You are on page 1of 50

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.'■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
@L vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacio.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
198C

confror
Sumario
P4g.

COM NOVO ANIMO! ,

Católicos, luteranos e anglicanos asslnam >


ACORDÓ SOBRE O BATISMO 3

Ujn llvro-desafio:
"LIVRES E FIÉIS EM CRISTO", por Bernhard Haerlng 8

Sob o reglme marxista:


INTERROGACÓES E ASPIRACÓES DO HOMEM RUSSO 19

Estranho titulo:
"ORACAO AOS MACONS" 39

LIVROS EM ESTANTE 44

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO:

Transplante de cerebro ? — P01 que a confissao dos pecados ¡á


absolvidos ? — «O jesuíta» de John Gallahue; — Igreja, o melhor
aliado do comunismo ? — I Congresso Mundial de Filosofía Crista
na Argentina.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Numero avulso de qualquer mes 32,00

Assinatura anual 320,00

Diregao e Redagao de Estévao Bettencourt O.S.B.

ADMINISTRADO REDAgAO DE PR
Livraria Missionária Editora ._ . „ . , „ „.„
_ _.. , ,,,„,„.,» Caixa Postal 2.666
Rúa México, 111-B (Castelo)
20.031 Rio de Janeiro (BJ) 20.000 Rio de Janeiro (RJ)
Tel.: 224-0059
com novo Animo i
M
O mes de Janeiro tem suas características própriasrrr
Dezembro significa balango, encerramento, fim, ao que se
segué novo inicio em Janeiro. Por isto tal mes tem seu .nome
derivado de Janus, o deus da mitología romana que terá rece-
bido de Saturno o dom da ciencia dupla — a do passado e a
do futuro. Assim concebido, Janus era representado com duas
faces, voltadas urna para a esquerda e outra para a direita,
ou seja, urna para o pretérito e outra para o porvir. Ainda em
conseqüéncia disto, Janus era o deus guardiáo das portas, pois
toda porta olha em duas diregóes.
Também para o cristao, Janeiro significa duplo olhar: um
para o passado, que talvez deixe saudades, e outro para o
futuro, cujo conteúdo dissipa qualquer dor. Sim; Janeiro
implica novo inicio,... inicio colocado sob o signo de Cristo,
cujo nascimento vem celebrado no fim de dezembro. É pre
cisamente na oitava do Natal que comega o novo ano civil.
Ora, ao nascer em Belém, Cristo trouxe ao tempo um signifi
cado que Janus nao lhe podia conferir; com efeito, Cristo intro-
duziu no tempo valores de eternidade; como Deus, Ele é ante
rior aos sáculos; é o Senhor da historia; enriquece os tempos
com a eternidade.
Por isto olhamos para o novo ano com otimismo e con-
fianga; 1980 significará um passo a mais para o encontró com
a plenitude; implicará rejuvenescimento, e nao decrepitude. O
cristao, alias, nao conhece decrepitude de suas verdadeiras
dimensóes, que sao as do homem novo, configurado ao Filho
de Deus.

Consideremos agora as grandes datas de Janeiro... Den-


tre estas, destaca-se o dia 1", Dia Mundial da Paz. Na ver-
dade, a paz é o compendio dos dons do Messias á humanidade:
«Ele será Paz!», diz o Profeta Miquéias (5,4) — verdade esta
que Sao Paulo desenvolve ao escrever: «Cristo é a nossa paz!»
(Ef 2,14); Ele derrubou o muro que separava os povos ou os
irmáos reduzidos á inimizáde. «Ele veio e anunciou paz a vos
que estáveis longe (pagaos) e paz aos que estavam perto
(judeus)> (Ef 2,17).
Eis, porém, que a merisagem da paz de Cristo ressoa em
1980 num mundo que se viu, e ainda se vé, á beira de tre
menda catástrofe; a onda de violencia domina a térra inteira;
as discordias agitam os povos, as sociedades, as familias...
Táo triste espetáculo parece nao encontrar solucáo humana
— o que vai incutindo desánimo e desespero a muitos cidadáos.
Na verdade, é somente o Senhor Deus que pode por termo ao
odio existente no mundo; somente quando os homens reconhe-
cerem que sao todos irmáos porque filhos do mesmo Pai, po
derá haver paz duradoura sobre a térra. Escrevia o S. Padre
Joáo XXIII na sua encíclica Pacem in terris: «A paz sobre a
térra-nao poderá ser fundamentada nem confirmada senáo no
respeito absoluto á ordem estabelecida por Deus» (AAS 55,
1963, 257). A consciéncia deste principio interpela vivamente
os cristáos, pois a estes compete dar aos homens o testemunho
de que Deus existe e é Pai, autor de urna ordem fraternal. Se
os cristáos nao oferecerem este testemunho, quem o fará? O
islamismo, que se deriva do tronco judaico-cristáo, parece nao
conhecer tal mensagem, pois professa a guerra santa e, em
nome de fanatismo religioso, apregoa violencia, odio e vin-
ganca... Jesús incitou de modo especial seus discípulos a se
tornarem artesáos da paz, proclamando: «Bem-aventurados
os que promovem a paz, porque seráo chamados filhos de
Deus» (Mt 5,9).

O Evangelho nao fornece fórmulas prontas para instaurar


a paz; se as oferecesse, tiraría ao homem a sua capacidade
inventiva ou criadora. Mas, justamente para fomentar essa
capacidade, o Evangelho, em cada urna das suas páginas, apre-
senta ao cristáo um espirito, que é o do amor fraterno, decor-
rente da paternidade universal de Deus;... tima forca, haurida
nos sacramentos e nos dons do Espirito Santo, ou seja, nos
mananciais do próprio Deus;... urna esperanza, esperanga que
os reveses sao incapazes de abater; os eventuais exiguos resul
tados dos esforgos do cristáo em prol da paz e da recristiani-
zagáo do mundo sao comparáveis aos «fracassos» do Senhor
Jesús, que, condenado pelos homens, redimiu a humanidade
inteira; na verdade, o Cristo Jesús associa á sua trajetória
todos aqueles que, com amor cristáo, trabalhem pela paz.
Convicto destas verdades, cada discípulo de Cristo, no li-
miar deste novo ano, conceberá:
— novo ánimo, um ánimo ainda mais juvenil, mais vigo
roso ! «Nao nos deixamos ábater. Pelo contrario, embora em
nos o homem exterior vá caminhando para a sua ruina, o
homem interior se renova de dia a dia» (2Cor 4,16);
— novo propósito de ser artesáo da paz ou dos bens mes-
siánicos... a comecar pelo seu lar, passando para o escritorio,
a oficina, os ambientes de recreagáo, a rúa em que transita, a
sociedade na qual está inserido...
Ánimo, entusiasmo, sim,... pois «Deus ama a quem dá
com alegría» (2Cor 9,7).
E.B.
— 2 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XXI — N» 241 — Janeiro de 1980

Católicos, luteranos e anglicanos assinam

acordó sobre o batismo


Em sfnteso: A noticia de um acordó sobre a validado do Batismo
asslnado por católicos, anglicanos e luteranos suscitou dúvldas no público.
— O presente artigo explica que tal fato nada de novo Implica: a dou-
trlna católica sempre ensinou que para a validado do Batismo se requerem
1) agua natural, 2) as palavras da fórmula devida, 3) a intencSo, no minis
tro, de fazer o que Cristo faz, pols é Cristo quem, em última Instancia,
batiza. Ora anglicanos e luteranos professam a mesma concepcSo Por isto
batlzam validamente. A Igreja Católica só fez reconhecer, mais urna vez,
o fato.

Comentario: Os jomáis de 13/11/79 divulgaram a mán


chete «Igrejas cristas fazem acordó no Brasil sobre validade
do Batismo». A noticia deixou o público um tanto perplexo.
Sabe-se que os presbiterianos e os pentecostais recusaram
explícitamente a sua adesáo a tal acordó; cf. «O Globo» de
14/11/79, p. 6. Dai a oportunidade de abordarmos o assunto
em PR, procurando dissipar as dúvidas referentes á noticia.

1. A noticia como tal

Eis o teor da noticia publicada pelo jornal «O Globo» de


13/11/79, á p. 8:

"Através de um acordó trilátera! assinado ontem e com validade para


todo o Brasil, as Igrejas Católicas, Luterana e Episcopal passaram a reconhe
cer mutuamente a adminlstracSo do sacramento do Batismo".

No dia 14/11, o mesmo jornal acrescentava que o bispo


metodista Sady Machado da Silva «explicou que os metodistas
nao assinaram o documento porque o assunto ainda está em

3
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOSi» 241/1980

estudo, devendo ser submetido ao Concilio Geral, que só se


reunirá em julho de 1982» (p. 6).

Passemos ao aprofundamento do fato.

2. O Batismo como sacramento

O próprio Jesús instituiu o sacramento do Batismo ao


santificar as aguas em que foi batizado (cf. Mt 3,13-17). Mais:
conforme Mt 28,19s, Jesús enviou seus discípulos ao mundo
inteiro, mandando que batizassem todos os povos «em nome
do Pai, do Filho e do Espirito Santo».

Sao Paulo expóe o que seja o Batismo, afirmando que


implica urna insergáo na morte e na ressurreigáo de Cristo,...
insergáo nao meramente simbólica, mas real-sacramental. Urna
vez batizado, o cristáo tem de traduzir a realidade sacramen
tal do seu Batismo em conduta de vida coerente, ou seja: tem
de morrer diariamente ao pecado para viver sempre mais a
vida da nova criatura que o Batismo nele iniciou; cf. Rm 6,3-6.

Sao estes textos que fundamentan! a tradicional doutrina


dos cristáos, segundo a qual o Batismo 1) é obrigatório para
todos os fiéis, 2) confere urna realidade nova ontológica, inte
rior ao cristáo, e nao se resume apenas numa cerimónia
simbólica.

A materia do sacramento do Batismo é a agua natural e a


fórmula respectiva sao as palavras já enunciadas em Mt 28,19:
«Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo».

Visto que o Batismo insere o cristáo em Cristo, diz ainda


a doutrina tradicional que é Cristo quem batiza por intermedio
dos ministros humanos de que Ele se serve (como é Cristo
quem absolve os pecados no sacramento da Reconciliagáo e
consagra o pao e o vinho no sacramento da Eucaristía). Só
há um sacerdote da nova e eterna alianga de Deus com os
homens: é Jesús Cristo, de tal modo que os ministros ordena
dos pelo sacramentó da Ordem sao apenas a máo de Cristo
prolongada através dos sáculos para atingir todas as geragóes.

Em conseqüéncia, a Igreja Católica ensina que o ministro


ordinario do Batismo é o presbítero ou o diácono, mas que,
em casos extraordinarios ou de emergencia, qualquer pessoa

— 4 —
ACORDÓ SOBRE O BATISMO

(um católico leigo, um protestante, até mesmo um ateu...)


pode ministrar o sacramento do Batismo, desde que tal minis
tro extraordinario tenha a intengáo, ao batizar, de fazer o que
Cristo faz quando batiza. Esta doutrina já se encontra nos
catecismos rudimentares da Igreja Católica.

Resumindo, dizemos: para que o Batismo seja válido,


requer-se

— agua natural derramada sobre a pele do candidato,

— a fórmula «Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e


do Espirito Santo» proferida ao mesmo tempo que se derrama
a agua,

— a intencáo, no ministro, de fazer o que Cristo faz


quando batiza.

Ora, visto que os anglicanos e luteranos professam a


mesma doutrina, a Igreja Católica, no Brasil, houve por bem
firmar com eles um acordó segundo o qual reconhecem todos
a validade do Batismo ministrado em qualquer das tres deno
minagóes. Este acordó nada traz de novo; já era observado na
praxe da Igreja Católica, de tal modo que esta nao costumava
rebatizar um fiel anglicano ou um luterano que quisesse tor-
nar-se católico. O referido acordó, pois, nao trai a doutrina
católica; antes, deve ser saudado como um passo positivo para
a reconstituigáo da unidade crista.

O acordó pode ser firmado com certa facilidade entre


católicos, luteranos e anglicanos, porque estas duas últimas
denominagóes guardam muitos elementos da doutrina tradicio
nal anterior a Lutero e ao séc. XVI. Quanto ao metodismo, é
urna reforma da reforma anglicana; ainda se conserva pró
ximo ao anglicanismo; por isto é de crer que venha a aceitar
o acordó firmado pelas tres denominagóes em foco.

Os presbiterianos derivam-se de Joáo Calvino (1509-1564),


que foi assaz radical em suas posigóes teológicas. Os presbite
rianos julgam que o Batismo é apenas a manifestagáo pública,
perante a Igreja, de urna conversáo realizada previamente pela
aceitagáo da Palavra de Deus. Por sua vez, os pentecostais,
fundados no comeco do séc. XX, sao ainda menos tradicionais
ou mais distantes da Igreja Católica. Dai a dificuldade de acei
taran o acordó em foco.

— 5 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

3. Observares complementares

Proporemos abaixo quatro notas complementares:

1) A Igreja Católica afirma que o Batismo é absoluta


mente necessário para a salvagáo eterna. Todavía, aléni do
Batismo de agua e de sangue (martirio), a Igreja reconhece
também o Batismo de desejo. Este pode ser explícito ou implí
cito.

O Batismo de desejo explícito é o que ocorre quando al


guém pede explícitamente o sacramento do Batismo. Se morre
antes de recebé-Io, julga-se que já possui a regenerado
batismal.

O Batismo de desejo implícito ocorre quando alguém nao


conhece o sacramento do Batismo (e, por isto, nao o pede),
mas vive táo corretamente (obedecendo fielmente á voz de
Deus que Ihe fala pela consciéncia) que, se conhecesse o Ba
tismo como vía de salvagáo instituida pelo próprio Deus, o
pediría sem hesitagáo. Tal é o caso de muitas pessoas que, de
de boa fé e consciéncia tranquila (sem o mínimo problema
religioso), vivem fora do Catolicismo. Tais pessoas nao per-
tencem visivelmente á Igreja Católica, mas pertencem-lhe invi-
sivelmente. Tém em si os efeitos ou a graga da regeneragáo
batismal, se perseveram em sua fidelidade incondicional ao Se-
nhor, que lhes fala pela sua consciéncia subjetivamente sincera.

2) O fato de que o Batismo é um renascer interior, e nao


apenas a manifestagáo da fé do sujeito, explica que os cató
licos, os luteranos e os anglicanos batizem criangas. A rege-
neragáo batismal tem pleno sentido mesmo antes do uso da
razáo, pois é um dom de Deus, que possibilita á crianga comun-
gar na vida do próprio Deus e ver a Deus face-a-face se o
Senhor a chamar a outra vida antes do uso da razáo.

A conversáo moral do cristáo batizado faz-se, desde que


ele atinja a idade do discernimento. Requer-se que entáo os
genitores ou responsáyeis ministrem á crianga a devida ins-
trugáo religiosa e a ajúdem a viver cristámente, como filho(a)
de Deus.

