesquisas dos Servigos de Saúde
do Exércitó Francés; entre outros resultados, averigüou que
num homem submetido á agáo de barulho complexo cuja in-
tensidade sonora global atinja os 80 ou 90 decibéis, a respi
rado se acelera e aumenta-se o número de pulsagóes cardía
cas, provocando elevagáo da pressáo arterial. Quando a reper-
cussio dé tal ruido é muito prolongada, acarreta modificagóes
circulatorias; e respiratorias semelhantes as que se dáo em
casos de fadiga muscular. Assim se explica um fato registrado
pela experiencia dos médicos: a proporgáo de molestias car
díacas e circulatorias é mais elevada ñas pessoas que traba-
lham em ambiente ruidoso do que ñas que labutam em meio
tranquilo, embora se apliquem todas á mesma tarefa penosa.

O barulho suscita . também reagSes neuro-musculares; eleva-se


assim o «tOnús ..muscular», o que redunda em prematuro cansaco do
trabalhador. '■

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 1

Perturbagóes digestivas e mau íuncionamento das glándulas endo


crinas sao outros tantos eíeitos daninhos do ruido sobre o organismo
humano.
Por último pode-se assinalar urna conclusáo dos peritos do Centro
de Estudos e Pesquisas de Medicina Aeronáutica de Franca: observa-
ram que ruidos complexos provocam disturbios na percepcáo de certas
cdres (em particular, do verde), diminulgáo na faculdade de distinguir
os relevos, e redugáo da visao noturna.

Estas verificaQóes interessam nao sómente ao técnico ou


ao especialista em Medicina e Saúde Pública, mas tambémao
cristáo como cristáo, pois denotam um abalo das condigóes
normáis da vida humana. Embora a mensagem crista seja re
ligiosa e sobrenatural, o discípulo de Cristo sabe que essa men
sagem se dirige a homens dotados de corpo e alma, homens
nos quais é inegável a influencia do corpo e do corpóreo sobre
a alma. Indiretamente, portanto (embora apenas por redun
dancia), o cristáo se interessa pelo que diz respeito á digni-
dade da vida humana no corpo e na materia, ou seja, pelo que
diz respeito ao funcionamento normal de tudo aquilo que cons
tituí o ser humano como tal.
Contudo aínda maior atencáo merecem da parte nao só
mente dos cristáos, mas também de todos os homens de cons-
ciéncia reta, as coñseqüéncias moráis da vida ñas grandes ci-
dades. Sao estes efeitos que passamos agora a considerar sob
o titulo de

2) «Doencas dos grandes conjuntos»

«Grandes conjuntos»... Eis como sao, por vézes, designa


dos os pujantes edificios da civilizacáo moderna, em que vivem
e trabalham dezenas ou centenas de familias e funcionarios,
comprimidos em pequeños apartamentos ou escritorios.
Ésses conjuntos possuem sua atmosfera característica:
atmosfera que visa demais o funcional, o prátíco, o económico,
e pouco atende as necessidades mais profundas da alma hu
mana ; esta se senté mais ou menos encarcerada ou sufocada
dentro désses imóveis, que engavetam a vida do homem, limi
tando suas livres e sadias expansóes, principalmente quando
se trata de edificios residenciáis. Em conseqüéncia, tem-se dito
que os edificios de apartamentos assim concebidos vém a ser
simplesmente «usinas de sonó» (meras pousadas para passar
a noite). As pessoas que ai residem, prorrompeni fácilmente etn
queixumes contra as cóndigóes de vida em que se encontram;
inquéritos realizados na Europa junto a moradores de aparta
mentos tém revelado que, em alguns casos, 50% ou mais dos

— 356 —
URBANIZACAO MODERNA E CONSCIBNCIA CRISTA

inquilinos estáo descontentes com sua habitagáo (dimensóes ou


acondicionamento das pegas e dos servigos do edificio) ; em
algumas regióes, a legislagáo civil exige que se destine a cada
cidadáo a superficie de 7 m2 para habitar; em conseqüéncia,
duas pessoas podem legalmente residir em urna só peca. Disto
resulta em nao poucos moradores de apartamentos a tenden
cia, consciente ou inconsciente, a fugir de casa, a viver fora
do lar, seja ñas rúas, seja em clubes ou casas de divertimentos,
quando nao se acham em seus ambientes de trabalho obriga-
tório. As criangas, urna vez fora do apartamento, nao tém
para onde ir a nao ser os parques públicos e as rúas; ai en-
tregam-se aos folguedos, sujeitas a influencias incontroláveis,
a companhias e sugestóes das mais diversas modalidades — o
que nao pode deixar de favorecer a delinqüéncia infantil e as
aventuras da «juventude transviada».

Em Janeiro de 1963, a Sra. V. V. Stanciu, advogada da Corte de Ape-


Iagóes de Franca e Secretaria Geral da Sociedade Internacional de Pro
filaxia Criminal, fez a Academia das Ciencias Moráis e Políticas de
Paris urna comunicacáo sdbre a criminalidade em Paris : mostrou entáo
como a delinqüéncia em geral, e a delinqüéncia juvenil em particular,
na maiorla dos casos tém sua origem no fato de estarem superlotados
os alojamentos. Os principáis focos de criminalidade, notava a oradora,
sao, para os adultos, os hoteis de ¡uxo e, para os menores; os grandes
conjuntos residenciáis; para escapar á monotonía acabrunhadora dos
. apartamentos, os jovens se entregam as aventuras e os adultos aos
clubes de babeo nivel. E concluía: «A influencia do aloj amento é o
máis importante fator gerador de crimes. Os dados (contidos na comu
nicacáo da Sra. Stanciu) foram rigorosamente averiguados e compro-
. vados; devem levar a reflexáo os partidarios das cidades verticais».

Pode-se acrescentar que, abstracto feita dos crimes re


sultantes da vida em apartamentos, o simples fato de que a
pessoa humana se vé constrangida e sufocada em seu conjunto
residencial vem a ser fonte de desequilibrio nervoso e outros
males psico-somáticos, que nao podem deixar de ter conse-
qüéncias prejudiciais para a vida moral dos interessados.

É por estes motivos que a consciéncia crista tem algo a


dizer sobre o fenómeno da urbanizagáo como ele se vem pro-
cessando em nossos dias, com o seu caráter de gigantismo de-
sumano e esmagador. Enquanto o áfluxo para as cidades se
dá com táo graves conseqüéncias físicas e moráis, os campos
e a vida rural váo sendo desertados, com notável detrimento
para as nagóes e os individuos. A vida rural, sendo mais con
forme a natureza, apresenta-se mais propicia para o desen-
yolvimento dá personalidade humana do que a vida por de-
mais artificial ou funcional que se costuma levar ñas grandes

— 357 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 1

aglomeracóes urbanas. É. claro, porém, que o homem do campo


só poderá ser detido em seu ambiente nativo se as autoridades
Ihe fornecerem os meios de prover á sua formacáo e as exi
gencias de sua profissáo no meio rural mesmo, evitando-lhe a
necessidade de se transferir para a cidade.
Por conseguinte, a solucáo dos problemas humanos e mo
ráis que a urbanizacáo de nossos dias ocasiona, depende em
grande parte da melhora e da intensificagáo dos servicos de
assisténcia ao lavrador, seja patráo, seja operario, no seu pró-
prio ambiente agrícola (escolas, hospitais, instrumentos e ou-
tros meios de trabalho, financiamento constituiriam objetivos
a visar sem demora).

Sao estas, alias, as linhas de conduta, na hora presente, que o


S. Padre o Papa Joao XXIII deixou assinaladas em sua memorável en
cíclica «Mater et Magistra»:

«120 É incontestável que se dá um éxodo das populacóes rurais


em direcáo dos centros urbanos. É um fato que se verifica em quase
todos os países e algumas vézes atinge proporcóes enormes, criando
problemas humanos complexos, difíceis de resolver.

121 Pensamos que o éxodo da populacho, do setor agrícola para


outros setores produtivos, nao é provocado sóménte pelo progresso
económico. Deve-se a múltiplas outras razfies, como a vontade de fugir
de um ambiente considerado estreito e sem íuturo; a sede de novidades
e aventuras que domina a geracao presente; a esperanca de enriqueci-
mento rápido; a miragem de urna vida mais livre, com os meios e faci
lidades que oferecem os aglomerados urbanos. Mas julgamos que nao
se pode duvidar de que éste éxodo é também provocado pelo fato de ser
o setor agrícola quase em toda parte um setor deprimido, tanto no que
diz respeito ao Índice de produtividade da máo-de-obra como pelo que
se refere ao nivel de vida das populagSes rurais.

122. Daí um problema de fundo, que se apresenta a quase todos


os Estados : como reduzir o desequilibrio da produtividade entre o
setor agrícola, por um lado, e o setor industrial e os varios servicos,
por outro lado?...

124. Primeiramente, é indispensável que exista o empenho, sobre-


tudo por parte dos poderes públicos, em que, nos ambientes agrícolas,
se desenvolvam, como convém, os servicos essenciais: estradas, trans
portes comunicagóes, agua potável, alojamento, assisténcia sanitaria,
instruéáo elementar, formacáo técnica e profissional, boas condicoes
para a vida religiosa, meios recreativos e tudo o que requer a casa
rural em mobiliario e modernizacao. Se faltarem nos meios rurais estes
servicos, que hoje sao elementos constitutivos de um nivel de vida
digno, o desenvolvimento económico e o progresso social vém a tornar-
-se quase impossiveis ou demasiado lentos. Donde resulta que o éxodo
da populacho rural se torna práticamente inevitável e difícilmente se
consegue disciplinar.

— 358 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

125. É necessário também que o desenvolvimento económico da


nagáo se realize de modo gradual e harmonioso entre todos os setores
produtivos. Isto quer dizer : é preciso que no setor agrícola se realizem
as transíormacóes que dizem respeito as técnicas da produgáo, á escolha
das culturas e á estruturagáo das empresas, conforme as permitir ou
exigir a vida económica no seu conjunto, de maneira que se atinja,
logo que seja possível, um nivel de vida conveniente, comparado com o
do setor da industria e dos varios servigos

141. Estamos convictos de que os protagonistas do progresso


económico e social e os da elevagao cultural nos meios rurais devem
ser os próprios interessados, isto é, os lavradores. Podem fácilmente
persuadir-se de quanto é nobre seu trabalho : vivem no templo majes
toso da criaeao; estáo em relac5es freqüentes com a vida animal e vege
tal inesgotável ñas suas expressSes e inflexivel ñas suas leis, vida que
Iembra constantemente a Providencia do Criador. Das máos dos lavra
dores, por assim dizer, brotam, em toda a sua variedade, os alimentos
que sustentam a familia humana, e com essas mesmas maos os homens
do campo fornecem á industria um número cada vez maior de materias-
-primas.

142. O trabalho agrícola manifesta igualmente a dignidade dos


que o desempenham, e distingue-se pela riqueza dos conhecimentos de
mecánica química e biología que exige; conhecimentos que devem atua-
lizar-se constantemente, tantas sao as repercussSes dos progressos técni
cos e científicos no setor agrícola. É, finalmente, um trabalho caracteri
zado pelos aspectos e valores moráis que lhe sao próprios, pois exige
agilidade na orientacáo e adaptacáo. paciencia na espera, sentido da
responsabilidade, espirito perseverante e empreendedor...

146. O homem encontra no trabalho agrícola mil incentivos para


se afirmar, progredir e enriquecer, mesmo na esfera dos valores do
espirito. É, portanto, um trabalho que se deve considerar e viver como
vocagáo e missáo, isto é, como resposta ao convite recebido de Deus
para colaborar na realizacáo do seu plano providencial na historia, como
compromisso assumido pelo homem a fim de se elevar a si e elevar
aos outros, e ainda como auxilio prestado á civilizacáo humana».

Note-se nos §1141, 142 e 146 ácima a énfase com que o Sumo Pon
tífice, em nome da genuína consciéncia crista, exalta o valor profunda
mente humano, ou mesmo religioso, do trabalho agrícola : o lavrador é
direto colaborador de Deus ao lidar sabiamente com a natureza que o
cerca. O homem da cidade. ao contrario, corre o risco de se embotar e
perder o auténtico sentido da vida.

H. DOGMÁTICA

RELIGIOSA M. P.:

2) «A confissao dos pecados já era pratícada na antiga


Igreja como condicáo para que houvesse perdáo da parte de
Deus?

— 359 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 2

Nao se fazia a confissáo diretamente ao Senhor, que per-


doava os pecados sem o ministerio dos sacerdotes ?
A sobriedade dos documentos antígos sobre a confissáo
parece confirmar estas dúvidas».

A questáo ácima aborda assunto muito vasto, que na presente res-


posta será considerado estritamente dentro da perspectiva indicada
pelo consulente. Suporemos o que já foi dito sobre a confissáo sacra
mental em

«P. R.» 4/1957, qu. 3: a confissáo sacramental foi instituida pelo


próprio Jesús Cristo. É o que decorre do texto de Jo 20,19-23: o Senhor
confiou aos Apostólos um verdadeiro poder judiciário de absolver ou
nao absolver os pecados; destarte constituiu-os auténticos arbitros das
consciéncias, habilitándoos a proferir sentengas de absolvicáo ou cen
sura que seriam confirmadas pelo próprio Deus.
Ora quem constituí um arbitro nao pode deixar de Ihe conceder os
meios necessários para que exerga equitativamente a arbitragem. Entre
ésses meios, está o conhecimento exato do assunto a julgar,. da culpabi-
lidade e das disposicóes do réu. Já que estes elementos pertencem ao
foro da consciéncia e nao se manifestam senáo por confissáo, segue-se
que Jesús, com o poder das chaves, entregou aos seus ministros a in
cumbencia de ouvir a confissáo sacramental dos pecadores; sonriente
depois desta acham-se habilitados a absolver ou repreender em nome
de Deus;

«F. II.» 8/1957, qu. 4: o histórico do sacramento da Penitencia


mostra que era, na antiga Igreja, administrado de maneira diversa da
que é adotada hoje em dia (as concepcoes doutrinárias teológicas nao
mudaram; apenas a disciplina variou) : o rigor predominava, de modo
que nos primeiros séculos só se administrava urna vez na vida o sacra
mento da Penitencia; a satisfacáo era prestada públicamente, durante
periodo mais ou menos prolongado e anterior á absolvicáo.—Tal praxe
era, sem dúvida, assaz penosa, exigindo grande fé e fervor da parte dos
penitentes. Difícilmente, no decorrer dos séculos, se poderia continuar
a supor tais qualidades ñas pessoas que haviam pecado; quanto mais
se aumentava o número de cristáos, tanto mais era preciso levar em
conta as ovelhas iracas do rebanho. Asslm foi sendo lentamente abran-
dada a disciplina penitencial (sem derrogagáo ao dogma), a fim de nao
afugentar do sacramento as almas menos corajosas, as quais correriam
o risco de ficar muito tempo, e mesmo morrer, sem a absolvicáo sacra
mental : atualmente, como se sabe, a absolvicáo é dada logo após a
confissáo; a satisfacáo a ser executada depois disto é geralmente leve;
o restante de satisfacáo devida aos pecados ou é prestado pelo peni
tente no decorrer desta vida (o que é muito desejável e normal) ou no
purgatorio após a morte (o que é menos desejável). Desta forma, a
Igreja deixa a aplicacao do rigor penitencial ao criterio de cada um de
seus filhos e do respectivo confessor.

