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UNISANTA – UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA

CURSO DE PÓS-G
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA ESPÍRITA
RUY ALBERTO GATTO

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SANTOS-SP
2006

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Nous sommes tous des citoyens du Ciel.
Camille Flammarion

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RESUMO

O caráter pluralista e interdisciplinar da pedagogia espírita trata com igual importância


todos os ramos do conhecimento. No entanto, é importante observar o modo de abordagem
das diversas disciplinas, com os parâmetros trazidos pela proposta pedagógica que leva em
conta os postulados da codificação espírita.
No caso da astronomia, pode ser dito que conhecer nossa condição de habitantes de
uma esfera planetária conduz a implicações inevitáveis quanto à cosmologia, que cuida da
origem e destino do universo em que nós, seres humanos, nos inserimos.
Ao reunir espiritualidade e ciência, sempre sob uma perspectiva racional, o ensino da
astronomia com base nos princípios da pedagogia espírita conduz o educando a elaborar sua
individualidade e a concepção do mundo que o cerca de maneira crítica, independente, sem se
deixar seduzir por dogmas, mitos, lendas ou preconceitos.

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ABSTRACTS

The plural and interdisciplinary character of pedagogy, in accordance to the beliefs


and principles of spiritism, gives equal meaning to all areas of knowledge. What is important
is to focus on the spiritist approach to different disciplines, to the parameters set by it which
takes the postulates of spiritism into consideration.
In the case of astronomy, it may be said that our situation as inhabitants of a planetary
sphere leads to inevitable implications insofar as cosmology is concerned; implications
involving the origin and destiny of the universe in which we human beings find ourselves.
The teaching of astronomy based on the spiritist pedagogy, bringing together
spirituality and science, always according to a rational perspective, leads one to develop his or
her individualism and to develop a concept of the surrounding world in a critical and
independent manner, without falling prey to the seduction of dogmas, myths, legends or
prejudices.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................................8
1. A ASTRONOMIA E A EDUCAÇÃO SEGUNDO O ESPIRITISMO ..................9
2. UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA ESPÍRITA.............................................12
2.1. O Colégio Allan Kardec .................................................................................12
2.2. A cosmovisão espírita ....................................................................................14
2.3. Eurípedes, Maria e a Astronomia ...................................................................16
3. UM ASTRÔNOMO OLHA PARA O CÉU E VÊ O ESPÍRITO .........................20
3.1. O divórcio entre ciência e espírito .................................................................23
3.2. A autoridade do espírito científico .................................................................23
3.3. Uma revolução científica e filosófica ............................................................26
4. ENTRE A TERRA E O CÉU ...............................................................................29
4.1. A atividade de Flammarion ............................................................................30
4.2. Flammarion educador ....................................................................................32
4.3. A importância de Flammarion .......................................................................33
5. FLAMMARION E EURÍPEDES – COSMOS E ESPIRITUALIDADE .............36
6 - ECOLOGIA, UNIVERSO, ESPIRITISMO ........................................................38
CONCLUSÃO ..............................................................................................................41
APÊNDICE ...................................................................................................................42
Ilustrações extraídas do livro “Petite Astronomie Descritive” (FLAMMARION,
1887) dão idéia dos recursos didáticos utilizados por Flammarion (e por Eurípedes, no
Colégio Allan Kardec). .........................................................................................................42
Urânia, deusa da Astronomia (reprodução na capa), Ilustração do livro “Astronomie
Populaire” (FLAMMARION, 1911:401) .................................................................................43
BIBLIOGRAFIA. .........................................................................................................44

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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é provocar uma reflexão acerca da vocação


pedagógica da chamada doutrina dos espíritos, surgida a partir da codificação de
ensinamentos obtidos por meio de comunicações mediúnicas, trabalho realizado em meados
do século XIX pelo educador francês Hypollyte Léon Denizard Rivail, que para esta tarefa
adotou o pseudônimo que o tornou conhecido como Allan Kardec. Fala-se, então, em uma
Pedagogia Espírita, que nada mais é do que a Educação vista sob a perspectiva dos princípios
do Espiritismo.
Dos ensinos dos Espíritos e da Codificação de Kardec, decorre que o ser humano deve
aprender e praticar preceitos que se originam em princípios éticos e morais que não podem
ser dissociados de uma concepção do mundo e da vida, concepção esta que deve ser racional,
raciocinada, advinda do estudo, da comparação, da investigação, sem importar, portanto, em
mero exercício de metafísica ou misticismo.
Para tanto, imprescindível se faz conhecer o Universo que o cerca, compreensão que
se torna tanto mais abrangente quanto o indivíduo progride, intelectual e moralmente.
Diante deste quadro, ganha relevância o estudo da Astronomia, vista sob o prisma
ampliado que une matéria e espírito, que não podem ser dissociados da percepção do espaço e
do tempo em que estamos inseridos.
Ao cuidar da educação integral do ser, a Pedagogia Espírita, de natureza
eminentemente interdisciplinar, confere relevo especial ao ensino da Astronomia. O
educando, aprendendo a pensar por si, de modo crítico e dentro do respeito à sua
individualidade como espírito em evolução que é, deve compreender com maior amplitude as
características da natureza que o cerca.
O objeto do aprendizado envolve, então, não só o aspecto material do Universo, mas
também o elemento espiritual, podendo ser concluído, como corolário de todo este raciocínio,
que o meio ambiente passa a ter conotação mais ampla e mais profunda do que a mera
preocupação com satisfação imediata das necessidades materiais do ser humano.

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1. A ASTRONOMIA E A EDUCAÇÃO SEGUNDO O ESPIRITISMO

Para a Pedagogia Espírita1 a compreensão do mundo em que vivemos há de ser


atingida por meio das experiências do próprio educando. Este é visto como um “ser
interexistente”, conceito cunhado por Herculano Pires, para ressaltar que a criança é o ser que
se projetou na existência “carregada de suas aquisições anteriores em vidas sucessivas”, em
permanente intercâmbio com o mundo espiritual. Como conseqüência, a criança está dotada
de um componente de transcendentalidade de que não se pode prescindir quando se cuida de
educá-la para a vida – e para as vidas que se projetam na existência do espírito imortal.
Daí afirmar Dora Incontri que “a proposta de educação integral – que já era a de
Comenius e de Pestalozzi e mesmo a de propostas libertárias como Sébastien Faure e José
Ferrer – e que [...] pertence aos princípios fundamentais da Pedagogia Espírita, ganha uma
dimensão nova no desabrochar do ‘ser interexistente” (INCONTRI, 2004:219), acrescentando
a mesma autora, com Herculano Pires, que
A vida é uma permanente manifestação mediúnica do espírito que, por ela, se projeta
no plano sensível ou material. O Inteligível, que é o espírito, o princípio inteligente do

1
Dado o escopo deste trabalho, não cabe maior digressão acerca da Pedagogia Espírita. O conceito, com seus
antecedentes e suas implicações, está bem definido, em especial, na tese de doutorado de Dora Incontri,
“Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes”, adaptada para publicação em livro pela Editora
Comenius (ver INCONTRI, 2004).