3) No decorrer da historia da Igreja, surgiram correntes


de cristáos que professavam o re-batismo.

— 6 —
ACORDÓ SOBRE O BATISMO

Assim no século III, quando se deram heresias e cismas


no Cristianismo, alguns mestres cristáos queriam fossem bati-
zadas de novo as pessoas que, bateadas fora da Igreja Ca
tólica (ou em alguma facgáo herética), pedissem ingresso
na Igreja Católica. O Batismo ministrado por hereges nao
seria válido. Em Cartago (norte da África) alguns Sínodos
locáis adotaram esta tese nos anos de 255 e 256. Todavía o
Papa S. Estéváo, informado da decisáo desses Sínodos regio-
nais, proibiu aos africanos repetir o Batismo e recusou a tese
respectiva, que ele tachava de «inovagáo». O mesmo Papa
enviou instrugóes semelhantes aos bispos da Asia Menor quando
veio a saber que eles concordavam com os africanos. Assim
dissipou-se na Igreja a concepgáo do «Re-batismo».

O motivo que levava aos cristáos da África e da Asia Me


nor a nao aceitar a validade do Batismo dos hereges era o
conceito espiritualista de Igreja que muitos professavam: fa-
ziam depender da ortodoxia e da santidade dos ministros res
pectivos a eficacia dos sacramentos; valorizavam exagerada
mente o elemento pessoal e ético do ministerio sacerdotal, nao
levando em conta suficiente que nao é o homem (o ministro
religioso) quem santifica seus semelhantes, mas é Cristo quem
santifica por meio dos seus ministros (desde que estes preen-
cham o mínimo de condigóes atrás expostas). S. Agostinho
(f 430) contribuiu enormemente para firmar a posigáo da
Igreja Católica neste particular.

No século XVI, por ocasiáo da Reforma protestante, rea-


cendeu-se a controversia do re-batismo. Tal tese encontrou
aceitagáo até hoje por parte dos Anabatistas e de outras deno-
minagóes protestantes.

4) O acordó assinado em Porto Alegre entre católicos,


luteranos e anglicanos tem valor apenas no tocante ao sacra
mento do Batismo. Quanto a S. Eucaristía, ulteriores estudos
estáo sendo realizados; a questáo é muito mais complexa, visto
que a propósito nao há a mesma convergencia doutrinária que
se verifica a respeito do sacramento do Batismo. Na Europa
as conversagóes católico-anglicanas e católico-luteranas sobre
o assunto tém chegado a resultados alvissareiros. É, pois, de
crer que o Espirito levará a pleno termo a obra que Ele vem
realizando entre os discípulos de Cristo!

— 7 —
Um livro-desafio:

"livres e fiéis em cristo"


por Bernhard Haerlng

Em sfnlese: O famoso moralista Pe. Bernhard Haerlng está publi


cando novo compendio de Teología Moral, do qual o prlmeiro volume é
comentado nestas páginas. O autor procura levar em conta nfio somonte
os aspectos objetivos do comportamiento humano (o teor da leí de Deus,
a realidade concreta ou material do ato moral...), mas também os aspectos
subjetivos da conduta moral,... aspectos estes que a psicología, a antro
pología e a sociología tém contribuido para evidenciar.

A tarefa de Haerlng é ardua, a tal ponto que o llvro em foco, ao


lado de belas páginas, aprésenla passagens necessitadas de reconsideracSo.
é o que se dá especialmente com os conceltos referentes ao pecado.
Haerlng distingue pecado venial e pecado mortal. Este so ocorreria quando
houvesse mudanca de opcSo fundamental por parte do sujeito; nSo se
poderla falar de pecado mortal, quando, depols de falta grave, a pessoa
logo se arrependessee e procurasse retomar seu curso de vida fiel á leí
de Deus. Ora tais nocSes nSo correspondem á doutrina clássica nem aos
ensinamentos oficiáis da Igreja; tenha-se em vista especialmente a Decía-
racSo da S. Congregando para a Doutrina da Fé sobre alguns pontos'de
Ética Sexual (29/12/75).

Também se desejaria, da parte de Haering, mais precisSo no tocante


aos conceitos de lei natural e de consciéncla moral.

Els por que o llvro em foco nSo pode ser tldo como padrSo norteador
da conduta dos fiéis cristáos, em geral, e dos dlretores de consciéncla
em particular. Fácilmente poderla levar a indesejável subjetivismo e a
certo laxismo na vida espiritual.

Comentario: Vinte e cinco anos após terminar o terceiro


volume da obra «A Lei de Cristo», o famoso moralista Pe. Ber
nhard Haering publica novo compendio de Teología Moral,
beneficiando-se de. experiencias entrementes efetuadas na
África, na Asia, na América Latina e nos Estados Unidos. O
autor julga que o passar do tempo e os contatos que teve com
realidades novas, lhe dáo ocasiáo para rever a mencionada
obra em tres volumes:

1 Ed. Paulinas, Sao Paulo 1979, 160 x 228 mm, 459 pp.

— 8 —
«LIVRES E FIÉIS EM CRISTO» 9

"Fui percebendo cada vez melhor que meus escritos aínda eram
demasiado europeus. Agora volto a escrever, naturalmente como um homem
de contexto europeu e de experiencia norte-americana; faco-o, porém, num
clima de Intensa e dedicada amlzade a todos os que vivem no Tercelro
Mundo" ("Livres e Fiéis em Cristo", p. 5).

O público brasileiro já tem em máos o primeiro da nova


serie de tres volumes de Teologia Moral de Haering, devendo
os dois subseqüentes intitular-se respectivamente: A verdade
vos fara. livres e Luz para o mundo.

Vista a importancia desse primeiro volume, vamos, a se


guir, comentar o seu conteúdo em geral e alguns de seus tópi
cos em particular, embora já tenhamos proposto breve análise
do livro em PR 238/1979, pp. 349s.

1. O conteúdo do livro.

O primeiro volume em foco apresenta a «Teologia Moral


Geral». O autor aborda sucessivamente os seguintes temas:
Perspectivas Bíblicas sobre a Moral, a Historia da Teologia
Moral, Liberdade e Responsabilidade, Opgáo Fundamental*
Consciéncia Moral, Lei Natural e Lei Positiva Humana, Pecado
e Conversáo, Fidelidade e Adoragáo...

Nao há dúvida, o Pe. Haering oferece ao leitor rico mate


rial informativo, fruto de longas leituras e reflexóes pessoais.
Está preocupado em basear as suas proposigóes de Moral
sobre duas grandes pilastras : a da liberdade criativa inovadora,
e a da fidelidade ao Senhor Jesús (donde o título do volume).
Com outras palavras: Haering verifica que a Teologia Moral,
a partir do sáculo XVI, esteve muito voltada para a casuística
e para os aspectos quantitativos do comportamento humano;
levava em conta mais o aspecto objetivo e material dos atos
humanos do que a realidade subjetiva e formal dos mesmos.
Todavia, o cultivo da psicologia, nos últimos tempos, tem
chamado sempre mais a atengáo dos moralistas para o aspecto
pessoal e subjetivo do comportamento humano; procuram estes,
portante, dar um significado mais pessoal e existencial ao
estudo da Teologia Moral.

Também a consciéncia de que o homem é um ser social,


chamado a se realizar numa comunidade, tem aflorado viva
mente nos últimos decenios. Ora, precisamente atendendo a

g
10 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

tais fatores, o Pe. Haering assumiu a tarefa de reescrever a


sua «Teología Moral». Sao palavras do autor:

"O que mais Influenclou meu pensamento a respeito da teología


moral fol a obediencia estúpida e criminosa dos cristSos a Hitler, um louco
e um tirano. Isto levou-me á conviccáo de que o caráter de um crlstáo
nao pode ser formado un ¡lateralmente por um leitmotiv decorrente da obe
diencia, mas antes por urna responsabliidade capaz de discernir, por urna
aptidáo para responder corajosamente a urna nova visSo de valores e a
novas necessidades, e na disposicSo pronta para assumir o risco" (p. 6).

"Por essas e multas outras razSes, pensó que urna teología moral níti
damente crista, para esta nova era, tem de ser urna teología da responsa-
bilidade, essenciaimente marcada pela liberdade, pela fldelidade e pela
criatividade. Esta nova visSo traz coragem e orientacáo para repensarmos
um grande número de doutrlnas, tradlcSes, enslnamentos e prátlcas, e para
fazermos a distincao entre o depósito da fé, de um lado, e ideologías,
tabus e outros fatores obscuros, de outro. Isto precisa ser feíto, no entanto,
com o máximo interesse pela fidelidade ao Senhor e a seu povo na Alianca,
b pela liberdade como sinal de nossa fé na redencSo" (p. 8).

Baseado em tais principios, o Pe. Haering apresenta hoje


ao público urna obra interessante e corajosa. Muitas de suas
páginas trazem profundas reflexóes sobre a lei do amor, que
deve dinamizar todo o comportamento do cristáo e que su
planta, em profundidade e extensáo, a lei dos preceitos e das
proibigóes. O leitor apreciará também no livro em pauta as
secóes de fundamentacáo bíblica assim como o freqüente recurso
a autores de diversas áreas: teólogos, psicólogos, sociólogos,
filósofos, especialistas judeus, orientáis, etc. — Todavía, a
impressáo geral que se tem ao ler os capítulos de B. Haering,
é de que se trata de obra ainda nao madura; as belas frases
parecem, ás vezes, um pouco genéricas e vagas, como teremos
a ocasiáo de observar ao tratar de tópicos especiáis. Na ver-
dade, nao é fácil apontar o meio-termo ou a via de conciliacáo
entre o subjetivo e o objetivo no comportamento humano.
É certo, sim, que este nao pode ser padronizado como se
padroniza o andamento de um relógio ou de urna máquina,
pois o ser humano é livre e criativo; ele tem a sua consciéncia,
santuario indevassável, no qual ele responde diretamente ao
Senhor Deus. Todavía nao se podem abandonar todos os refe-
renciais objetivos e universais da Moral, sob pena de cair no
subjetivismo arbitrario ou no existencialismo ético (aue Haering
condena á p. 330). A problemática enfrentada pelo eminente
moralista se torna especialmente evidente quando trata do
conceito de pecado. — Eis por que passamos de ¡mediato á
consideragáo dos capítulos 5* e 8« do livro («Op?So Funda
mental» e «Pecado e Conversáo», respectivamente),

— 10 —
«LIVRES E FIÉIS EM CRISTO

2. Um tópico importante: o pecado

Examinaremos um ponto de importancia notável, a saberi


o pecado.

2.1. Expos¡(áo da doutrina

^Haering acentúa — e com razáo — o papel e o valor da


opea© fundamental. Esta é a escolha de um fim supremo, em
funcáo da qual todas as demais escolhas ou opgóes sao reali
zadas na vida de alguém. É dita fundamental, porque se supóe
esteja arraigada no íntimo da personalidade de alguém de tal
modo que inspire todas as atividades de tal pessoa. A opeáo
fundamental será ora mais, ora menos fundamental, de acordó
com a capacidade que cada um tenha, de se deixar penetrar
por seu ideal, eliminando de sua vida toda incoeréncia ou
contradigáo; essa remogáo das incoeréncias vem a ser, alias,
o grande programa da existencia de cada ser humano.

Em linguagem crista, diremos que o homem, feito por


Deus, é chamado pelo Criador a se realizar no Bem Infinito
ou no próprio Deus. Por isto, chegando á idade adequada,
deve fazer sua opeáo fundametnal pelo Senhor Deus, tal como
Ele se revela ñas Escrituras e na Igreja fundada por Cristo.
Essa opgáo fundamental há de ser, no decorrer da vida inteira,
reafirmada e ulteriormente aprofundada pelo respectivo sujeito.

A opgáo fundamental pode ser contrariada por atos mais


ou menos superficiais, que, embora nao a destruam ou apa-
guem, sao capazes de enfraquecé-la. Pode também ser con
trariada por acóes livres de profundidade e importancia tais
que desviem a própria opeáo fundamental para a direcáo
oposta (cf. p. 158). — Ora é precisamente neste contexto que
surge a nogáo de pecado, segundo Haering. Se contrario a
minha opeáo fundamental por Deus de maneira tal que nao
a extinga, cometo um pecado venial; este pode ser leve ou
grave, de acordó com a intensidade de meu ato. Se, porém,
contradigo a. opeáo fundamental de modo a erradicá-la, fa-
zendo em seu lugar outra opeáo fundamental, cometo um
pecado mortal. Este, e so este, me priva da graca de Deus e
provoca em mim a morte eterna.

Como se vé, Haering distingue entre pecado venial e


pecado mortal, mas nao identifica os pecados veníais com os

— 11 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

leves e os mortais com os pecados graves. Para ele, todo


pecado venial se assemelha a urna doenca ; ora há doengas
leves e doengas graves ; assim também há pecados veníais
leves e pecados veníais graves.

"Reduzir a gradacño de pecados apenas a duas categorías (pecado


mortal e venial) nio é atitude bíblica. Pensar que pecados veníais nSo
podem ser serios ou graves é táo Irracional quanto considerar todas as
doencas e enfermidades como nio sendo serias, pois só a morte é que
seria grave" (p. 365).

Dito isto, Haering julga que

1) as criangas e os pré-adolescentes sao incapazes de


cometer algum pecado mortal. A crianca é dotada de bondade
inata, e nao tem a capacidade de escolher táo profundamente
que perventa essa bondade; cf. pp. 184. 200. 369.

2) O estado de graga nao pode ser fácilmente perdido


(cf. p. 201). Geralmente a perda do estado de graga é pre
parada por urna serie de pecados veníais, que podem ser mais
ou menos graves ; estes enfraquecem as virtudes e abalam
a opgáo fundamental (cf. p. 201).

Todavía Haering-nao nega que «através de um só ato se


possa perder a amizade de Deus» (p. 201).

3) Um pecado grave cometido por fraqueza nao é pecado


mortal:

"... Um pecado grave... cometido por urna pessoa fundamental


mente boa que, tomada de surpresa, nao reslstiu a tentacáo, mas que
continuará na sua boa intencSo, entáo eu simplesmente diría que o pecado
mortal está excluido, porque essa definicáo de 'pecado por Iraqueza'
supSe a verdadeira persistencia na opcio fundamental boa. Se a nossa
compreensSo global da opcio fundamental estlver certa, poderemos dlzer
simplesmente que, quando a opcio para o bem e para Deus nSo estiver
desenraizada, n§o há pecado mortal, mesmo que possa haver um grave
pecado venial" (p. 203).

