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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsíTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
' visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
%_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
.. dissipem e a vivencia católica se fortaleca
*" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice
P&B-

EVANGELIZAQAO 365

Em Petrópolls, Julho 1974:


FILOSOFÍA AÍNDA VALE EM NOSSOS DÍAS ? 367

Quem sao ?
OS BATISTAS OUTRORA E HOJE 377

"Receber Ciisto como Salvador"... onde?


Qual é a Igreja de Cristo ? 386

Mística maometana:
O SUFISMO : QUE É ? 392

Documentarlo:
E A MORTE DO CARDEAL DANIÉLOU ? 405

A TÉRRA DE ISRAEL EM FOCO


V. Jerusalém : o Santo Sepulcro 409

ESTANTE DE LIVROS 411

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Aínda Mojonaría e Igreja. — Igreja e pobres. — Frederico Ozanam


e os Vicentinos. — Caridade ou ¡ustiga ?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual Cr$ 40,00


Número avulso de qualquer mes Cr$ 5.00
Volumes encadernados de 1958 e 1959 (prego unitario) ... Cr$ 35,00
índice Geral de 1957 a 1964 Cr$ 10,00

EDITORA LAUDES S. A.

BEDAQAO DE PR ADMINISTRAC&O
Caixa Postal 2.666 Rúa Sao Rafael, 38, ZC-09
ZC-00 20000 Rio de Janeiro (GB)
20.000 Rio do Janeiro (GB) Tels.: 268-9981 e 268-2796

Na GB, a Rúa Real Grandeza 108, a Ir. Maria Rosa Porto


tem um depósito de PR e recebe pedidos de assinatura da
revista. Tel.: 226-1832.
EVANGELIZADO
O mes de outubro 1974 é assinalado, entre outros marcos,
pela reuniáo do Sínodo Mundial dos Bspos em Roma: repre
sentantes do episcopado do mundo inteiro estudam entáo con
juntamente as questóes relacionadas com o anuncio da Boa-
-Nova (Evangelizacáo) aos homens de hoje, cujos interesses e
pressupostos se váo diferenciando cada vez mais dos de -lem
pos idos.

Os fiéis católicos ou mesmo os povos do mundo inteiro


háo de se sentir interpelados por esse esforgo de diálogo que
a Igreja deseja alimentar com a humanidade contemporánea,
táo sacudida por problemas de pressóes, seqüestros, inflagáo,...
táo capaz de descrever seus males, mas aparentemente táo
obscurecida frente Áquele que decisivamente lhe pode levar
remedio.

A medida que o cristáo recebe as noticias que diariamente


a imprensa lhe comunica, sente-se movido a urna resposta ainda
mais lúcida e eficaz. Nao é o abatánente que o invade, mas,
sim, a consciéncia do papel que lhe toca frente aos apelos dos
tempos! Nao quis o Cristo que seus disc'pulos fossem o sal da
térra e o fermento na massa ? Cf. Mt 5,13 ; 13,33.
Para ajudar o cristáo a dar a sua resposta (e á guisa de
contribuicáo para o Sínodo Mundial dos Bispos), a Conferencia
Nacional dos Bispos do Brasil, por meio da sua Comissáo Re
presentativa reunida em agosto-setembro pp., elaborou impor
tante documento, do qual interessa aquí salientar alguns tópicos:
"89. Evangelizacáo é fazer ver a Novidade do Evangelho.
Torna-se difícil a conversáo quando nao é mais percebida esta
Novidade (Boa Noticia) do Evangelho. A palavra de Deus con
verte e congrega no momento em que visa urna atitude de
encarnagáo na vida. Palavra-Acontecimento".

Em outros termos, este 'texto quer dizer que o cristáo nao


poderá evangelizar se nao encarnar em sua vida a novidade do
Evangelho ou se nao se renovar interior e exteriormente. Posso
entáo perguntar-me hoje pungentemente: «Quem é Jesús
Cristo para mim? A minha vida seria diferente se eu nao acre-
ditasse nele? A minha fé em Cristo é capaz de me fazer pensar
e agir diversamente daqueles que nao acreditam em Jesús ?»
Em outro ítem, o mesmo documento exprime o seguinte
voto :

— 365 —
"10. Que o Sínodo faga um apelo veemente para que os
leigos assumam a sua responsabilidade terrena e secular na-
queles problemas decisivos próprios de sua missáo laical".

Isto quer dizer: os leigos trabalham ñas profissóes liberáis,


nos meios de comunicacáo social, na política, ñas escolas, ñas
fábricas... Quem há de santificar esses diversos setores da
vida contemporánea se nao o próprio médico, o radialista, o
repórter, o deputado, o professor, o operario..., que um dia
descobriram o Cristo e foram por Ele empolgados e impelidos
a viver o seu Cristianismo 24 horas por dia ?

Por fim, parece oportuno transcrever também as notas


da auténtica evangelizagáo esbogadas pelo mesmo documento :

"Como criterios de discernimento... da presenga de Deus


e do seu designio, enumeramos :... a uniao com a hierarquia
em todos os níveis e instancias: Bispo, Conferencias Episco-
pais e, como criterio último, a uniáo com o Papa; ...humil-
dade, espirito de oracáo, obediencia" (n<? 58).

A propósito, acontece que precisamente neste mes de outu-


bro se dá a visita do pregador batista Billy Graham ao Brasil:
vem «evangelizar» com palavra viva e arrebatadora... Com-
preende-se que os cristáos sintam a ansia de pregar o Evange-
Iho já experimentada por Sao Paulo: «Ai de mim, se nao evan
gelizar !» (1 Cor 9,16). Todavía nao se pode esquecer que, como
só há um Cristo, assim só há tima Igreja de Cristo (no sentido
pleno desta palavra). Aderir a Cristo implica aderir á única
Igreja por Ele fundada; Cristo é vivo até hoje na térra, pois
tem um Corpo prolongado que é a Igreja por Ele instituida e
confiada a Pedro até a consumacáo dos séculos. Ora a fim de
lembrar esta verdade e ajudar os nossos cristáos a compreen-
der que toda auténtica pregagáo do Evangelho leva á única
Igreja de Cristo, este fascículo de PR dedica dois dos seus artí-
gos ao assunto. O leitor entenderá que nao se trata de polé
mica, mas táo somente de ajudar a distinguir e ver melhor...
AMOR e VERDADE sao inseparáveis um do outro (cf. Ef 4,15).

É com preces e viva participagáo que os discípulos de Cristo


acompanham o Sínodo dos Bispos e os seus resultados atinentes
a evangelizagáo do mundo.

«AI DE MIM, SE NAO EVANGELIZAR b> (1 Cor 9,16).

E.B.

— 366 —
«PEROUHTE E RESPONDEREMOS»
Ano XV — N' 178 — Outubro de 1974

Em Petrópolls, julho-1974:

filosofía ainda vale em nossos dias?


Em síntese: Verlfica-se que o Filosofía está em descrédito, pols a
ciencia tem invadido os setores que os filósofos abordavam outrora como
seu próprio campo de trabalho (a Física, a Psicología...). — De resto,
dizem, a Filosofía a nada serve.

Dlante desta sltuacSo, o Prof. Evandro Agazzl, da Unlversldade de


Genova, lembra:

— o que serve a outro valor, é menos valioso e Importante;

— a ciencia Impregna a vida e a civil IzacSo modernas, nao, porém,


a cultura. Esta costuma Inspirarle em Ideologías (marxismo, fascismo, libe
ralismo, pragmatismo...);
— a própria ciencia hoje é questlonada. Ela nlo explica por que de-
vemos aceitar a corrida ao progresso, experimentando materializacSo da
vida e perda de valores típicamente humanos.

Vé-se, pols, que a clvIlIzacSo de hoje dirige apelos á Filosofía. Para


responder a esse chamado, nSo nos bastará repetir o que os antigos filó
sofos disseram. Embora a verdade soja perene, o homem de hoje enfrenta
seus problemas novos e inéditos. Se a Filosofía nSo assumir a 3ua tarefa,
estaremos mais e mais sujeltos á violencia. Duas alternativas apenas exls-
tem para o homem de hoje: ou o raciocinio, que dialoga e poda eon-ven-
cer... ou a pressSo física e moral.

Ainda a respeito do irraclonallsmo de nossos dias, note-se que só


se podem flxar limites á razSo utilizando a própria razSo.

Comentario: Entre as numerosas palestras da II Semana


Internacional de Filosofía realizada em Petrópolis (RJ) de 14
a 20 de julho pp., destacou-se, ao lado de outras notáveis, a do
Prof. Evandro Agazzi, da Universidade de Genova (Italia). O
conferencista abordou o tema: «O apelo k Filosofía na civili-
zacáo do nosso tempo», valendo-se da ocasiáo para analisar o

— 367 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

papel que toca á Filosofía em nossos dias, táo marcados pelos


progressos da ciencia e da técnica, cujo dínamo é a matemá
tica. Esta fundamenta as chamadas «ciencias exatas», ñas quais
o homem de hoje reconhece haver proposigóes verídicas um
versalmente aceitas; fora, porém, das ciencias exatas, ou soja,
ñas ciencias humanas (Ética, Direito, Religiáo, Filosofía...),
julgam muitos nao haver propriamente verdades, mas posigdes
mais ou menos subjetivas, devidas a intuigoes e opsóes pessoais,
interessantes para quem tenha lazer e ocio...

A maneira sabia e lúcida como o conferencista tratou do


problema, merece divulgagáo. Eis por que, ñas páginas seguin-
tes, reproduziremos em sintese o pensamento do Prof. Evandro
Agazzi.

Antes, porém, de entrar no tema proposto, apresentaremoa


urna nogáo do objeto de discussáo, ou seja, de Filosofía, aínda
que em termos sumarios.

1. Que é a Filosofía?

Numa primeira abordagem, que é etimológica, pode-se dizer


que a Filosofía é o «amor da Sabedoria» (philia = amor ; so-
phia = sabedoria, em grego). O nome foi forjado por Pitágoras
(séc. VI/V a.C); este observava que a sabedoria convém pro
priamente a Deus só; o homem é táo somente um amigo ou
um desejoso da sabedoria,

Aprofundando o conteúdo de tal nome, Jacques Maritain


assim escreve: «A Filosofía é o conhecimento cient'fico que
pela luz natural da razáo considera as causas primeiras ou as
razóes mais elevadas de todas as coisas» («Introdujo Geral
á Filosofía», p. 71).

Expliquemos os termos desta definigáo:

1) Conhecimento científico, isto é, conhecimento certo


(afirmado com certeza) por causas. O homem aspira a saber
os porqués da realidade. Notem-se, porém, as obseryagóes de
Maritain : «Nao pretendemos afirmar que a Filosofía resolve
com certeza todas as questóes que possam surgir em seu domi
nio. Em muitos pontos o filósofo deve contentar-se com solugSes
prováveis ou porque a questáo ultrapassa o alcance atual da
sua ciencia, como acontece em inúmeras partes da filosofía na-

— 368 —
filosofía aínda vale ?

tural e da psicología, ou entáo porque nao comporta por si


mesma nenhuma outra solucáo (no caso da aplicacáo das re-
gras moráis aos casos particulares). Todavia este elemento
simplesmente provável é acidental á ciencia como tal. A Filo
sofía comporta mais certezas, e certezas (certezas metafísicas)
mais perfeitas do que qualquer outra ciencia puramente hu
mana.» (ib. p. 72).

2) Kazao natural... A luz sob a qual o filósofo trabalha,


é a da sua inteligencia discursiva (razáo), sem recorrer direta-
mente á fé. A teología, ao contrario, recorre á revelagáo sobre
natural feita por Deus aos homens. É também a razáo que o
filósofo exercita, e nao o instinto natural irrefletido. Ñas pes-
soas simples existe, por exemplo, prudencia,... prudencia irre-
fletida, espontánea, quase instintiva; no filosofo a prudencia é
o efeito da reflexáo laboriosa da razáo.

3) Causas prímeiras... «A Filosofía trata de todas as


coisas; é uma ciencia universal... Precisamos de entender sob
que ponto de vista ela se ocupa de todas as coisas, ou aínda o
que a interessa diretamente e por si mesmo em todas as coisas:
ocupando-se do homem, por exemplo, procura saber acaso o
número de vértebras ou. as causas de suas doengas ? Nao ; é
dominio da Anatomía e da Medicina. A Filosofía trata do
homem para saber, por exemplo, se ele tem uma inteligencia
que o distingue absolutamente dos outros animáis, se tem urna
alma, se é feito para gozar de Deus ou para gozar das cria
turas, etc. Chegando a este ponto, nao é posslvel formular per-
guntas além e mais alto. Digamos que a Filosofía vai procurar
ñas coisas, nao o porqué mais próximo dos fenómenos que caem
sob os sentidos, mas, pelo contrario, o porqué mais remoto des-
ses fenómenos, o porqué mais elevado, aquele que a razáo nao
pode ultrapassar. Em Iinguagem filosófica, isto significa que
a Filosofía nao se preocupa com as causas segundas ou razoes
próximas, mas com as causas prímeiras ou os principios su
premos, ou as razóes mais elevadas» (Maritain, ob. cit., p. 69s).

Após estas poucas nogoes, podemos entrar diretamente na


questáo : a Filosofía aínda vale em nossos dias ?

2. O problema

É inegável o fato de que a Filosofía hoje em día vai sendo


cada vez menos cultivada. É menosprezada porque para nada
serve; nao costuma dar direito a empregos vantajosos e a uma

— 369 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

carreira... Nao existe mesmo a carreira de filósofo; de resto,


o filósofo faz questáo de nao se encarreirar. Registra-se até
urna certa desconfianca em relagáo á filosofía, pois a razáo
humana está em descrédito, cedendo o lugar las intuicóes e &s
místicas que movem o mundo.

Mais: muitos dos temas que a Filosofía abordava outrora


tranquilamente, pertencem hoje ao dominio da ciencia: assim
as nogóes de natureza, materia, espago, tempo, a psicología
humana, a psicología dos irracionais, a antropología, etc. A
faixa de conhecimentos deixada á pura filosofía é, segundo se
diz, cada vez mais estreita. Por conseguinte, conclui-se, a filo
sofía já terminou a sua missáo no conjunto do saber humano.

Tais sao as convicgóes nao somente de nao filósofos, mas


também de numerosos filósofos. Estes limitam-se, por isto, a
fazer a análise de fatos e a estudar as condigóes dentro das
quais se cultiva o saber humano.

Diante de tal situacáo, que diz o auténtico filósofo?

3. Presenta éa filosofía

Refletindo sobre estes dados, o filósofo nao pode impedir-se


de fazer as seguintes consideracóes:

3.1. "Para nada serve..."

O fato de se dizer que a filosofía para nada serve, nao deve


impressionar. Com efeito, o que serve a algo, é subsidiario e
relativo; nao tem importancia capital. Ora precisamente a filo
sofía pretende ser algo a que as ciencias humanas encaminham;
os diversos setores do conhecímento levam á filosofía e a exi-
gem; ela é consumagáo, plenitude do saber humano. A propó
sito, alias, veja-se o livro de Eduardo Prado de Mendonga:
«O mundo precisa de filosofía», citado na bibliografía deste
artigo.

3.2. Ciencia abrange tocto o saber?

Ademáis pergunta-se: Será que se pode entregar á ciencia


todo o volume do saber humano? O cultivo da matemática e

— 370 —
filosofía aínda vale ?

das ciencias que sobre ela se baseiam (a física, a química, a


eletrónica...) esgota todos os anseios de saber que marcam
o homem ?