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Universo, dá a sua mensagem inteligente através das infinitas formas da Natureza, desde os
reinos mineral, vegetal e animal até o reino hominal, onde a mediunidade se define em sua
plenitude (PIRES, 1978:16, apud INCONTRI, 2004:220).

Dentro desse contexto, o aprendizado deve despertar uma consciência cósmica, dada a
condição de que todos os educandos são, em última análise, espíritos em busca da evolução.
Esta consciência, como decorre dos ensinos dos Espíritos e da Codificação de Kardec, é
racional, raciocinada, advinda do estudo, da comparação, da investigação, sem importar,
portanto, em mero exercício de metafísica ou misticismo irracionais.

Antes de se preocupar com o risco de confundir transcendentalidade com desvios


místicos ou irracionais, há de se privilegiar o enfoque de que não pode haver verdadeiro
progresso do indivíduo sem que se cuide do aspecto moral.

Tendo em conta a natureza espiritual do ser, esta ênfase no comportamento ético e


moral é pedra de toque no pensamento espírita. Léon Denis, ainda no início do século
passado, destacava este aspecto:
A origem de todos os nossos males está em nossa falta de saber e em nossa
inferioridade moral. Toda a sociedade permanecerá débil, impotente e dividida durante todo o
tempo em que a desconfiança, a dúvida, o egoísmo, a inveja e o ódio a dominarem. Não se
transforma uma sociedade por meio de leis. As leis e as instituições nada são sem os costumes,
sem as crenças elevadas. Quaisquer que sejam a forma política e a legislação de um povo, se
ele possui bons costumes e fortes convicções, será sempre mais feliz e poderoso do que outro
povo de moralidade inferior.
Sendo uma sociedade resultante das forças individuais, boas ou más, para se melhorar
a forma dessa sociedade é preciso agir primeiro sobre a inteligência e sobre a consciência dos
indivíduos (DENIS, 1979:14-15).

Para Herculano Pires, a educação deve ser compreendida em seu mais amplo sentido
e é a chave para o progresso moral:

As pessoas pouco afeitas ao estudo dos problemas políticos e sociais estranharão o


caminho indicado. Não obstante, se foi Platão o primeiro a tentar a reforma do mundo pela
educação, com a sua "República", foi Rousseau o primeiro a obter resultados positivos nesse
sentido. Ambos eram utópicos, mas exerceram poderosa influência no mundo. E depois deles,
compreendeu-se, principalmente a partir da Revolução Francesa, que nenhuma transformação
podia efetuar-se e manter-se, sem apoiar-se na educação. As próprias formas de transformação
violenta, como a Revolução Comunista e as Revoluções Nazista e Fascista, na Alemanha e na
Itália, apoiaram-se imediatamente na educação. Porque a educação é a orientação das novas
gerações, e a transmissão às mesmas de todo o acervo cultural da civilização: é a criação do
futuro, a sua elaboração.

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Educar, entretanto, não é apenas lecionar, ensinar nas escolas. A educação abrange
todos os setores das atividades humanas e todas as idades e condições do homem. ... A
educação Espírita deve ser feita em todos os sentidos, através da palavra e do exemplo,
numa luta incessante contra o egoísmo e em favor da caridade. (PIRES, 1995:178-179,
grifamos)

O desfecho projetado para a atualidade vem com DORA INCONTRI:


É, pois, apenas resgatando sua dimensão espiritual, que poderemos restituir ao homem
a sua autoconfiança, a convicção de ser autor no mundo e não mero joguete de forças políticas
ou econômicas. A sensação de impotência e nadificação que paralisa muitas vezes a ação
humana no mundo pós-moderno só pode ser afastada pela certeza de que somos de fato,
porque somos para sempre. A nação brasileira tem essa intuição básica, ainda viva e atuante,
embora ameaçada pelas contracorrentes materialistas e niilistas. Mas é a racionalização dessa
intuição com a sua afirmação desde a primeira infância que poderá insuflar a energia para a
construção de uma nova cultura (INCONTRI, 2004:239).

Pois bem. Diante desta compreensão da prática educacional, é nosso intento destacar
que o ensino da Astronomia deve merecer especial atenção dos educadores que se proponham
a construir esse novo ser.
Para isso, vamos partir de uma experiência ocorrida no Brasil, no início do século
passado, que pode fornecer importantes subsídios destinados à prática pedagógica a ser
adotada nos dias de hoje, de acordo com os preceitos que são trazidos pela Doutrina Espírita.

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2. UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA ESPÍRITA

2.1. O Colégio Allan Kardec

Na pequena cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais, nos primórdios do século


XX, encetou-se uma experiência pedagógica muito peculiar, que é sempre destacada como
pioneira no sentido de aplicação prática – ao menos no Brasil - dos princípios pedagógicos
decorrentes da Doutrina Espírita.
No início de 1907, ali foi fundado o Colégio Allan Kardec, sob a direção do professor
Eurípedes Barsanulfo, respeitado cidadão e um dos principais professores do antigo Liceu
Sacramentano, cujas atividades haviam sido encerradas pouco tempo antes, por causa da
inusitada atitude do professor que, de católico fervoroso, se transformara em Espírita
convicto.
Com o novo colégio, a pequena Sacramento testemunhou o surgimento de um projeto
educacional que contrariava as práticas conservadoras que vigoravam no sistema de então e
que, em grande parte, persistem atualmente. O projeto do Colégio Allan Kardec estava
embasado, especificamente, na doutrina dos Espíritos, codificada por Allan Kardec e serve,
ainda hoje, de modelo de prática pedagógica segundo o espiritismo.
Alessando César Bigheto, em minucioso estudo acerca do trabalho de Eurípedes à
frente do Colégio Allan Kardec, assinala que há vários pontos de contato entre o método do
professor sacramentano e as idéias de grandes educadores, como Froebel e, especialmente,
Pestalozzi.
Corina Novelino, biógrafa de Eurípedes, anota que há “estreitas afinidades com a
grande tarefa reformista do educador suíço”, referindo que “No autodidatismo consciente de
Eurípedes e de Pestalozzi avulta-se uma constante: o zelo pela manutenção de atividades dos
alunos, que ambos enfatizaram como elemento fundamental na formação da infância e da
juventude” (NOVELINO, 1991, p. 162).
No mesmo sentido ainda, Jorge Rizzini, que também se ocupou da biografia de
Eurípedes, entrevê o mesmo ponto de contato com Pestalozzi no tratamento dado aos alunos,
com uma educação voltada para o conhecimento amplo destinado à formação do caráter e, no
que toca ao enfoque do presente trabalho, nas aulas aplicadas ao ar livre, contemplação da
natureza (RIZZINI, 2004, p. 61).