4) Nao há pecado mortal enquanto persiste a disposigáo


profunda de fazer o bem :

"Para a pessoa que está fervorosamente buscando a Deus como seu


último fim, nSo se pode presumir que tenha cometido um pecado mortal
enquanto nela persistir a disposigáo profunda de fazer o bem. lAtos indivi
duáis podem ser graves ou serios, porém provavelmente nSo sao mortais
quando se trata de urna pessoa que esteja lutando para vencer um hábito
e ¡mediatamente depoís do pecado arrepende-se seriamente. Também em
materia de castidade dever-se-ia dar particular atencio á orlentacio glo-

— 12 —
«LIVRES E FIÉIS EM CRISTO» 13

bal. Será esta de aperfelcoamento ou de descuido e negligencia crescen-


tes?" (p. 373s).

"A pessoa que está lutando seriamente para conhecer e para fazer
a vontade de Deus e que, ao mesmo tempo, senté sincero pesar pelos
seus erros e pecados, pode crer achar-se aínda na graca de Deus e,
asslm, prosseguir seu camlnho, llvre dos lacos da escrupulosidade" (p. 374).

5) A Igreja nao pode impor obrigagóes sob pena de


pecado mortal, pois, segundo Haering, é urna instancia humana
e nenhuma instancia deste tipo é apta a ocasionar a perda
da vida eterna. Por conseguinte, o preceito da participagáo
na S. Missa aos domingos e dias santos de guarda e o da
abstinencia de carne em dias da Quaresma... nao obrigam
sob pecado mortal. A expressáo «sub gravi», que qualifioava
tais preceitos, significaría apenas «sob pena de pecado venial
grave», mas nao «sob pena de pecado mortal» (cf. 375-382).

6) Quem suspeita de ter cometido pecado mortal, mas


nao tem certeza disto, nao precisa de reconciliar-se pelo sa
cramento da Penitencia, mas pode comungar após um ato de
arrependimento, embora saiba que o seu pecado foi grave
(p. 399-418).

Sao estas algumas das principáis concepgóes de Haering


referentes ao pecado. Passemos a urna reflexáo serena a pro
pósito.

2.2. Reflexáo crítica

1) Antes do mais, observamos que B. Haering alterou


a compreensáo de vocábulos atinentes & teología do pecado.

Com efeito, o pecado venial seria ou leve ou grave, mas


venial porque nao projetaria o pecador na morte eterna. O
pecado mortal, sim, acarretaria a morte eterna. — A esta
nomenclatura nada se pode opor de decisivamente contrario,
embora altere as conceptees clássicas, que ensinam ser o
pecado venial urna falta leve, e o pecado mortal urna falta
grave. Ademáis note-se também que, após um pecado mortal,
há sempre possibilidade de venia ou de perdáo, desde que o
pecador sinceramente a pega ao Senhor; nenhum pecado é
irremissivel. Donde se vé que o melhor é classificar os pecados
em leves e graves; aqueles sao ditos «veníais», porque há
muitos meios de os perdoar (ato de contrigáo, obras de cari-
dade, oragáo do «Pai Nosso»...), ao passo que os pecados

— 13 —
14 gPERGUNTE E RESPONDEREMOS-- 241/1980

graves sao ditos «mortais», porque privam da grasa divina


a pessoa que os comete (sao, porém, pecados remissíveis ou
suscetiveis de perdió).

2) O que mais reparos merece ñas concepgóes de Hae


ring, é o criterio que o autor estabelece para distinguir o
pecado venial do mortal. Este, na verdade, so ocorreria quando
houvesse ruptura ou mudanca da opcáo fundamental; nao
ocorreria se, «logo depois da queda, o cristño experimentasse
auténtica tristeza pelo pecado e continuasse a esforgar-se para
agradar a Deus e fazer o que é reto» (p. 204).

Na prática, isto parece significar que, se alguém comete


adulterio consciente e voluntario, mas logo depois se entris
tece e procura ser fiel ao seu matrimonio, nao perdeu a vida
da graca; por conseguinte, pode recíber a S. Eucaristía sem
recorrer ao sacramento da reconciliacáo!

Ora tal conclusáo seria inadmissível aos olhos da sadia


teología católica. É o que mostra que os criterios estabelecidos
por Haering para conceituar o pecado mortal sao insuficientes;
em grande número de casos ditos classicamente «de pecados
mortais», nao haveria senáo pecados veníais, sem perda da
vida da graga. O pecado mortal se tornaria muito menos
freqüente do que era segundo a antiga conceituacáo.

3) Para corroborar nossas observacóes críticas, podemos


citar a Declaracáo da Sagrada Congregagáo para a Doutrina
da Fé sobre alguns pontos de Ética Sexual datada de
29/12/1975. Este documento

— identifica pecado grave com pecado mortal; cf. n' 10


(repetidamente);

— admite que alguém possa pecar mortal ou gravemente


sem mudar a sua opcáo fundamental. Tenha-se em vista a
seguinte seceáo:

"Alguns chegam ao extremo de afirmar que o pecado mortal, que


separa o homern de Deus, so se verifica quando há urna reJelcSo forma!
e diretamente oposta ao apelo do mesmo Deus, ou no egoísmo que, com
pleta e deliberadamente, se fecha ao amor do próximo. So entSo se darla
a opefio fundamental, quer dizer, aqueta dedsSo que compromete total
mente a pessoa e que serla necessária para constituir o pecado mortal.
Por ela, o homem tomarla ou ratificarla, no ámago de sua personal Idade,
urna atltude fundamental em relac&o a Deus ou em relajáo aos outros
homens. As acSes chamadas 'periféricas' (das quals se diz que nSo com-
portam, em geral, urna escolha plenamente decisiva), essas, ao contrario,
nfio chegarlam ató o ponto de mudar urna opcSo fundamental...

— 14 —
«LIVRES E FIÉIS EM CRISTO» 15

Na realidade... a opcSo fundamental pode ser mudada totalmente


por atos particulares, sobretudo quando estes tenham sido preparados
— como acontece multas vezes — por atos anteriores mals superficlals.
Em todo caso, nSo é verdade que um só destes atos particulares nSo
possa ser suficiente para que naja pecado mortal.

Segundo a doutrina da Igreja, o pecado mortal, que se opOe a Deus,


n&o consiste apenas na resistencia formal e direta ao precedo da carldade;
ele verlflca-se igualmente naquela oposicSo ao amor auténtico que está
incluida em toda transgressSo deliberada, em materia grave, de cada urna
das leis moráis" (n? 10).

4) Pergunta-se entáo: quais os criterios para definir o


pecado mortal ou grave ?

— A mesma Declaracáo os indica no texto abaixo :

"O homem peca mortalmente nSo só quando as suas acSes procedem


do desprezo direto do amor de Deus e do próximo, mas também quando
ele, consciente e livremente, faz a escolha de um objeto gravemente desor
denado, seia qual for o motivo dessa sua escolha. Nessa escolha, de fato,
como se disse ácima, está incluido o desprezo pelo mandamento divino:
o homem afasta-se de Deus e perde a carldade" (n? 10).

Resumindo, dir-se-á: o pecado grave ou mortal ocorre


guando:

— a materia sobre a qual versa determinado ato, é grave


ou importante;

— existe conhecimento de causa por parte de quem age


a respeito ;

— existe também a vontade deliberada de cometer tal ato.

Nao se requer, para haver pecado mortal, que a pessoa


contradiga explícitamente a Deus. Ela contradiz, sim, implíci
tamente ao Senhor desde que opte conscientemente por algo
que se oponha ao amor de Deus.

Nao há como se afastar de tais concepgóes sem que se


torne confusa a doutrina do pecado. Verdade é que os mora
listas dos últimos séculos se entregaram freqüentemente á
casuística, procurando delimitar minuciosamente materia leve
e materia grave a fim de poder distinguir o pecado venial do
pecado mortal. Ora tais esforcos casuísticos pretendem definir
realidades um tanto imponderáveis; há, sem dúvida, em todo
pecado um aspecto subjetivo que concorre para tornar leve
ou grave determinado pecado visto dentro do contexto de vida

— 15 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

de quem o comete. O Pe. Haering tem razáo quando rejeita


as teses de autores que levavam em conta excessiva o aspecto
material ou meramente objetivo dos atos humanos; cf. p. 368.
O mesmo autor tem igualmente razáo quando, no intuito de
combater urna casuística exagerada ou mesmo escrupulosa,
ensina que «muito mais importante do que o número de atos
pecaminosos... é a questáo mais fundamental que consiste
em saber se há um crescimento global ou, antes, urna deca
dencia cada vez mais visível» (p. 360).

Note-se ainda: nao se diga que Deus condena o homem


como o juiz condena o réu. Na verdade, é a criatura quem
lavra a sua sentenca definitiva, optando no decorrer desta
vida terrestre ou por Deus ou por um bem criado. O Senhor
Deus reconhece a escolha de sua criatura e permite que esta
siga a sua sorte, caso se queira afastar do Bem Infinito.

5) No tocante á possibilidade de cometerem as criancas


um pecado mortal (possibilidade que Haering nega; cf. pp.
184.200.369), observe-se:

Nao se vé por que recusar peremptoriamente tal possibili


dade. Haering fala de «bondade inata da crianga» (p. 184),
professando a propósito um otímismo que talvez nao leve
suficientemente em consideracáo o pecado original. Parece-nos
sabio abstermo-nos de afirmagóes dirimentes a tal respeito.
Só Deus vé as consciéncias e conhece o grau de maturidade
e responsabilidade de cada qual. Na prática, será preciso acau-
telar o cristáo, desde a idade infantil, contra «o único mal que
é o de nao sermos santos» (Léon Bloy) e excitá-lo, desde o
uso da razáo, a procurar a fidelidade ao Senhor a. custa de
todos os esforgos. A sá pedagogía manda outrossim que as
criangas sejam encaminhadas ao sacramento da Penitencia
antes de receberem a Primeira Eucaristia (cf. PR 105/1968,
pp. 367-375 ; 172/1974, pp. 174s).

Sao estas as ponderagóes que pode sugerir a leitura


atenta das páginas de B. Haering concernentes ao pecado:
inspiradas pela reta intengáo de evitar concepgóes inadequadas,
parecem exagerar no sentido de afastar fácilmente a hipótese
de pecado mortal ou perda da vida da graga.

Proporemos ainda algumas consideragóes sobre mais dois


pontos importantes do livro em foco.

— 16 —
«LIVRES E FIÉIS EM CRISTO» 17

3. Dois oufros tópicos

3.1. A Leí natural

Em nossos dias, filósofos e teólogos discutem a existencia


da lei natural ou, ao menos, a total imutabilidade de principios
tidos outrora como decorrentes da lei natural.

Haering, longe de negar a existencia da lei natural, tece


ampias consideragóes a respeito da mesma. Todavía nao parece
levar em conta suficiente a problemática moderna que supóe,
nao raro, estar a lei natural sujeita á evolu;áo histórica. A
p. 298, Haering póe a pergunta: Que há de permanente na lei
natural? Ao que responde:

"Aceitando a historlcldade e a possibllldade de varias abordagens da


leí natural, nfio pretendemos chegar a um relativismo ilimitado" (p. 298).

Ora tal afirmacáo necessitaria de ulteriores esclarecimen-


tos ; formulada negativamente («nao pretendemos chegar...»),
deixa aberta a questáo de saber como se háo de entender posi
tivamente a lei natural e as suas exigencias duradouras. Talvez
o autor responda a tal pergunta quando, em ulterior volume,
abordar os problemas langados pela encíclica «Humanae Vitae»
(a qual foi o principio deflagrador da mais recente controver
sia sobre a lei natural).

3.2. A consdéncta

Ao tratar da consciéncia moral, Haering propóe reflexóes


profundas de índole antropológica e teológica. Recusa todas as
teorías reducionistas, que negam a realidade da consciéncia
moral em virtude de premissas sociológicas (Durkeim) ou psi-
canalistas. Haering muito insiste sobre o que ele chama «reci-
procidade das consciéncias», elemento novo no tratado dé
Moral do autor. É para desejar que também este ponto venha
a ser ulteriormente esclarecido. Precisamente quando propóe
«regras de prudencia ao assumir um risco moral», Haering
tem palavras ambiguas a respeito do divorcio,... palavras
que parecem sugerir o reconhecimento da situagáo de pessoas
divorciadas e unidas em segunda instancia :

"Teremos a coragem de estudar, por exemplo, o problema do celibato


toreado, sob a grave sancfio de exclusSo perpetua dos sacramentos para
pessoas divorciadas, que por vezes lutaram heroicamente para salvar seu
18 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

casamento Se devemos ser fiéis á severa condenacSo do Senhor em reía-


9§o ao Implacável divorcio em face do casamento com outra pessoa, será
que nao precisarla haver maior fidelldade ao mandamento-meta: Sede
misericordiosos como vosso Pal é misericordioso (Le 6,36)?" (p. 274).

Ora seria falsa a misericordia que pretendesse reconhe-


cer a situágáo de pessoas ilegalmente unidas... Deus e a
Igreja sao misericordiosos para com tais pessoas, nao no
sentido de equiparar seu estado ao de legítimo matrimonio,
mas no sentido de estimulá-los a viver táo corretamente
quanto possível, se nao podem dissolver a sua uniáo marital
ilegítima ; o Senhor Deus tem recursos infinitos para salvar
aqueles que, arrependidos, O procuram de coragáo sincero.

4. Conclusóo

Faz-se mister reconhecer na obra de B. Haering aqui


focalizada importantes méritos. O autor procura estruturar
á Teología Moral nao só sobre a lei de Deus, mas também sobre
a realidade do homem, que é um ser cada vez mais penetrado
pelas ciencias modernas, especialmente pela psicologia das pro
fundidades ; Haering critica o que haja de excessivamente ca
suístico e objetivista ñas concepcóes de moralistas ántigos,
como também rejeita a posigáo daqueles que perdem o contato
com o passado no intuito de estruturar .urna Teología Moral
radicalmente nova ou desvinculada de suas tradicóes auténti
cas. O livro em pauta procura, pois, seguir urna via media,
que seria a via áurea.

Cremos, porém, que tal objetivo aínda nao foi alcangado


por Haering, pois em sua obra o tratado do pecado requer
seria reconsideragáo; tenham-se em vista as observagóes atrás
propostas. As teses de Haering, neste particular, carecem do
indispensável abono da Igreja; por conseguinte, nao podem
ser adotadas na vida prática nem pelos fiéis em geral nem
pelos confessores e diretores espirituais. É oportuno que se
diga e repita isto, a fim de evitar o laxismo que poderia decor-
rer de má interpretagáo do texto de Haering. Certamente
este autor nao quis favorecer leviandade e mau uso da liber-
dade, mas as suas formulacóes, por vezes, se prestam a indu-
zir a resultados indesejáveis. Os fiéis cristáos teráo conscciéncia
de que as verdades da fé e da moral nao podem ser depreen-
didas das obras de um ou alguns autor (es) em particular, mas
háo de ser aprendidas na escuta dócil e filial do magisterio
oficial da S. Igreja.