Supondo estas nogóes básicas (seria muito oportuno que o leitor


conferisse os dois citados artigos de «P. R.»), procuraremos, no pre
sente estudo, focalizar o proceder dos antigos cristáos, a fim de averi
guar se a coníissao dos pecados (instituida por Cristo no Evangelho)

— 360 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

era realmente praticada e se era tida como obligatoria para a remissáo


das faltas, á semelhanca do que se dá atualmente na Igreja. Em outros
termos: procuraremos averiguar se há continuidade entre a doutrina
contida no Evangelho e a prática hoje vigente entre os católicos.
Antes do mais, porém, impSem-se algumas

1. Observagóes preliminares: a sobriedade das fontes

Nao nos deve surpreender o fato de que os documentos


da antiga Cristandade nao sao muito explícitos no tocante ao
sacramento da Penitencia. O fenómeno se explica sem grande
dificuldade:

1) Nos primordios da Igreja (principalmente nos séc.


I/U) os cristáos nao costumavam escrever tratados sistemá
ticos sobre as verdades e as práticas da fé; nao nos deixaram,
portante, alguma obra que exprimisse de maneira concate
nada e completa tudo o que pensavam e faziam no tocante á
remissáo dos pecados.

As preocupacoes dos antigos escritores cristáos eram mormente

de Índole pastoral, visando questOes que iam surgindo esporádica


mente ñas comunidades cristas, ou

de Índole apologética, tratando de pontos da doutrina crista contes


tados por judeus ou pagaos. Ora é certo que a penitencia prestada por
cristáos no seio da Igreja nao era objeto de consideracao especial nem
de controversia por parte dos nao-cristaos. Nota o escritor Tertuliano
(séc. III) que todos os cidadáos podiam observar o processo de conver-
sao de um companheiro pagáo que abracasse o Evangelho e recebesse
o batismo; quanto á reconciliacao de um pecador, sendo questáo de dis
ciplina interna da Igreja, nem mesmo os judeus a podiam imaginar:

«A primeira conversáo (a do batismo) é notoria até mesmo aos


pagaos. Esta outra, porém, que se realiza na Igreja, nao é conhecida
nem aos judeus.
Illa etiam ethnicis relucet; haec vero, quae in ecclesiis agitur, ne
Iudaeis quidem nota est» (De pudicitia 9, 19).

Leve-se em conta outrossim que

2) o recurso ao sacramento da Penitencia era muito


menos freqüente outrora do que hoje.

Só se administrava urna vez na vida tal sacramento. A praxe era


táo rigorosa que as autoridades da Igreja julgavam nao ser oportuno
repeti-la; quem pecasse gravemente após haver íeito penitencia pú
blica, nao ficava sem esperanca de salvagao, mas os bispos lhe reco-
mendavam que procurasse expiar a sua falto diretamente diante de
Deus mediante a virtude da penitencia; assim queriam evitar, fósse o
sacramento profanado ou recetado levianamente, sem disposigñes da

— 361 —
sPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 2

parte do sujeito. Por certo, nao eram razóes dogmáticas que levavam
a recusar a repetigáo do sacramento da Penitencia mas únicamente
motivos de índole disciplinar e pastoral, que um día poderiam fácil
mente ceder a outra praxe.
Em conseqüéncia, multas pessoas so recebiam o batismo no fim da
vida; desejavam assim conservar para os seus últimos dias ainda urna
oportunidade de se reconciliar com Deus e a S. Igreja, caso viessem a
pecar mortalmente após o batismo.
Merece atencáo também o fato de que

3) os fiéis só procuravam o sacramento da Penitencia


nos casos de culpas graves ; as faltas mais leves (que S. Agos-
tinho chamava «cotidianas») eram expiadas pela mortificacáo
e as obras boas que cada qual podia praticar em particular.
Em termos mais usuais, diríamos: só recorriam ao sacra
mento da Penitencia quando havia materia obrigatória para
isto; nao praticavam a «confissáo de devocáo», hoje em dia
comum entre os fiéis. — Além disto, sabe-se que nao era muito
clara aos antigos cristáos a distingáo entre pecado grave (mor
tal) e pecado leve (venial). De fato, muitos se convertiam ao
Evangelho após haver passado longos anos no paganismo; tra-
ziam urna consciéncia pouco esclarecida, como que tendente a
desconhecer a hediondez de certos vicios comuns entre os pa
gaos ; só. aos poucos se despertava néles a delicadeza dé cons
ciéncia.

S. Agostinho, por exemplo, supunha, entre os seus ouvintes na


igreja, alguns que julgavam nao incorrer em falta se tivessem livres
relagóes com as suas escravas ou com mulheres nao casadas. S. Basilio
se queixava de que muitos fiéis só davam importancia aos pecados que
deviam obrigatóriamente ser expiados por penitencia canónica: morti
cinio, adulterio, apostasia da fé...; os outros nao lhe pareciam merecer
censura (De iudicio Dei 7 ed. Migne gr. 31, 669).
Nao há dúvida, ésse estado de ánimo pouco esclarecido a respeito
do pecado era algo de lamentável. Contudo os liéis que, por eíeito de
sua educacáo, sem culpa própria possuiam tal consciéncia, podiam
salvar-se caso seguissem, com toda a boa fé e sinceridade, os ditames
dessa consciéncia; Deus julga cada um dos homens de acordó com as
respectivas possibilidades, nao exigindo o que o individuo nao pode dar.

Acrescente-se ainda :

4) É preciso renunciar a encontrar nos documentos da


Igreja antiga exatamente as mesmas práticas vigentes entre
os católicos de hoje.

A Igreja, como o grao de mostarda, vai desenvolvendo a sua vitali-


dade sob novas e novas formas através dos séculos, sem contudo perder
a sua estrutura ou a sua autenticidade (cf. Mt 13, 31s e «P. R.» 10/1958,

— 362 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

qu 2- 39/1961, qu. 2); as práücas disciplinares e os ritos da Liturgia


sao express8es variáveis da vida crista, sujeitas portante a se adaptar
a épocas e povos diversos. É o que se verifica de modo especial no setor
dos sacramentos,... tanto no da Penitencia, como já foi observado em
<P. R.> 8/1957, qu. 4, como no da Eucaristía : a fé na real presenca do
Senhor eucaristico manifestava-se nos primeiros sáculos sob formas que
a um cristaó moderno poderiam parecer sacrilegas: os fiéis levavam
para casa partículas consagradas e as conservavam a fim de poder
comungar todos os dias (mesmo quando nao houvesse Missa) e em
viagem; freqüentemente traziam consigo sobre o peito um fragmento
eucaristico, a guisa de reliquia ou medalha; nao raro colocavam urna
parcela da Eucaristía no sepulcro de um defunto, desejando assim pro-
íessar que a Eucaristía é o fermento da imortalidade, o penhor da res-
surreicao...

Estas observagóes já bastam para dar a ver que o silencio


ou a sobriedade das fontes antigás no tocante as partes inte
grantes do sacramento da Penitencia pouca importancia tem.
O simples fato de que as fontes históricas nao mencionam com
clareza tal ou tal praxe penitencial, ainda nao constitui funda
mento para se dizer que essa praxe nao existia na Igreja
nascente.

Como quer que seja, passemos agora ao exame dos documentos dos
primeiros séculos, a fim de apurar o que néles se pode encontrar sobre
a confissáo dos pecados.

2. A Igreja e a remissao dos pecados

A fim de chegar a conclusáo segura, dividiremos o nosso percurso


am tres etapas:

1) Qual o papel que os mais antigos testemunhos atribuiem á


Igreja na remissfio dos pecados ?
Terá sido a intervencáo da Igreja considerada necessária? E, se ne-
cessária, atribuiam-lhe apenas o papel de declarar que os pecados esta-
vam perdoados direfaunente por Deus? Ou assinalavam-lhe a funcáo de
absolver as culpas em nome do Senhor Deus (funcáo de juiz ou de
arbitro) ?

2) Para que houvesse remissao dos pecados, exigia-se (ao menos


ñas circunstancias normáis) a confissáo previa dessas faltas?

3) Tal confissáo era pública ou secreta?

Consideremos de per si cada um désses quesitos.

1) A intervenga© da Igreja na remissao dos pecados

A análise dos textos leva a concluir que os antigos cristáos


tinham a intervengáo da Igreja como algo de necessário para

— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 2

a remissáo dos pecados. Mais ainda: á Igreja atribuiam o


papel de Juiz que absolve, nao apenas o de observador que
declara,
a) A fonte mais remota donde se pode depreender tal
Conclusáo, é o próprio Evangelho, nos trechos de Mt 16,12s;
18,18 eJo 20, 21-23.

Mt 16,18 «(Declarou Jesús a Pedro) : 'Eu te digo que tu és Pedro


e sobre essa pedra edificarei minha Igreja e as portas do iníerno nao
prevalecerao contra ela. 19 E eu te darei as chaves do reino do céu.
Tudo o que ligares sobre a térra, será ligado no céu e tudo o que des
ligares sobre a térra, será desligado no céu'».

Mt 18, 18 «(Disse Jesús aos Apostólos) : 'Em verdade vos digo:


tudo o que ligardes sdbre a térra será ligado no céu, e tudo o que des-
ligardes sobre a térra será desligado no céu'».

Jo 20 21 «Disso Jesús aos Apóstelos : 'A paz esteja convosco!


Assim como o Pai me enviou, também eu vos envió'. 22 Em seguida,
soprou sdbre éles, dizendo : 'Recebei o Espirito Santo. 23 Os pecados
seráo perdoados aqueles a quem os perdoardes e serao retidos aqueles
a quem os retiverdes'».

O sentido déstes textos já íoi explanado em «P. R.» 3/1957, qu. 3;


8/1957, qu. 4.
Completando o que ai foi dito, consideraremos aquí algumas
objec5es formuladas contra a exegese proposta.
A respeito do texto de Mt 18 em particular, há quem julgue que
a iaculdade de ligar e desligar (usar de rigor ou indulgencia, permitir
ou proibir) entregue por Jesús aos Apostólos visava apenas a disciplina
exterior da Igreja, e nao própriamente as consciéncias e os pecados.
A esta objecáo se deve responder que as palavras do Senhor nao
comportam restricto («Tudo o que ligardes... desligardes...», Mt
18,18). É preciso outrossim lembrar que, conforme o Divino Mestre, o
juizo dos Apostólos é confirmado no céu — o que dá a entender que os
Apostólos haviam de exercer um poder que própriamente convém a
Deus (o poder de perdoar os pecados) e que o Senhor Deus quis confiar
á sua Igreja.

Outros objetam que Jesús em Mt 18,18 quis apenas exortar os seus


discípulos a perdoar sempre; para inculcar esta norma, terá prometido
que o perdáo outorgado pelo irmao ofendido ao ofensor é confirmado
pelo próprlo Deus no céu. — Nao será difícil reconhecer a falha desta
interpretacao: o poder de que trata o texto, citado nao pode convir a
um individuo ofendido, mas a Igreja como tal, pois, em caso contrario,
se deveria admitir que, se o individuo ofendido nao quer perdoar ao seu
ofensor, nem Deus perdoa a éste.
Na passagem de S. Joáo, o Senhor ressuscitado já fala sem metá
fora : confere explícitamente aos seus Apostólos o que Ihes prometeu
em Mt 16 e 18, isto é, o poder de perdoar ou nao perdoar os pecados
mediante sentenca judiciária que o próprio Deus confirma. Assim a
verdade envolvida ñas figuras precedentes é formulada de maneira
clara e categórica, e o plano de Deus se desvenda com lucidez : Pedro,

— 364 —
CÓNFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

fundamento da Igreja, recebeu em primeiro lugar a promessa dos ple


nos poderes que ele haveria de exercer soberanamente; a seguir, os
outros Apostólos receberam a promessa dos poderes, que éles exercé-
riam ém dependencia de Pedro, Por íim, todos os Apostólos receberam
distintamente poderes referentes á remissáo dos pecados.

b) A conduta dos Apostólos, descrita pelos documentos


do Novo Testamento, confirma a explicagáo ácima dada &s
palavras de Jesús. Sim; os discípulos do Senhor exerceram
realmente a fungáo de arbitros das consciéncias: desligaram,
isto é, perdoaram, mas também ligaram, isto é, puniram os
impenitentes. Eis os principáis testemunhos :

At 5,1-11. No caso de Ananias e Safira, que mentiam e defrauda-


vam, Sao Pedro nao hesitou em proferir urna palavra de repreensáo, a
qual foi {mediatamente confirmada pelo castigo divino.

At 8,9-24. Encontrando-se com Simáo Mago, que desejava ganhar


dinheiro mediante os dons de Deus, Sao Pedro reconheceu que nada
podía fazer para o curar, já que o coracáo de Simao nao era sincero;
em conseqüéncia, recomendou ao delinqüente a oracáo e o arrependi-
mento, entregando-o por fim diretamente ao juizo de Deus.

1 Cor £,1-13. Sao Paulo excomungou o incestuoso de Corinto.


Note-se a énfase judiciárla da sentenca : kékrika, julguei, diz Sao Paulo
no vers. 3.
A excomunháo é pelo Apostólo apresentada como «entrega do pe
cador a Satanaz», visto que o demonio pode mais livremente exercer a
sua acáo sdbre alguém que esteja excluido da Igreja. Nao se tratava
propriamente de possessáo diabólica, nem de morte corporal, mas de
penas espirituais e corporais («para mortificar a carne»,, no vers. 5),
com finalidade estritamente medicinal, e nao vingativa («para que o
espirito se salve no dia do Senhor», ib.). O pecador assim tratado pelo
Apostólo parece ter feito penitencia, merecendo finalmente a reconcilia-
cáo de que, conforme os melhores exegetas, fala o Apostólo em 2 Cor
2,5-11. A reconciliadlo, dizia S. Paulo té-la dado «em presenca de Cristo»
(cf. 2 Cor 2,10); o que quer dizer : sob a autoridade do próprio Cristo.

