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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO VIII N* 91 JULHO 19<
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Como julgar o artigo 'A BIBLIA' de 'REALIDADE',


novembro 1966 ?" 277

H. SAGRADA ESCRITURA

2) "Hoje era dia tto estudo dos Evangelhos fala-se do 'Método


da Historia das Formas'. Há quem apregoe urna 'desmitizacáo'
ou a eliminagáo de mitos dos Evangelhos, a fim de se -poder per-
eeber a genuino, mensagem désses livros sagrados.
Como julgar tais idéias ?"

m. ciencias sociais

3) "Quais os pontos salientes da recente encíclica 'Popu~


lorum Progressio' do Papa Paulo VI?
Equivale a 'marxismo requintado' ? Intrus&o da Igreja em
política e economía, eom detrimento dos seus deveres religiosos?" 291

IV. DOGMÁTICA

i) "Que pensam as próprias mulheres a respeito das pos-


sibilidades. de receberem a ordenacáo sacerdotal ?" SOS

V. ASCÉTICA E MÍSTICA

S) "Que diser do artigo 'Novas Religiosas' publicado na


revista 'Sponsa Christi' de fevereiro-margo 1967 ?" SIS

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS:

Ano VIII — N' 91 — Julho de 1967

I. CIENCIA E RELIGIÁO

ADOLFO (Sao Paulo) :

1) «Como julgar o artigo 'A BÍBLIA' de 'REALIDADE',


novembro 1966 ?»

A revista «REALIDADE», em seu número de novembro


de 1966, pág. 105-107, apresentou um artigo bíblico que muito
chamou a atengáo do público. Parece oportuno tecer aqui algu-
mas breves consideracóes a respeito, pois contribuiráo para
se avaliar como «REALIDADE» por vézes informa seus lei-
tores em assuhtos religiosos.
Em «P.R.» 90/1967, qu. 2, já íoi analisado o artigo «Quem era
o homem Jesús» de «REALIDADE», marco 1967.

1. O cabesalho do artigo

Eis o que se lé no alto da página inicial (105) do men


cionado artigo «A BIBLIA» :

«Cenarlo : uma faixa de térra entre o Mediterráneo e o pequeño


rio Jordüo — nao mais que 100 quilómetros de largura entre o ponto
mais ocidcntal e o mais oriental; ao norte, os montes do Líbano,
cobertos de nevé eterna; ao sul, a 250 quilómetros de distancia, o
deserto de Neguev, rochoso e quente. Apesar do solo estéril, talhado
em colinas irregulares, é a Térra Prometida.

Personagem : o povo hebreu, também chamado depois de povo


israelita e de povo judaico, o que deu em muíta confusáo através da
historia.

Época: do vigésimo ao primeiro século antes de Cristo, com


profundas conseqüéncias para os vinte séculos seguintes.

Autor: dosconhecido. Mas há os que pensam o contrario.

Inspirador : JHVH.

— 277 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS:» 91/1967. qu. 1

JLan$amento: Ano Novo Judaico, 456 antes de Cristo, sob os


aplausos do povo de Jerusalém.

Título:

«A BIBLIA»

O autor do trabalho, Marcos Margulies, coletando ésses


dados, intencionou apresentar a Biblia mais ou menos como se
apresenta um livro em catálogo de Biblioteca. A apresentagáo,
porém, é pouco feliz, como se depreende de breve análise do
do texto ácima.

a) «Lancamento» : A Biblia nao foi langada ao público,


como se lanca em nossos dias um livro que acaba de sair do
prelo; numa época em que nao havia imprensa, nao se faziam
langamentos. A Biblia é, na verdade, urna colegáo de livros
que foram sendo redigidos paulatina e sucessivamente a partir
de Moisés (séc. XIII a. C.) até o fim do séc. I d. C. (a Biblia
completa, no sentido cristáo, contém o Antigo e o Novo Tes
tamento, conteúdo éste que Marcos Margulies mesmo reconhece
e explica no decorrer do seu artigo; cf. pág. 107, col. 2).
Por conseguinte, nem mesmo em estilo de divulgacáo menos
rigorosamente científica é possível falar de «lancamento» da
Biblia.

b) Data do «laníamente» : «... 456 antes de Cristo,


sob os aplausos do povo de Jerusalém».

Em verdade, que houve nessa data ?

Moisés, no séc. Xm a. C, redigiu por escrito algumas


pegas de historia e de legislacáo (religiosa e civil) de Israel.
Ésses documentos foram, no decorrer dos sáculos, acrescidos
de outras pecas legislativas assim como de narrativas histó
ricas e doutrinárias. Daí se originou um grande conjunto de
leis e narrativas que os judeus chamam «Torah» ou «Lei de
Moisés»; éste conjunto deve ter chegado á sua forma definitiva,
hodierna, no séc. V a. C, pouco depois que os judeus voltaram
do exilio da Babilonia; entáo, em 444 ou 456 ou mesmo 398
(os autores divergem), o escriba e sacerdote Esdras promulgou
definitivamente a Lei perante o povo em Jerusalém.
O ano de 456 a. C, portanto, corresponde á data em que
se encerrou a confecgáo da Lei, primeiro livro da Biblia. Se
entendemos «Biblia» no sentido ampio cristáo (como a entende
Margulies no corpo do seu artigo), a Biblia nao foi rematada
nessa data, mas continuou a ser redigida até o fim do séc. I

— 278 —
«REALIDADE» E A BIBLIA

da era crista. Verdade é que os judeus, nao reconhecendo o


Novo Testamento, deram a Biblia por completa na época de
Esdras (séc. V a. C).

c) Época: Segundo o articulista, a Biblia descreve um


periodo de historia que vai do séc. XX antes de Cristo ao séc. I
antes de Cristo... Nao obstante, assevera o autor que ela
foi «lancada» no séc. V antes de Cristo (ano de 456); esta indi-
cagáo está em contradicáo com a anterior, pois nao se pode
dizer que a Biblia, Jangada no séc. V a. C, se refere aos quatro
últimos sáculos antes de Cristo em tom de profecía !
Tal contradicáo se explica pelo fato de que o articulista
usou o termo «Biblia» em dois sentidos diferentes:

a Biblia concluida no séc. Vea Biblia tal como os judeus a reco-


nhccem,
a Biblia, porém, que se estende até o séc. I antes de Cristo, é
o Antigo Testamento tal como os cristáos o reconhecem; é o Antigo
Testamento, que termina no limiar do N6vo Testamento.

Mais ainda : a Biblia comega a narrar historia no sentido


próprio da palavra (embora nao no sentido de urna crónica
moderna) a partir de Abraáo, que, segundo os melhores exe-
getas, viveu por volta de 1850 a. C. ou no séc. XIX a. C;
veja-se Génesis c. 12. — Os onze primeiros capitulos do Génesis
nao obedecem a cronología alguma; sao apenas um fundo de
cena geral para justificar a vocacáo de Abraáo; constituem,
por isto, a chamada «pré-história» bíblica. Por conseguinte,
nao é precisa a data fornecida pelo articulista : «do vigésimo
século...». De resto, na pág. 106, col. 2, diz Margulies que a
Biblia comega a narrar a historia a partir do séc. XXI a. C.
(veja pág. 280 déste fascículo).
«... ao primeiro século antes de Cristo». Nessa época
encerrou-se o Antigo Testamento, conforme os cristáos. Nao
se encerrou, porém, o periodo de historia descrita pela Biblia.
Com efeito, para os cristáos, ela se protrai além do séc. I a. C,
abrangendo todo o século I depois de Cristo; para os judeus,
a Biblia se concluiu no séc. V a. C. Vé-se, pois, que nao tem
cabimento, nem segundo os judeus, nem segundo os cristáos,
a indicagáo : «ao primeiro século antes de Cristo».

d) «Autor: desconhecido. Mas há os que pensam o


contrario».

A Biblia nao tem um só autor. Mas, sendo urna colegáo de


varios livros escritos em épocas e regióes diversas, ela tem

— 279 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 1

varios autores, dos quais alguns, segundo os críticos, sao conhe-


cidos (Moisés, Davi, Samuel, Jeremías, Isaías, Ézequiel, S.
Mateus, S. Joáo, S. Paulo...), outros desconhecidos; há,-de
fato, livros unánimemente considerados como partes integran
tes da Biblia sem que se possa indicar quem os redigiu (tenha-se
em vista o Cántico dos Cánticos, Ester, Crónicas...).

2. Observacces particulares

Merecem especial atengáo os seguintes tópicos do artigo:

1) Pág/ 105, coluna %: Taré, o pai de Abraáo, viveu


«quatro mil anos antes de nascer a religiáo crista», fazendo
entáo «urna longa viagem, desde Ur, na Caldéia, até Aram, no
deserto sirio».
Todavía, na pág. 106, col. 2, lé-se : «Os cinco livros (Penta
teuco — porque no grego penta é cinco) abrangeram um período
que vai do século 21 ao século 12 antes de Cristo, ou seja, desde
a viagem de Taré até a chegada dos israelitas á margem
oriental do Jordáo».
Note-se a incoeréncia: Taré viveü 4.000 anos; antes de
Cristo, conforme pág. 105, e viveu no séc. 21, isto é, cérea de
2.100 anos antes de Cristo, conforme a pág. 106. Na verdade,
nenhuma dessas duas datas é aceitável: Taré deve ter vivido
no séc. XX ou no séc. XIX a. C.!
2) Pág. 106, col. 1: o articulista apresenta, sem indicar
a fonte, as seguintes palavras como tendo sido proferidas por
Moisés: «Agora reconhego que Jeová é o maior de todos os
deuses». Ora quem consulta o texto bíblico, verifica que tal
frase se encontra em Éx 18,11: é urna afirmacáo nao de Moisés,
mas de Jctro, sógro de Moisés. Jetro, como madianita, teve
mentalidade politeísta; a Biblia, porém, nao insinúa que Moisés
a tenha compartilhado, como sugere o articulista.

3) Pág. 107, col. 2: a respeito do catálogo dos livros


da Biblia lé-se o seguinte :

«Depois de muito estudar as mais variadas obras, em 692 a Igreja


chegou a urna conclusao. Os homologroumena — os livros reconhecidos,
homologados — constituirán! definitivamente o Novo Testamento. Os
outros eram os antilegoumena: os rejeitados, os apócrifos. Quase
mil anos mais tarde o Sínodo de Trento (1545-1563) estabeleceu final
mente a estrutura dos livros do Antigo Testamento, válida para os
católicos até o día de hoje. E a Biblia ficou completa».

— 280 —
«REALIDADE» E A BÍBLIA

Note-se: a primeira definicáo do catálogo bíblico data


de 393, quando o Concilio de Hipona (África Setentrional),
sob o influxo de S. Agostinho, estipulou, em seu canon 36,
exatamente a mesma lista de livros sagrados que até hoje é
reconhecida pela Igreja.
Idéntica defmigáo foi promulgada pelos Concilios de Car-
tago in (can. 47), no ano de 397, e IV (can. 29) em 419.

Em 405, o Papa Inocencio I, escrevendo a Exupério, bispo de


Tolosa, professava também o mesmo catálogo bíblico.
No séc. VI, o chamado «Decreto Gelasiano», escrito provávelmente
por um autor anónimo na Italia ou na Gália, contém um catálogo de
livros que deviam e nao deviam ser lidos : entre aqueles, encontra-se
o canon completo da S. Escritura até hoje adotado pela Igreja.

Em 692, no Concilio Trulano II em Constantinopla, os


bispos do Oriente, por sua vez, aprovaram o catálogo bíblico
adotado no Ocidente.

No séc. IX, o Patriarca Fócio de Constantinopla professou a


mesma lista de livros sagrados.

Mais tarde ainda, o Concilio ecuménico de Florenca, em


1441, repetiu solenemente a antiga lista de livros biblicos.
O Concilio de Trento, aos 8 de abril de 1546, nao fez senáo
reiterar as declaragóes dos sínodos anteriores desde o séc. IV;
nada inovou, mas apenas frisou a sentema comum da" Igreja
dos séculos precedentes, diante de tendencias ¡novadoras da
época.

Deve-se ainda dizer que também antigos códigos manuscritos da


S. Escritura apresentam o catálogo da Biblia tal como foi definido
pelos concilios da Igreja. Assim o «Canon Claromontanus» dos séc.
III/IV e o «Canon Mommsenianus» do séc. IV. — Obsérvese que, por
razóos de manuseio ou falta de papiro, nem lodos os códices manus
critos da S. Escritura continham todos os livros da mesma.

É á luz déstes dados que se deve julgar o texto de «REA


LIDADE» concemente á definigáo do catálogo bíblico. As refe
rencias ao ano de 692 (Concilio Trulano) e ao Concilio de
Trento sao inexatas.

4) Pág. 106, col. 3: «Em 456 foi confirmado o velho


acordó: Jeová continuaría sendo Deus exclusivo dos hebreus
e os hebreus continuariam povo exclusivo de Jeová».
O exclusivismo ácima nao está fundamentado na Biblia.
Verdade é que os judeus, principalmente após o exilio (séc. VI
a. C), tendiam a excluir da mensagem da salvacáo os outros

— 281 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 2

povos da térra. Contudo os próprios livros bíblicos os repre-


endiam por isso; tenha-se em vista, entre outros, o livro de
Joñas, profeta que Deus mandou a Ninive a fim de ai anunciar
penitencia e salvagáo. Merecem atencáo tambénr Is 11,10; SI
17,50; SI 117,1 e muitas outras passagens dos profetas.
Estas poucas observagóes, acrescentadas ao artigo de
«P. R.» 90/1967, qu. 2 e a outras que ainda poderiam ser feitas.
sao suficientes para evidenciar que «REALIDADE» nao é fonte
de informagáo religiosa; por vézes, ela incute deformagáo reli
giosa, embora o faga de maneira «suave» e aparentemente
científica.

II. SAGRADA ESCRITURA

IRACEMA (Juiz de Fora) :

2) «Hoje em dia no estudo dos Evangelhos fala-se do


'Método da Historia das Formas'. Há quem apregoe unía
'desmitizacáo' ou a eliminacáo de mitos dos Evangelhos, a
fim de se poder nerceber a genuína mensagem désses livros
sagrados.
Como julgar tais idéias ?»

Em primeiro lugar, exporemos as grandes linhas do método


da «Historia das Formas» («Formgeschichtliche Methode», em
alemáo, donde a sigla FG). A seguir, proferiremos ura juízo
sobre o assunto.

1. O método da Historia das Formas

1. O método da Historia das Formas deve-se a alguns exegetas


alemáes, entre os quais sobressaem Martín Dibelius («Die Formge-
schichte des Evangeliums», 1919) e Rudolf Bultmann («Die Geschichte
der synoptischen Tradition», 1921).
Estes autores julgaram que, para entender devidamente o sen
tido do texto dos Evangelhos (principalmente dos sinóticos : Mt, Me
e Le), seria preciso retroceder ao periodo anterior á data em qun
foram escritos ; seria preciso reconstituir a «pré-história» dos Evan
gelhos; ter-seia assim a historia da formaeño dos textos evangélicos;
dai o nome do novo processo exegético : «método da Historia das
Formas».