— 18 —
Sob o regime marxista:

interrogares e aspiracóes do
homem russo

£m aintese: As páginas subseqüentes apresentam o depoimento de


um Intelectual russo, Jurlj Malcev, a respeito da sltuacSo geral do povo
soviético sob regime comunista. Aponta a InsatisfacSo da populacáo russa
e os anselos da mesma por urna nova ordem de coisas, que serla inspirada
pelos valoreé transcendentals e, em particular, pelas perspectivas do huma-
nlsmo cristSo; Malcev reconhece o potencial construtlvo da mensagem
crista, embora se diga nSo crlstSo. O autor censura outrosslm os povos
ocidentais por se acovardarem dlante do aparato do Estado soviético; julga
que talvez nSo acreditem ñas trágicas noticias que Ihes chegam da U.R.S.S.
ou, se acreditam, delxam-se flcar no comodismo; Malcev formula um apelo
á opIniSo pública mundial para que se sensibilizo pelas condicSes políticas
e económicas a que está sujeita a populacáo russa.

O texto é altamente Interessante e significativo. Fol publicado pelo


Secretariado da Igreja Católica destinado ao diálogo com os NSo Crentes
em seu boletim "Ateísmo e Diálogo".

Ooment&rio: Já em PR 197/1976, pp. 201, foram publi


cadas noticias de surpreendente despertar religioso na U.R.S.S.
Apesar de sessenta anos de militancia marxista e atéia na
Rússia, registram-se expressóes de repudio ao materialismo
ateu, que atestam o reavivamento dos sentimentos religiosos
e místicos do povo russo.

Neste número vai reproduzido o depoimento pessoal de


Jurij Malcev. Trata-se de um intelectual russo, de 44 anos
de idade, que professa a rejeigáo do comunismo e registra
fatos significativos ocorrentes em s.ua patria. Foi professor
de italiano na Universidade de Moscou, mas, por ser dissi-
dente político, viu-se expulso de sua patria. Reside atualmente
em Roma. O autor se diz arreligioso.

O depoimento de Jurij Malcev foi publicado pelo Secre


tariado da Igreja destinado ao Diálogo com os Náo-crentes no
Boletim respectivo intitulado «Ateísmo e Diálogo». Reprodu-
zimo-lo em tradugáo portuguesa, certos de que será útil aps
leitores pelo fato de evidenciar mais urna vez o curioso fenó-

— 19 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 24V1980

meno de aspiragóes religiosas e transcenderíais á revelia do


mais duro materialismo imperante ñas estruturas governa-
mentais soviéticas.

1. Apresentac.3o

«Nasci no ano de 1932 em Rostov, as margens do rio Don.


Multo cedo, desde os primeiros anos da escola elementar, fui edu
cado no marxismo-leninismo, como todos os meninos russos. Todavía
em mim sempre houve um espirito critico; sempre me impressionou a
diferenca entre a propaganda oficial e a realidade da vida na
U.R.S.S. : a propaganda dizia que éramos o primeiro país do
mundo « que todos os anos fazíamos progrersos; contudo eu vía
ao meu redor a pobreza, a perseguicao aos fiéis e opositores; res-
pirava a atmosfera de terror que reinava prin'cipa'mente quando eu
era ¡ovem, nos tempos de Stalin. Diariamente regislravam-se prisoes,
inclusive de persoas conhecidas; mesmo em nossa casa ninguém
falava desses falos; eram tabus, como o eram todos os temas polí
ticos. Os meninos sao sensíveis a tal atmosfera; sem que alguém
me rivesse dito coisa alguma, creio que, por volta dos dez anos, eu
tinha perfeita consciéncia de viver sob um regime intolerável, con
trario a todas as aspiracóes mais naturais do ser humano.

2. Ninguém na U.R.S.S. aínda acredita no marxismo

A minha prímeira palestra de oposicSo na Universidade foi tar-


dia; antes nao falara absolutamente com ninguém ; todavia muito
refletira em particular. Na Universidade, logo me dei conta de que
grande número de ¡ovens pensava como eu, mesmo que nem sempre
exprimissem claramente o seu modo de pensar. Constituímos um
núcleo de jovens opositores e nos nos reuníamos sem formalidade
para criticar o regime e para sonhar com um porvir de liberdade.
Eu era considerado pelas autoridades e por meus pais como um
bom socialista, ativo, estudioso, convicto. Todavia percebi que, nos
anos após a guerra Centrei na Universidade de Leningrado em 1950
e passei meus exames de licenciatura em Letras no ano de 1955),
era impossível, para um ¡ovem serio, honesto e inteligente, crer no
marxismo-leninismo. O sistema estava repleto de absurdos, contradi-
Coes, meios de repressao da pessoa humana; todos estovamos á
mercé dos funcionarios do Partido e o país inteiro se achava em
maos de um só homem.

— 20 —
ASPIRAQOES DO HOMEM RUSSO 21

As vezes pergunta-se se há ho¡e na Rússia marxistas-leninistas


convictos. Sinceramente devo responder que nao os há e que ¡ornáis
os conheei; caso os ha¡a, sao táo poucos que ninguém pensa possa
tal raca -existir. A prlmeíra geracáo dos revolucionarios, a de Lenin,
era provavelmente urna geracáo de verdadeiros crentes; estes, porém,
nunca superaram os 20 a 25 % da populacao russa (para nao
falar senao dos russos, pois as outras nacionalidades existentes na
U.R.S.S. sempre consideraran! o regime dos Sovietes como um novo
sistema que substituí o regime dos czares, inventado pelos russos
para melhor dominá-las, melhor oprimí-las). A geracáo dos revo
lucionarios, os companheiros de Lenin eram gente disposta a fazer
grandes sacrificios pela causa; acredítavam com fé ingenua e rell-
gio-a que, nacionalizando tudo e estabelecendo a ditadura do pro
letariado, assegurariam ao povo um regime de ígualdade, justiea e
abundancia. Conheei muíto muís tarde um representante dessa fase
da historia; também ele, ao confessar a fé que rivera naquele tempo,
estava desalentado e ¡á nao acredita va.

Pensó que todos os ¡ovens que foram educados a partir de


1927/28, ¡á nao acreditavam. A opressao de Stalin era algo dema
siado espantoso para que se Ihe pudessem fechar os olhos. Disto
dá testemunho o fato de que durante a guerra, qvando os nazistas
invadiram o nosso país, urna parte do povo e de nossos soldados,
pela primeira vez na historia de todas as nacóes, se rebelaran) contra
a sua patria, desde o momento em que tivera m a ocasiao propicia
de colocar-se do lado do adversario. Logo depois houve o terror
nazista, em nada inferior ao de Stalin; houve principalmente o
desprezo dos ruesos por parte dos alemaes, o chamado de Stalin
para salvar a patria e a discreta liberalizacao do re.gime «aqueles
anos de guerra; tudo isto permítiu reconstruir urna certa unidade
para a defesa do país. Depois da guerra, pensava-ie que Stalin
continuaría pelo cpminho da liberalizacao; mas, ao contrarío, houve
os expurgos, as víngancas exercidas contra todos os que eram sus-
peitos de se ter colocado do lado do inimigo, a deportacao de
inteiras populacoes que haviam incorrído em fraquezas ou que pare
cía m tais. Creio que, na U.R.S.S., ninguém pode dizer que nao
conheceu um preso político; nos anos de minha ¡uventude ninguém
podia estar certo de nao vír a ser aprisionado de um día para outro,
aínda que por motivo das acusacóes mais absurdas.

A oposicao aberla ao regíme nasceu sob Krushev, quando se


comecou a respirar um novo clima de líberdade. Sob Stalin, a leí
nao escrita, mas observada por toda a gente, era a seguinte : Se
queres sobrevíver, a ninguém fales de política (ou de qualquer

— 21 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

coisa que possa parecer implicar urna mudanca de política). Era urna
leí que ninguém ensinava (nem me:mo os país aos filhos a ensi-
navam), mas que todos aprendiam desde que chegassem ao uso
da razáo. Todavía, depois de Stalin, quando o povo comecou a
ou'vir falar oficia.mente dos campos de concentracao, de processos
realizados e de outros crimes do mesmo género, todos cometidos
em nome do «povo», os que eram perseguidos comecaram a falar,
e toda a gente perdeu confia nca no re,gime, no sistema e na ideo-
logia. Hoje a mor parte da populacño é célica, sem esperanza, sem
ilusoes; nao pensa em coisa alguma senáo em melhorar cuas con-
dignes de vida. Os russos e, em particular, os ¡ovens e os intelectuais
experimentan! urna frustragao incrível : quem tem fé, reza ; e qucm
nao tem, se embriaga.

3. No hospital psiquiátrico (criminal) por causa


das minhas ¡déias

Após ter obtido a minha licenciatura em Letras no ano de 1955,


trabalhei como tradutor de italiano em varias editoras de Moscou
(traduzi para o russo as obras de Moravia, de Eduardo di Filippo,
de Squarzina e de outros autores); fui professor de italiano na Uni-
verstdade de Moscou; dediquei-me ao periodismo e á crítica cine
matográfica, fui colaborador científico no Instituto de Filosofía da
Academia de Ciencias. Desde o inicio aderi ao «Grupo de Acá o
para a Defesa dos Direitos do Homem», juntamente com outros
intelectuais, entre os quais Piotr Jakir (filho do Marechal do Exér-
cito Vermelho, fuzilado por Stalin), Viktor Krasin (ex-prisioneiro),
Levitin 'Krasnov (escritor religioso, atualmente exilado) l, Natalia
Gorbanevskaia (poetisa) e outros. Tomei parte no «Movimcnto De
mocrático», ao qual aderíram tantos outros intelectuais russos. Envia
mos cartas á ONU e á Cruz Vermelha; levantamos protestos públicos;
fundamos a revista clandestina «Crónica de acontecimentos atuais»,
que publica os processos e as condenares por motivos políticos ou
religiosos, que ocorrem aínda hoje na U.R.S.S..

Todos esses nossos esforcos acarretavam considerável risco pes-


soal. De fato, todos os .que foram descobertos, terminaram na prisSo,
em campos de trabalho, no hospital psiquiátrico e, depois, caso a
sua fama tivesse atravessado as fronteiras, foram expulsos. Os obje
tivos dessa nossa luta eram dois : de um lado, fazer que o povo
russo lomasse consciSncia dos crimes que o Governo cometía em

iEm PR 200/1976, fol publicada parte de um artigo deste escritor.

— 22 —
ASPIRACOES DO HOMEM RUSSO J3

nome do povo; do outro lado, suscitar protestos em todo o mundo


democrático, por parte da imprensa, dos Governos, dos Sindicatos,
dos Partidos, dos movimentos culturáis e religiosos, etc. Contudo nos
nos dávamos conta de que, re fin hamos aleancado iríais ou menos
o primeiro objetivo, o segundo havia fracassado quase totalmente.
Acreditávamos que bastava denunciar as injusticas sistemáticas do
Governo soviético para comover a opíniao pública ocidental e os
Governos; mas, ao contrarío, assistimos aos acordos diplomáticos e
ao silencio quase geral da imprensa e dos movimentos da opiniao
pública. Nos nos sentimos sos, abandonados e traídos pelo mundo livre.

Aos 17 de outubro de 1969, fui preso por causa de um apelo


dirigido á ONU, que eu assinara e que pedia á Comissao dos Direitos
Humanos interviesse para defender estes direitos violados pelo regime
soviético. Essa nota era muito minuciosa e continha documentacao
precisa. Logrou certa repercussáo no estrangeiro. Quase todos os
periódicos a ela fizeram referencia e publicaram os nomes dos seus
signatarios. Foi isto que me salvou : meu nome «ra conhecido no
estrangeiro, de modo que, após um mes de internacáo em hospital
psiquiátrico, tiveram de libertar-me, a fim de nao suscitar mais ampias
críticas. O mes passado na clínica psiquiátrica de Kashenko ficará
em minha memoria como um pesadelo. Fui alojado no povilhao dos
doentes mais perigosos; minha porta estova sempre trancada á chave
e as ¡anelas eram cerradas por sólidas través; a clausura era táo
pesada que nos primeiros dias julgue! que nao conseguiría resistir.
Eu nao podia, em absoluto, sair do meu quarto e as enfermetras
¡amáis me perdiam de vista. A alimentagáo constava de papas remi-
apodrecidas, repolho e bacalhau férvido. Provavelmente, queriam
que me tomasse louco de verdade. Davam-me pílulas que me provo
cava m violentas dores de cabeca e agudas pontadas no fígado; em
breve, porém, aprendí a nao as engolir; cuspia-as quando estava
certo de que nao era observado. Se ali tivesse permanecido mais
tempo, te rio passado por um tratamento de ¡njecoes, contra o qual
nao teria tido defesa. Ao invés, fui posto em liberdade repentina
mente : salvava-me o fato de que meu nome se tornara conhecido
e meos amigos que haviam ficado em liberdade, tinham informado
os ¡ornalistas ocidentais.

Todavía, q-uando sai do hospital, a policía do K.G.B. con-


tinuou a convocar-me para freqüentes e longos interrogatorios, que
ás vezes duravam da manha até a noite e aínda se prolongavam
até altas horas desta; quase todos os dias, isto ocorreu num período
de quarenta dias. Depois, eu nao encontrava trabalho, de modo
que só pude sobrevíver grasas á ojuda de amigos e fazendo- tra-

— 23 —
24 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

ducoes que eu apresentava com um nome emprestado. Finalmente


no dia 25 de abril de 1974, depois de haver pedido durante dez
anos a autorizacao para emigrar, fui acompanhado até o aero-
porto de Moscou; mas nao me permitiram levar comigo nem mesmo
os meus papéis, nem o meu diploma, nem as rninhas pastas; disse-
ram-me que nunca mais poderia voltar á Rússia. Ao cabo de algu-
mas horas, estova em Viena.

4. Também o Ocidente leva existencia désumanizada

Com toda a sinceridade, devo dizer que, ao chegar ao Ocidente,


sofri, como muitos outros refugiados políticos russos, profundas desi-
lusoes. Ao mesmo tempo, devo agradecer a todos os amigos, ás
pessoas e aos pequeños grupos que me escutaram com fraternidade
e generosidade auténticas, e que permitiram que eu sobrevivesse até
conseguir estabelecer-me. Devo, porém, acrescentar que nenhum orga
nismo oficial, cultural, político ou sindical me prestou boa acolhida.
Compreendo-o: nos, refugiados da U.R.S.S., somos pessoas compro
metedoras. As conversas que temos, o testemunho que damos, a
ninguém agradan). Existe notorio conformismo, para o qual talar
mal da 'patria do socialismo' nao é lícito, nem mesmo a quem
profere a verdade.