Duas razóes levam-nos a responder negativamente, como


se verá abaixo.

3.2.1. Cultura e filosofía

Verdade é que a ciencia tem peso crescente ao nivel da vida


cotidiana; a ciencia e a técnica, com suas conquistas e inven-
cóes, dáo nota inconfundível á vida moderna: tenham-se em
vista os meios de comunicagáo (telefone, televisáo, aviacáo...),
os aparelhos automáticos que servem ao lar (eletrodomésticos),
os cerebros eletrónicos utilizados nos escritorios, ñas empresas,
ñas fábricas, Universidades, etc. Mas deve-se reconhecer que
no setor da cultura a ciencia tem peso quase nulo.

E que é cultura? — Nao é soma de noyóes e conhecimen-


tos; isto seria erudigáo. Cultura é um complexo de sabedoria
que possa dirigir a conduta do individuo e da sociedade.

Pois bem. Donde a cultura contemporánea tira seus para-


metros ou pontos de referencia? — Nao os tira da ciencia; mas
vai buscá-los em ideologías, ou seja, no marxismo, no fascismo,
no liberalismo ou em alguma crenga religiosa ou fé. O saber
científico nao chegou a modificar a nossa cultura, que continua
sendo humanista, filosófica e literaria.

Apesar disto, verifica-se que a cultura científica fascina


os melhores dos estudantes; os mais prendados sao propensos
a escolher os estudos de ciencias exatas; estas os atraem porque
lhes oferecem a ocasiáo de exercitar o acume de sua inteligen
cia, incitando-os aos cálculos de elevada matemática. Os menos
prendados (segundo o conceito usual) é que se entregam á filo
sofía... Ora tal situasáo constituí um perigo para o futuro
da humanidade, pois, em última análise, quem influirá no com-
portamento da sociedade e marcará a cultura dos povos, sao
os filósofos.

Em outros termos : para que o homem e as nagóes se


orientem, é necessário que conhegam os porqués dos fenómenos
que os cercam e preocupam. Ora, desde que pergunto «Por
qué ?», ponho-me a filosofar. Donde se vé que, se a maioria

— 371 —
8 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

dos homens prendados se dedica apenas a analisar fenómenos,


a dassificar experiencias a fim de deduzir leis estatísticas e
construir máquinas ou aparelhagens, sem ir ao ámago dos
problemas ou sem indagar a respeito das grandes causas e do
sentido último do mundo, do homem, da vida, do sofrimento,
do trabalho, do amor..., a sociedade corre o perigo de se deso
rientar ou desbussolar. Para evitar este perigo, os homens tém
que enfrentar as questóes fundamentáis ou os grandes porqués
da realidade que os cerca; e isto é justamente a tarefa da
filosofía. :
Quem toma consciéncia disto, verifica naturalmente a ne-
cessidade do saber filosófico. Verifica também que este há de
ser cultivado nao pelos menos perspicazes e lúcidos dos estu-
dantes e estudiosos, mas precisamente por homens e mulheres
de inteligencia rica e sagaz..., inteligencia apta a penetrar
no ámago dos fenómenos e estabelecer as necessárias distingoes
entre o essencial e o acidental, a fim de estipular a auténtica
escala de valores segundo a qual se poderá reger o comporta-
mentó das pessoas e das sociedades. Distinguir lúcida e preci
samente, a fim de arrumar, arquitetar e escalonar conceitos e
valores tal é urna das principáis tarefas da filosofía.
O dentista pode ter exato conhecimento da biología (ou
da ciencia da vida), dominando perfeitamente os cálculos da
genética, por exemplo, mas ignorar por completo o sentido da
vida; pode nao saber valorizar a vida, o sofrimento, as con
quistas, a familia, o amor; pode ter nogóes confusas a respeito
de felicidade, riqueza, gloria, fama... Sonriente a filosofía lhe
fornecerá pistas para conceituar e avaliar tais elementos e,
conseqüentemente, para orientar o comportamento do próprio
dentista em meio á familia, á sociedade, á nagáo, ao pano
rama internacional...

A guisa do comentarlo, o relator desta conferencia do Prof. Agazzl


toma a llberdade de lembrar que o Concillo do Vaticano II multo se Inte-
ressou por que os homens, cada vez mals atraídos e solicitados pelas
ciencias e especialízaseos, nfio se esquecam da sabedoria {filosofía) e da
contemplagSo que ela proporciona. Sem estes valores, a vida se torna de-
sumana, porque materializada, robotlzada ou privada da visio do conjunto
dos valores que cercam o homem. Tenham-se em vista os textos seguintes:

"A natureza intelectual da pessoa humana se aperfelcoa e deve ser


aperfeigoada pela sabedoria. Esta atral de maneira suave a mente do
homem á procura e ao amor da verdade e do bem. Impregnado de sabe
doria, o homem passa das coisas vlslveis ás Invisivets.
A nossa época, mais do que nos sáculos passados, precisa desta
sabedoria para que se tornem mals humanas todas as novidades doscobertas

— 372 —
filosofía aínda vale ?

pelo homem. Realmente estará em perlgo a sorte futura do mundo se nao


eurglrem homens mais sabios" (Constltulcáo "Gaudium et Spes" n<? 15).

"Como se pode conciliar a dlspersSo tSo rápida e progresslva das


ciencias particulares com a necessidade de elaborar a sua sfntese e de con
servar nos homens as faculdades de contemplacSo e admlracio que en-
camlnham para a sabedoria ?" (ib. rfl 56).

3.2.2. Ciencia é questionada

Em certos setores, nota-se hoje em dia urna revolta vio


lenta contra a própria ciencia. Esta impulsiona o progresso e
o bem-estar; mas nao propóe o sentido da vida, nem apresenta
metas ao homem capazes de justificar a corrida do progresso.
Ao contrario, a ciencia e a técnica, com suas conquistas e suas
criagóes, ofuscam o homem; materializam-no, absorvem-no,
impedindo-o por vezes de cultivar os valores mais típicamente
humanos que sao o amor, a fraternidade universal, a justiga,
a paz... A elevada civilizagáo suscita novos problemas ao
homem, deixando-o insatisfeito e vazio em meio ao bem-estar
e ao conforto material. — Ora tal situagáo vem a ser um apelo
ao pensamento filosófico e a filosofía, pois é esta que procura
mostrar ao homem o sentido da vida, do progresso, do recurso
á técnica, abrindo-lhe horizontes mais 'humanos e menos me
cánicos do que os da técnica.

Pergunta-se agora:

4. Como responder a tais apelos ?

Nao se pode simplesmente repetir ou «utilizar» o pensa


mento dos filósofos do passado para atender aos apelos do
homem de hoje. — Nao há dúvida, a verdade é perene; mas
acontece que todo homem está no mundo pela primeira vez;
a experiencia dos antepassados nao lhe pertence na primeira
pessoa do singular. Em conseqüéncia, nao se pode afirmar:
«A filosofía já disse tudo! Desde Platáo, passando por Aris
tóteles, Marco Aurelio, S. Agostmho, S. Tomás de Aquino, Des
cartes, Spinoza, Kant, Kirkegaard, Heidegger... até Sartre,
foram esgotadas as mais variadas possibilidades de enfrentar
o mundo, sua realidade e seus enigmas, de sorte que nao há
mais nada a dizer nem há mais campo para filosofar!» Quem
assim julgasse, enganar-se-ia. O jovem que nasceu há vinte
anos atrás ou a presente geracáo tem necessidade de resolver
os seus problemas de maneira adequada, circunstanciada. Isto

— 373 —
10 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS> 178/1974

nao quer dizer que a verdade seja relativa, mas, sim,, que cada
geracáo tem que tirar da perene verdade as respostas para as
suas circunstancias próprias de vida. Por isto é preciso fazer
da filosofía algo de sempre vivo, sempre contemporáneo.

Se a filosofía nao assumir a tarefa de oferecer ao homem


algumas teses sobre o sentido da vida, do trabalho, do pro-
gresso, da luta e da morte, os diversos tipos de ideología e de
«mística» a assumiráo (pensemos no marxismo, no fascismo,
no racismo, no totalitarismo, ñas ideologías pragmatistas, vo-
luntaristas e sociais...). Com efeito, o homem de hoje quer
criterios para julgar. Os que a filosofía lhe oferece, sao crite
rios racionáis e lógicos. Os que as outras fontes propóem, sao
criterios e respostas irracionais, emotivos ou dogmáticos pre
concebidos, nao sujeitos a discussáo (embora venham de fontes
humanas). Por incrível que pareca, os homens de hoje, apesar
de terem natural aversáo ao dogmatismo, estáo profundamente
imersos no dogmatismo.

A única alternativa que se pode opor á violencia, é a razáo


ou o filosofar. Vemo-nos hoje em dia freqüentemente diante do
do dilema: «Ou violencia cega, emotiva, dogmática, ou razáo
serena, lógica e lúcida». Com efeito, que podemos fazer diante
de um adversario? — Ou tentaremos dialogar com ele e con-
vencé-lo... Ou o venceremos pela violencia... Violencia que
nem sempre é física, mas pode ser pressáo económica, social,
propaganda dialética, persuasáo dissimulada e pouco honesta.
Ora esta última alternativa nao é rara em nossos días, pois os
homens perderam a confianga na razáo; daí terem freqüente
mente um comportamento cegó, brutal, que póe em perigo nao
só o adversario agredido, mas o próprio agressor.

Dirá alguém : «Nao ; os homens nao perderam a confianga


na razáo. Utilizam-na em suas pesquisas científicas e em suas
realizagóes técnicas. Isto basta. Na filosofía, cada um pode
seguir as suas intuigóes pessoais; alguns se guiaráo mesmo pelos
sentimentos e as emogóes, em oposigáo aos criterios da razáo!»

Tal modo de pensar é erróneo. É mais importante, para


o homem, ter idéias lúcidas e lógicas em questóes filosóficas ou
no tocante ao sentido da vida do que em materia científica.
Com efeito; um dentista pode trabalhar a vida inteira em seu
laboratorio pesquisando a estrutura do átomo, sem encontrar
a resposta cabal ou formulando hipótese sobre hipótese, enga-
nando-se mais de urna vez... Isto, porém, nao lhe frustra a
vida; pode ser um homem cheio de méritos a levar urna vida

— 374 —
filosofía aínda vale ? 11

prenhe de sentido. — O mesmo, porém, nao se da quando o


homem nao tem idéias claras e lógicas em filosofía; as conse-
qüéncias desta lacuna afetam profundamente a personalidade
humana e podem frustrar a sua existencia ou a sua atividade...
É muito grave a crise da razáo ou a desconfianga para com
esta, pois leva o homem aos irracionalísimos, as cencepsóes e
aos comportamentos fantasistas, que deixam o sujeito aquém
da dignidade humana.

É, pois, para deseiar que se convengam os homens de que


a filosofía nao é luxo, nao é contemplacáo ociosa, nem reflexáo
perdida, mas é a procura e o encontró do essencial, de tal modo
que, sem contemplaQáo filosófica, a vida nao tem sentido. Reco-
loque-se de novo a razáo no lugar que lhe compete: deve ser
luz para os sentimentos e a agáo dos homens. De resto, aqueles
que pretendem fixar limites á razáo ou langá-la em descrédito,
só o fazem em nome da razáo e utilizando a própria razáo.

Argumentava Aristóteles em célebre dilema : «Dizeis que


é preciso filosofar? — Entáo é preciso filosofar de fato.

Dizeis que nao é preciso filosofar? — Entáo ainda é pre


ciso filosofar (para o demonstrar). De qualquer modo, é ne-
cessário filosofar» (Fragmentos de Aristóteles, 50, 1483 b, 29.
42; 1484 a, 2, 8, 18).

5. Conclusao

As idéias expostas pelo Prof. Evandro Agazzi sao especial


mente oportunas em nosso Brasil, onde, de um lado, se váo
fechando os cursos de filosofía (dita «pura» ou «propriamente»)
por falta de alunos e, de outro lado, nos cursos ainda existentes
se ensina mais historia da filosofía do que filosofía propria
mente dita.

Verdade é que a filosofía nao é comerciável nem lucrativa.


É o que afasta muitos jovens dos cursos de filosofía pura; pre-
dsam de diploma para trabalhar em empresas e escritorios.
Todavia seria altamente oportuno que nos cursos de ciencias
e técnicas nao faltasse jamáis urna cadeira de filosofía, na
qual os alunos fossem incitados a refletir sobre as questóes
fundamentáis que todo homem (mesmo o técnico) traz em si:
«Donde vimos ? Para onde vamos ? Qual o significado da
vida?... do trabalho?... da dor?... da morte?»

— 375 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

Varias fontes se podem sugerir das quais se tirem respos-


tas para tais perguntas. Todavía a primeira é a razáo humana;
as demais devem passar pelo crivo da razáo, a fim de se evi-
tarem sentimentalismos, sistemas passionais, falsas místicas,
ideologías dogmáticas nao comprovadas. Com estas palavras,
nao afirmamos o racionalismo nem o endeusamento da razáo.
Longe disto! A razáo bem cultivada leva a Deus e, por seu
próprio acume, aponta uma instancia mais elevada, que é Deus,
a Verdade Infinita. A fé em Deus nao receia a razáo, mas, ao
contrario, beneficia-se :dela. As verdades da fé reveladas por
Deus nao contradizem as da razáo, mas encontram nesta uma
preparagáo ou propedéutica valiosa.

O Cristianismo estima a filosofía ou o correto uso da


razáo. Um Cristianismo baseado em meras atitudes existenciais
ou em irracionalismos, em sentimentos cegos ou ainda em in-
tuicóes que nao resistam ao crivo da lógica, é Cristianismo
anémico, se nao erróneo.

A um cristio dir-se-á mais: verdade é que a razáo nao


demonstra as'proposigóes da fé (esta já nao seria fé, em caso
positivo), mas fornece as credenciais ou os motivos de credibi-
lidade ao estudioso: a razáo me diz que posso crer em Deus,
sem renunciar á minha dignidade..., que posso crer em Cristo
e nos Evangelhos sem cair na simploriedade,... que posso acei
tar uma Igreja fundada por Cristo com a garantía da veraci-
dade perene, sem que com isto eu seja infantilizado.
A razáo me diz isto tudo, embora o sentimento apaixona-
do, o preconceito ou o irracionalismo me sugiram o contrario.
Diante de muitos problemas religiosos, o primeiro passo para
a solugáo é conceituar e equacionar bem os dados do problema;
ora isto nao se faz sem que a razáo se mova e trabalhe. Uma
vez feito isto, dissipam-se nuvens que entravavam a sohicáo e
esta aparece no horizonte com inesperada clareza.
Eis por que vem muito a propósito meditar sobre as pala
vras do Prof. Evandro Agazzi.

Bibltogralla:

J. Marltaln, "Introducfio Geral á Filosofía. Elementos de Filosofía 1".


Rio de Janeiro, 9* ed., 1970.
J. M. Bochenskl, "Dlretrizes do pensamento filosófico". S3o Paulo 19B1.
E. Prado de Mondonga, "O mundo precisa de filosofía". Rio de Ja
neiro 1968.
E. H. Dreher, "Que é Filosofía?". Curitlba 1973.