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Segundo Bigheto, foram adotadas no Colégio Allan Kardec ações inovadoras que
rejeitavam as práticas institucionalizadas baseadas na memorização de conteúdos e na rigidez
de princípios.
Contudo, destaca o mesmo autor, na falta de documentos confiáveis, “seria incorreto
pensar que Eurípedes Barsanulfo somente tenha recebido influência dos grandes educadores
como Rousseau, Pestalozzi ou Froebel, que estavam representados palidamente nos discursos
mineiros do período pela defesa intransigente do método intuitivo e na tentativa de criação de
uma moderna pedagogia” (BIGHETO, 2006, p. 147).
Eduardo Carvalho Monteiro reforça esta idéia, ao se referir a uma entrevista concedida
por Thomaz Novelino, qualificado como “discípulo mais fiel” de Eurípedes, em que este
assinala ter convivido intensamente com o seu mestre, sem ter ouvido uma vez sequer o nome
de Pestalozzi: “realmente, era um autodidata, um espírito inteligentíssimo. Mas naquele meio
acanhado, talvez nunca tivesse tido notícia dos métodos educacionais de Pestalozzi”
(MONTEIRO, 2005, p. 81).
Bigheto, por fim, arremata:

Ao analisar detalhadamente o conjunto de documentos e de relatos sobre a experiência


de Eurípedes, talvez seja mais lógico dizer que ela é marcadamente inspirada na cosmovisão
Espírita, assim ele constrói sua escola e sua concepção dedutivamente a partir desse sistema
de pensamento, dos seus princípios e de suas idéias. Estabelece uma relação entre a visão de
ser humano, da concepção de mundo e da vida, da evolução, dos princípios morais do
espiritismo e a estruturação e organização pedagógica e escolar. A influência que recebeu
desses grandes educadores, foi por leituras indiretas de poucos livros pedagógicos, que faziam
referências a eles, pela efervescência do seu contexto, mas sobretudo pelas mãos de Allan
Kardec (Rivail), herdeiro direto de Pestalozzi. Allan Kardec, além de pretender que o
espiritismo fosse ao mesmo tempo uma religião, uma ciência e uma filosofia, atribui-lhe um
caráter pedagógico. Não só porque tinha sido educador na França, seguidor da proposta de
Pestalozzi, mas porque o cerne da filosofia Espírita é uma proposta de educação do espírito ...
Eurípedes lê o espiritismo com esses olhos e deduz da visão Espírita princípios pedagógicos
fundamentais para a sua proposta de educação (BIGHETO, 2006, p. 147-148, grifamos).

Kardec foi aluno, em Yverdun, e seguidor de Pestalozzi (ver, por todos, WANTUIL e
THIESEN, 1979, p. 32). Não é de surpreender, pois, a identificação do método de Eurípedes,
com as correntes dos grandes educadores, especialmente Pestalozzi.
No que interessa ao objeto do nosso estudo, releva ressaltar a afirmação de que a
praxis adotada por Eurípedes está toda ela embasada na maneira de ver o mundo sob a ótica
da Doutrina Espírita.

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2.2. A cosmovisão espírita

“Cosmovisão” é palavra que se define como “visão do mundo” (AURÉLIO) ou


“concepção do mundo” (HOUAISS). A origem etimológica da palavra está ligada ao conceito
de Cosmos, “o Universo considerado como um sistema bem ordenado ( s µ significa
primitivamente ordem); foi aplicado ao Universo pelos pitagóricos (RENOUVIER, Manuel de
phil. anc., I, 200)...” (LALANDE, 1999, p. 216).

Léon Denis estabelece ligação entre a concepção do mundo (por isso “visão cósmica”)
e o progresso na compreensão do Universo:

Uma lei, já o dissemos, rege a evolução do pensamento, como a evolução física dos
seres e dos mundos; a compreensão do Universo se desenvolve com os progressos do espírito
humano.
Essa compreensão geral do Universo e da vida foi expressa de mil maneiras, sob mil
formas diversas no passado. Ela o é hoje em outros termos mais latos, e o será sempre com
mais amplitude, à medida que a Humanidade for subindo os degraus de sua ascensão. (DENIS,
1979:21).

A doutrina codificada por Allan Kardec, a par de pretender que o espiritismo reúna, a
um só tempo, características de religião, ciência e filosofia, contém um caráter eminentemente
pedagógico e pretende, inegavelmente, inserir o indivíduo neste contexto de mundo, dotando-
o de uma visão cósmica.

E o faz caminhando de par em par com a ciência. Allan Kardec não descurou deste
aspecto, enfatizando a importância da ciência, a despeito de seu contorno eminentemente
materialista, ao lado do Espiritismo, que daquela não prescinde, mas lhe vai além:

O espiritismo caminha a par com o materialismo, no terreno da matéria: admite tudo o


que este admite; porém, onde o materialismo se detém, o Espiritismo prossegue. O Espiritismo
e o materialismo são como dois viajantes que caminham juntos, partindo do mesmo ponto;
chegados a uma certa distância, um diz: “Não posso ir mais longe”; o outro continua sua rota e
descobre um mundo novo. Por que, pois, o primeiro diz que o segundo é louco, pois este,
entrevendo novos horizontes, quer franquear o limite onde o outro acha conveniente se deter?
Cristóvão Colombo também não foi considerado louco, porque acreditava existir um mundo
além do Oceano? E quantos mais a História registra, desses loucos sublimes que fizeram
avançar a humanidade aos quais se tecem coroas, depois de se lhes ter atirado lama?
Bem! O Espiritismo, esta loucura do século XIX, segundo os que querem permanecer
na praia terrestre, nos revela todo um mundo, mundo de importância muito maior para o
homem, que a América, pois nem todos os homens vão para a América, ao passo que todos,
sem exceção vão para o mundo dos Espíritos, fazendo incessantes travessias de uma região
para a outra. (KARDEC, 1999:172-173).