1 Tina 1, 20. O mesmo Apostólo lancou a excomunháo («entregue!


a Satanaz», diz o texto) sdbre Alexandre e Himeneu, os quals, depois
de haver naufragado na íé, blasfemavam. Esperava que se deixassem
abalar e aprendessem a nao mais blasfemar, isto é, fizessem penitencia.

De resto, Sao Paulo alude freqüentemente ao «ministerio da recon-


ciliacáo» que ele recebeu; cf. 2 Cor 5,18-20; 7,9; 12,20s.

Ésses episodios, esporádicamente consignados nos escritos


do Novo Testamento, evidenciam que os Apostólos, em nome
de Cristo, exerciam verdadeiro poder judiciário sobre as cons
ciéncias e o pecado; ésse poder nao tinha efeitos meramente.
invisiveis, mas implicava em comunháo com a Igreja- oüvexco-j r .
munháo da Igreja visível; era, sim, pela Igreja é mediante íaílC;;
Igreja que o poder das chaves se aplicava as almas. ....—-
. . • t

— 365 — ' ■'•"•■-


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 2

Pergunta-se agora: os sucessores dos Apostólos teráo


tido consciéncia da haver herdado tal poder ? Pode-se provar
que o tenham exercido ?

A resposta a estas questóes coincidirá com a da indagacáo abaixo.


Com efeito; Ieve-se em conta que o exercicio de um julgamento supSe
conhecimento de causa; ora, quando se trata de pecados, éste conheci-
mento nao pode ser obtido senáo mediante revelacáo feita pelo' próprio
pecador, ou seja, mediante confissáo. Disto se segué que, se as antigás
geracóes cristas tinham a confissáo aos sacerdotes como algo de obri-
gatório (conforme será demonstrado adiante), professavam que a sen-
tenga dos ministros de Deus era sentenca de juiz ou arbitro e que essa
sentenga constituí o trámite necessário, instituido por Cristo, para pro
porcionar o perdáo das culpas.

Indaguemos, pois :

2) Para que houvesse remissáo dos pecados, exigia-se na


Igreja antiga (ao menos em circunstancias normáis) a con
fissáo previa dessas faltas ?

Em resposta, chamamos logo a atencáo para o fato de


que a literatura crista se foi formando lentamente, de modo
que so no decorrer. dos tempos se foram explicitando as noticias
referentes ao nosso assunto.
Merecem destaque os testemunhos seguintes :

A «Didaqué», opúsculo de fins do séc. I, prescrevia :

«Na Igreja confessarás os teus pecados, e nao te chegarás á oracáo


com a consciéncia má» (4,14).
Donde se segué que, pela confissáo dos pecados, se tornava boa (ou
pura) a consciéncia dos penitentes. Verdade é que a confissáo assim
mencionada bem poderia ser um reconhecimento geral de culpabilidade,
sem acusagáo especifica dos pecados.

A epístola do Pseudo-Barnabé (cérea de 100-130) formula seme-


Ihante exortagao, insinuando que cada cristao acusava a si mesmo
(cf. 19,12). Nao se exagere, porém, o alcance désses dois textos; podem
referirle a urna confissáo geral de pecados, como a costumavam fazer
os judeus em seu culto.

Bao Clemente de Roma (96-98) admoestava alguns cristáos sedicio


sos de Corinto:
«Em obediencia sede submissos aos presbíteros, e recebei a sentenca
de penitencia, dobrando os joelhos dos vossos coragSes» (57,1).
Parece tratar-se aqui de penitencia oficial, pública; nao é mencio
nada confissáo previa .

Sao Policarpo (t 156) inculcava aos presbíteros, usassem de cle


mencia e zélo para com os pecadores, «evitando demasiada severidade
no julgamento, pois todos devemos ter consciéncia de que somos réus
de pecado» (Flp 6,1).

— 366 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

S. Ireneu (t cérea de 202) alude ao caso de mulheres cristas que


haviam sido seduzidas pelos discípulos de um impostor gnóstico (hereje)
chamado Marcos; dá entao a entender que, para obter o perdáo de
Deus, era necessário confessassem os seus pecados e recebessem a re
conciliacáo pelo ministerio da Igreja :

«Algumas íazem abertamente a sua confissáo; outras, porém, nao


tém coragem para a íazer e assim se condenam... ou a perder toda a
esperanga de recuperar a vida divina, ou á permanecer para sempre no
limiar, nem dentro nem íora (da I greja)» (A. H. 113).

Neste trecho é bastante significativa a afirmaejio de que, em todo


e qualquer caso, só pode haver vida divina (ou seja, vida na grac.a san
tificante, a verdadeira vida), para o cristáo, dentro da Igreja; é sómente
como membro vivo da Igreja visivel que o cristáo realiza adequada-
mente a sua profissáo de fé. Por isto nao há, para o pecador, recupe-
racáo da vida divina se a Igreja nao dá a comunháo consigo mesma, isto
é, se a Igreja nao dá a reconciliacáo — reconciliacáo que vem através
de ministros devidamente informados no caso mediante a confissáo
do penitente. É, em última análise, por causa desta grandiosa visáo das
coisas que a confissáo dos pecados se torna imprescindivel para a re
missáo das faltas. — Por ora, deixamos de lado a questáo : era tal con
fissáo feita secretamente a um sacerdote ou em público ao sacerdote e
á comunidade toda?

Sao Cipriano (t 258) teve ocasiáo de explicitar um pouco mais a


doutrina da Penitencia, visto que em seu tempo os casos de reconcilia-
gáo dos pecadores se multiplicavam. Com efeito; a perseguigáo de Décio
provocara a apostasia da fé de muitos cristáos; urna vez, porém, pas-
sada a celeuma, estes quiseram voltar á Igreja. O bispo de Cartago
entáo viu-se obrigado a repreender severamente aqueles que, «antes de
confessar a sua culpa, antes de purificar a sua consciéncia pelo sacrifi
cio e pelo ministerio do sacerdote», ousavam achegar-se á mesa do
Senhor (De lapsis 16; cf. ep. 16,2). Para o santo bispo, portante nao era
possível reconciliacáo com Deus sem confissáo previa do pecado; esta
iniciava todo o processo de volta do pecador :

«Quáo grande fé e que salutar temor manifestam aqueles que, sem


ter cometido o mal de sacrificar aos ídolos ou de obter para si um ates
tado de sacrificio (idólatra), tendo, porém, concebido a intengáo de sa
crificar, vém mui contritos confessar isto aos sacerdotes de Deus, e
fazer-lhes a manifestado da sua consciéncia; ésse fardo da sua alma,
éles o dáo a conhecer e, embora pequeninos e leves sejam os seus feri-
mentos, pedem o remedio que os cura...
Rogo-vos, portanto, irmáos meus, que cada qual confesse a sua
falta, enquanto ainda está neste mundo, enquanto a sua confissáo ainda
pode ser aceita, enquanto a satisfagáo e a remissáo por meio dos sacer
dotes ainda sao agradáveis a Deus» (De lapsis 28s).

A coníissáo individual assim inculcada por S. Cipriano era consi


derada táo necessária que o concilio regional de Cartago em 251 a in-
cutiu por sua vez,, ao permitir que cristáos apóstatas fizessem oficial
mente penitencia para receber a reconciliacáo: seria preciso, recomén-
dava o sínodo, examinar o caso de cada um em particular, averiguar
a boa vontade do pecador e as suas necessidades (examinarentur causae
et volúntales et necessitates singulórum; S. Cipriano, ep. 55,6), pois,

— 367 —
<tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 2

mesmo dentro da mesma categoría de pecados, há diversidades de indi


viduo para individuo : «Ínter ipsos etiam qui sacrificaverint et conditio
frequenter et causa diversa sit; ... multa sit diversitas» (ib. 13s).

Sao Cipriano também sabia referir como haviam sido punidos cer-
tos cristaos que tinham recebido a Sagrada Eucaristía com a conscién
cia manchada de pecados secretos : «Quantos há, cada dia, que, por nao
fazerem penitencia e nao confessarem as culpas que tém na consciéncia,
sao possuidos pelos espíritos malignos!» (De lapsis 26).
Éste texto incute bem que até os pecados ocultos deviam ser con-
íessados (ao sacerdote ou á Igreja), a fim de ser cancelados pelo
Senhor Deus.

Ao mesmo tempo que S. Cipriano, Orígenes de Alexandriá


(t 254/55) dava importante testemunho neste setor.
Em urna de suas homilias (In Lev 2,4), o escritor alexan-
drino enumera sete meios de obter a remissáo de pecados: o
batismo, o martirio, a esmola (cf. Le 11,41), a concessáo de
perdáo ao próximo que nos tenha ofendido (cf. Mt 6,14), o
zélo pela conversáo de um irmáo errante (cf. Tg 5,20) 4 a prá-
tica da caridade (cf. Le 7, 47 ; 1 Pdr 4,8)... Orígenes nao
trata de explicar quando ou em que casos cada um désses
meios é aplicável (os dois primeiros apagam irrestritamente
todos os pecados, ao passo que os quatro seguintes estáo subor
dinados a certas circunstancias: impossibilidade de receber o
sacramento... existencia, na alma, de pecados leves ape
nas ...). Por fim, acrescenta o escritor :

«Há ainda um sétimo meio de obter o perd&o, meio duro e penoso :


é a penitencia, quando o pecador molha seu leito com lágrimas e faz
do pranto o seu pao dia e noite, quando o pecador nao tem receio de
confessar o seu pecado ao sacerdote do Senhor e de procurar assim o
remedio».

Em outra passagem, Orígenes compara o pecado a um ali


mento indigesto e a um tumor maligno do estómago ; conse-
qüentemente assevera que, assim como o doente precisa de
eliminar tais males para nao ser levado á morte, da mesma
forma o pecador deve expelir o pecado pela confissáo :

«Quando o pecador se acusa e se confessa, cospe o pecado e puri-


fica-se de toda infeceáo má. Ora considera bem a quem (trata-se do
sacerdote, segundo o trecho precedente) deves confessar os pecados.
Examina antes de tudo o médico a .quem deves expor a causa da tua
fraqueza : seja um médico que saiba ser doente com os doentes, chorar
com os que choram; que seja cheio de compaixáo e piedade,.a fim de
que, confiando ñas suas palavras, palavras que o comprovem como mé
dico experimentado, tu sigas o seu conselho. Se ele vir e decidir que a
tua doenga é tal que deva ser confessada e saneada diante de toda a
Ij — o que será talvez edificagao para os outros e meio de salvacao

— 368 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGÁ ? .

para ti — depois de madura reflexáo deverás agir segundo o sabio con-


selho désse médico» (In Ps 3Th. 2, 6, ed. Migne gr. 12, 1386).
Esta passagem é particularmente significativa, pois distingué con-
íissáo secreta (auricular) e confissáo pública: a primeira é tida como
necessária para a remissáo do pecado; quanto á coníissáo pública, ela
se torna oportuna- caso o sacerdote, tendo o devido conhecimento de
causa, julgue que deve ser prestada pelo penitente. — E note-se que
Orígenes, ao incutir essas duas modalidades de confissáo do pecado,
nao dá a impressáo de estar inovando alguma coisa; ao contrario, do
tom categórico e espontáneo de suas palavras depreende-se que está
apenas insistindo em práticas já usuais entre os cristáos.

Em outra homilía, referindo-se aos Apostólos e aos seus


sucessores, diz Orígenes:

«Basta descobrir-lhes o mal, para obter a cura: a manifestacao do


pecado confere o saneamento. Se pecamos, devemos dizer: 'Dei-Vos a
conhecer o meu pecado e nao dissimulei a minha iniqüidade. Disse:
Pronunciarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustica' (SI 31,5).
Na verdade, se fazemos isso, se revelamos os nossos pecados nao só-
mente a Deus, mas também aqueles que lhes podem dar remedio,
seráo apagados por quem disse : 'Dissiparei as vossas enfermidades
como urna nuvem e os vossos pecados como um nevoeiro' (Is 44,22)»
(In Le h. 17).

Como se vé, Orígenes nao hesita em inculcar a necessi-


dade da confissáo, mesmo para as faltas secretas. Tal confis
sáo há de ser feita a um sacerdote : embora o Alexandrino
muito valorize a santidade ou a capacidade pessoal do médico
da alma, nao resta dúvida (feito o confronto entre passagens
paralelas das obras de Orígenes) de que ésse médico é o sa
cerdote da Igreja (cf., por exemplo, In Lev h. 3,4).

A imagem do médico ocorre de novo sob a pena de Sao


Paciano de Barcelona (t 391), o qual na seguinte passagem
faz eco aos textos de Sao Cipriano e Orígenes já citados :

«Muitos calram no pecado, até por pensamento. Muitos sao culpa


dos de homicidio; muitos, apegados aos ídolos; muitos, adúlteros. Acres-
cento ainda : nao sómente aquéle que ergue a máo para matar, torna-se
culpado de morticinio, mas também aquéle que com o seu conselho
impele urna alma á morte. Nao sómente aquéle que oferece incensó aos
Ídolos sobre o altar é digno da morte eterna, mas também todo aquéle
que por desejos ilícitos viola o direito do matrimonio, merece esta
morte... Rogo-vos, irmaos, pelo Senhor, que nao pode ser engañado
nem mesmo a respeito de coisas ocultas aos homens, deixai de encobrir
a vossa consciéncia ferida. Os doentes sensatos nao temem os médicos,
mas deixam-se operar e queimar mesmo ñas partes escondidas do seu
corpo» (Paraenes. ad paenit. 5, 8).

— 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 2

No séc. IV, alias, após a paz concedida por Constantino á


Igreja (313), a literatura crista se pode tornar cada vez mais
ampia e explícita: em conseqüéncia, multiplicaram-se os tes-
temunhos de autores cristáos sobre a necessidade de confissáo
para se obter a remissáo dos pecados.
Tenham-se em vista, por exemplo, as palavras de S. Am
brosio (t 397), bispo de Miláo :

«A febre, enquanto seu íoco permanece oculto no organismo, nao


pode ser curada; mas, quando o íoco se manifesta, há esperanca de
cura. Do mesmo modo a infeccáo dos pecados... : enquanto íica oculta,
causa um calor arden te; mas, caso seja manifestada pela coníissáo,
desaparece» <In Ps 37, ed. Migne lat. 14, 1057).

O próprio S. Ambrosio se dedicava pessoalmente e com


todo o zélo pastoral ao ministerio da confissáo, como refere
o seu biógrafo S. Paulino de Ñola :

«Costumava alegrar-se com os que se alegravam e chorar com os


que choravam; todas as vézes que alguém lhe conlessava as suas faltas,
a fim de obter a reconciliacáo, ele chorava de tal modo que induzia o
penitente a chorar também; parecía ficar prostrado com quem estivesse
prostrado. Quanto á materia dos pecados que lhe eram confessados, ele
nao a manifestava senáo a Deus só, junto a Quem intercedía (pelo pe
cador). Destarte deixava aos sacerdotes futuros o bom exemplo, para
que se tarnassem intercessores junto a Deus, e nao acusadores junto
aos homens» (Vita S. Ambrosii 39; cf. De paen. 2, 8).