— 376 —
Quem sSo?

os batistas outrora e hoje

Em síntese: Os crlstSos chamados "Batistas" tem origem nos movi-


mentos anabatistas (rebatlzadores) do séc. XVI. Os anabatistas, sob Tomás
Münzer o Nicolau Storch, afiimavam "por especial lluminacáo do Espirito
Santo" que o Batismo nao deve ser conferido a criancas; por isto batizavam
de novo os adultos batizados em idada Infantil. Esses reformadores profes-
savam também idéias socialistas e revolucionarias, que provocaram a "Guerra
dos Camponeses", sufocada pelos principes alemües em 1525.

Todavía do tronco anabatista sairam ramificacoes, entre as quals a


dos Menonitas (de Menno Slmons), sediada na Alemanha e na Holanda.

Na Inglaterra alguns ministros anglicanos nao conformistas (desconten


tes com a brandura da reforma religiosa do país) emlgraram para o estran-
geiro. Dentre eles, John Smyth, hospedado em casa de um menonita na
Holanda, aderiu á tese e á prática dos anabatistas; os seus discípulos, vol-
tando para a Inglaterra, lá deram inicio á primeira Igreja Batista (nao ana-
batista). Outro ministro, Willfam Rogers, amigrou para os EE. UU. da Amé
rica, onde em 1638 aderiu á crenca dos anabatistas e, com alguns com-
panheiros, deu origem á primeira Igreja Batista nos EE. UU.

A denominacao batista hoje em dia compreende mais devinto seitas,


independentes urnas das outras. Alias, cada Igreja batista local é autónoma
em seu governo e em seu modo de pensar. As notas comuns a todas as
denomlnacóes batistas sao: o batismo exclusivo dos adultos, o rebatlsmo
de quem foi balizado como crianga. Praticam geralmente o batismo por
imersáo, e nao por infusao. Proclamam absoluta separacSo entre Igreja e
Estado. Em vista do forte Individualismo que reina entre as próprias comu
nidades batistas, compreende-se que nSo tenham preocupacSo ecuménica
alguma, mas, ao contrario, sejam avessos ao movimento de aproxlmacao e
unidade dos crlstáos.

Quanto ao batismo das criancas, a Escritura indlretamente o menciona


quando afirma que tal ou tal personagem se fez balizar "com toda a sua
casa". De resto, a Escritura nao tenclona relatar tudo o que os primeiros
cristSos ensinavam e pratlcavam. A TradicSo crista desde cedo atesta explí
citamente o batismo de criancas, sem que isto suscite contradigo nos
primeiros séculos.

Comentario: Os batistas vém tomando lugar de destaque


no cenário religioso do Brasil. É particularmente famoso o pre-
gador batista Billy Graham, cujas mensagens ecoam ampia-
mente no mundo (nao excluida a nossa patria), arrastando

— 377 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

multidóes, as vezes mais movidas por emogóes e sentímentos


do que por idéias claras ou pela consciéncia do que significa
«ser batista».

Os batistas por vezes atribuem a si origem remota, filian-


do-se a Sao Joáo Batista e aos Apostólos, como se constituis-
sem um grupo cristáo táo antigo quanto o próprio Cristianismo.
Ora tal reivindicagáo é destituida de fundamento, como se verá
abaixo. Na verdade, os batistas sao posteriores a Martinho
Lutero e á Reforma protestante do séc. XVI; a sua teología
adota as teses de Joáo Calvino (í 1564).

A fim de facilitar ao público o conhecimento do que é a


Congregagáo dos Batistas, proporemos abaixo algo da sua his
toria e da sua profissáo de fé. Nao se pode, porém, abordar
adequadamente o assunto sem cpmecar por apresentar o fundo
de cena do movimento batista, que é a reforma anabatista.

1. Os onabatistas

A palavra «anabatista» (Wiedertáufer, em alemáo) quer


dizer «aquele que batiza de novo» ou «o rebatizador» (ana = de
novo, em grego).

1. No séc. HE houve na Igreja urna controversia anaba


tista : muitos bispos da África do Norte julgavam que o ba-
tismo administrado por herejes era inválido; em conseqüéncia,
batizavam de novo um hereje desejoso de entrar na Igreja
Católica (embora já tivesse sido batizado por novacianos ou
montañistas ou outros dissidentes...). Esta tese foi rejeitada
pelo bispo de Roma, o Papa S. Estéváo; este reafirmou a tese
da Igreja (até hoje válida) : um hereje que tenha sido bati
zado fora da Igreja Católica (com agua natural e as pala-
vras devidas) nao deve ser rebatizado, mas apenas se lhe im-
póem as máos em sinal de reconciliacüo. As dúvidas dos bispos
africanos assim se dissiparam, e a questáo em foco terminou.

2. No século XVI, enquanto se processavam as lutas re


ligiosas na Alemanha desencadeadas por Martinho Lutero
(t 1546), tomou vulto um grupo dito «dos Profetas de
Zwickau», chefiado por Tomás Münzer, de Waldshut (1489-
-1525). Este cristáo tornou-se adepto de Lutero, que ele con-
siderava «exemplo e luz dos amigos de Deus». Em Zwickau
constituiu urna facgao, que aos poucos foi ultrapassando as

— 378 —
QUEM SAO OS BATISTAS ? . 15

teses reformistas de Lutero, do qual acabou por se separar.


Os «profetas de Zwickau» afirmavam que Deus se revela inde-
pendentemente da Biblia mediante a luz interior do Espirito
Santo; agraciados por esta luz, os »profetas» recusavam-se a
seguir Lutero. Em particular, recusavam batizar enancas; re-
batizavam os adultos batizados em idade infantil, opondo-se
assim a Lutero em nome de especial revelacáo do Espirito San
to. Nessa facgáo religiosa distinguiu-se Nicolau Stbrch, que se
apresentou como enviado do céu para estabelecer na térra o
«reino de Deus», com inspiragáo socialista e revolucionaria.
Outros nomes de vulto aderiram ao novo movimento refor
mista : Hans Hut, Denck, Hetzer, Grebel, Phillips, Bunderlin,
Czechowitz, Melchior Rinde, Melchior Hofmann... Também
grande número de camponeses, descontentes com as condigoes
económicas e sociais a que os submetiam os nobres da Alema-
nha, associou-se ao movimento de Münzer e Storch. Desen-
cadeou-se em conseqüéncia a «guerra dos camponeses>
(1524-1525): estes arrasavam castelos, mosteiros e casas reli
giosas. Foram, porém, violentamente reprimidos com a apro-
vagáo de Lutero. O próprio Tomás Münzer foi capturado em
Mühlhausen e decapitado aos 27/V/1525. Cerca de 100.000
camponeses cairam na luta.

O movimento, sufocado pela guerra, retomou vida e ex-


pandiu-se pela Suiga, a Alsácia e os Países-Baixos, tendo a
frente Melchior Hofmann. Este chefe constituiu sua sede em
Münster (1534), que os anabatistas tentaram transformar em
«Nova Siáo»; destruiram as igrejas da cidade e, movidos pelos
livros do Antigo Testamento, escolheram doze juízes; coroa-
ram como rei o seu líder Bockhold, dando-lhe o nome de Joáo
de Leyde. A cidade de Münster tornou-se entáo teatro de anar
quía administrativa, licenciosidade e depravacáo moral (inclu
sive com a prática de comunháo de mulheres e de bens). Tal
situagáo moveu os príncipes protestantes a tomar a cidade pela
forga e extinguir o novo Reino juntamente com seus chefes.

Surgiram ainda novos rebentos das idéias anabatistas, de


puradas, porém, de reivindicagóes políticas. O principal destes
é o Menonismo, devido a Menno Simons (t 1559) e ainda hoje
existente nos Países-Baixos e na Alemanha.

Prosseguimos o esbogo histórico, estudando agora

— 379 —
16 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 178/1974

2. O Movimento Batista

Os batistas filiam-se aos anabatistas do sáculo XVI.

1. A Inglaterra passou por urna reforma religiosa iniciada


por Henrique vm (1509-1547) e definitivamente implantada
pela raínha Elizabeth (1558-1603). A Comunháo religiosa an-
glicana assim instituida apresentava-se bem mais conservadora
do que as comunidades luteranas e reformadas do continente
europeu: tinha seus bispos e um ritual litúrgico bastante de
senvolvido. Tal situagáo suscitou na Inglaterra a oposigáo de
grupos nao conformistas, desejosos de mudangas religiosas mais
radicáis. Entre estes contavam-se os puritanos presbiterianos,
que prevaleceram principalmente na Escocia com John Knox
(discípulo de Calvino), os Congregacionalistas (que atribuiam
o governo da Igreja k congregacáo local e nao á hierarquia dos
bispos e presbíteros).

Em Gainsborough, no ano de 1604, fundou-se urna comu-


nidade congregacionalista, dirigida por John Smyth, antigo mi
nistro anglicano ; acolheu refugiados anabatistas e menonistas.
Smyth, porém, e seus adeptos viram-se obrigados a se exilar,
indo para Amsterdam (Holanda), onde o calvinismo predomi-
nava. No exilio, Smyth viveu em casa de um padeiro menonita,
que o persuadiu de que o batismo conferido as criangas era
inválido (tese anabatista). Em conseqüéncia, Smyth adminis-
trou a si mesmo um segundo batismo, de cujo valor, porém,
comegou em breve a duvidar. Diante deste fato, os seus com-
panheiros, por ele convencidos da tese anabatista, o expulsaram
da comunidade; Smyth nao conseguiu ser admitido nem mesmo
entre os menonitasí aos quais pedirá acolhimento ; faleceu
em 1617.

Em 1612, um grupo dos seus discípulos regressou á Ingla


terra e lá fundou a primeira Igreja dita «Batista» (nao mais
«anabatista»). Foram também chamados «Batistas Gerais» ou
«Arminianos», porque, contrariamente á doutrina calvinista,
professavam que Cristo por sua cruz salvou todos os crentes.

Outro grupo se formou pouco depois, dito «dos Batistas


regulares ou particulares». Com efeito, em 1641 outra pequeña
comunidade de dissidentes do anglicanismo em Londres se con-
venceu da tese anabatista. Mandou entáo um de seus membros,
Ricardo Blount, a Rijnsburg na Holanda, a fim de pedir o

— 380 _
QUEM SAO OS BATISTAS ? TT

batismo de adulto á seita de Dompelaers (derivada do meno-


nismo) e levar á Inglaterra o «verdadeiro batismo». Blount
desincumbiu-se de sua missáo: voltando em 1641, rebatizou
por imersáo (única forma de batismo reconhecida pela seita)
55 membros da comunidade de Londres. Aceitou do calvinismo
holandés a doutrina de que Cristo salva somente os predesti
nados ; donde o nome de «Batistas regulares» ou «particula
res» que Ihes tocou. Em 1644 havia na Inglaterra 47 comuni
dades de Batistas Gerais e 7 de Batistas particulares. Com o
tempo, porém, os Batistas Gerais haviam de declinar numé
ricamente.

2. Nos Estados Unidos a denominagáo batista havia de


assumir grandes proporgóes. Em 1631 o ministro anglicano
William Rogers (1599-1683), sendo nao conformista, teve que
emigrar da Inglaterra para a América do Norte. Em 1638 con-
venceu-se de que o batismo recebido na infancia era inválido ;
por isto pediu a um amigo, Ezequiel Hollyman, que o batizasse
de novo; por sua vez, Ezequiel lhe solicitou o re-batismo. Outros
companheiros imitaram tais exemplos, dando assim origem á
primeira Igreja Batista nos EE. UU. da América.

O espirito autonomista que reinava na colonia provocou


numerosas cisóes na denominagáo batista norte-americana...
Hoje em dia contam-se mais de vinte seitas batistas: Velhos
Batistas, Batistas Primitivos, Batistas do Livre Arbitrio, Batis
tas Campbellistas ou Reformados, Batistas do 7» Dia (porque
apregoam a observancia do sábado), Batistas dos Seis Princi
pios (porque adotam como doutrina fundamental os seis pon
tos indicados em Hebr 6,ls : arrependimento, fé, batismo, im-
posigáo das máos, ressurreigáo dos mortos e juizo eterno), Ba
tistas Abertos, Batistas Fechados, Batistas Unitarios, Batistas
Particulares, Batistas Gerais, Batistas das Novas Luzes e Ba
tistas das Velhas Luzes (aqueles queriam fundar associacóes
para o ensino religioso, as missóes, etc., ao passo que estes as
recusavam por julgarem-nas contrarias á doutrina da S. Escri
tura), Batistas das Duas Sementes no Espirito (professavam
haver no homem duas sementes espirituais: urna implantada
por Deus, e outra pelo demonio)...

A denominagáo batista assim dividida e diversificada já


nao constituí urna Igreja — a Igreja Batista —, mas, sim, Fra
ternidades ou Congregagóes de crentes, prontas a se subdividir

— 381 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

ulteriormente, desde que naja discrepancia entre os seus mem-


bros. Todavía como nota característica comum, guardam a tese
de que o Batismo nao se confere a criangas e, por conseguinte,
é preciso rebatizar quem recebeu o sacramento na infancia; o
Batismo é, via de regra, administrado por imersáo. Cada pe
queño grupo (ou «igreja») batista é jurídicamente indepen-
dente de qualquer outro grupo. As «igrejas> defendem a abso
luta separagáo entre Igreja e Estado.

3. O governo de; cada comunidade é congregacionalista :


o poder administrativo compete á assembléia dos membros da
igreja local. É esta quem escolhe e depóe os seus pastores.

Em 1905 fundou-se em Londres a Alianza Batista Mundial,


que é urna livre associagáo de unióes de igrejas locáis; a inter
valos regulares, realiza Congressos Internacionais, que pro-
curam estabelecer e consolidar o vinculo fraterno entre as
diversas igrejas locáis esparsas pelo mundo inteiro.

Dado que existe grande autonomía de governo e de pensa-


mento entre os Batistas, compreende-se que nao tenham preó-
cupacáo ecuménica. Nao lhes interessam a aproximagáo mutua
e a unidade dos cristáos separados; ao contrario, tendem a
multiplicar suas denominagóes, movidos por forte individua
lismo. Os Batistas nem querem ser enumerados entre os pro
testantes, mas pretendem constituir urna denominacáo crista
própria ao lado do Catolicismo, do Protestantismo, do Anglica-
nismo e da Ortodoxia oriental — o que nao se justifica desde
que se leve em conta a historia do tronco batista; este procede
da Reforma protestante do séc. XVI.

4. No tocante á doutrina, os Batistas professam teses


calvinistas :

— Deus predestina os homens nao somente para a gloria,


mas também para a condenagáo eterna;

— a justificacáo ou a graga de Deus é obtida mediante


a fé;
— somente a fé salva ; as «boas obras» sao ilusorias ;
— a graga de Deus nao apaga o pecado no érente, mas
apenas encobre-o ; Deus, em conseqüéncia, nao o imputa ;

— o Batismo e a Ceia nao sao meios que comuniquem a


graga, mas apenas a fortalecem naqueles que os recebem com fé;

— 382 —
QUEM SAO OS BATISTAS ?

— a Biblia é a única fonte de doutrina.

Sobre estas teses fundamentáis cada seita coloca seus pon


tos de vista próprios.

Imp6em-se agora breves consideracóes sobre a questáo:

3. Batismo de criangas ou de adultos ?

Os Batistas pretendem apoiar a sua posigáo na S. Escri


tura, onde dizem nao haver mengáo de Batismo de criangas.

Já abordamos a questáo do batismo de criangas (pedoba-


tismo) na Biblia em PR 129/1970, pp. 382-397. Em vista disto,
aqui proporemos apenas as grandes linhas da doutrina católica.

