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LIVRO 11

AURORA

117. se inscreve e se imprime em nós e sobre nós? Nada compreen-


demos dele, senão as mudanças em nós que são por ele causa-
Na prisão. - Minha vista, seja forte ou fraca,enxerga ape- das - nosSo conhecimento dele semelha um espaço oco a que
nas a uma certa distância, e neste espaço eu vivo e ajo,a linha se deu uma forma. NQ~lhe atribuímos as se.nsações que os seus
deste horizonte é meu destino imediato, pequeno ou grande, '!tos desR~tam em nós, dando-lhe, assim, uma falsa positivida-
a que não posso escapar.Assim,em torno a cada ser há um cír- de inversa. Nós o construímos segundo o que sabemos de nós,
culo concêntrico, que lhe é peculiar. De modo semelhante, o dele fazendo um satélite de nosso próprio sistema: e, quando
ouvido nos encerm num pequeno espaço, e assim também o ele nos ilumina ou se escurece, e somos a causa última de
tato. É de acordo com esses horizontes, nos quais, como em ambas as coisas - nós acreditamos o contrário! Mundo de fan-
muros de prisão, nossos sentidos encerram cada um de nós, tasmas, este em que vivemos! Mundo invertido, virado, vazio e,
que medimos o mundo, que chamamos a isso perto e àquilo no entanto, sonhado cheio e reto.
longe, a isso grande e àquilo pequeno, a isso duro e àquilo
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macio: a ess~ medir chal11am9s"perc~ber" - e tudo, tudo ~I1) \

si é erro! Ço!).fon:nea quantidade de experiências e emoções 119.


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r que nos são possíveis em média, num momento determina-
dq cada qual mede a sua vida, breve ou longa, pobre ou rica, Viver e inventa/: - Por mais longe que alguém leve seu
plena ou vazia: e segundo a vida média humana medimos a autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que
d~ todas as demais criaturas - e tudo, tudo em si é erro! Se a sua imagem da totalidade dos impuL\os que constituem seu
nossa visão fosse cem vezes mais aguda para as coisas próxi- ser.Malconseguirá dar o nome dos mais grosseiros entre eles:
o número e a intensidade deles, o fluxo e refluxo,o jogo recí-
mas, o ser humano nos pareceria monstruosamente compri-
dOisim, pode-se imaginar órgãos que fariam percebê-Io como proco e, sobretudo, as leis de sua alimentação, permanecem
inteiramente desconhecidas para esse alguém. Esta alimenta-
imensurável. Por outro lado,poderia haver órgãos constituídos
ção será também obra do acaso: nossas vivências diárias lan-
de tal forma que sistemas solares inteiros parecessem contraí-
çam uma presa ora a esse, ora àquele impulso, que é avida-
dos e ajuntados como uma única célula: e, para seres de con-
mente apanhada, mas todo o ir-e-vir desses eventos está fora
formação oposta, uma célula do corpo humano poderia apre- de qualquer nexo racional com as necessidades de nutrição da
sentar-se como um sistema solar, em movimento, construção totalidade dos impulsos: de modo que sempre ocorrerão duas
e harmonia. Q,s.hábitos de nossos sentidos nos envolveram na coisas,a inanição e definhamento de uns e a excessiva alimen-
mentira e na fraude da sensação: estas são, de novo, os funda- tação de outros. Cada instante de nossa vida faz alguns dos
m~ntos de todos os nossos juízos e "conhecimentos" - não braços de pólipo do nosso ser aumentarem e outros murcha-
há escapatóriaJ não há trilhas ou atalhos para o mundo real!. rem, conforme a alimentação que traz ou não traz o instante.
E$tamQ~~m nossa teia, nós, aranhas, e, o que quer que nela Nossas experiências, como disse, são todas, neste sentido,
apanhemQ?Jnão podemos apanhar senão justamente o que se meios de alimentação, mas distribuídos com mão cega, sem
<!eixaapanhar em nossa teia. saber quem passa fome e quem está saciado. E,devido a essa
casual alimentação das partes, o pólipo crescido será algo tão
casual como foi seu desenvolvimento. Expresso de modo mais
118. claro: supondo que um impulso se ache no ponto em que
deseja satisfação - ou exercíciode sua força,ou desafogo
o que é então opráximo?- Que compreendemos de nosso dela, ou preenchimento de um vazio - é tudo linguagem figu-
próximo, senão suas fronteiras, quero dizer, aquilo com que ele rada -: ele considera, em cada evento do dia, como pode uti-

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