Esta passagem atesta, portanto, que S. Ambrosio


ouvia confissoes,
que versavam sobre casos pessoais e particulares,
e se faziam secretamente (c. auriculares),
ficando sob segrédo ou sigilo.

Seja aínda agui citado uminteressante episodio das obras


atribuidas a S. Basilio (t 379) :

«Havia um jovem, do qual a infancia e a educagáo haviani sido pie-


dosas. Era assiduo aos oficios; dedicava-se, tanto quanto possivel, ás
obras de beneficencia; tinha sempre na mente o juizo eterno de Deus e
era cioso de guardar com fidelidade os ensinamentos da doutrina crista.
Um belo dia, porém, caiu na fornicacSo. Sua virtude assim se esvaneceu,
e os frutos da sua educacáo íoram devastados... O mau estado de sua
consciéncia o impedia de comparecer á igreja; ai nao poderia tomar
lugar entre os fiéis, pois se separara déles interiormente. Contudo por
vergonha ele nao quería agregar-se 'aos que choravam' (penitentes pú
blicos). Entáo pór-se a inventar pretextos para responder aos que o
interrogavam. 'Tal ou tal pessoa, dizia ele, está á minha espera, de modo
que nao tenho tempo de assistir á Liturgia*. De outra feita, para sair
da igreja antes da oracáo dos fiéis, imaginou nao sei qual motivo. Foi
assim, em virtude do hábito, que aos poucos ele concebeu a idéia de

— 370 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

apostatar, chegando a perder tudo que tinha (de valores espirituais)»


(ed. Migríe gr. 30,152).
Merece atencáo o fato de que os desvíos moráis désse jovem nao
deviam ser de conhecimanto público; pois, em caso contrario, nao teria
que recorrer a pretextos para explicar a sua abstencáo da comunháo
e seu afastamento da Igreja. Conforme S. Basilio, as faltas désse ado
lescente poderiam ser expiadas mediante penitencia pública... peniten
cia pública que o ministro de Deus lhe indicarla após haver ouvido a
respectiva confissao. — O episodio portanto supSe a praxe da confissáo
estensiva mesmo aos pecados secretos.

Fode-se por último notar que em Constantinopla existiam


a partir do séc. m sacerdotes especialmente destinados a ouvir
as confissóes individuáis dos penitentes: sacerdotes peniten
ciarios.
Eis como um advogado de Constantinopla, Sozómeno
(t após 450), autor de urna «Historia da Igreja», explicava a
instituicáo désses ministros:

Pecar, dizia ele, é deficiencia decorrente do estado atual da natu-


reza humana; seria preciso nao ser criatura humana para nao pecar.
Por isto também o Senhor Deus perdoa as faltas cometidas, por mais
numerosas que sejam. Contudo, jé. que nao se pode pedir o perdáo sem
confessar as culpas, outrora a confissao se fazia ao bispo mesmo. Éste
procedimento em breve se evidenciou pouco viável; ñas funcoes da Li
turgia, o bispo se assentava na ábside do templo, em meio aos clérigos,
de modo que o penitente devia quase fazer certo exibicionismo teatral
para dirigir-se ao prelado e declarar-lhe os pecados, sob os olhares de
todos os fiéis. Em conseqüéncia, os bispos julgaram preferivel designar
um simples sacerdote para ouvir as confissSes e administrar a peni
tencia (cf. Historia da Igreja VII16, ed. Migne gr. 67, 1460).
Déste texto se depreende que, para Soz6meno, a necessidade da con
fissao era anterior á instituicáo dos sacerdotes penitenciarios, institui-
cáo que ele atribula ao séc. III pelo menos. Sozómeno nSo hesitava em
reconhecer que a confissao ao ministro de Deus é urna das instancias
normáis e obligatorias para se obter, da parte do Senhor, a remissáo
dos pecados.

Poder-se-iam multiplicar as citagóes de testemunhos. Dei-


xando-os, porém, de parte, passamos aos tempos modernos, a
fim de ouvir o depoimento de dois eruditos náo-católicos sobre
o mesmo assunto.
Lea, um dos historiadores protestantes que com mais
veeméncia se opóem á Igreja, escreveu a obra «Auricular con-
fession and Indulgences», em -que se léem os seguintes dizeres:

«Such remission was manifestly impossible without a preliminary


declaration oí the oífenses to be íorgiven» (t. I, pág. 182).

— 371 —
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. gu. 2

«Tal remissáo de pecados (por via judiciária) era evidentemente


impossível sem que houvesse previamente a declarado das ofensas a
ser perdoadas».

Outro autor protestante, K. Müller, escreve na «Theolo*


gische Literaturzeitung» 1897, pág. 465 :
«Das ist nicht richtig, dass die Beichte ursprünglich nur Bekenntnis
an Gott gewesen sei. Es hat thatsachlich nie eine kirchliche Busse ohne
Beichte gegeben.
Nao é correto dizer que a confissao originariamente se íazia a
Deus só. Na verdade, nunca houve urna penitencia eclesiástica sem
confissáo».

Também se poderiam aduzir os testemunhos análogos de Holl,


Enthusiasmus und Bussgewalt, pág. 244s. 249s; Loofs, Leitfaden zum
Studium der Dogmengeschichte, 4a. ed. § 59, 2a., pág. 479, n. 1.

Todavía urna questao ainda se impSe :

3) A confissao exigida para a reconciliagáo dos pecadores


era pública ou secreta ?
Alguns historiadores liberáis admitem a confissao dos
pecados desde os primordios da Igreja. Julgam, porém, que era
confissao pública e geral, nao incluindo pormenores pessoais.
Somonte aos poucos, por instituicáo do clero mal intencionado,
se teria introduzido a confissao individual e secreta feita dire-
tamente aos sacerdotes.
Em resposta, lembraremos que a escassez dos documen
tos dos dois primeiros sáculos nao permite provar tal tese.
Deve-se mesmo dizer: examinando com atengáo os sobrios
textos de que dispomos, depreendemos outra conclusáo: a
confissao secreta era nao sómente usual na Igreja antiga, mas
parece ter sido a forma mais comum de declarar os pecados.

Leve-se em consideracáo o texto muito incisivo de Orígenes citado


atrás (cí. pág. 368), texto que supOe a confissao secreta, ficando a con
fissao pública subordinada ao alvitre do confessor.
A instituigao dos sacerdotes penitenciarios em Constantinopla su-
gere semelhante conclusáo.

Aos documentos até aqui transcritos deve-se acrescentar


urna passagem de Sao Leáo Magno Papa (t 461), ao qual erró
neamente certos historiadores querem atribuir a origem da
confissao auricular.

Ésse Pontífice ouvira a noticia de que alguns bispos da Campanha


(Italia) íaziam a leitura pública das faltas acusadas pelos penitentes...
Sao Leáo Magno, considerando que isso constituía abuso intolerável,
contrario a regra dos Apostólos («contra apostolicam regulam prae-
sumptio»), resolveu escrever aos mencionados prelados, mostrando-Inés

— 372 —
CONFISSAO AURICULAR NA IGREJA ANTIGA ?

o desvio («Ilícita usurpado») que cometiam; nessa epístola, datada de


6 de margo de 459, o santo Pontífice inculcava que bastava a confissáo
secreta feita pelo penitente ao sacerdote («reatus conscientiarum suffi-
ciat solis sacerdotibus indicari confessione secreta... sufficit illa con-
íesslo quae primum Deo offertur, tum etiam sacerdoti, qui pro delictis
paenitentium precator accedit»). A confissáo pública poderla, sim, ser
útil, mas supunha fé e coragem especiáis, pois exigia grande vitória
sobre o amor próprio. S. Leáo reconhecia que nem todos os penitentes
possuiam tal coragem, nem deviam ser obrigados a té-la, pois a confis
sáo pública poderla manifestar culpas passíveis de processos e penas
no fdro civil; tais conseqüéncias civis tornariam desnecessáriamente
oneroso o sacramento da Penitencia e fariam que muitos pecadores dei-
xassem de procurar a reconciliacáo — reconciliagáo que éles pediriam
se tivessem certeza de que suas faltas nao seriam publicadas. Eis por
que concluía S. Leáo M., se devia absolutamente reprovar o costume
(se 'costume houvesse) de impor confissáo pública aos pecadores («re-
moveatur tam improbabilis consuetudo») (cf. ep. «Magna indign.», ed.
Mignelat. t. 54,1211).
Foi justamente nessa carta de S. Leáo M. que alguns historiadores
modernos quiseram descobrir as origens da confissáo secreta. Vé-se,
porém, que S. Leáo considera a confissáo secreta como algo de tradi
cional ou conforme á regra apostólica; a confissáo pública lhe parecía
ser algo de esporádico, dependente do fervor do penitente e das circuns
tancias de cada caso, algo portanto que nao deveria ser imposto por
fdrca de leí.

Com o decorrer dos tempos, a confissáo pública foi mais


e mais caindo em desuso, o que em grande parte se deve ao
fato de que os fiéis, desejavam receber mais a miúde o sacra
mento da Penitencia ; a praxe era facilitada, desdé que se exi-
gisse apenas confissáo auricular.

Em conclusáo : os documentos e as consideragóes até aquí


propostos bastam para evidenciar que

1) a confissáo dos pecados sempre foi considerada, no


Cristianismo, como algo de necessário para, que o pecador obte-
nha a reconciliagáo com Deus; é pela Igreja visível e na Igreja
que o penitente encontra de novo a paz com o Senhor;

2) essa confissáo podia ser particular ou pública. Nunca


foi pública por obrigagáo ou por fórga de Iei geral, pois de-
pendia do fervor do penitente e do juizo do ministro de Deus.
Contudo as práticas de penitencia decorrentes da confissáo
eram prestadas de maneira- pública e oficial (geralmente fa-
zia-se urna quaresma ou quarentena de jejum rigoroso e cilicio).
Por conseguinte, a confissáo auricular está longe de ser ino-
vagáo tardíamente introduzida pelo clero a fim de favorecer
intengóes mesquinhas ; é, antes, um elemento constitutivo da
praxe penitencial mais antiga (fundamentada na época mesma
dos Apostólos ou na regra apostólica, dizia S. Leáo Magno).

t- 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 3

LOUREERO (Curitiba) :

3) «A confissáo feita ao sacerdote será realmente secre


ta, de modo tal que daí nao possam decorrer conseqüéncias
prejudiciais para mim ?
Que sería o chamado 'sigilo da confissáo' ?»

Desenvolveremos a nossa resposta, considerando sucessivamente o


segrédo da confissáo em si, as pessoas e os temas que ele atinge, assim
como as modalidades da violacáo désse segrédo.
Veja-se a propósito o Código de Direito Canónico, can. 889.

1. Em que consiste o segrédo da confissáo ?

Assim como todo profissional está obrigado a guardar si


lencio sobre noticias íntimas concernentes ao próximo que ele
colha no exercício da sua profissáo, assim também o sacerdote
está obrigado ao silencio ou segrédo no tocante aos assuntos
de que ele tome conhecimento ao ministrar o sacramento da
confissáo. Ésse segrédo recebeu o nome de «sigilo sacramen
tal», porque é táo severo que deixa os labios do sacerdote como
que lacrados ou cerrados por um sélo (sigilhim) sempre que
ocorram assuntos de confissáo na vida cotidiana. O sigilo é
correlativo á confissáo sacramental. Por conseguinte, a sua
origem se deve implícitamente ao próprio Senhor Jesús, que
instituiu o sacramento da confissáo.
É preciso notar, porém, que o sigilo sacramental nao é
simplesmente um segrédo profissional, semelhante ao de mé
dicos, advogados, educadores... Estes se acham ligados por
contrato tácito que se trava livremente entre o profissional e
seu cliente. Na confissáo há algo mais : o recurso ao sacerdote
é obligatorio ou imposto pelo próprio Deus ao pecador; por
isto, o silencio é incutido ao sacerdote nao sómente por con
trato tácito entre ele, ministro, e o penitente, mas também por
lei de Deus. Em conseqüéncia vem a ser silencio ou segrédo
mais rigoroso do que qualquer outro; jamáis comporta exce-
gáo. É preciso que os fiéis possam ter o direito de depositar a
mais absoluta confianza na discrigáo dos confessores.
A razáo suprema déste rigor é, em última análise,. a se-
guinte : o sacerdote ouve a confissáo sacramental nao em seu
nome próprio, mas em nome de Deus, como lugar-tenente ou
ministro do Senhor; por conseguinte, é sómente a título de
juiz instituido por Deus que ele toma conhecimento dos pe-

— 374 —
O SIGILO DA CONFISSAO

cados alheios ; a título pessoal, ele os ignora ; a sua perso-


nalidade é como que absorvida por Deus. Donde se segué que,
como homem, o sacerdote desconhece as culpas ouvidas em
confissáo sacramental; nao pode, portante, fora da confissáo
falar, responder ou agir como se as conhecésse ou como se
parecesse conhecé-las; em caso contrario, violaría um se
grédo que só a Deus compete revelar.

Eis significativos testemunhos de teólogos a tal propósito:

O Papa Inocencio m (t 1216) dizia em um de seus sermdes :


«O sacerdote a quem o pecador se coníessa, nao como a um homem,
mas como a Deus (cui peccator confltetur, non ut homini, sed ut Deo),
deve evitar toda palavra ou todo sinal que insinué que ele conhece o
pecado» (ed. Migne lat. 217,652).

Sao Tomaz (t 1274) insiste :


«O sacerdote está obrigado a guardar o segrédo, antes do mais e
principalmente porque o silencio pertence á esséncia mesma do sacra
mento (da coníissáo); em verdade, o padre só conhece o pecado como
Deus, cujo lugar ele ocupa na confissáo» (S. Teol., Supl. qu. 11, a.4c).
«O que se torna conhecido através da confissáo deve ser tido como
assunto ignorado, pois o sacerdote nao o conhece como homem, mas
como Deus» (ib. a.l, ad 1).

As autoridades da Igreja, no decorrer dos sáculos, estipu-


laram minuciosamente as normas que regem o segrédo da
confissáo, normas das quaís merecem especial destaque as se-
guintes:

O sigilo sacramental nao cessa mesmo que o penitente venha a


morrer.