Em Moscou, eu tinha amigos correspondentes de grandes diarios


italianos, aos quais eu dava noticias e documentacao. Urna vez fui
chamado a direcáo da K.G.B., para re'ponder a respeito do fato
de que me reunirá com periodistas italianos. Quando mais tarde fui
ó Italia, visitei-os: mostraram-se muito gentis, mas logo me disseram
que, se eu quisesse escrever o que pensava a respeito da U.R.S.S.,
nao encontraría nenhum diario disposto a publicar os meus artigos
ou a conceder-me urna entrevista. Somente um dos meus artigos
poderia ser publicado nos diarios de extrema direita; isto faria com
que me qualificassem de «fascista». Esfou surpreso por verificar que
na Italia aqueles que dizem a verdade sobre a U.R.S.S. passam
por «fascistas»: eu pensava que seriam tidos como «demócratas».
Todavía aqui há mais do que urna questao de vocabulario. O fato
é que nos, refugiados políticos da U.R.S.S., ao entrarmos nos patees
democráticos, desejamos ser úteis ao nosso povo, aos nossos amigos
que estao nos campos de concentracao, nos eárceres e nos hospitais
psiquiátricos do Estado. Mas, ao contrario, a menos que secamos
outros Solyenitzsin (tenho, porém, a ¡mpressao que sá o exploram
comercialmente), nao temos os meios de atrair a atencáo da opiniao
pública e estamos obrigádos ao silencio, em vista do conformismo

— 24 —
ASPIRAQOES DQ HOMEM RUSSO 25

geral. Estou para terminar um livro, que tenciono publicar em russo


ruma Editora dos emigrados russos na Europa Ocidental; mas nao
sei se encontrare! um editor italiano disposto a publica-lo.

Outra desilusáo profunda que experimente! ao chegar ao Oci-


dente, foi causada pelo fato de que nos, contestatarios do atual
regime da U.R.S.S., tínhamos idealizado multo a sociedade oci
dental; sim, pensávamos que urna sociedade livre, que permite o
confronto das idéias, urna sociedade formada por cristaos, devia
ser muito mois animada por espirito fraterno, pe'os grandes idea<s
da paz e da ¡ustica. Bem sabíamos que nenhuma sociedade pode
ser perfeita e que, por conseguinte, a própria sociedade ocidentat
devela estar atormentada por dissensoes e graves problemas. Mas
¡ulgávamos que, numa sociedade livre (nao totalmente, sem dúvida,
mas certamente muito mais do que a sociedade soviética), os homens
deveriam ser mais sensiveis, mais democráticos, mais abertos aos
supremos valores do homem, ao confronto das idéias. Ao contrario,
porém, descubrimos urna sociedade que traiu os ideáis democráticos
e cristaos: há um espantoso conformismo, indiferenca frente aos
grandes valores do homem, e também há a corrida do consumo...
Tudo isto nos imprersionou e entristeceu profundamente. Varios amigos
resgatados da U.R.S.S., que ali tinham sofrido para conquistar um
mínimo de liberdade, escrevem-me no exilio dizendo que desejam
regressar á Rússia para ir aos campos de con cent racao, para ser pri-
sioneiros, para viver na expiacao e no sofrimento, de preferencia a
ficar na sociedade ocidental, na qual a pessoa se senté como sub-
mersa num pantano, sem se poder fazer ouvir nem fazer algo para
mudar a situagáo.

5. Os cristaos devem converter-se a Cristo

Sou talvez um pouco pessimista, por dois motivos:

Em primeiro lugar, porque pensó que urna sociedade livre, demo


crática é, sem comparacao, melhor que urna sociedade totalitaria,
em que os cidadáos se sentem sempre obrigados a calar-se. A liber
dade de pensamento, a de dar testemunho, a de confrontar idéias,
sao o fundamento de urna sociedade mais humana. A sociedade
democrática ¡á traz, em si mesma, os instrumentos necessários para
a correcao dos seus erras, de suas estruturas opressivas, que sao
sempre mais flexíveis e estao em continua mudanca. Pode nela haver
muitas in¡usticas — e as há realmente —, mas estas sao constante
mente corrigidas, por estarem sujeitas a crítica das oposicoes e da

— 25 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

opiniao pública. A sociedade soviética é rígida; é urna estrutura


•Ideológica que nao pode mudar a nao ser mediante o total desmo-
ronamento do poder.

Segundo motivo : no Ocidente, os homens vivetn um individua


lismo e um espirito de consumo desenfreados; hó muito egoísmo pes-
soal e de c'-asse. Mas, ao menos, existem grupos de pessoas de boa
vontade, cristáos e nao crentes, que falam abertamente, que dao
testemunho de fraternidade e de compromisso com a ¡ustico, que se
ajudam mutuamente e que ajudam a todo homem; falam em termos
de renovacao. Na U.R.S.S. esses grupos nao existem, ou ao menos
nao aparecem; nao é possível haver urna manifestacao crista sobre
a renovacao da vida social; para o russo medio, o Estado pensa em
tudo, o individuo serve ao Estado, e nao deve colocar problemas.

Todavía é certo que a sociedade ocidental, e!a também, se


gundo o que pude ver e compreender, deve mudar radicalmente,
caso se queira tornar urna sociedade digna do homem. Nos, que che-
gamos de improviso a esta sociedade, tao cheios de idéias e de
boa vontade, permanecemos atónitos ao ver como tantas pessoas e
tontos movimentos democráticos estao longe de ser construtivos; ao
contrario, criam confusao, desorden* enormes, tensSes, contesta-
cao... Nada tenho contra a liberdade da palavra; mas parece-me
que na sociedade ocidental há tendencias suicidas, extremistas, vio
lentas, fascistas e comunistas, que estao a criar um ambiente de
fanatismo dogmático e de violencia, apropriado para abrir o caminho
a urna sociedade totalitaria. O que me surpreende, é que muitos
¡ovens e adultos professem teorías extremistas, que fazem apelo á
violencia, em vez de conservar um espirito democrático, de tranqüili-
dade, de respeito ao outro, de diálogo pacífico e estimulante.

Devo acrescentar que, segundo a minha opiniao, a l.greja e os


cristaos deveriam também mudar: nao me parece que sejam hoje
o sal da sociedade, como quena Jesús. Na U.R.S.S. talvez tenha-
mos idealizado demais a Igreja. Perdemos toda a confianca numa
solucao política, social, económica ou jurídica; a parte mais cons
ciente do povo russo volta-se para o Cristianismo e para a Igreja
como sendo sva única esperance. Pensemos qve em certos programas
políticos de intelectuais russos (deve-se recordar que toda a intelli-
géntsia russa era atéia e anticlerical antes da RevolucSo), programas
redigidos na clandestinidade, os autores chegam a dizer que, ácima
do Estado, deve estar a lgre¡a, e que o Governo deve ser confiado
aos sacerdotes, única categoría de pessoas que, segundo os autores,
querem o verdadeiro bem do povo russo, sobrepondo-o aos seus inte-

— 26 —
ASPIRACOES DO HOMEM RUSSO 27

resses pessoais ... O futuro Parlamento, acrescentam esses programas


utópicos, deverá compor-se de duas Cámaras: a Cámara baixa, eleita
pela popuiacao, e a Cámara alta, composta táo somente de sacer
dotes eleitos pelos sacerdotes de todo o país. Julgam que os homens
de Deus sao os mais aptos para governar-nos, depois das terríveis
experiencias do estatismo e do materialismo! Como se compreende,
isto tudo sao utopias e exageres; mostra, porém, até que ponto nos
idealizamos a Igreja enquanto forca de salvacao e de ¡ustica. Toda
vía, independentemente desses exageras, creio que a Igreja multo
deve mudar no Ocidente e que os sacerdotes e os aislaos devem
dar um testemunho muito mais concreto da sua fidelidade a Cristo.

6. Lenin pregava o odio e o exterminio


dos adversarios

Por que há na Rússia um vigoroso renascimento do Cristianismo,


especialmente entre os ¡nteleetuais, os estudantes, os artistas, os
dentistas, que antes da Revolucao eram ateus ou anticlerícais ? A
resposta é simples: o marxismo nos levou a um beco :em saída; o
materialismo científico, como explicacao do mundo e do homem,
fracassou, ao passo que a parte mais consciente da sociedade se
volta para os valores espirituais, para Deus e a Igreja, que repre-
sentam o extremo oposto ás teorías marxistas-ieninistas. Toda a
populacao da U.R.S.S. compreendeu bem agora que esse gran
dioso empreendimento de construcao de um mundo novo, de um
homem novo, fracassou, porque a ideología marxista-leninista tem
raízes faltas e porque, como dizia Safarevic, o mais célebre mate
mático da U.R.S.S. e escritor do 'Samizdat', essa ideología leva
consigo o instinto da morte; nao tem em si principios de vida, mas
apenas de morte; corre em direcao do nada I

E por que o socialismo marxista-leninista carece de principio


vital ?

Porque, antes do mais, a vida nasce do amor, ao passo que


esse socialismo nasce do odio. Nao discuto se urna certa reacao
de odio se pode justificar segundo urna experiencia histórica; mas
é cert? que o odio jamáis é portador de paz, de bem, de progresso,
de ¡ustica ; e de odio o leninismo está cheio.

Em segundo lugar o socialismo marxista-leninista carece de prin


cipio vital, porque a vida e o progresso procedem da livre expressao

27
28_ 4.PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

de todas as forcas vitáis de urna sodedade: a vida é urna harmonía


de contrastes, ao passo que o comunismo é a degnadacao de todas
as forcas criadoras, tanto na arte quanto na literatura, tanto na
agricultura quanto no terreno religioso. Tudo é monopolizado pelo
Partido, pelo Estado, e tudo depende de un número muito reduzído
de pessoas que estao na cúpula. Isto nao significa carencia de líber*
dade táo somente em sentido vulgar (poder dizer o que se quer(
poder imprimir um periódico de oposicao, deslocar-se no próprio
país, emigrar para o estrangeiro), mas também no sentido mais nobre
da vida do espirito: liberdade de festemunhar em favor do que se
¡ulga ser justo, etc. O socialismo soviético nao cria homens livres e
novos, mas, sím, robos, gente que foi afundada « que foi habituada
a fingir, a ocultar seu pensamento, a fazer, sem discutir, o que os
chefes mandam; em suma, escravos.

Quando contó estas coisas na Italia — outros refugiados da


U.R.S.S. fazem a mesma experíénca em outros países , muitos
nao acreditam, pensam que exagero: parece incrível que no 'país
do socialismo' nao ha ¡a pessoa humana, que o homem particular
nao tenha valor nenhum aos olhos do regí me e do poder. Mas é
realmente assim. O renascimento religioso origina-se precisamente
do fato de que o Cristianismo póe o acento principal sobre o valor
da pe«soa humana e sobre os direitos do individuo, ao passo que o
socialismo fala sempre e únicamente de 'povo', de 'coletivo', de 'con
quista dos trabajadores', da 'grandeza da heroica patria soviética'
— entidades abstraías todas estas, em nome das quais se oprime
o homem. O que conta na U.R.S.S., é o triunfo da ideología; o
homem, enquanto tal, nao conta; se ele nao se sujeita, é um obstá
culo, é oprimido, é enviado á Sibério.

Atualmente é claro para todos na U.R.S.S., e creio também


no resto do mundo, que, qualquer que seja o fim proposto..., a
opressao do individuo jamáis se pode justificar. O Cristianismo é a
única verdadeira revolucao, a única yerdadeira forca que pode mudar
o mundo. De passagem, quero acrescentar que nao digo isto, por
que tenha fé; nao pertenco a nenhuma confissdo crista, e minha
fé ainda está no caminho da busca. Falo apenas a partir de um
ponto de vista racional, no sentido de que Cristo é o único que nos
trouxe os principios, o exemplo concreto, com os quais podemos
transformar o mundo. — Nao vejo como se podem mudar verdadei-
ramente as relacoes de opressao de homem a homem, de povo a
povo, segundo o marxismo-leninismo, que divide a sociedade em
bons e maus, que suscita o odio do próximo, que justifica todos os
campos de concentracao e a 'ditadura do proletariado1 (seria pre-

— 28 —
ASPIRAQOES DO HOMEM RUSSO 29

ciso dizer:... sobre o proletariado). Costuma-se afirmar que a


época de Stalin, com todos os exterminios de massas, os campos de
trabalho forcado e tudo mais, foí um erro trágico, vm equivoco. Mas
islo nao é verdade. Foi o próprio Lenin quem pregou o odio, o
exterminio dos adversarios, e hoje nao se procede de outro modo,
porque estes métodos derivam de urna certa visao da historia e do
homem. Lenin dizia claramente, em seus discursos e cartas, que era
necessárío odiar os inimigos do povo e exterminar a quem quer que
se opusesse á ditadura do proletariado. Hoje tais textos ¡á nao sao
reproduzidos; sao ocultados púdicamente, mas constituem documentos
históricos. Tenha-se em vista, por exemplo, a famosa carta ao Comité
Central do Partido (creio que de 1922): naquela época de fome
geral, Lenin dizia que era necessárío ir a todas as igrejas ortodoxas
e retirar délas os tesouros acumulados as custas do povo; logo
acrescentava que seria necessárío aproveitar o fato de que alguns
sacerdotes se opóriam a essas medidas, para matar o maior número
posstvel deles, visto que eram nossos inimigos e o conrinuariam a
ser no futuro. Tais foram as palavras de Lenin; é essa concepcao
de poder que leva diretamente aos campos de exterminio e a todos
os erros da ditadura de Stalin.

7. O marxismo nao tem futuro na Rússia

Algumas pessoas me perguntam : como se explica o fascinio


que o socialismo e o marxismo exercem no mundo, e, em particular,
sobre os jovens? — O marxismo parte de urna ¡ntuicáo justa, se
gundo a qual o homem nao deve explorar o .homem, todos os
homens sao iguais e, por conseguinte, tém os mesmos direitos.
Observemos que isto nao é urna idéia marxista, mas crista, se bem
que Marx a lenha recordado num momento em que quase caira no
olvido. Contudo logo o leninismo deu aplicacoes falsas a esse prin
cipio ¡usto : assim a ditadura do proletariado, a luta de clasres, a
eliminacño de todos os adversarios, o maniqueismo que divide o
mundo inteiro em exploradores e explorados, a crética de que toda
a historia e o homem todo sao dirigidos pela economía, etc. O ideal
socialista de urna sociedade mais fraterna e mais justa é fasci
nante, mas nos, que vivemos num país socialista concreto, ¡á nao
acreditamos nele, ao menos nesse tipo de socialismo que se deriva
do marxismo-leninismo.

Na U.R.S.S., a populacSo também nao eré em Mao, nem


em Castro, nem em outros modelos de socialismo ¡ estes mcdelos

— 29 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

estao percorrendo o mesmo caminho que nos percorremos. A expe


riencia de Dubcek na Tchecoslováquia levaría necessariamente a
urna sodedade sociol-democrática, como na Suéda ou na Dinamarca,
com liberdade de imprensa, de partidos políticos, de comercio, de
iniciativa privada, de religiáo, de propríedade particular (aínda
que estivesse controlada pelo Estado através de leís socíaís e um
excelente sistema fiscal). Na rninha opiniao, os chefes da U.R.S.S.
viram com clareza: o socialismo de 'face humana' é o da Suécía,
nao o da Rússia, o que quer dizer que aquela o realízou melhor do
que esta. Em conreqüéncia, quando Dubcek tomou o caminho da
liberdade e da abolicáo de todo dogmatismo, nao podía senáo saír
do sistema; depois a forca das coisas e a preísao popular haveriam
vencido; os chefes rus*os detiveram o processo a tempo, e, a partir
do ponto de vista deles, nao podem ser censurados.