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No sentido de que Espiritismo não está amarrado ao Positivismo do século XIX, Dora
Incontri destaca o método de Kardec, que “valoriza a observação, mas também valoriza o
pensamento racional, a dedução lógica e, ao mesmo tempo, a intuição e a revelação
espiritual”. Acrescenta ela:

Certas críticas que o pós-moderno faz ao século XIX, Kardec também as fazia no seu
tempo: o cientificismo inchado, as utopias sociais dogmáticas, o pensamento sistemático –
tudo isso é objeto de questionamento sistemático de Kardec. Mas ele não arranca o trigo junto
com o joio. Assim como não nega a religião por causa dos inquisidores, não nega a ciência por
causa dos positivistas, não nega a filosofia por causa dos sistemas exagerados de pensamento;
não nega a possibilidade de verdade, pelo dogmatismo de alguns; não nega a necessidade de
transformação social, por causa das teorias autoritárias e finalistas. Usa o bisturi da crítica,
sem destruir a essência das coisas. (INCONTRI, 2004:59).

Os reflexos da atitude científica que acabou prevalecendo a partir do século XIX já


eram objeto de advertência de Léon Denis:

Já podemos medir a extensão dos desastres causados pelas doutrinas negativas. O


Determinismo, o Monismo, o Materialismo, negando a liberdade humana e a responsabilidade,
minam as próprias bases da Ética universal. O mundo moral não é mais que um anexo da
Fisiologia, isto é,o reinado, a manifestação da força cega e irresponsável. Os espíritos de escol
professam o Niilismo metafísico, e a massa humana, o povo, sem crenças, sem princípios
fixos, está entregue a homens que lhe3 exploram as paixões e especulam com suas ambições.
O Positivismo, apesar de ser menos absoluto, não é menos funesto em suas
conseqüências. Por suas teorias do desconhecido, suprime ele as noções de fim e de larga
evolução. Toma o homem na fase atual de sua vida, simples fragmento de seu destino, e o
impede de ver para diante e para trás de si. Método estéril e perigoso, feito, parece, para cegos
de espírito, e que se tem proclamado muito falsamente com a mais bela conquista do espírito
moderno. (DENIS, 1979:15)

Rejeitada a pecha de positivista, nem cabe imputar aos seguidores da doutrina o


qualificativo de ingenuidade.
Este tema também não ficou ao largo da Codificação. Kardec se preocupou em
permear todos os seus escritos com advertências contra a credulidade fácil ou a aceitação
indistinta de dogmas provindos de qualquer origem, da ciência ou da religião instituída. Seus
biógrafos, Zeus Wantuil e Francisco Thiesen notaram, quanto às críticas taxando o
Codificador de ingenuidade, que: “Quem ler a sua obra, encontrará formal desmentido a toda
essa cascata de calúnias. Quando alguma revelação ou pseudo-revelacao lhe era transmitida,

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especialmente de caráter científico, ele a punha de quarentena, guardando-se de lhe emprestar


uma fé cega e irrefletida” (WANTUIL e THIESEN, vol. 1, 1980:137).
Herculano Pires também esteve atento a esta consideração:
Kardec delimitou a Ciência Espírita ao estudo e pesquisa da vida espiritual e das
relações dos espíritos com os homens. Ao tratar da pluralidade dos mundos ele apenas atendia
a um interesse lógico da doutrina, mas sempre aguardando o resultado conseguido pelas
Ciências especializadas. O Espiritismo, como mundividência, concepção geral do Universo,
interessa-se por todos os problemas da realidade cósmica,mas não faz afirmações temerárias
sobre questões que dependem de pesquisas das ciências específicas (PIRES, 1979:50).

Tendo presentes estas ponderações, impende ressaltar que a Astronomia surgiu como
importante ponto de apoio para formar a compreensão geral do Universo.

O Espiritismo desde logo cuidou de buscar o conhecimento astronômico. A afinidade


de assuntos fez com que astrônomos se aproximassem das atividades da Sociedade Espírita de
Paris. Foi o caso de Camille Flammarion, que se tornou amigo pessoal de Kardec. Pode ser
citado, também, o astrônomo Friedrich Zöllner, que na Alemanha publicou trabalhos sobre o
espiritismo. Repetem-se as análises de trabalhos científicos, na Revista Espírita, em que
Kardec colocava em debate os diversos assuntos que diziam respeito à doutrina, bem como
nas obras básicas da Codificação, os primeiros livros que trataram da fundação do
Espiritismo.

Eurípedes Barsanulfo não descuidou deste aspecto e se manteve dentro destes


parâmetros de seriedade e equilíbrio na análise dos fatos e das teorias.

2.3. Eurípedes, Maria e a Astronomia

No caso do Colégio Allan Kardec, o ensino de astronomia vinha sugerido em


comunicação de cunho mediúnico, o que poderia levar a ilações de ingenuidade ou
deslumbramento com a mensagem da qual ele próprio fora o instrumento da formulação. No
entanto, o fato outra influência não teve senão a de desencadear o processo de fundação do
Colégio, pois ao longo de toda a existência do estabelecimento e vistas todas as atividades
pedagógicas encetadas, bem se vê que Eurípedes soube discernir o propósito da revelação.
O evento ocorreu pouco tempo depois do encerramento das atividades do Liceu
Sacramentano, enquanto Eurípedes se via às voltas com as preocupações e angústias surgidas
a partir da sua conversão ao espiritismo.

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Narra a biógrafa de Eurípedes:

Um dia, porém, ele se entristecera profundamente. Achava-se abandonado quase, no


vazio da sala de aulas. Pusera-se a chorar, no silêncio de ardorosa prece.
Sentiu insinuante vontade de escrever, enquanto todo o ser se lhe banhava em
magnetismo suave, muito suave, de fluidez radiosa desconhecida.
Um nome de elevado destaque das esferas superiores impusera-se-lhe aos canais
intuitivos. Ele reage. Não pode ser, não merece receber o beneplácito direto da Entidade
anunciada.
Deixa o papel, julgando-se vítima de um embuste.
Eis que uma força superior toma-lhe do braço e, mecanicamente, transmite pequena
mensagem, mais ou menos nestes termos:
“Não feche as portas da escola. Apague da tabuleta a denominação Liceu
Sacramentano – que é um resquício do orgulho humano. Em substituição coloque o nome –
Colégio Allan Kardec. Ensine o Evangelho de meu filho às quartas-feiras e institua um curso
de Astronomia. Acobertarei o Colégio Allan Kardec sob o manto do meu amor.”
A linguagem sublime da Santíssima derrama-se em todo o conteúdo da mensagem,
onde apõe Ela o selo de Sua identidade, através das vibrações do Seu Amor.
No final, firma o documento precioso: - Maria, Serva do Senhor.
Eurípedes seguiu à risca as instruções espirituais de Maria Santíssima. (NOVELINO,
2004, p. 110, grifo nosso).

