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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
IL vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
60UTCINA

BÍBUíX
MORAL.

ANO XIV ^N» 161 MAIO DE 1973


índice

Pág.

3,5 = 1000 185

Que significa ?

"FÉ SECULARIZADA" ? 187

Há dlferenca ?

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS


NATUREZA E GRACA 203

CORRESPONDENCIA MIÚDA 212

Como se explica ?

O MENINO JESÚS DE PRAGA 213

Urna aparicao em foco:

A SENHORA DE TODOS OS POVOS 222

CARTA AOS AMIGOS 232

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Fiei cristao, que esperas em definitivo? [um estudo sobre


a vida eterna). Igreja é missionária? «Cristaos anónimos».
Crise na Igreja, que significa ? Romanas ou peregrinacoes
em nossos dias. Antígos cristaos batizavam crianzas ?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual Cr$ 30,00


Número avulso de qualquer mes Cr$ 4,00
Volumes encadernados de 1958 e 1959 (preco unitario) Cr$ 35,00
índice Geral de 1957 a 1964 Cr$ 10,00
índice de qualquer ano CrS 3,00

EDITORA LAUDES S. A.
REDACAO DE PR ADMINISTRACAO
Caixa Postal 2.666 Búa Sao Rafael, 38, ZC-09
ZC-00 20000 Rio de Janeiro (GB)
20000 Rio de Janeiro (GB) Xels.: 2689981 e 268-2706
« II -V»-

3,5 = 1.000
O titulo paradoxal destas linhas poderá, lá *lrtfiíMvvi^JMkí—
surpreender o leitor. Acontece, porém, que a realidade é táo rica
em matizes que as vezes ela pode atingir as raias do paradoxal.

Alias, o paradoxo ácima é sugerido pela própria Palavra de


Deus, ou seja, pelo Apocalipse de S. Joáo.
E como ?

O número 7, na linguagem dos números (que a S. Escri


tura compartilha em algumas passagens), é símbolo de plenitude
e perfeigáo (veja-se, por exemplo, Gen l,l-2,4a). Donde se segué
que a metade de 7, isto é, 3 1/2 representa a deficiencia, a pe
nuria, o estado de «deserto» em que possa estar o homem pere
grino na térra. É por isto que o Apocalipse, c. 12, afirma que
a Mulher simbólica ou «Grande Sinal» é abrigada por Deus
no deserto durante «um tempo, dois tempos e metade de um
tempo» (Apc 12,14; cf. Dan 7,25; 12,7), ou aínda durante 1260
dias (3 anos e meio) ou ainda 42 meses, se confrontamos os
textos entre si (Apc 12,6 e 11,2).

A Mulher do Apocalipse luminosa, mas perseguida pelo Dra-


gáo durante tres anos e meio (=42 meses, 1260 dias), represen
ta a S. Igreja de Cristo na medida em que na térra é sujeita as
deficiencias e contradicóes dos homens. Cada cristáo, sendo urna
micro-Igreja, pode, com certeza, dizer que experimenta muitas
vezes um clima de deserto, de fome e sede de vida, verdade,
amor, justiga — valores estes que sao contraditados pelos acon-
tecimentos da vida terrestre.
Passemos agora ao cap. 20 do mesmo livro do Apocalipse.
— O texto diz que Satanás será acorrentado por mil anos e
lanzado num abismo selado. Ao mesmo tempo, os justos ressus-
citaráo (experimentaráo a ressurreigáo primeira-, e reinaráo com
Cristo sobre a térra durante esses mil anos. Terminado tal pe
ríodo, dar-se-á a consumagáo dos tempos: Satanás será soltó,
travará a batalha final, á qual se seguiráo a ressurreigáo de
todos os mortos e o juízo final.

Esta passagem do Apocalipse suscitou as mais diversas


interpretagóes, entre as quais a tese de que, antes do juízo final,
haverá sobre a térra um reinado milenar de Cristo: somente
os bons viveráo neste mundo, usufruindo de paz espiritual e
fartura material... Todavía o milenarismo assim concebido
foi rejeitado pelo senso de fé da Igreja. Na verdade, a autén
tica interpretacáo de Apc 20 há de ser deduzida dos próprios

— 185 —
escritos de Sao Joáo. Ora em Jo 5,25-29 o Evangelista fala
de duas ressurreigóes: a primeira («já agora») é a que se dá
pelo batismo ou pela participagáo sacramental da ressurreigáo
de Cristo; a segunda se dará no fim dos tempos, quando a graca
do batismo transfigurar os corpos ressuscitados.

Entrementes, ou seja, entre a primeira ressurreicáo (a ba-


tismal) e a segunda (a dos corpos, no fim dos tempos), os cris-
táos vivem um período de mil anos simbólicos. Mil, no caso,
significa bonanga ou valores eternos e definitivos. Cada cristáo,
na realidade, pelo fato de possuir a sementé da vida eterna pela
graga santificante, já está vivendo a eternidade, que o número
1.000 simboliza.

Assim se compreende que 3 1/2 seja igual a 1.000. A vida


do cristáo é expressa pelo símbolo 3 1/2 na medida em que é
viandante e sófrega sobre a térra. Mas é simbolizada também
pelo número 1.000 na medida em que está de posse da eterni
dade e goza da presenga de Deus. Tal é o paradoxo da vida do
cristáo: ainda preso ao temporal, já está ancorado no eterno,...
ainda sujeito as vicissitudes da vida transitoria na térra, já
usufrui da paz e estabilidade do definitivo!

Qual dos dois aspectos, qual dos dois símbolos nos há de


impressionar mais: 3 1/2 ou 1.000? É certo que a realidade
de 3 1/2, de caminheiros sófregos, muito se faz sentir em cer
tas horas. Mas o cristáo nao se deixa abater por ela; sabe que
tem em seu íntimo uma realidade ainda mais real, ou seja, a
realidade dos 1.000, da eternidade antecipada no tempo.

O presente número de PR tenciona ajudar o cristáo a des-


cobrir essa realidade intima, que somente a fé percebe. Por
isto apresenta em seus dois primeiros artigos questóes de fé
diluida ou contagiada, enquanto nos dois últimos artigos abor
da a fé exuberante, sujeita, em alguns casos, a desvirtuamentos.

Possam estas páginas contribuir para nutrir uma fé firme e


viva, inspirada pela auténtica Palavra de Deus,... uma fé que
descubra a presenca de 1.000 nos momentos marcados por 3 1/2!

E.B.

— 186 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIV — N* 161 — Mdo de 1973

Que significa?

"fé secularizada"?
Em sfntese: A fé secularizada, apregoada por Bonhoeffer, Roblnson,
van Burén e outros pensadores protestantes, ditos "teólogos da morte de
Deus", rejeita tudo que haja de transcendental na mensagem do Evangelho:
Jesús Cristo terla sido apenas um homem llvre e libertador (á semelhanca
de Sócrates) ou "um-homem-para-os-outros". Em conseqüSncla, professando
tais concepcoes, Julgam os mencionados autores que o Cristianismo poderá
falar adequadatnente ao homem contemporáneo, para o qual (dizem) Deus
e as realidades transcendentals perderam todo significado. .

Todavía nota-se que é falsa a aflrmacio de que o senso de Deus


está apagado no mundo de hoja; proflssSes públicas de fé por parte de
dentistas, astronautas, governantes, artistas... tém sido registradas fre
qüentemente nos últimos anos. Além do que, ao crlstfio nao é licito silenciar
o nome de Deus, pols a dimensao mística ou o senso religioso é algo de
Inórente a todo homem, mesmo em nossos días; quem nao tenha o senso
do misterio e do transcendental, é urna personalldade mutilada. Nio sem
razio os estruturallstas proclamam que a apregoada "morte de Deus"
acarreta lógicamente a morte do homem ou a desestima total da dlgnidade
e dos valores do homem.

Ademáis um Cristianismo que só veja em Cristo um homem para os


outros, reduz a mensagem crista a urna ética atéia, em meló ás varias
éticas modernas. Será justo entSo perguntar se a ética marxista nio é multo
mais radical e eficiente do que a ética crista secularizada... Será que
o Cristianismo, asslm depauperado do transcendental, pode Interessar ao
homem moderno? — Parece que nao; apagar a transcendencia da men
sagem de Cristo é tlrar-lhe o que ela tem de mais característico, válido e
necessárlo para o homem moderno; é, em outros termos, condenar o Cris
tianismo á ruina e ao ridiculo,... é também privar o homem contempo
ráneo da única resposta que Ihe possa satisfazer plenamente.

Comentario: O tema «secularizagáo» já foi repetidamente


abordado em PR 109/1969, pp. 1-9; 111/1969, pp. 101-110;
112/1969, pp. 137-147. O assunto volta freqüentemente á bai'a
sob alguma de suas modalidades; entre outras, está a da «fé
secularizada», cujos principáis arautos sao autores protestantes

— 187 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

ou os chamados «teólogos da morte de Deus»: Dietrich Bon-


hoeffer, John Robinson, Paúl van Burén, etc.

Visto que também em ambientes católicos a fé secularizada


vai encontrando eco, importados agora considerar exatamente
em que consista, e como há de ser julgada.

1. «Fé secularizada»: que é?

Abaixo procuraremos expor com o máximo de objetividade


o que os autores atrás citados entendem por «fé secularizada».

Há autores protestantes que desenvolvem o seguinte diag


nóstico do mundo contemporáneo:

O homem de nossos dias é, marcadamente, um «ser racio


nal»; o que quer dizer: horroriza tudo que nao esteja ao alcance
da razáo. É um ser «deste mundo», um «cidadáo da térra». Por
isto nao se interessa pelo que transcende o mundo e a historia
dos homens; é um «ser arreligioso» (nao hostil, mas indiferente
aos valores religiosos); por conseguinte, mostra-se incapaz de
pensar segundo categorías religiosas. É um ser impregnado de
«espirito científico» e, por isto, propenso a rejeitar como «mito»
tudo que nao seja científicamente demonstrado. É também um
«ser adulto», que, para resolver os seus problemas, já nao pre
cisa de recorrer a Deus e á Religiáo.

Sendo assim, se a fé crista quer sobreviver no mundo atual


e interessar aos homens de hoje, ela tem que se despojar dos
seus aspectos transcendentais e religiosos, para se tornar urna
fé terrestre, deste mundo, ou seja, urna mensagem totalmente
penetrável á razáo e urna forca que ajude a construir a Cidade
do Homem. É a isto que se dá o nome de «fé secularizada».

Assim concebida, a fé crista (secularizada) terá, para o fu


turo, tres principáis notas, segundo os seus arautos europeus e
norte-americanos:

1) Deixará de lado as dimensóes transcendentais do Cris


tianismo:

Deus nao será mais apresentado como o Ser Absoluto, mas,


sim, como algo de imánente no mundo, como o Fundo de todo
ser, principalmente do homem;

— 188 —
«FÉ SECULARIZADA»?

por «Reino de Deus» entender-se-á o Reino do homem li


berto de grilhóes sociais, económicos e de seus males físicos e
moráis;

a vida eterna será a vida da humanidade feliz, livre da


fome, do subdesenvolvimento, da guerra, da doenga, da
morte...

Neste contexto, a oracao nao terá mais sentido: deverá dar


lugar á agáo para que «venha o reino» do homem sobre a térra.
Os verdadeiros atos de culto seráo aqueles em que atenderemos
as necessidades de nossos semelhantes.

O pecado nao se definirá como urna derrogagáo á lei de


Deus, mas, sim, como um ato contra o homem; será a injustica,
a opressáo, a exploragáo do homem pelo homem.

A fé crista poderá mesmo silenciar, por completo, o nome


de Deus, ou porque «Deus morreu» (= nao tem mais significa
do nem ressonáncia para o homem de hoje, embora Deus ainda
exista em sua realidade invisível), ou porque «Deus mesmo quer
que nos vivamos sem Deus» (como diz Bonhoeffer).

2) A «fé secularizada» deverá realizar urna total «demiti-


zagáo» do Evangelho e da figura de Jesús Cristo. Há, por exem-
plo, no Livro Sagrado certas afirmacóes concernentes a Jesús
que procedem do modo de ver mítico dos antigos e que, por
conseguinte, só podem ter valor de símbolos para nos. Portanto
nao se dará o valor de fato histórico, mas de símbolo altamente
significativo, á Encarnagáo do Filho de Deus, ao nascimento
virginal do Senhor, aos seus milagres, a redengáo pela cruz, á
ressurreigáo, á ascensáo de Cristo... Jesús será considerado
táo somente como um homem que nasceu e morreu como os
outros. Apenas se notará nele algo que o coloca ácima de todos
os homens e o torna modelo: ele foi «o-homem-para-os-outros»,
e um homem soberanamente livre. Quem adere a Jesús pe!a fé,
torna-se também «um-homem-para-os-outros», e um homem
livre.

3) A fé secularizada deverá pregar a salvacáo crista nnm


sentido terrestre: isengáo de fome, guerra, ignorancia e subde
senvolvimento. .. A Igreja deve tornar-se urna fonte de dina
mismo em demanda do progresso e da libertagáo sócio-econó-
mica das populagóes oprimidas. Os «céus novos» e a «térra

— 189 —
6 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

nova» de que fala a S. Escritura, nao seráo dom de Deus, mas,


sim, conquista do homem.

Eis, brevemente expressas, as características da fé seculari


zada. A fim de ilustrá-las, vamos agora apresentar alguns dos
dizeres mais pregnantes de dois dos seus principáis arautos:
Dietrich Bonhoeffer e Paúl van Burén.

As citacóes que a seguir seráo feitas, tém significado mera


mente ilustrativo; elas nada pretendem insinuar, mas apenas
informar, para possibilitar um juízo objetivo sobre o assunto.
Há particular intcresse em citar Bonhoeffer, visto que seu pen-
samento foi amplamente difundido, inclusive no Brasil, onde se
publicou em tradugáo portuguesa a obra postuma «Resistencia
e Submissáo». Ed. «Paz e Térra» 1968.

2. Dietrich Bonhoeffer: os principios da secularízaselo

Dietrich Bonhoeffer nasceu de familia luterana em Bres-


lau (Alemanha) no ano de 1906. Como pastor, distinguiu-se
pelo ardor de sua fé protestante, que o levava a se opor radi
calmente as idéias nacional-socialistas de Adolf Hitler. Final
mente foi encarcerado aos 5 de abril de 1943 e morreu enforca-
do em campo de concentrac.áo aos 9 de abril de 1945. Deixou
escritos, cartas, sermóes, que revelam seu modo de pensar se
cularizado (alias, o próprio Bonhoeffer se admirava por haver
passado do seu protestantismo ortodoxo para as idéias que pro-
fessava no cárcere).

Eis como ele concebe a situagáo do cristáo no mundo de


hoje:

"Já passou o tempo da religiáo em geral. Marchamos para


urna época sem religiáo alguma. Os homens, como hoje sao,
já nao iconseguem ser religiosos. Toda a nossa proclamagáo
do Evangelho e nossa teologia de 1900 anos de Cristianismo
baseiam-se sobre o apriori (= pressuposto) de que o homem
é religioso. O Cristianismo sempre foi urna forma (talvez a
auténtica forma) da 'religiáo1. Quando, porém, um día se tor
nar evidente que este apriori nao existe mesmo, mas que foi
apenas urna forma de expressáo do homem, históricamente
condicionada e transitoria,... quando os homens se torna
re m realmente nao religiosos de maneira radical — e eu creio
que isto já está acontecendo —, que significará entáo isto tudo

— 190 —
«FÉ SECULARIZADA»?

para o Cristianismo? Está sendo subtraído o terreno ao nosso


Cristianismo..." {Carta de 30/IW1944, em "Resistencia e Sub-
missáo", pp. 130s).