— 282 —
O MÉTODO DA HISTORIA DAS FORMAS

2. Éste método supóe o seguinte: Nos primeiros dece


nios após a morte de Jesús, foram-se formando entre os cristáos
narrativas breves a respeito do Senhor e da sua doutrina, as
quais, independentemente urnas das outras, circulavam de boca
em boca ou se achavam consignadas em fólhas volantes; exis
tia, pois, antes da redagáo do primeiro Evangelho escrito (a
qual se deu por cérea dos anos 50/60), ampia literatura oral,
de carátei; popular e simples, a qual referia ditos e feitos de
Cristo, separados do seu quadro cronológico e geográfico. Os
evangelistas apenas recolheram e compilaram essas pegas lite
rarias oráis e escritas referentes a Jesús, inserindo-as num
quadro histórico e geográfico artificial; os autores sagrados,
escrevendo muito após os acontecimentos que narravam, já
nao estavam em condigóes de referir exatamente a cronología
e a topografía da vida de Jesús.

3. As primitivas comunicagóes cristas teráo tido influ


encia decisiva na maneira de conceber e formular as narrativas
referentes a Jesús. Os arautos do método da historia das formas
compartilhavam a filosofía sociológica de Durkheim, segundo
a resposta a seus problemas e suas aspiragóes; as circunstan
cias da vida de urna sociedade condicionam o seu modo de
pensar e falar. — Em conseqüéncia, dizem, os textos dos Evan-
gelhos sinóticos (Mt, Me e Le) nos transmitem as situagóes
dos cristáos do primeiro sáculo e a maneira ideal como conce-
biam Jesús ou como julgavam que Jesús devia responder aor,
seus anelos. No texto sagrado, portante, tem-se o Jesús da fé
(= o Jesús tal como o professava a fé dos antigos), nao o
Jesús da historia (= o Jesús tal como viveu na Palestina);
tem-se um Jesús dotado de valor «existencial e ¡mediato» (Sita
ím Leben) para as comunidades cristas, nao o Jesús real.

4. Postos estes principios, os críticos trataram de discer


nir as diversas unidades ou pegas literarias compiladas pelos
Evangelistas; extrairam-nas do contexto do livro em que se
encontravam, e procuraram classificá-las segundo urna tabela
de categorías ou formas literarias. Para realizar esta classifi-
cacáo, estabeleceram um confronto entre as narragóes contidas
nos Evangelhos e as que se encóntram na literatura popular
(Kleinliteratur) dos judeus e dos pagaos.

5. Efetuado tal confronto, os críticos estipularan! varias


formas ou categorías literarias, segundo as quais se distribuem
as passagens dos Evangelhos :

— 283 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 2

1) os logia bu dizeres de Jesús: máximas de sabedoria, parábolas,


alegorías, advertencias escatológicas, normas disciplinares, etc.;

2) as historias ou feitos de Jesús, que se subdividem em:

a) paradigmas ou apoftegmas: narrativas breves, cujo en


redo serve para incutir urna sentenca lapidar do Mestre.
Cf. o texto de Me 2, 23-27: a historia das espigas colhidas
e consumidas pelos Apostólos culmina na lic.ao íinal:
«O sábado foi feito para o homem, e nao o homem para
o sábado»;

b) novelas: episodios mais pormenorizados, por vézes pito-


rescos, que geralmente descrevem um milagre; cí. Me 4,
37-41; 5,1-20; 5,21-43; 6,35-44; 6, 45-52; 7, 32-37; 8,22-26;
9,14-29 ;

c) legendas: narrativas relativamente ampias, que contém


partes da vida de Jesús e dos discípulos (a infancia do
Senhor, o seu batismo, a tentagáo no deserto, a confissáo
de Pedro, a transfiguragáo, a Páixáo, a Ressurreicáo...).

6. Uma vez classificadas as seccóes do Evangelho segundo


as categorías ácima, o método da historia das formas procura
explicar a génese e a evolucáo de tais perícopes, isto é, inves
tiga na historia das primitivas comunidades cristas quais pos-
sam ter sido os fatóres que influenciaram a redacáo de cada
uma das pegas do Evangelho.
Nesse trabalho de explicacáo da origem das perícopes, os
críticos admitem, em varios casos, um núcleo histórico; julgam,
porém, que ésse núcleo foi acrescido de outros tragos nao his
tóricos destinados a dar um sentido existencial ao episodio
relatado.

Assim, por exemplo, Dibelius admite que Jesús tenha realmente


dito: «Eis minha máe e meus irmáos». Julga, porém, que o pregador
cristáo a estas palavras ousou acrescentar outras, visando a edilicacáo
dos ouvintes : «Pois todo aquéle que faz a vontade de Deus, é meu
irmáo, minha irma e minha mae» (Me 3, 34s).
Jesús terá dito: «Nao sao os sadios que precisam de médico, mas
os doentes». O pregador, desejoso de sublinhar o alcance religioso
desta aflrmacao, ajuntou-lhe: «Nao vim chamar os justos, mas os
pecadores» (Me 2,17).
O Mestre declarou: «Os companheiros do esposo n5o podem
jejuar>, frase que proibia (assim pensa Dibelius) aos discípulos a
prátlca judaica do jejum; eis, porém, que os primeiros cristáos se
puseram a jejuar á semelhanca dos judeus... Que fizeram os pre-
gadores ? A fim de legitimar éste uso, ousaram prolongar a, afirma-
gao de Jesús: «Mas dias viráo om que o esposo lhes será arrebatado;
entSo háo de jejuar» (Me 2,19s).

Em outros casos, os arautos da historia das formas nao


admitem cerne histórico ñas narrativas evangélicas. É o que

— 284 —
O MÉTODO DA HISTORIA DAS FORMAS

(segundo éles) se dá principalmente nos episodios de milagres


e fatos sobrenaturais (transfiguracáo, ressurreigáo do Senhor,
profecías da Paixáo, conversáo da agua em vinho...); tais
seccóes foram «inventadas» para dar fundamento ao «mito de
Jesus-Deus».

7. Os mesmos críticos, depois de haver explicado segundo


os seus principios a origem de cada pega do Evangelho, julgam-
-se finalmente obligados a proceder á desmitizagáo, ou seja,
á eliminacáo de todo mito ou de todas as. idéias e teses acres-
centadas pelos antigos cristáos as narrativas evangélicas. Pre-
tendem déste modo chegar ao conhecimento puro do «Jesús
da historia», o qual difere do «Jesús da fé». Muitas vézes,
porém, a figura do Jesús da historia que tais estudiosos pro-
póem, é táo pálida que se diría quase nula; nao se explicaría
como um Jesús táo destituido de notas marcantes (las vézes
mesmo, táo carregado de anomalías e defeitos) teria exercido
a influencia que de fato exerceú sobre os seus discípulos. Os
próprios críticos tém-se, pois, recusado a aceitar as conseqüen-
cias lógicas das premissas estabelecidas; alguns preferem afir
mar apenas que Jesús existiu, sem dizer algo de ulterior a
respeito; outros julgam-se obrigados a aceitar «algo» de miste
rioso ou transcendente na pessoa de Jesús («algo», porém,
que nao ousam explicar para nao ter que abordar a questáo
da DiVindade de Cristo).

É de notar que grande número dos adeptos do método da «historia


das formas» sao protestantes, e protestantes «piedosos»... Isto se
compreende desde que se leve em conta que, para o protestante, a
íé é, antes do mais, um ato de confianca em Cristo e nao um ato pró-
priamente intelectual; para o protestante, nao é necessário á salvagao
saber exatamente como Jesús viveu e íalou; basta-lhe reconhecer
Jesús como único e suficiente Salvador, e confiar n*Éle.
Em resumo, vé-se que o método da historia das formas tem seus
fundamentos em quatro correntes füosófico-teológicas :

o soclologismo, que atribuí a comunidade ou á psicología das mas-


sas o poder de criar figuras mitológicas duradouras ;

o existenciallsmo, que só se interessa pelo sentido concreto e


imediato das coisas, sem cuidar do essencial ou da verdade objetiva;

a fé fiducial do protestantismo, que dispensa a historicidade ■ es-


trita dos Evangelhos ;

o racionalismo filosófico, que nao admite o sobrenatural e o mi


lagroso.

Procuraremos agora formular

— 285 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9171967, qu. 2

2. Um joizo sobre a «Historia das Formas»

Está claro que o método, tal como foí ácima exposto, nao se con-
cilia com as afirmagdes da fé católica; nega o sobrenatural e ignora
a acao do Espirito de Deus na transmissáo da mensagem de Cristo
ao mundo; esta teria sido o joguéte de fatores sociais, psicológicos
ou meramente humanos.
Nao obstante, os exegetas católicos modernos, estimulados pelo
próprio Magisterio da Igreja, reconhecem no método da historia das
formas elementos verídicos e valiosos para a compreensáo dos textos
sagrados.

Passamos a expó-los, sublinhando naturalmente as reservas que


se devem fazer ao método da FG.

1. Os estudiosos, tanto católicos como náo-católicos, hoje


em dia nao duvidam de que, antes da redacáo dos Evaaigelhos,
existiam narrativas isoladas (meramente oráis ou também
escritas). Com efeito, nao poucos episodios do texto evangélico
podem ser comparados a pequeños blocos que, mesmo quando
separados do seu contexto, nao perdem o respectivo significado.
Disto se depreende que tais narragóes foram concebidas inde-
pendentemente de algum enredo completo. Esta conclusáo é
confirmada pelo fato de que as vézes o mesmo episodio é
referido em contexto diverso; assim a expulsáo dos vendilhóes
do Templo, conforme os sinóticos (Mt 21,12s; Me 11,15-17;
Le 19,45s), ocorreu no fim da vida pública de Jesús; segundo
Sao Joáo (2,14-16), logo no inicio da mesma.

2. Tais blocos independentes referiam a verdade histó


rica ? Nao teráo as primeiras comunidades cristas deturpado
os fatos e inventado as narrativas para atender aos seus pro
blemas ?

— É certo que os primeiros cristáos nao tiveram em mira


descrever a historia de Jesús no sentido técnico moderno; nao
pensaram em redigir urna biografía completa nem a exposicao
sistemática da doutrina de Cristo (cf. Jo 20,30; 21, 25). Disto,
porém, nao se segué.que tenham deturpado os fatos ou inven
tado as narrativas.
Tal conclusáo seria mesmo absurda. Nao se poderia com-
preender que judeus e pagaos se convertessem ao Cristianismo
— nova religiáo de penitencia, de reforma de costumes —,
deixando-se enredar por casos imaginarios, por pregadores que
atribuiam a Jesús o quev Ele nao dissera nem fizera. Os arautos
do Evangelho, falando ao público palestinense, em que se en-
contravam nao poucos adversarios do Cristianismo, perma-
neciam continuamente sob o controle désses antagonistas.

— 286 —
O MÉTODO DA HISTORIA DAS FORMAS ,__

Qualquer deturpagáo da historia estava sujeita a ser denun


ciada, redundando em desabono da pregagáo.

A formacáo de narragóes mais ou menos ficticias só se


poderia admitir após o desaparecimento da geragáo que fóra
testemunha direta da vida do Mestre; á medida que se fóssem
esvanecendo as recordagóes da auténtica realidade, introduzir-
-se-iam tragos novelísticos na narrativa do pretérito. Em geral,
requer-se longo espago de tempo para que se possam formar
tradigóes legendarias e mitos.

De fato, as geracSes cristas foram lentamente acrescentando tra


eos fabulosos á figura do Mestre, tragos hoje consignados nos nume
rosos Evangelhos apócrifos. Se tais apócrifos tiveram origem seme-
Ihante á dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e Joao, pergunta-
-se: por que é que a tradícao crista nao os catalogou entre os livros
sagrados, a semelhanca dos quatro Evangelhos canónicos? Nao será
esta dístingáo justamente o indicio de que os bispos e os fiéis reco-
nheceram que os apócrifos contém aberracSes, contém as «formas
literarias» que Dibelius e Bultmann enunciam, ao passo que os
quatro Evangelhos canónicos conservaram íntegras as recordares
do passado ?

3. Dirá talvez alguém : mas, se entre os Evangelistas


há por vézes diferengas e até discordia em pormenores, como
se pode admitir que todos narrem a verdade histórica ?
— Para responder a esta dúvida, seja lícito recorrer á
seguinte analogía : Fra Angélico pintou dois quadros da Anuri-
ciagáo de Nossa Senhora. Num déles, María aparece sentada,
trajando urna veste vermelha, no momento em que o anjo
Gabriel déla se aproxima. No outro, a Virgem se acha em pé,
trazendo veste roxa.

Como julgar a mente e a intengáo de Fra Angélico ? Terá


ele sido fiel á historia num de seus quadros, e infiel na outra
pintura ?

Refletindo, percebemos que a questáo está mal colocada.


Fra Angélico nao tinha em mira os pormenores da Anunciagáo
do anjo; nao se propunha informar o público a respeito da
posigáo e da veste de María quando recebeu a noticia da Encar-
nagáo. O que o pintor intencionava, era por em realce a
mensagem religiosa que está associada ao anuncio do anjo a
Mana; Deus se fez homem, inclinándose para a humilde don-
zela de Nazaré. Por isto Fra Angélico atribuiu a María posigóes
e vestes que, embora diferentes urnas das outras, lhe pareciam
condizer com o conjunto da cena e com a solenidade da men
sagem; posigáo e vestes de María, portanto, sao, no caso,

— 287 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 2

pormenores que nao devem ser julgados do ponto de vista da


historiografía, mas, sim, através do prisma da doutrina que
o pintor quis incutir ao público.

De maneira mais geral, podemos dizer : a arte tem-se esmerado


por representar a figura da Virgeni SS. Os pintores da Rcnascer\c.a
atribuiram-lhe os traeos característicos de urna bela donzela, ora da
Italia, ora da Flándria e dos Países-Baixos. Ao invés, os pintores
japoneses apresentam a Virgem como íilha do Japáo, enquanto os
africanos reproduzem María SS. com as notas tipicas da raca negra.
— Seria fora de propósito considerar ésses artistas como testemu-
nhas infiéis a historia; éles intencionaran! ou intencionam referir-se
a Maria como personagem real e histórica, nao, porém, para descrever
o seu aspecto físico, mas, sim, o seu valor e significado religioso ;
ora a figura de Maria é inegávelmente mais eloqüente para os afri
canos quando apresentada com tragos que- lhes sao familiares, como
é mais eloqüente para os asiáticos quando ornamentada com tragos
da raga amarela.

•■ Algo de semelhante deve-se dizer dos Evangelistas: tiveram


a intengáo de apresentar acontecimentos reais, nao, porém,
para fazer o decalque historiográfico désses eventos, e, sim,
para realgar o sentido religioso dos mesmos. Por isto nao
hesitavam em apresentar por vézes as circunstancias e os
pormenores de suas narrativas de tal modo que evidenciassem
plenamente a sua mensagem catequética.
Por certo, os Evangelistas nao intencionaran! descrever
a historia pela historia, ou seja, em vista da mera informagáo
cronística dos leitores. A sua finalidade era catequética; pro-
curavam apresentar a historia real como mestra da fé e da
vida dos cristáos. Destarte quiseram realmente, como afirma
a «Historia das Formas», dar um sentido vital, existencial,
as narrativas evangélicas.