1. Verdade é que a Escritura nao refere explícitamente


o batismo dos pequeninos. Isto se explica por dois motivos:

a) Os escritos do Novo Testamento nos consignaram in-


formacóes esporádicas a respeito da vida da Igreja nascente.
Os autores sagrados nao intencionavam relatar tudo o que en-
táo ocorria, mas apenas tratavam de temas a respeito dos quais
os seus leitores precisavam de esclarecimentos.

Donde se vé que o silencio da Biblia a respeito do batismo


das criangas nao equivale á negagáo dessa praxe. Quando os
escritores cristáos de épocas posteriores (séc. m, por exem-
plo) aludem explícitamente a tal prática, nao manifestam indi
cios de que tenha sido urna inovagáo; nao se registrou, a pro
pósito, sinal de admiragáo ou contradigáo na literatura crista
antiga. Ao contrario, Orígenes (após 244) afirmava o seguinte:
«A Igreja recebeu dos Apostólos a tradigáo de dar o batismo
aos pequeninos» («In Rom» 5,9 PG 14, 1047).

b) As circunstancias mesmas em que se desenrolava a


vida das primeiras comunidades cristas, explicam muito bem
que o Batismo das criangas nao tenha sido questáo de primeiro
plano. Como em todo territorio de missáo ainda hoje, era aos
adultos que os apostólos e pregadores do séc. I se dirigiam
quando chegavam a determinada cidade para anunciar o Evan-
gelho. Nao havia familias cristas, cujos filhos pudessem ser
batizados pelos missionários, mas era preciso constituir tais
familias apregoando aos adultos a Boa-Nova. Ve-se, pois, que

— 383 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 178/1974

os casos de batismo de crianzas só se podiam tornar normáis


a partir da segunda geragáo crista, ou seja, em épocas que em
grande parte já escapam ao ámbito do Novo Testamento.

2. A S. Escritura narra que varios personagens pagaos


professaram a fé crista e se fizeram batizar «com toda a sua
casa»; cf. At 10,1-2.24.44.47-48 ; At 16,13-15 ; At 16,31-33 ;
At 18,8 ; 1 Cor 1,16. — A expressáo «casa» (domos, oikos)
tinha sentido pregnante na antigüidade: designava o chefe da
familia com todos os' seus domésticos, inclusive as crianzas
(que geralmente nao faltavam). Indiretamente, portante, as
Escrituras sugerem o batismo de criangas.

Esta impressáo se confirma desde que se leve em conta


que os judeus batizavam os filhos pequeninos dos pagaos que
aderissem á fé de Israel.

3. Quanto á maneira de batizar, deve-se reconhecer que


a iniersáo (merguího dentro dágua) era geralmente praticada
na Igreja antiga, por simbolizar muito vivamente os conceitos,
essenciais a este sacramento, de morte (descida na agua) e
ressurreigáo (ascensáo da agua) com Cristo. A imersáo, porém,
nao era o único rito em uso ; seria difícil crer que os tres mil
convertidos no dia de Pentecostés em Jerusalém (cidade em
que a agua era escassa; cf. 2 Rs 20,20) tenfiam sido batizados
por imersáo (cf. At 2,41); muito menos se concebe que o car-
cereiro batizado com toda a sua familia na prisáo de Filipes
tenha sido mergulhado na agua (cf. At 16,33) ; o mesmo se
deve talvez dizer do sacramento administrado por Sao Pedro
na casa do centuriáo Cornélio (cf. At 10, 47s).

No fim do séc. I, o pequeño ritual intitulado «Didaqué»


atesta que, em caso de necessidade, o batismo podia ser vali
damente administrado também por infusáo, ou seja, por tríplice
derramamento de agua sobre a cabeca do neófito (cf. c. 7). É
de crer que o batismo nao pudesse ser conferido aos doentes
ou «clínicos» senáo por infusáo ou aspersáo, ritos estes que
S. Cipriano explícitamente afirma ser válidos (cf. ep. 69,12).

Entre os cristáos do Ocidente, foi prevalecendo, por moti


vos de ordem prática, o rito de infusáo ou derramamento de
agua, suficiente para exprimir a idéia de logáo ou purificaffáo
espiritual, que é essencial ao sacramento do batismo; desde
que a agua toque o corpo e sobre ele escorra, tem-se o simbo
lismo sacramental, tornando-se entáo acidentais a quantidade

— 384 —
QUEM SAO OS BATISTAS ? 21

de agua e as modalidades precisas do contato (imersáo, infu-


sáo ou aspersáo). A Igreja Católica reconhece a validade do
batismo de imersáo, que continua em uso entre os orientáis
unidos a Roma. Como, porém, aplicar esse rito a doentes, en-
carcerados, crianzas recém-nascidas ou aínda existentes no seio
materno ou a neófitos dos desertes e das regióes polares? Nao
há dúvida, forgoso é entáo recorrer á infusáo ou á aspersáo.
Donde se depreende que a validade do sacramento nao está
necessariamente ligada a um ou outro desses ritos.

Noíe-se que até 1653 os Armmianos ou Batistas Gerais


ingleses administravam o batismo por infusáo. Aínda hoje
algumas igrejas batistas, tanto na Inglaterra como nos Esta
dos Unidos (naja vista á «Northern Baptist Convention of
U.S.A.»), recusam-se a considerar o rito de imersáo como
condicáo essencial para a agregac.áo á Igreja.

Veja-se a propósito

"Os Batistas", da colegáo "Vozes em Defeca da Fé" r.<f 17. Ed. Vozes
de Peírópolis 1959.

Bihlmeyor-Tuechle, "Historia da Igreja" III. SSo Paulo 1965.

H.-Ch. Chéry, "L'offensive des soctes". París 1954.

Danlel-Rops, "L'ére des Grands Craquements". Paris 19J8.

PR 7/1957, pp. 38-41 (origem dos Batistas).

PR 3/1958, pp. 105-112 (Batistas e salvacfio eterna).

PR 6/1958, pp. 229-235 (maneira do balizar).

PR 162/1973, pp. 271-279 (batismo de crianzas na antigüldade).

385 —
"Receber Cristo como Salvador"... onde?

qual é a igreja de cristo?

Em sinlese: Para reconhecer a única Igreja de Cristo, o criterio é


indicado pelo próprio Cristo no Evangelho. Ao despedir-se de seus discí
pulos, envlou-os a pregar ao mundo inteiro e dlsse-lhos: "Eis que estaré!
convosco todos os días até a consumacao dos lempos" (Mt 28,20). Com
estas palavras, Jesús prometeu sua asslsténcla infallvel aos Apostólos e
aos sucessores destes até o flm da historia. Donde se vé que a Igreja da
Cristo é caracterizada pela sucessSo apostólica. Urna comunidade crista
que tenha comecado após Cristo, por iniciativa de um reformador, já nao
tem a sucessSo apostólica e a garantía da assistencla infalivel de Cristo.
Verdade é que os sucessores dos Apostólos, com toda a Igreja de Cristo,
tém que dar o testemunho do amor e da santidade que Cristo quis carácter!'
zassem seus discípulos (cf. Jo 13, 34s). Contudo, ainda que os membros
da Igreja nao déem sempre esse testemunho, Cristo nao deixa de agir
através da Igreja dos Apostólos e de seus sucessores; o cristáo n3o anda
primeramente em busca da santidade dos homens, mas, sim, á procura da
santidade de Cristo, que Ele quer comunicar mediante os homens.

Dentre os Apostólos, o Senhor escolheu Pedro para ser primaz, slnal


e penhor da fé verdadeira e da unidade da Igreja; cf. Le 22,32; Mt 16,18s;
Jo 21,15-17. A Igreja de Cristo asslm é a Igreja de Pedro ou de Roma. Em
conseqüéncia, sucessores de Apostólos que estejam separados de Pedro
já nao gozam da garantía de infalibilidade que Cristo quis conceder á sua
verdadeira Igreja.

O artigo que se segué, é sintético e Incisivo. NSo tenclona negar os


valores que realmente se encontram fora da Igreja Católica Romana; ape
nas afirma que tais carecem do valor que assegura a sua conservacáo
auténtica: Pedro e a sucessSo apostólica.

Comentario: Nao é raro hoje em dia encontrar pessoas


que se entusiasman! por Cristo, reconhecido e amado através
dos Evangelhos, mas se interrogam a respeito da Igreja
de Cristo. A serie de Congregares Cristas que trazem o nome
de «Igreja» é enorme: pentecostais, batistas, presbiterianos,
metodistas, luteranos, anglicanos, adventistas... constituem
«Igrejas» ao lado da Igreja Católica? Qual dessas escolherá o

— 386 —
QUAL A IGREJA DE CRISTO ? 23

discípulo de Cristo que deseje viver comunitariamente a fé


crista ? A qual se filiará ?1

A estas questóes dedicaremos as páginas que se seguran,


tencionando abrir pistas diante de dúvidas que a esse respeito
se póem cada vez mais freqüentemente em nossos dias. — O
estilo do artigo será intencionalmente sintético, tendo em vista
apenas atender ao questionamento proposto.

1. Poderíamos procurar assim...

Obviamente falando, dir-se-ia que a resposta as questóes


atrás formuladas é a seguinte: a Igreja de Cristo é a mais
santa, a mais fervorosa e missionária das comunidades cristas.
Por conseguinte, procure o amigo de Cristo qual das diversas
Igrejas existentes em sua cidade é a que mais parece praticar
o amor ensinado por Cristo e mais entusiasma os seus mem-
bros... Será a Igreja Batista? Caso julgue que sim, o can
didato far-se-á batista. Se julgar que é a Igreja pentecostal que
mais satisfaz aos preceitos do Evangelho, o amigo de Cristo
tornar-se-á pentecostal. Dado, porém, que a Igreja escolhida
nao corresponda as expectativas do fervoroso candidato, este
poderá tranquilamente mudar de Igreja, aderindo a outra ou
mesmo ficará sem Igreja caso em nenhuma encontré a reali-
zacáo do ideal cristáo concebido por ele. Apenas um elemento
parecerá essencial a tal cristáo: a Biblia, pois nesta ele julgará
encontrar o mais importante, ou seja, a doutrina de Cristo
que, recebida pela fé, salvará o leitor da Biblia. Esse cristáo
poderá ficar fora da Igreja ou sem Igreja, nunca, porém, sem
a Biblia...

A historia que acaba de ser esbocada, é realmente a de


nao poneos cristáos — católicos e protestantes —, que se dáo
por insatisfeitos com as falhas humanas da Igreja em que co-
me^aram a viver o Cristianismo. Vém a ser angustiados e
instáveis, pois nunca encontram a vivencia ideal ou a santidadé
perfeita entre os homens seus irmáos.

iA pertenca á Igreja, embora seja contestada e menosprezada por


mullos cristáos, é Inerente ao tftulo mesmo de C Istao. Deus nao qute san
tificar os homens de maneira meramente Individual, mas, tendo felto o
homem social, quer também atrai-lo a Si em socledade ou na Igreja.
O Evangelho e as cartas de Sao Paulo atestam etoqüentemente esta
verdade. Cf. Mt 18,1-35; Ef; Col.

— 387 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

Ve-se, porém, que tal método de procura da Igreja é falho;


baseia-se em criterios humanos (santidade, virtude, bom com-
portamento dos homens...), que podem decepcionar duramente
quem se queira apoiar neles.

Por isso passamos a encarar outro tipo de procura da ver-


dadeira Igreja de Cristo.

2. Outra vía de procura

1. Disse Jesús Cristo aos Apostólos antes de Ihes subtrair


a sua presenca visível: «Ide, ensinai todas as nagóes. E eu
estarei sempre convosco até a consumagáo dos séculos»
(Mt 28,19s).

Estas palavras projetam luz decisiva sobre o problema:


Jesús promete sua assisténcia — penhor de fidelidade ao Evan-
gelho — aos Apostólos e aos seus sucessores até o fim dos
tempos. Isto quer dizer que há um criterio objetivo para carac
terizar e discernir a verdadeira Igreja ou a Igreja fundada por
Cristo : esse criterio é a continuidade da sucessáo apostólica
desde os tempos de Cristo até hoje ou mesmo até o fim dos
séculos. Esse criterio nao oscila com a santidade dos homens
e permite que a Igreja de Cristo seja reconhecida com relativa
facilidade. Para tanto, basta examinar a historia de cada urna
das denominagóes cristas que se apresentam ao observador hoje
em dia: a luterana comega com Lutero (1483-1546), a calvi
nista ou presbiteriana com Calvino (1509-1564) e J. Knox
(1514-1572), a metodista com J. Wesley (1703-1791), a adven
tista com W. Miller (1782-1849) e Ellen Gould White, a pente-
costal com pastores norte-americanos no inicio do século XX.

2. No Ocidente, apenas a Igreja Católica pode recuar


desde os nossos tempos até a época dos Apostólos ou até Cristo
sem hiato ou interrupgáo e recomego. Verdade é que na histo
ria da Igreja Católica houve Papas, bispos e clérigos pouco
dignos, que viveram em contradigáo com o Evangelho... Nao
ee devem negar as incoeréncias moráis que houve realmente ;
mas deve-se reconhcer que Jesús nao quis garantir sua assis
téncia infalível aos mais santos ou mais zelosos dos seus discí
pulos, mas, sim, aos que continuassem legítimamente a suces
sáo apostólica. A santidade ou, em contra-parte, a miseria dos
homens nao condicionara decisivamente a obra de santificacáo

— 388 —
QUAL A IGREJA DE CRISTO ? 25

que Cristo quer realizar na sua Igreja através dos homens


(santos ou nao) que Ele chama para exercerem o minis
terio apostólico. Também nao é á procura da santidade dos
homens (valor relativo e instável) que os cristáos devem andar,
mas, sim, á procura de Cristo, que age pelos homens.

Nao há dúvida, é para desejar que os sucessores dos Apos


tólos se esforcem decididamente por ser santos e exercer digna
mente as suas funcóes. Quanto mais responsabilidade Cristo
confia a alguém, mais dele exigirá fidelidade e virtude. Cristo
disse mesmo que o amor mutuo seria a grande característica
de seus discípulos (cf. Jo 13, 34s). Mas, conhecendo a fra-
queza dos homens, o Senhor nao quis condicionar o ministerio
da sua graoa á virtude das criaturas.

3. Dirá, porém, alguém: a Igreja Oriental, chamada


«ortodoxa»1, separada da Igreja Católica Romana, conserva
inintcrruptamente a sucessáo apostólica; nao foi reformada
ou recomecada como as denominagóes protestantes do Ocidente.
Por que entáo nao dizer que Cristo lhe presta a assisténcia
infalível prometida em Mt 28,18-20, como a presta á Igreja
Romana ?

Deve-se reconhecer a sucessáo apostólica ñas comuni


dades orientáis separadas de Roma. Acontece, porém, que,
dentre os doze Apostólos, quis Cristo escolher um — Pedro —
para que fosse o sinal e o fator da unidade do colegio apos
tólico. Com efeito, disse Jesús a Pedro:
Mt 16,18s: «Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a
minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, e tudo
quanto ligares na térra ficará ligado nos céus, e tudo quanto
desligares na térra, será desligado nos céus».

Jo 21,16s: «Apascenta as minhas ovelhas».