Em outra carta, pouco posterior, Bonhoeffer voltava as


mesmas idéias, apresentando a ausencia de religiáo como expres-
sáo da maturidade do género humano:

"O homem aprendeu a se defender por conta própria con


tra todos os problemas mais importantes em que recorresse a
'hipótese de trabalho: Deus'. Nos problemas científicos, artísti
cos e mesmo éticos, ¡sto se tornou natural, e nao mais se dis
cute o fato. Há uns cem anos, porém, que ¡sto também vale, e
em medida crescente, para os problemas religiosos. Verifica-se
que tudo caminha sem Deus, e em ,certo sentido táo bem
quanto antes. Assim como no terreno científico, também no
ámbito da existencia humana, Deus é mais e mais afastado do
cotidiano, e Ele perde terreno" (carta de 8/VI/1944, ib. 155).

Em conseqüéncia, Bonhoeffer apregoa urna interpretagáo


mundana, isto é, secular, leiga, nao religiosa, dos conceitos bí
blicos. «Interpretaeáo nao religiosa», no caso, quer dizer: refi-
ram-se os dizeres bíblicos á vida do homem no mundo presente
e aos interesses do progresso e da cultura da humanidade.
Bonhoeffer mesmo dizia: «Sempre sinto de novo que pensó e
julgo segundo os moldes do Antigo Testamento; nos meses pas-
sados, por isto, li muito mais o Antigo Testamento do que o
Novo» (carta do 2» domingo do Advento, ib. p. 85). Os judeus
do Antigo Testamento, nao tendo clara nogáo de urna vida pos
tuma consciente, julgavam que o Reino de Deus se instauraría
neste mundo mesmo; os bens trazidos pelo Messias seriam bens
materiais.

Na base de tais premissas, que significa «ser cristáo» para


Bonhoeffer?

— «Ser cristáo» é ser homem... O cristáo nao é um homo


religiosas (homem religioso), mas simplesmente um homem,
como Jesús foi homem (cartas de 18 e 21/VII/1944, ib. pp. 175
e 177). Ser cristáo, em outros termos, é tomar consciéncia do
que Jesús foi «o homem para os outros»; as relagóes do cristáo
com Deus se estabelecem na medida em que o cristáo existe
para os outros, colaborando ñas tarefas da vida social, ajudan-
do e servindo. O Cristianismo nao é urna religiáo da redengáo
e da esperanza num além melhor posterior á morte:

— 191 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

"Agora se ouve dizer que o decisivo no Cristianismo é


que se anuncia a esperanga da ressurreigáo e que desta forma
surgiu urna auténtica religiáo redentora. Todo o peso da pre-
gagáo recai sobre o além da fronteira da morte. Exatamente
nisso vejo o erro e o perigo... Seria isso de fato o essencial da
praclamagáo dos Evangelhos sobre Cristo e da pregagáo de
Paulo? Eu o contesto. A esperanga da ressurreigáo se distin
gue da esperanga mitológica por reconduzir o homem de ma-
neira completamente nova, em contraste, alias, com o Antigo
Testamento, para as responsabilidades da sua vida na térra.

O cristáo nao tem, como os crentes dos mitos de reden-


gao, urna escapatoria sempre aberta para o eterno a fim de
fugir ás obrigagoes e aos obstáculos terrenos; mas deve, como
Cristo, esgotar até o fim os recursos de sua vida terrena ('Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'); somente na me
dida em que ele assim procede, ele conta com a presenca do
Crucificado e do Ressuscitado, e com Cristo é crucificado e
ressuscitado" (carta de 27/VI/1944, ib. 162s).

Eis, esbogado, o Cristianismo sem religiáo (religionsloses


Christcntum) que Bonhoeffer (embora com um pouco de hesi-
tacáo cá ou lá expressa) julgava ser a única forma de Cristia
nismo capaz de satisfazer ao homem contemporáneo ou ao «ho
mem adulto» de nossa época.

Examinemos ainda como as idéias de Bonhoeffer foram


ulteriormente desenvolvidas por Paúl van Burén.

3. Paúl van Burén : os extremos da secularizado

Bonhoeffer era, e quería continuar a ser, um cristáo lute


rano fiel. Redigiu suas idéias no cárcere, manifestando certo
receio de que constituíssem serio perigo para a genuína fé pro
testante. O seu senso cristáo o levava a duvidar por vezes e a
pedir a seu amigo Eberhard Bethge pareceres e opinióes sobre
quanto Ihe escrevia. Todavía as tendencias de Bonhoeffer foram
sendo cultivadas em sentido cada vez mais radical pelo grupo dos
chamados «teólogos da morte de Deus», dos quais um dos mais
extremados é Paúl van Burén, anglicano, professor da «Temple
University» de Filadélfia (Pennsylvania). É na obra «The
secular Meaning of the Gospel» (O significado secular do Evan-
gelho), publicada em 1963, que este autor desenvolve suas idéias.

— 192 —
«FÉ SECULARIZADA»?

Van Burén é essenciaimente um empirista e positivista.


Para ele, só tem realidade e só merece ser levado em conta o
que caí sob observacáo de laboratorio ou sob os sentidos; de
resto, ele julga que todo homem moderno é igualmente empiris
ta. No setor religioso, isto quer dizer que van Burén rejeita me
tafísica e teología, para dar lugar ao secularismo ou á seculari-
dade da fé, ou seja, a um positivismo empírico dito «cristáo».

Partindo destas premissas, como se estrutura a posicáo


de van Burén frente á fé crista?

— O autor, desde o inicio, rejeita os conceitos cristáos fun


damentáis, inclusive o de Deus. Tais conceitos nao sao empí
ricos ou nao podem ser verificados pela observagáo experimental;
por isto sao incompreensiveis para o homem «secular» ou
homem do mundo de hoje, o qual é essenciaimente empirista,
conforme van Burén. Eis como se exprime o autor:

"O empirista que está em nos, encontra a raiz de suas


dificuldades nao naquilo que se diz a respeito de Deus, mas
no próprio fato de que se fale de Deus. Nos nao sabemos o que
é Deus, nem compreendemos como a palavra 'Deus' é empre-
gada" (em tradugáo italiana: "II significato secolare del Van-
gelo", p. 111).

Por conseguinte, a palavra «teología» nao faz sentido.


Pode-se, porém, — e deve-se — falar apenas de Cristologia.
Esta tem por objeto «o homem Jesús de Nazaré», deixando de
lado a questáo da Divindade de Cristo.

E qual a característica mais marcante de Jesús de Nazaré?

— Ele foi essenciaimente «um homem livre», na opiniáo


de van Burén:

"Jesús aparece como um homem essenciaimente livre nas


parábolas, nos dizeres e episodios que nos foram transmitidos,
assim como nas frases em que as primitivas comunidades cris
tas falavam dele... Era livre da ansiedade e da necessidade de
definir a sua identidade pessoal; principalmente, porém, ele era
livre para o seu próximo... Diz-se que Ele ensinou que a gran
deza da liberdade está no servico; a sua própria liberdade foi
caracterizada pelo humilde servigo aos outros. Por conseguinte,
parece que era um homem livre para dar-se aos outros, quem
quer que estes fossem. Ele viveu assim, e foi condenado á

— 193 —
JO «PERGIÍNTE E RESPONDEREMOS» 1G1/1Í73

morte porque era um homem deste tipo em meio a homens


tímidos e medrosos" (ib. 151-153).

Portante, o que define o homem Jesús é a liberdade.

E como se dove entender a fó em Jesús?

— A fé nao consiste em reconhecer simplesmente o Jesús


da historia. Na verdade, os Apostólos que conviveram com o
Jesús histórico, conhcccram Jesús, mas o abandonaram sem fó
no momento da Paixáo. Diz van Burén:

"O Jesús histórico nao suscitou a fé... A sua liberdade era


exclusivamente dele; no máximo, era condividida, de maneira
fragmentaria e esporádica, em algumas ocasióes, por pouquís-
simos homens. Sendo assim, concluimos que a fé crista nao foi,
e nao é, urna conseqüéncia direta de ver a figura histórica de
Jesús" (ib., p. 155s).

Continua van Burén: a fé se funda sobre Páscoa; «antes


de Páscoa nao havia cristáos» (ib. p. 155).

E como se deve entender Páscoa?

— Páscoa nao é a ressurreigáo corporal de Jesús, pois a


expressáo «Jesús ressuscitou» nao tem sentido; nao é urna
afirmacáo empírica, já que nao pode ser verificada experimen-
talmente.

— Mas entáo que entendiam os Apostólos quando afirma-


vam que Jesús lhes aparecerá?

— Apenas intencionavam dizer que sua mente fora ilumi


nada para compreender de novo modo a mensagem de Jesús
Cristo. Eis como o explica van Burén:

"Para os Apostólos, Páscoa foi urna ocasiáo de discerni-


mento..., na qual, sobre o fundo das recordacóes deixadas por
Jesús, imprevistamente vlram Jesús de modo novo e inespera
do. Fez-se a luz. A historia de Jesús, que parecía ter sido urna
derrota, tomou urna importancia nova, tornando-se como que a
chave do sentido da historia. Dessa visáo nova resultou um
comprometimento de acordó com o género de vida que Jesús
adotara... A fó de Páscoa foi urna prospectiva da vida que jor-
rava de urna situagáo de discernimento... A relagáo própria
desse discernimento com a vida histórica de Jesús foi deter-

— 194 —
«FÉ SECULARIZADA.'/ il

minada pela experiencia particular que os discípulos fizeram


na Páscoa:... experiencia de ver Jesús de novo modo e de
participar da liberdade que fora a dele... Na Páscoa eles des-
cobriram que Jesús tinha um poder novo que antes ele nao
tinha ou nao havia exercido: o poder de suscitar liberdade em
seus discípulos... O que aconteceu aos discípulos por ocasíao
de Páscoa, foi que eles se tornaram participantes da liberdade
que Jesús tinha, de ser um homem para os outros... Na Pás
coa, eles descobríram que eles mesmos comecavam a condi
vidir essa liberdade — coisa que antes nao Ihes acontecía.
Poderíamos dizer que na Páscoa a liberdade de Jesús comecou
a ser contagiosa" (ib. 163s).

Por último, van Burén expóe o que vem a ser o Evangelho


para o homem de hoje, «secularizado» como é:

"O Evangelho é a Boa-Nova de um homem livre que tornou


livres outros homens, Boa-Nova proclamada pela primeira vez
por aqueles aos quais aconteceu tornar-se livres. No decurso
de dezenove séculos repetiu-se constantemente o fato de que,
ao ouvirem essa proclamacáo, os homens se tornaram livres.
A resposta que o Novo Testamento chama fó, consiste em re-
conhecer que a libertagáo se dá mediante a aceitacáo do
libertador Jesús de Nazaré; este é o homem que determina
para eles o que significa ser homem e que se torna o foco de
orientacao da vida deles" (i b. 171).

Em suma, o significado secular do Evangelho resume-se na


seguinte mensagem: «A verdadeira natureza do homem consiste
precisamente na liberdade para os outros que foi própria de
Jesús. Ser humano é ser livre para o próximo» (ib. 199).

As idéias assim propostas sugerem, sem dúvida, algumas


reflexóes, que procuraremos abaixo sintetizar.

4. Reflexóes

Distribuiremos as nossas ponderales sob dois títulos, dos


quais o primeiro dirá respeito á «morte de Deus» e o outro se
referirá a Cristo «homem-para-os-homens».

4.1. O senso de Deus no homem de hoje

Dizem os novos pensadores que Deus é algo de ultrapassa-


clo para o homem de hoje; este teria perdido o senso de Deus.
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

Esta afirmagáo, embora se possa basear em certos fatos


(as vezes, interpretados segundo idéias preconcebidas), nao
corresponde exatamente á realidade. Justamente os últimos
tempos tém-nos fornecido a ocasiáo de presenciar admiráveis
manifestacóes do senso religioso do homem moderno; assim, por
ocasiáo da viagem da Apolo-13 (abril de 1970), representantes
qualificados da humanidade oraram a Deus em público, afir
mando sua fé no Senhor todo-poderoso. Pouco depois, a disputa
da Copa do Mundo (junho de 1970) provocou demonstragóes
públicas de prece e gratidáo a Deus. Ainda mais recentemente,
a imprensa noüciava que Jim Irwin, tripulante da Apolo-15, se
tornou pregador leigo da Igreja Batista:

"Jim explica que sentiu a presenca de Deus atrás das


montanhas da Lúa. Ao voltar, tentou recomecar sua carreira,
mas sentía cada vez mais fortemente que 'Deus me tinha cha
mado para servi-Lo'. Pediu demissáo da NASA e comecou a
pregar, intitulando-se 'o missionário lunar*" ("Jornal do Brasil",
21/XII/72, cad. B. p. 1).

A respeito de Charles Duk, da Apolo-16, diz a mesma fonte


que «se sentiu tomado de religiosidade táo forte, ao pisar na
Lúa, que chorou.

— Foi a experiencia mais importante de minha vida. Senti


que estava contemplando a obra de Deus» (ib.).

Sob os regimes da Cortina de Ferro, que desferem radical


campanha contra a Religiáo, visando atingir desde cedo a ju-
ventude, a Religiáo continua a ser afirmada e praticada. A
revista «Informations Catholiques Internationales», em seu n*
409, de 1VVI/1972, pp. 3-5, publicou um artigo intitulado
«U.R.S.S.: a Religiáo do Partido». O autor, Jean-Philippe
Caudron, ai dá noticia das diversas cerimónias litúrgicas da
«Religiáo do Partido», que substituiram os antigos Oficios reli
giosos:

Todo menino, dos 6 aos 8 anos de idade, aprende a venerar


o deus Lenine, recitando poesías aos pés das inumeráveis esta
tuas desse líder, estatuas que a meninada ornamenta com flores
como se ornamentaria um altar; o menino jura, ao mesmo tem-
po, que ficará fiel ao ideal de perfeicáo moral; tais criangas
sao chamadas «Octiabroenok» (as criancas de outubro).

Mais tarde, dos 8 aos 14 anos, o menino passa á categoría


dos «Pioneiros»: recebe um lengo de seda vermelha, que envolve

_ 198 —
«FÉ SECULARIZADA»? 13

em torno do pescogo, e promete solenemente que «amará arden-


temente a sua patria, vivera, estudará e lutará segundo os pre-
ceitos de Lenine, e estará sempre pronto a observar as leis dos
Pioneiros», isto é, a ser um bom trabalhador, um filho devotado,
um cidadáo leal, etc.

Aínda mais tarde, o jovem entra para a categoría dos


Komsomols (de 14 a 27 anos). Serve ao exército e cursa a
Universidade. Um estudante de Engenharia tem quatro horas
por semana de catecismo marxista-leninista... quatro horas
obrigatórias e eliminatorias.

Continua o articulista:

"A apoteose é o casamento. Assisti a casamentes socia


listas. Palacio, música atraente, champagne doce,... discursos
da funcionaría do Governo sobre o amor, o respeito mutuo, a
educacáo dos filhos, e visita aos monumentos aos mortos,
diante dos quais os jovens casáis se recolhem, pensando nos
heróis cujo sangue derramado salvou a patria.

Acrescentem-se a isso tudo a imprensa, o radio, a tele-


visáo e o cinema, que langam normas culturáis e moráis sobre
urna populacáo que há cinqüenta anos nunca leu nem ouviu
doutrína diferente. E ter-se-á urna idéia aproximada da ambien-
tagáo religiosa, mas socialista, que envolve, afoga, desgasta,
mas impregna visceralmente o cidadáo soviético ordinario,
que nao tem como se defender.

Nao há dúvida, o Estado soviético, que quis fazer desa


parecer o Cristianismo dos espirites soviéticos, viu-se obrigado
a instituir novas cerimónias e novos sacramentos em lugar dos
antigos. Teve que levar em conta o espirito profundamente re
ligioso da populagao".

Diga-se ainda: na Iugoslávia e na Polonia, submetidas a


regime marxista militante, as vocagóes sacerdotais e religiosas
se multiplican! surpreendentemente...

Estes fatos, entre outros muitos que poderiam ser citados


(basta acompanhar a imprensa diaria e semanal), atestam quáo
arraigado é o senso de Deus na natureza do homem. Atestam
também quanto esse senso religioso tende a se afirmar espon
táneamente e por parte de homens de todas as classes sociais,
ainda em nossos dias. Pode-se, pois, dizer que a dimensáo reli
giosa é inerente á auténtica natureza do homem.