O fascínio exercido pelo socialírmo marxista cxplíca-se, para


m¡m, nao no plano racional, mas no plano religioso : tornou-se urna
fé religiosa e, de fato, entre nos os marxistas convictos sao chama
dos 'crentes', exatamente como os cristáos. Ho¡e o marxirmo já nao
é urna filosofía, urna ciencia económica ou social, urna doutrina
política, mas urna fé religiosa, urna maneira de conceber a vida, o
homem e sua historia; acredita m nele, nao sobre a base de provas
racionáis, mas por um movimento de alma, por sentimento.

Por causa disto, o marxismo na U.R.S.S. ¡á nao tem discípulos:


a fé 'religiosa' foi claramente desmentida pelos feitos, sem sombra
de dúvida. Os mitos desmoronaran!. No Ocidente pouca gente eré
que a U.R.S.S. seja o país mais anti-socialísta do mundo e que
o marxismo ¡á nao tenha futuro na Rútsia. A própria terminología
marxisfa — 'revolucao proletaria, dita dura do proletariado, estru-
turas e superestruturas, luta de classes, conscíéncia de classe, rela-
coes de producao, sociedade sem classes, etc.' — inspira tao somente
náusea aos russos. O marximo-leninismo nao é mais que um instru
mento de poder em maos da atual classe burocrática « militar per-
tencente ao Partido, e nada mais. Mesmo nos níveis elevados — e
eu freqüentei gente muito altamente colocada durante anos — nao
há urna só pessoa que, fora da retórica dos discursos oficiáis, se sirva
da terminología marxista ou se refira «ios ideáis ou á análise marxista.
As pessoas tem vergonha, em particular, do que elas devem susten
tar em público. O único ideal que supera o ponto de vista egoísta
pessoal, é o ideal da patria, o de fazer da Rússia um grande país,
o de defender suas fronteiras; os poucos crentes que ficam, no
máximo créem nisto; o resto é escurídáo total.

— 30 —
ASPIRACOES DO HOMEM RUSSO 31

Por outro lado, o que afirmo é demonstrado por feilos inequí


vocos ¡ por exemplo, no mercado negro de livros um volume dti
Berdiaev, de Chestov, de Leontlev vende-se a 40, 50 e até 70 rublos.
Mas as obras de Marx e de Lenin, mesmo as edicóes mais antigás,
nao sao aceitas nem mesmo pela metade do preco nos lojas estatais
de livros de ocasiSo, porque todos sabem muito bem que nao há
esperanca de vendé-las.

Milhóes de exemplares de livros nao vendidos acumulam-se


anualmente nos depósitos de papel velho; é a literatura marxista
publicada obrigatoriamente pelas editoras oficiáis, mas que ninguém
quer ler ou comprar (ao passo que os Evangelhos sao vendidos no
mercado negro); urna quantidade exorbitante desses volumes mar-
xistas vai parar ñas 'bibliotecas populares' de escolas, kolkhozes
de bairro, etc., e serve principalmente para figurar ñas estatísticas
das bibliotecas... Ñas casas dos intelectual russos, podem-se ver
hoje retratos de Berdiaev ou de Solyenitzsin, mas seria impensável
encontrar oli um retrato de Marx ou de Lenin; isto seria algo que
faria rlr os amigos e que jó sería interpretado como urna brinca-
deira... Quanto aos poucos íntelectuaís que se proclamam mar*
xistas, como Medvevev, provocam riso e lamentacáo; ninguém deseja
discutir com eles, ninguém os leva a seño, ¡á que o seu marxismo
é considerado como unía atitude cómoda e fótica, e nao como urna
conviccao profunda.

Um homem honesto e ponderado, hoje na U.R.S.S., nao pode


ser um marxista convicto. O que digo pode parecer um paradoxo;
mas o maior Estado comunista do mundo representa potencialmente
a maior forca anticomunista. Este é um fato que terá consecuencias
extremamente importantes na historia do futuro. Quando a carcassa
moría do marxismo mentida pela forca cair finalmente, a Rússia
aparecerá como um mundo espiritualmente novo, amadurecido por
urna experiencia terrivel, que nenhum povo ¡amáis atravessou (a
China talvez se encontré ñas mesmas condicoes dentro de cinqüenta
anos). Creio que o povo russo será um povo aberto como nenhum
outro á mensagem de Cristo, que é exatamente oposta á mensagem
de Marx e de Lenin. Nenhum marxista ¡amáis poderá realmente crer
em Jesús Cristo e ser totalmente fiel ao seu Espirito, como também
nenhum cristao poderá ¡amáis ser um marxista convicto. Nao me
explico o que ocorre no Ocidente, onde alguns chegam a denomi-
nar-se 'cristaos para o socialismo'. Para nos, isto é urna blasfemia.

Poderiam dizer-me : 'VocS é injusto para com seus compatriotas


ñas suas comparacoes do regime soviético com os regimes ocidentais.
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

pois a Rússia partiu da estaca zero quando assumida pela revolucao


bolchevista e hoje é a segunda potencia do mundo, Isto é sinal de
que se percorreu um longo caminho I

Respondo : É a segunda potencia do mundo pelas armas, os


mísseis, a investigacao espacial, a producao de acó e talvez em
alguns outros setores, mas nao muitos. Nos demais — e é isto que
realmente conta — é a décima quinta ou vigésima, inclusive na
industria de bens de consumo. E — observe-se bem — no tocante
as riquezas naturais, a U.R.S.S. é, rem comparacáo, o primeiro
país do mundo. De fato, a U.R.S.S. é o único país industrial que
exporta materia prima e importa trigo, máquinas e fábricas, como
os países técnicamente subdesenvolvidos. Exporta pouco petróleo,
nao porque nao o tenha, mas porque a sua tecnología nao o con-
segue extrair quando se encontró em determinada profundidade :
os acordos com o Japao versam fundamentalmente sobre a extracao
do petróleo na Sibéria.

Creio que, se a Rússia tivesse podido desenvolver-se de maneira


normal, sob um regí me democrático como os do Ocidente, seria
hoje a primeira potencia económica do mundo em todos os setores.
As primicias de um desenvolvimento regular existiam ¡á antes da
chegada dos bolchevistas, que ¡mpuseram sua ditadura num plano
de desenvolvimento desumano, forea do, que negligenciou setores
vitáis como, por exemplo, a agricultura, e produziu milhoes de víti-
mas. No Ocidente, afirma-se que a Rússia dos czares era feudal e
extremamente atrasada. Este é um dos clichés totalmente falsos que
decenios de propaganda soviética lograram impor ao mundo livre.
Na verdade, a Rússia atingtu a era moderna em época mais tardía
do que os outros países europeus; mas na segunda metade do
século passado (como conseqüéncia rambém da derrota que Ihe
infligiram na Criméia em 1854 os exércitos ocidentais coligados, fa-
canha da qual tomaram parte os piemonteses), o país comecou a
pór-se em movimento, tanto no terreno das reformas sodais como
no campo da producao industrial. No período de 1888 a 1913, a
producao industrial aumentou de 9 % ao ano, e a taxa de desen
volvimento foi, em geral, de 5 % por ano. No terreno da agricul
tura, as coisas camlnharam mais lentamente: em 1861, a leí da
servidao foi abolida, mas só em 1907 a reforma agraria de Stolypin
deu a térra aos camponeses; em poucos anos, a Rússia européia e,
em particular, a Ucrania, adquiríu a reputacao de ser 'o celeiro
da Europa'. A Rússia dos czares era a primeira nacao exportadora
de trigo do mundo (hoje importamos trigo dos Estados Unidos,
apesar das imensas Ierras cultivadas que temos). No que. diz res-

— 32 —
ASPIRACOES DO HOMEM RUSSO 33

peifo ó liberdade individual, os cidadaos russos já haviam obHdo,


em virtude da reforma de 1907, o passaporte, isto é, a liberdade
de se deslocarem para qualquer parte do nosso ¡menso territorio,
de ¡rem a cidade, de lá fazer comercio, etc. Observe-se que o
cidadao da U.R.S.S. ¡amáis teve tal liberdade; só o ano passado
o governo promulgou urna lei que promete conceder o liberdade
de circulacao a todos os cidadaos no interior da U.R.S.S. (nao se
fala da liberdade de emigrar) antes de 1980.

Outro enorme erro de avaliaeao consiste em pensar que a


Rússia czarista, no comeco do século, era totalitaria e que se negava
a conceder as liberdades democráticas. Isto é totalmente falso.
Existia a liberdade dos Partidos políticos, a liberdade de imprensa,
a liberdade de reuniao e, depois de 1906, ¡á nao ha vio censura.
Comprei numa toja de livros antigos, há muitos anos, 'O Capital' de
Marx editado em russo em Moscou, sinal de que tais textos revolu
cionarios se imprimiam e vendiam livremente (isto é tao certo como
certo é que Lenin comecou a publicar o 'Pravda' em Sao Petersburgo
muito antes da revolucao). Certamente, nao quero dizer que o
regime dos czares era democrático, como o entendem os ocidentais.
Era um regime paternalista, autoritario, que evoluia rápidamente,
como toda a Europa; doutro lado, quais eram os regimes democrá
ticos que naquela época governavam a Italia, a Franca, a Alema-
nha, a Espanha, a Bélgica e os outros países...? Se a Rússia tivesse
podido evotuir como os outros países europeus, teria progredido
muíto mais do que sob a ditadura soviética, mesmo do ponto de
vista meramente material. E nao esquejamos que em 1915 a Rússia
era a quinta potencia económica do mundo, após os Estados Unidos,
a Inglaterra, a Alemanha e a Franca. Nao partiu, pois, da estaca
zero como se diz.

Nem falemos do progresso intelectual! A Rússia estava na


vanguarda «m muitos setores. Ñas ciencias fin ha conquistado tres
Premios Nobel; tinha realizado estudos muito avancados sobre
balística e aeronáutica. Havia lá todo um renascimenlo das artes e
da literatura: todos os grandes poetas, escritores, pensadores, artis
tas, mesmo os cineastas russos da época contemporánea nasceram
e se formaram antes da Revolucao. Nao há um só grande nome
que ten ha vindo depois e que seja o produto da educacao marxista;
os grandes de hoje, como Pasternak e Solyenitzsin, estfio todos na
oposicáo.

— 33 —
?i_ PERPUNTE E RESPONDEREMOS.: 241/1080

8. Falso dizer que ninguém se revolta

A decadencia das artes e da literatura russas, que, até a vés-


pera da revolucáo soviética, tinham produzido obras célebres no
mundo inteiro, é a prova mais evidente de que o socialismo marxista-
•leninista, nesta fase da historia, teve o poder de matar o espirito
e a invencao. Nao sei como explicar de outro modo o 'laisser aller*
espantoso que se observa em todos os níveis da sociedade soviética
e a carencia de espontaneidade. Tudo está bloqueado, tudo está
dogmatizado. A greve nao existe; o protesto nao é possível, porque
leva ao cárcere; nem mesmo é lícito discutir as proposicoes contrarias
á linha oficial; as pessoas sao presas, principalmente por causa do
samizdat, isto é, porque escrevem, recopiam ou difundem a literatura
clandestina, as revistas, os livros que nao sao propriamente de
oposicao ao regime (todos estao convencidos de que este se acha
em falencia), mas, sim, de espiritualidade, de política, de filosofia
nao marxista. Deve-se notar que os escritores do samizdat corren)
poucos riscos : se sao descobertos, sofrem .geralmente a expulsáo,
seja depois da prisao, seja depois do hospital psiquiátrico. Mas os
que difundem os escritos do samizdat, os que os recopiam á máquina
ou policopiam, va o terminar nos campos de trabalho da Sibéria por
alguns anos. Ninguém fala deles, ninguém os defende. Sao ¡ovens
estudantes, trabajadores ou mulheres do povo, cu¡os nomes ignora
mos. Até mesmo no tocante aos castigos, o regime nao estabeleceu
a ¡gualdade: pela mesma falta, um intelectual, um universitario
pagam dez; mas um operario, um compones pagam cem.

Como reage o povo diante dessa vida sufocadora? — Eu ¡á o


disse: pela corrida ao consumo, pelo egoísmo pessoal ou o egoísmo
de casta, ou aínda pela crise religiosa e a descoberta da fé nos
valores supremos. Os descontentes se manifestam principalmente pela
resistencia passiva, a nao colaboracao, o deixar fazer. Por exemplo,
na agricultura há sempre escassez de mao de obra, coi:a ¡ncrível,
visto que nao se produz o suficiente nem mesmo para satisfazer as
necessidades da populacao. Seja como for, no momento das colhei-
tas, operarios, estudantes e habitantes das cidades sao obrigados
a ir aos campos para cumprir trabalho voluntario; vao prestar seu
auxilio para a colheita; mas, um pouco por descuido, perde-se a
metade desta, seja nos campos, seja no momento do enfeíxamento.

A insatisfacao popular é principalmente espiritual; verifica-se


um vazio de ideal e de participacao no poder, sem esquecer o nivel
inferior de vida. Um operario casado, com dois filhos, nao ganha
o suficiente para manter adequadamente a familia. Marido e mulher

34
ASPIRACOES DO HOMEM RUSSO 35

precisam de trabalhar, e, juntos, apenas ,ganham o necessário para


comer. Falo de simples subsistencia, de um nivel táo babeo que na
Italia (ao menos no norte) nao é imaginável. Por exemplo, a carne
é um luxo rerervado aos habitantes mais ricos das grandes cidades.
Em certas regioes, ha varios anos que nao se vende carne; é sim-
plesmente um artigo que nao está em venda. Frente as grandes tojas
Gum de Moscou se formam todos os sábados filas de centenas de
pessoas que esperam poder comprar um pouco de carne : mais da
metade dessas pe-soas procedem de fora da cidade, talvez de 100
ou 200 km de distancia. Em certas épocas do ano ou em certos anos
cm que as colheitas tém sido insuficientes ou mal distribuidas, as
pessoas nem sequer encontram o milho ou o trigo necessários para
preparar a kasda (e-pécie de polenta), que é o prato nacional,
como os spaghetti na Italia.

Ninguém se revolta? — Isto nao é verdade; mas é difícil sabé-to,


pois a censura tem máo de ferro, e no estrangeiro ró se recebem
noticias do que acontece em Moscou, em Leningrado ou em outros
grandes centros que as autoridades privilegiam e que elas tornam
urna especie de vitrina destinada ao estrangeiro.