A recomendação contida na mensagem, mencionando expressamente a Astronomia, dá


ensejo a reflexões múltiplas, especialmente no que diz respeito à pedagogia de ensino
sugerida – e prontamente adotada por Eurípedes.
Porque a Astronomia?
A resposta já pode ser entrevista em tudo o que ficou até aqui considerado. A atitude
do educador que tem por base os princípios doutrinários Espíritas não prescinde de uma
cultura geral consistente. Se o ser não se desvincula de sua dimensão espiritual, nem por isso
pode se deixar levar por pretensas revelações surgidas através de embustes, como temia
Eurípedes ao receber a mensagem assinada por Maria.
Nesta atitude crítica, que nunca cede espaço para a aceitação submissa, a compreensão
do Universo em que vivemos e existimos, a partir das descobertas da ciência, é indispensável
para coibir o risco de tomar por aceitável o que não passa de mero arroubo místico ou de
ilícita pretensão fraudatória.
A prática adotada por Eurípedes bem demonstra que ele não se deixou envolver com
estes riscos.
No dia-a-dia do Colégio, as aulas eram ministradas ao ar livre, com observação de
fenômenos astronômicos. Um local específico, à guisa de observatório, foi providenciado.
Eduardo Carvalho Monteiro assinala:

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O curso de Astronomia recomendado pelo Espírito de Maria foi criado pelo mestre
também. Ele houvera recebido de presente a excelente obra “Astronomia Popular”, de Camille
Flammarion, e montou o curso com aulas baseadas nos capítulos do livro. Em 1911, o
professor comprou um “possante” binóculo e, à noite, as estrelas sofriam uma doce
perseguição dos alunos de Eurípedes. Qual o método de Pestalozzi, também levava seus
alunos para estudar Botânica e Zoologia em meio à natureza e dava aulas práticas mostrando
os astros no céu (MONTEIRO, 2005, p. 83-84).

Jorge Rizzini também dá destaque ao tema:

Os conhecimentos de astronomia, por exemplo, eram assimilados pelos alunos durante


a contemplação do céu. Contou-nos José Vieira, ex-aluno do Colégio Allan Kardec, que em
1910, aparecera no céu de Sacramento o cometa periódico de Halley (aparece em cada setenta
e cinco anos) com sua impressionante cauda luminosa com milhões de quilômetros. E
Eurípedes Barsanulfo, rodeado pelos alunos dos cursos médio e superior, durante todas
aquelas noites em que se demorou o cometa deu ao ar livre magistrais aulas de astronomia.
(RIZZINI, 2004, p. 64).

Corina Novelino põe fecho a qualquer dúvida, dando ênfase à atitude crítica,
inquisitiva e investigativa do mestre de Sacramento:

Os alunos de Eurípedes demonstram a brilhante formação recebida especialmente na


maneira fluente e elegante com que se expressam em cartas e outros tipos de comunicação.
Lições teóricas e práticas de Astronomia eram ministradas aos discípulos em geral, em
aulas coletivas.
Em 1.911, Eurípedes adquiriu da Casa Freitas, do Rio de Janeiro, um binóculo de
campo, de grande alcance, que estava ligado ao nome do grande astrônomo francês Camille
Flammarion. Com esse aparelho realizava observações no campo celeste, junto a seus
discípulos, em inesquecíveis aulas de Astronomia. Podiam divisar mais distintamente as
constelações e planetas vistos a olho nu e identificavam-se pelo nome as estrelas dessas
constelações.
Reconstituíam-se os históricos remotos desses astros o que tornava o estudo
sumamente empolgante.
Tais recursos ao vivo se estendiam ao aprendizado de Botânica e Zoologia.
Eurípedes era sumamente analítico e exigia, nos seus contatos com os alunos, sempre
o porquê de tudo. Nunca, porém, deixava uma dúvida no cérebro dos educandos. Toda
situação-problema era esmiuçada, examinada nos mínimos detalhes. (NOVELINO, 2004, p.
113).

Sem prejuízo de tal atitude, o comportamento de Eurípedes – que servia de exemplo


para os alunos – mostrava tolerância para com as crenças das pessoas, respeitando-as sem que
com isso deixasse de demonstrar abertamente o seu pensamento. Esta atitude se reflete nos
alunos, como se pode ver na passagem sempre lembrada, da observação coletiva de um
eclipse:

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19

Certa feita, reuniram-se todos os alunos do Colégio Allan Kardec em frente ao


estabelecimento, na rua. Essa providência era obra de Eurípedes a fim de que pudessem
observar o eclipse total do sol, anunciado para aquele dia e hora.
Os discípulos achavam-se preparados para a observação do fenômeno, na companhia
do mestre, devidamente equipados com pedaços de vidro branco, obscurecidos previamente
com fumaça.
Na rua, transeuntes apressados, estampando visíveis preocupações na fisionomia
alterada.
O terror se apossava daquela gente simples. A falta de elementos científicos na
formação popular tornava o fenômeno objeto de superstição.
Passou um grupo de homens e mulheres, dentre estas salientou-se pobre mulher de
cor, que exclamava aflita, juntando suas lágrimas às das companheiras...
– É castigo de Deus! O mundo vai acabar!
“Eis que a estas expressões, estruge estrondosa vaia, partida dos alunos do curso
primário do Colégio.
– Uh! Uh! Uh! Deus não castiga ninguém! O que Ele nos vai dar hoje é um fenômeno
maravilhoso, que é mais uma manifestação do Seu Poder e de Sua Sabedoria...
O grupo afastara-se e comentava-se ainda entre os alunos de Eurípedes acerca da
dolorosa infelicidade, que campeia em todas as áreas sociais, decorrente da ignorância.
Eurípedes rejubilava-se intimamente, afirmando mais tarde, ao comentar o fato:
– Permiti a vaia espontânea porque ela constituiu, paradoxalmente, uma demonstração
de caridade. Era necessário que a lição partisse dos alunos do Colégio Allan Kardec.
(NOVELINO, 2004,p. 123).

Não se concebe melhor exemplo de que o aprendizado deve conduzir à aplicação dos
princípios estudados. Como conclui Corina Novelino, “O Curso de Astronomia, como os
demais, levava os alunos, através da sensibilidade elevada do mestre, à compreensão da Obra
Divina, penetrando-lhe a profunda Beleza” (NOVELINO, 1991:135).