— 197 —
14 -PERPUNTE E RESPONDEREMOS- UU/1973

2. Urna reflexáo filosófico-teológica seja acrcscvntada a


verificagáo do fato histórico.

Ainda que o nome de Deus viesse realmente a ser silencia


do pelo mundo contemporáneo, nao seria licito ao cristáo
acompanhar esse silencio; ao contrario, seria (e é) dever do
cristáo e, de modo especial, do sacerdote, fakir de Deus.

Com efeito. Deus ó o Ser soberanamente real; é o Criador


o a Fonte de tudo o que existe. O homem, pelo simples falo de
existir, está (muitas vezes, sem o saber) em intimo contato
com Deus, pois foi Deus quem o criou e é Ele quem o sustenta na
existencia. Em conseqüéncia, todas as vezes que o homem toma
contato mais profundo consigo mesmo e com a natureza que o
cerca, ele nao pode deixar de reconhecer algo de misterioso c
transcendental, esse algo c o cunho de Deus que as criaturas
trazem em si e exprimem cada qual do seu modo. Com ünfaso
especial, os artistas (poetas, músicos, pintores...), que por su a
veía artística estáo abertos para o misterio da natureza e do
homem, se acham muito perto de Deus (embora. as vezes, nao
o saibam).'

Um homem incapaz de reconhecer o transcendental,'-' é um


homem amesquinhado, a quem falta algo de essencia!, pois o
senso de Deus pertence ás dimensoes de um homem integral ou
auténtico. Humanismo ateu já nao é humanismo.

Com efeito. Nos últimos anos tem-se talado nao sj da


«morte de Deus», mas também da «morte do homem». Esta c
anre.qoada pela esibla filosófica estruturalista (cf. PR 124/1970,
pp. 143-150). Michel Foucault, arauto dessa corrente, encerra
nos seguintes termos o seu livro «Les mots ct les choses»:

"O homem é urna invencáo de que a arqueología do nosso


pensamento mostra com facilidade a data recente e talvez o
fim próximo".

' Reciprocamente, toda criatura humana em quem o senso místico se


tenha desenvolvido, tende a ser poeta. Sao Jo8o da Cruz, S. Teresa de
Ávila, S. Teresa de Llsieux e outros grandes místicos cantaram em versos
as suas experiencias místicas.

- Em última análise, pode-se dizer que sao poucos, pois muitos dos
que se dizem ateus estabelecem seu substitutivo de Deus ou de mística.

— 198 —
<.FÉ SECULARIZADA^? 15

A morte do homem assim entendida consistiría em se negar


o valor próprio ou típico do psiquismo humano (inteligencia,
vontade, consciéncia moral, espirito religioso, senso artístico...);
esse psiquismo nao seria senáo o produto de reagóes físico-quí
micas, cegas e mecánicas, que caracterizam o organismo hu
mano.

Michel Foucault reconhece que essa morte do homem está


relacionada com a apregoada «morte de Deus». Negando a
Deus, o homem se assemelha ao lenhador que corta o ramo
da árvore sobre o qual está assentado e assim cai desastrada
mente por térra. Eis suas palavras:

"Em nossos dias nao é tanto a ausencia ou a morte de


Deus que é afirmada, mas o fim do homem... A morte de
Deus e o fim do homem estáo conjugados entre si. Segundo
Nietzsche, é o último homem que anuncia ter matado a Deus.
Mas, visto que matou a Deus, é ele mesmo quem deve respon
der por sua finitude... Mais do que a morte de Deus, ou antes,
no rasto dessa morte e em correlagáo profunda com ela, o que
Nietzsche anuncia é o fim do assassino de Deus".

Já na literatura francesa, anteriormente a Foucault, o ro


mancista Roger Martín du Gard salientava o nexo entre as
duas mortes (a de Deus e a do homem);

"Nietzsche suprimiu a nocáo de Deus. Colocou em lugar


déla a nocáo de homem. Isto ainda é pouco; é apenas urna
primeira etapa. O ateísmo deve agora avancar; ele há de su
primir também a nocáo de homem" ("L'Été 1914").

É por estes motivos que se diz que o cristáo nao pode deixar
de falar de Deus, mesmo num mundo que se diz ateu ou indife
rente a Deus; calar-se seria, para o cristáo, subtrair aos seus
semelhantes a nocáo mais vital que haja,... a nogáo de que o
homem contemporáneo mais precisa (talvez sem o saber) e á
qual ele aspira inconscientemente. O homem só poderá deixar
de ser religioso, caso se desinteresse das questóes fundamen
táis da vida humana: «Donde...? Para onde...? Por qué...?» E
quem se desinteressa dessas interrogacóes, nao vive integral
mente a sua dignidade humana.

A propósito, escreve com sabedoria o Cardeal Daniélou:

"A pretensao.de dispensar Deus e bastar a si mesmo é o


fundamento de .certo ateísmo moderno, mais ou menos difuso...

— 199 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

Essa pretensáo, na verdade, destrói o nosso ser no que


ele tem talvez de mais essencial. Pois a raiz mesma de nossa
existencia é o diálogo com Deus, diálogo em que a todo
instante recebemos d'Ele tudo que somos e pelo qual respon
demos á graga pela acáo de gracas... Receber a cada mo
mento todas as coisas de Deus, referir a cada momento todas
as coisas a Deus, é simplesmente estar na verdade, visto que
esse misterioso intercambio é a realidade de nossas vidas"
("L'avenir de la religión". Paris 1968, p. 50).

O cristáo que mantenha viva em si mesmo a consciéncia


destas verdades e a desperté ou avive no próximo, desempenha
um papel valioso na sociedade de hoje. Desde, porém, que ele
perca tal consciéncia, torna-se urna contradicho subsistente; a
ele se aplicaráo as palavras do Senhor no Evangelho: «Se o sal
perder o seu sabor, com que se há de salgar? Para nada mais
serve senáo para ser Janeado fora e ser pisado pelos homens»
(Mt 5,13). Entáo já nao se tem um cristáo, mas simplesmente
um ateu: ou eremos em Deus, Principio e Fim de todas as
criaturas, e O apregoamos com entusiasmo, ou simplesmente
nao eremos e nos calamos.

4.2. Cristianismo horizontalizado

A um cristáo toca, sem dúvida a fungáo de contribuir valio


samente para a construcáo da Cidade do Homem; mas ele
jamáis poderá esquecer que as atividades temporais da criatura
humana se devem encaminhar para a vida eterna. A libertagáo
e a salvacáo que Cristo propós, embora passem pelas estruturas
terrestres, tém Índole transcendental e escatológica.l Por con-
seguinte, «secularizar o Cristianismo», no sentido de van Burén,
significa simplesmente destrui-lo. Alias, o próprio van Burén,
que era ministro do culto anglicano, reconhecia muito lealmente
que já nao era cristáo:

"Quanto á minha condigáo de Pastor, direi que nao rezo;


Mmito-me a refletir sobre essas coisas. Fui ordenado, é ver
dade; mas, quando me pedem que vá pregar ou celebrar o
culto, geralmente respondo que prefiro abster-me dlsso. Eu
nao hesitarla em deixar as fungóes por completo, se isto se
pudesse fazer sem ruido, de maneira inofensiva. Mas nao é

1 Escatológica... O que quer dizer: só seráo atingidas plenamente


no fim dos tempos.

— 200 —
«FÉ SECULARIZADA»? 17

possível; deixar o pastorado acarreta urna serie de complica-


coes... Se alguém quisesse contestar o meu nome de cristao,
eu deveria admitir que, sim, eu nao sou um cristao" (citado
por Ved Menta, "Les théologiens de la mort de Dieu". París
1969, p. 83).

Ao contrario, Boihoeffer (contradizendo a afirmafióes que


anteriormente fizera) terminou sua vida na térra professando a
transcendencia do Cristianismo: é no Além que se encontra a
plenitude. — Com efeito; Payne Best, no livro «The Venlo
Incident», relata o fim de Bonhoeffer: no domingo 9 de abril
de 1945 Bonhoeffer celebrou um oficio religioso para os com
panheiros de cárcere; faloudhes entáo do fundo da alma. Ape
nas terminara a última prece, quando dois carcereiros, de fisio
nomía tesa, abriram a porta e chamaram: «Prisioneiro Bon
hoeffer, prepare-se e venha!». Esta palavra «Venha», para os
detidos, significava a forca. Despediram-se; entáo Bonhoeffer,
tendo puxado á parte Payne Best, Ihe disse: «É o fim. Mas
para mim ó o comego da vida! (Das ist das Ende. Für mich der
Beginn des Lebens)».

Quem quisesse ver em Jesús Cristo apenas «o-homem-para-


-os-outros», já nao deveria talar de fé crista, mas, sim, de ética
crista, paralela á ética de Sócrates e a de Buda. Ora o Cristia
nismo é mais do que urna escola de morigeragáo; é a comuni-
cagáo de sabedoria e de valores eternos.

A «fé secularizada (atéia)» ou a «ética crista (sem Deus)»


de van Burén e seus companheiros teria ela ainda alguma razáo
de ser, ao lado de tantos outros humanismos que se oferecem
ao cidadáo do século XX? Dentro do ateísmo, o marxismo nao
seria muito mais radical e eficaz do que o Cristianismo de van
Burén? «Nao seria entáo preferivel ser marxista?», poderiam
muitos perguntar.

Na verdade, somente se Jesús Cristo é o Filho de Deus


(no sentido paulino clássico) e nos anuncia que Deus Pai nos
salvou e nos chama para alcangarmos a vida eterna, mediante
o amor a Deus e ao próximo, é que o Evangelho tem sentido
para o homem de hoje; o Evangelho entáo conserva sua origi-
nalidade e responde as mais profundas expectativas do ser hu
mano, expectativas as quais, sinceramente falando, nem o mar
xismo nem as místicas orientáis panteístas (bramanismo,
budismo...) respondem satisfatoriamente.

— 201 —
18 «PERGUNTE fc RESPONDEREMOS» 1Ó1/1U73

Por conseguinle, somente se permanecer o que é, a fé


crista significará algo para o homem secular; dar-lhe-á urna
resposta que ele nao encontra em outra instancia e de que ele
tem profunda necessidade.

A propósito, a bibliografía é vastissima. Sejam salientados os seguin-


tes escritos :

G. De Rosa, "Fede cristiana e mondo secolarizzato", em "La Clviltá


Cattolica", qu. 2875, 4/IV/1970, pp. 8-19.
ídem, "La secolarizzazione del Cristianesimo" (I e II), Ib., qu. 2877,
2/V/1970, pp. 214-222; qu. 2878, 16/V/1970, pp. 331-339.
"Deus está morlo ?" (coletánea de artigos). ColegSo IOO-C 1. Pelró-
polis 1970.
R. Laurentln, "Dieu est-il mort ?" Paris 1968. Tradugáo brasileira ñas
Edígdes Paulinas.
J. Bishop, "Les théologiens de la mort de Dieu". París 1967.
Ved Mehta, "Les théologiens de la mort de Dieu". París 1969.
J. Daniélou, "L'avenir de la religión". Paris 1968. Tradugao brasileira
ñas EdicSes Paulinas.

K. Rahner, "Considerazioni teologiche sulla secolarizzazione". Roma


1969.

"Lumiére et Vie" n? 89 (setembro-outubro 1968).


"Concllium" n° 47 (setembro 1969}.

AMIGO LEITOR!

SOLICITAMOS AOS ASSINANTES QUE AÍNDA NAO RENOVARAM SUA


ASSINATURA, QUE O FACAM IMEOIATAMENTE. A PARTIR DO PRÓXIMO
NÚMERO, TEREMOS DE SUSPENDER A REMESSA PARA ASSINATURAS
NAO RENOVADAS.

APESAR DO GRANDE AUMENTO NO PREGO DOS CORREIOS E DO


PAPEL, MANTIVEMOS INALTERADO O PRECO DAS ASSINATURAS. NUMA
ATITUDE DE COLABORACAO, PEDIMOS ENCARECIDAMENTE AOS AMIGOS
QUEIRAM DIVULGAR A NOSSA REVISTA £ OBTER-LHE NOVOS
ASSINANTES.
GRATOS

PR

— 202 —
Há d¡feren?a?

valores humanos e valores cristáos


natureza e graca

Em sintese: O humanismo otimlsta de nossos días tende a Identi


ficar ser humano perfelto, realizado e ser erlstáo. Cristo terá sido o homem
perfeito, de modo que tornar-se homem perfeito é imitar a Cristo.

Tal assergáo nSo deixa de ser sedutora, mas vem a ser ambigua
(diga-se mesmo: errónea). Na verdade, ser cristSo significa ser elevado
ácima da natureza e das capacidades do ser humano; significa tornar-se
fllho de Deus, nao nomlnalmente apenas, mas por regeneracáo ou por
particlpacáo da vida do próprlo Deus (sem panteísmo, ou seja, ressalvada
a dlstincáo entre Criador e criatura).

Acontece mesmo que a natureza humana tal como ela existe na


historia deste mundo nao ó simplesmente a de um vívente racional (como
dlzem os filósofos), mas o vívente racional que é o homem, fol elevado,
no Inicio da sua historia, á fMlacSo divina; decalu deste estado singular
e finalmente fol remido por Cristo. O batismo e a Eucaristía restauram ger-
mlnalmente no erlstáo a fIliacSo divina perdida pelos prlmeiros país.

O dom da fillacSo divina concedido mediante Cristo Insere-se na


natureza humana dilacerada por concupiscencias e palxdes. Em conse-
qüéncla, nSo se pode dizer que fomentar a natureza humana e satlsfazer
indistintamente ás suas asplracóes seja o mesmo que cristianizar. Na natu
reza do homem, existem tendencias contradltórlas e Incoerentes (já verifi
cadas por filósofos pagSos e por Sfio Paulo), de sorte que a ascese e a
mortlflcacfio vém a ser Indlspensáveis para que se forme um auténtico
cristSo. Um humanismo que nSo Inclua penitencia, nSo ó cristáo.

A filosofía hindú, supondo o panteísmo, enslna que o homem é cen-


telha da Dlvlndade envolvida pela materia; a perfelcSo do homem portante
já estarla dentro dele. Esta proposIcSo nfio se coaduna com a perspectiva
crista. Qupndo á Yoga em particular, na medida em que é educac&o física
e higiene mental, pode tranquilamente ser pratlcada por um cristáo, contanto
que este nSo adote o panteísmo dos mestres yoguis Indianos.

Comentario: Urna das questóes muito debatidas, sempre


que se fala de antropología e vida crista, é a do relaciona-
mento entre os valores do ser humano (ou da natureza huma-

— 203 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

na) como tal e os da graqa de Deus concedida pelo Batismo e


a Eucaristía.

Tal relacionamento é classicamente considerado como


insercáo da graga na natureza. Ser cristáo significa entáo rece-
ber urna realidade nova, um novo ser, outorgado por Deus.
Nos últimos tempos, porém, a nova valorizagáo do ser humano
ou o cultivo de um humanismo otimista e confiante tem
inspirado a muitos mestres proposicóes como as que se seguem:

"A conversáo (metánoia) apregoada pelo Evangelho se faz


mediante urna reeducacáo psicológica, em que nos encontra
mos conosco mesmos.

O desabrochamento cristáo nao depende de algum subsi


dio exterior, mas brota do mais íntimo da natureza humana.

A graca sobrenatural, para agir em plenitude, precisa de


encontrar a natureza humana também em pienitude.

Aperfeicoar os valores humanos é identificar-se progressi-


vamente com Cristo, o homem perfeito, e, por Ele, com Deus".

Estas proposigóes tém um qué de simpático e atraente


para muitos cristáos; apresentam, com efeito, a vida crista
como o desenvolvimento lento e homogéneo de tudo que haja
dentro do ser humano; um homem perfeito seria um cristáo
perfeito.