Os leitores imediatos sabiam que nao deviam procurar nos Evan-


gelhos historiografía simplesmente dita; tinham mesmo consciéncia
de que esta ai servia á comunicagáo de urna noticia de salvagáo
eterna ; por isto o modo como os Evangelistas narravam a historia,
nao os induzia em erro. Nem, portanto, ao leitor moderno deve causar
embarago; apenas se pede que éste leía os Evangelhos como os
Evangelistas queriam fóssom lidos, nao como nos, homens do séc. XX.
lemos crónicas.

4. É preciso outrossim notar que os Evangelistas, ao


referir as palavras de Cristo, .nao raro as explicitaram..Pode-se
admitir que Jesús por vézes tenha falado de modo sucinto; os
Apostólos, porém, após a Rcssurreigño, perceberam, sob a agáo
do Espirito Santo, tudo que eslava incluido ñas breves afirma-
góes do Mestre. Por conseguinte, ao apregoar a Boa-Nova,

— 288 —
O MÉTODO DA HISTORIA DAS FORMAS

disseram mais do que Jesús dissera; disseram-no, porém, de


maneira homogénea, desenvolvendo fielmente a doutrina do
Mestre. Eis um exemplo frisante déste proceder :

Em Le ll,29s e Mt 12,3s, lé-se que os escribas e íariseus pediram


a Jesús um sinal. Ao que o Divino Mestre respondeu;

Le Mt

«Esta geragáo é urna gera- «Esta geragao má e adúltera


Cao má. Pede um sinal, mas ou- pede um sinal, mas outro sinal
tro sinal nao lhe será dado se- nao lhe será dado senao o si
nao o sinal de Joñas. Assim co nal do profeta Joñas. Assim co
mo Joñas íoi um sinal para os mo Joñas estéve tres días e tres
minivitas, do mesmo modo o Fi- noites no ventre de um grande
lho dó homem será um sinal peixe, do mesmo modo o Filho
para esta geragáo». do homem ficará tres dias e
tres noites no coracáo da térra».

Quem lé o texto de S. Lucas, nao percebe claramente o que queira


dizer: o próprio Filho do homem seria sinal para os judeus, mas...
como o seria? E que relagáo haveria entre Jesús e Joñas ?
Ao contrario, em S. Mateus a maneira como Jesús seria sinal é
muito explícita; Joñas, tendo permanecido tres dias e tres noites no
ventre do peixe, seria figura do Redentor colocado no seio da térra
e ressuscitado. A ressurreicáo de -Jesús seria o sinal por excelencia
da autenticidade de sua missáo.
Pergunta-se : terá Jesús falado duas vézes. respondendo ora como
S. Lucas refere, ora como S. Mateus propee ?
Tal hipótese é de todo inverossimil. Muito mais provável é a
explicacáo seguinte: Cristo deu a sobria resposta que S. Lucas trans
mite. Após a Ressurreicáo, porém, os discípulos compreenderam todo
o alcance das palavras do Mestre; por isto, em sua pregacáo oral
explicavam-nas, mostrando que aludiam á ressurreicáo de Cristo.
Conseqüentemente, S. Mateus inseriu a explicacáo no texto do sen
Evangelho; destarte o autor sagrado deu a ler explícitamente (como
palavras de Jesús) o que na resposta de Cristo estava contido vir-
tualmente.

Neste sentido pode-se dizer que as primitivas comunidades


cristas «criaram» alguma coisa ao transmitir a Boa-Nova; tal
«criacüo» nao significa «invencáo, acréscimo heterogéneo ou
falso», mas auténtica explicitagáo dos dizeres do Mestre. A
intenc.no de catequizar e exortar teve assim sua influencia na
nmneira como os primeiros cristáos referiam os ditos e feitos
de Cristo.
De resto, o próprio Jesús predisse aos Apostólos que Ihes
enviaría o Espirito Santo, o qual os faria crescer no entendi-
mento das palavras do Mestre :

«Tonho ainda muitas outras coisas a vos dizer, mas níio as podéis
compreender agora. Quando vier aquéle Espirito da verdade. Ele

— 289 —
-rPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 2

vos conduzirá á verdade completa. Nao falará de si mesmo, mas


talará tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que há de acontecer.
Ele vos enslnará todas as coisas e vos recordará tudo o que eu vos
disse» (Jo 14,26).

As palavras «vos recordará» sao ilustradas pela passagem de


Jo 2,19.21s. Jesús disse: «Destruí éste templo e em tres días o reer-
guerei». Acrescenta o Evangelista: «Ele falava do templo do seu
corpo. Depois que ressuscitou dos mortos, recordaram-se os discípulos
destas palavras e creram na Escritura e na palavra de Jesús».
Por conseguinte, recordar, nessa perspectiva, nao é apenas recor
dar o passado, mas compreender melhor, plenamente, sob a luz do
Espirito de verdade, o significado de acontecirrtentos e frases que
durante o ministerio de Jesús íicava velado. Ao recordar, os Apostólos
nao podiam prescindir da luz nova que a Ressurreicád e Pentecostés
Jhes trouxeram.

3. Conclusáo

Ve-se agora em que sentido o método* da Historia das


Formas é útil para a sadia compreensáo dos Evangelhos; pode
ser aplicado ao estudo, feitas as seguintes reservas:
1) nao se recuse o sobrenatural (milagres e profecias)
na vida de Cristo; a fé em Cristo-Deus admite manifestagóes
da Divindade do Senhor;

2) reconheca-se que os Apostólos e primeiros discípulos


do Mestre explicitaram e adaptaram á catequese o conteúdo
da mensagem de Jesús, sem a deturpar; guiava-os o Espirito
de Deas, que assiste permanentemente á S. Igreja;
3) nao cedam arbitrariamente os leitores do Evangelho
á suspeita de que tal ou tal texto nao pode corresponder inte
gralmente á realidade dos fatos; é preciso ter criterio e ponde-
racáo para utilizar proveitosamente a FG; sem estudos serios,
ninguém se atribuirá o direito de refazer a «historia das for
mas». Observa muito bem D. Jean-Julien Weber, bispo de
Estrasburgo (Franca), que «nao sao os exegetas de valor que
constituem, de modo geral, um perigo para a fé do clero ou
dos fiéis, mas os vulgarizadores que espalham sem discerni-
mento, muitas vézes deformando ou tornando simplicistas,
certos resultados que devem ser considerados num contexto
global».

A propósito, podem ser consultados :

E. Bettencourt, Para entender os Evangelhos, Rio de Janeiro 1960.


Revista de Cultura Bíblica (Introducto aos Evangelios) 1964, m» 1.

— 290 —
«POPULORUM PROGRESSIO»

III. CIENCIAS SOCIAIS

MARCOS (Rio de Janeiro) :

3) «Quais os pontos salientes da recenté encíclica Topu-


lonun Progressio' do Papa Paulo VI ?
Equivale a 'marxismo requintado' ? Intrusáo da Igreja em
política e economía, com detrimento dos seus deveres reli
giosos ?»

A encíclica que pelas suas palavras iniciáis é dita «Popu-


lorum Progressio» («O desenvolvimento dos povos»), data de
26 de margo de 1967 (1). — Os documentos sociológicos dos
Papas anteriores versavam geralmente. sobre a desigualdade
vigente entre as classes dentro de cada povo. «Populorum
Progressio» dilata o seu horizonte; considera o homem e os
povos como entidades destinadas a viver em comunháo fraterna,
a crescer, a se realizar.

«A questüo social adquiriu dimcnsdes mundiais... Os povos da


lome interpelam hoje de rnancira dramática os povos da opulencia»
(PP 3).

No inicio (n* 13) do seu documento, o S. Padre expóe-


o motivo por que trata de tais questoes: nao é o interésse
político nem a pretensáo de se imiscuir no regime interno dos
povos. A Igreja nao esquece que a sua missáo é levar os homens
a Cristo e a Deus Pai, indicando-lhes os caminhos da salvacáo
eterna. Contudo Ela sabe que tais caminhos percorrem éste
mundo; sabe também que os homens constam de alma e corpo,
de tal modo que a alma se deve elevar a Deus mediante o ins
trumento do corpo.

As relac&es dos homens com os bens materiais costumam reper


cutir profundamente na sua vida espiritual: de um lado, a miseria
pode embrutecer o homem e néle excitar paixSes, constituindo forte
tentacao para que viole a Lei de Deus; doutro lado, a opulencia embota
o coragáo, dificultando-lhe a compreensáo dos valores invisíveis e
eternos.

Por isto é que á Igreja interessam as normas que regem


a vida social e económica; elas se relacionam com a consciénciá
moral e com o comportamento religioso dos homens. Pronun-

(1) Neste artigo, a encíclica será citada sob a sigla PP ; os


números anexos carresponderáo aos incisos do texto oficial.

— 291 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 3

ciando-se sobre tais questóes, os Papas tém consciéncia de


nao estar negligenciando a tarefa religiosa que lhes foi confiada;
julgam, ao contrario, estar cumprindo um dever: o dever de
tornar o Evangelho presente a todas as situagóes do homem.

«Populorum Progressio» propóe a sua mensagem em duas


partes:

I. O desenvolvimento integral do homem.


n. O desenvolvimento solidario do género humano.
Percorramos sumariamente as linhas marcantes do docu
mento.

1. «Por um desenvolvimento integral do homem»

Eis os principáis tópicos desta secgáo :

1) Crescer. As palavras-chaves da encíclica sao preci


samente «crescer, desenvolver-se». Paulo VI é solícito em mos
trar o que estes vocábulos significan! exatamente para o cristáo.
A Igreja entende o desenvolvimento nao apenas no sentido
económico ou técnico. Ela nao pede aos homens que abandonem
simplesmente urna posicáo social ou económica para assumir
outra (ainda que esta tenha sinal oposto á anterior). Com
isto, pouco estaría feito em favor do homem como tal. O que
o Cristianismo entende por «desenvolvimento» é o desabrochar
conjugado e harmonioso de todas as virtualidades do ser hu
mano : materiais e, também, espirituais. Sem o progresso da
inteligencia, do amor e das suas relagóes com Deus, o homem
nao se engrandecería como homem, mas correría o risco de se
tomar servo da materia, da economia e da técnica. O homem
só será ator operante da historia e artífice da sua sorte, se,
além de construir o mundo material, cultivar os valores espiri
tuais, como a instrugáo, o amor ao próximo, a consciéncia
moral, o senso religioso e a fidelidade a Crista (1).

(1) Apresentando os valores espirituais nessa ordem, nao que


remos dizer que a Religiáo e o Cristianismo devam ser os últimos
íatóres de promocao do homem; ao contrario, estáo na base de qual-
quer promogáo. Nao se pode afirmar que urna promocao «leiga», sem
religiáo, satisfaga as exigencias da natureza humana; multo menos
é licito asseverar que quem promove (dando instrugáo e trabalho ao
próximo) sem íalar de Deus e de Cristo, já cumpre seu dever de
cristáo ou já «evangeliza». O cristáo nao preenche seu papel social
se nao procura levar os homens ao conhecimento de Cristo e da sua
Santa Igreja.

— 292 —
«POPULORUM PROGRESSIO»

Eis as palavras textuais da encíclica:

«É necessáño promover um humanismo total. Que vem ele a ser


senáo o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os
homens? Poderia aparentemente triunfar um humanismo limitado,
fechado aos valores do espirito e a Deus, fonte do verdadeiro huma
nismo. O homem pode organizar a térra sem Deus, mas sem Deus
só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é huma
nismo desumano. Nüo há, portanto, verdadeiro humanismo, senáo
o aberto ao Absoluto, reconhecendo urna vocacáo que exprime a
idéia exata do que é a vida humana. O homem, longe de ser a norma
última dos valores, só se pode realizar a si mesmo, ultrapassando-se.
Segundo a frase tao exata de Pascal: 'O homem ultrapassa infinita
mente o homem'» (PP 42).

Em outro texto diz S. Santidade :

«Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez


maior de técnicos, exige um número cada vez maior de sabios de
reflexáo profunda, em busca de um humanismo novo, que permita
ao homem moderno o encontró de si mesmo, assumindo os valores
superiores do amor, da' amizade, da oragao e da contemplábaos
(PP 20).

O desenvolvimento da personalidade humana, entendido


no sentido ácima, nao é facultativo, mas é dever que se impóe
a todo homem, concluí o Pontífice (PP 16).

O humanismo pleno a que aspira o Cristianismo, implicará


também numa mudanga do mundo, derrabando certas barreiras
desumanas que separam os homens :

«Nao se trata apenas de vencer a fome, nem tampouco de afastar


a pobreza. O combate contra a miseria, embora urgente e necessário,
nao é suficiente. Tratarse de construir um mundo em que todos os
homens, sem excecáo de raga, religiáo ou nacionalidade, possam viver
urna vida plenamente humana, livres de servidóes que lhes vém dos
homens e de urna natureza mal domada; um mundo em que a liber-
dade nao seja urna palavra vá e em que o pobre Lázaro possa sen
tar-so a mesa do rico» (PP 47).

2) Propriedade particular. A propriedade particular sem-


pre foi defendida pela Igreja como decorrente da lei natural;
todo homem é feito para dar gloria a Deus e nobilitar-se
mediante o uso inteligente e livre dos bens déste mundo. Ao
afirmar isto, porém, os Papas tém lembrado que todo proprie-
tário possui déveres sociais; é preciso que, com seus bens, ele
sirva nao sómente a si, mas também, na medida do possível,
a seus semelhantes; cf. «P. R.» 49/1962, qu. 4.

A encíclica PP acentuou um particular dessa doutrinra:


pode acontecer que a propriedade particular se torne extraor
dinariamente vultosa ou venha a ser explorada de maneira

— 293 —
.«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 9171967, qu. 3

insuficiente ou nula, de modo a prejudicar os interésses da


coletividade. Em tais casos, é lícito ao poder civil recorrer
á expropriagáo, a fim de estabelecer melhor distribuigáo de
bens.
«A propriedade particular nao constituí una direito incon
dicional e absoluto» (n« 23). O direito ao uso dos bens da térra
foi outorgado por Deus a todos os homens e nao sómente a
alguns em beneficio de alguns. Por conseguinte, aqueles que
possuem mais do que o necessário, enquanto outros nao tém
o essencial la vida, estáo subtraindo ao seu próximo bens que
lhe competiriam.