A obrigacáo de segrédo resulta de toda e qualquer confissáo feita


em vista da absolvicao sacramental, mesmo que a absolvicáo nao tenha
sido dada.
O segrédo liga o confessor até ñas suas relagóes com o penitente
fora do confessionário. A respeito dos assuntos de confissáo passada,
o sacerdote pode falar com o penitente em confissdes posteriores, nao,
porém, fora de confissáo, a menos que, para isto, receba licenca do pe
nitente. É claro que} quando éste comega a conversar com o confessor
a propósito de assunto abordado em confissáo, está autorizando o padre
a lhe responder convenientemente.
O penitente pode desligar o padre do sigilo ou de maneira geral
ou no tocante a determinado ponto. Ao sacerdote nunca será licito supor
tal licenca; esta tem que ser dada em termos explícitos e com toda a
espontaneidade do penitente. Raras sao as ocasióes em que se torna
realmente oportuno para o sacerdote pedir tal licenca; caso esta seja
dada, o ministro só a deve usar com grande prudencia, evitando todo
possível escándalo.
Vejamos agora o que se refere ao

— 375 —
sPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. . qu. 3 ,. .

2. Ámbito do segredo da confissáo

Por «ámbito» entendemos aqui as pessoas e os objetos (temas) aíe»


tados pelo segrédo da confissáo.

1) Pessoas
Estáo obrigados a guardar o sigilo sacramental
a) o confessor, mesmo que tenha ouvido a confissáo sem
jurisdicáo (sem a faculdade de absolver, faculdade que deve
ser explícitamente concedida pelo bispo diocesano),... mesmo
que ésse confessor seja um leigo a quem alguém se tenha con-
fessado de boa fé, julgando fósse sacerdote.
Interrogado por um tribunal sobre assuntos que só conheca por
confissáo sacramental, o sacerdote tem o direito de recusar resposta ou
de dizer que nada sabe (... nada sabe por ciencia comunlcável a outros
homens). Na verdade, os conhecimentos (aproveitáveis na vida prática)
do confessor após a confissáo voltam exatamente a ser aquilo que eram
antes, como se nada lhe tivesse sido revelado na confissáo.
Se um sacerdote, ao confessar-se, só pudesse acusar o seu pecado
violando o sigilo da confissáo, deveria omitir tal acusacáo, pois a lei
do segrédo prevalece sobre a da integridade da confissáo.
Também está obrigada ao sigilo sacramental

b) Toda e qualquer outra pessoa que de algum modo


tenha tido conhecimento da materia relatada em confissáo.

Tal poderia ser


um intérprete utilizado pelo penitente;
um vizinho que, por estar casualmente perto do confessionário,
tenha ouvido o que o penitente disse ao sacerdote. Se, em tal caso, o
penitente, devidamente admoestado a falar balxo, continua a se expres-
sar em voz alta, está renunciando ao seu direito de confissáo secreta;
entáo quem o ouve, só está obrigado ao segrédo natural. Quem, ao con
trario, propositadamente procura ouvir o que o penitente declara em
confissáo secreta, já está violando o sigilo;
o Superior eclesiástico a quem um súdito pega a faculdade de absol
ver de pecado reservado á absolvigáo do prelado;
o teólogo ou o moralista que o confessor, devidamente autorizado-
pelo penitente, tenha que consultar num caso difícil;
quem encontré e leía a fólha de papel sobre a qual o penitente
tenha escrito os seus pecados para nao se esquecer de os acusar em
confissáo.
Quanto ao penitente, nao está obrigado ao sigilo a respeito dos seus
próprios pecados. Deve, porém, guardar segrédo natural a propósito
do que o sacerdote lhe diz em coníissáo, desde que a manifestacáo
désses dizeres venha a ser nociva ou onerosa para o confessor; com
efeito, nao é justo que o penitente fale em público de assuntos que en-
volvem o confessor, mas a respeito dos quais o sacerdote de modo
nenhum se pode pronunciar.

— 376 —
O SIGILO DA CONFISSAO

2) Materia do sigilo

Sao objeto de segrédo sacramental

a) os pecados, mesmo públicos, de que o sacerdote tome


conhecimento em confissáo. Se, contudo, se tornar cíente dos
mesmos pecados por outra vía, poderá fazer uso de tal ciencia,
na medida, em que ela lhe tiver sido comunicada fora da con
fissáo ;

b) as explicacoes que o penitente dá ao acusar as suas


faltas: finalidade visada pelo pecador, cúmplices, inten?5es
secundarias...

Também nao será licito ao confessor dizer que teve de recusar a


absolvic&o ou que impds tal ou tal penitencia (a menos que seja peni
tencia multo leve) ou que deu tal conselho relacionado com as fainas
do penitente, pois isso concorreria de algum modo para manifestar as
culpas confessadas.

c) De modo geral, aínda sao objeto de sigilo todas as


noticias cuja manifestagáo venha a ser desagradável ao peca
dor ou torne odioso o sacramento: assim os defeitos reve
lados pelo penitente (temperamento leviano, escrupuloso, tei-
moso...).

Nao caem sob o sigilo sacramental: as virtudes, outras qualidades


do penitente, a sua condicao social, etc. — Contudo, como bem se com-
preende, recomenda-se ao confessor a máxima reserva no tocante a
ésses assuntos.

Por finí, consideremos o que diz respeito á

3. Violacáo do sigilo sacramental

Distinguem os canonistas duas modalidades de violagáo :


a direta e a indireta.

a) A violacáo direta se dá quando o confessor manifesta


o penitente e o seu pecado: Pedro roubou, Joana mentiu...

Para que haja violacáo direta, nao é necessário que o sacerdote


diga o nome do pecador; basta que o designe claramente por outras
características : a primeira pessoa da fila, o professor de tal materia
em tal colegio, o prefeito da cidade, etc. — Também nSo é preciso que
os fiéis saibam que o padre está falando de coisas conhecidas pela con
fissáo, mas basta que fale...

b) A violacáo indireta nao é a manifestagáo do pecador


como tal, mas consiste em palavras ou atos imprudentes que
deixam suspeitar qual tenha sido ésse pecador ; ocorre, por

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 3

exemplo, guando o confessor afirma que tal ou tal vicio oculto


é muito comum em tal ou tal lugarejo pouco povoado;...
guando diz ter ouvido tal pecado grave em tal convento ou
colegio, etc.

Convém frisar que nao é lícito ao sacerdote fazer uso das noticias
adquiridas em confissáo, desde que isto possa ser desagradável ou one
roso para o penitente, nem mesmo quando o sacerdote tenha em vista
fins úteis e bons, como, por exemplo, governar sabiamente uma comu-
nidade, promover o bem real do próprio penitente, impedir uma eleicáo
desastrosa (a menos, neste último caso, que o padre seja por outra vía
informado a respeito do candidato á eleicáo...). O uso dessas noticias
íica vedado mesmo que nao haja perigo de manifestar a pessoa do pe
cador como tal; cf. cSn. 890.

Por graga de Deus, nao consta tenha havido, no decorrer


da historia, um só caso comprovado de infracto direta do
segrédo sacramental. Ao sacerdote que viole tal sigilo com
advertencia e consentimento plenos, o Código de Direito Ca
nónico impóe excomunháo, cuja absolvicáo fica specialissimo
modo (de maneira toda especial) reservada á Santa Sé ; cf.
cá.n. 2369 § 1.

A titulo de ilustracáo, váo abaixo citados mais alguns exemplos de


aplicacáo concreta da lei do sigilo sacramental.

a) Um Superior nao pode remover de um cargo ou de uma tarefa


um súdito que administre mal o seu oficio ou que incorra em. perigos
espirituais nos seus trabalhos, desde que o prelado saiba disto única
mente por via de confissáo sacramental. Em certos casos, o Superior
poderá, ou mesmo deverá, impar ao penitente que pega demissao, sob
pena de lhe negar a absolvicáo sacramental se nao o quiser fazer.

b) Quando alguém pede a S. Comunháo, o confessor nao tem o


direito de a recusar, mesmo que essa pessoa nao tenha sido absolvida
em confissáo previa por carecer das disposic5es devidas. Em tais cir
cunstancias, só seria licito negar a S. Comunháo se se tratasse de um
pecador público, conhecido como tal.

c) Um pároco nao tem o direito de despedir o seu sacristáo, outro


funcionario da igreja ou a doméstica da casa paroquial, pelo fato de
lhe terem revelado em confissáo sacramental furtos cometidos na igreja
ou na residencia canónica.

d) Um sacerdote, avisado em confissáo de que no dia seguinte


lhe poráo veneno no vinho de Missa ou o mataráo quando se dirigir á
igreja para celebrar, nao pode, sómente na base destas noticias, fazer
o propósito de nao celebrar ou de ir celebrar em outra igreja. Tal mu-
danca de programa poderia insinuar que o sacerdote foi informado das
intencOes dos malfeitores em confissáo; ora esta insinuacáo seria pe
nosa para o penitente que o tivesse informado. — Julgam, porém, al
guns moralistas que o padre bcm poderia dirigir-se a igreja por outro
caminho ou, com um gesto oportunamente desajeitado, deixar cair a
galheta de vinho envenenado no momento de a utilizar durante a

— 378 —
«VAIDADE DAS VAIDADES». COMO?

Missa. Isto nao implicarla em conseqüéncias desagradáveis para o pe


nitente que houvesse avisado o sacerdote.
e) Pais e mestres devem abster-se de interrogar os coníessores
de seus íilhos ou alunos a respeito do comportamento désses jovens.
Interrogados, os confessores recusaráo informar ou limitar-se-áo a res-
postas de Índole geral.
f) O Direito Canónico recomenda aos Superiores religiosos,, nao
oücam, de maneira habitual, as confissSes de seus súditos. Nao lhes
proibe, porém, que o fagam desde que os Religiosos o pecam espontá
neamente e por motivo grave; cf. can. 518 §§ 2 e 3.
g) Fica excluido de maneira absoluta o testemunho dos confesso
res em todo e qualquer tribunal eclesiástico, mesmo nos processos de
beatificagáo e canonizagáo; cf. can. 1757 í 3, 2«; can. 2027, § 2, 1'.

Ao lado, porém, déstes exemplos restritivos ou negativos, nao se


pode deixar de lembrar que é licito ao sacerdote utilizar certos conheci-
mentos adquiridos em confissáo, quando disto nao resultam conseqüén
cias penosas para o penitente nem escándalo para outras pessoas. Assim
o sacerdote, por efeito de confissSes ouvidas, poderá orar mais intensa
mente por seus penitentes, procurar aprofundar as normas da Teología
Moral e Pastoral, tornar-se ainda mais bondoso e paciente para com
aqueles que o procuram... Na pregagáo, nao ha inconveniente em que
se deixe de algum modo influenciar pela experiencia colhida no con-
fessionário, a fün de tornar mais penetrantes e eficazes os seus ser-
mees; seja, porém, cauteloso e reservado, evitando entrar em pormeno
res muito concretos que poderiam escandalizar e sugerir violagáo do
segrédo.

Toda esta legislacáo dá a ver quanto a Santa Igreja se


empenha pela digna administracáo do sacramento da confissáo,
vedando qualquer possível exploragáo do mesmo, a ponto de
tornar, por vézes, bastante penosa a posigáo do sacerdote con-
fessor. Éste, também ao ouvir confissóes, é ministro do sacri
ficio da cruz,... carrega a cruz com Cristo Redentor.

III. SAGRADA ESCRITURA

JANOTA (Belo Horizonte) :

4) «Como se há de entender o livro bíblico dito 'do Ecle-


siastes'?
Proclama que tudo é vaidade... Será um eco antecipado
do existencialismo de Sartre, ou urna cxpressao de materialis
mo debochado ou de epicurismo gozador da vida presente ?
Ou contém algum misticismo conciliável com o Evangelho?»

Um dos entraves para a compreensáo dos livros da Sagrada .Escri


tura é o fato de que raramente se consideranv-as elementos humanos
(autor, época de redagáo, circulo de leitores) que entraram na compo-
sicáo do respectivo livro. Ñas tentativas de exegese mais comuns ou

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963, qu. 4

populares, costuma-se proceder como se os textos da S. Biblia tivessem


caído do céu, independentemente da influencia das criaturas que Deus,
sem dúvida, quis utilizar como cañáis e instrumentos da mensagem
bíblica.
Ora, a fim de evitar esta falha, em nossa resposta comecaremos por
focalizar a pessoa e a mentalidade do autor do Edesiastes. Assim am
bientados, poderemos analisar a mensagem do livro; por fina, deter-nos-
•emos sobre urna ou outra afirmagáo, a primeira vista, desconcertante
do Edesiastes.

1. Pessoa e mentalidade do autor sagrado

O Edesiastes era, até época recente, comumente atribuido a Salo-


máo o sabio reí de Israel no séc. X a.C. Hoje em dia, porém, após
exame literario fiel e objetivo, nao resta dúvida de que a expressao do
cabecalho «filho de Davi, rei de Jeruealém» (Ecl 1.1; cf. 1,12) nSo vem a
ser senSo um artificio de estilo, artificio que quer insinuar Salomáo, por-
que Salomáo era tido em Israel como prototipo de qualquer mestre de
sabedoria A luz da lingüistica, verifica-se que o vocabulario, o estilo e a
questao debatida no Edesiastes referem a época bem posterior a Salo
máo de modo que seria váo insistir na atribuigao do Edesiastes a éste
autor; o livro se deve, antes, a um escritor israelita que viveu na Pa
lestina do séc. III a. C, quando um dos problemas dominantes do Ju
daismo era o de saber como se encontra a felicidade neste mundo .
Tal escritor tinha o cognome hebraico de Qoheleth, homem ou
pregador da assembléia (= «Edesiastes», em grego), porque, gozando
da autoridade de um sabio, debatía e procurava resolver o problema em
assembléias populares.

Dito isto, torna-se de grande importancia notar o seguinte:

Na época de Qoheleth, o povo israelita ainda nao tinha


nogóes claras a respeito da vida postuma: sabia apenas que
após a morte do homem a alma sobrevive; é imortal (cf.
Gen 15,15; 25,8.17; 35,29; 49, 29.32 e «P. R.» 14/1959,
qu. 10). Julgava, porém, que, separada do corpo, a alma caia
num estado de semiconsciéncia ou soñolencia, tornando-se, por
conseguinte, incapaz de experimentar felicidade ou desgraca.
O Edesiastes compartilhava tais concepcóes ; procurava,
pois, resolver a questáo da felicidade, levando em conta apenas
os limites da vida terrestre. Analisava as tentativas feitas
neste mundo para saciar a sede de bem-estar que todo homem
traz em si. Partía da experiencia, e afirmava apenas os fatos
que a observaeáo da vida cotidiana lhe sugeriam, sem preten
der indicar causas invisíveis, isto é, sem pretender passar para
o setor da filosofía ou da metafísica.
Esta advertencia é de grande alcance para o leitor do
livro sagrado: lembre-se o cristáo de que o Edesiastes nao
quer discutir principios filosóficos, mas tem em vista apenas
registrar experiencias concretas e evidentes para dai deduzir

— 380 —
«VAIDADE DAS VAIDADES». COMO?

algumas normas simples, de aplicagáo ¡mediata na conduta


do homem.
Quais seriam, pois, as conclusóes do autor sagrado ?
É o que passamos a considerar.