Após um exame mais atento, porém, pode-se reconhecer


que tais frases sao ambiguas ou mesmo erróneas. Ressentem-se
de otimismo irrestrito ou exagerado frente á natureza humana,
otimismo que se chama naturalismo. Em parte, também sao
inspiradas por certas concepgóes da filosofía hindú, que nos
últimos anos tém mais e mais penetrado na mentalidade ociden-
tal mediante o Zen-budismo e a filosofía da Yoga (n. b.: dize-
mos filosofía, nao dizemos técnica).

Por isto consideraremos a seguir: 1) Natureza humana e


graga crista; 2) Yoga e Cristianismo.

1. Natureza e groja

1. Por «natureza humana» entende-se, em filosofía clás-


sica, o conjunto de capacidades ou faculdades que caracterizan!

— 204 —
VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS 21

o homem e as cxpressóes do ser humano. As principáis dessas


facilidades sao a inteligencia e a vontade. Como ensina a ex
periencia, sao facuidades limitadas ou de alcance finito; nao
podem atingir o Infinito, Deus, senáo de modo finito. Em outros
termos: apreendem Deus á semelhanga ou segundo a analogía
de urna criatura.

2. Por «graga crista» entende-se o dom de Deus que tor


na o homem filho de Deus. Vai-se desabrochando á guisa de
sementé no cristáo, de modo a habilitá-lo a ver a Deus face-a-
-face no termo desta peregrinaclo terrestre. É, portante, algo
que eleva o homem ácima de si mesmo, tornando-o, em sentido
singular, filho do Pai Celeste. Nao decorre da natureza do pró-
prio sujeito, mas, ao contrario, é-lhe gratuitamente outorgado
pelo Senhor Deus como um dom sobrenatural.

3. A fé crista ensina que, no inicio da historia, os pri-


meiros homens foram dotados de graga santificante ou eleva
dos a urna ordem de coisas sobrenatural.

Note-se, de passagem, que nos últimos tempos esta pro-


posicáo tem sido silenciada ou mesmo rejeitada por parte de
autores católicos. Todavía ela faz parte integrante do patri
monio da Revelagáo crista, de tal sorte que nao é discutível; ao
estudioso compete apenas verificar que nao é absurda e que
está suficientemente atestada pelos documentos da fé e pelo
magisterio da Igreja. — Nao há dúvida, tal proposigáo de fé
é conciliável com os dados científicos da paleontología e da
prehistoria, pois nao significa que os primeiros homens e a
natureza irracional tenham tido configuragáo extraordinaria (a
elevagáo do primeiro homem á filiacáo divina e os dons con
comitantes podem ser concebidos como algo de meramente
interior e espiritual, que se manifestaría exteriormente se o
homem nao tivesse cometido o pecado original).

Os primeiros homens pecaram, perdendo assim o estado de


fíliagáo divina ou de graga santificante, em que haviam sido
constituidos. Passaram a existir num estado dito «de natureza
(outrora) elevada e (depois) decaída» — natureza que, como
mostra a experiencia, é rebelde a Deus, contaminada pela de-
sordém de seus afetos e pelo egoísmo.

4. Deus Filho assumiu essa natureza humana; destruiu-a


sobre a Cruz e ressuscitou-a ao terceiro dia, restaurando assim
o homem. Ele reapareceu após a morte como «a nova criatura».

— 205 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 161/1973

Destarte obteve para o género humano a possibilidade de che-


gar de novo á visáo de Deus face-a-face. Em conseqüéncia, a
nossa natureza, após a obra de Cristo, é «a natureza humana
(outrora) elevada, (posteriormente) decaída e (finalmente)
restaurada na sua dignidade sobrenatural». A grasa santifi
cante que Cristo nos mereceu, é comunicada aos homens pelos
sacramentos, dos quais importa salientar o Batismo e a Euca
ristía. A vida crista nao é senáo viver em grasa santificante,
favorecer o mais possivel o desabrochar da graca santificante
ou da filiacáo divina que o Batismo e a Eucaristía comunicam
ao cristáo.

5. Pergunta-se agora: quais as relajóos entre «natureza»


e «graca»?

— Tem-se dito classicamente que «a graca nao destrói a


natureza, mas a supóe e aperfeicoa».

Estes dizeres de S. Tomás podem ser interpretados no sen


tido de que todos os apetites e tendencias nao absurdos da
natureza humana podem e devem ser favorecidos na vida de
um cristáo. Seria vá a ascese, que ensina a necessidade de se
mortificar a carne. — Nao é, porém, em tal sentido que so
deve entender o axioma citado. Ele exige urna distingáo:

A graga supóe a natureza e a í »a ordem «ntológica: SEVI


aperfelgoa | na ordem histórica: NAO

Na ordem ortológica... Isto quer dizer: considerando-sc


os seres de maneira abstrata, num plano filosófico e académico,
é claro que a graga santificante supóe a natureza humana; ela
nao é dada a seres irracionais (animáis, vegetáis, minerais...),
pois estes, nao tendo faculdades espirituais, sao incapazes de
chegar a contemplar a Deus, Espirito Puríssimo. É claro tam-
bém que o ser humano, portador da graga santificante, é ex
traordinariamente nobilitado.

Na ordem histórica... Quando passamos do plano abstrato,


académico, para a realidade concreta e existente, devemos dizer
que a graga de Deus encontra a natureza humana desregrada
e rebelde; por conseguinte, ela nao pode deixar de exigir mor
tificado e purificagáo dessa natureza. Vé-se, pois, que nao se
pode dizer que, na ordem real em que vivemos, a graga se so-
brepóe simplesmente as tendencias da natureza e as confirma.

_ 206 —
VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS 23

6. A exigencia de purificagáo da natureza ou de ascese


e renuncia, para que possa haver santificagáo, decorre necessa-
riamente da visáo que a Revelacáo crista propóe a respeito da
natureza humana. Essa mortificagáo nao consiste apenas em
reeducagáo psicológica, nem em exercícios de higiene mental
ou de educagáo física; ela é muito mais profunda; provém da
consciéncia de que o «velho homem» (a natureza desregrada),
no cristáo, tem que ser transformado pelo «novo homem» (pela
vida de Cristo), o amor próprio pelo amor a Deus. Diz o Senhor
Jesús no Evangelho: «Se alguém quiser salvar a sua vida,
perdé-la-á» (Le 9,24), e: «Se o grao de trigo, caindo na térra,
nao morrer, nao dará fruto. Se, porém, morrer, dará fruto
múltiplo» (Jo 12,24).

7. Compreende-se que a saúde psíquica do sujeito possa


ter influencia na sua santificagáo. É de supor que urna pessoa
afetivamente equilibrada oferega campo fértil as inspiragóes
da graga; a superagáo de estados psicopatológicos e a procura
de urna personalidade normal sao elementos importantes para
que a agáo da graga se possa desenvolver com fecundidade
ñas almas. Todavía é preciso nao esquecer que os recursos da
psicología e da medicina, embora possam contribuir para for
mar ou reajustar urna personalidade, nao fazem o cristáo como
tal; afetam apenas o substrato natural (que é o psiquismo) da
vida sobrenatural ou crista. Por conseguinte, nao se pode dizer
sem mais que «aperfeigoar os valores humanos é identificar-sj
progressivamentc com Cristo, o homem perfeito, e, por Ele, com
Deus». O aperfeigoamento de valores humanos, realizado ño
plano meramente humano (nao elevado á ordem sobrenatural
ou crista), certamente concorre para aproximar alguém de
Cristo, o Homem Perfeito, mas nao identifica (no sentido cris
táo) com o Senhor. A identificagáo com Cristo de que falam
os escritos do Novo Testamento, supóe sempre os sacramentos
e a conduta devida daí decorrente — a morte ao pecado e a
entrega a Cristo Jesús —, como atestam as epístolas de Sao
Paulo (cf. Rom 6).

Em vez de se dizer que «tornar-se homem perfeito equivale


a tornar-se perfeito cristáo», deve-se afirmar o inverso: tornar
se perfeito cristáo redunda em tornarse homem perfeito. Em
outras palavras: morrer e ressuscitar com Cristo todos os días
nao pode deixar de enobrecer a pessoa humana; purificando-se
na ascese, na humildade, na paciencia e no amor, o cristáo en-
contra melhor sua personalidade humana.

— 207 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» lfil/1973

8. Hoje em dia acentua-se muito o misterio da Encarna


cáo ou o fato de que Dcus se fez homcm; da¡ se deduz um
conceito otimista de natureza humana. Nao se pode, porém,
ignorar que a Encarnacáo estava voltada para a Redengáo ou
para o misterio da cruz, da morte e da ressurreigáo. Se somos
solidarios com Cristo pelo misterio da Encarnacáo, nao Lhe
devemos ser menos unidos no misterio de Páscoa ou da cruz,
da renuncia e da ressurreigáo.

9. Talvez, porém, alguém diga: a proposicáo de renuncia


é demasiado estranha á mentalidade moderna. Nao encontra eco
quem fala de mortificagáo ao homem de hoje; antes, afugenta-o,
desanima-o. A única mortificagáo que ainda seja aceita, é a que
vem imposta pelas exigencias da medicina ou da higiene mental.

— É preciso reconhecer: a expressáo «renuncia a si mes-


mo (ou ao velho homem)» por vezes pouca ressonáncia encon
tra. Todavia nem por isto se pode deixar de apregoar a fé crista
com todos os seus genuínos elementos; a fé sempre teve e terá
algo de absurdo aos olhos da prudencia humana; já Sao Paulo
o notava: «Nos pregamos o Cristo crucificado, escándalo para
os judeus, loucura para os gentíos» (1 Cor 1,23).

Note-se que, sem mortificacáo, nao há auténtica vida crista,


nem mesmo auténtica vida humana. A perfeigáo nao pode
deixar de ser algo de custoso, algo que exija generosidade
(essa generosidade sem a qual nao há nobreza de alma).

É necessário, porém, (e isto é muito importante!) nao fa-


lar, sem mais, de renuncia a pessoas que nao estejam prepara
das para tanto. Levem-se em conta os temperamentos e as
reagóes da sensibilidade de cada pessoa. A graca de Deus age
no intimo de cada individuo, dando-lhe aos poucos a compreen-
sáo do misterio da cruz e de suas exigencias; convém que o
educador e o diretor de almas acompanhem esse trabalho da
graga, que o secundem, e nao se lhe antecipem.

É preciso também nunca separar a idéia de ascese ou re


nuncia da perspectiva a que tende: a perfeita uniáo com Deus.
O Cristianismo é mensagem essencialmente positiva e nobilitan-
te; a ascese vem a ser mera via ou mera fase de transigáo
num programa de vida crista. A generosidade com que alguém
se separa de si para seguir o Cristo, é a mais rica fonte de
paz e alegría, como ensina a experiencia.

— 203 —
VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS 25

10. Há, porém, quem ainda objete: a ascese e os atos de


renuncia cmpreendidos por certos santos parecem, antes, ex-
pressóes de loucura ou desequilibrio mental do que de sá pie-
dade: privaram-se sistemáticamente de satisfagóes legítimas,
humilharam-se a ponto de passar por insensatos... Nao seria
isso expressáo de masoquismo, de espirito doentio, complexado
ou fracassado, fenómenos que os psiquiatras apontam em indi
viduos anormais ou dementes?

Em resposta, dir-se-á que houve, e há, pessoas muito san


tas, mas, nao obstante, psicológicamente anormais; tenha-se em
vista o caso clássico do Pe. José Surin, considerado em PR
47/1961, pp. 459-468. Doutro lado, é mister reconhecer que
muitas práticas 'á primeira vista desconcertantes se registraram
na vida de pessoas que por certo nao eram anormais.

Verdade é que raras sao as pessoas completamente nor


máis, do ponto de vista psicológico; é justamente o pequeño de
sequilibrio de predicados de alma que caracteriza cada persona-
lidade, imprimindo <lhe suas notas próprias, sem chegar a
constituir anormalidades em sentido patológico.

11. Os santos se colocam no plano das grandes personali


dades da historia, nem mais nem menos normáis do que os
outros vultos notáveis que marcaram os tempos passados.

Sao numerosos os episodios que demonstran! terem os


santos praticado seus atos de austeridade dentro de toda a sani-
dade mental, alheios a masoquismo ou outras taras. Tenha-se
em vista, por exemplo, o caso de Sao Francisco Xavier
(U552):

Narra Rodríguez, na base das confidencias de Francisco


Xavier, que este, em juventude, sentía especial repugnancia
por determinado doente a quem ele devia servir num hospital
de Veneza. Desejoso de vencer este asco, Francisco resolveu um
belo dia levar á boca o pus de urna úlcera. Ora por toda a
noite seguinte disse o santo que lhe parecerá ter guardado esse
pus na garganta. — Isto bem demonstra o grau de violencia
que Xavier fez as suas tendencias naturais, praticando tal ato.
Nao foi, pois, algum instinto depravado ou tarado que o levou
a exercer tal mortificacáo, mas, sim, o puro amor cristáo que
ele dedicava ao próximo e que seus instintos naturais tendiam
a entravar...

O gesto de S. Francisco Xavier e outros semelhantes que


se léem na vida de grandes santos, devem-se a impulsos extra-

— 209 —
26 «PERGUN'TE E RESPONDEREMOS* 161/1973

ordinarios da grac.a de Deus, aos quais esses justos responde-


ram com generosidadc e coragem nao menos extraordinarias.
É certo que a graea moveu os santos ao heroísmo segundo as
categorías de pensamento e conduta do seu tempo. Tais ex-
pressóes de generosidade nao sao obrigatórias para cristáos de
outras épocas (ninguém é obrigado a lamber as chagas do seu
próximo para lhe demonstrar amor). O Espirito de Deus inspira
a cada cristáo os gestos que realmente mais represe ntem o
ideal da magnanimidade e do heroísmo para tal cristáo.

2. Yoga e Cristianismo

1. A Yoga ó urna faceta da filosofía hindú associada a


urna técnica de ginástica corpórea e higiene mental. Já foi apre-
sentada em PR 16/1959, pp. 139-146. Em conseqüéncia, aqui
seráo propostas apenas consideragóes sumarias sobre o assunto
com vistas á temática destas páginas.

Como filosofía, a Yoga supóe o panteísmo. Ensina que


Deus nao se encontra fora do homem, como ser transcendental.
O espirito humano é parte do Espirito Universal ou do Prin
cipio Divino (Divindade). Nao há distincáo essencial entre o
espirito humano e o Espirito Divino, nem entre o mundo e a
Divindade; o homem é centelha emanada do Fogo Divino.

O ser humano é habitualmente solicitado pelas coisas ex


teriores e visíveis, que sao realidades ilusorias. Estas o impe-
dem de tomar conhecimento do seu verdadeiro Eu. Por isto
o yogui (assim se chama quem praticava a y-ga) procura
evadir-se das coisas exteriores e visíveis e concentra-se em si
mesmo. Pelo exercício tenaz de concentragáo, esforc.a-se por
atingir a centelha divina que, colocada no seu íntimo, constituí
o seu verdadeiro Eu.

Para chegar a tal fim, o yogui praticada a meditacáo,


na qual ele procura esvaziar-se de todos os seus conceitos ha
bituáis, fazendo de sua mente urna folha branca.

E, a fim de meditar com todo o proveito possível, o


yogui se empenha ardorosamente por tornar-se senhor do seu
corpo o de todos os seus movimentos naturais. Para tanto,
pratica a abstinencia e exercícios ginnstico-respiraíórios: a
Yoga propóe 84 posturas (asanas), que visam a estimular o
metabolismo, ativam a circulagáo do sangue, fomentam o fun-

— 210 _
VALORES HUMANOS E VALORES CRISTÁOS 27

cionamento das glándulas e acalmam os ñervos, proporcionando


ao espirito a paz e o bem-estar oportunos para a concentracio.

2. A Yoga tem-se difundido no Ocidente. No Brasil, so


ciedades e escolas a transmitem ao público.

Pergunta-se: será lícito a um cristáo aceitar esse sistema?