Le 22,31s: «Simáo, Simáo, Satanás vos reclamou para vos


joeirar como o trigo. Mas eu roguei por ti, a fim de que a tua
fé nao desfalega. E tu, urna vez convertido, confirma os teus
irmáos».

i "Ortodoxa" porque até o século Vil (Concilio da Constanlinopla III,


681) defendeu sempre a reta fé (ortodoxia, em grego) em oposicáo ás here-
slas do arlanlsmo, do nestorianismo, do monolislsmo e do monotellilsmo.
Tendo conservado a reta fó (sem heresia), os cristáos orientáis se separaran»
de Roma em 1054 por Iniciativa do Patriarca Miguel Cerulário de Con3tanti-
nopla.

— 389 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 178/1974

Donde se vé que Pedro recebeu, como nenhum outro Apos


tólo, a missáo de conduzir o rebanho de Cristo. De modo es
pecial, verifica-se que a fé de Pedro é criterio para se distin-
guirem as auténticas proposigóes de fé.

Se, conforme as palavras evangélicas ácima, Pedro rece


beu de Cristo o primado entre os Apostólos, compreende-se
que o Apostólo ou sucessor de Apostólo que nao tenha comu-
nháo com Pedro já náb goza da assisténcia que Cristo quis pro
meter a Pedro e ao colegiado unido a Pedro.

Mais: Pedro morreu como bispo de Roma; os seus su-


cessores em Roma sao, pois, herdeiros do carisma ou da graca
do primado que Jesús outorgou a Pedro. É por isto que a
Igreja de Cristo se chama «romana»... Romana, no caso, quer
dizer «petrina», ou seja, a Igreja que Cristo quis estabelecer
sobre o fundamento visível que se chama «Pedro». Em conse-
qüenda, também se entende que as comunidades ortodoxas
orientáis, tendo-se separado de Pedro, já nao se beneficiam
daquela promessa de autenticidade integral que Cristo quis
fazer á Igreja chefiada por Pedro.

As comunidades orientáis separadas, como também as de-


nominacóes protestantes, conservam numerosos valores do pa
trimonio entregue por Cristo aos Apostólos. Todavía falta-lhes
o valor que garante a incorrupgáo dos demais: a uniáo com
Pedro, pelo qual Cristo quer reger a sua Igreja.

É na Igreja fundada e regida por Cristo que o cristáo en-


contra a Biblia, ... e nao somente a Biblia, mas também a
auténtica interpretacáo desta, pois na Igreja continua a ressoar
a palavra de Deus oral, que é anterior & escrita. Cristo nao e
simplesmente um mestre — como Sócrates ou Aristóteles —
que morreu e nos deixou urna mensagem consignada em livro
por seus discípulos. Mas Cristo continua vivo tiáo apenas na
recordagáo e no afeto dos seus discípulos e, sim, e antes do
mais, na realidade da Igreja que dele se deriva diretamente. E,
portante, na Igreja que o cristáo encontra o Cristo e a Palavra
de Cristo tanto oral como escrita (Biblia).

Sao estas algumas idéias aptas a ajudar o estudioso sincero


que deseje, no panorama do Cristianismo contemporáneo, en
contrar Cristo e a Igreja de Cristo — dois valores que nao se
distinguem adequadamente e sao inseparáveis um do outro.

— 390 —
QUAL A IGREJA DE CRISTO ? 27

A respelto veja
PR 13/1959, pp. 10-20 (primado de Pedro).
PR 14/1959, pp. 61-66 (Infailbllidade de Pedro).
PR 14/1959, pp. 57-60 (Igreja é necessária ?)
PR 47/1961, pp. 469-478 (o axioma "Fora da Igreja n§o há salvac&o").
PR 84/1964, pp. 513-523 (colegiado dos blspos e Papado).
Fr. Dattler, "Pedro em Roma", em REB 34 (1974) pp. 358s.
F. Bouchard, "Juventude da Igreja ou a grande tentacfio moderna".
S§o Paulo 1970.
J. Leclercq, 'V\onde val a Igreja de hoje". SSo Paulo 1970.
P. Mlchalon, "A unidade dos crlstSos". Sao Paulo 1969.

estante de livros
(ContlnuacSo da 3? capa)

O trabalho que o padre faz com a gente, é mullo bom, e seria aínda
melhor se eles pudessem estar aínda mals na comunidade, mas o mals
importante é o encontró entre nos mesmos.
OpinlSo de urna jovem casada, que nos acompanhou no local e que
já vlveu no lugar e atuou como catequista há quatro anos: diz sentlr-se
multo bem naquele lugar; embora morando em Urania, procura estar sempre
com a comunidade, onde pode sentir o cresclmento da uniáo entre 83
pessoas".
(Comunidade do Córrego do Fandango, Urania, diocese de Jales, SP).

Deus em negativo. Reflexóes de um fotógrafo, por Peter Mulder. Tra-


ducSo do Italiano por F. Tescarolo. — EdlgOes Paulinas, SSo Paulo 1974,
230x295 mm.
Este Nvro nSo ó como um estudo de teología sistemática, é obra de
um artista, que fala para artistas, Intuitivos e místicos, apto, porém, a des
pertar em todo e qualquer leitor profundas IntulcSes. O autor aprésenla a
obra dizendo que, um dia, seu fllho de quatro anos perguntou á mié:
"Mamáe, papal é fotógrafo; por que nao tira urna fotog-afla de Deus?" Isto
motlvou o pal a procurar nos desenhos captados pela fotografía Imagens
de Deus, imagens que, sendo finitas, seráo sempre negativos do Infinito...
P. Smulder aprésenla, pois, urna serle de belas fotografías acompanhada3
de textos explicativos, através dos quais procura elucidar os atributos de
Deus e o relacionamento "Deus e homens". O livro, Ilustrado como é, se
presta para servir de presente e para ajudar os leltores a meditar sobre
as belezas da natureza. "Compreendl que, para obter o retrato de Deus, a
única colsa realmente necessária é encontrar o negativo de Deus" (Intro
ducto). — As páginas do livro carecem de numeracSo (por qué ?).

E. B.

— 391 —
Mística maometana:

o sufismo: que é?

Em sfntese: O sufismo 6 a corrente mística do Isla. Aspira a tazar


a experiencia de Deus, nao pelos sentidos, nem pela razio, mas pelo amor,
que abre os olhos da mente. Tal alitude corresponde nSo somonte a um
anselo inato da alma humana, mas, no Isla, fol especialmente provocada
como reagáo a tendencia um tanto jurídica dos mestres e doutores mucul-
manos. O sufismo, que tem seus grandes sabios a partir do séc. VIII d. C,
foi absorvendo Influencias da filosofía grega antiga e do hinduísmo, de
modo a se tornar panteísta: a criatura se identificaría com a própria Divin-
dade no auge da sua evolucáo, religiosa. Ora tal tese foi veementemente
contraditada nos ámbitos do próprio Islamismo, de modo que o sufismo
hoje nao tem grande repercussao na vida Islámica.

Do ponto de vista cristüo, pode-so reconhecer a existencia da expe


riencia de Deus fora da Igreja Católica, ñas pessoas que sinceramente sigam
os ditames da sua consciéncla, sem hesitacSo nem covardia perante o
problema religioso (Deus se manlfesta a todo homem na medida da fideli-
dade que a criatura oterece aos apelos do Senhor Deus). Todavia nao se
podem aceitar as expressdes panteístas dos místicos islámicos, pois cons-
tltuem aberracóes tanto aos olhos da sá razSo como aos da ReveiacSo.

O Concilio do Vaticano II reconheceu os elementos positivos comidos


na fé do Isla, ao mesmo tempo que afirmou estar a plenltude da Revelacáo
Divina na única Igreja fundada por Cristo e dirigida por Pedro e seus
sucessores.

Comentario: O Sufismo vem a ser a corrente mística, por


excelencia, do Islamismo ou da religiáo fundada por Maomé
em 622 d. C. Por incrível que parega em nossos tempos, a mís
tica, principalmente a mística oriental, está muito em voga,
despertando o interesse de numerosos cristáos e nao cristáos.

Já em PR 33/1960 tratamos de mística e islamismo em


dois artigos distintos. Todavia, já que o assunto continua a in-
teressar os leitores, abordaremos explícitamente, ñas páginas
que se seguem, o sufismo ou a mística islámica, com seu his
tórico e suas idéias principáis; após o que, proporemos urna
avaliacáo das nocdes apresentadas.

A guisa de preliminares, apresentamos o sentido de alguns


vocábulos em foco :

_ 392 —
SUFISMO : QUE É ? 29

— A palavra Mística nao quer dizer vida caracterizada


por fenómenos extraordinarios, como visóes, éxtases, estigmas,
mas, sim, a experiencia da presenga de Deus concedida a todo
homem que procure o Senhor com amor sincero. Essa expe
riencia nao se faz pelos sentidos externos nem pelo raciocinio,
mas pela afinidade ou o amor crescente que possa haver da parte
da criatura em relagáo ao Criador. Dois seres que se amam
mutuamente, conhecem-se por co-naturalidade ou por amor,
ainda que nao recorram ao estudo ura do outro ; o amor abre
os olhos da mente (tenha-se em vista, por exemplo, o que se
dá entre máe e filho).

— A palavra árabe que corresponde a Mística é tasawwuf,


derivada do termo suf, lá. Significa originariamente «revestir-
-se de lá» ; a roupa de lá era o traje que os antigos ascetas
ou monges usavam. Designava aos olhos do público a vida re
tirada do mundo que o asceta levava. Quem se veste assim, no
Islamismo, é chamado sufi. Deste vocábulo se deriva sufismo,
o designativo da Mística islámica.

— Os vocábulos «mugulmano» e «árabe» nao sao equiva


lentes entre si. O islamismo conta hoje em dia com cerca de
400 milhóes de adeptos, que vivem principalmente na Asia
(onde há perto de 300 milhóes de maometanos, mais densa
mente situados na india e na Indonesia). Na África vivem
aproximadamente 80 milhóes de mugulmanos. A populagao
árabe propriamente dita constituí um bloco minoritario dentro
da familia musulmana. Este grupo exerceu e exerce até hoje
influencia de primeira grandeza na configuragáo do islamismo.
Todavía as populagóes do Paquistáo e da Indonesia, mugulma-
nas como sao, tendem a dar suas notas marcantes ao futuro
do Isla.

T. O Sufismo : histórico e doutrinas

Examinaremos sucessivamente o surto e as grandes idéias


do sufismo.

1.1. > Surto da mística islámica

As leis religiosas e moráis do islamismo tém em mira


principalmente os pecados públicos (mais suscetiveís de defi-
nicáo legal). O islamismo reconhece quase exclusivamente o

— 393 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

foro externo (ou o comportamento vistvel da pessoa). Os dita-


mes da consciéncia ou o foro interno sao menos levados em
conta na avaliagáo da conduta humana. Ora precisamente este
trago do islamismo provocou no decorrer dos tempos o surto
e o cultivo da vida mística em ambientes islámicos; assim a
mística veio a ser inseparável da religiáo da lei entre os mao-
metanos. Se Deus, pelos profetas, comunicou a sua Palavra
aos homens, como admitir que os coragóes sinceros nao tenham
sede de viver dessa Palavra intimamente saboreada e penhor
do futuro encontró direto com o Divino Interlocutor ?

Assim, desde as mais remotas épocas do Isla houve ascetas


e penitentes que, além de observar os mandamentos, determi-
naram abster-se de tudo que pudesse «distrai-los de Deus e
da ocupagáo com as realidades divinas». O famoso historiador
árabe Ibn Haldun (t 1406) assim descreve a origem do sufismo:

"Esta é urna das ciencias religiosas que tlveram nasclmento no IsIS.


Os antlgos muculmanos e os homens esclarecidos — os companheiros do
profeta e seus sucessores até a terceira geracño — consideraran! o ca-
mlnho do sufista como o da verdade e da salvacSo. Fervor na pledade,
renuncia a tudo mais por amor a Deus, abandono das alegrías mundanas
e da valdade, ptlvacáo dos prazeres, da riqueza e do poder, metas gerais
da ambicio humana, fuga da sociedade e vida na solidSo, consagrada úni
camente ao servico de Deus — estes foram os principios fundamentáis do
sufismo, que predominou entre os companheiros do profeta e dos muculma-
nos da antlgüidade".

Pergunta-se agora: Quais seriam, de maneira mais con


catenada, as idéias que nutriram a vida mística dos sufistas no
decorrer dos tempos ?

— Responderemos assinalando algumas figuras notáveis e


os principios que professaram — o que dará a ver a evolugáo
do pensamento sufista.

1.2. Os grandes mestres e suas doutrinas

1) Sasan al-Basr¡ (f 728)

É o primeiro na ordem cronológica.

a) O ponto de partida da vida mística, segundo este mes-


tre, é o temor das coisas futuras : «A esperanza e o temor sao
os dois cávalos do crente...; o temor deve ter mais forca do
que a esperanga, pois, se a esperanga é mais forte do que o
temor, ela corrompe o coragáo».

— 394 —
SUFISMO : QUE £ ? 31

A tal atitude se associa a dor pelos pecados e pelo atual


estado do mundo. Continua o místico:

"Homem, se les o Qur'an e crés nele, tua dor neste mundo devora
eer grande; teu temor, ardente; e teu pranto, freqüente".

O autor lembra a morte que se aproxima com rapidez. Em


conseqüéncia, o místico já nao encontra valor ñas coisas deste
mundo, principalmente no dinheiro.

b) Compenetrado de tais conceitos, Hasan al-Basri nao


se aflige, mas confia em Deus e guarda a paz, pois Alá criou
os alimentos dois mil anos antes do corpo, e «aquele que confia
em Deus nao reclama de Deus o alimento da manhá, como tam-
bém Deus nao reclama dele a obra da manhá».1

c) O sufista deve esforgar-se por aplacar a ira de Alá pro


vocada por seus pecados. No dia do juízo final seráo postos na
balanga os pecados e as boas obras. Estas nao tém valor apenas
pelo fato de serem realizadas; háo de ser animadas por urna
atitude interior, ou seja, pela retidáo de espirito. O sufista tem
horror ao farisaísmo, como se depreende das palavras do
mestre:

"Ó fllho do homem I Nao pratiques o bem por ostentacSo nem delxes
de o fazer por vergonha 1" 2

d) Hasan al-Basri ensinava também a fraternidade e o


altruismo em relafiáo aos seus semelhantes, colocando assim
as bases para as futuras associagóes de ascetas ou derviches
(mendigos) mugulmanos:

"Prefiro (azer o bem a um Irmfio na fé a passar um mes na mesquita


a meditar".

O mestre julgava nao encontrar eco entre os homens de


seu tempo. Por isto exortava-os insistentemente á penitencia e
lhes mostrava urna imagem idealizada do passado: «Ougo vozes,
mas nao vejo homem algum; só fioaram os fantasmas».

* Note-se a aflnldade com o texto de Mt 6,25:


"Nao vos inquietéis quanto a vossa vida, com o que haveis de comer
ou de beber, nem quanto ao vosso corpo com o que haveis de vestir. Por-
ventura nao é o corpo mals do que a vestimenta e a vida mais do que o
alimento ?"

2 Também este texto lembra o S. Evangelho:


"Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, com
a intencSo de sardes vistos por eles. Do contrario, ■ nfio terels recompensa
do vosso Pai, que estú nos céus" (Mt 6,1 s).

— 395 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS!» 178/1974

Embora fosse crítico em relagáo a certas pessoas, o mes-


tre nao se mostrava agressivo. Nao se envolveu em questóes
políticas.