«Ninguém está autorizado a reservar para seu uso exclusivo o


oue ultrapassa suas necessidades, enquanto outros carecem do ne-
cessário» <n* 23).
Em outros termos : possuir sempre mais nao é íinalidade nem
para o homem nem para os povos. Todo creseimento material é
ambivalente. Faz-se oportuno e necessário, na medida em que permite
ao homem tornar-se mais homem; é condenável, porém, desde que
amesquinhe o espirito do homem, impedindo-o de lancar o olhar para
além das coisas visiveis : o coracáo humano, em tal caso, se endu
rece; em vez de considerar o próximo com benevolencia e amizade,
concebe hostilidadc. O creseimento material assim entendido é dimi-
nuigao do homem, de tal sorte que, «tanto para os individuos como
para as nacóes, a avareza é a forma mais evidente do subdesenvol-
vimento moral» (n' 19). «Quem quer ter mais e mais, vem a ser
menos (homem)» (PP 49).

Neste conjunto de idéias, a Igreja mais urna vez rejeita


o capitalismo liberal, «que considera o lucro como fator essen
cial do progresso económico, a concurrencia como lei da eco-
nomia, a propriedade particular dos meios de produgáo como
direito absoluto, ao qual nao se impóem nem limites nem obri-
gagóes sociais correspondentes» (PP 26).

3) Urgencia e violencia. O sofrimento de tantas criaturas


acafcrunhadas pela miseria e a injustiga brada aos céos e pede
medidas urgentes. Á vista disto, nao poucos homens preconizam
o recurso á violencia a fim de extirpar as injustigas sociais.
«Todavía, diz Paulo VI, sabe-se que a insürreigáo revolucio
naria ... gera novas injustigas, introduz novos desequilibrios,
provoca novas ruinas. Nunca se poderá combater um mal real
á custa de urna desgraca maior» (PP 31).
Apenas numa hipótese (extrema) a Moral crista reconhe-
ceria a legitimidade da revolugáo armada : seria o caso
de urna populacáo sujeita a «tiranía evidente e prolongada
que atentasse gravemente contra os direitos fundamentáis da
pessoa humana e prejudicasse de modo perigoso o bem comum
do país» (PP 31).

— 294 —.
«POPULORUM PROGRESSIO»

Ao alirmar tal proposito, Paulo VI nada inova dentro da tradi


cional doutrina da Igreja. Tenham-se em. vista os dizeres de S. Agos-
tinho: «Iusta bella definiri solent, quae ulciscantur iniurias. — Cos-
tumam-se definir conio guerras justas as que se insurgem contra
injurias». Nótese também a doutrina de S. Tomás na (¡Suma Teológica»
II/II 40,1; a de Francisco de Victoria (t 1546) ¿m «Praelectiones
theologicae» lect. 6. — Os moralistas asseveram a liceidade de certas
intervencóes armadas, desde que se verifiquem ao menos as seguintes
condic5es :

a) haja motivos justos para pegar em armas : reivindieagáo de


direitos próprios, defesa da propria existencia de determinado povo ;
b) sejam motivos graves e imperiosos, de tal modo que so me
diante a guerra haja esperanca de restaurar a justica. Antes de se
empreender qualquer movimento armado, devem-se tentar todas as
solucoes pacificas. Os cristáos háo de ter consciéncia de que a guerra
é um mal (ocasiona ingentes ruinas materiais e moráis), mal, por-
tanto, que só em última instancia e com fundamentada previsáo de
maiores bens pode ser tolerado ;

c) haja íntencüo reta, ou seja, o puro intuito de promover a


justiga e evitar a inlqüidade. Cupidez desregrada, ánimo vingativo,
sede de poder, jamáis poderao justificar urna guerra civil (ou inter
nacional). Escrevia S. Agostinho a um denseus correspondentes, quando
os bárbaros ameacavam o Imperio Romano:
«Empreende-se a guerra para adquirir a paz. Por conseguinte, ao
fazer a guerra, sé pacifico (fator de paz), para que, pela Vitoria, leves
ao bem da paz aqueles que tiveres combatido» (epist. 149, a Bonifacio);
NSo se pode dizer que Paulo VI haja mudado estes principios de
moral crista, ou que seja, mais do que os Pontífices seus antecessores,
favorável a revolucóes armadas no interior das nacdes.

O Papa chega a lembrar, segundo a orientacáo mesma


de Joáo XXHI, que, embora sejam ingentes e urgentes as
reformas económicas e sociais, elas poderiam ser frustradas
ou mesmo contraproducentes, caso se fizessem precipitada
mente. As mudancas bruscas e nao preparadas nao encontra-
riam os homens adequados para as receber, ou seja, o terreno
oportuno para que Iancassem raízes e florescessem; romperiam
certas condicóes de equilibrio ainda indispensáveis :

«É preciso que a obra a realizar progrida harmoniosamente, sob


pena de destruir equilibrios indispensáveis. Urna reforma agraria im
provisada pode falhar o seu objetivo. Urna industrializacpo precipitada
pode abalar estruturas ainda necessárias, criar miserias sociais, que
seriam um retrocesso humano» (PP 29).

4) Plaiiejamento da familia. A familia desempenha papel


primordial na tarefa de desenvolvimento, pois fornece o «habi
tat» natural de todo homem. A encíclica PP (n° 36s), após lem
brar as notas características (monogamia e indissolubilidade)
dessa pequeña sociedade, refere-se lá explosáo demográfica de

— 295 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 3

nossos días; o aumento da populacáo mundial é mais rápido do


que o dos recursos disponíveis. É o que suscita em muitos ho-
mens o desejo de coibir a natalidade mediante medidas radicáis.
Embora nao aceite tais tentativas de solugáo, a Igreja preconiza
algo de novo em relagáo a seus anteriores pronunciamentos :
os poderes civis, no ámbito de sua competencia, poderáo difun
dir informagóes que esclaregam o público a respeito da explosáo
demográfica; poderáo também tomar providencias oportunas
nesse setor, contanto que respeitem as leis moráis e a justa
liberdade dos casáis. Aos governos, portanto, cabe informar
os cidadáos no tocante aos problemas de fome, educacjio, habi-
tagáo, acarretados pelo crescimento da populacáo, mas nao
lhes compete ensinar (muito menos... impor) aos süditos
qualquer tática anticoncepcionista que contrarié a consciéncia
moral ou as leis da natureza.

Até hoje só se conhece um método de limitagáo da prole certa-


mente compativel com as leis da natureza: é o da continencia perió
dica (a qual servem a tabela de Ogino-Knaus e a medicSo da tempe
ratura segundo Doyle).

Os cónjuges sao, portanto, os responsáveis no tocante ao


plañejamento da familia; o Estado nao tem o direito de se
ingerir no assunto. Todavía, aos cónjuges nao compete formar
a sua consciéncia segundo o seu arbitrio subjetivo: háo de
levar em conta as suas responsabilidades diante dos homens
e — mais ainda — os ditames «da lei de Deus auténticamente
interpretada», ou seja, objetivamente explicitada pela Igreja.

Ao propor esta última cláusula, Paulo VI nada acrescentou ás


determinacoes anteriores dos Pontiíices; ao contrario, cita a Cons-
tituicáo «Gaudium et Spes» (n» 50 § 2; n» 87 §§ 2 e 3), que lembrou
as determlnacSes dadas por Pió XII e Paulo VT.

Ainda nao chegou, portanto, a hora do aguardado pronunciamento


de Sua Santidade a respeito das pilulas anovulatórias; enquanto a
Igreja nSo tiver certeza (íornecida pela ciencia) de que tais pilulas
nao sao contrarias á natureza (ou nao ofenden» o organismo femi-
nino), nao Lhe cabera declará-las lícitas; a Igreja nao pretende criar
leis sdbre a limitacáo da natalidade, mas apenas auscultar a leí de
Deus, a qual se manifesta através do bom funcionamento da natureza
ou do corpo humano.

5) Alfabetizagao. Qualquer plano de desenvolvimento do


homem há de ter como primeira meta a educacáo de base;
é esta que torna o individuo apto a participar da vida da socie-
dade e dos seus grandes empreendimentos. O documento ponti
ficio frisa a existencia da «fome de instrugáo, que nao é menos

— 296 —
«POPULORUM PROGRESSIO»

deprimente do que a fome de alimentos; um analfabeto é um


espirito subalimentado» (PP 35). Ao contrario, o homem que
aprende a Jer e escrever, chegando mesmo a adquirir formacáo
profissional, descobre um vasto mundo de valores: em primeiro
lugar, «encontra-se a si mesmo» (expressáo muito freqüente
na encíclica; cf. n« 15, 20, 84), depende menos de outrem e
subsiste mais em si; além do que, ganha consciéncia de que
pode colaborar com os outros e progredir juntamente com a
sociedade. — A própria sociedade, portante, há de ter interésse
em alfabetizar e instruir, pois assim suscitará em seu seio
novos portadores de desenvolvimento.

Tais sSo os pontos altos da primeira parte da encíclica «Populo-


rum Progressio». Acham-se compendiados na fórmula «Humanismo
integral», que quer dizer: promova-se o ser humano, tanto no setor
material como no espiritual; os que carecem, seráo beneficiados
recebendo; os que possuem o supéríluo, seráo engrandecidos dando....
Assim fazendo, todos seráo mais «homens» e estaráo no reto caminho
para Deus.

Passemos agora á segunda parte da encíclica:

2. «Por um desenvolvimento solidario do género humano»

Assim como, na visito crista, o desenvolvimento da pessoa humana


tem sua nota própria (é integral), assim o desenvolvimento dos povos
é solidario; há de ser realizado mediante a colaboracao de todas
as nagoes.

«O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de frater-


nidade entre os homens e entre os povos do que na esterilizacáo ou
no monopolio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (PP 66).
Tres sao os aspectos de colaboracao internacional indicados pelo
documento pontificio:
1) assisténcia das nagSes ricas aos povos subdesenvolvidos;
2) justos contratos comerciáis, isentos de exploracito e ganan
cia, entre aquelas e estes ;
3) caridade para com todos os homens, principalmente os estran-
geiros de diversas condigoes que habitam em cada nagao.
Mais precisamente, eis o conteúdo de cada um désses tópicos :

1) Assisténcia aos poyos. Urna regra se impóe neste


setor: «O supérfluo dos países ricos deve servir aos países
pobres» (PP 49). Os ricos, observa S. Santidade, seráo os
primeiros beneficiados por tal norma; com efeito, quem dá,
se nobilita, imitando de mais perto o próprio Deus (cf. At 20,
35). Quem, ao contrario, «se obstina na avareza suscita o
juízo de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüéncias impre-
visíveis» (PP 49).

— 297 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 3

Convém notar que o texto oficial da encíclica, nesta passagem,


fala de «jufzo, advertencia» (animadversio) de Deus, e nao de «ira de
Deus» sobre os ricos. Esta última expressáo é um antropomorfismo
impropriamente utilizado por um jornal matutino do Rio de Janeiro
em mánchete. — N3o se íale de «ira de Deus*, pois isto sugere a'
idéia de um Senhor sujeito a paixóes e instintos de vinganca; éste
conceito, freqüente entre o povo, faz empalidecer a genuina nocáo
de Deus, que é Pai e Amor. A justica em Deus se identifica com o
amor, e os seus juizos sao produtos désse amor.

Por conseguinte, haja programas sistemáticos de ámbito


internacional para distribuir entre os povos os bens da térra;
auxilios ocasionáis, dependentes apenas de boa vontade, nao
bastam para atender aos necessitados (PP 50).

Paulo VI preconiza outrossim que os povos dialoguetn entre si,


travando acordos, a fim de que os auxilios e empréstlmos derivados
dos mais ricos nao redundem em neocolonialismo para as nacSes
assim «beneficiadas» (PP 55). Esta advertencia já fóra formulada
pelo Papa Joáo XXIII em sua enciclica «Mater et Magistra» (n° 171).

Mais ainda : é para desejar a criagáo de um fundo mundial


destinado a auxiliar os povos mais deserdados. Tal fundo seria
constituido pelas elevadas quantias (um total de cérea de 72
trilhóes de liras italianas) que anualmente as nagóes dedicam
á corrida armamentista; essa enorme riqueza, hoje aplicada
á fabricagáo de armas, á disseminagáo do temor, do odio e
da ruina, poderia servir a enxugar lágrimas e suscitar novo
ánimo em milhóes de homens.

Para tanto, seria necessário, como se compreende, que os homens


se sentissem mais irmáos e solidarios entre si, baseando a sua paz
nao sobre a atneaca de guerra, mas sobre a benevolencia mutua. — O
S. Padre chega a tachar de «escándalo intolerável» o esbanjamento de
dinheiro, as despesas feitas por ostentacáo nacional ou pessoal, numa
época em que tantas familias se desesperam.

«(Ésse escándalo), Nos temos o dever de o denunciar. Queiram


os responsáveis escutar-Nos, antes que seja.tarde demaisj. (PP 53).

2) Eqüidade ñas relagóes comerciáis. O mercado baseado


sobre a livre concorréncia tem suas vantagens: estimula os
produtores, obriga a melhorar o .nivel e a qualidade da pro-
ducáo. Por isto a consciéncia crista nao o repudia. Todavía a
enciclica PP observa que o mercado Hvre deve ser mantido
dentro de limites que o tornem sempre justo e humano. Consi
derando em particular as relagóes entre os povos, lembra que
os pafses mais desenvolvidos poderiam prevalecer-se das suas
condigóes avantajadas para impor aos mais pobres pregos e
contratos comerciáis extorsivos, que, em vez de permitir o

— 298 —
«POPULORUM PROGRESSIO»

desenvolvimento de tais povos, os reduziriam a situagóes ainda


mais desumanas. É contra tal exploragáo que se levanta a voz
da consciéncia crista expressa em PP 57 e 61.
É de notar, alias, que a eqüidade e a colaboragáo entre os
povos nunca se poderáo obter se nao fórem superados dois
obstáculos de grande vulto : o nacionalismo e o racismo.

O amor á patria é legitimo: bem se compreende que um povo


seja cioso de cultivar o seu patrimonio territorial e cultural assim
como a sua unidade étnica. Além disto, sabe-se que todo homem está
particularmente vinculado á sociedade e á regiáo onde nasceu e das
quais recebeu sua primeira formacao; é justo, pois, que, ame tal ter
ritorio e tal sociedade com empenho especial. Costuma-se chamar tal
sentimento o «patriotismo»; a consciéncia crista nao se lhe op6e.
Pode acontecer, porém, que o amor á patria se torne exclusivista, le
vando a esquecer ou menosprezar os demais membros da familia
humana, que é universal; torna-se ent&o «nacionalismo», o qual, pelo
¿ato mesmo de estreitar os horizontes, só pode ser nocivo_ tanto aos
individuos como ás coletividades; ergue barreiras entre irmaos, so
lapando qualquer tentativa de colaboracáo duradoura entre éles
(PP 62).