— Distinga-se entre a filosofía da Yoga e os exercícios


ginástico-respiratórios que esta ensina.

a) No que diz respeito á filosofía, é claro que o pensa-


mento yoguino nao se concilia com o pensamento cristáo.
Aquele é panteísta, identificando Deus e o homem, ao passo
que o Cristianismo concebe Deus como o Ser Supremo trans
cendental, do qual o homem é criatura produzida a partir do
nada. O ser humano nao é centelha do Fogo Divino, caso se
queira com isto dizer que é parcela da Divindade. É, sim,
imagem e semelhanga de Deus na medida em que tem inteli
gencia e vontade; Deus, que é a Suma Inteligencia e o Pri-
meiro Amor, foz o homem dotado de inteligencia e amor.

b) No que diz respeito á técnica somática c respiratoria,


a fé e a moral cristas nao se opóem a que o cristáo a pratique.
Poderá ser-lhe útil como disciplina da alma e do corpo; inega-
velmente tais exercícios podem favorecer, em muitos casos, a
saúde do corpo e a higiene da mente. Ora o bom funciona-
mento das faculdades físicas e psíquicas do individuo é pre
cioso para que o homem corresponda plenamente á grac.a de
Deus. É por isto que certas comunidades ou sociedades cristas
oferecem ao público cursos de exercicios de Yoga.

É preciso, porém, que, ao praticar a Yoga, o cristáo sa


desvencilhe dos pressupostos filosóficos dessa escola; a finali-
dade do cristáo-yógui nao é encontrar a parcela de Divindade
oculta em sua alma; ele procura apenas um subsidio que o
ajude a dominar as paixóes e a disciplinar seus pensamentos
o afetos. Este mesmo objetivo, alias, tem sido almejado e
alcancado pelos ascetas cristáos desde os primeiros sáculos me
diante práticas de jejum, vigilias e outras mortificaeóes que
subordinam a carne ao espirito. Vé-se, pois, que a disciplina
psicossomática fez e fará sempre parte da vida crista. Apenas
a mentalidade crista difere radicalmente da do yogui. Como
acaba de ser dito, o cristáo sabe que se mortifica com o auxilio
da graga de Deus, a fim de levar o seu batismo (morte e

— 211 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

ressurreigáo com Cristo) até as últimas conseqüéncias; é á


vida sobrenatural que o Pai do céu lhe outorgou gratuitamente
pelos sacramentos, que ele quer dar plena expansáo em sua
alma.

Observa-se, porém, que nao raro, juntamente com os


exercícios da Yoga, também as idéias filosóficas do hinduismo
se introduzem na mentalidade de certos cristáos; estes váo as-
similando, consciente ou inconscientemente, as concepgóes
gerais e as nogóes de antropología e religiáo do panteísmo. Em
conseqüéncia, tendem a identificar disciplina c reeducagáo
psicológica com aséese e perfeigáo cristas; o homem «realizado»
poderia ser tido como bom ou perfeito cristáo — proposigáo
esta que nao corresponde á verdade, como atrás foi dito.

Na realidade, é servindo a Deus que o homem reina.

E.M. (Eecife): O amigo pergunta se as confissóes comunitarias


sao permitidas fora dos casos de guerra ou calamidade. Pede resposta
explícita.

— O que de mais explícito se possa dizer sobre o assunto se en-


contra no documento publicado pela S. Congregacáo para a Doutrina
da Fé aos 16/VI/72. Este documento, já comentado em PR de 1972,
pode ser assim sintetizado:

1) O sacramento da Penitencia, com a acusagao Individual e es


pecifica dos pecados, é o meio normal para se obter o perdáo das
faltas graves, como ensinou o Concilio de Trento.

2) As vezes, porém, nao há sacerdotes suficientes para atender As


confissdes individuáis e — mais — nao se pode protrair indefinida
mente a participado dos fiéis na Eucaristía. Em vista dessas sitúa-
cSes. a S. Sé deixa a criterio de cada bispo estabelecer se, e quando,
na sua diocese tais condicocs de grave penuria existem; em caso posi
tivo, poderá o bispo permitir que, em ocasides devidamente estipula
das, o sacerdote dé a absolvicáo coletiva.

3) Aos fiéis assim absolvldos fica a obrigacáo de se confessarem


dos pecados nSo acusados desde que tenham a oportunidade de o fazer
(no máximo, dentro do iim ano). Nao lhcs é lícito procurar nova
absolvicao coletiva antes de tal confissáo.

4) Abstenham-se os sacerdotes e os fiéis de se colocar voluntaria


mente em situagóes que impossibilitem o atendimento dos penitentes
em confissáo auricular. Antes, é preciso que os sacerdotes se empe-
nhem por exeroer integralmente o ministerio sacerdotal, dispondo-se a
administrar devidamente o sacramento da Penitencia.

5) A confissáo dita «de devogáo» (para os casos de pecado leve


apenas) é válida e recomendável.

— 212 —
Como se explica?

o menino jesús de prasa

Em sfnlese: Na Idade Media, intensUlcou-se a piedade dos fiéis para


com as fases terrestres da vida de Cristo ; além do presepio (que se
deve a S. Francisco de Assis em 1223), foram sendo confeccionadas esta-
tuetas do Menino Jesús destinadas a alimentar a piedade dos fiéis para
com a Infancia de Cristo. A Espanha no séc. XVI, sob a Influencia de S.
Teresa de Avila, tornou-se um foco que Irradlou tal devocáo por toda a
Europa.

É neste contexto que se sitúa a orlgem da devocSo ao Menino Jesús


de Praga: no séc. XVII a princesa Polixena de Lobkowitz levou da Espanha
para Praga (Tchecostováquia contemporánea), como presente de nupcias,
urna estatueta do Menino Jesús em cera; em urna máo o "pequeño Reí"
trazia o globo terrestre, e com a outra abencoava; em 1628 a princesa
doou tal imagem ás Carmelitas de Santa María da Vitoria em Praga. A
imagem tornou-se entfio estimulo da piedade dos fiéis, que Ihe atribulan)
milagros e conversóos. Em 1641 construiu-se em Praga um oratorio prúprto
para o Menino Jesús, com urna ermida anexa. A devocáo propagou-se aos
poucos por todo o povo de Deus. Alias, existem outras Imagens do Menino
Jesús na Alemanha, na Italia..., ditas "milagrosas".

A rigor, pode-se crer que Cristo tenha Intencionado asslnalar de modo


especial a sua misericordia manifestándose em determinado santuario (como
o de Praga) com milagres e gracas extraordinarias. Quem julga que Isto
de fato se deu, pode tranquilamente orar a Cristo, lnvocando-0 como o
Menino Jesús de Praga. Todavia é preciso evitar que tal devocSo degenere
em supersticSo e fanatismo. NSo há oracdes "fortes" ou oracSes que
obtenham Infalivelmente a graca que se pede; verdade é que a orac&o bem
felta nunca é perdida; mas Deus nem sempre Ihe responde nos termos
exatos que o orante Lhe aprésenla, pois Ele sabe mellior do que nos o
que nos convém. Ademáis nSo se perca de vista que Cristo, como homem,
é sempre o Grande Sacerdote ou Mediador que nos leva até o Pal.

Comentario: É muito comum, até nos jomáis destinados ao


grande público, encontrar-se a oragáo ao Menino Jesús de
Praga e o testemunho da gratidáo dos fiéis por gracas rece-
bidas do Mesmo.

Ás vezes esta forma de devogáo chama a atengáo por sua


índole exuberante e pela insistencia com que é propagada. Eis

— 213 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1(51/1973

por que parece oportuno recolocá-la no seu contexto histórico,


a fim de se poder julgar o seu significado.

1. A piecfade para com Jesús-Menino


através «ios séculos

Distinguiremos tres etapas principáis neste percurso histó


rico: a piedade dos antigos crisláos; a da Idade Media e, por
fim, a da época moderna (que comeca com o sóc. XVI).

1.1. Os prímeiros séculos do Cristianismo

As primeiras geracóes cristas se detinham principalmente


no misterio de Cristo como tal, sem dar importancia particular
a alguma das fases da vida do Salvador, excetnada a sua «hora»
(a Paixáo e glorificacáo do Senhor, conforme Jo 17,1).

Todavía a partir de fins do séc. I as controversias doutri-


nárias movidas pelo docetismo, o marcionismo, o maniqueismo
e outras tendencias heréticas obrigaram os mestres e pregado-
res a considerar mais atentamente as diversas fases da vida
terrestre de Cristo, inclusive a sua entrada no mundo. Em
conseqüéncia, predominam nos escritos dos doutores e mestres
dos primeiros séculos cristáos reflexóes de Índole elevadamente
teológica e de profunda riqueza doutrinária, mas assaz sobrias
em afetos e sentimentos para com o Menino Jesús.

Na liturgia, a celebracáo do Natal e da Epifanía por certo


inspirou a piedade crista. Nota-se, porém, que a liturgia era,
em grande parte, inspirada pela preocupacáo de por em relevo
a Divindade de Cristo e a realidade do misterio da Encarnagáo,
dado que o arianismo, o nestorianismo e o monofisismo nos
séc. IV/VII disseminavam falsas concepcóes a respeito.

Ao mesmo tempo que os mestres cristáos muito se empe-


nhavam por afirmar a reta fó em Cristo Deus e Homem frente
as heresias, a literatura popular ia-se ampliando com o surto
de numerosos escritos apócrifos, isto é, escritos que por seu
estilo imitavam os Evangelhos canónicos, mas na verdade se
deviam a autores dos séc. m/VI. Esses escritos tendiam a sa-
tisfazer á piedade popular desejosa de saber o que os textos
bíblicos mesmos nao diziam a respeito de Cristo. Tais sao, entre
outros, «O livro da Infancia de Jesús» ou «Evangelho do

— 214 —
O MENINO JESÚS DE PRAGA 3l

Pseudo-Mateus», o «Evangelho árabe da infancia», o «Evange-


lho armenio da infancia», a «Historia de José carpmteiro», o
«Protoevangelho de Tiago», o «Evangelho de Tomé»... Essas
obras dáo livre curso á imaginagáo e ao portentoso: narram
milagros realizados pelos panos do Menino Jesús ou pela agua
do seu banho, o prodigio da palmara que se inclinou para dar
frutos a Sagrada Familia, a queda dos Ídolos no templo de So-
tina quando ai entrou o Menino Jesús... A figura de Jesús
Menino ai é muito focalizada, mas em termos que por vezes
sao de nítida ficeáo. Como quer que seja, urna das fortes ten
dencias da literatura apócrifa ó demonstrar a Divindade da
Cristo já nos seus primeiros anos de vida terrestre.

Passemos agora á

1.2. Idade Media

A partir dos séc. DC/X nota-se nos textos dos mestres e


na piedade popular forte preferencia pelas narragSes e descri-
cóes históricas, ficando para segundo plano as elaborac5es teo
lógicas. Este fato se explica bem: de um lado, as grandes
heresias estavam superadas (em 680/681, o Concilio de Cons-
tantinopla III encerrou as controversias cristológicas). De outro
lado, as viagens de peregrinagáo dos cristáos ocidentais á Térra
Santa, as Cruzadas e suas narrativas despertavam interesse
crescente pela vida humana de Jesús, principalmente pelos seus
dois polos extremos (a infancia e a Paixáo gloriosa). Em con-
seqüéncia, a piedade medieval, máxime a partir dos séc. XII
e XIII, foi muito marcada por duas características: o gosto do
concreto e a afetividade.

O gosto do concreto levou S. Bernardo (f 1153) a urna


piedade muito viva e penetrante para com a infancia de Jesús
e a figura da Virgem Máe, contempladas no Natal, na Circun-
cisáo, na Epifanía, no Anuncio do anjo a Maria...; Sao
Francisco de Assis (f 1226) voltou-se com predilecáo para a
Natividade do Senhor; quis que o Natal fosse festa até mesmo
para os animáis. Com efeito, cm Greccio no ano de 1223 Fran
cisco, desejando celebrar o Natal, encontrón num bosque urna
escavagáo em forma de gruta; mandou entáo colocar ali urna
mangedoura com o boi, o asno e feno. Nao cuidou das estatuas
da Virgem, de S. José ou do Menino. Somente em visáo é que
um dos irmáos viu nesse conjunto o Menino Jesús. A confecgáo
do presepio, provavelmente assim inaugurada por S. Francisco
de Assis, se tornou comum; mostrava-se também o Menino

— 215 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» lfil/1973

Jesús num bergo que os fiéis empurravam devagar; podia-se


também encontrar a representagáo de um anjo a ensinar o Me
nino Jesús a caminhar...

Muitos escritores de espirituaiidade medievais propagaram


a devocáo ao Menino Jesús. Assim Elredo de Lievaulx, no seu
«Tratado sobre Jesús aos doze anos» (cd. Migne lat. 195,
361-500); Sao Boaventura nos escritos «Sobre cinco festas do
Menino Jesús» e «Lenho da vida». Certos tratados de piedade
ensinavam aos fiéis como assistir á Virgem Máe ao enfaixar,
ao bercar e ao lavar o Menino Jesús; ensinavam também a
arte de «brincar» com o Menino Deus.

Contavam-se entáo numerosas visóes ñas quais aparecía o


Menino Jesús: a de S. Elisabete de Schonau, a de S. Clara (que,
enferma e impossibilitada de assistir á liturgia de Natal, con-
templou o presepio armado por Sao Francisco), a de S. Ángela
de Foligno e, principalmente, a da Venerável Margarida Ebner,
que gozava de amizade especial com o Menino Jesús.

No fim da Idade Media teve surto o costume de confec


cionar estatuetas do Menino Jesús. Os motivos inspiradores
dessa praxe sao múltiplos:

— o desejo de prolongar o culto tributado a Cristo por


ocasiáo do Natal;

— o desejo de conservar a lembranga de urna peregrinagáo


feita á Térra Santa (muitas estatuas eram trazidas da cidade
de Belém, ou do lugar da natividade do Senhor);

— a recordacáo de milagros, segundo os quais Jesús Me


nino teria aparecido a certos fiéis na hostia consagrada (a
Eucaristía e o Menino Jesús eram intimamente associados
entre si pela devocáo medieval);

— a intencáo de proteger a construcáo de urna casa (em


algumas regióes da Bélgica e da Alemanha, colocavam-se es
tatuetas do Menino Jesús em terracota ou argila nos funda
mentos das casas).

De modo geral, a pintura, a poesía e as artes medievais


(inclusive o teatro com seus autos e misterios) exaltaram elo-
qüentemente o Menino Jesús, a Virgem SS. e os episodios da
infancia do Senhor; os relatos dos apócrifos foram nao raro
utilizados como fontes inspiradoras dos temas dessas expressoes

— 216 —
O MENINO JESÚS DE PRAGA 33

de arte. Os cartóes congratulatorios de inicio de ano traziam


muitas vezes a imagem do Menino Jesús.

Este desabrochar da devocáo ao Divino Menino chegou ao


seu auge nos séc. XVI/XVII, como abaixo veremos.

1.3. A partir do séc. XVI

Foi na Espanha que a piedade dos fiéis mais se voltou


para Jesús Menino no séc. XVI.

S. Teresa de Ávila (f 1582) deixou apenas breves poesías


sobre Natal e Epifanía, mas muito propagou as estatuetas do
Menino-Deus: em suas viagens, ela freqüentemente levava nos
bragos uma ¡magem do Menino Jesús. Em Villanueva de Jara
(1580), uma das últimas fundagóes de Carmelo empreendidas
por Teresa, a santa exortou a provedora do convento, Ir. Ana
de S. Agostinho, a que recorresse ao Menino Jesús; Ana entác
orou diante dele com palavras cheias de ternura, e conseguiu
que muitas de suas dificuldades de ecónoma e priora fossem
dissipadas por intervengáo do Menino Jesús.

Na Espanha, difundiu-se o costume de representar o Me


nino Jesús como Rei triunfante, aureolado, a segurar o globo
da térra e a cavalgar sobre uma águia. Um companheiro do
navegador espanhol Fernando de Magalháes em 1521 teria
deixado uma dessas estatuetas em Cebú ñas Filipinas.