2) Rabi'a al-Adawiya (t 801)

Antigo flautista convertido á vida de piedade, concebeu


grande zelo religioso, que se exprimía principalmente em amor
a Deus. Redigiu versos' de elevado valor, dos quais extraimos
os seguintes:
eg

"De duas maneira tenho-Te amado: urna egoísta e outra digna de Ti.
Pelo amor egoísta encontrel em TI minha alegría, cega a tudo e a todos.
Mediante o amor que é digno de Ti e Te busca, levantou-se o véu, de
modo que Te posso ver. Todavía nem neste nem naquele é minha a gloria;
totalmente tua é a gloria neste e naquele" (Wensinck-Kramers, "Handwor-
terbuch des Islams". Leiden 1941, p. 604).

As tendencias de Rabi'a e discípulos á intima uniáo com


Deus entraram em choque com os ensinamentos do Isla oficial.
Este insistía em que Deus é absoluto e inacessível; o misterio
de sua vida íntima está drásticamente fechado ao homem. Os
mestres oficiáis do Isla afirmavam que o fiel pode e deve amar
a Lei de Deus, os mandamentos e os beneficios de Deus, nao,
porém, Deus mesmo. Embora o islamismo haja assumido o
essencial do Decálogo bíblico, ele nao tem norma que equivalha
ao preceito: «Tu amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coracáo, de toda a tua alma e de todas as tuas forgas» (Dt 6,4).

Nao obstante, os mais ardorosos dos sufistas tinham sede


de beber ñas proximidades inacessíveis de Deus. Compreendiam
que somente o amor, o auténtico amor nutrido pelo sofrimento
aceito e amado, podia levá-los a tanto. Tendiam assim a ultra-
passar as doutrinas oficiáis do islamismo, que apregoava táo
somente a organizagáo de urna comunidade centrada na adora-
gáo de Deus inacessível.

O confuto entre místicos sufistas e doutores ou juristas do


Isla tornar-se-ia violento nos séc. DC/X d. C.

3) Os místicos dos séc. IX/X

Abul-Mugit ai-Hallas; (858-922) foi dos maiores pensado


res místicos do Isla. Embora haja sido condenado oficialmente
como hereje, goza hoje da fama de santo. Procurou harmonizar

— 396 —
SUFISMO : QUE J5 ? 33

o pensamento muculmano com-^ filosofía grega. Embora pro-


fessasse a transcendencia e a unicidade absoluta de Deus, afir-
mava que o diálogo entre o fiel e Deus se consuma numa certa
unidade (a qual, porém, nao extingue o eu do homem). Te-
nham-se em vista alguns dos dizeres mais característicos de
HaUag:
"Teu espirito se mlsturou com o meu espirito, como o vinho se mis
tura com a agua clara. Se algo toca a ti, toca a mlm. Agora serás eu em
qualquer sltuagáo".

"Ó tu, consciéncia da minha consciéncia 1 Táo sutil que ficas oculto
ao peder imaginativo de todos os vivantes!

Contudo, fora ou dentro, revelas-te a todas as coisas em todas as


coisas.

Ignorancia seria pedir-te perdSo...

Ó tu, sintese de tudo! NSo serás diferente de mim. Como posso pedir
perdió a mim mesmo ?"

Mais :

"Entre ti e mim há um 'eu sou' que me entristece. Afasta, pois, em


tua bondade este 'eu sou'".

Os juristas contemporáneos de Hallag censuraram tais


dizeres como impiedade. Todavia certos sufistas de épocas pos
teriores, entre os quais Ibn Arab?, lamentaram em tais expres-
sóes a dualidade ainda mantida entre Deus e o místico.

Nos séc. JX/X registram-se os nomes de outros sufistas


vítimas de seus contemporáneos: Misri foi perseguido no Egito,
Ibn Karram encarcerado, Tustari morto no exilio em Basra,
Nuri entregue aos tribunais com varios de seus discípulos...

A evolugáo do pensamnto místico chegou ao seu auge nos


séc. Xn/xm d. C. com a figura de

4) Abubeker-Hohamed-ben-Ali ou Ibn al-'Arabi (t 1240)

Este pensador árabe nasceu em Murcia (Andalúsia) no ano


de 1164 e veio a falecer em Damasco (Siria) aos 6 de novem-
bro de 1240.

Este sabio concebe a uniáo entre o místico e Deus em ter


mos panteistas. Tal désenrolar das idéias se deve a influencias

— 397 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 178/1974

gregas, principalmente do neoplatonismo de Plotino, que pro-


fessava a emanagáo de todos os seres a partir do Um (Hen)
ou da Mónada inicial. Para Ibn al-'Arabi e seus discípulos, o
mundo visível e volúvel é a manifestacáo da Existencia Divina;
o espirito humano vem a ser urna emanagáo direta da Esséncia
incriada. A realidade visível há de ser reabsorvida em Deus, o
único Ente que perdura. A uniáo mística, neste contexto, é con
cebida como identificagáo em que a personalidade do sufista
passa a ser absorvida e ;ultrapassada em um Absoluto chamado
Deus. É o que transparece das palavras de Ibn al-Farid, «o
príncipe dos que aman» :

"A sauda?So que eu Lhe presto, é pura metáfora. Na verdade, é de


mlm a Mim que val a minha saudagSo".

"Foi do meu próprio Oom que a minha alma me cumulou".

A interrogacáo: «Em que (como) conheces a Deus ?>, Ibn


Arabi respondía: «Pelo fato de ser Ele a coincidencia dos
opostos». Sim ; o universo seria, ao mesmo tempo, o universo
e nao o universo ; Deus manifestado no universo seria simul
táneamente Deus e náo-Deus, pois, na medida em que é mani
festado, é limitado; esse limitado, porém, nao tem limites; Deus
visível e manifestado é invisivel... Dai a necessidade do conhe-
cimento místico, segundo Ibn al-'Arabi.

Nao se poderia deixar de observar o paralelismo existente


entre tal atitude mística e o pensamento da India bramánica :
para este, atetan (o Eu singular e pessoal) é brahmán (o Abso
luto transpessoal)..

A partir do séc. XII d. C, foram-se formando comunidades


de sufistas ou dervishes,l que tomavam o nome e seguiam os
ensinamentos dos grandes mestres: observavam Regras de vida
cenobítica, assemelhando-se as Congregagóes religiosas do Ca
tolicismo. Cada comunidade constava de um grupo relativa
mente pequeño de sufistas, que no convento vivia de esmolas,
e de um grupo maior de leigos, que permanecían! no mundo,
mas se reuniam oportunamente para cuniprir certas práticas
religiosas sob a direcáo de seus mestres. — Algumas destas
comunidades ou congregagóes sufistas subsistem até hoje, en-
quanto a maioria decaiu e extinguiu-se.

A formagáo do sufista, nos periodos áureos de tais familias


religiosas, era estritamente regulamentada. Comegava com a

>A palavra denrish vem do persa e significa "mendigo".

— 398 —
SUFISMO : QUE fi ? 35

decisáo (irada) de consagrar-se á vida mística (tarlqa) e re


nunciar ao mundo. Para poder seguir este caminho, que em si
encerra muitos perigos, o novigo escolhia um guia, ao qual se
confiava plenamente e prestava cega obediencia. Os inicios da
formagáo eram assinalados pela mais rígida observancia da
lei (sari'a); o término era a realidade divina (haqiqa). Entre
o inicio e o término havia exercícios que o mestre impunha e
que o novico executava em fidelidade ao seu propósito de obe
diencia : tais eram a contemplagáo interior, a recitacáo de
preces (dikr), o jejum... para finalmente alcancar a uniáo
mística com Alá.

Note-se ainda o seguinte tópico :

5) Nos séc. XIII/XIV d.C.

Em tal época fizeram-se sentir no sufismo influencias múl


tiplas do Extremo-Oriente, por via turco-mongol. Concretiza-
ram-se em práticas características como posigóes corporais (á
semelhanga das do hinduísmo e da yoga) e a repeticáo amiu-
dada do santo nome de Deus.

Em virtude das influencias heterogéneas recebidas da


parte do helenismo e do hinduísmo, a mística sufista caiu em
descrédito e tórnou-se nos séculos subseqüentes objeto de burla
e escarnio nos próprios ambientes mugulmanos.

Em síntese, a historia do sufismo manifesta vicissitudes, em


que posigóes religiosas de grande valor aparecem ao lado de
expressóes panteístas (contrarias á sá razáo ou a filosofía mes-
ma). Contudo o sufismo significa o necessário contrapeso da
piedade formalista ou legalista a que tendiam os grupos oficiáis
do Isla. A alma humana é essencialmente impregnada de senso
místico, isto é, de senso do misterio, do Absoluto, do Transcen
dental, que é preciso auscultar, e com o qual é necessário en-
treter-se no íntimo das consciéncias. Urna religiáo de preceitos
e normas de foro externo jamáis satisfará ao genuino senso
religioso. Antes, as normas e os preceitos háo de ser incentivos
da verdadeira uniáo com Deus, que se faz no íntimo dos cora-
góes e que segué vias inefáveis, porque proporcionan! a expe
riencia do Inefável ou do Absoluto (Deus em sua riqueza de
vida infinita).

Urna notável tentativa de conciliar o sufismo e a ortodoxia


islámica foi a do pensador Abn Hamid al-Gazzali ou também

— 399 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

Algazel (1058-1111). Tendo nascido em Tus, provincia persa,


dedicou-se primeiramente ao estudo do Direito. Em 1091 foi
convidado para ensinar na Universidade an-Nizamiya de
Bagdad. Tornou-se entáo absolutamente cético, pondo em dú-
vida nao somente as verdades religiosas, mas também a possi-
bilidade de qualquer conhecimento seguro. Quatro anos mais
tarde, tendo feito profundo estudo do sufismo, passou por urna
conversáo religiosa radical, da qual um dos principáis motivos
foi a perspectiva do juízo final. Al-Gazzali abandonou entáo a
sua magnifica situagáó em Bagdad e abragou a vida de sufista,
encontrando nela «paz para a alma e certeza para o seu espi
rito»; estava convicto lie que um edificio doutrinal puramente
filosófico carece de fundamento firme; a experiencia religiosa
ou mística deve dar solidez ao que a razáo afirma.

Algazel teve o grande mérito de basear a fé sobre o fun


damento do amor de Deus — o que acarretou válida restaura-
cáo dos costumes. O Coráo e a tradigáo islámica foram toma
dos estritamente como fontes inspiradoras da fé e da piedade
islámicas, em lugar das escolas filosóficas. Assim Algazel tor
nou-se o grande doutor do Isla, doutor cuja importancia é por
vezes comparada á de S. Tomás de Aquino no Catolicismo.

Resta agora perguntar:

2. E que pensar do sufismo ?

Proporemos a resposta em duas etapas:

2.1. Mística fora do Cristianismo

Existe um só Deus, Criador de todas as coisas e distinto


délas, o qual, além de se manifestar pela criacáo, se revelou
de maneira especial aos homens mediante os Patriarcas e os
Profetas de Israel e, finalmente, por Jesús Cristo.

Nao há quem nao possa ouvir a voz de Deus

através dos seus sinais na criacáo (nao há relógio sem


relojoeiro) ;

na consciéncia pessoal de cada homem, onde Deus fala


mediante um ditame básico: «Pratica o bem, evita o mal»,
ditame que é paulatinamente desdobrado e esmiugado pelo ra
ciocinio e pela educagáo que a pessoa recebe.

— 400 _
SUFISMO : QUE fi ? 37

A muitos Deus dá a conhecer também o Evangelho e a


Igreja convidando-os a participar explícitamente dos meios de
santificagáo oferecidos pela única Igreja de Cristo, que, con
forme lembrava o Concilio do Vaticano n, subsiste na Igreja
Católica Romana:

"O próprio Deus manifestou ao género humano o camlnho pelo qual


os homens, servlndo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se fellzes em
Cristo. Oremos que essa única verdadelra RellgiSo se encontra na Igreja
Católica e Apostólica, a quem o Senhor Josus confiou a tarefa de difundl-la
aos homens todos, quando dlsse aos Apostólos: 'Ida, pols, e ensinai os
povos todos...' (Mt 28,19s). Por sua vez, estáo os homens todos obrlgados
a procurar a verdade, sobretudo aqueta que diz respelto a Deus e á sua
Igreja e, depois de conhecé-la, a abragá-la e pratlcá-la" (DeclaragSo "Digni-
tatis Humanae" rfl 1).

Ou aínda:

"Esta Igreja (a única Igreja de Cristo), constituida e organizada neste


mundo como urna sociedade, subsiste na Igreja Católica governada pelo
sucessor de Pedro e pelos blspos em comunhao com ele, embora fora
de sua visivel estrutura se encontrem varios elementos de santificado e
verdade" (Const. "Lumen Gentlum" n? 8).

Aqueles a quem a Providencia Divina nao proporciona os


meios de conhecer o Evangelho, Deus também se torna pre
sente através da consciéncia, que sugere a todo homem urna
determinada crenga religiosa ou alguma filosofía. Quem adere
a tal crenca ou filosofía com sinceridade e tranqüilidade, sem
hesitagáo nem dúvida, em última análise está aderindo a Deus;
embora professe o budismo, o islamismo, o paganismo ou até
mesmo o ateísmo, professa fidelidade a Deus, se procura real
mente ser fiel á sua consciéncia, sem fugir covardemente do
problema religioso. Essa pessoa recebe de Deus a justificagáo
sobrenatural: o pecado original lhe é apagado; a graca santifi
cante com as virtudes infusas e os dons do Espirito Santo lhe
sao infundidos, á guisa do que se dá nos cristáos (diz-se que
essa pessoa possui o voto implícito do batismo; o que quer dizer:
essa criatura é táo reta e sincera que, se ela tivesse conheci-
mento do significado exato do batismo, ela nao deixaria de
o pedir).

Mais: se urna tal pessoa durante anos a fio persevera


numa atitude total de docilidade aos ditames da sua conscién
cia, habituando-se a nao contradizer ao que esta lhe diga, essa
pessoa poderá fazer a experiencia da presenga e da agáo do
Altíssimo, que nela habita ; em outros termos : poderá chegar
ao estado místico.

— 401 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

Eis por que há fundamento para reconhecer que no Isla


tenha havido e haja fiéis dotados de vida mística. Só Deus
sabe quais sao e com que freqüéncia ocorrem; é certo que ao
náo-cristáo faltam os cañáis mais ricos da graga, que sao os
sacramentos, em particular a S. Eucaristía. Se já ao cristáo é
difícil vencer a lentidáo da natureza e sair da mediocridade,
embora seja continuamente revigorado pelos mais valiosos dons
de Deus, para quem nao participa de tais dons a mesma tarefa
há de ser mais ardua ainda.

2.2. O panteísmo

1. Como vimos, o sufismo foi mais e mais tendendo para


o panteísmo: o místico se identificaría com a própria Divin-
dade no auge do seu processo de uniáo com Deus. — Está
claro que tal concepcáo nao resiste ao crivo da lógica, pois na
verdade nao pode haver identidade inicial nem processo de
identificacáo entre o homem e Deus. O Todo-Podroso, sendo
Absoluto, Eterno, infinitamente Perfeito, é radicalmente diverso
de qualquer criatura, cuja índole própria é ser contingente,
relativa e limitada; o Infinito nao é a soma de termos finitos;
Ele nao tem partes; é a posse simultanea de si mesmo sem
passado, presente ou futuro.