Algo de análogo se deve dizer no tocante ao amor unilateral á


própria rasa ou estirpe. A Igreja repudia nao sómente as formas In-
ternacionais de racismo, entre as quais sobressai o antisemitismo,
notável pelo seu caráter multissecular e veemente; o Concilio do Va
ticano II o reprovou solenemente (cf. Declaracao «Nostra Aetate»).
A enciclica PP lembra outrossim que, no interior de um mesmo país,
pode haver íacc&es que facam de sua llnhagem étnica um apanágio
contrario ao espirito de fraternidade. Sao vestigios do menosprézo de
colonos para com aborígenes, menosprézo que, mesmo depois de
extinto o regime colonial, se protrai sob a forma de segregado entre
filhos da mesma nacáo. Em conseqüéncia, individuos e familias sSo
submetidos a tratamentos de excecáo, tratamentos motivados exclu
sivamente por preconceitos de sangue e cor. Compreendese quanto
estas atitudes sao opostas ao espirito cristáo. Em Cristo Jesús as
diferenciacSes meramente humanas sao superadas, de sorte que todos
os homens se devem sentir filhos de Deus, solidarios na construcáo
da Cidade de Deus em meio á cidade dos homens.

3) Caridade universal. A caridade preconizada pela encí


clica é principalmente a que se traduz pelo acolhimento e pela
hospitalidade.

Os homens, hoje em dia mais do que nunca, precisam uns


dos outros. Por isto, deixam sua térra natal em demanda de
regióes estrangeiras, o que nao pode deixar de suscitar situa-
Cóes para as quais a caridade tem especial consideragáo:

a) Uns emigram na qualidade de jovens estudantes que váo pro-


cunar em nagóes desenvolvidas a ciencia e a cultura que os habilitem
a melhor servir á patria. Numerosos sao aqueles que regressam á
casa, manidos de notável competencia, mas destituidos do seu pátri:vi;í

— 299 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 3

mónio espiritual, ou seja, do senso de Deus e dos valores transcen


deríais recebido dos genitores. — Haja, pois, quem os acolha carido-
sámente em térra estrangeira, compreendendo sua situagáo de jovens
sujeitos a influencias deletérias e proporcionando-lhes como que um
novo lar na patria que os hospeda. É as familias que de modo espe
cial se dirige éste apelo.

b) Outros emigram como operarios das fábricas ou dos campos,


esperando receber em térra estrangeira melhor salario, que íhes
possibilite sustentar a esposa, os filhos e os familiares que éles del-
xaram na patria. Tais homens sofrem as angustias do corpo e da
alma inerentes a sua condicáo de emigrantes afastados da familia.
— É, pois, para desejar que encontrem acolhida benévola por parte
dos filhos da nagáo que os recebe.

c) Urna terceira categoría de viajantes é a daqueles que váo


piara o estrangeiro nao a fim de receber, mas a íim de dar...; sao
técnicos, industriáis, comerciantes, chefes ou representantes üe gran
des empresas, os quais se destinam a auxiliar a industrializagáo de
povos pobres. A sua condicáo de superloridade em térra estrangeira
nao os deve tornar menos justos nem menos humanos; longe de
humilhar os habitantes da regiáo subdesenvolvida, empenhem-se por
valorizar o trabalho déstes e promové-los á condicáo de operarios
qualificados e quicá dirigentes autónomos.

3. Conclusao

Após propor todas essas sabias observagóes, o Papa Paulo


VI formula urna conclusao grandiosa e arrojada: para ori
entar e coordenar a colaboracáo de todos os povos, parece
impor-se a criacáo de urna autoridade mundial, baseada sobre
unía ordem jurídica umversalmente rcconhecida. Ésse supremo
órgáo regulador

teria o conhecimento exato e completo das regioes mais indigentes


assim como das mais dotadas de recursos; em conseqüéncia,' plañe-
jaría urna eficaz distribuido de bens materiais e auxilios técnicos as
nacoes necessitadas ;
teria também meios de supervisionar o desarmamento, desarma
mento que permitiría a liberacao de vultosos capitais para fins huma
nitarios e construtivos ;
encarregar-se-ia outrossim de conter certas ondas emigratorias...
Com efeito, muitos cidadáos de nacoes pobres deixam a patria para
viver em países mais ricos e prósperos. Ora tais cidadáos fazem falta
ás suas próprias'nacoes; pouco adianta levar a estas novos contin
gentes de dinheiro e técnica, se carecem do elemento humano capaz
de ftazer que o auxilio material seja devidamentc utilizado.

Ao preconizar a instituicáo de urna autoridade mundial,


Paulo VI observa que talvez alguns considerem tal idéia
utopista. Lembra, porém,

— 300 —
«POPULORUM PROGRESSIO»

«o dinamismo de um mundo que quer vivex mais fraternalmente


e que — apesar das suas ignorancias e dos seus erros, e até dos seus
pecados, das suas recaídas na barbarie e das longas divagacdes íora
do caminho da salvacáo — se vai aproximando lentamente, mesmo
sem dar por isso, do seu Criador» (PP 79).

Conforme PP, parece que a humanidade, cansada de sofrer, se


acha disposta a refletir e mais pronta a aceitar certas perspectivas
que, objetivamente falando, só podem redundar em proveito da comu-
nidade dos povos; a escola do sofrimento é apta a dissipar as ilusSes
da prepotencia e da auto-suficiéncia, fazendo que os homens final
mente reconhecam a voz da consciéncia, que é a voz do Senhor Deus.

A encíclica se fecha com um solene apelo dirigido a todos


os homens:

aos católicos: «Exortamos primeiramente todos os nossos filhos.


Nos países em vía de desenvolvimento, assim como em todos os
outros, os leigos devem assumir como tarefa própria a renovacáo da
ordem temporal» (PP 81),

aos nao católicos, aos Estadistas, educadores, publicista», pensa


dores... Todos enfim nao de concorrer para instaurar urna humani
dade na qual todos os homens tenham a possibilidade~ae se realizar
em plenitude (PP 81-86).

Nao se poderia silenciar o particular apelo feito aos jovens, má


xime aos jovens católicos, no sentido de se tornarem missionários da
fé e da promocáo integral dos seus semelhantes. Nos últimos tempos,
certos paises vém permitlndo que os mocos troquem o servigo militar
pelo «servico civil», servieo que se empenha em atender ás necessi-
dades físicas e moráis dos cidadaos deserdados. O Papa Paulo VI se
compraz em assinalar tal fato, e observa : «Como o coracáo de
Cristo, assim o coracáo do cristáo deve mover-se' á compaixáo para
com a miseria» (PP 74).

3. Conclusa»

Como se vé, a encíclica «Populorum Progressio» é muito


incisiva na denuncia dos desequilibrios materiais e moráis da
humanidade. Para as novas situares, ela propóe novas aplica-
góes do Evangelho, corroborando e explidtando os dizeres dos
documentos pontificios anteriores. Em vez de fugir da linha
tradicional da Igreja, ela se sitúa no amago desta, salientando-
-se por clareza, seriedade e, ao mesmo tempo, profundo senso
humanitario e notável equilibrio.

O tom ponderado da encíclica se .manifesta, por exemplo, nos


periodos em que Paulo VI, após denunciar os aspectos erróneos de
determinado comportamento, logo chama a atencáo para o que de
bom ai se acha :

— 301 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 4

n* 7 — a respeito do colonialismo ;
n* 12 — a respeito da obra dos missionários ;
n» 26 — a respeito do capitalismo ;
n* 27 — a respeito da mística do trabalho;
n* 33 — a respeito da coletivizacáo ;
n' 62 — a respeito do amor á patria.

Nao se pode, pois, confundir PP com os programas de


Índole socialista ou marxista, pois estes sao essencialmente
ateus, preconizando a felicidade do homem através da distri-
buigáo dos bens materiais. A producáo condicionaría, segundo
o comunismo, as super-estruturas (valores religiosos e moráis).
O marxismo nao recusa disseminar a divisáo e a luta entre os
homens a fim de obter a «redengáo do proletariado». Ao con
trario, Paulo VI coloca no inicio e no fim de seu programa
social a nocáo de Deus; julga que o homem só se realiza quando
se ultrapassa para se encontrar finalmente no Criador. É porque
conhece o valor da criatura resgatada pelo sangue de Cristo
que o Sumo Pontífice quis oferecer aos estadistas e pensadores
contemporáneos urna colaborado para a grande tarefa do de-
senvolvimento. O programa de Paulo VI é ditado pela visáo
que o próprio Deus tem a respeito do género humano e do seu
destino; é éste o ponto de vista mais ampio, mais profundo e
mais acertado.

Oxalá o ougam todos os membros da familia humana !

IV. DOGMÁTICA

LEONOR (Rio de Janeiro) :

4) «Que pensam as próprias mulheres a respeito das


possibílidades de receberem a ordenará» sacerdotal?»

A revista francesa «SPIRTTUS» (29/1966) publicou recen-


temente as respostas a um inquérito realizado entre vinté
vultos femininos a respeito das fungóes que as mulheres pdde-
riam, para o futuro, exercer dentro da S. Igreja; foram consul
tadas pessoas de notável projecáo social e cultural, de mentali-
dade aberta, dotadas de conhedmento exato da situacáo da
mulher na sociedade civil e na Igreja de nossos dias.

— 302 —
ORDENACAO SACERDOTAL, DAS MULHERÉS : DEPOIMENTOS

Vüo abaixo transcritos os principáis désses depoimentos. O leitor


os encontrará classiíicados segundo o seu conteúdo de modo a
formar blocos homogéneos, encabezados por um titulo; dal a re-
peticáo, sob diversos títulos, dos nomes de certas pessoas interro
gadas. Note-se que as pessoas abordadas pelo inquérito nao p^eten-
deram (como elas mesmas afirmam) dar respostas própriamente teo
lógicas, mas falaram sobre o papel da mulher na Igreja de acordó
com a sua cultura geral e especializada, utilizando conclusSes de
filosofía, experiencias, viagens e principalmente sua fé crista multo
ardente (apenas urna das interlocutores, Tania Metzel, é protestante,
como se verá abaixo). Bom número dos testemunhos assim obtidos
se refere de maneira especial ás funcSes das mulheres em territorios
de missOes. O valor de tais depoimentos provém, em grande parte,
de que se derivam de pessoas plenamente devotadas a Cristo e á
Igreja, que falaram com aprofundado conhecimento de causa.
Éste artigo complementa o que foi publicado em «P. R.» 90/1967.
qu. 3 sobre a ordenacáo sacerdotal das mulheres.

Antes do mais, fazse mister apresentar

1. As pessoas interrogadas

Ei-las em ordem alfabética :


1) lUmidictc Milccntt da redacao de «Terre nntiére». Viveu sete
anos na Indonesia como professóra de francés do Govérno indonesio,
colaborando no apostolado dos leigos da Igreja Católica local. Visitou
boa parte do SE asiático. Trabalha atualmente no Servico de Desen-
volvimento Rural francés.
2) iCh. Th.t do grupo de Madeleine Delbrél, em Ivry (Franca).
3) Claude e Denlse, das Equipes de Ivry, grupo de leigos oriundo
em 1942, ao mesmo tempo que os primeiros núcleos da Missáo de
Paris e da Missáo de Franca (padres-operarios). Terti por finalidade
evangelizar o mundo operario. Nao é Instituto Secular.
4) Francoise van der Meersch (Irma María Edmunda), das «Au
xiliadoras do Purgatorio», Diretora da revista «íchanges», autora do
livro «Religieuse pourquoi ?» (Fayard). Foi consultora religiosa do
filme «Eis a serva do Senhor», produzido para a televlsSo e concer-
nente á vocacáo religiosa.
5) Francoise de Querdze, Diretora literaria e redatora de «Ma-
rie-France». Viveu muito tempo no Marrocos antes da guerra de 1939.
Em fevereiro de 1966 passou tres semanas na India; em conseqüéncia.
pode (com os leitores de «Marie-France») auxiliar as Irmas de Sao
José de Cluny a cavar varios pocos, que lhes permitiram intensificar
a cultura do arroz necessário á alimentacao das criancas abandonadas
que elas recolhem.
6) Gonevléve Gennari, doutora pela Universidade de Paris, ro
mancista («Journal d'une bourgeoise», «Les nostalgies»...), especia
lista em problemas femininos e ensaista. Publicou «Le dossier de la
íemme» (Pión) a respeito do feminismo moderno. Colabora com o
periódico «Marie-France». Trabalha no Ministerio da Juventude. Fez
numerosas viagens e um circuito do, mundo.

— 303 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 91/1967, qu. 4

7) Geneviéve Honoré, redatora do jornal «La Croix». Fez via-


gens pela África Setentrional (Algéria, Marrocos) e Ocidental (Came
rún, Guinéia, Costa de Maríim, Senegal), pela Jordania, a Siria, o
Líbano, Israel e o Egito.
8) Ghislaine Aubé, primeira Priora Geral das Irmas do Aposto
lado Rural, instituidas canónicamente em 1961. O Instituto trahalha
em seis dioceses da Franca, ao lado de Irmaos Missionários fundados
pelo Pe. Épagneul.
9) Jacqueline de Boismenu, depois de um ano de estudos nos
Estados Unidos e longos anos de preparacao, foi una das primeiras
conselheiras agrícolas da Franca. A partir de 1961, trabalhou no
Líbano, na Algéria, na África Central e no Congo; acha-se atualmente
no Senegal.
10) Madre Ambroise, Priora das Beneditinas de Vanves (missio-
nárias). Fez fundacoes em Madagascar, no Vietnam, em Dahomey.
11) Madre Marie de Salnt-Ina, das Franciscanas Missionárias
de Maria, Missionária na China, de 1940 a 1950; na Indonesia, de 1950
a 1959. Estudou nos E. U. A. de 1960 a 1966 para aprofundar o
pensamento chinés. Está preparando urna tese sobre a cultura chinesa
e destina-se á ilha de Formosa.
12) Marcelle Auciair, biógrafa de S. Teresa de Avila e tradutora
das obras da Santa, autora do «Livre du Bonheur». Fez viagem a
China.
13) Marie-Josephe Beccaria, ex-Secretária Geral da J.E.C.F. ;
trabalha com urna equipe dé sete mulheres (tres casadas, tres soltei-
ras e urna Religiosa). Rcalizou em 1966 um inquérito junto a cem
mulheres francesas de diversas condicSes sociais a respeito da mulher
na sociedade e na Igreja.
14) Marte-Louise Monnet, fundadora da A.C.I. (Acao Católica
Independente) francesa (1), Presidente do Movimento Internacional
de Apostolado nos meios sociais independentes (M. I. A. M. S. I.),
primeiiB observadora feminina do Concilio nomeada publicamente por
Paulo VI no inicio da terceira sessao. Fez recentemente numerosas
viagens: Madagascar, Algéria, Marrocos, Brasil.
14) Marie-Thérése Cheroutre, Procuradora Geral das «Guides
de Francés, Secretaria da Confederacáo Internacional Católica do
«Guidisme», membro titular de duas comissñes devotadas a juventude.
Viajou pela América do Norte e do Sul, pela Europa, pela África Se
tentrional e Ocidental, pelo Oriente Medio e o Japáo.
16) Ménie Gregolre, autora do livro «Le métier de la femme>.
Passou na China o mes de marco de 1966.
17) Suzanne Guillemln, Superiora Geral das Filhas da Caridade;
fol observadora no Concilio.
18) Tanla Metzel, protestante. Trabalhou na assisténcia religiosa
aos encarcerados durante quinze anos. Desde 18 de outub.ro de 1966,
é a terceira mulher pastora da Igreja Reformada da Franca.
Passemos agora á consideracáo dos depoimentos.