A reforma carmelita realizada por S. Teresa na Espanha


propagou-se logo na Franga; com ela, incrementou-se a devo-
gáo ao Menino Jesús neste país. O Cardeal francés de Bérulle
(t 1629) entrou em contato com os arautos espanhóis de tal
devocáo e escolheu como priora do primeiro Carmelo refor
mado na Franga a Ir. Ana de Jesús, fervorosa devota do Me
nino Jesús. Teólogo como era, Bérulle elaborou uma serie de
escritos em que desenvolve os grandes temas da piedade para
com o Menino Jesús; a dependencia, o silencio, o apagamento,
a humildade de Jesús sao considerados por Bérulle como véus
que encobrem a riqueza de vida e de poder do Menino Deus:
«No Menino Jesús,... há incapacidade, mas muito capaz, isto
é, capaz da Divindade e mesmo cheia da Divindade. Há indi
gencia, mas cheia de vida, e da vida mais sublime» («Oeuvres
de piété» 48,3).

— 217 —
34 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS* 1G1/1973

Oulra notávci porta-voz da devogáo ao Menino Jesús foi a


carmelita Margarida do SS. Sacramento (1619-1648) do Car
melo de Beaune (Franca). Aos 24 de margo de 1636, cssa Irma
reuniu pea primeira vez «os domésticos e associados da familia
do Menino Jesús». Essa «familia» celcbrava o dia 25 de cada
mes em memoria da Anunciagáo a María e da Natividade do
Verbo, recitava diariamente a «Coroa de Jesús» (12 Ave-Maria
o 3 Pai-Nosso); alcm do que, cada um dos devotos procurava
acompanhar, com o espirito e o afeto, todas as acijes, as pnla-
vras e os misterios de Jesus-Mcnino.

Sao Joáo Eudes (f 1680), J. Parisot (f 1678), Jean-Jacques


Olier (f 1657), S. Francisco de Sales (t 1622) concorreram,
cada qual do seu modo, para incentivar a devocáo ao Menino
Jesús. Ela se conservou até os nossos tempos, podendo-se notar
que no século XIX se introduziu na piedade católica o costume
de dedicar o mes de Janeiro ao Menino Jesús; esta prática
inspirou ampia bibliografía e, sem dúvida, fomentou a oragáo
e a santificacáo de numerosos fiéis católicos.

Resta-nos agora considerar diretamente

2. A imagem do Menino Jesús de Praga

1. A tendencia a confeccionar estatuetas do Menino Je


sús, que se manifestou na Idade Media, e tomou particular im
pulso a partir do séc. XVI (tenha-se em vista S. Teresa de
Ávila), deixou seus vestigios até hoje em algumas famosas es
tatuas do Menino Jesús, guardadas' em santuarios próprios.
Geralmente se contam milagres obtidos por fiéis que em tais
santuarios pediram gracas. É o que dá fama especial a tais esta
tuas e seus santuarios.

Vamos enumerar algumas dessas imagens famosas e re-


fletir sobre o sentido teológico que possa ter a respectiva de
vocáo.

a) A mais conhecida dessas imagens ó, sem dúvida, a do


Menino Jesús de Praga.

Tem sua origem na Espanha do séc. XVI. Com efeito, a


princeza Polixena de Lobkowitz levou da Espanha para Praga,
como presente de nupcias, urna estatueta de cera, que repre-
sentava um pequeño roi, que com urna máo segurava um globo

— 218 —
O MENINO .TKSUS DE PliAGA. 35

(segundo o estilo espanhol) e com a outra abencoava. Em 1628,


a princesa de Lobkowitz doou essa imagem as Carmelitas de S
Maria da Vitoria em Praga. Em 1638, tal imagem tornou-se
objeto de culto em toda a Boémia: atribuiam-se-lhe milagres,
conversóes e feitos maravilliosos. Um dos mais ardorosos apos
tólos desse fervoroso movimento de expansáo foi um religioso
chamado Cirilo da Máe de Deus (no século, Nicolau Schokwi-
lerg), que desde 1629 dizia ler sido largamente agraciado pelo
snu «Jesulein» (pequeño Jesús). Em 1G41, construiu-se em
Praga um oratorio, com urna ermida anexa, onde os fiéis po-
diam passar días de retiro. A estatua do Menino Jesús ai foi
entronizada em 1651 e coroada em 1655.

A irradiagáo da devo;áo ao Menino Jesús de Praga foi


enorme e duradoura até nossos dias. No século XVm, o racio
nalismo e a legislacáo josefista (José II da Austria era o «Im
perador Sacristáo», imbuido, porém, de racionalismo e prin
cipios antipapais) detiveram um pouco a difusáo da deyocáo
ao Menino Jesús de Praga: todavía nño a puderam impedir.

Scjam mencionados ainda

b) «II Santo Bambino» da igreja Araceli em Roma, con


feccionado no séc. XVI com lenho do horto das Oliveiras ou
Getsémani. É nao raro levado aos hospitais e casas de enfer
mos. Na épocas de Natal, torna-se especial objeto da piedade dos
fiéis:

c) na igreja de S. Andrea della Valle em Boma, sao vene-


ü'rudas outras duas imagens do Menino Jesús, assim como

d) na Casa das Salcsianas em Viterbo (Italia). Note-se,


alias que a cidade de Lucca (Toscana- se tornou um grande
centro de fabricacáo de «Bambini», que os fiéis levavam para
os seus oratorios particulares:

d) na igreja das Dominicanas de Altenhohenau (Austria)


existe urna estatua do Menino Jesús do séc. XVI:

c) o mesmo se diga com re'agáo ao santuario de Filsmoos


(Austria);

f) no mosteiro de Reutberg (Alemaiüia), enconüa-se


lambém urna estatua do Menino Jesús, muito venerada pelos
fiéis ai agraciados.

— 219 --
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1G1/1973

g) Na igrcja de Loreto em Salzburg (Austria), venera-se


o «Salzburger Jesulein» (o pequeño Jesús de Salzburgo), muito
visitado por peregrinos.

Pergunta-se agora:

3. Qual o sentido de tais devo^óes ?

Respondamos por etapas:

1) É lícito confeccionar imagens e estatuas do Senhor Je


sús e dos santos. Tais objetos nao sao o termo da adoragáo dos
fiéis, mas desempenham fungáo relativa: lembram Cristo e os
heróis que nos preccderam na vida presente, excitando assim os
fiéis á piedade.

2) Ao Senhor Jesús, como Deus, os cristáos pedem gragas;


aos Santos apenas rogam que intercedam pelos irmáos na térra
e assim lhes obtenham as gragas necessárias para chegarem,
também eles, á Casa do Pai.

3) Existe um só Senhor Jesús e, por conseguinte, um só


Menino Jesús. Os títulos que se lhe atribuem («de Praga, de
Viterbo, de Salzburgo...») apenas recordam manifestacóes
especiáis do Senhor aos seus fiéis — manifestagóes ocorridas
neste ou naquele santuario...
Pode-se entender que o Senhor Jesús, presente em toda
parte, queira tornar particularmente notoria a sua presenga
em determinado lugar. As criaturas humanas sao psicossomá-
ticas, constando de materia e espirito; por isto sao beneficiadas
em sua piedade se podem recorrer a sinais sensiveis para se
excitar na devoclo. A Biblia apresenta numerosos exemplos de
santuarios que o próprio Deus, já no Antigo Testamento, quis
assinalar com testemunhos especiáis de sua presenga e agáo
em favor dos homens; assim os santuarios de Betel, Mambré,
Dá, Jerusalém...

No Cristianismo pode-se crer que também haja lugares em


que Deus faz notar mais sensivelmente a sua benevolencia a
fim de convidar os fiéis a maior fervor e piedade.
4) De modo especial, pode-se crer que realmente em Pra
ga Cristo tenha dado o testemunho de sua misericordia aos
fiéis, atendendo a pedidos de gragas, derramando luzes de con-
versáo, etc. Cada fiel católico é livre para formar sua conscién-

— 220 —
O MENINO JESÚS DE PRAGA 37

cia a respeito. Caso julgue haver motivos para o fazer, ore ao


Senhor Jesús, tendo em vista a misericordia de Cristo manifes
tada a outros fiéis em Praga. Tal devo;áo é legitima.

5) É absolutamente necessário, porém, que a oracáo inspi


rada pela perspectiva de favores notorios ou extraordinarios
nao degenere em superstigáo e fanatismo. Deus, sem dúvida,
quer que oremos: «Pedi e recebereis; procurai e acharéis; batei
e abrir-se-vos-á», diz Jesús (Le 11, 9). Sabemos que nenhuma
oracüo bem feita é perdida; mas nao temos garantía alguma de
que, orando, seremos atendidos da maneira que estipulamos,
recebendo necessariamente o objeto que pedimos. Deus sabe
melhor do que nos o que nos convém; por isto pode atender ás
nossas preces nao nos dando o que rogamos, mas algo de equi
valente ou melhor, mais correspondente ao plano salvifico do
Pai.

6) Por fim, diga-se: é para desejar que a figura do Meni


no Jesús venerada em Praga nao limite os horizontes espirituais
dos fiéis devotos. Nao faga esquecer que Cristo veio ao mundo
para remir os homens do pecado e da morte. O ponto culmi
nante da vida de Cristo é a sua Páscoa (que inclui Paixáo,
Morte e Ressurreicáo).

Nao há dúvida, Cristo Homem deve pairar sempre ante


os olhos da mente do cristáo, porque a vida humana de Cristo
dá certeza aos fiéis de que a nossa vida humana hoje já foi
vivida e santificada pelo Filho de Deus até ñas suas circuns
tancias mais dolorosas. Todavía é preciso nao esquecer que a
humanidade de Cristo nos deve levar a Deus Filho, a fim de
que por Deus Filho vamos a Deus Pai. Em suma: «por Cristo
homem a Cristo Deus; por Cristo Deus (Filho) a Deus (Pai)>.

Vista no contexto de tais idéias, a devogáo ao Menino Je


sús de Praga nao degenerará em superstigáo, mas poderá ser
estímulo de piedade para os fiéis que a ela quiserem recorrer.

Bibliografía:

I. Noye, "Enfance de Jésus (dévotion)", em "Dlctlonnalre de Splrltua-


llté" t. IV.1. Paris 1960, cois. 652-682.
C. van Hulst, "Créche (dévotion)", Ib. II, 2. París 1953, cois. 2520-2526.
C. van Hulst, "Bambino Gesü", em "Encllclopedla Cattolica" II. Clttá
del Vaticano, cois. 771 s.
H. Klene, "Jesuskind, wundertátiges", em "Lexikon für Theologle und
Kirche", t. 5, Frelburg i./Br. 1960, col. 966.

— 221 —
Lima aparicáo em foco .

a senhora de todos os povos.,

Em síntese: As mensagens da Senhora de Todos os Povos lém sun


origem em urna serie de "aparifc'es do María Santíssima" a tima vidente
de Amslerdam (Holanda), enlre maico de 1945 e maio de 1959.

Anuncian) calamidades sobre o mundo, mudanzas na Igreja e apre-


sentam María SS. como Senhora de todos os povos, Co-Redentora, Media-
neira e Advogada. Estes títulos de María SS. deveriam ser objeto de novo
dogma a ser definido pelo sucessor do Papa Pió XII (ou seja, por
J060 XXIII).

Que dizer de tais "revelagóes"? — A Igreja admite a possibilldade de


auténticas revelagóes particulares. Aplica, porém, criterios rigorosos para
julgá-las; entre esses criterios, está a ortodoxia da doutrina professada
pela respectiva mensagem. Ora no caso da vidente de Amsterdam verítica-se
que é muito oportuno o despertar de fervor que ela pode suscitar nos leito-
res e no povo de Deus em geral. Todavia a predicSo de que María serta
solertemente proclamada Co-Redentora, Medíaneira e Advogada nao se cum-
priu; o Concilio do Vaticano II pronunciou-se discretamente sobre o assunto,
evitando acalorar os debates e as divergencias que nos anos de 1940/1960
se reglstraram em torno de tais títulos na bibliografía teológica. Ademáis
a justificativa que a vidente de Amsterdam aprésenla para a Mediacáo e a
Senhorla de María é fraca e estranha. É por tais motivos que julgamos
poder nfio atribuir crédito ás "revelacdes" doutrínárias de Amsterdam.
Dizendo isto, nio tencionamos depreciar em nada a genulna devocao a
Maria SS.

Comentario: Vém-se difundindo grandemente os opúsculos


e estampas aue transmiten! as mensagens de «Nossa Senhora
de todos os Povos». Tém por base 56 «aparigóes» da Virgem
Maria, ocorridas no decurso de quatorzc anos, ou seja, desde
25 de mar o de 1945 até 31 de maio de 1959 em Amsterdam
(Holanda): Maria SS., apresentando-se a uma vidente (que
desejou ficar no anonimato), ter-lhe-á feito diversas comunica-
cóes oráis; estas foram consignadas por escrito sob a assistén-
cia do confessor da vidente, que era o padre dominicano Frelie
O. P. As «aparigóes» deram-se geralmente em casa da vidente;
esta repetía o que ouvia, e a sua irmá se encarregava da reda-
gáo escrita das mensagens. Por fim, a vidente completou o texto •

__ 222 —
A SENHORA DE TODOS OS POVOS 39

oscrito. Este, ao monos ñas suas primoiras páginas, é um tanto


prolixo e, as vezes, obscuro ou hermético.

Em linhas gerais, tais mensagens aludem as calamidades


materiais e moráis que o mundo padece. A Virgem SS, porém,
promete o finí da era ancíustianie c a viuda do Espirito Santo:

"Sabei que o Espirito Santo está mais próximo que nunca; entretanto
só vira se o pedlrdes. Desde o inicio Ele já eslava, mas agora chegou o
seu tempo... Procuráis, tentáis aquí e acola. Também a isto a Senhora
dará urna resposta. É que o Paráclito integra tudo isto em sua obra. Sabéis
o que a Senhora quer dizer: Ele é Sal — Ele é a agua" (aparicSo 51a.
do 31/V/1955).

Maria SS. deverá ser reconhecida como a Senhora de todos


os povos, como Co-Redentora, Medianeira e Advogada; estes
tres últimos títulos haviam de ser especialmente proclamados
pelo S. Padre. Além disto, as aparigóes aludem a diversas na-
c5es (Alemanha, Franca, Inglaterra, Italia, Rússia...); também
aludem (segundo os intérpretes) ao Concilio do Vaticano II e
á reuniáo de todos os homens num só rebanho sob um só
Pastor:

"O Senhor e Rei quer conceder a unidade espiritual aos povos deste
mundo, é para isto que envia Miriam ou María — e a envia como Senhora
de todos os povos" (36a. visSo, 20/IX/1951). "Vlm dizer a este mundo
corrompido e desamparado: uni-vos todos! Vos, cristaos, reencontral-vos
uns aos outros junto ¿ Senhora de todos os povos I Asslm como vos en
contráis uns aos outros perto da cruz do Fllho!" (41a. vlsSo, 6/IV/1952).

A real presenca de Cristo na Eucaristía é particularmente


incutida — o que seria, como se julga, um eco antecipado da
onc:clica de Paulo VI «Mysterium fideb, a qual tinha em mira
desvíos doutrinários oriundos na Holanda sobre a Eucaristía. A
vidente também terá visto antecipadamente o S. Padre Paulo
VI e a visita do arcebispo de Cantuária, Dr. Ramsey, a S.
Santidade ocorrida em 1966.

No domingo 11 de íevereiro de 1951, a Senhora de todos


os povos ditou á vidente a seguinte oracáo:

"Senhor Jesús Cristo, Filho do Pai, enviai agora á térra o vosso


Espirito. Fazel que o Espirito Santo habite no coracáo de todos os povos,
a flm de que sejam preservados da corrupgao, das calamidades e da
guerra. Se]a a Senhora de todos os povos, que de Inicio fol María, a nossa
Advogada. Amém".