2. A mensagem do Eclesiastes

Á busca de felicidade, o escritor sagrado passa em revista


sucessivamente os diversos valores aos quais os homens cos-
tumam pedir bem-estar no mundo (riqueza, volúpia, prestigio,
poder público, ciencia, etc.)i e mostra-se indiferente em rela-
gao a tudo: qualquer désses bens lhe parece insuficiente ou
demais exiguo para o homem ; éste cedo ou tarde experimenta
tedio e decepgáo ao servir-se das criaturas ; o esfórgo feito
para conseguir alegría mediante o uso destas é geralmente mal
compensado, deixando o homem insaciado e desiludido. Daí
o tom acabrunhado que o Eclesiastes toma, repetindo com
insistencia o seu estribilho:

«Vaidade das vaidades...; tudo é vaidade e procura de vento»


(1,14; cf. 1,2; 2,11).
Na exclamagáo ácima, o termo «vaidade» nao significa «pecado»,
mas, sim, «decepcjto»..., decepcáo comparável á de quem tente apreen-
der o vento na palma da máo: ao fechar a máo, verificará que nada
obteve.
Em 2,11, o autor sagrado manifesta seu pessimismo referente aos
prazeres da carne. Em 2, 15-17... pessimismo referente a aquisigáo da
ciencia. Em 2, 18-23... pessimismo referente aos esforgos para se rea
lizar qualquer obra duradoura sobre a térra (os herdeiros e sucessores
fácilmente desbaratam as mais arduas conquistas obtidas pelos que
lutam na vida; quem pode incondicionalmente confiar nos homens?).

Ao verificar a limitacáo dos valores déste mundo e ao expor o seu


desapontamento, o Eclesiastes faz ecoar antecipadamente o que deveria
ser repetido por toda a historia da filosofía até o existencialismo mo
derno de Gahriel Marcel e Sartre: sim, o homem em todos os tempos
exprimiu a sua espontanea Iamúria, porque, trazendo em si a sede do
Infinito, nao encontra aqui na térra senáo bens limitados (quem nao
tem a nocáo da vida eterna, sente-se frustrado na mais importante das
suas aspiracoes).
Dentre os porta-vozes da insatisfacáo que já o Eclesiastes exprimía,
podem-se notar S. Agostinho (t 430), com a sua famosa afirmagáo:
«Tu (Senhor) nos fizeste para Ti, e inquieto estará o nosso coracáo,
enquanto nao repousar em Ti!». (Conf. 1,1), Blaise Pascal (t 1662),
Soren Kierkegaard (t 1855). Jean-Paul Sartre o existencialista de
maior projecao, deduziu as extremas conseqüéncías da decepcáo do ho
mem na térra, caindo na ironía e no deboche ao conceituar a existencia-
das criaturas neste mundo. •

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 4

Contudo, o Eclesiastes, por muito realista que seja (e, por


conseguinte, cético em relacáo aos bens visíveis), está longe
de ser um agnóstico ou ateu. Nao se dá por desgarrado na es
trada da vida (e nisto ele se distingue das correntes de existen-
cialismo sarcástico e niquilista). Com efeito, em meio a todas
as deficiencias que o cercam, o autor do livro eré plenamente
em Deus e no valor da observancia da lei divina. Esta fica
sendo para ele norma inabalável ou o único ideal ao qual o
homem se deva aplicar incondicionalmente. É o que resulta
claramente dos versículos fináis de todo o livro do Eclesiastes:

«Conclusáo : bem ponderadas todas as coisas.


Teme a Deus, e observa os seus mandamentos,
Pois nisto consiste o ideal de todo homem.
Deus há de julgar todas as obras,
. .Tudo que há de oculto, seja ato bom, seja ato mau». (12,13s)

Por conseguinte — quer o autor dizer —, enquanto nao


é possivel sondar melhor os designios de Deus, submeta-se o
homem á ordem estabelecida pelo Criador i obedega con
fiante. . .Por certo, Deus, que é sabio, será também providente
para que as grandes expectativas dos seus fiéis nao fíquem
frustradas.
É á luz déste fecho que se devem entender todas as con-
sideragóes propostas no decorrer do livro : nenhuma das crí
ticas feitas a existencia do homem sobre a térra tem valor
definitivo. Em última análise, sao portadoras de urna tese
positiva e rica. Sim ; o pessimismo do autor nada mais é do
que a expressáo de nostalgia profunda ou de sede do infi
nito que ele, e todo homem igualmente, possui dentro de si;
feito por Deus e para Deus, o espirito humano só repousa no
Criador. Muitos, principalmente após a vinda de Cristo, expri-
mem esta sua ardente aspiracáo ao Infinito em termos posi
tivos e heroicos, desejando a vida eterna com todas as veras
do coragáo. Outros, na antigüidade ou em nossos dias, fora
do Cristianismo, exprimem ésse mesmo anelo em termos de
protesto ou de náo-conformismo com os horizontes desta vida
e a insuficiencia dos bens terrestres ; sem a revelagáo crista,
porém, nao sabem como resolver o problema, e ñcam apenas
em termos de protesto contra a exigüidade do bem-estar
temporal.
Ora, justamente por ter consdéncia de que era capaz de
apreender o Infinito, o autor do Eclesiastes nao se, dava por
satisfeito com algum valor limitado e tomava o partido do náo-
-conformismo frente aos bens terrestres. Vivendo á luz dá reve-

— 382 —
«VAIDADE DAS VAIDADES». COMO?

lagáo nao consumada do Antigo Testamento, ignorando que, 'de


fato, a sede do Infinito encontra saciedade na vida postuma, na
visáo de Deus face a face, o autor só podía dar as suas exclama-
cóes um caráter negativo ou cético ; conhecia apenas o que lhe
ofereciam os seres criados, e, estes, ele os podia, devia mesmo,
julgar insuficientes... O Eclesiastes assim, longe de desnortear
o cristáo, acha-se na linha dos textos do Antigo Testamento que
preparam o Evangelho. Éste, com efeito, ensina a tratar com de
sapego os bens terrestres; Cristo, porém, revelou que tal de
sapego tem sua compensacáo na posse de Deus, o Bem Infinito,
concedida nesta vida pela graga, e na eternidade pela contem-
placáo direta.

Esta maneira de entender o Eclesiastes deverá ser ulteriormente


explanada no parágrafo abaixo, em que se consideraráo algumas pas-
sagens particularmente diffceis de llvro sagrado.

3. Estranhas afirmacoes do Eclesiastes

Parece que de modo especial tres aspectos da mensagem de


Qoheleth se tem prestado a mal-entendidos. Vamos analisá-los sucessi-
vamente.

1) O «epicurismo» do autor sagrado

Em algumas passagens, o escritor bíblico, decepcionado


pela procura de bens invisíveis, parece recomendar ao leitor que
tente compensar-se, entregando-se aos prazeres que o comer,
o beber e a vida na carne lhe possam proporcionar...

Assim, por exemplo, se le em 2, 24 :

«Nada há de melhor para o homem do que comer, beber e gozar


de bem-estar em meio ás suas íadigas».

Ou em 3,13:

«Comer, beber e gozar do fruto do trabalho é dom de Deus».

Ou em 5,17 :

«Eis o que reconheci: a íelicidade que convertí ao homem, consiste


em comer, beber e gozar de bem-estar em meio a todas as fadigas ás
quals ele se dedica debaixo do sol, durante os dias de vida que Deus lhe
dá. Tal é o quinhao do homem».

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 4

Em 8,15 :

«Louvei a alegría, porque nada há de melhor, para o homem, de


baixo do sol do que comer, beber e deleitar-se. Possa isto acompanhá-lo>
no seu trabalho durante os días que Deus lhe concede debaixo do sol!»

Em 9, 7-9 :

«Vai, come alegremente teu pao é bebe contente o teu vinho, já que
Deus se mostra favorável as tuas obras. Traja sempre vestes brancas,
e nao falte óleo perfumado sobre tua cabega. Desfruta a vida com a
mulher que amas, durante todos os días da fugitiva e va existencia que-
Deus te concede debaixo do sol. Esta é a tua partilha na vida, o premio
do labor a que te entregas debaixo do sol».

Os conselhos ácima tém sido interpretados no sentido do materia*


lismo epicureu, hedonista; o Eclesiastes seria partidario da «boa
mesa»... Contudo pode-se mostrar sem dificuldade que tal entendi-
mento é erróneo.

Eis o significado dos textos transcritos: o autor, nao


tendo nogóes claras a respeito da retribuigáo postuma ou da
bém-aventuranga após a morte, aconselhava a aceitácSo dos
prazeres que a Providencia Divina queira conceder ao homent
na vida presente. Ora entre ésses prazeres os que mais simples
e obvios pareciam ao Eclesiastes eram os de urna vida familiar
feliz e alegre, na qual seja possível, de guando em quando,
usufruir de um traje melhor e de urna boa refeigáo... Deve-se
dizer que o gozo déste consoló nao é mau em si; «por que
entáo nao o aceitar, quando ele vem honestamente ?»,_ per-
guntaria o autor sagrado; «aceita-o, sim, com gratidao ao
Senhor, e restaura-te désse modo».
Note-se, porém, que as alegrías da mesa e da familia su
geridas pelo Eclesiastes sao insistentemente consideradas como
dom de Deus e fruto do arduo trabalho do chefe de familia
(cf. os textos transcritos). Isto bem mostra que o. autor tem
em vista um ambiente de familia frugal, modesto e temente a
Deus, ambiente no qual nao haveria luxo, nem gastos supér-
fluos; em última análise, o gozo de tais prazeres seria como
que um ato religioso ou o reconhecimento da Bondade de Deus,
O qual sabe proporcionar ao homem seus momentos de res-
tauracáo física e psíquica. — Assim se distancia o prazer re
comendado pelo Eclesiastes do hedonismo materialista e epi
cureu : o autor sagrado quer que o próprio gozo seja regrádo
pela reta ordeni das coisas ou pela escala dos valores, ficando
incólume, como suprema norma, a observancia dos manda-
mentos de Deus.

— 384 —
«VAIDADE DAS VAIDADES». COMO ?

De resto, chama-nos a atencáo o apreso que o Eclesiastes atribuí á


justa medida: tudo tem seu tempo oportuno ou sua medida, seu lugar
exato, na existencia do mundo e do ser humano; em conseqüéncia, a
sabedoria manda que o homem reto se deixe regrar por tais medidas :

3, 1 «Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento


debaixo dos céus :

2 Há tempo para nascer, e tempo para morrer;


Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado;
3 Tempo para matar, e tempo para curar;
Tempo para demolir, e tempo para construir;
4 Tempo para chorar, e tempo para rir;
Tempo para gemer, e tempo para dancar;
5 Tempo para atirar pedras, e tempo para juntá-las;
Tempo para dar ahragos, e tempo para afastar-se;
6 Tempo para procurar, e tempo para perder;
Tempo para guardar, e tempo para atirar fora;
7 Tempo para rasgar, e tempo para coser;
Tempo para calar, e tempo para falar;
8 Tempo para amar, e tempo para odiar;
Tempo para a guerra, e tempo para a paz».

A desgraca do homem, conforme o Eclesiastes, consiste precisa


mente em cometer excessos ou exageros na procura dos bens que, con
forme o plano de Deus, sao bons dentro dos limites e das medidas que
o Criador assinalou a cada um. Em urna palavra : o mal nao está em
usar, mas em abusar...
Nao há dúvida, o cristáo conhece o valor da renuncia até mesmo
aos prazeres lícitos a íim de mais se configurar a Cristo crucificado;
em conseqüéncia, ele pode (e, em certos casos, deve) tragar para.si
um programa de ascese mais rigoroso do que o do Eclesiastes. O judeu
antigo, porém, nao podia chegar a tal conclusao, pois desconhecia a
mensagem da cruz de Cristo; ignorava que o sofrimento e a renuncia
voluntaria foram consagrados pelo Redentor, tornando-se assim verda-
deiros valores. — Como quer que seja, imparta sublinhar que a.ascese
crista nao contradiz a do Eclesiastes, mas antes a desenvolve e remata.

2) Mortalidade ou imortalidade da alma ?

Eis mais urna passagem do Eclesiastes muito controvertida:

3,19 «A sor te dos filhos dos homens e a sorte dos animáis sao idén
ticas.
Como um morre, assim morre o outro;
Ambos possuem o mesmo sópro;
Nao há vantagem do homem sobre o animal,
Pois tudo é decepgáo.
20 Tudo vai para o mesmo lugar;
Tudo vem da poeira,
E tudo volta para a poeira.

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 4

21 Quem pode dizer se o sópro dos filhos dos homens se dirige para
o alto
E o sópro dos animáis desee ás regioes subterráneas?»

Para entender devidamente éste texto, tenha-se em vista


que o autor sagrado nao intencionava propor alguma tese de
filosofía ou teología, mas tomava simplesmente a atitude do
observador popular, que refere o que a experiencia imediata lhe
incute. Ora, nao há dúvida, a experiencia ensiaia que tanto o
homem como o irracional terminam os seus dias pela morte, e
terminam-nos de tal forma que nenhum sinal sensível indique
necessáriamente haver destino diverso para um e para outro;
pela observacáo dos sentidos apenas, ninguém saberia dizer se
de algum modo sobrevivem.

A afirmacáo de que o sópro (raah) é da mesma natureza no homem


e nos irracionais deve ser entendida á luz da terminología judaica
antiga. Buah, para o autor, designava primariamente um sópro sensí
vel, o sopro das narinas. Éste, evidentemente, é de igual Índole no ho
mem e nos outros animáis. O mesmo termo, por redundancia, signifi-
cava também o principio vital, já que o sópro das narinas ou a respi-
racáo é distintivo da vida. Nao há dúvida, a sá filosofía ensina que o
principio vital (alma) do homem é imortal, ao passo que o dos irracio
nais perece; todavía nao era como filósofo, na base de raciocinios abs-
tratos, que o hagiógrafo falava, mas, sim, na qualidade de observador
popular, a quem chamam a ateng&o apenas os slnais exteriores, sensí-
veis da vida. Em outras passagens do livro, o autor reconhece a sobre
vivencia da alma humana, pois professa que vai para o sheol (ou a
mansáo das almas dos defuntos) e menciona o juízo de Deus sobre o in
dividuo após a morte (cf. 8,12; 9, 10; 11,9; 12, 13).