(1) «Acáo Católica Independente» é a que se faz entre, as pes-


soas que nao dependem do exercício de alguma profissáo para viver.

— 304 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES : DEPOEMENTOS

2. Que dizem grandes mulheres ?

Os números postos ao lado dos nomes de quem íala, referan


bo registro do parágrafo precedente. — Os testeraunhos encerram por
menores dos quais é perfeitamente licito discordar; a relacáo abaixo
é íeita objetivamente, a titulo de informacáo.

1) Ordenagáo sacerdotal ? — Nao.

a) Marie-Louise Monnet (14) : «Já que Deus criou o


homem e a mulher e quis confiar o mundo ao homem e á
mulher, Ele quis que haja duas maneiras de ver («deux
regards»). Creio que, se o mundo é hbje táo duro, isto se deve
a que os homens sao os únicos que o consideram e organizam.
É preciso que as mulheres tenham seu lugar, o lugar que Deus
quis. Mas Deus nao quis que a mulher tenha o lugar do homem.
Deus quis que ela tenha seu lugar, que ela tenha seu olhar,
que ela tenha sua contribuicáo. Se ela dá urna contribuicáo de
homem, se ela imita o homem, nada se mudará. O homem
possui um dom particular para ser chefe, que a mulher nao
pode contestar. Isto nao quer dizer que a mulher nao será
chefe; todavía ela será chefe com seus dons, que lhe sao pró-
prios. Se ela quiser ser chefe com os dons do homem, ela já
nao será mulher; em conseqüéncia, o mundo e a Igreja seráo
prejudicados».

b) Geneviéve Honoré (7) : «Sou oposta ia corrente atual


que deseja obter para as mulheres urna participacáo no sacer
docio, porque creio que isto contraria a natureza feminina.
Para mim, a humanidade inteira é oferenda sob o sinal mariano
da mulher e é oferecida sob o sinal masculino do padre, repre
sentante de Cristo e, mais remotamente, do 'pater familias'.
Sómente Cristo é sacerdote e oferenda. A oferenda é o sinal
da mulher; o ofertorio é o sinal do homem. A Virgem María
é nao sómente a Mulher, mas a Criatura na sua verdade total,
como o Criador a quis, oferecida como toda criatura deve ser
oferecida (sob o sinal da Virgem e após a Virgem). Isto,
porém, nao impediu que Cristo tenha fundado a sua Igreja com
varóes: a Virgem, a primeira criatura em seu coracáo (quem
duvidaria disso ?); nao estava presente quando na quinta-feirá
santa Ele disse : 'Fazei isto em memoria de mim', Ela também
nao estava presente quando Ele disse : 'O que ligardes..., o
que desligardes,...'».

— 305 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 4

c) Benedicto Milcent (1) : «Pessoalmente, cjeio táo profunda


mente que á mulher compete um lugar complementar na Igreja
(lugar aínda nao adquirido) que nao vejo própriamente por que a
mulher seria ordenada. Em última análisc, a emogáo e o interésse
suscitados pela questüo da ordenacáo das mulheres nao se derlvam,
em parte, de urna preocupado exclusiva de igualdadc, com tudo que
éste conceito comporta de arbitrario ?»

d) Frangoise de Quercize (5) : «Se o Santo Padre dis-


sesse de repente que poderáo ser ordenadas as mulheres, isto
nao me surpreenderia; mas também nao me surpreenderia saber
que tal idéia é rejeitada, pois julgo que a ordenacáo das mulhe
res nao é indispensável. As mulheres já possuem por si urna
fungáo muito grande, primordial. Se elas a cumprirem bem,
muito terá sido feito! Nao quero dizer que elas se devam
simplesmente calar, pois, afinal de cositas, a Virgem SS. tam
bém teve que falar í Ademáis a mulher já nao é sacerdotiza
pelo fato de dar ao mundo os que seráo padres e criar o ambi
ente próprio para que se desenvolva a sua vocacjio ?»

«Como dizia o Cardeal Ottaviani, mesmo que eu nao compreenda,


sigo de olhos fechados o Santo Padre. Mais ainda: é preciso levar
em conta o Evangelho e o Cristo. Cada um tem sua funcao; foi aos
Apostólos, a homens, que Ele deu o poder de O continuar ; a Virgem
SS. tem outro papel, e parcce-me que todas as mulheres devem pro
curar identificar-se com a Virgem SS.».

e) Jacqueline de Boismenu (9) : «Creio que Sao Paulo


nos respondeu com extrema justeza, diría mesmo:... com
humor profético. As mulheres nao sao iguais aos homens; nao
lhes compete desempenhar o mesmo papel que os homens.
Sao perfeitamente complementares. Nao sei se as mulheres
que já amaram um homem, nao tomaram consciéncia de que
de fato, apesar de tudo, o homem é o chefe da mulher. Mesmo
que urna mulher seja muito inteligente, mesmo que tenha todas
as qualidades possiveis, ela acha isso muito natural ou ela nao
é mulher. Ademáis, quem falasse de ordenacáo das múlheres,
renegaría um pouco, a meu ver, a Virgem SS., que recebeu
de Deus a mais belá prova de amor, mas que nem por isso se
tornoú sacerdotiza do Senhor. Nao creio que as mulheres te-
nham sido feitas para segurar ñas máos o corpo de Jesús Cristo
a nao ser que elas.abracem com o coracáo urna humanidade
que tem sede de ternura e necessidade de compreensáo. Se as
mulheres se póem em védete, e assumem responsabilidades que
se véem, a quanto me parece, elas nao escolhem o lugar que
Deus lhes preparou. A ordenacáo das mulheres me parecería
simplesmente um crime de lesa-feminidade. Gragas a Deus!
Ainda nao somos americanas !»

— 306 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES : DEPOIMENTOS

f) Marie-Joséphe Beccaria (13): «A ordenagáo das mulheres?


Isto levanta tantos problemas que aqueles que se voltam para essa
questáo, paxam diante das diíiculdades e nao véem o grande caminho
que seria necessário previamente percorrer. Com efeito, há proble
mas mais urgentes, que poderiam ser solucionados de pronto, com
poucas transformacSes, desde que houvesse o mesmo querer da
parte da hierarquia, dos sacerdotes e das mulheres». ,
g) Ghislaine Anbé (8) : «Sempre digo a mim mesma que a
questáo da ordenacao das mulheres poderia ser de novo estudada.
Mas há latos inegáveis: a situacao social dos tempos de Nosso Senhor
(com a sua mentalidade própria) e dois mil anos de Cristianismo.
Ésses fatos parecem-me algo de consistente».

2) Ordenacao sacerdotal? — Questáo prematura

a) Marie de Saint-Ina (11) : «Por certo, contra a orde-


nagáo das mulheres nao se encontra argumento nem no Evan-
gelho nem do ponto de vista teológico. Mas, antes que a mulher
possa realizar essa fungáo, creio que será necessária longa
preparagáo, nao sámente preparagio ¡mediata, mas prepara-
gáo social. Digamos que na hora atual a Igreja aceite a orde-
nagáo das mulheres; julgo que a sociedade e o mundo em seu
conjunto nao seriam capazes de a receber. O público ainda
nao admitiu a mulher — nao diría como idéntica ao homem,
pois éste é justamente o erro das nossas sociedades : querem
tornar a mulher idéntica ao homem —, mas o público ainda nao
considera a mulher como igual ao homem, de modo a poder real
mente admitir, respeitar e receber urna mulher sacerdotiza».

«Igual», no texto ácima, parece ter o sentido do adjetivo «com


plementar».

b) Marcelle Auclair (12): «A ordenacao das mulheres? Ainda


nao chegamos a tanto. É preciso primeiramente dar á mulher cons-
ciéncia da sua personalidade como tal».
c) Ghislaine Atibó (8) : «Conhego urna socióloga que
diz: 'Como quer que seja, nao se deveria pensar nisso (a
ordenagáo das mulheres) senáo daqui a duzentos anos...' Por
isto, tais discussóes me recordam as dos teólogos de outrora
(medievais) que disputavam sobre o sexo dos anjos ! Sao refle-
xóes interessantes talvez; contudo elas me parecem um pouco
aéreas enquanto nao realizamos as tarefas que pedem imedia-
tamente a nossa intervengáo. A vantagém de tais reflexóes
é talvez a de nos chamar a atengáo para urna serie de incum
bencias que desde já seriam possíveis para as mulheres... na
Igreja Católica».

d) Franc.oise van der Meersch (4): «Já me propuseram algumas


vézes essa questáo (da ordenacao das mulheres). Conlesso que nao

— 307 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 4

me detive sobre ela, porque me parece que no momento presente nao


está em absoluto madura. O ponto de vista teológico, nao o conheco.
Creio que nao há oposito Lrredutlvel; o que existe, é apenas um
costume tradicional na Igreja: esta nunca conferiu as Ordens ás
mulheres. Que decidirá a Igreja no futuro ? Nao o sei. Julgo que
Ela nao poderia resolver transformar sua praxe antes que a condicáo
feminina tcnha mudado de maneira milito mais universal e funda
mental do que em nossos dias».

3) Os precedentes protestantes

a) Ghislaine Aubé (8): «O protestantismo nao considera


o sacerdocio do mesmo modo que nos, embora a sua atitude
concernente a ordenagáo das mulheres nao me cause dificul-
dades. É preciso levemos em conta também a posigáo dos orto
doxos diante désse problema. Nos nos separaríamos déles se
tomássemos a outra direcáo».
Sabe-se que os orientáis cismáticos («ortodoxos») nao confcrem
o sacramento da Ordem ás mulheres; poderiam distanciar-se mais dos
católicos se estes mudassem a sua praxe neste particular.

b) Tanin Meteel (18): «Entro nos (protestantes), a prej;acáo


pode ser confiada a leigos, sem que para isto precisem de dclegacáo
pastoral. A delegagao pode-lhes ser dada em certas circunstancias —
par exemplo, quando se trata de substituir um pastor — para distri
buir a Santa Ceia ou celebrar um Batizado. Para nos, o ministerio
pastoral nao é nem um sacramento nem urna ordem. É urna funcáo
ou, antes, o reconhecimento, por parte da Igreja, de urna vocacáo.
Depois de se ter certificado da formacao e da capacidade do candi
dato, a Igreja reconhece que Deus dirigiu urna vocagáo á pessoa que
Ela destina para o ministerio. Se bem que a ordenagao nao seja para
nos um sacramento, ela é um ato importante na vida da Igreja.
Reunimo-nos para invocar o Espirito Santo, impor as maos a um
servo de Deus e orar conjuntamente...»

4) Servido ou «diaconia» na Ifírcja, sim !

a) Marcelle Anclair (12) : «Eu nao pediría, para as mu


lheres, a ordenagáo sacerdotal. Mas, se lhes fósse concedido
pregar de vez em quando, teria grande prazer. Urna mulher
que realmente tem fé e vive sua vida crista, encontraría, estou
convicta, a dizer muita coisa de real utilidade para o público
em todos os sétores, tanto no espiritual como no temporal —
nesse setor temporal, sim, que está muito mais ligado ao espi
ritual do que imaginam aqueles que vivem com a sua fé numa
gaveta, e a sua vida cotidiana cm outra gaveta».
b) Benedicto Milcent (1): «Que as mulheres recebam as or
dens sacras ? Nao áprofundei vitalmente a questáo. Apenas posso
dizer que, intuitivamente, isto nao é algo que me interesse muito ou

— 308 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES : DEPOIMENTOS

que me apaixone. Ao contrario, creio que o que devenios procurar é


um lugar de muito maior responsabilidade, muito maior definicao
para a mulher, lugar em que a mulher seja escutada, em que sua
contribuicáo seja reconhecida, admitida, estimulada. Aüida nao che-
gamos a tanto !»

c) Francoi.se van der Mcersch (4): «Será preciso permitir, em.


nossos países ocidentais, certa colaboracáo íeminlna em obras que
até o presente sao executadas apenas por homens celibatários. Quais
sao as Religiosas que penetram na organizacáo pastoral das dioceses?
QuaiS sao as Religiosas consultadas quando se trata do trabalho pas
tora], mesmo na paróquia? fisse trabalho é organizado pelo clero com
muita generosidade e habilidade em tres quartos dos casos, nao o
negó. E é imposto ás Religiosas; mais raramente é-lhes proposto, e
ainda mais raramente se lhes solicita que sobre ele reflitam junta
mente com o clero da paróquia».

d) Marie-Joséphe Beccaria (13) : «Nao pedimos em


absoluto que os problemas femininos sejam considerados como
urna entidade ou um mundo a parte. Isto é perigoso e, afinal,
muito prejudicial á mulher. Havia outrora um 'slogan* nos
Movimentos de Juventude que rezava: 'Nao há problema
juventudc, há apenas um aspecto juventiide de problemas ge-
rais'. Seriamos tentados a dizer análogamente: 'Nao há senáo
aspectos femininos de problemas gerais'».

e) Clandc e Demisc (3): «A ordenacáo sacerdotal das mulheres?


Preferimos perguntar: será que, na medida em que o laicato tomar
seu lugar na Igreja, ¡nao haverá urna serie de funcoes de administra-
?áo ou mesmo de govérno que poderiam ser táo bem exercidas por
íeigos, homens e mulheres, como por presbíteros ?»