Nao se deve julgar que a transcendencia divina exclua a


aplicagáo das regras da lógica a Deus. Para Deus, o Sim nao
é Nao, como também para nos, homens ; para Ele, o Sim lógi
camente é sempre Sim e nunca NSo; o que para nos é ilógico,
também para Deus é ilógico. Assim dizemos que, para Deus,
«círculo quadrado» é algo de absurdo, que Deus, Todo-Poderoso
como é, nao pode fazer em hipótese alguma.

Mais : a transcendencia de Deus nao quer dizer que Ele


nao possa ser reconhecido pela aplicacáo da lógica e do racio
cinio. A razáo nos leva a atingir Deus em si, a semelhanca das
perfeicóes ocorrentes ñas criaturas; por conseguinte, dizemos
que Deus é Amor, Paternidade, Bondade, Justina; todavía nao
é Amor, Paternidade, Bondade, Justina como (ou do modo
como) os homens sao tais.

2. A mística crista concebe um Deus transcendente e pes-


soal, com o qual a criatura humana deve entrar em íntima
uniáo sem, porcm, se confundir ou identificar com Deus. S.
Agostinho formulava esta concepcáo, afirmando a respcito do

— 402 —
SUFISMO : QUE É ? 39

Deus: «Superior summo meo, intimior intimo meo. — Deus


está ácima do que eu possa conceber de mais elevado, mas
também é mais íntimo a mim do que o que eu possa ter de
mais íntimo». Com efeito, Deus, transcendente como é, se digna
habitar a alma do justo mediante a graga santificante, de modo
a ser o maior tesouro do cristáo ou o Bem que dá valor aos
bens humanos.

3. Semelhantes observacóes se devem fazer com referen


cia á mística hinduísta (com suas facetas bramanicas e budis
tas...): corresponde a um genuino anseio da alma humana,
que é e será sempre sequiosa do Absoluto, do Misterio, do Ine-
fável (do qual ela traz o sinete espiritual); todavia as expres-
sóes desse anseio místico natural nem sempre sao conformes á
sá razáo e — o que mais importa — 'á Revelagáo que o próprio
Deus fez de si na tradicáo judeo-cristá. É por isto que se pode
e deve distinguir, ñas místicas nao cristas em geral, o fundo
positivo e precioso que as inspira, e as manifestares desse
fundo. Aquele será sempre digno de aprego, podendo até tor-
nar-se ligáo e estímulo para os cristáos ocidentais (hoje em
dia mais propensos á acáo e ao ativismo do que ao recolhimento
e á oracáo). Todavía a filosofía e a teología que os náo-cristáos
adotam, sao geralmente de fundo panteísta; conseqüentemente,
nao podem dar lugar a idéia de graga divina ou de «auxilio
outorgado por Deus para que o homem se eleve a Ele»; segundo
tal modo de ver, é o homem quem por seus esforgos pessoais
se torna «atleta espiritual»; por si mesmo, chega a fazer a ex
periencia da Divindade, purificando seus pensamientos e afetos,
emancipando-se da recordagáo das criaturas sensíveis, para dar
expansáo á centelha da Divindade que é a sua alma. — O cris
táo, ao contrario, tem consciéncia das palavras que Blaise Pas-
cal atribuí a Jesús: «Nao me procurarías se ¿á nao me tives-
ses encontrado», o que quer dizer: «Nao me procurarías se já
nao estivesses sendo atraído por Mim»; o cristáo sabe, sem
dúvida, que deve ser um atleta heroico na luta contra as más
tendencias, mas nao ignora que esse seu heroísmo é antecipado
por benévolo auxilio de Deus, de sorte que tudo o que o homem
faca de belo na procura do Senhor deve ser atribuido, antes
do mais, á graga sobrenatural.

Bibliografía:

Fr. Konlg. "Cristo y las religiones de la tierra". 3? vol. BAC 208.


Madrid 1961.

— 403 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

L. Gardet, "Connaitre l'lslam". Col. "Je sais — Je crols" rfí 143.


París 1958.

Gorce-Mortler, "HIstoire Genérale des Reltgions", t. IV. París 1952.

J. Daniélou, "Dieu et nous". París 1956.

V. H. Cátala, "La expresión de lo Divino en las religiones no cristia


nas". BAC 334. Madrid 1972.

P. Damborlena, "La salvación en las religiones no cristianas". BAC 343.


Madrid 1973.

APÉNDICE

Vai aqui transcrita a bela página em que o Concilio do


Vaticano n se refere ao Isla :

"Quanto aos mugulmanos, a Igreja os vé com carinho,


porque adoram a um único Deus, vivo e subsistente, miseri
cordioso e onipotente, Criador do céu e da térra, que falou aos
homens. A seus ocultos decretos esforgam-se por se submeter
de toda a alma, como a Deus se submeteu Abraao, a quem a
crenga mugulmana se refere com agrado. Nao reconhecem
Jesús como Deus; veneram-no, porém, como profeta. Honram
María sua máe virginal e até a invocam ás vezes devotamente.
Aguardam, além disso, o dia do juízo, quando Deus há de re
tribuir a todos os homens ressuscitados. Como conseqüéncia,
valorizam a vida moral e honram a Deus no mais alto grau
pela oragáo, por esmolas e jejum.

Embora no decorrer dos sáculos tenham surgido nao pou-


cas dissensóes e infmizades entre cristáos e mugulmanos, o
Sacrossanto Concilio exorta todos a que, esquecidos os acon-
tecimentos passados, sinceramente ponham em prática a mu
tua compreensáo. Em beneficio de todos os homens e em
acao conjunta, defendam e ampliem a justiga social, os valores
moráis, bem como a paz e a liberdade" (Declaragao "Nostra
Aetate" n° 3).

— 404 —
Documentarlo:

e a morte do cardeal daniélou?

Abordaremos aqui, em termos concisos, um fato que me-


receu a atencáo do grande publico, tanto na Europa como no
Brasil.

1. O fundo de cena

Aos 20 de maio de 1974, faleceu em Paris o Cardeal Jean


Daniélou, Religioso da Companhia de Jesús, eminente teólogo
e membro da Academia Francesa.

Nascera em Neuilly (Bretanha) aos 14 de maio de 1905,


tendo, pois, morrido aos 69 anos de idade. Seu pai, Charles Da
niélou, era jornalista, deputado do Finistério, varias vezes minis
tro e amigo de Aristide Briand; professava o laicismo radical.
Ao contrario, a máe de Jean era crista convicta, educadora
notável, fundadora do «Collége Sainte-Marie» e da Escola Nor
mal livre de Neuilly. «É a ela que devo a minha vocacáo de
intelectual», reconhecia o Cardeal, «ou simplesmente a minha
vocacáo. Foi ela quem me ensinou a orar».

Jean entrou na Companhia de Jesús aos 24 anos de idade


em 1929 e foi ordenado sacerdote em 1938. Dedicou-se, a seguir,
principalmente ao magisterio e á redagáo de numerosos livros
e artigos. Era ardoroso arauto e propugnador das verdades
da fé.

Em 1969, foi nomeado Cardeal pelo S. Padre Paulo VI,


conservando-se até o fim da vida sempre simples e pobre. A
respeito da morte escreveu em carta a Jacques Chancel:

"Para mim, a morte é essencialmente a suprema pobreza.


é o momento em que somos totalmente despojados. Nesta
perspectiva, posso dizer que nao receio a morte; nao o fago,
porém, como um estoico... O sofrimento suscita-me o medo.
Todavía tenho confianca em Deus. Ele saberá levar-me... em
boas condicdes".

— 405 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

A morte do Cardeal Daniélou se deu súbitamente, em


conseqüéncia de crise cardiaca. Nao pode ser reativado, apesar
dos cuidados que prontamente lhe foram dispensados pelo «Ser-
vico médico de urgencia». O fato ocorreu á tarde, no aparta
mento da bailarina Mimi Santoni. Estas circunstancias deram
ocasiáo a que certos órgáos da imprensa insinuassem conside
rares desairosas ou maldosas a respeito do venerável prelado.
O jornal «Le Canard Enchainé», (O Pato Acorrentado), porta-
-voz satírico da esquerda francesa, deu a entender que a morte
no apartamento da danoarina poderia significar que as inten-
Cóes de Daniélou nao eram únicamente as de um pastor de
almas.

A propósito, que se poderia dizer, em atitude serena e


objetiva ?

Em resposta, proporemos abaixo alguns documentos.

2. Testemunhos

1) Mimi Santoni... O semanario alemáo «Neue Bildpost»,


aos 30/VI pp., publicou o depoimento da própria bailarina
assim concebido :

"O dinheiro que o Cardeal me trouxe, era para meu filho.


O pai dele me abandonou e eu me encontrava em extrema
necessldade. Nao podia trabalhar por causa da crianga. O
Cardeal Daniélou veio a saber da minha situacáo através de
um conhecido meu e quls ajudar-me. Juro sobre o Evangelho
que entre o Cardeal e minha pessoa jamáis existiu qualquer
outra relagáo".

A porteira do predio onde o Cardeal morreu, declarou, por


sua vez, que o Cardeal nao freqüentava aquele local, situado
perto da residencia dos jesuítas, onde o prelado morava.

É notorio, alias, que Daniélou, além de exercer intensa


atividade intelectual, se interessava com zelo apostólico por
casos pessoais aflitivos nos ambientes mais difíceis de Paris.
Assim procedendo, nao fazia senáo imitar o próprio Cristo,
que se sentava a mesa com os publícanos e pecadores (cf.
Me 2,16) e permitiu á mulher infame, mas contrita, que lhe
osculasse os pés em sinal de arrependimento (cf. Le 7, 36-50).
O auténtico pastor nao recusa ir procurar a ovelha onde quer
que ela se tenha perdido.

— 406 —
MORTE DO CARDEAL DANESLOU

Foi, alias, neste sentido que se exprimiram os autores de


outros depoimentos.

2) Prof. André Mandonze. O jornal «Le Monde», vinte


e quatro dias após a morte do Cardeal Daniélou, publicou o
testemunho do mencionado professor da Sorbonne, que cola-
borava com o prelado em diversos setores de trabalho. Eis as
palavras de André Mandouze :

"O que um homem fez de bem, nao Ihe pode ser tirado.
Esia regra se aplica também aos homens da Igreja e, forgosa-
mente, a Jean Daniélou, cuja obra finalmente é muito mais
do que a sua pessoa. Ainda mesmo que, aparentemente, tudo
estivesse contra um homem que nao está mais aqui para se
defender e quando nao há provas para demonstrar a sua cul-
pabilidade, ele deve ser considerado ¡nocente. Quando o con
junto de urna vida nao se enquadra num fato ¡solado — como
o último —, é a interpretagáo deste fato ¡solado que nos leva
a urna legítima suspeita, e nao a lógica de todos os atos que
o precedem". Acrescentou ainda André Mandouze que, "para
todos aqueles que -conheceram de perto o Cardeal Daniélou,
é quase impossível admitir que ele tenha tido, em sua vida
particular, fraquezas humanas que ninguém viu em sua vida
pública".

Sem comentarios, passamos á


3) Declararse do Episcopado Francés. O Secretariado do
Episcopado Francés distribuiu o seguinte comunicado:

"Diversos artigos de jomáis fizeram eco a graves ¡nsinua-


cóes contra a pessoa do Cardeal Jean Daniélou. Diante da
insistencia desta campanha, os Cardeais e o Conselho Perma
nente do Episcopado tém o dever de levar ao conhecimento
dos católicos e da opiniáo pública em geral a seguinte de-
claragáo :

Durante mais de quarenta anos o Padre Jean Daniélou,


antes e depois do seu cardinalato, realizou urna atividade no-
tável a servigo da Igreja e adquiriu renome mundial tanto por
seus ensinamentos como por suas publicagoes históricas e
teológicas. Por toda a parte ó sabido que sempre seu aposto
lado se estendeu aos mais diversos melos e, com freqüéncia,
aos mais necessitados do mundo católico e nao católico. Tra-
ta-se de um fato concreto, un ¡versal mente reconhecido e por
numerosas testemunhas, que muitos devem a seu ministerio
o acesso á fé. Para destruir táo grande crédito, nao seriam
A(YT
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

suficientes habéis difamagóes, entrevistas preparadas ou refe


rencias satíricas. O Cardeal Daniéiou nao está mais aqui para
se defender. O respeito para com aquele que conhecemos e
somente o zelo da verdade é que ditam nossa conduta. Guar
daremos o espirito livre de pressoes de qualquer especie.
Nossa fidelidade á nossa missáo episcopal e a confianca dos
católicos em nossa palavra o exigem".

4) É oportuno transcrever também a mensagem com que,


pouco depois do óbito de Daniéiou, o Cardeal Frangois Marty,
arcebispo de Paris, comunicou o fato aos seús diocesanos :

"Um homem de fé acaba de desaparecer.

Jamáis recusava tomar a palavra e intervir ñas numerosas


batalhas culturáis que sacodem o mundo contemporáneo. Fa-
zia-o para que fossem proclamados, se nao sempre entendi
dos, a mensagem evangélica e o emor de Cristo, a quem ele
devotou toda a sua vida de sacerdote...

Esta tarde, Deus o chamou na hora oportuna. Asseguro-lhe


a homenagem, o afeto e a oracáo da sua Igreja.

Sua combatividade a servico da verdade possibilitou a


muitos crentes e nao crentes colocar-se na busca ardorosa
da auténtica fece de Deus. Tinha a grasa do contato, acolhedor
a todos. Numerosos e mui diversificados eram aqueles que
iam bater á porta do seu gabinete de trabalho (Rué Monsieur).

Hoje ele caminha em direcáo da paz. Chegou o momento


da contemplacao eterna".

Os depoimentos derivados de táo diversas fontes sao sufi


cientes para ajudar o sabio leitor a se orientar diante da questáo
que envoiveu o fim de vida do Cardeal Daniéiou. Nao há dúvida,
as circunstancias em que o prelado faleceu, podem ser susce-
tiveis de mais de urna interpretacáo : a mais abalizada, porém,
(ou melhor, a única abalizada) será aquela que corresponder
aos testemunhos das pessoas que acompanharam o aconteci-
mento, e a que mais consonancia tiver com todo o teor de vida
nobre e apostólica do Cardeal Jean Daniéiou.

Vejam-se:
"L'Osservatore Romano", ed. francesa de 31/V/74, p. 8.
"Centro de lnforma;6es Ecctesta": boletlm Informativo n<? 333.
"O S5o Paulo", ed. da 20 a 26/VII/74.

— 408 —
a térra de israel em íoco
v. jerusalém: o santo sepulcro

Percorrendo a Via Dolorosa, o peregrino chega á basílica


do Santo Sepulcro ou da Ressurreicáo. Este grande edificio re
cobre tanto o Calvario ou lugar da crucifixáo de Jesús como o
Santo Sepulcro, lugar da ressurreigáo do Senhor.
Nos Evangelhos, o lugar da crucifixáo é chamado Gólgota
(aramaico) ou Kránion (grego); cf. Mt 27,33. A palavra Cal
vario se deriva do latim calvus (calvo) e supSe um cránio
calvo... A atribuigáo do nome Calvario a tal lugar deve-se a
motivo que ignoramos: talvez se tratasse mesmo de urna colina
destituida de árvores e vegetado... talvez lá se expusessem
os cránios dos criminosos executados para servir de ligáo a
outros ;... talvez também se deva ao fato de que os antigos
julgavam que o cránio de Adáo se achava sepultado debaixo
da cruz de Cristo (em conseqüéncia, diziam, o sangue de Jesús
crucificado jorrou sobre o cránio de Adáo e o fez reviver pre
cisamente por ocasiáo da morte de Cristo). *

O designativo monte só foi dado ao Calvario a partir do sé-


culo IV, quando Constantino mandou remover a rocha que
cercava o lugar da crucifixáo. Este entáo tomou a forma de
mont'.culo isolado, com 5 m de altura.