F por que se terá o escritor táo rudemente expresso nos


versículos ácima ?
O motivo é que apenas visava inculcar a seguinte norma
prática : já que o homem (do Antigo Testamento) nada sabe
de bem-aventuranca postuma, é na presente vida que, servindo
fielmente a Deus e utilizando moderadamente as ocasióes que
Éste lhe conceda, deve procurar a felicidade, felicidade que por
certo o diferencia dos irracionais.
Semelhantes idéias repercutem ainda no texto de Ecl 9,4s:

«Para o homem, enquanto permanece agregado á sociedade dos


vivos há esperanca; mais vale um cao vivo do que um leSo morto. Os
vivos¡ com efeito, sabem que háo de morrer, ao passo que os mortos
nada sabem; nao recebem mais salario, pois já nao há recordacao
déles».
Estas palavras sao sugeridas pela opiniáo de que a morte introduz
em estado de consciéncia quase extinta; para os vivos, qualquer que

— 386 —
«VAIDADE DAS VAIDADES». COMO ?

seja a sua condigáo (o cao simboliza o género de vida mais duro pos-
sivel), íica sempre esperanca de conquistar certa íelicidade neste mundo,
ao passo que para os mortos, mesmo para os mais nobres (simbolizados
pelo leáo), já nao resta possibilidade de conquistar algum bem.

O Eclesiastes assim representa típicamente a mentalidade do ho-


mem que, embora conheca o verdadeiro Deus, ainda ignora muitos dos
designios divinos. Tal individuo experimenta naturalmente a sede do
Infinito, inoculada no mais profundo do seu ser; por isto, mostra-se
cético diante de todos os atrativos déste mundo. Em seu bom senso,
porém, conserva o otimismo; encerra as suas disputacSes entregando-Fe
confiante ao Senhor, que, por vias ocultas, mas seguras, nao deixará
de proporcionar aos fiéis a recompensa do bem por éles praticado
(cf. 12, 13s).

3) Ser mediocre?

Também tem causado perplexidade a norma de 7,16 :

«Nao queiras ser justo em excesso,


Nem sabio além da medida>.

Estes dizeres, longe de sugerir mediocridade moral ou co-


vardia na prática do bem, apenas incutem ao leitor o seguinte :
Cada individuo possui sua índole pessoal (temperamento e
predicados da alma, saúde e vigor do corpo...). Por conse-
guinte, embora todos tenham que tender á perferáo ou á santi-
dade, cada um deve fazé-lo de acordó com as possibilidades da
sua natureza pessoal; o programa de justica ou de santificacáo
tem que variar de individuo a individuo, pois, o que um pode (e
deve) exercer (porque a sua natureza o permite ou exige), o
outro já nao o pode executar (por ter natureza menos vigois&a);
em conseqüéncia, o que para um pode ser genuína prática de
virtude (jejum rigoroso, por exemplo), para outro pode ser
ruina da virtude. Ora é justamente para tal fato que o Eclesias
tes quer chamar a atengáo, admoestando o leitor a nao procurar
a virtude (ou o estudo da sabedoria) além das possibilidades de
sua natureza individual; o arco demasiado teso (ou teso além
do que comporta a sua resistencia própria) já nao exerce mais
sua funcáo, mas rompe-se definitivamente...

Nao menos surpreendente do que o texto de 7,16 é o de 7,17:

«Nao sejas mau em excesso,


Nem sejas insensato».

Estas palavras de modo nenhum querem sugerir ou permitir que


o leitor se torne ao menos «um pouco mau», evitando apenas o «ex-

— 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 69/1963, qu. 5

cesso» de maldade. N5o era ésse o «problema» do autor: o que o preo-


cupava, era únicamente coibir os excessos, pois estes, em todo e qual-
quer caso sao nocivos. Por isto é que, tendo dissuadido a prática desar-
razoada de aparente virtude, acrescentou semelhante admoestacáo para
o que se refere á prática do mal. Fazia ésse acrésclmo, tendo em vista
outrossim o ritmo da irase ou o paralelismo poético dos hebreus : para
dizer que todo excesso é mau, o judeu devia asseverar que tanto o ex-
cesso para um lado como o excesso para o outro lado sao condenáveis.
Nao nos pederemos esquecer, porém, de que condenar o excesso do mal
ainda nao equivale a permitir positivamente o mal em grau inferior ou
mediano.

Ficam assim esboc.adas as linhas-mestras para o entendi-


mento do livro do Edesiastes. Vé-se que ele nao está em contra
dicho com o Evangelho, mas numa etapa de roteiro homogéneo,
que no decorrer dos sáculos se devia desenvolver e aperfeigoar.
Inegávelmente, a conclusáo (que é a mensagem) do Edesiastes
tem pleno valor até o dia de hoje (cf. texto transcrito a.
pág. 382) : observar o programa básico de todo homem, pro
grama que a ninguém decepcionará.

IV. DIREITO CANÓNICO

JOSÉ MARÍA (Rio de Janeiro) :

5) «Os jomáis tem noticiado que o Cardeal Feltin, de


París, estabeleceu classe única para casamentes e enterros, evi
tando diferentes aparatos do cerimonial e abolindo as esportil
las ou taxas que se costumavam dar em tais ocasioes.
Esta medida provocou estranhos protestos por parte de
certo público.
Por que? Como jnlgar o caso?»

Antes do mais, será oportuno lembrar o que já foi dito em «P. R.»
2/1958, qu. 10 a respeito da origcm e do significado das espórtulas no
■ culto sagrado. A seguir, examinaremos a situagao precisa recente-
mente verificada em Paris.

1. Honorarios no culto de Deus?

O sistema de espórtulas ou taxas vigente na S. Igreja é reminis


cencia de urna praxe dos antigos cristáos que significava a caridade
generosa e espontánea désses fiéis.
Com efeito. Nos primeiros séculos, os fiéis, quando iam ter á igreja
a íim de participar da Eucaristía (Missa), levavam consigo a materia
da celebragáo (pao e vinho), assim como outras dádivas naturais (leite,
mel, azeite, frutas, etc.). No momento do Ofertorio, processionalmente
iam ao altar depositar essas oferendas ñas maos do celebrante. Parte

— 388 —
CLASSE ÜNICA PARA ENTERROS E CASAMENTOS

do pao e do vinho ficava sobre o altar para ser consagrada e, na hora


da comunháo, distribuida aos fiéis como sacramento. A outra parte das
ofertas era simplesmente benta e destinada ao sustento da comunidade,
principalmente dos mais pobres dos irmáos. Assim se exprimiam a
caridade dos cristáos e a consciéncia de sua responsabilidade perante o
próximo é a Igreja; éles se encarregavam, de maneira espontánea e
direta, da subsistencia material da sua comunidade ou da sua paróquia.
- Aconteceu, porém, que com o tempo tal praxe nao pode ser man-
tida, pois alongava a celebracáo da Eucaristía, dificultando a celebragáo
de varias Missas consecutivas na mesma igreja (celebragáo que se tor-
nava cada vez mais necessária, dada a multiplicacao do número de
cristáos em cada paróquia). Foi preciso, portanto, simplificar o rito
de celebragáo da S. Missa; em vista disto, os fiéis passaram a oferecer
dinheiro no Ofertorio da Missa, pois tal dádiva era de manuseio mais
fácil e rápido. Por fim, também éste costume caiu em desuso : a oferta
em dinheiro destinada ao sustento do culto e da paróquia foi sendo
feita fora da celebracáo da Missa (antes ou depois desta) e em outro
recinto que nao a igreja. Contudo — seja licito recordar — a oferta em
dinheiro assim praticada significava sempre generosidade e solidarie-
dade dos fiéis para com os interésses da Igreja; tinha sentido religioso
multo digno e profundo, simbolizando a fé e a caridade que os doadores
excitavam em si por ocasiao das celebragñes do culto.
O Concilio de Trento no séc. XVI reconheceu a legitimidade desta
praxe e deu-lhe sancáo definitiva; a íim de evitar abusos ou mercanti
lismo, resolveu mesmo que se estabelecessem tabelas de contribuigóes
a ser oferecidas por ocasiáo da S. Missa e dos demais atos do culto.
Assim ficava instituido o sistema de espórtulas no intuito de auxiliar
legítimamente a subsistencia temporal das paróquias e dos ministros
do culto. Tal sistema (frisemo-lo) é inegávelmente licito, urna vez que
a Igreja localizada neste mundo nao pode dispensar os elementos ma
teriais necessários á realizado de sua missáo espiritual ou religiosa:
assim como neste mundo nao há alma sem corpo, assim nao há missáo
espiritual que possa ignorar o respectivo fundamento corpóreo ou
material. Ñas sociedades religiosas de todos os tempos, os fiéis se pres-
taram á colaboracáo com os interésses materiais ou financeiros da sua
comunidade (há pagamento de dizimos, por exemplo, em denomina-
cSes religiosas náo-católicas).
Contudo também é certo que o sistema de espórtulas se presta a
mal-entendidos e certa perplexidade. Em vista disto, alguns bispos e
sacerdotes tém procurado remové-lo, provendo de outro modo ás neces-
sidades materiais de suas dioceses ou paróquias. Foi o que se deu re
cen temente em París, no tocante ao menos a matrimonios e exequias;
o acontecimento teve ampia repercussáo no público, provocando (contra
t&da expectativa) comentarios contraditórios. Sao os tragos principáis
dos debates que vamos agora perceber através de alguns documentos
emanados das autoridades eclesiásticas de Paris.

2. Importantes esclarecimentos

Aos 5 de novembro de 1962, S. Em. o Sr. Cardeal Mauricio


Feltin, de Paris, promulgou novas determinagóes referentes a
celebragáo de matrimonios e enterros na sua arquidiocese, deter
minagóes cujo teor exato é o que se segué.

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 5

Carta de apresentagáo das novas disposigóes:

«Já há varios anos que bom número de sacerdotes e fiéis vém dése-
jando, sejam as cerimónias de enterros e casamentos celebradas com
maior simplicidade e unilormidade. A morte, de íato, nos recorda a
nossa igualdade fundamental perante Deus. Todos nos havemos de sub-
meter a nossa vida ao julgamento de Deus. Todos n6s, pobres pecado
res, precisaremos, naquela hora, da intercessáo de María assim como
das preces da Igreja.
A cerimónia litúrgica dos funerais deve exprimir de maneira sen-
sivel essas grandes verdades. Tal cerimdnia, por sua natureza, consti
tuí... um ato de fé na justica e na misericordia do Senhor, na ressur-
reicjio da carne e na vida eterna.
Motivos religiosos prementes imp5em outrosslm aos cristáos o
dever de assistir a urna cerimónia de casamento com o mesmo espirito
de fé. Trata-se de um sacramento, de um sinal sagrado, pelo qual Deus
acolhe e cumula com as suas gragas os dois nubentes que se unem^em
sua presenga. Sacerdote, parentes e amigos sao as testemunhas désse
ato religioso. Devem, por sua atitude, respeitar a serledade e a miste
riosa grandeza do ato.»

Após estes preliminares, passava S. Em. a dispor as normas


que para o futuro haveriam de reger a liturgia sagrada :

«Nos, Mauricio Feltin, por graca de Deus e da Santa Sé Apostólica,


Cardeal-presbítero da Santa Igreja Romana, do título de Santa Maria
da Paz, Arcebispo de Paris,
Considerando que número crescente de sacerdotes e leigos da nossa
diocese nos comunicaran! o seu desejo de se observar maior simplici
dade ñas cerimónias de exequias e casamentos,
Considerando que certos usos atualmente em vigor sao por vézes
motivos de mal-entendido em relacáo á Igreja, podendo prejudicar a
sua obra de evangelizacáo.
Considerando outrossim que diversas paróquias, tanto em Paris
como nos arredores, levando em conta a situacao vigente, tomfcram nos
últimos anos, com o nosso consentimento, medidas que se comprovaram
oportunas,
Visto o indulto da Sagrada Congregacao do Concilio n' 77111 D,
do dia 19 de outubro de 1962,
Vistas as determinacóes e instrugSes de nossos veneráveis prede-
cessores,
Vistas as propostas que nos foram apresentadas por nosso
coadjutor,
Visto o parecer do nosso cabido metropolitano,
Visto o parecer dos Srs. Párocos membros da Comissáo diocesana
de Finangas,

Houvemos por bem prescrever e de fato prescrevemos p seguinte :

Artigo primeiro. — Os Srs. Párocos organizaráo, por ocasiáo dos


casamentos um cerimonial digno e acolhedor. Além disto, asseguraráo
a todos os cristáos a celebracao de suas exequias em meio a dignidade
e simplicidade.

— 390 —
CLASSE ÚNICA PARA ENTERROS E CASAMENTOS

Estas duas formas de fungóes, que desejamos sejam muito estima


das pelas familias, tomaráo o nome de 'cerim&nias paroquiais'.

Art 2 — Para assegurar a unidade do esfórgo pastoral desenvol


vido nesse' sentido, as duas cerim6nias paroquiais seráo, quanto ao
essencial celebradas do mesmo modo em toda a diocese (de París). As
paróquias, dentro dos respectivos decanatos, terao o cuidado de se en
tender entre si no tocante aos pormenores.
O cerimonial de casamentes e exequias, urna vez estabelecido em
cada paróquia, será observado de maneira idéntica em todas as cenmd-
nias paroquiais.

Art. 3. — Os Srs. Párocos daráo especial atencáo ás seguintes ca


racterísticas das cerimónias paroquiais:
a) Todas as vézes que incluirem a celebracáo da S. Missa, deverá
ficar assegurada a presenga continua de um sacerdote que dirigirá a
oracáo dos fiéis.
b) As cerimónias paroquiais teráo lugar no altar que mais con-
vier; nao se reservará necessáriamente o altar-mor para as cerimónias
previstas no art. 5.
c) Para cada fungáo será preciso cuidar de que haja pessoal ade-
quado material simples e conveniente, assim como pegas musicais aptas
a assegurar a dignidade e o caráter religioso do ato. . _
Em particular, no tocante ás exequias, colocar-se-á sempre o caixao
sobre o inesmo estrado, cujo modelo deverá ser oportunamente apro-
vado,
d) Em cada paróquia seguir-se-ao as mesmas normas para o toque
de sinos em qualquer cerimónia fúnebre. O mesmo fica estipulado para
as cerimónias de casamento.
e) Nao serSo mais permitidas as cortinas de ornamentagáo tanto
no interior como no exterior da igreja.
Art. 4. — Nenhuma remuneracáo tabelada poderá ser exigida das
familias por ocasiáo das cerimónias paroquiais de casamento e enterro.
As familias seráo convidadas a fazer urna oferta proporcional ás suas
possibilidades financeiras, ás despesas que tenham efetuado com outros
DreDarativos do casamento, e os gastos realizados pela paróquia.
Pedimos aos nossos diocesanos que o possam, queiram suprir com
a sua generosidade as ofertas das familias menos habilitadas.
Art 5 — A titulo transitorio, as paróquias que o julgaram opor
tuno DOderáo, após entendimento com o decanato, pedir ao Ordinario
a autorizacáo para organizar mais solenes cerimónias de casamento e
funerais. As normas que regerem tais cerimónias, seráo por Nos deter-

"""^ Essas cerimónias nao seráo permitidas para matrimonios no santo


período da Quaresma.