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3. UM ASTRÔNOMO OLHA PARA O CÉU E VÊ O ESPÍRITO

A afirmação de que a contemplação da natureza leva à compreensão de Deus não deve


ser vista de modo superficial, como se com o mero deslumbramento diante das maravilhas do
cosmos servisse de sustentação para uma profissão de fé.
Antes, sempre segundo a ótica que decorre da abordagem Espírita, conhecer o atual
estágio de desenvolvimento das pesquisas na área da Astronomia corresponde a tomar contato
com a configuração do mundo por meio de instrumentos tecnológicos cada vez mais
avançados, aptos a conferir maior alcance à experiência de observar, através do contato direto,
a natureza. Daí, num exercício que não pode estar divorciado de um mínimo de razoabilidade,
pensar, questionar, investigar e, só então concluir, com segurança, acerca das questões que
dizem respeito à natureza humana. Antes do que estabelecer uma ligação direta entre Deus e
a natureza, este processo deve levar a uma compreensão que abarca a um só tempo a matéria e
o espírito.
Não se cuida, pois, de reavivar a visão de mundo antiga ou medieval. Ao mesmo
tempo, também não se trata de adotar a visão reducionista que faz excluir do mundo a mente
humana.
A Astronomia vem sempre referida como a primeira das ciências. Num certo sentido,
parece ser correta esta afirmativa: os primeiros habitantes do planeta, dotados de inteligência,
por certo voltaram seus olhos para o céu estrelado daquela Terra primitiva e observaram a
miríade de pontos luminosos que pairava sobre suas cabeças, extraindo daí algumas
conclusões aplicáveis à sua vida prática, ainda que de modo incipiente, buscando unicamente
a sobrevivência.
O certo é que a Astronomia remonta ao berço da civilização ocidental, a Mesopotâmia,
de onde provêm os primeiros registros cuneiformes de observações astronômicas.
Os historiadores da ciência não divergem quanto a este aspecto: os Babilônios (há
quase 4.000 anos) já se dedicavam a perscrutar os céus, buscando conhecer e registrar tudo o
que lhes dizia respeito. O interesse imediato ainda era o da sobrevivência: a sucessão do dia e
da noite e das estações do ano permitia estabelecer previsões para o plantio e a colheita, para
as viagens e, até mesmo, para os movimentos dos exércitos constantemente envolvidos em
guerras. Não demorou para que as possibilidade de previsão passassem a produzir efeitos na
vida das pessoas. Logo, as previsões astrológicas constituíam o objetivo principal das
observações.

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21

David Leverington atribui maior importância para o aspecto religioso da observação


dos astros. Para a agricultura, afirma, o início das várias estações não precisa ser estabelecido,
mas quando os preceitos religiosos contêm rituais minuciosamente prescritos, um calendário
mais ajustado é necessário para que os rituais possam ser planejados de acordo com as regras
estabelecidas. (LEVERINGTON, 2003:32).
Foram os Babilônios que dividiram o céu em zonas, ao longo de uma linha imaginária
no equador celeste (a eclíptica) formada pela trajetória aparente do Sol, da Lua e dos Planetas
através da abóbada celeste. Esta divisão originou o zodíaco e foi associada,desde logo, com os
signos dos horóscopos atuais, que correspondem na verdade às constelações observadas pelos
antigos Babilônios.
O objetivo das observações, sempre detalhadamente registradas, era exclusivamente o
de prever o futuro. Por isso que não há registro de que os Babilônios tivessem descrito
qualquer modelo geométrico do cosmos, apesar de poderem fazer acuradas previsões graças
às cuidadosas observações completadas por um sofisticado sistema numérico sexagesimal
(herança deixada na divisão do tempo, nas horas e minutos, e nos 360 graus da
circunferência).

2
No original: “Religion placed a different requirement on astronomy compared with agriculture, however. The
start of the various seasons did not need to be known exactly for agricultural purposes, but religious observances
demanded a precise calendar so that their rituals could be planned in advance”.

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Com a evolução da história da civilização ocidental, o conhecimento astronômico da


Babilônia se espalhou, chegando aos Egípcios e, depois, aos Gregos.
Os Gregos receberam os conhecimentos destes povos, mas ao contrário de Babilônios
e Egípcios, pretenderam conhecer a constituição do Universo. Os pré-socráticos se dedicaram
a conceber as primeiras teorias cosmológicas. Aristarco foi o primeiro a conceber um sistema
heliocêntrico. Porém, a força das idéias de Aristóteles acabou prevalecendo e seus argumentos
filosóficos acabaram por reforçar a idéia de que a Terra era o centro do Universo, idéia que
era confirmada pela observação, dada a inexistência quase absoluta de recursos tecnológicos
naquele tempo. No ano 125 de nossa era, Ptolomeu, reuniu a base desse conhecimento em um
livro que se tornou conhecido pelo título dado pelos Árabes (o Almagesto). A partir desta
época, com o declínio das civilizações antigas, a Astronomia permaneceu estagnada por quase
15 séculos. Por influência dos Árabes, que estimularam os estudos astronômicos, pois
necessitavam de cálculos precisos quanto ao calendário em razão de suas crenças islâmicas
(ainda uma vez, a motivação religiosa), demandando técnicas matemáticas mais apuradas, os
trabalhos dos primeiros astrônomos Gregos acabaram sendo vertidos para o árabe. Daí, com a
influência cultural decorrente do domínio mouro na Europa, os textos clássicos acabaram
sendo re-introduzidos na cultural ocidental.
A concepção de mundo vigente por todo este período foi a aristotélica, por influência
dos interesses da Igreja, que via no sistema do mundo geocêntrico e imutável o reflexo da
verdade bíblica.

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3.1. O divórcio entre ciência e espírito

A partir da revolução copernicana teve início a reviravolta que iria destruir e romper
com o universo aristotélico. E, como conseqüência, gradualmente se foi destruindo a
concepção religiosa até então prevalente.
Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu, Newton, foram pouco a pouco tirando a Terra do
centro do Universo. Embora todos esses grandes homens estivessem, cada um a seu modo,
ligados a alguma forma de espiritualidade, especialmente quanto à crença inabalável em Deus
e no seu papel de criador de todo o Universo, a verdade é que, juntamente com o
desmoronamento do mundo aristotélico, destruiu-se a idéia da perfeição e imutabilidade do
mundo, esteio do sistema eclesiástico que dominava os corações e as mentes do medievo.
Até então, Deus ainda era mencionado sem qualquer restrição e a concepção do
Universo não prescindia da idéia da criação originada em um ser onipotente.
Descartes e Bacon acabaram por afastar de vez a concepção antiga e introduziram a
nova forma de pensar o mundo que, a partir da primeira metade do século XIX, transformou a
atividade humana de observar a natureza. Consumava-se ali uma verdadeira guinada para o
materialismo.