5) Os grandes predicados da mulher

Após falar sobre as possíveis funcóes da mulher na Igreja, os


rippoimontos póom nm foco as qualidades que o sexo fominino apre-
sonta ao se.rvigo de Cristo e da Igreja.

a) Marie-Louise Monnet (14) : «Quando o homem. é


generoso, é formidávelmente generoso; mas a mulher possui
urna generosidade que, creio, é particularmente perseverante.
Ouvi o Santo Padre dizé-lo, quando recebeu os observadores
e as observadoras no fim da terceira sessáo. Falando princi
palmente das observadoras, disse algo que nao foi publicado,
mas que me impressionou : 'Quando a mulher se empenha,
ela vai até o fim'. Bem se vé isto nos lares. . . Isso beneficia
também as missóes. No Brasil, falei com muitas Religiosas
missionárias: vi algumas que lá estavam havia trinta ou qua-
renta anos, vivendo em regióes onde nao teriam podido agüentar

— 309 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 4

se nao possuíssem amor á vida corriqueira das pessoas com


quem viviam. E quarenta anos nao Ihes pareciam muito tempo!»

b) Claude e Denise (3): «Pensamos também em experiencias


realizadas por homens leigos, os quais tentaram a vida que levamos
e que, a meio-caminho, desistiram. files talvez precisem mais de cons
truir, de ver os resultados da sua construcáo, ao passo que ñas
missóes nao vemos nada disso. Talvez as mulheres aceitem mais
fácilmente essas condicñes».

c) Suzanne Guillemin (17) : «É a mulher quem dá á


Igreja a sua nota universal de 'atenta aos pobres, aos doentes,
aos desfavorecidos'. Em geral, é pela mulher missionaria, pela
Religiosa missionaria que se difunde ésse aspecto da Igreja,...
da Igreja posta a servico dos desprotegidos».

d) Fransoise de Quercize (5) : «Á mulher, instintiva


mente, sabe atender aos que sofrem; é certo que, num caso de
dor moral, a mulher geralmente sabe falar melhor, sabe, melhor
do que o homem, dizer a palavra oportuna».

e) Ch. Th. (2): «Madéleine Dclbrél, em seus últimos anos de


vida, atribula importancia cada vez maior á bondadc... A bondade
de um coracáo convertido a Cristo é como um pressentimento da
bondade de Cristo, do> amor de Cristo. Ora a bondade feminina é um
pouco diferente da bondade masculina; elas se completam mutua
mente».

f) Marie-Térése Cheroutre (15) : «Receio seriamente,


quando a mulher se quer identificar com o homem projetando-
-se ñas mesmas formas que ele. O homem tende a instaurar
ordem no mundo; a mulher tende a estabelecer relacóes e a
dar notas humanas ao mundo. É éste um aspecto essencial
da sua vocagáo profunda. Tal foi a Máe do Salvador : a media-
neira, a intermediaria. Em todas as circunstancias da sua vida,
quaisquer que sejam as suas fungóes, qualquer que seja a sua
situacáo social, é preciso que a mulher seja, no coracáo do
mundo, a testemunha de que o amor é fundamental».
g) Genevtóve Honoré (7)': «Eu multo desejaria que se subltnhe
quanto a maternidade, que caracteriza a mulher, nao é apenas urna
matemidade biológica, mas maternidade em relacáo a todos os seto-
res da vida. Segundo vejo, nada toma corpo a nao ser aquilo a quem
a mulher tenha dado corpo».

h) Marie-Louise Monnet (14): «A mulher possui urna


compreensáo íntima das pessoas, compreensáo de que o homem
nao é dotado no mesmo grau, seja ele o sacerdote mais emi
nente e mais missionário. Para penetrar profundamente na
psicología do povo com o qual vivemos, temos que. passar muito

— 310 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES : DEPOIMENTOS

tempo a considerar urna infinidade de minucias; ora isto é mais


difícil para um homem. A mulher se interessa pela vida mesma.
Conseqüentemente, pelo fato de estar em 'intercambio com
outras vidas, ela dá atengáo aos mais simples pormenores».

i) Benedicto Milcent (1): «Na sociedade moderna industrializada


— e urbana — a mulher, e mais particularmente aquele que em sua
fé se nutre do Evangelho, terá cada vez mais urna funcáo própria.
Ela pode ser o elemento pacificador, o elemento'que amaina os cho
ques e a agressividade, aquela que relaxa com amor ou gentileza urna
situagáo tesa, complexa. Apesar de ter os ñervos frágels e multas
vézes aíetados pelas condigóes pouco sadias da vida moderna, a muUier
possui, mais naturalmente do que o homem, o senso do relativo, o
gdsto da harmonía, da paz, da continuidade, e o espirito industrioso
que serve a ésse gdsto.

j) Madre Ambroise (10): «O homem, por seu próprio genio, é


criador. Por conseguinte, é, para ele, muito mais difícil nao propor
suas idéias, nao fazer algo. A mulher, ao contrario, suporta, alimenta,
tolera, gera... Por isto é, para nos (mulheres), quase mais fácil
respeitar os povos aos quais nos dirigimos ñas missoes. Há homens
missionários que o conseguem; isto é admirável, mas, para éles,
resulta muito menos natural».

k) Marta de Salnt-Ina (11): «Nao sámente a mulher tem opor


tunidades de poder desabrochar sua vocagao do mulher na vida mis-
sionária.... diria mesmo que a obra missionária nao se poderia rea
lizar sem a mulher. O elemento feminino é, por excelencia, o elemento
que recebe os outros, que tem consciéncia de estar presente para
servir aos outros, elemento que é aceitaejio, acolhimento dos outros
e que, justamente por essa capacidade de acolher, pode chegar a
penetrar os outros, a compreendé-los, eu diria... quase á semelhanga
da agua. Para que se faca trabalho missionário, é preciso, antes do
mais, que haja penetra cao; se nao, a acáo se torna superficial, de
certo modo estranha aqueles que desejamos atingir. Chegar em um
país de missao com um conjunto de idéias preconcebidas, de planos
pretragados, e dizer: 'Hei de fazer isto, hei de organizar aquilo', nao
parece ser o método adequado. £ preciso proceder devagar, com leveza,
para penetrar as personalidades no que elas tém de profundo. Laotsé
dizia: 'A bondade, quanto mais se eleva, tanto mais se parece com a
agua; ela penetra tudo sem luta... mesmo os lugares mais despre-
zados pelos homens...'. Estas palavras estáo prenhes de riqueza mis
sionária e de riqueza feminina...; ficar em silencio, trabalhar mais
pelo olhar do que pelo ativismo... fazer como a agua; nada impor
a nao ser o enriquecimento, a fecundacao do que já existe, eis (a
quanto me parece) a verdadeira fórmula... Evidentemente, nao se
trata de permanecer sempre na consideracao das coisas,... mas é
preciso nunca esquecer o primado da considenagáo, da 'penetragao'
semelhante á da agua !»

Gomo fecho, segue-se mais um depoimento de Marie-Louise


Monnet, que resume varias das idéias até aqui manifestadas,
deduzindo das mesmas urna conclusáo de grande valor:

— 311 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9V1967, qu. 5

«A primeira coisa a fazer é talvez educar a mulher, mesmo


a dos meios independen tes (1), para que ela se liberte, para que
assuma sua maioridade. Pois assumir a maioridade na Igreja é muito
belo, mas niuitas nao tém sequer idéia do que é 'ser mulher' e
'ocupar todo o lugar respectivo á mulher'. Quando urna mulher tem
a graqa, a possibilidade, a coragem de ocupar todo o seu lugar, entao
que ela o ocupe ! A Igreja só pede isto. Pessoalmente, nunca achei que
'tomar iniciativas na Igreja' era algo de incómodo e, enquanto me
lemhro, nao fui impedida de as tomar. Mas creio tambóm que c
preciso que cada qual saiba coordenar o que faz com o que os outros
fazem; creio também que é mister levar em conta que, na Igreja,
há urna autoridade que é primacial e á qual nos devemos submeter».

Estas sabias palavras sirvam de encerramento ás consi-


deragóes propostas ñas páginas anteriores !

V. ASCÉTICA E MÍSTICA

JOANA (Petrópolis) :

5) «Que dizer do artigo 'Novas Religiosas' publicado na


revista 'Sponsa Christi' de fevereiro-marco 1967"?»

O artigo chamou deveras a atencáo do público, ocasionando


comentarios divergentes. Abaixo proporemds algumas obser-
vacóes a respeito, analisando as principáis linhas do trabalho
apresentado.

1. Observares preliminares

O autor do artigo é um escritor leigo casado, Michael Novak,


e nao urna Religiosa. Conseqüentemente, escreve sobre a vida reli
giosa, nao por experiencia própria, mas na base de depoimentos
colhidos principalmente entre Religiosas norte-americanas de vida ativa
(ensinantes, enfermeiras, assistentes sociais). Mostra como muitas
dessas Irmas abandonaram as Congregacóes onde se entregaram a
Deus, a íim de constituir equipes alheias a regras e Institucionali-
zacáo; nesses pequeños grupos, as Irmas parecem ter-se sentido mais
livres para servir ao próximo desamparado; passaram a freqüen-

(1) Os «meios independentes» significan» as pessoas que nao


dependem do exercicio de alguma profissáo para viver.

— 312 —
«NOVAS RELIGIOSAS ?>

tar livremente as Universidades, diplomaram-se em ciencias prolanas


e estabeleceram um ritmo de vida semelhante ao dos professóres
e técnicos das grandes nagdes de nossos días.
Ora o leitor do referido artigo poderá logo de inicio indagar se
Novak apresenta um panorama completo do pensamento das Reli
giosas norte-americanas. Nao se poderiam colhér entre estas também
numerosos depoimeritos menos negativos, muito mais condizentes com
os reais valores que a vida religiosa sempre apresentou ? So haveria
críticas a íazcr ás Congregacoes íemininas dos tempos atuais ?
Parece que urna visáo completa apontaria também muitos ele
mentos positivos.

2. O espirito do artigo

O autor sugere que a vida religiosa, como foi vivida até


os últimos tempos, sufoca a personalidade das Irmas ou, ao
menos, torna-as improdutivas para a Igreja e a soeiedade civil;
as Regras religiosas entravariam a liberdade de acáo.
Inegávelmente, aos olhos da razáo natural, as formas
clássicas da vida regular consagrada a Deus podem parecer
destituidas de sentido. Se a vida religiosa fósse urna instituigáo
destinada a praticar acáo social, magisterio ou enfermagem,
está claro que ela poderia e deveria dispensar muitos dos ele
mentos que sempre a caracterizaran! : ambiente de silencio,
periodos de oracáo comunitaria e particular, mortificacáo vo
luntaria, obediencia, etc.
Todavía o significado da vida religiosa ha de ser definido
nao segundo criterios meramente humanos (quais seriam a
auto-realizacáo humanista e a produtividade social), mas segun
do a fé. A finalidade primaria de qualquer tipo de vida con
ventual, nao sómente contemplativa, mas também ativa, é levar
seus membros a perfeicáo crista, a qual implica em ardente
amor a Deus e (em conseqüéncia) ardente amor aos homens.
O trabalho na vida religiosa é executado como eíluxo da uniáo
com Deus e estimulo ulterior para esta. Mesmo as Congregacdes que
foram fundadas em vista de urna atividade específica (educagao,
enfermagem, assisténcia aos indigentes...) colocam sempre, segundo
a mente mesma dos Fundadores, a procura de Deus e da santidade
ácima de qualquer outro programa. É sómente esta colocacáo que
justifica o título de «vida religiosa»; sem tal hierarquia de valores,
temos Institutos de acáo humanitaria, nao, porém, de perfeigáo evan
gélica.

Está claro que a vida religiosa assim concebida só pode


ser abracada em espirito de fé ou espirito sobrenatural. Ora
a fé ensina que graca e natureza nem sempre concordam entre
si; a natureza humana foi contaminada pelo pecado; ela é

— 313 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 5

muitas vézes rebelde á Lei do Senhor, de tal sorte que, para


se obter a perfeigáo do amor a Deus e ao próximo, é preciso
por vézes dizer «Nao» a natureza; é necessário discipliná-la
e mortificá-la; cf. «P. R.» 30/1962, qu. 2, pág. 237.

Conscientes disto, os Fundadores religiosos sempre impu-


seram a seus discípulos práticas de renuncia (ora mais, ora
menos vultosas), que a mera razáo talvez nao compreenda
á primeira vista. A renuncia conserva seu pleno valor mesmo
no sáculo XX. Faz parte da «loucura da cruz» que já no
sáculo I Sao Paulo apregoava aos corintios; o Cristianismo
vivido coerentemente terá sempre algo de «loucura e escándalo»
(cf. 1 Cor 1, 22-24); em conseqüéncia, dizia ó. Apostólo : «Se,
entre vos, alguém se julga sabio aos olhos déste mundo, torne-
-se louco, a fim de ser sabio» (1 Cor 3,18). É dentro desta
perspectiva que há de ser considerada a vida religiosa; pro
curando ser vida crista coerente até o extremo, ela participa,
em grande parte, da loucura da cruz de Cristo. Nunca se poderá
reduzir a urna institirigáo de vida funcional, técnica, em que a
formacáo profissional, as relagóes sociais, as atividades huma
nitarias, o espirito de camaradagem déem o tom dominante,
com menosprézo da mortificacáo, sem a qual o espirito perma
nece na mediocridade e nao chega á perfeita uniáo com Deus.

O Concilio do Vaticano II, na sua Constituicáo «Lumen Gentium»


c 5 lembra que a vocacáo suprema de todos os cristaos é a santi-
dade. Ora a santidade será sempre pautada pela norma do Senhor :
«Se o grao de trigo que cal na terna, nao morrer, ficará so. Se,
porém morrer, produzirá muito fruto. Quem ama sua vida, perdea;
e quem odeia sua vida neste mundo, conserva-a para a vida eterna»
(Jo 12 24s). Se tais advertencias de Cristo sao válidas para todos os
seus discípulos mesmo no século XX, muito mais seráo válidas para
os que Ele chama á vida religiosa mediante a prática dos conselnos
evangélicos.

É desejo da S. Igreja que as Religiosas se atualizem, isto


é, fagam em nossos tempos o que o seu Fundador faria se
vivesse em nossos dias. A atualizacáo é indispensável; sem ela,
a vida religiosa poderia dar ao mundo um contra-testemunho,
quando, na verdade, os Religiosos' devem ser sinal que leve
todos os homens a compreender melhor o Cristo ou a Lhe
dedicar mais amor. É necessário, pois, que naja adaptagóes
em materia de organizacáo de vida, assimilacáo dos valores
novos, métodos de formagáo, simplificacáo do hábito, etc.;
contudo essas acomodagóes nunca deveráo derrogar ao espi
rito de fé, a visáo sobrenatural da realidade, assim como ao
exercício das virtudes clássicamente recomendadas pelos mes-

— 314 —
«NOVAS RELIGIOSAS ?í

tres da vida espiritual. Estes elementos nao mudam com os


diversos tipos de cultura dos séculos.

Lamenta-se, pois, que o artigo de Novak esteja imbuido


de espirito naturalista, que solapa os verdadeiros valores do
Cristianismo e o próprio ideal da vida religiosa.

Ademáis, pódese notar que o estilo do trabalho é discretamente


sarcástico. Tende a exagerar certas falhas de instituigóes religiosas,
o que redunda em caricatura; o autor descreve costumes da vida
religiosa, como se nao os quisesse julgar, mas realzando tópicos que
la.nc.am o ridiculo, sem mostrar tudo que há de valioso ao lado das
íalhas apontadas. Tal manelra.de escrever é injusta e nociva, princi
palmente quando se dirige a pessoas que nem sempre tém formacao
para discernir os artificios do escritor; a ridicularizacáo cala no ánimo
do leitor sem que éste tenha consciéncia de estar sendo inadequada-
mente informado.

3. Vida Religiosa e institucionalizacao

Alsga-se que o ideal da vida religiosa — ideal de caridade — foi


sendo desvirtuado pela «institucionalizacao», ou seja, pela imposicáo
de regras e estatutos. Em conseqüéncia, preconiza-se «um modo nao
institucional de* servir a Igreja» (art. cit., pág. 101).