Nestes dez ou doze últimos anos tem havido manifestacSes e


greves, ás vezes dramáticas, inclusive em Novocerkask, as margena
do Don (houve intervencao de tanques blindados), em Karaganda,
cm Grosnij, em Alexandrov. Últimamente erpalhou-se o rumor de
que haviam ocorrido motins em Gorkij ¡unto ao Volga; mas seria
inútil procurar sinais disso nos diarios. Há, também, insurreícoes dé
caráter nacionalista. Bom número de povos da República Soviética
consideram-se colonizados pelos russos. Nestes últimos anos, a policía
e o exército tiveram que intervir em Kaunas na Lituanía, em Tbilisi
na Georgia, em Taskent no Uzbekistán, em Circik, contra os tártaros
deportados por Stalin da Criméia para a Asia Central. Em cada
cidade existe urna brigada especial da K.G.B. (policía política)
formada para lutar contra os motins. Tem-se noticia de cidades
inteiras ñas quais o trabalho parou, porque havia muito lempo
estavam mal aprovisionadas de víveres.

Todavía nao se devem exagerar estes fatos. Fundamentalmente


a massa é amorfa; nao se rebela, nao vS possibilidade de mudar
o regime mediante a rebeliño. Ademáis os russos tém grande pa
ciencia, estáo acostumados a sofrer. Registram-se casos isolados de
operarios que se revoltam e que vao terminar seus días na Sibéria
nos campos de trabalho forcado (todas as obras de utilidade pública

— 35 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

no norte da Sifaéria, as estradas, as minas, os campos militares, a


exploracao florestal fazem-se na base de trabalho forcado). Oficial
mente, porém, nao há preros políticos na U.R.S.S. : o Código
prevé os atentados á seguranca do Estado como, por exemplo, a
propaganda anti-soviética, a traícao, a fuga ao estrangeiro, a espio-
nagem, e sob estas acusacoes sao sufocados todos os atos de pro
testo contra o regime.

9. É preciso abandonar o cadáver do marxismo

Como se poderío prever o futuro da U.R.S.S.? A longo prazo,


eu nao poderia dízer realmente nada. A curto prazo, prevejo que
irá aumentando a oposigao dos ¡ovens e dos intelectuais, Juntamente
com a da parte mais evoluída da classe operaría e dos técnicos. O
Governo soviético nao quer, e provavelmente nao pode, enfrentar o
problema da dissidéncia e de maíor liberdade de opiniao. Todavia
há de enfrentá-lo, quando for demasiado tarde. Até agora a opo-
sígao ao regime pode ser contida porque o povo é demasiado paciente
e vive na ignorancia completa das condicSes de vida dos países
capitalistas: se voces, italianos, vivessem na U.R.S.S., haveria, ao
fim de urna semana, urna rebeliáo geral; nenhum de voces se habi
tuaría a fazer fila durante horas, em tempos de paz, na segunda
potencia do mundo, para comprar um pouco de manfeiga, um par
de sapatos, ou qualquer outro artigo de primeira necessidade. Hoje,
porém, o povo russo também abre os olhos, ouve as radioemissoras
estrangeiras, vé os turistas, os operarios e os técnicos ocidentais.
Nao sei até quando se poderá evitar que o descontenfamento abra
caminho. Se sobreviesse de fora urna ocasiao de manifestá-lo {opo-
sicao aberta na cúpula ou comeco de guerra com a China, por
exemplo), creio que assistiríamos a explosoes de cólera popular de
tal violencia que sacudirtam a opiniao pública do mundo inteiro.

A este propósito, digo que, se os dirigentes russos amassem


realmente ao nosso povo e a nossa patria, deveriam permitir, pau
latinamente, Orna prudente liberdade de opiniao ; deixariam que se
expressassem as diversas opinioes, autorizariam certa liberdade de
imprensa, de reuniao, de discussao, etc. Nosso país nao pode con
tinuar exístindo como um grande quartel ou urna grande prisao; urna
panela em ebulícáo termina por estourar, se o vapor nao encontró
salda. Como se compreende, os chefes soviéticos nao podem renegar
a sua ideología, que é a base do seu poder. Se houvesse eleicoes
livres na Rússia, somente eles votariam em sí mesmos... E nao

_ 36 —
ASPIRAOOES DO HOMEM RUSSO 37

podem renunciar á imagem que da Rússia é feita pelo mundo livre.


Creio que o maior éxito obtido pelo regime soviético foi o de fazer
crer ao mundo ocidental que a revolucao comunista produzíu bons
frutos. Mas a realidade do nosso país demonstra exatamente o con
trario : do ponto de vista do nivel de vida e da liberdade, estamos
em situacao pior do que se a Rússia tivesse evoluído sob o poder
dos czares.

Os refugiados expulsos da U.R.S.S. nunca se cansaram de


advertir os povos ocidentais no sentido de que nao acreditem nessa
propaganda « nao se embriaguen) com o mito ideológico do socia
lismo. A realidade soviética é insuportável até as raías do incrível;
nao existe 'socialismo de face humana' compatfvel com a ideología
marxista-leninista e a 'ditadura do proletariado*. Nao sou, em abso
luto, entusiasta do Ocidente capitalista; digo-o e repito-o : no Oci-
dente também há muito o que mudar para chegar a urna sociedade
realmente justa e fraterna. Mas nao há paralelo com a U.R.S.S. ;
por comparando, o Ocidente é um paraíso».

REFLEXÓES

A leitura do texto de J. Malcev nao pode deixar de im-


pressionar a quem o leia desprevenidamente.

Sejam aqui propostas algumas das reflexóes que o mesmo


pode suscitar:

1) É possível que o autor russo exagere em relacáo ao


estado atual da Rússia soviética e a posigáo de bonanga em
que esta se acharia se nao houvesse sido regida pelo comu
nismo. Sem querer discutir esta obseryacáo, apenas desejambs
dizer que o ponto principal da exposigáo de Malcev nao é a
comparagáo entre a realidade atual e as possibilidades nao
realizadas na Rússia, mas, sim, é a denuncia de urna situacáo
de opressáo que é sentida como opressiva pelo próprio povo
russo.

A voz de Malcev nao é singular, mas faz eco á de varios


escritores russos, que destemidamente indicam os mesmos
males. Feito o descontó do que possa haver de exagerado ou
de passional no depoimento do escritor russo, este parece refle-
tir a própria realidade soviéticca. O homem russo que ainda
queira (ou possa) usar do seu senso crítico, se dá por can-

— 37 —
38 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

sado da falta de liberdade e da robotizagáo do seu povo e


comega a descobrir espontáneamente os valores da dignidade
humana e da fé em Deus (com tudo o que esta implica).

2) Malcev se queixa da acomodagáo dos povos ocidentais


e da sua sensibilidade em relagáo aos grandes problemas ou
aos grandes valores da humanidade. A vida da sociedade de
consumo toma o coragáo do homem pesado ou «engordurado»,
como diz a Biblia; em conseqüéncia, o homem ocidental, pela
sua inadvertencia, corre o perigo de ser invadido e sacudido
por aqueles que implacavelmente se comprometerán! com a
causa do ateísmo e do materialismo; estes tém entusiasmo e
nao dormem, embora sirvam a um mau Partido, ao passo
que os ocidentais professam a melhor causa, mas, nao raro,
carecem de entusiasmo e de visáo ampia das siluagóes.

As observagoes de Malcev, neste particular, também podem


ser exageradas, mas nao deixam de reproduzir muito da rea-
lidade que certos povos estáo vivendo, ou da realidade a que
todo individuo é arrastado por sua própria natureza humana
(sempre propensa ao comodismo e ao acomodamento).

3) Malcev nao professa o Cristianismo, mas julga que


este é portador dos valores dos quais precisa o mundo con
temporáneo. Em conseqüéncia, as suas observagoes interpelam
muito especialmente os cristáos — nao somente os clérigos,
mas também os leigos do povo de Deus. — Afinal, qual o cris-
táo que se pode dizer totalmente tranquilo e desobrigado em
relagáo á situagáo presente? Se nao por sua agáo direta nos
campos necessitados de máo-de-obra, ao menos por sua ora-
gáo e sua vida auténticamente conforme ao Evangelho, deve
ele contribuir para a solugáo dos problemas que afligem a
humanidade contemporánea.

Possa o depoimento. de Jurij Malcev servir nao somente


de protesto, mas também de despertar das consciéncias dos
povos ocidentais e, especialmente, dos cristáos, em prol da
colaboragáo com os seus semelhantes oprimidos e refugiados!
Possa avivar nesses homens ocidentais o entusiasmo pelos va
lores que o Evangelho lhes transmitiu, mas que eles as vezes
mal reconhecem ou enterram sob os gestos levianos e fúteis
do seu comportamento ! Haja concordia, mutua compreensáo,
auxilio benévolo entre os povos enquanto é tempo,... enquanto
a casa nao cai!

— 38 —
Estranho título:

"oracao aos macons11

Em síntese: Tem sido repetidamente publicada na imprensa urna


"Oracfio aos macons", atribuida ao Papa Joáo XXIII, que pretensamente
exaltarla a Maconaria e menosprezaria o crucifixo.
Tal documento é, evidentemente, falso, pols incorre em flagrante ana
cronismo. Com efelto; JoSo XXIII, em sua Oracfio, aludirla á Declaracfio
do Concillo do Vaticano II sobre a Llberdade Religiosa: ora tal Declaracfio
so foi promulgada aos 7 de dezembro de 1965, ao passo que JoSo XXIII
faleceu em Junho de 1963. Além disto, o texto da Oracfio apregoa a substi
tuto do crucilixo das Igrejas pelos símbolos da Maconaria — o que
aparece como absurdo, desde que se levem em conta nfio só os principios
do Cristianismo, mas também os escritos e todo o teor de vida do Papa
JoSo XXIII.
É, pois, claro, que se trata de pega forjada, ...e forjada sem grande
habilidade, pols ela se denuncia como falsa pelos 6eus próprios dizeres.

Comentario: Com insistencia, vem sendo divulgada em


nossa imprensa urna «Oragáo aos Macons» atribuida ao Papa
Joáo XXIIL Já em PR 132/1970, pp. 554-556 abordamos o
assunto, evidenciando a falsidade do referido texto. Visto,
porém, que a redagáo de PR, nos últimos tempos, tem recebidó
ulteriores pedidos de esclarecimento, voltamos á questáo, acres-
centando novos dados ao artigo publicado em 1970.

1. O texto ém foco

Eis o teor da chamada

«ORACÁO AOS MACONS»1


OracSo escrita por S.S. o Papa Joao XXIII,
poucos dias antes de sua morte, e que deve-
ria ser rezada em todas as igrejas católicas.
— Signore e Grande Architetto, ci umiliamo ai tuoi piedi...
Senhor e Grande arquiteto do Universo, nos humilhamos
a teus pés e invocamos o teu perdáo pela heresia que, no

* "Oracfio aos macons" é o titulo constante de tal pega. Nfio há,


pols, al erro de Imprensa.

— 39 —
40 4-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

decorrer dos séculos, nos impediu de reconhecer em nossos


irmaos magons os teus fiéis prediletos. Temos lutado contra
a liberdade de pensamento, pois nao tínhamos compreendido
que o primeiro dever de urna religiao, como justamente afirma
o Concilio, consiste em reconhecer o direito de nao crer em
Deus. Temos também perseguido todos os que, pertencendo
á mesma Igreja, haviam aberto o caminho á verdade, fllian-
do-se ás Lojas com sereno desprezo as injurias e ameacas.
Acreditamos louca e cegamente que um sinal da cruz pudesse
ser superior a tres pontinhos postos em pirámide. De tudo
isso nos arrependemos amargamente, Senhor, e te imploramos
de nos fazer ter juntamente com teu perdáo também um
compasso, que sem dúvida alguma sobre os nossos altares
de compensado (?) estaria bem melhor que os velhos cru-
cifixos. Amém.

Nota do Tradutor: Esta tradugao foi feita literalmente,


deixando portanto aos leitores a sua devida interpretagao.
Publicada no jornal "Tribuna Italiana" de 8/X/1966, coletada
pelo Ir. Luso Arnaldo P. Simóes. Traduzlda pelo Ir. Nilo
Marchetti.

2. Comentando. . .

Perguntamo-nos: será autentica tal peca atribuida ao


Papa Joáo XXHT. ?

A resposta negativa se torna evidente pelos seguintes


motivos :

1) O conteúdo da mencionada oracáo refere proposicóes


q»e absolutamente nao se enquadram dentro da mensagem
crista, mesmo após a renovacáo conciliar : a cruz será sempre
um símbolo auténticamente cristáo e indispensável na pregagáo
do Cristianismo. Com efeito, Sao Paulo diz:

"Nos pregamos Cristo crucificado... A llnguagern da cruz é poder


de Deus para os que se salvam... Cristo me enviou... a pregar o Evan-
gelho, n3o, porém, com sabedorla de palavras, a flm de n8o se desvirtuar
a cruz de Cristo" (1Cor 1. 23.18.17).

"A Deus aprouve reconciliar consigo todas as cotsas, pacificando,


pelo sangue da cruz de Cristo, tanto as da térra como as dos céus"
(Cl 2,20).

Como se vé, a cruz está no centro da cosmovisáo e da


pregagáo cristas. É pela cruz de Cristo que tudo toma sentido

— 40 —
cORACAO AOS MACONS» 41

novo, segundo Sao Paulo. Por conseguinte, jamáis se poderá


pensar em substituir, na iconografía crista, a cruz por tres
pontinhos em pirámide ou pelo compasso; estes símbolos nao
tém relacáo com a mensagem do Evangelho. O Papa Joáo
XXm, cuja piedade era notoriamente amiga do Rosario é
dos elementos tradicionais, nao pode ter sido o autor das
palavras que a «oragáo» lhe atribuí.

2) O texto da prece parece aludir á Declaragáo do


Concilio do Vaticano n relativa á Liberdade Religiosa, pois diz:

"Temos lutado contra a liberdade de pensamento, pols nfio ttnhamos


compreendido que o primelro dever de urna rellgláo, como Justamente
afirma o Concillo, consiste em reconhecer o direito de nfio crer em Deus".

Ora o documento do Vaticano n referente á Liberdade


Religiosa data de 7 de dezembro de 1965. O Papa Joáo XXm,
porém, morreu em junho de 1963. Por conseguinte, jamáis
este Pontífice poderia ter feito a referencia ácima: «como
afirma o Concilio». Quando Joáo XXUI faleceu, nao existia
declaragáo conciliar sobre a Liberdade Religiosa !

Este anacronismo vem a ser a refutagáo decisiva da ge-


nuinidade da «Oragáo aos Magons». Tal pega é evidentemente
tendenciosa; foi redigida por um falsario, cerca de tres anos
após a morte do Papa Joáo XXUI e meses depois do encerra-
mento do Concilio do Vaticano II; o autor respectivo conhecia
a Declaragáo conciliar «Dignitatis Humanae» referente á Liber
dade Religiosa, mterpretou-a a seu modo e quis transmitir ao
público a sua interpretagáo posta sob a autoridade do entáo
já falecido Papa Joáo XXUI. Todavía nao foi feliz, pois este
Pontífice nao conheceu o texto da mencionada Declarado
conciliar. Por conseguinte, a «Oracáo aos Magons» apresenta
idéias dos magons, e nao do Papa Joáo XXm.