3.2. A autoridade do espírito científico

Desde então, o cientista passou a ocupar lugar de destaque na importante função de


construir a nova concepção do Universo.
Vejamos um exemplo de como é descrito o paradigma deste ser ideal, em um manual
de metodologia científica que define a natureza e as qualidades de quem se disponha a ser
cientista:

O espírito científico, na prática, traduz-se por uma mente crítica, objetiva e racional.
A consciência crítica levará o pesquisador a aperfeiçoar seu julgamento e a
desenvolver o discernimento, capacitando-o a distinguir e separar o essencial do acidental, o
importante do secundário.
...
A consciência objetiva, por sua vez, implica o rompimento corajoso com todas as
posições subjetivas, pessoais e mal fundamentadas do conhecimento vulgar. Para conquistar a
objetividade científica, é necessário libertar-se de toda a visão subjetiva do mundo, arraigada
na própria organização biológica e psicológica do sujeito e ainda influenciada pelo meio
social.
A objetividade é a condição básica da ciência. O que vale não é o que algum cientista
imagina ou pensa, mas aquilo que realmente é. Isso porque a ciência não é literatura.

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A objetividade torna o trabalho científico impessoal a ponto de desaparecer, por


exemplo, a pessoa do pesquisador. Só interessam o problema e a solução. Qualquer um pode
repetir a mesma experiência, em qualquer tempo, e o resultado será sempre o mesmo, porque
independe das disposições subjetivas.
[...]
Finalmente, o espírito científico age racionalmente. As únicas razões explicativas de
uma questão só podem ser intelectuais ou racionais.
As “razões” que a razão desconhece, as “razões da arbitrariedade, do sentimento e do
coração nada explicam nem justificam no campo da ciência”. (CERVO e BERVIAN,
1996:16).

Dificilmente se pode cogitar de tamanha “objetividade” na mente de um pesquisador.


É certo que as qualidades elencadas no trecho acima transcrito são mesmo ideais. Os
próprios autores citados reconhecem que estas qualidades e virtudes intelectuais e morais
existem, “desde que há homens sobre a face da Terra, ao passo que a ciência é uma aventura
de espírito bem recente”. No entanto, acabam aduzindo que o espírito científico é um
“produto da história”, já que se trata de uma “progressiva aquisição das técnicas que exigem
pesquisas exatas e verificáveis”.
E acrescentam:

Pouco a pouco, institui-se um mundo científico ou, como dizia Bachelar, uma “cidade
científica”, cujos costumes e leis constituem o espírito científico. Este é, portanto, o espírito de
um grupo, quase um espírito de corporação no qual cada aprendiz de sábio é iniciado; quase
como os novos membros de um clube, ou como os calouros das grandes escolas são iniciados
pelos veteranos, no espírito e tradições do grupo. (CERVO e BERVIAN, 1996:17).

Este mesmo “espírito de corporação” pode ser visto de modo bem menos ideal.
Brian Martin, em artigo no qual propõe “estratégias para cientistas dissidentes”,
assinala que quando se fala em “Ciência”, o conhecimento é concebido como uma forma
essencial acima e além de quaisquer interesses subalternos (“above and beyond human
interests”). No entanto, reconhece o autor, citando David Lindsay Watson, que o
conhecimento científico é criado por seres humanos e, como tal, ganha inevitalmente
contornos delimitados por questões bem humanas, que acabam influenciando o processo,
direção, ritmo e conteúdo deste mesmo conhecimento. Entram em cena, então, interesses mais
“mundanos” como os ditados por corporações, governo, burocracia, profissões, carreiras, sem
contar o aspecto psicológico dos participantes do processo. Para o mesmo autor, tais
influências determinam uma espécie de conservadorismo, fazendo com que o conhecimento
estabelecido (o que alguns chamam de mainstream, anotamos) se transforme em verdadeiro

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25

dogma, rejeitando aprioristicamente qualquer investigação que fuja da rotina ou que


represente inovação (MARTIN, 1998:616).
Rubem Alves cita Arthur Koestler, em sentido idêntico:

“A matriz coletiva da ciência, num certo momento, é determinada por um conjunto de


instituições que incluem universidades, sociedades de cientistas e, mais recentemente, os
corpos editoriais de jornais técnicos. Como outras instituições, elas se inclinam consciente ou
inconscientemente pela preservação do status quo – em parte porque as inovações não
ortodoxas se constituem numa ameaça para a sua autoridade, mas também pelo medo mais
profundo de que o edifício intelectual, tão laboriosamente erigido, possa cair sob o seu
impacto. A ortodoxia corporativa tem sido a maldição dos gênios, de Aristarco até Galileu,
Harvey, Darwin e Freud. Através dos séculos as suas falanges têm defendido tenazmente o
hábito, em oposição à originalidade” (Arthur Koestler. op. cit. p. 239). (ALVES, 1981:172).

Da mesma forma, Moacir Japiassu também mostra que as qualidades idealizadas da


visão científica (“um enorme esforço para liberar o conhecimento de toda emoção e toda
paixão e de toda subjetividade”) não correspondem à realidade, uma vez que a análise do
processo histórico demonstra o contrário; a ciência pretende, mas não consegue, afastar-se da
dimensão mítica que acompanha o homem em toda sua existência.

Diz Japiassu:

Historicamente, nem sempre tal projeto foi realizado de modo tão racional e objetivo
como se imaginou. De uma forma ou de outra, sempre esteve próximo do mito e do
imaginário. Copérnico assumiu as visões místicas de Filolao. Paracelso interrogou a medicina
das parteiras. Kepler mesclou astrologia e astronomia. Newton fez amplo uso da alquimia. E,
quando Comte saúda a vitoriosa revolução cientifica e o advento do estado “positive”, confia à
Ciência o cuidado exclusivo de garantir, na ordem religiosa e política, o papel dos mitos e das
ideologias ultrapassadas. Se consagra a ruptura e instaura uma nova ordem do espírito, não
desconhece as necessidades irracionais do homem e da sociedade. A política positiva visava à
gestão racional e competente das relações sociais. A religião positiva busca congregar os
indivíduos no Grande Ser: a Humanidade histórica. (JAPIASSU, 2005:72).

O mesmo autor prossegue referindo o exemplo da sociobiologia, que assenta suas


bases na teoria da evolução das espécies, lembrando que “Edward Wilson (On human nature,
1978) elaborou uma doutrina eternamente ambiciosa, pretendendo dar conta, em termos
genéticos, da totalidade da condição humana: todos os aspectos da cultura humana e dos
comportamentos (homens e animais) seriam programados pelos genes e modelados pela

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seleção natural. Neste sentido, todos nós seríamos apenas marionetes manipuladas por nossos
genes”.