O aposto da frase final «que de inicio foi María» causou


estranheza ao Pe. Frehe e ás autoridades eclesiásticas que vi-

— 223 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

ram tal prece; na verdade, a Virgcm é e será scmpre María.


Por isto quiseram omitir tais palavras do texto a ser divulgado.
Em conseqüéncia, diz a vidente que numa aparigáo posterior
a Senhora confirmou, com tipo de imprensa, o texto da ora
gáo e apresentou a seguinte justificativa:

"Que de Inicio foi Marta significa: multas pessoas conhecem María


como María. Agora, porém, neste periodo novo que se inicia, eu quero ser
a SENHORA DE TODOS OS POVOS. Isto, todos o podem entender"
(2/VII/1951).

Já que nao se dissipavam as dúvidas sobre a discutida ex-


pressáo, a Virgem a terá novamente recomendado á vidente em
6/IV/7952:

"Dize aos teólogos que nao estou contente com as modificacóes da


oragáo. 'Que a Senhora de todos os povos, que de inicio foi María, seja
nossa Advogada', deve flcar asslm. O Senhor e Criador escolheu entre
todas as mulheres Miriam ou Maria para MAE do seu Divino Filho. Ela
velo a ser a SENHORA no sacrificio da cruz..."

A vidente descreveu ao pintor alemáo Heinrich Repke os


tragos da «Senhora de todos os povos» que lhe aparecía: esta
pisa o globo terrestre; em torno da térra vé-se urna multidáo de
ovelhas q;ue representam todos os povos; das máos da Senhora
jorram raios; por tras da mesma aparece a Cruz do Salvador,
e, á guisa de auréola, ao redor da cabega da Senhora, lé-se:
«De Vrowe van alie Volkeren» (A Senhora de todos os povos).

O trabalho do pintor sofreu numerosos retoques para me


recer finalmente a aprovagáo da vidente em 1951. O Sr. Bispo
de Haarlem, D. J. P. Hulbers, em cuja diocese se davam os
fatos, levantou dificuldades para permitir a divulgagáo de tal
imagem. Chegou mesmo a retirar a licenga anteriormente con
cedida para tanto, pois foi aberto um processo sobre a autenti-
cidade das aparigóes da Senhora de todos os povos em 1955.
Finalmente a estampa, juntamente com a oragáo «revelada pela
Senhora», foi entregue ao uso do público; o texto, traduzido
para 32 linguas, está sendo espalhado com a respectiva estam
pa pelos mais afastados recantos do mundo.

Já que as mensagens da Senhora de todos os povos tém


despertado interesse e também certa perplexidade, as páginas
seguintes proporáo algumas reflexóes sobre as mesmas, no
intuito de ajudar o leitor a se orientar diante das interrogagóes
que o caso tem suscitado.

— 224 —
A SENHORA DE TODOS OS POVOS 41

1. Revelogóes particulares

A fé católica nao recusa admitir que Deus, por soberana


e gratuita disposigáo, possa permitir a aparigáo de algum santo
ou personagem defunto aos viventes deste mundo. Tais apari-
goes sao chamadas «aparigóes ou (quando trazem mensagem)
revelagóes particulares», para se distinguirem da Revelagáo
pública, que o Senhor Deus fez através da Tradigáo oral e das
Escrituras Sagradas.

Para se julgar a autenticidade de alguma apanga» ou re


velagáo particular, aplicam-se determinados criterios, que po-
dem ser assim compendiosamente recenseados:

1) A «aparigáo» há de ser espontánea, isto é, nao provo


cada por algum «despacho, trabalho» ou artimanha. Os viven-
tes deste mundo nao tém faculdades sobre os seus irmáos que
partiram da vida presente, de modo a poder constrangé-los a
«voltar» ou aparecer na térra. Os cristáos podem, sim, pedir a
Deus a intervengáo ou intercessáo dos santos, mas nao a po
dem desencadear. — Nisto o catolicismo se diferencia essencial-
mente do espiritismo e da umbanda, que julgam ter receitas ou
passes capazes de atrair a interferencia dos defuntos ou «de
sencarnados».

2) A finalidade de urna aparigáo de santo (a), quando


permitida por Deus, é a confirmagáo dos homens na fé e nos
bons costumes. Deus nao realiza portentos ou milagres sem
objetivo serio e proporcionalmente imperioso.

3) Caso os dizeres de urna revelagáo particular destoem


dos artigos da fé católica e das retas normas da moral, tal «re
velagáo» é comprovadamente falsa; será fenómeno parapsico-
lógico (projegáo da personalidade subjetiva do vidente) ou pro-
duto de intervengáo diabólica (o que se pode crer seja mais
raro).

4) «Pelos frutos se conhece a árvore» (cf. Mt 7, 15-20).


Por conseguinte, se de urna determinada aparigáo decorrem
frutos positivos, principalmente no campo espiritual (conver-
sóes á fé, ao fervor da piedade, mudanga de vida moral...),
tem-se indicio de provável autenticidade dessa aparigáo. Tam-
bém sao criterios positivos e abonadores: a virtude dos viden
tes, sua fidelidade á reta doutrina, sua humildade, sua obedién-

— 225 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

cia as legítimas autoridades da Igrcja, seu desapego de dinheiro


e vantagens materiais...

5) Nos últimos anos, tem-se multiplicado o número de


ditas aparicóes sobrenaturais. Nao poucas destas foram poste
riormente comprovadas como efeitos de imaginacáo fértil, su-
gestáo forte, alucinacáo patológica ou embuste dos «videntes».
Dai a cautela com que as autoridades da Igreja procedem
quando se anuncia alguma visáo sobrenatural.

6) Ainda que haja sinais positivos em favor de determina


da aparigáo, esta nunca se impóe obrigatoriamente <a fé dos
cristáos; quem nao a quer aceitar, nao a aceite. As auténticas
revelacóes particulares nao podem apresentar novas verdades
de fé, mas apenas por em relevo proposicóes e normas já coñ
udas na perene mensagem do Cristianismo (necessidade de
penitencia, conversáo, oragáo, funcáo de Maria SS. no plano re
dentor de Deus...). Em geral, contém proposigóes e exortagóes
que visam a reafervorar o povo de Deus abatido ou angustiado.

Sob a luz destas ponderales, lancemos um olhar para os


fatos relacionados com a Senhora de todos os povos.

2. A mensagem da Senhora

Alguns pontos das revelagóes feitas á vidente de Amster-


dam chamam a atengáo do estudioso e do teólogo:

1) A énfase com que é prometida a efusáo do Espirito


Santo O fato de Pentecostés ocorrido no inicio da era crista
parece nao ter sido suficiente e definitivo — o que seria erróneo
pensar. Tenham-se em vista as seguintes declaracóes atribuidas
á Senhora:

"Dlze o segulnte: O TEMPO É CHEGADO. O ESPIRITO SANTO DEVE


VIR A TÉRRA" (44a. vlsao, 8/XII/1952).

"ISTO AGORA É O TEMPO DO ESPIRITO" (43a. vlsao, 5/X/1952).

"Ambos agora (O Pal e o Fllho) querem ENVIAR O SANTO' EVER-


DADEIRO ESPIRITO. So Ele pode trazer a paz" (33a. vIsSo, 31/V/1951).

2) Com grande realce a mensagem promete o envió de


Maria — o que é ambiguo:
"Agora o Pal e o Fllho quer enviar a Senhora, enviá-la ao MUNDO
INTEIRO. Pola fol ela que outrora PRECEDEU o Fllho: fol ela que o SEGUIU.

— 226 —
A SENHORA DE TODOS OS POVOS 43

Por esta razáo estou AGORA em pé sobre o mundo — o globo —; e a


cruz está nele sólidamente flxada e PLANTADA. De novo, a Senhora vem
pór-se em pé dlante da cruz, na qualldade de Máe do Fllho : a Máe que
com Ele cumprlu a obra da RedengSo" (31a. vIsSo, 15/IV/1951).
"Vou dlzer-te por que me aprésenlo sob esta forma: EU SOU A
SENHORA EM Pé OÍANTE DA CRUZ. A cabega, as mSos, os pés, asse-
melham-se aos dos homens; o resto do corpo, porém, dá testemunho do
Espirito. Porque o Fllho velo por vontade do Pal. E AGORA é O ESPIRITO
QUE DEVE VIR AO MUNDO. E eu venho a flm de que rezem neste sentido"
(28a. vIsSo, 4/111/1951).

3) Nao poucos tragos da mensagem sao estranhos c pare-


cem exprimir mais fantasía do que auténtica revelagáo sobre
natural. Levem-se em conta os seguintes dados:
"A Senhora aparece, tendo nos bracos urna crlanca. Depois, como
se houvesse súbitamente desoldó, el-ia a(, de pé sobre o globo. E o globo
glra-lhe debalxo dos pés. Ela me fita e diz: 'Vem! Segue-me1. Eu a sigo.
É como se estlvéssemos a percorrer o globo. A Senhora volta-se para mlm
e. designando o Menino, diz: 'É ele que eu quero novamente levar ao
mundo1. Ao dizer Isto, sua cabega oscila sem cessar da esquerda para a
dlrelta e da dlrelta para a esquerda.

Eu considero o Menino; mas já nfio ó um Menino; o Menino trans-


formou-se numa Cruz. A cruz cal por térra e quebra-se. Eu vejo o mundo.
O mundo iaz coberto de trevas. A Senhora diz: 'Leval-o DE NOVO para
este mundo I' Ela designa a Cruz. A Cruz está erguida no lugar central do
mundo Urna multldao a rodela. Véem-se all pessoas de toda especie; todas,
porém, esqulvam-se da Cruz. EntSo sou tomada de urna extrema fadlga.
Quelxo-me disso á Senhora. Ela me responde com um sorrlso.

EntSo eu vi: a Senhora aflgura-se-mo agora como sentada numa


especie de trono: e o Menino, de quem emana urna grande luz, descansa
em seus loelhos. Ela diz: 'Antes de mals nada, voltal para ele. Só entao
viré a PAZ VERDADEIRA'" (9a. vlsáo, 29/111/1946).

Ou ainda:

"Sucedeu depois disto um lato bem estranho. Do globo tenebroso,


surqlram cabecas humanas em grande número. E homens de toda especie
sublam lentamente das .profundezas. E els que, de súbito, vl-os todos agru
pados na superficie do hemisferio. E eu dlzla de mlm para mlm, ao con
templar aqullo: como ó posslvel que haja tanta dlversldade, tantas ragas
entre os homens I

Entfio a Senhora estendeu as máos sobre a multldao e pareceu aben-


goá-la...

E a Senhora de repente desapareeeu; e o que a substltulu fol urna


Imensa Hostia. Urna hostia enorme, mas comum, felta com pfio ázimo,
semelhante ás que se véem na Igreja.

Depois disto, dlante da hostia velo um cálice. Era de um ouro mara-


vllhoso. O cálice entornou-se na mlnha dlrecfio. Um rio de sangue dele

— 227 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

jorrou. Ríos de sangue. O sangue derramou-se pelo globo e escorreu sobre


a térra. Aqullo durou tempo conslderável. E o sangue corría em torrentes
incessantes. Eu estava 'tomada de horror.

Bruscamente a visao apagou-se, ou antes transformou-se na de urna


só hostia, porém táo esplendorosa de luz que, mais urna vez, precisel
proteger-me os olhos com as máos. E também desta feita sentl-me obri-
gada a olhar o claráo ofuscante. Fitei a hostia. Ela me pareceu entáo ser
como um fogo ordinario, porém branco. No centro, havia algo como urna
pequeña abertura — urna ruptura — nem sel bem como descrever Isso.

De repente, aconteceu como se a hostia explodisse. Déla saiu urna


figura. Urna Pessoa que (lutuava: Alguém. Tinha um aspecto táo sublime,
dele emanava um tal poder, ¡rradlava urna tal majestade que, tomada de
medo, eu mal me atrevía a olhar.

E enquanto contemplava este Ser, este Ser único, algo interior me


instlgava de continuo a pensar: E todavía eles sao DOIS. Eu, porém, nada
mais vía do que UM.

A advertencia durou tanto quanto a visao: E todavia eles sao DOIS.

E eis que, NO MEIO DELES, jorrou urna luz. NO MEIO DELES, slm,
urna luz Inefável e, nesta luz, urna Pomba. Salda como o coriseo, ela pre-
clpltou-se em dlregSo ao globo, numa IrradiacSo indizível de táo intensa
claridade que, pela terceira vez, precisei proteger-me os olhos com a máo.

Embora sentlsse os olhos magoados e a arderem-me, sentl-me nova-


mente obrigada a olhar. Que gloria, que potencia emanava de tudo aqullo!
Duma parte, ELE-DOIS, a Figura flutuante, ñas irradiares de sua majes
tade sublime; doutra parte, o mundo, agora Iluminado I" (56a. vlsáo,
31/V/1958).

O leitor mesmo julgará o que estas visóes possam ter de


estranho e fantasista.

3. A Medianeira e Advogada

1. É notoria a insistencia com que a mensagem da Se-


nhora de todos os povos pede a proclamagáo de María como
Co-Redentora, Medianeira e Advogada. Assim, por exemplo,
refere a vidente as seguintes palavras colhidas na 31» visáo,
aos 31/V/1951:

"Els que venho; estou aquí em pé, e venho para dizer-te que quero
ser María, a Senhora de todos os povos.

Presta atencSo e vé : Eu me mantenho em pé dlante da cruz do Re


dentor; a minha cabeca, as mlnhas mSos, os meus pés assemelham-se aos
dos homens; em meu corpo, ressalta a natureza do Espirito.

— 228 —
A SENHORA DE TODOS OS POVOS 45

Tenho os pés firmemente apolados no solo, porque o Pal e o Fllho


quer, nos dias de hoje, enviar-me ao mundo na quatldade de Co-Redentora,
Medianeira e Advogada. E ta! será o objeto do novo e derradeiro dogma
mariano".

Aos 6 de abril de 1952 (41» visáo), voltava a Senhora a


falar;

"Dlze aos teólogos: a Senhora estava presente ao sacrificio da cruz.


O Filho disse á sua máe: 'Mulher, els o teu filho'. Destarte, ao sacrificio é
que remonta esta transmutacao.

O Senhor e Criador escolheu, dentre todas as mulheres, para ser


Máe do seu Divino Fllho, Miriam ou Maria. Ela passou a ser a Senhora,
Co-Redentora e Medianeira, ao consumar-se o sacrificio da cruz. E foi o
Filho quem o proclamou, no instante de retornar a seu Pal.

Eis por que na hora presente estou revelando este nome e dizendo:
Eu sou a Senhora de todos os povos, que de inicio fol María. Dize isto aos
teólogos. E tal é, para os teólogos, o sentido destas palavras.

O tempo atual é o nosso tempo.

O novo dogma, urna vez promulgado, será o último dogma mariano:


a Senhora de todos os povos, Co-Redentora, Medianeira e Advogada. Fol
para o mundo inteiro que, na hora do sacrificio da cruz, o Filho fez
outorga deste titulo. Portanto quem quer que sajáis ou o que quer que
tacáis, eu sou para vos a SENHORA".

2. Diante de táo enfáticas recomendagóes do novo dog


ma mariano, pergunta-se: que diz a teología atualmente sobre
a Mediagáo de Maria na Redengáo do género humano?

No sáculo passado, e mais aínda no século XX, foi tomando


vulto na bibliografía teológica a tese de que Maria é Medianei
ra de todas as gragas distribuidas aos homens ou mesmo Co-
-Redentora. As maneiras de explicar tais atributos da Virgem
SS. eram variadas e múltiplas; algumas chegavam a exagerar
as fungóes e prerrogativas de Maria, nao ressalvando devida-
mente o inconfundivel sacerdocio de Jesús Cristo; a piedade
mañana foi assim perdendo contato com as suas fontes bíbli
cas e tradicionais.