Notemos, alias, que a Declaragáo «Dignitatis Humanae»


foi mal entendida pelo autor da «Oragáo», pois nunca o Con
cilio intencionou declarar que o «primeiro dever de urna reli-
giáo consiste em reconhecer o direito de nao crer em Deus».
O que o Vaticano n afirmou, é que a nenhum homem é
lícito constranger o seu próximo a abandonar ou abragar
qualquer crenga religiosa, pois nem o ateismo nem a fé se
impóem pela violénca. Todo ser humano, por conseguinte, deve
ser deixado livre para dizer, em consciéncia, SIM ou NAO
a Deus. Disto nao se segué que a fé e a indiferenca religiosa

— 41 —
4í «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

sejam atitudes equivalentes entre si. O Concilio chegou a


declarar explícitamente:

"O próprlo Deus manlfesta ao género humano o camlnho pelo qual


os homens, servlndo a Ele, poderiam salvar-se e tornar-se fellzes em Cristo.
Cremos que essa única e verdadeira religlSo se encontré na Igreja Cató
lica e Apostólica. Os homens todos estáo obrigados a procurar a verdade,
sobretudo aquela que diz respelto a Deus e á sua Igreja e, depols de
conhecé-la, a abracá-la e a pratlcá-la" (Decl. "Dlgnltalis Humanae" n<? 1).

3. lgre¡o, Joño XXIII e Mojonaría

Eis a propósito algumas observagóes complementares:


1) Certas fontes jornalísticas divulgaram a noticia de
que o Papa Joáo XXIII foi membro de urna Loja Magónica
(qual? — Ninguém sabe). Ora tal concepeáo é desproposi-
tada, visto que a Magonaria como tal caiu sob o excomunháo
da Igreja deste 1738, quando o Papa Clemente XII publicou
a Constituigáo «In Emminenti»; a condenagáo da Maconaria
foi repetida pelos Papas Bento XIV (Constituigáo «Provida»
de 18/V/1751), Leáo XII (Const. «Quo graviora> de
13/111/1825), Pió IX (em mais de vinte documentos do seu
pontificado), Leáo XIII (encíclica «Humanum Genus» de
20/IV/1884). A rejeigáo da Magonaria pela Igreja se devia,
em parte, á atitude religiosa vaga ou genérica dos mentores
da Magonaria como também & índole secreta das regras e
deliberagóes das Lojas Magónicas. — Ora basta levar em
conta esta posigáo da Igreja frente á Magonaria para com-
preender que Joáo XXm nao se pode ter filiado a alguma
Loja Masónica, mesmo quando ainda nao era Papa; a Maz
naría mostrara seu espirito antieclesial na Italia, na Franga, na
península ibérica e na América Latina, entrando em serios
conflitos com o Catolicismo. Além disto, notemos que Angelo
Roncalli, aderindo á Magonaria, estaría excomungado. Para
exercer as suas funcóes de bispo, Cardeal ou Papa, Angelo
Roncalli (=Joáo XXII) devería ser um «artista» falso ou
hipócrita — o que absolutamente nao condiz com tudo o que
os biógrafos referem a propósito do Pontífice, nem com os
escritos deixados pelo mesmo. Verdade é que no Brasil alguns
sacerdotes no sáculo XIX aderiram á Magonaria. Isto se explica
pelo fato de que em virtude da lei do padroado (estando a
Igreja e o Estado unidos entre si), as Bulas e Constituigóes
papáis deviam ser promulgadas, no Brasil, pelo poder regio
ou imperial para poder entrar em vigor como leis do país.

— 42 —
«ORACAO AOS MACONS» 43

Ora o Governo brasileiro imperial (sendo favorável á Mago-


naria) nao sancionou as determinagóes papáis relativas á
Maconaria; em conseqüéncia, muitos clérigos nao puderam
formar claramente a sua consciéncia diante do fato macom.
Por isto resolveram participar das campanhas políticas de
Lojas macónicas que propugnavam a independencia e os altos
ideáis da nacáo.

É estranho que támbém a Ordem Rosa-Cruz tenha difun


dido idéia semelhante apregoando que Joáo XXIII era rosa-
-cruciano. Veja-se o livro de Pier Carpi intitulado «As profe
cías de Joáo XXm», livro comentado em PR 235/1979,
pp. 301-308. Também tal tese é absurda, visto que a Rosa-Cruz
professa o panteísmo e concepgóes filosófico-religiosas radical
mente diversas da mensagem crista.

A figura de Joáo XXHt, táo aberta ao diálogo religioso,


ter-se-á prestado a que o fizessem um eclético, seguidor de
escolas dispares ou heterogéneas ?

2) Em nossos dias, a posigáo da Igreja em relagáo á


Maconaria se abrandou no sentido seguinte :

Está comprovado que a Magonaria atualmente se divide


em dois grandes ramos: a Magonaria regular e a irregular.
A Magonaria regular segué os principios de seus fundadores,
que eram respeitosos em relagáo a Deus e ao Cristianismo.
Está hoje esparsa nos países nórdicos da Europa e da Amé
rica, onde a Magonaria geralmente é urna sociedade de auxilio
mutuo para seus membros e de filantropía; visa a levar seus
adeptos ap fiel cumprimento dos deveres para com os demaia.
homens; urna Loja magónica regular pode chegar a professar
o Cristianismo caso os seus membros sejam cristáos (é o que
se dá, por vezes, nos países anglo-saxónicos). Ao contrario, a
Magonaria irregular adotou nítidamente, na segunda metade
do século passado, urna orientagáo anticristá e antieclesial; é
a das Lojas dos países latinos da Europa e da América. No
Brasil, a chamada «Questáo Religiosa» foi provocada pelo
espirito antieclesial da Magonaria brasileira do século passado.

Ora diante da grande variedade de posigóes das Lojas


Magónicas (mesmo nos países latinos há diversas orientagóes
da Maconaria), a Igreja Católica aos 19/VÜ/1974 houve por
bem declarar o seguinte:

— 43 —
44 gPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 241/1980

A sancáo de excomunháo que, segundo o canon 2335,


recaí sobre os católicos membros das Lojas Masónicas, con
tinua vigente se tais Lojas tramam contra a Igreja Católica;
todavía essa sancáo nao se aplica aos católicos que perteneam
a Lojas Masónicas inocuas ou neutras do ponto de vista reli
gioso. Esta posicáo da Igreja, que, sem deixar de ser coe-
rente com a atitude dos Papas anteriores, reconhece a nova
realidade da Maconaria, se encontra explanada em PR 179/1974,
pp. 415-426; cf. 171/1974, pp. 104-125. A Igreja reconhece a
sinceridade de muitos homens que aceitam o convite para
entrar na Maconaria, levando em conta únicamente os benefi
cios profissionais e outras vantagens filantrópicas que deter
minada Loja lhes oferece. Assim procedendo, nao desejam
desdizer a sua fé católica nem véem algo que se oponha aos
principios da S. Igreja, pois na verdade há Lojas que nada
propóem de anticristáo.
Em conclusa»: a «Oragáo aos Magons» é lamentavelmente
üm documento forjado, que se denuncia pelo anacronismo e
por outros erros contidos em seu próprio teor. Nao é difícil
desmascará-la. Possa o público reconhecer o flagrante em
buste e evitar as ilusóes que tal pega é apta a causar!
Estéváo Bettencourt O.S.B.

livros em estante
Esperanza para além da morte, por Urbano Zules. — Escola Superior
de Teología S§o Lourenco de Brindes, Porto Alegre, 1980, 140 x 186 mm,
127 pp.

O famoso teólogo Pe. Urbano Zules, da PUC de Porto Alegre, brinda


o público brasllelro com um tratado de Escatologia ou dos aconteclmentos
fináis da historia: aborda o *ema da esperanza na S. Escritura, assim
como as questSes relacionadas com a morte, o purgatorio, o céu, o
inferno, a ressurrelcflo, a segunda vlnda de Cristo, o julzo final... O livro
é escrito em estilo acesslvel, embora seja de conteúdo rico e profundo.

Interessa-nos sallentar a posicSo do autor perante a moderna tese da


"ressurreic&o logo depols da morte" (cf. PR 239/1979, pp. 456-464) :
Urbano Zllles admite o estado intermediario entre a morte do homem e a
ressurreicSo dos coraos no fim dos tempos (cf. p. 92s). Afirma, portante,
a Imortalldade da alma, que, após a morte do Individuo, sobrevive separada
do corpo, á espera da ressurreicSo dos corpos (cf. p. 92s): a doutrina
da Imortalidade da alma, segundo o autor, nfio é produto da filosofía helé
nica Indevldamente adotado pela TradlcSo crista, mas tem fundamentacfio
bíblica e crlstS (cf. p. 85.95). Mostra que entre o tempo (medida de
existencia das criaturas pereclvels) e a eternldade (proprledade de Deus
só) deve haver urna alternativa, pois a alma humana tem comego, mas nSo
tem fim; a morte a emancipa do tempo, mas nao a torna eterna; a morte

44
é, para ela, "a passagem a nova temporal¡dade", que a Escolástica chama
"o evo" ou "a evlternldade" (cf. p. 90).

A posicio do Pe. Zilles é corroborada pela Instrucjio da S. Congre-


gagáo para a doutrina da Fé sobre a Escatologia publicada em PR 238/1979,
pp. 399-404. Numa posterior edicáo, o autor poderá referir-se a este
importante documento.

Recomendamos o livro em foco á leitura de todos quantos se inte-


ressem por um estudo teológico serio, profundo e fiel ao pensamentu da
S. tgreja.

Moral de atiludes. Vol. 2: Ética da Pessoa, por Marciano Vidal. Tra-


ducáo do Pe. Ivo Montanhese C.SS.R. — Ed. Santuario, (Aparecida (SP),
140 x 210 mm, 534 pp.

Já em PR 238/1979, p. 440, apresentamos o prímeiro volume do


manual de Teología Moral da autoria do sacerdote redentorista Marciano
Vidal, professor no Instituto de Moral de Madrid.

O segundo volume aborda questóes referentes á pessoa humana, tais


como liberdade e educacSo para a liberdade, manipulado do ser humano,
a vida humana (suicidio, homicidio, tortura, greve de fome, aborto, trans
plante de órgaos, eutanasia), castragao e esterilizarlo, anticoncepclonais,
experimentado humana em medicina, eugenesia, problemas sexuais (mas-
turbacSo, relacdes pré-matrimoniais, extra-conjugais...). Em suma, trata-se
de um volume multo rico em abordagens, debates, citagóes...

O autor esforca-se por valorizar os criterios personalistas em Teologia


Moral, sem rejeitar as normas e os valores objetivos da Ética. Esta tarefa,
que é muito louvável, é outrossim difícil. Em alguns pontos, Marciano Vidal
é assaz feliz; tenham-se em vista, por exemplo, as suas ponderagóes a res-
peito da masturbagáo, que levam em conta equilibrada o aspecto objetivo
e as facetas subjetivas do problema. Em outros pontos, porém, as posigóes
parecem estar sujeitas a ulterior revisSo. É o que se dá, de modo especial,
no tocante ao uso de anticoncepcionais; quem leia a p. 267 do livro, terá
a impressSo de que o autor aceita o recurso a anticoncepcionais, desde
que os cónjuges procedam "com livre e responsável discernimento"; a
encíclica "Humanae vitae" estarla baseada em nocdes de "natureza" e
"artificialidade" já ultrapassadas (cf. p. 266). Ora tal posicáo de Marciano
Vidal nao pode ser tida como padrao para o comportamiento ético dos cris-
tfios. A encíclica "Humanae vitae" merece respeito, como tem afirmado
repetidamente o Papa Joao Paulo II.

Consoante o seu enfoque personalista, o autor julga que a fecundando


artificial homologa (entre marido e muiher tSo somente) pode ser legitima.
Pió XII, em 1953 e 1956, a rejeitou, porque ela se faria mediante ejaculagáo
voluntarla para obter os espermatozoides necessários. — Marciano Vidal,
porém, e outros.,teólogos argumentam, dizendo que a masturbagáo só cons
tituí algo de moralmente mau quando é praticada sem referencia á relagáo
eu-lu ou egocéntricamente. No caso, porém, da ¡nseminagáo homologa, ela
estaría bem dentro do contexto eu-tu. — A Igreja aínda nao se pronunciou
oficialmente sobre tal sentenca.

Vé-se assim que o segundo volume da sintese de Marciano Vidal,


embora interessante e valioso, ainda nao pode ser tido como a palavra
decisiva da Teologia Moral Católica sobre algumas questóes ai abordadas.

E.B.
A VERDÁDE A RESPEITO DE CRISTO,
O SALVADOR QUE ANUNCIAMOS

"A PERGUNTA FUNDAMENTAL DO SENHOR: 'E VOS


QUEM DIZEIS QUE SOU ?' (MT 16,15) DIRIGE-SE PERMA

NENTEMENTE AO HOMEM LATINO-AMERICANO. HOJE,

COMO ONTEM, PODERIAM REGISTRAR-SE DIVERSAS RES-

POSTAS. NOS QUE SOMOS MEMBROS DA IGREJA, SÓ


TEMOS UMA, A DE PEDRO : "TU ÉS O CRISTO, O FILHO

DE DEUS VIVO" (MT 16,16).

PROFUNDAMENTE RELIGIOSO AÍNDA ANTES DE SER

EVANGELIZADO, O POVO LATINO-AMERICANO, NA SUA


GRANDE MAIORIA, CRÉ EM JESÚS CRISTO, VERDADEIRO

DEUS E VERDADEIRO HOMEM.

ENTRE OUTRAS, SAO EXPRESSAO DESTA FÉ OS MÚL


TIPLOS ATRIBUTOS DE PODER, SALVAQÁO OU CONSOLO

QUE O POVO LHE ATRIBUÍ ; OS TÍTULOS DE JUIZ E DE

REÍ QUE LHE DA ; AS INVOCACÓES QUE O VINCULAM A


LUGARES E REGIOES; A DEVOCÁO AO CRISTO PADE-

CENTE, AO SEU NASCIMENTO NO PRESEPIO E A SUA

MORTE NA CRUZ; A DEVOQÁO AO SENHOR RESSUSCI-

TADO; E, MAIS AÍNDA, A PIEDADE PARA COM O SAGRADO

CORAQÁO E SUA PRESENQA REAL NA EUCARISTÍA, MANI


FESTADA ÑAS PRIMEIRAS COMUNHOES, NA ADORACAO

NOTURNA, NA PROCISSAO DO CORPO DE DEUS E NOS


CONGRESSOS EUCARtSTICOS".

(DOCUMENTO DE PUEBLA N? 170-172)

You might also like