Art 6 — Para cada urna das cerimónias referidas no artigo pre


cedente, deve haver pessoal, material e pegas musicais apropriados, cuja
importancia variará de acordó com os casos mas permanecerá.fiel ás
características gerais definidas no art. 3. Evitar-se-á todo artificio inútil
e toda ostentagáo.

— 391 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963. qu. 5

Para acentuar a igualdade de todos os homens perante a morte, o


estrado destinado a ser suporte do caixáo ficará sendo, em todas as
hipóteses, aquéle que se prevé no artigo 3 (parágrafo c) para as cerimó-
nias paroquiais.

Art. 7. — Duas instrugoes por nos aprovadas para regrar as ceri-


mónias fúnebres e os casamentas seráo enviadas aos Srs. Párocos pelo
Departamento de Administragáo temporal do culto. Essas instruyes
determinam com precisao as modalidades a ser observadas na aplicacao
prática do presente edital.

Art. 8. — Tñdas as licencas concedidas anteriormente por Nos ou


pelos Nossos Arquidiáconos ficam abrogadas pelo presente edital.
O presente documento entrará em vigor a 1* de Janeiro de 1963.

Dado em Roma, aos 5 de novembro de 1962, com a Nossa assinatura,


o sélo de Nossas armas e a assinatura do Chanceler do Nosso Arce-
bispado.

Por mandato de S. Eminencia Mauricio, Cardeal Feltin


Gabriel Eymeri Arcebispo de Paris
Cónego titular, Chanceler».

Estas disposigóes milito chamaram a atengáo do público


desde que foram publicadas, provocando nao sómente comenta
rios favoráveis, mas também opinióes discordantes. Estas tive-
ram um de seus principáis arautos no jornal «Le Fígaro» de
Paris, cuja edigáo de 20 de dezembro de 1962 publicava. üm ar
tigo de «Clarendon», de tom um tanto sensacionalista; o escritor
asseverava entre outras coisas : «O católico acata com respeito
a decisáo cardinalícia, o organista se aflige com ela, o critico a
deplora». E alegava, com a fórga de argumentos, que a decisáo
do prelado faria perder o emprégo aos músicos das igrejas e im
pediría a execugáo das grandes obras polifónicas, concluindo os
comentarios em tom de certa ironía.
Em vista disto, S. Em. o Sr. Cardeal Feltin fez ao jornalista
J. Pélissier as seguintes declaragóes publicadas no periódico «La
Croix» de 28 de dezembro de 1962 :

«Nao há dúvida, a aplicacao das novas normas obriga em muitos


casos a renunciar a costumes, a conveniencias e mesmo a práticas que
certas pessoas tém na conta de exigencias da piedade filial.
Contudo reconhecei lealmente — e quem vos fala agora é o antigo
diretor do coro do Seminario de S. Sulpicio — que nao se trata, no caso,
de suprimir a música! Ao contrario, o edital prescreve haja música de
órgáo e a participacáo de um ou dois cantares em cerim&nias ñas quais
outrora nada disso havia: Verdade é que o regulamento nao dá margem
á execugáo de polifonías com orquestra e numerosos cantores; mas, de
resto, éste tipo de música nao cónstituiu sempre urna excegáo? Essa
música polifónica, que passa por ser música de igreja, nao está mais

— 392 —
CLASSE ONICA PARA ENTERROS E CASAMENTOS

perto, por vézes, do concertó profano do que da música religiosa e


litúrgica?
Em última instancia, o edital reconhece a possibilidade de excegoes.
Estai certos de que levamos em conta o ponto de vista social e o
aspecto de ganha-páo que estáo associados a participagSo de artistas e
de cantores ñas celebracSes litúrgicas. Sabéis que no decorrer da pn-
meira sessáo do Concilio, quando se discutiu o projeto relativo á Litur
gia intervim em favor do uso das línguas vernáculas em certas funches
do culto. Contudo pedi que o canto da Mlssa se faca sempre em latim.
E isto por dois motivos : em primeiro lugar, para possibilitar a partici-
pacao ativa de todos os fiéis de urna assembléia mediante o recurso a
urna única língua; pensei no 'Credo' que se canta em Roma ou em
Lourdes (por tantos peregrinos unidos em urna só voz, embora prove-
nham de diversas nacdes)!... Em segundo lugar, o meu pedido se ba-
seava no fato de que a música sacra supóe geralmente o texto (latino)
do Ordinario da Missa.
Por conseguinte, nada tenho a opor a participagao de coros de can
tores e de órgáo na Liturgia. Longe de mim a idéia de suprimir a mu-
sica da igreja Sao Pió X já se manifestou contrario a urna música de
igreja demasiado teatral; ora nao é justamente ésse tipo de música que
aínda hojevSe ouve nos casamentos e ñas exequias?
As numerosas opiniSes favoráveis que me tém chegado — muito
mais numerosas do que se poderia esperar — atestam que as medidas
tomadas correspondem ás exigencias espirituais e litúrgicas dos nossos
tempos e nos levam a um sadio equilibrio».

Mais ainda : S. Em. numa reuniáo do clero de París reali


zada aos 18 de dezembro de 1962 declarou :

«Nao ignoráis as dificuldades que encontramos a propósito das


espórtutes de enterros e casamentos. Todos tém consciéncia de que o
assunto nSo pode ser regulamentado de urna só vez; de resto, tendes
dado neste setor a vossa melhor colaboracáo, e eu vo-la agradeco. Ha
nisso tudo pessoas que procuram defender seus interésses; é normal.
Nao será sempre fácil conseguir que os outros compreendam com exa-
tidáo a intengáo que inspirou as nossas determinagóes.
Rogovos, Srs. Sacerdotes, sejais prudentes, sejais bondosos; em
caso contrario, as nossas normas nao seriam pastorais. Poderáo pare
cer rigorosas secas, severas; afastarao de Cristo as almas mais do que
as aproximarao. Portante aplicai as determinagOes procurando com-
preender as situag5es. Há, sim, diferengas de situagóes de paróquia
para paróquia, e até mesmo dentro da mesma paróquia. Pode haver
situacSes que exijam... o recurso a urna excegáo. Considerai em cada
decanato o que será preciso entáo fazer. Alias, já assim tendes proce
dido; continuai dentro dessa linha.
Nada há a mudar naquilo que dispusemos. Far-se-á mister talvez
usar de um püuco mais de prudencia, brandura e bondade na execugao
das normas, a fim de que fiquem sendo realmente normas pastorais.
Elas tém sido bem recebidas pelo conjunto dos fiéis. Em geral, tém sido
bem acolhidas também por vés, Srs. Sacerdotes. Eu vo-lo agradego.
Contudo procedei cautelosamente. Nao fagamos revolugao, mas fagamos
urna evolugáo. É assim que aos poucos iremos desenvolvendo urna au
téntica agáo pastoral» (texto publicado em «Semaine Religieuse de
París», de 5/1/63).

— 393 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 69/1963. qu. 5

Dias mais tarde, aínda outra declaragáo da autoridade ecle


siástica se fez ouvir a propósito... Com efeito, a Uniáo dos Diri
gentes de coró e organistas publicou aos 20 de dezembro de
1962 um comunicado que realcava os inconvenientes acarretados
para seus membros pelas determinagóes do Cardeal Feltin. Em
conseqüéncia, o Arcebispo Coadjutor de París, Monsenhor
Veuillot, deu ao jornalista Jean Pélissier urna entrevista publi
cada na efeméride «La Croix» de 11 de Janeiro de 1963.
O prelado mostrou primeiramente que o dispositivo do Cardeal
Feltin nao é senáo urna expressáo do vasto esíórgo «que se vem efe-
tuando desde alguns anos a íim de renovar a pastoral litúrgica desti
nada a «dar melhor resposta da Igreja as necessidades espirituais do
nosso tempo». Os fiéis leigos que reíletem sobre a sua fé, «pedem que
as cerimónias sejam atos auténticos, isto é, atos cuja expressáo exte
rior corresponda a urna atitude de fé e assegure a participagao pessoal
e comunitaria dos cristáos». Tal era, alias, a preocupagáo do Concilio :

«Merece atengáo o fato de que no Concilio, enquanto se debatiam


os assuntos de Liturgia, sentimos como todos os bispos do mundo in-
teiro ou a grande maioria déles, estavam empenhados em fazer da Li
turgia urna expressáo mais auténtica da fé,... em despojá-la de tudo
que a historia e o trabalho dos sáculos puderam acrescentar ás cenmó-
nías, complicando-as indevidamente; assim desejaram por bem em
realce o espirito profundo, a linha essencial dos ritos. O próprio Conci'
lio manifestou a preocupagáo de pobreza evangélica, que nao equivale
a negar o esplendor do culto, mas que procura um esplendor auténtica
mente religioso, oposto a um brilho meramente profano, nao inspirado
por valores religiosos essenciais... Essa volta as fontes e ás exigencias
pastorais tem por efeito obvio a manifestacáo da verdade face da
Igreja».

A seguir, Mons. Veuillot asseverava que as conseqüéncias sociais e


económicas da simplificacáo de cerimónias haviam sido previstas, de
modo que também tinham sido tomadas medidas oportunas para que
ninguém fósse prejudicado pelo edital do Cardeal Feltin; estudos de
varios meses (desde outubro de 1960 até junho de 1961) haviam per
mitido satisfazer ás justas reivindicagoes das pessoas que até entao
viviam dos emolumentos de cantores, músicos e oficiáis das grandes
solenidades religiosas. Por flm, referia-se o arcebispo aos efeitos bené
ficos que a simplificacáo das cerimónias havia de trazer para a pró-
pria arte sacra:

«Em verdade, longe de significar a morte da música sacra, o edital


bem se pode tornar para essa música a ocasiáo de auténtica ressurrei-
Cao, de auténtica renovagáo, um convite a encontrar expressóes mais
puras, mais sadias, mais religiosas, correspondentes á música de igreja
e conformes á venerável tradicáo dos séculos passados. Certas pegas
musicais e certos cantos eram como que urna especie de exorbitancia
a acompanhar a perda do senso litúrgico...
É preciso que doravante a música sacra e todo o nosso esfórgo em
materia de arte sejam colocados a servigo das fungóes da Liturgia.
Havia algo de anormal no fato de que a arte do canto sacro se achava
de maneira permanente a servigo de cerimónias particulares na igreja

— 394 —
CLASSE ÚNICA PARA ENTERROS E CASAMENTOS

e nao a servigo da Igreja considerada como assembléia reunida para


louvar o Senhor. Havia nisso certa desordem. Bem compreendemos que
os fiéis, segundo as suas condicñes de haveres e de ambiente, desejem
tal ou tal aparato fora da igreja. Mas nao podemos admitir que em
nome das suas posses acabem por dar a cerimónias particulares um
brilho tal como nao o possuem as nossas Missas de domingo, as quais
constituem a assembléia crista!» (textos colhidos em «Documentaron
Catholique» LX n' 1392, de 20/1/1963, col. 139-144).
Procuremos agora deduzir de tais dizeres urna

Conclusao

Os documentos citados projetam luz suficiente sobre os debates que


se possam travar em torno do sistema de espórtulas do culto: apre-
sentam ao leitor os principáis argumentos que se evocam tanto na
Franca como no Brasil a favor ou em contrario do sistema.
Parectm muito válidas as razóes que militam em prol da substi-
tuigáo das espórtulas pelos dizimos ou por outra instituicáo ainda mais
espontánea. O cancelamento de honorarios por ocasiáo dos atos de culto
terá sempre a enorme vantagem de evitar equívocos, como se houvesse
mercantilismo com as coisas sagradas. É certo que ésse mercantilismo
nao existe: como ensina a historia, as espórtulas vém a ser, em sua
raiz, expressdes e estímulos da fé e do amor dos fiéis; equivalem a sím
bolos concretos de atitudes de ánimo muito dignas e recomendáveis.
Outrossim é justo — e mesmo necessário — que os cristáos contribuam
para a subsistencia material da comunidade paroquial e dos seus mi
nistros. Assim o sistema de espórtulas, geralmente em vigor, é de todo
legitimo e justificado.
Contudó pode haver fases da historia (e a nossa talvez seja urna
dessas) ñas quais se torne mais oportuno que a contribuicáo se faca
independentemente das celebracóes religiosas. Varias experiencias efe-
tuadas na Europa e no Brasil tém comprovado as vantagens de se subs-
tituirem as espórtulas : haja vista, de modo especial, a obra do Pe. Lau-
ren Remillieux na paróquia de «Notre-Dame Saint Alban» perto de
Liáo (Franca), obra relatada por Ch. Chéry no volume «Communauté
paroissiale et Liturgie. Notre-Dame Saint Alban». Paris 1947.
Ficando firmes estes dizeres, nao se pode deixar de acrescentar:
qualquer mudanca na praxe atualmente adotada há de ser feita por
evolucSo e nao por revoluciio. É o que S. Em. o Sr. Cardeal Feltin (em
documento atrás citado) e outros pastores de almas muito ineuleam :
medidas violentas e imaturas podem acarretar divisáo de ánimos e pe-
rigoso desequilibrio no orcamento financeiro das paróquias; o que em
urna regiáo já é viável, talvez ainda nao o seja em outra. Será preciso,
em todo e qualquer caso, incentivar nos fiéis a consciéncia de que
constituem membros vivos do Corpo Místico de Cristo, membros cha
mados a participar ativamente dos interésses da comunidade. É neces
sário que cada cristáo saiba, com profunda conviegáo, que a Igreja nao
é urna entidade abstrata, mas repousa sobre cada um de seus filhos,
seja sacerdote, seja leigo. Consciente disto, cada qual carregará solida
riamente as intencóes do conjunto, tanto no plano espiritual como no
plano material.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 69/1963

A sabedoria dos pastores da Igreja irá desenvolvendo suas expe


riencias e falará, legislará oportunamente de acordó coín os resultados
obtidos.'Por ora S. Em. o Cardeal Feltin pode ser felicitado pelos frutos
já colhidos, como atestam os que de perto tém acompanhado a vida
católica na arquidiocese de París.

D. Estévao Bettencourt O.S.B.

Aos nossos assinantes e clientes que ainda nao o tenham feito, pedi
mos encarecidamente o favor de regrar quanto antes as suas contas com
"P.R.". Gratos pela colaboracáo.

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