Nao há dúvida, dentro da S. Igreja há lugar para servigos


nao institucionais, realizados segundo o fervor espontáneo de
almas generosas. Contam-se em nossos dias numerosos apos
tólos, masculinos e femininos, que se dedicam ao Reino de
Cristo, em sua patria ou no estrangeiro, segundo ó seu bom
senso religioso.
Também na Igreja dos tres primeiros séculos havia nao
poucos cristáos que procuravam consagrar-se a Deus e ao
próximo de acordó com o juízo de sua consciéncia; viviam ou
com seus familiares ou em pequeños grupos ou mesmo a sos,
realizando as práticas de vida interior e de amor ao próximo
que lhes parecessem mais oportunas. Aos poucos, porém, tor-
nou-se evidente que tal tipo de vida religiosa redundava em
detrimento dos próprios interessados e da comunidade crista:
com efeito, a arbitrariedade, o subjetivismo, o apego á vontade
própria foram caracterizando ésses ascetas ou monges; o seu
primitivo ideal e o bom conceito de que gozavam junto aos
irmáos tomavam-se cobertura para que satisfizessem aos seus
caprichos, engana.ndo-se a si próprios e aos homens. É o que
Sao Bento (t 543) refere, logo no inicio de sua Regra :
«O terceiro género de monges, e detestável, é o dos sarabaitas,
que, nao tendo sido, como o ouro na fornaUia, provados por nenhuma
regra, mestra pela experiencia, mas, amolecidos como numa natureza

— 315 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 5

de chumbo, conservando-se por suas obras fiéis ao século, sao conhe-


cidos por mentir a Deus pela tonsura. Sao aqueles que se encerram
dois ou tres ou mesmo sózinhos, sem pastor, nao nos apriscos do
Senhor, mas nos seus próprios; a satisfacáo dos desejos é para
éles lei, visto que tudo quanto julgam dever íazer ou preíerem
chamam de santo, e o que nao desejam reputam ilícito.
O quarto género de monges é o chamado dos giróvagos, que por
toda a sua vichi so hospedam ñas diferentes provincias, por tres ou
quatro dias ñas celas de outros monges, sempre vagando e nunca
estáveis, escravos das próprias vontades e das sedugóes da gula, e
em tudo piores que os sanaba!tas. Sobre o misérrimo modo de vida
de todos ésses é melhor calar que dizer algo» (Regra, c. 1).

Foi, portante, em vista das experiencias de ascetas e apos


tólos nao institucionais que a vida religiosa foi finalmente
sujeita a urna Regra; a obediencia a urna ordem de coisas
estipulada pela fé e a caridade dos mestres veio a ser o pre
servativo oportuno contra os desvíos do subjetivismo. A insti-
tucionalizagáo tornou-se destarte urna escola (e quem pode
dispensar a escola para aprender a difícil arte da perfeicáo
evangélica ?).
Compreende-se, porém, que a institucionalizacáo da vida
religiosa deva ser sempre atualizada («posta em dia»), a fim
de que nao acarrete certas observancias que em tempos passa-
dos foram úteis, mas nos tempos presentes poderiam constituir
entraves para o desabrochar do amor a Deus e ao próximo.

Toda lei religiosa tem por fim excitar a caridade; desde que
determinadas normas já nao preencham éste objetivo, faz-se mister
retocá-las. Escreve Sao Bento as seguintes palavras, que se podem
aplicar a todas as CongregacSes Religiosas :

«Esforce-se o Abade (Superior) por ser mais amado que temido...


Equilibre tudo de tal modo que. os fortes desejem mais e os fráeos
nao se afugentem» (Regra, c. 64).

4. Obediencia

As consideracóes anteriores levam a ver que nao pode


haver vida religiosa sem obediencia, isto é, sem a submissáo
da vontade própria á vontade de Deus expressa de maneira
objetiva. Se alguém dá tudo ao Senhor, mas se conserva preso
ao próprio En, nao entregou o que tinha de mais importante
e precioso. A obediencia, aos olhos da fé, é garantía contra
as ilusóes do amor próprio; é também a fiel imitacáo do Senhor
Jesús, que, por amor ao Pai, se fez obediente até a morte (cf.
Concilio do Vaticano II, Decr. «Perfectae Caritatis» 14).
Sem dúvida, os Superiores, na vida religiosa, sao pessoas
faliveis. Por isto, aos súditos compete informá-los e apresentar-

— 316 —
«NOVAS RELIGIOSAS ?>

-lhes sinceramente as suas dificuldades. Contudo a decisáo final


do diálogo cabera sempre ao Superior, o qual na fé é tido como
o intérprete da vonta,de de Deus. «Quem vos ouve, a Mim
ouve», disse Cristo (Le 10, 16). O Senhor tem, sim, seus cami-
nhos desconcertantes desde os tempos de Abraáo, a quem Ele
pediu seu filho Isaque; sabemos, porém, com Abraáo, que até
dos morios Deus pode suscitar os vivos (cf. Hebr 11,19).

A obediencia dos súditos religiosos nao há de ser mera


mente passiva; ao contrario, supóe que cada qual contribua
com os valores de sua personalidade para a execugáo da obra
programada. É obediencia consciente e responsável; a Religiosa
obedece porque livremente decretou outrora entregar-se a Deus
dentro do quadro da Regra e da comunidade.

Em conseqüéncia, compreende-se que ás Superiores na vida reli


giosa se apresentem sinais de deferencia, entre os quais o apelativo
de «Madre»! existe, sim, na Santa Igreja a maternidade espiritual;
ela se exerce todas as vézes que alguém gera ou fomenta sistemáti
camente ¡ñas. almas a vida de Cristo. Nao sómente as enancas, mas
também os adultos, atribuem com carinho o título de máe a quem
ele compete.

«Podemos encontrar unidade de vontades sem colocar niri-


guém num pedestal e aguardar ordens, pois outros americanos
tém essa atitude democrática habitualmente» (art. cit, pág.
109). Diante desta afirmagáo, convém lembrar que a Igreja
nao se identifica com urna democracia; Ela é, antes, a familia
de Deus, como diz muitas vézes a Liturgia. Paralelamente, as
comunidades religiosas, dentro da Igreja, se assemelham á
familia, na qual há sempre urna autoridade natural — a dos
genitores — autoridade que o próprio Deus estabelece; a auto
ridade da Superiora religiosa tem algo da autoridade da máe
de familia. Por isto, a atitude de urna Religiosa frente a sua
Superiora é necessáriamente diversa (animada por outro espi
rito) da atitude de um cidadáo frente ao Chefe de um govérno
democrático.

«A posicáo das Religiosas na Igreja é a de 'menores'» (art. cit.


pág. 97). Nao há dúvida, o tratamento atribuido á mulher na Igreja
inspirou-se durante muito tempo no'tratamento que a mulher recebia
na sociedade civil; nao era costume atribuir-selhe cargos de chefia
nem de ingerencia na vida pública. Hoje em dia, éste estatuto vai sendo
removido, de modo que até na Igreja sao confiadas a mulher (as
■Religiosas, em particular) tarefas que outrora só competiam aos
homens. A vida religiosa, de modo nenhum, pretende infantilizar ou
diminuir a personalidade da mulher. Requer-se heroísmo e magna-
nimidade para observar urna Regra religiosa; ora.sao justamente
estas as qualidades que caracterizam urna personalidade forte.

— 317 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 91/1967, qu. 5

5. Escolas católicas

A pág. 107, o articulista propóe a questáo : «Será que as escolas


católicas valem o esíórgo que exigem ? Nao' íariam melhor as Irmas
se ensinassem profissionalmente ñas escolas públicas ?»

Tais dúvidas tém sido propostas repetidamente nos últi


mos tempos.

Nao se lhes poderia dar melhor resposta do que a que o


Concilio do Vaticano II formula na Declaracáo «Gravissimum
Educationis» :

«A presenea da Igreja no terreno das escolas se manifesta com


especial evidencia através da escola católica. Nao menos que as demais
escolas, visa ela os íins culturáis e a formacáo humana dos jovens.
É, porém, característica sua criar urna atmosfera de comunidade
escolar animada pelo espirito evangélico da liberdade e da caridade,
auxiliar os adolescentes a que no desdobramento da personalidade
também cresgam segundo a nova criatura que se tornaram pelo
batismo. Visa ainda orientar toda a cultura humana para a mensagem
da salvacáo, a ponto de iluminar-se pela íé o conhecimento que os
alunos gradativamente adquirem do mundo, da vida e do homem...
Também ñas atuais conjunturas, guarda a Escola católica sua
importancia capital, pois pode contribuir táo decisivamente para rea-
lizar-se a missáo do Povo de Deus, transformando-se ainda, pelo diálogo
entre a Igreja e a comunidade dos homens, em beneficio para ambos.
Por isso o Santo Sínodo torna a proclamar o que já foi declarado em
táo grande número de documentos do Magisterio, a saber, o direito
da Igreja de fundar e dirigir livremente escolas de qualquer ordem
e grau, recordando que o exercício déste direito também contribuí em
alta escala para a liberdade de consciéncia, para a tutela dos direitos
dos pais e para o progresso da própria cultura...
O Santo Sínodo declara que o ministerio déstes professóres (das
escolas católicas) é auténtico apostolado; condiz ao máximo e é
necessário também aos nossos tempos, nao deixando de ser verda-
deiro servico prestado á sonedade. Aos pais torna a inculcar o dever
de conflarcm sous filhos. quando o onde puderem, a escolas católicas.
Sustentemnas na medida de suas fórcas e colaborem com elas para
o bem de seus filhos» (nv 8).

Parece, pois, que já nao fala segundo a mente da Igreja


quem propóe fechar as escolas católicas; o magisterio exercido
por Religiosas em escolas públicas é de grande valor, mas nao
supre o bem inestimável que os colegios católicos podem susci
tar. Toda escola católica deverá tender a impregnar a vida
da sociedade — no setor da ciencia e da cultura como no da
familia — de nítidos principios cristáos; faga que a vida dos
homens seja harmaniosamente dirigida para Deus tanto no
foro religioso como no foro profano (profissional, técnico,
doméstico.. .). Para atingir tal ideal, nao há melhor via do

— 318 —
«NOVAS RELIGIOSAS

que a dos educandários católicos; atesta-o a experiencia de.


longos sáculos e numerosos países.
Se há escolas católicas que nao preenchem a sua finalidade
porque ainda obedecem a processos pedagógicos antiquados,
sejam estes atualizados á luz das exigencias modernas, sem que
o próprio educandário perega ou perca seu cunho religioso.
Alias, o bem produzido pelas instituigóes católicas de educagáo
nao é sempre visível; fica, nao raro, latente ñas almas, mani-
festando-se por vézes em época tardia da vida dos ex-alunos,
como ensina a experiencia.

6. «Novas Religiosas»

O artigo de Novak sugere a fundagáo de «pequeñas asso-


ciagóes em que se vive urna nova forma de vida religiosa» (pág.
111) : as Irmas obedecerían! a poucas regras e emitiriam os
votos que quisessem, no segrédo da sua própria consdéncia.
Nao há dúvida, tais instituicóes podem ter lugar legitimo
na Igreja, como atrás notamos. O Espirito Santo multiplica
constantemente seus dons no Corpo Místico de Cristo, susci
tando novas e novas formas de servigo a Deus e ao próximo.
Os Institutos seculares sao um testemunho da agáo do Espirito.

Todavía essas novas formas nao devem excluir a existencia


da vida religiosa, publicamente consagrada a Deus pelos votos
de pobreza, obediencia e castidade. Esta continuará tenSo
imenso valor; será sempre a forma mais coerente de se viver
o Batismo, o qual é «morte com Cristo ao velho homem para
que se vá formando a nova criatura ñas almas»; a morte e a
ressurreigáo que caracterizam o Batismo, marcam de modo
especial a vida consagrada pelos conselhos evangélicos.
Ademáis, é oportuno notar que os votos religiosos valorizam
profundamente a vida crista :
a) Conforme S. Tomás e os doutores de espiritualidade, mais
dá a Deus quem, de urna só vez, dá toda a sua vida até o último
ato, do que quem dá parceladamente ato por ato. Quem dá imedia-
feamente tudo, usa de generosidade e confianca especiáis, que valo
rizam ¡mensamente o dom feito a Deus. Por isto nunca deverao
faltar na S. Igreja almas que professem publicamente dedicar-se ao
Senhor em pobreza, obediencia e castidade até o último instante de
sua peregrinagáo terrestre.
b) Os mestres ensinam outrossim que toda a vida do Religioso
(ou da Religiosa) após a profissáo se reveste de n6vo valor : cada um
de seus atos bons, além de ser um ato de virtude específica (caridade,
justica, temperanca, prudencia...), será sempre um ato da virtude

— 319 —
«PÉRGUNTE E RESPONDEREMOS* 91/1967. qu. 5

de BeligiSo; em verdade, será um ato praticado por efeito da profissáo


religiosa;* portanto, será, como a próprla profissáo religiosa, um ato
de obsequio ou de culto a Deus.

«Esposa de Cristo» é, conforme Sao Paulo, a S. Igreja


(cf. Ef 5,25-33). Já que toda alma crista é urna miniatura
da Igreja, cabe-lhe também o título de «esposa do Senhor».
De maneira peculiar, porém, éste apelativo compete ás almas
que renunciaram ao amor dos homens, para dedicar todo o
seu amor diretamente a Cristo; estas, conforme S. Agostinho
(In lo 9, 2), nao deixam de ter esposo; por excelencia, partici-
pam das nupcias com Cristo. É por isto que, com razáo, se
podem designar enfáticamente as Religiosas como «esposas de
Cristo»; toda a Liturgia da profissáo religiosa atesta, desde
remotos tempos, o valor dos votos públicos como alianea nup
cial com Cristo.

As circunstancias da vida moderna nao impedem (ao menos,


nos países cristáos ou liberáis) que as pessoas consagradas a Deus
se denunciem em público como tais. As senhoras casadas desejam
ser reconhecidas e tratadas como pessoas que já optaram na vida.
Ora, da mesma forma a Religiosa há de estimar que todos saibam
qual a sua vocacüo e rccebam o testemunho de Cristo que as Irmas
devem dar ao mundo. Estas verdades levam a crer que urna Religiosa
nao se deveria identificar, pelo seu traje é por certos tipos de
comportamento, com as pessoas que pertencam a outro estado de vida.
O titulo de' «Religiosa», longe de provocar rubor ou sugerir aaanha-
mentó e estreiteza de espirito, há de ser motivo de justa alegría e
profunda gratidao ao Senhor, por parte das próprias Religiosas como
também de toda asociedade humama.

Nao é preciso acrescentar ulteriores consideracóes para


sugerir quanto o artigo de Novak é parcial e falho no seu modo
de apreciar a vida religiosa. A Constituicáo «Lumen Gentium»
(c. 6) e o Decreto «Perfectae Caritatis» do Concilio do Vati
cano II ai estáo para dizer quanto a Igreja aprecia ai vida regular
religiosa, fazendo votos para que prospere dentro das suas
características inconfundíveis. A Providencia Divina permite
as críticas para que mais se apurem os valores; conscientes
disto, as Religiosas mais e mais se compenetraráo da inesti-
mável importancia, sobrenatural e natural, que tem a sua vida
inteiramente consagrada a Deus pela profissáo dos conselhos
evangélicos.

D. EstévSo Bettencourt O. S. B.

— 320 —
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