Em 1940-1960 houve mogóes de bispos, sacerdotes e fiéis


católicos que pleiteavam da Santa Sé a definigáo de que Maria
é a Medianeira de todas as gragas, a Co-Redentora com Cristo...;
os teólogos, em livros e artigos que se avolumavam, procuravam
estudar em que sentido exato se poderiam entender tais títulos
da .Virgem SS. — Sobreveio o Concilio do Vaticano II (1962-
-1965). Este d'eixou aos fiéis católicos um capítulo dedicado a

— 229 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

María (cf. Const. «Lumen Gentium» c. 8). Neste texto sao exal
tados os predicados e o papel que a S. Escritura e a antiga
Tradicáo atribuem á Virgem Máe na obra da Redencáo. A ex
pressáo «Medianeira de todas as gracas» ai nao se encontra
como tal; era relativamente nova e nem sempre clara entre os
teólogos. O título «Maria Medianeira» sofreu forte oposigáo por
parte de bispos e teólogos do Concilio. Finalmente foi aceito em
justaposicáo com outros predicados («Advogada, Auxiliadora,
Protetora, Medianeira»), de modo que perdeu no texto conciliar
o seu significado técnico e sujeito a ser controvertido. A media
gáo de Maria é admitida como continuagáo de sua maternidade.
Com efeito, a fungáo maternal de Maria em relagáo a Cristo
explica que ela possa ser tida como Máe, Auxiliadora, Prote
tora, Advogada e Medianeira dos membros de Cristo Místico
ou dos cristáos. Todavía — frisou bem o Concilio — tais fun-
góes de Maria nao derrogam em absoluto á mediagáo sacerdotal
de Jesús Cristo; mas, ao contrario, derivam-se desta como fru
tos e expressóes da mesma. Eis a passagem do Concilio que vem
ao caso:

"A maternidade de Marta na dispensado da grasa perdura inlnter-


ruptamente a partir de consentimento que ela fielmente prestou na Anun
ciadlo, que sob a cruz resolutamente sustentou, até a perpetua consu-
macáo de todos os eleitos. Assunta aos céus, nao abandonou este salvf-
fico encargo, mas por sua múltipla IntercessSo prossegue em granjear-nos
os dons da salvando eterna. Por sua maternal carldade cuida dos irmSos
de seu Filho, que ainda peregrinam rodeados de perlgos e dificuldades, até
que sejam conduzldos á feliz patria. Por Isso a Bem-aventurada Virgem
Maria é invocada na Igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Prole-
tora, Medianeira. Isto, porém, se entende de tal modo que nada derrogue,
nada acrescente á dlgnidade e eficacia de Cristo, o único Mediador" (Const.
"Lumen Gentium" rfl 62).

Em suma, a maternidade de Maria, perdurando através dos


séculos em relacáo a Cristo Místico, significa igualmente me
diagáo ininterrupta na distribuigáo da graga obtida pelo Re
dentor. Nota muito a propósito o Padre J. Balot:
"Será preferfvel, ao admitir a legitimldade do vocábulo 'medianeira',
fazer sobressalr a maternidade de Maria e da Igreja. A [déla de uma
colaboracáo maternal para o nascimento e a educacáo dos cristSos surge
notavelmente mais rica do que aquela da medlacáo na dlstrlbuigSo das
gracas. Esta última expressáo representarla a graca mals como uma colsa,
enquanto as relagdes pessoals se revelam principalmente na nocáo de
maternidade. Nao é falso reconhecer em Maria a Intermediaria que con
corre para a concessSo das gracas divinas, mas é mais verdadeiro aínda
encontrar nela a m8e que vela pelo desenvolvlmento da vida espiritual de
seus fllhos. E, a exemplo da Virgem, a Igreja se torna mals próxima de
nos com o titulo de m3e do que com o titulo de medlaneira" ("A Igreja
do Vaticano II". Petrópolls 1965, p. 1184).

— 230 _
A SENHORA DE TODOS OS POVOS 47

3. Voltando agora a considerar as revelacóes de Amster-


dam, verificamos que dependiam das circunstancias da época
em que foram feitas; exprimiam o modo de pensar de muitos
fiéis católicos de 1940-1960, mas nao correspondían! ao que
haveria de acontecer. Nao somente nao se deu a definicáo
dogmática dos títulos marianos preconizados pela mensagem
de Amsterdam,l mas atualmente, após o Concilio do Vaticano
II, nem os teólogos nem o magisterio da Igreja pensam em pro
mover a definicáo de novo dogma mariano. Tem-se, mais do
que nunca, consciéncia de que as definieres papáis ou concilia
res sao pronunciamentos do magisterio dito «extraordinario» da
Igreja; para que determinada proposieáo possa ser tranquila
mente professada pelo povo de Deus, nao é necessário que o
magisterio extraordinario a defina, mas basta seja reconhecida
com unanimidade pelos bispos unidos ao Sumo Pontífice.

Estas consideragdes lancam em certo descrédito as noti


cias da vidente de Amsterdam relativas á Medianeira. Pode-se
dizer que nao foi María SS. quem comunicou tal mensagem,
mas foi a própria vidente quem (inspirada por quanto se dizia
em seu tempo) a formulou.

Ademáis a fundamentacáo teológica que tal mensagem


apresenta em favor dos títulos marianos de «Senhora, Co-
-Redentora, Medianeira e Advogada» é sujeita a reformulacáo.
Com efeito, diz a vidente:

"María passou a ser a Senhora, a Co-Redentora e Medianeira, ao


consumar-se o sacrificio da cruz. E foi o Filho quem o proclamou, no Ins
tante de retornar a seu Pai".

Numa visáo teológica apurada, nao se vé por que assinalar


com tanta precisáo o momento em que María terá recebido tais
títulos. É, antes, todo o teor da vida e da missáo de María
(desde o sim dito ao Mensageiro da Anunciagáo) que a torna
Máe, Senhora, Auxiliadora e Medianeira. A principal prerroga
tiva de María SS. é a Maternidade divina; a sua mediacáo na
obra da Redencáo há de ser vista estritamente a luz deste titulo
máximo da Virgem Máe.

'Na 54a. vIsSo (19/11/1958) a Senhora terá dito & vidente:


"O sucessor de Pió XII promulgará o Dogma (da Co-Redentora, Me
dianeira e Advogada)".

Ora o Papa Jo§o XXIII, que sucedeu a Pío XII, nfio promulgou
dogma algum.

— 231 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 161/1973

4. Conclusao

A mensagem da vidente de Amsterdam é válida e aceitável


na medida em que constituí um despertar de consciéncias e urna
exortagáo á conversáo para Deus e lá pureza de vida. Parece,
porém, temerario atribuir á Virgem SS. os dizeres da mensa
gem. Esta é fantasista demais para poder ser tida como autén
tica revelasáo do Céu; traz o estilo hermético e imaginativo
que muitas vezes caracteriza a literatura apócrifa antiga e
moderna.

Este julgamento nao pretende derrogar em absoluto ao


valor da devogáo a Maria SS. Nem seja tido como desestímulo
da auténtica piedade. Apenas tenciona fornecer ao leitor os
meios para distinguir «mensagens do Além», a fim de que te-
nha urna fé e urna vida de oragáo firmadas sobre os sólidos
fundamentos da Palavra de Deus, e nao sobre concepgóes de
videntes nao autenticadas.

A mensagem da Senhora de todos os povos encontra-se em opúsculos


de H. A. Brouwer a.a. (C.p. 285, Porto Alegre, RS) e Raoul Auclair (C.
p. 310, Rio de Janeiro, GB).

Estévao Bettencourt O.S.B.

carta aos amigos


Da Cidadc Santa üe Jerusalém, onde a Providencia Divina, por
meio da bondade de amigos, me quis proporcionar o ensejo de estudos
e reciclagem, desejo enviar aos leitores de nosso PR as mais efusivas
saudacSes e o testemunho de que lhes continuo muito unido através
do espaco.

Vivemos numa fase da historia da Igreja e da humanidade em que


os contatos humanos o os confrontos de idéias se fazem especialmente
necessários e enriquecem a agáo dos individuos e dos grupos. Os en-
contros com pessoas que só conheciamos á distancia e a contemplagao
de novas facetas da natureza (montanhas, océanos, animáis e flores...)
manifestam-nos de novo modo os vestigios do Criador e sua acao
eficaz também em nossos dias. Teria muita coisa a dizer aos amigos
á guisa de eco das vivencias dos últimos meses. Espero fazé-lo paula
tinamente nos próximos números de PR.

1. Como muitos dos leitores sabem, Uve a oportunidade de par


ticipar do 40' Congresso Eucaristico Internacional realizado em Mel-

— 232 —
bourru» (Australia) de 18 a 25 de feveroiro pp. Este certame de íé
tove suas notas próprias, que poderiamos assim resumir:
O número de peregrinos nao foi tüo avultado quanto em Con-
gressos anteriores — o que se explica dada a distancia geográfica
que separa a Australia do resto do mundo. Nao obstante, vlam-se
Cardeais, bispos, sacerdotes e fiéis de todas as partes do globo... Essa
assembléia na parte mais jovem do mundo (a Australia tem apenas
200 anos de vida política) devia significar a presenca da Igreja Cató
lica naquele distante continente, presenca táo atuante quanto no Velho
Mundo. Na verdade, o Congresso Eucaristico implicou urna renovacáo
e intcnsificagüo da vida católica na Australia: durante meses a fio, as
paróquias e comunidades religiosas se prepararam para o grande en
contró mediante estudo e trabalho assíduos. O variado programa da
semana do Congresso (Missas, conferencias. exposicñes, encontros...)
rovelava densidade de vida católica. Os cantos coráis e as cerimónias
foram executados com dignidade c harmonía, que bem traduziam o
espirito británico posto a servico do Scnhor e do Evangelho.
Notou-se na programacáo do Congreso urna forte preocupagáo
ecuménica. Os católicos representam apenas 25% da populacáo da
Australia. Constituem. porém, urna minoria dialogante: as autoridades
religiosas protestantes e ortodoxas, bem como membros do Governo
do país, estiveram presentes a diversas funedes do Congresso. Ñas
comissdes organizadoras do mesmo, colaboraram cristáos nao cató
licos (nao no tocante á orientagáo doutrinária, mas no setor do atendi-
mento social). Em exposieñes, cartazes e programas era muito enfati
zada a cooperagao dos crlstáos em prol da justiga social e do alivio ás
populachos que sofrem de íome, desabrigo, molestias, analfabetismo...
Dentre os atos litúrgicos da semana, destacaram-se:
a inauguragáo do Congresso, na bela Catedral de S. Patricio,
sob a presidencia do Cardeal Lawrence Shehan, arcebispo de Baltimore
(U.S.A.) e Legado papal;
— a Liturgia dos aborígenes, no sábado 24/11. Foi entSo celebrada
urna Missa em que os primitivos habitantes da Australia executaram
suas melodías típicas e representaram artísticamente a Última Ceia
do Senhor. O ato foi altamente original: constituiu urna tentativa de
aculturagáo ou adaptagáo da arte de povos primitivos á Liturgia cató
lica, sem detrimento para a devida reverencia;
— a Missa das Escolas, da qual cerca de 100.000 estudantes de
diversas cidades da Australia participaran! ativamente, cantando e
aclamando;
o Culto Ecuménico, realizado no Grande Estadio de Melbourne
com a presenga de representantes das comunidades anglicanas, pro
testantes e ortodoxas do país. Entre leituras, cantos e preces, todos
os fiéis presentes, de velas acesas na máo, renovaram as promessas
do batismo e recitaram o símbolo da fé;
— a Missa de encerramento, no domingo 25/11, ás 18 h, também
dita «Statio Orbis», ou seja, assembléia litúrgica do mundo inteiro.
Foi inegavelmente o digno fecho e o ponto alto da semana. Comecan-
do ás 18 h. esse ato terminou ao por do sol, pois a luz do día no
veráo de Melbourne se fazia sentir até as 20 h 30 mm. — Nao houve
procissáo de encerramento, em vista do ambiente fortemente protes
tante da cidade, mas após a Missa realizou-se breve paraliturgia: um
jovem, um anci&o, urna mulher e um representante de Cristo fizeram
a proclamacao de palavras do Senhor no Evangelho, que exortavam
os cristáos a confiarem no Mestre e a se dedicarem á obra do Senhor
neste mundo que d'Ele tanto necessita. Tal proclamacao foi acom-
panhada pelo toque de trombetas por parto de marinheiros austra
lianos, que, segundo o estilo bíblico, bom lembravam o juizo final.
Tal cenário suscilou as palmas entusiásticas da densa assembléia de
115.000 pessoas, que assim puseram o tormo linal ao Congresso.

Deste notável certame de fe nos resta urna mensagem perene


compendiada ñas palavras de Cristo tomada como tema-programa do
Congresso e constantemente repetidas ñas alocucóes da semana. «Amai-
•vos uns aos outros como Eu vos amei¿ (Jo 15,12).

«Como Eu vos amoi...» K nesle termo do comparacao quo eslao


a forca e a novidade das palavras de Cristo. Os homens de bom senso
compreendem som grande dificuldade que devem amar uns aos outros.
pois todos sao irmáos entre si. Mas o que lhos podo cuslar, ó seguir
o exemplo de Cristo, quo amou a ponto do dar a vida por seus amigos
e inimigos. Tal exomplo ó sobro-humano ou divino. Como podoria o
lioinom, deixado a si rnosmo, pó-lo i-m práliea? Cristo, porém, sahin
o que dizia: se propós aos sous discípulos um tal p<uk;üo de amor ira
torno, deulhes simultáneamente a fontu. do- atnfír e4 da vida, quo 6 a
S. Eucaristía'. É nesta que os.-orisUtos .pgdem "hauriK.asVQrcas necessá-
rias'.para amar realmente 'todo^o's.seuSft.irtpSb^j;- ínesmo,Os que llii*
querem mal. Tal ámórfraterh9/há?'dev»SL4\anota;'tip.ica;vdó compocta-
mento dos discípulos de Cristo nesXe-ímVpiíó/Ke'dunda^em'maior. uni-
dade entre os filho's do mésmo" Pai e mais viva; com preensffó do sofri-.
mentó alheio! l . ' ■".' '
2. A segunda grande experiencia destes últimos tempos tem sido,
para este irmáo, o contato com a Terra'S^nta, que vem a ser contato,
mais vivo com a palavra de Deus e com' todo o plano salvífico que
aqui se vem desenrolando desde .os tempos de Abraáo, ou melhor.
desde a pré-história, quando aqui vivía o homem do Carmelo ém
cavernas aínda hoje patentes.

Jerusalém está na regiáo limítrofe de tres continentes: a Asia,


a África e a Europa. As tres grandes religiocs monoteístas do globo
— o Judaismo, o Cristianismo e o Islamismo — aqui tém seus prin
cipáis santuarios. Em conseqüéncia, pode-se dizer que Jerusalém é
verdaderamente o centro do mundo, como costumavam afirmar os
antigos rabinos. Nao foi, portanto, sem especial motivo que a Pro
videncia Divina quis escolher esta cidade e as térras vizinhas para
fazer ouvir a Palavra feita carne ou a Boa Nova da salvacüo para o
mundo inteiro. Ó admirável Sabedoria de Deus, que aprendemos a
descobrir todos os dias um pouco mais, até que a possamos contem
plar um dia facc-a-faee!

Meus caros amigos, voltaremos a rcfletir sobre a mensagem desta


térra venerável. Na Semana Santa, que ontem inauguramos percor-
rendo o caminho que Jesús trilhou de Betfagé a Jerusalém, estarei
unido a todos os irmáos em Cristo pela oracáo. De modo especial,
desejo deste modo testemunhar a minha profunda gratidáo ao Depu-
tado Alvaro Valle e ao Dr. Eduardo Portella Netto, que, após o Con-
gresso Eucaristico de Melbourne, me possibilitaram esta permanencia
na Térra Santa. Em julho pf., se Deus quiser, estarei de volta no
Brasil. Entrementes, PR continuará a sair regularmente, contando
sempre com a colaboracáo dos seus leitores e amigos.

O irmño em Cristo

Estéváo Bettcncourt O.S.IÍ.

Jerusalém, 16 de abril de 1973

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