Ao norte do Calvario, havia um jardim, de propriedade de


José de Arimatéia, rico membro do Sinedrio (tribunal dos ju-
deus), que lá preparara a sepultura da sua familia. Esse jardim
fioava fora dos muros da Jerusalém antiga, pois outrora os
orientáis nao sepultavam dentro das cidades. Ainda hoje Jeru
salém está cercada de cemitérios. Se o Calvario se acha hoje
dentro da Cidade Velha de Jerusalém, isto se deve a um des-
Iocamento dos muros da cidade após Cristo.
Como se compreende, os primeiros cristáos devem ter ve
nerado com extremo carinho os lugares da crucifixáo, do se-

i Esta narrativa é evidentemente lendárla, mas significa uma verdade


teológica: pela morte de Jesús, Adao, e com ele a humantdade, recupe-
raram o acesso á vida eterna.

— 409 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 178/1974

pultamento e da ressurreigáo de Jesús. Ora foi justamente por


este motivo que o Imperador Romano Adriano em 135 d. C.
(um século depois da ascensáo de Jesús), desejando extinguir
a piedade crista, mandou construir por cima do Calvario e do
S. Sepulcro um grande terrago; sobre o Calvario colocou urna
estatua de Júpiter e sobre o sepulcro um altar dedicado a
Venus. Ora, assim procedendo, Adriano fazia o contrario do
que desejava, pois assinalava indelevelmente os lugares mais
santos do Cristianismo. :

Os referidos monumentos pagaos permanecerán! de pé até


326. O historiador cristáo Eusébio (265-340), originario dá Pa
lestina, deixou-nos urna descrigáo minuciosa da obra de
Adriano. — Constantino, porém, tendo concedido a paz aos
cristáos em 313, resolveu construir urna digna basílica sobre
os lugares santos do Gólgota, de mais a mais que sua máe, S.
Helena, descobrira a verdadeira cruz de Cristo. O Imperador
mandou remover do Calvario os tragos pagaos; em conseqüén-
cia, afloraram mtatos os lugares cristáos. Eusébio diz que esta
descoberta ultrapassou toda expectativa, pois os cristáos jul-
gavam que Adriano tivesse mandado destruir o santo Sepulcro
antes de construir por cima.

A basílica constantiniana foi inaugurada em 335, podendo-


-se distinguir até hoje a sua posigáo e as suas linhas.

Esse edificio, porém, foi destruido pelos persas em .614;


mas, logo depois, refeito pelo abade Modesto em proporgóes
reduzidas.

Em 1009 o califa Hakem arrasou a construgáo, a qual,


porém, foi réfeita pelo Imperador Constantino Monómaco
em 1048.

No séc. XII os cruzados aumentaram e embelezaram a


basílica assim reerguida. Esta hoje traz as grandes caracterís
ticas da obra e do estilo dos cruzados, mas apresenta igual
mente numerosos vestigios de máos posteriores, que amplia-
ram, retocaram ou ornamentaram, de algum modo, a basílica.
Atualmente, estáo-se realizando obras no interior da mesma,
a fim de purificar o seu estilo e dar-lhe a configuragáo medieval
que marca a sua estrutura. As dificuldades de se fazer qual-
quer restauragáo na basílica do S. Sepulcro derivam-se do fato
de que as varias partes interessadas tém que ser consultadas
e motivadas para tanto.

— 410 —
TÉRRA DE ISRAEL EM FOCO 47

Como quer que seja, o peregrino que deseje orar nos luga
res da crucifixáo e da ressurreicio de Jesús, pode fazé-lo com
toda a piedade. Entre na basílica e compenetre-se do que ela
representa para a historia da humanidade. É um símbolo do
amor de Deus aos homens e também um símbolo do amor que
os homens (sempre limitados e deficientes) quiseram retribuir
ao Salvador. É igualmente o testemunho de que a morte nao
é morte, mas transicáo para a vida eterna. Esta verdade se
torna especialmente eloquente para quem toma consciéncia de
que abaixo do lugar dedicado á crucifixáo de Jesús existe a
cápela de Adao,... como se Adao tivesse sido sepultado lá, a
fím de receber o sangue de Jesús derramado na cruz e assim
reviver f ]£,■■ alias, por causa dessa lenda que muitos crucifixos
tém aos pés do Crucificado um cránio e ossos em forma de
cruz...
Estéváo Bettencourt O.S.B.

estante de livros
Éxodo de Moisés, por Claude Wléner. Traducfio do francés. — Ed.
Loyola, Sfio Paulo 1974, 148 pp., 145x215 mm.
O Éxodo (ou salda) dos Israelitas detldos no Eglto e guiados por
Moisés para a Térra Prometida (séc. XIII a. C.) é o fundo de cena sobre
o qual os Protetas bíblicos anunciam a vlnda do futuro Messias e os escrito
res do Novo Testamento o apontam presente (cf. Jo, 1 Cor, Mt...). E por
Isto que os livros bíblicos referentes ao éxodo (éx, Lev, Núm, Dt) tém
Importancia perene até hoje. Entende-se, pols, que Claude Wlóner tenha
pensado em apresentar ao público de nossos dias um comentario teológlco-
-querigmático do éxodo de Moisés. O autor sabe multo bem quanto é difícil
reconstituir o decorrer exato dos aconteclmentos dessa epopéia, pois as
respectivas tradlcoes de Israel se entrelagam no Pentateuco ; todavía julga
(e com razSo) que através das diversas maneiras de narrar do texto bíblico
se podem perceber cinco facetas de Deus, cujo significado é válido e elo-
qüente até hoje:
"— No Eglto, no centro da opressáo, Israel descobre que seu Deus é
o Dous dos pobres:
atravessando o mar Vermelho, depois de ter comemorado a Páscoa
e ter escapado, por um 11o, a catástrofe que torcas humanas nao poderlam
evitar, elo O reconhece como o Deus que salva;
— penetrando na montanha do Slnai, onde a Leí Ihe foi dada como
base de um diálogo pessoal e exigente, ele encontra o Deua que faz
alianca;
avancando, guiado e protegido pelo seu Senhor, em meló a todos
os perlgos da vida no deserto, ele o encontra, no docorrer dos anos, como
o Infatigável Dous da longa marcha;

— 411 —
48
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 178/1974

— finalmente, encontrando, ao fim do camlnho, o bem prometido, certo


dal por dlante de nSo ter sido vltlma de urna llusao. ele entra na alegría
do Deus que dá a térra".
Estas cinco facetas constltuem um todo completo, que compendia bem
o conteúdo da Biblia Intelra. Claude Wléner conseguiu mostrar, em lingua-
gem clara e acesslvel, o rico conteúdo de páginas bíblicas que, á prlmelra
vista, parecem insípidas e arcaicas. Por vezes, o comentador traduz o texto
hebraico com sabor fortemente literal, visando a manifestar melnor a
veeméncla dos dlzeres origináis e avivar no leltor o Interesse pela Palavra
de Deus. -
Igreja e Política. Subsidios teológicos. ColecSo "Estudos da CNBB"
n? 2. — EdlcSes Paulinas, SSo Paulo 1974, 54 pp., 130x185 mm.
As relacSes entre a Igreja e o Estado sempre foram objeto de Inte
resse especial dos estudiosos tanto católicos como nSo católicos. Nos últi
mos anos, o assunto se tornou candente no Brasil: cplnlfles contradltórias,
tanto entre sacerdotes quanto entre leigos, vém circulando a respelto na
Imprensa Els por que a Conferencia Nacional dos Blspos do Brasil, em
seu afa de ajudar a refletlr, houve por bem proceder ao estudo que tem o
titulo ácima. O trabalho é publicado sob a responsabllidade dos seis blspos
que constituem a Comlssfio Episcopal de Pastoral, que o aprovaram em sua
reunláo ordinaria de 24 e 25 de ]ulho de 1974. NSo se trata de um do
cumento proclamatórlo ou de um pronunclamento, mas, slm, de subsidios
teológicos que poderlo servir de parámetros a quem desejar conceber
idélas claras sobre o assunto.
O llvrlnho merece os mals francos elogios pela sua llnha de eauillbrlo
em temática táo delicada. Baseia-se profundamente em textos bíblicos e
recentes documentos do Concillo do Vaticano II, dos Papas JoSo XXIII e
Paulo VI, entendidos no seu genuino significado. Em resumo propSe a
segulnte tese:
A preocupado da Igreja com a ordem sóclo-económlco-polftica nSo
é de hoje. A Igreja a alimenta nio como se Ela se julgasse urna instituicño
paralela ao Estado, que pretendesse dividir com este atribulcoes que sao
específicamente do mesmo. A Igreja nSo se compreende como forca polí
tica. Ela se entende fundamentalmente como comunidade de fá, destinada
a víver e transmitir essa fó tal como a recebeu de seu Fundador e Inter
pretar a vida e a historia a luz dessa mesma fá. Por consegulnte, a Igreja
nSo vem fazer concorróncia ao poder político, como Jesús Cristo n§o a fez.
Todavía a Igreja nSo delxa de abracar a dimensSo política; fá-lo,
Dorém numa perspectiva, ao mesmo tempo, mais vasta e mais profunda.
Com efoito, a salvacáo que Cristo trouxe e conflou a Igreja, visa ao homem
todo é a todos os homens. Ela nao aponta apenas para um futuro distante
e incerto, mas para a vida presente e para um futuro certo. Sim; o Reino
Instaurado por Cristo já está em acao, e a Igreja é portadora dessa rea I-
dade invlslvel, que tende a se tornar cada vez mais concreta. Consciente
disto a Igreja julga ser seu dever encorajar os que promovem condicoes
mais humanas de realizacio do bem comum, como também apontar as sltua-
cóes que contrariam aos designios de Deus. É dentro destas perspectivas
que a Igreja encara a historia contemporánea e sobre ela se manifesta;
fazendo-o, Ela nSo visa a defender seus interesses particulares nem privile
gios, mas t§o somente servir á comunidade do género humano.
Os principios sao claros e plauslvels. Queira o Espirito ajudar aos
ínteressados a compreende-los e apllcá-los devidamente I

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Comunidade: Igreja na base. Colecáo "Estudos da CNBB" n? 3.
— Ed. Paulinas, Sao Paulo 1974, 198 pp., 130x185 mm.
As comunidades eclesiais de base (CEBs) constituem urna expressao
recente da vida da Igreja; reunem fiéis católicos desejosos de viver mais
intensamente em comunhao de fé, amor e sacramentos, ¡á que isto se torna
difícil ñas populosas paróquias modernas, cujos membros pouco conhecem
uns dos outros.
O número de CEBs vem-se multiplicando no Brasil de N a S, de L a O.
Dada a importancia das mesmas, a Conferencia Nacional dos Bispos mandou
proceder a urna averiguacao dos resultados de tal experiencia. Ora o llvro
ácima citado apresenta: 1) Reflexoes sociológicas resultantes da pesquisa
efetuada no setor das CEBs; 2) ReflexSes teológicas sobre a Igreja;
3) Conclusdes pastorais e perspectivas. No fim, tem-se urna selecáo de
textos: sao depoimentos de bispos, sacerdotes e leigos, que tém partici
pado da vida de alguma comunidade eclesial de base.
O livrinho foi elaborado com notável meticulosidade. Embora verse
sobre urna face muito concreta da vida da Igreja contemporánea, face de
que poucos fiéis tém experiencia, apresenta em seu corpo um belo estudo
sobre a Igreja (pp. 111-148), baseado em textos conciliares e documentos
dos Pontífices recentes; esse estudo poderá ser aproveitado para flns de
reflexao e cursos independentemente do contexto das CEBs.
A guisa de ¡lustracao do que sejam as comunidades eclesiais de base,
transcrevemos abaixo tres depoimentos contidos no livro, aos quais outros
muitos fazem eco:
"Tentamos vlver a vida da Igreja em maior profundidade.
Neste grande SSo Paulo, onde ninguém se conhece, só mesmo tendo
um local acolhedor, que favoreca o entrosamento entre as pessoas, pelo
menos num dia da semana em que oferscemos vivér uma experiencia de
comunidade.
Aqui nos sentimos responsáveis e membros participantes da Igreja.
Na paróquia isto nao é possível. Muita gente e pouca comunicacáo.
Buscamos uma vida comunitaria mais auténtica.
O sacerdote é a 'alma' desta comunidade, sem o qual ela nao
existiría".
(Comunidade do Sumarezinho, arquidiocese de SSo Paulo, SSo Paulo).
"Sentimos grande melhoria na comunidade com este trabalho iniciado
pelas Irmas.
O nivel de Instrucáo cresceu, tornamo-nos mais civilizados.
Ajudou-nos a resolver muitos problemas, como a higiene, o atendi-
mento aos pobres. Este trabalho preclsava existir.
Trouxe uma nova vida, uma alegría ao local. O povo vibra com a
espera da ¡rmS no fim de semana.
Este trabalho mostra o zelo da tgreja pela zona rural".
(Comunidade de S. Sebastiao do Juruminm, arquidiocese de Ma
riana, MG).
"... No campo religioso, as pessoas estSo mais unidas.
O lugar está mais animado agora, mas sentimos quando uma familia
deixa nossa comunidade em busca de novas térras.
As pregacSes dos dirigentes tém unido muito o povo.
Depois do teatro, o povo se despertou para muita coisa que nao
entendía, na comunidade.
Depois de cada atividade, a gente faz revisto, o que nos ajuda a
continuar.
(Continua na pág. 391)
"MEU DEUS ME DISSE UM DÍA:

— DÉ-ME UM POUCO DO SEU TEMPO.


E EU RESPONDÍ :

— SENHOR, O TEMPO QUE TENHO NAO ESTA DANDO


NEM PARA O MEU PRÓPRIO GASTO...

MEU DEUS REPETIU MAIS ALTO :

— QÉ-ME UM PQUCO DO SEU TEMPO.

E EU RESPONDÍ : -

— MAS, SENHOR, NAO É MÁ VONTADE ! EU HONESTA


MENTE NAO TENHO ÚM MINUTO DE SOBRA.

meu deüs'íórñou a falar : ;


— dé-me um pouco' do seu tempo.
e eu respondí :

— SENHOR, EU SEl.pUE DB/O RESERVAR UM POUCO


DO MEU TEMPO PARA O QUE, PEDES; MAS ACONTECE QUE
AS VEZES NAO SOBRA QU&SÉ NA%A*éE MIM PARA DAR ;
É MUITO DIFÍCIL VIVER. E O QUE EU CONSIGO VIVER,
OCUPA TUDO DE MEU TEMPO. EU NAO POSSO DAR MAIS
DO QUE ESTOU DANDO...

MEU DEUS NAO DISSE MAIS NADA.


E DESDE ENTÁO EU DESCOBRI QUE, QUANDO DEUS
PEDE ALGUMA COISA, ELE PEDE A NOSSA PRÓPRIA VIDA.
E, QUANDO A GENTE DÁ UM POUCO, DEUS SE CALA. O
PRÓXIMO PASSO PRECISA SER NOSSO, PORQUE DEUS
NAO GOSTA DE MONÓLOGO".

(Pe. Zezinho, "JESÚS CRISTO ME DEIXOU INQUIETO", p. 12)

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