Para Japiassu, com este tipo de raciocínio reducionista, a ciência se converte em mito,
uma vez que não cabe mais, hoje em dia, supor que o conhecimento puro e simples das
unidades elementares nos permita conhecer os conjuntos de que fazem parte. E conclui:

Em síntese, a ciência se torna um mito quando se converte em cientificismo passando


a afirmar que o cérebro nada mais é que uma complexa máquina de carne que pode ser
descrita por uma simples equação. O cientista impregnado dessa ideologia avança como
um elefante numa loja de cristais, defendendo seu materialismo grosseiro e relegando
qualquer outra abordagem ou desqualificando qualquer outra forma de conhecimento,
como se suas afirmações não estivessem em profundas raízes metafísicas ou ideológicas
(JAPIASSU, 2005:72, grifo nosso).

Esta tendência tem se acentuado ultimamente. A idéia de que o pensamento seria uma
excrescência da atividade cerebral tem sido atualizada com a contribuição da genética, que de
modo reducionista, tende a ver no gene uma capacidade determinística supervalorizada a
ponto de eliminar qualquer possibilidade de escolha do ser humano. Para esta corrente,
alguns bits de DNA contêm uma identidade programada e codificada para cada indivíduo,
qualquer mutação sendo possível tão somente em face de reações deste sistema codificado aos
sinais externos, uma abordagem excessivamente tecnocientífica que merece cuidadosa
análise, até mesmo para conter os possíveis excessos (GRENE e DEPEW, 2004:347).

3.3. Uma revolução científica e filosófica

De todo modo, faz-se oportuno mencionar, aqui, a abordagem feita por Alexander
Koyré quanto ao que ele denomina a “crise” do século XVII (“uma radicalíssima revolução
espiritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo, a raiz e o fruto”), admitindo serem
aceitáveis as descrições deste rompimento com o mundo antigo, relatando que neste processo
ocorreu uma “substituição da preocupação pelo outro mundo e pela outra vida pela
preocupação com esta vida e este mundo”, ou ainda, a substituição do objetivismo dos
medievos – que buscavam a pura contemplação da natureza e do ser – pelo subjetivismo dos
modernos – que com a vita activa¸buscam “a dominação e a subjugação [da natureza e do
ser]” .

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Para Koyré, a questão pode ser mais aprofundada. Trata-se de uma revolução
científica e filosófica – dado que não é possível separar um de outro, por sua interdependência
– que causou a destruição do Cosmos, como era entendido na antiguidade e até a revolução
copernicana, a concepção de um mundo “como um todo finito, fechado e ordenado
hierarquicamente”, que acabou substituída por um universo “indefinido e até mesmo infinito
que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no qual todos
esses componentes são colocados no mesmo nível de ser”. Esta substituição, para Koyré
“implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em
conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo e, finalmente, a completa
desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos” (KOYRÉ,
2006:6).
Esta concepção, no entanto, vem sendo confrontada com a evolução das descobertas
astronômicas, que implicam em uma abertura cada vez mais ampla das concepções
cosmológicas.
Pensava-se que tudo o que constitui o Universo fosse composto de matéria como a
conhecemos na Terra. Esta suposição, sabe-se hoje, era superficial. Mais de 70 por cento do
Universo é composto de uma forma de energia não detectável (a chamada “energia escura”)
cuja precisa identidade é desconhecida. Ela revela sua presença a partir da constatação de uma
dramática expansão acelerada do universo. Ao contrário de outras formas conhecidas de
matéria, que exercem força gravitacional atrativa, esta energia escura responde

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repulsivamente à gravidade, fazendo com que todas as partículas componentes do universo


estejam se afastando entre si, de maneira cada vez mais rápida.
É uma verdadeira surpresa – assinala o físico e cosmologista John Barrow – como se
descobríssemos algo totalmente novo acerca de um velho amigo. O todo, diz ele, é muito
maior do que a soma de todas as partes. Os arquitetos de nossas concepções religiosas e
científicas do universo, e os que comentam as novas descobertas e buscam seu significado,
constatam que apenas uma pequena parte do que há e sabem que têm uma compreensão
parcial acerca do nosso lugar na natureza. “Nós começamos a ver, novamente, a
extraordinária natureza do meio em que vivemos e a conexão que liga a vida à vastidão do
espaço e do tempo. As aparências realmente enganam” (BARROW, 2006)3.

É David Leverington quem afirma que se, em 1600, Giordano Bruno desafiou as
doutrinas religiosas sugerindo que haveria um número ilimitado de mundos semelhantes ao
nosso, em volta de outro tanto de estrelas, todos aptos a suportar vida inteligente, num
momento ou em outro, ainda hoje esta idéia pode vir a trazer profundo impacto em alguns
círculos religiosos (LEVERINGTON, 2003:1). Em alguns círculos científicos, também,
poder-se-ia acrescentar.

3
“The architects of our religious and scientific pictures of the universe, and the many commentators on their
meanings that followed them, could see only a small part of what there is and knew only a small part of what it
has to teach us about our place in the universe. We begin to see afresh the extraordinary nature of our local
environment and the link that attaches life to the vastness o space and time. Appearances can indeed be
deceptive”.

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29

4. ENTRE A TERRA E O CÉU

A emoção da Astronomia, que parece estar sendo retomada diante da ampliação das
descobertas astronômicas, estava presente em toda a sua plenitude na vida e na obra de
Flammarion.
Em um artigo escrito por ocasião dos 80 anos da morte de Camille Flammarion, o
astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão escreveu:

Ao conversar, em 3 de junho de 1925, com sua esposa Gabrielle sobre os planos da


viagem que deveriam fazer ao Haute-Marne, ela lhe disse que gostaria de fotografá-lo na sua
humilde casa natal, onde ela o imaginava brincando há 83 anos. Flammarion lhe diria: "Seu
sonho é irrealizável, pois eu jamais brinquei... mesmo na minha mais recuada infância”. Na
realidade, toda sua vida, se divertir era trabalhar e trabalhar era se divertir. Na tarde desse dia,
na biblioteca, após rever um artigo para “L 'Astronomie”, Flammarion morreu nos braços de
Gabrielle, a quem na manhã ensolarada deste dia ao visitar os jardins do Observatório, onde a
vida irradiava nas flores e nos cantos dos pássaros, disse: "Que mistério é a vida... que
mistério é a morte..." (MOURÃO, 2006).

A história ganha contornos de veracidade quando se passa os olhos nos registros da


vida de Flammarion.
Aos cinco anos, contou ele na sua autobiografia (FLAMMARION, 1911), com a ajuda
de sua mãe, observou um eclipse solar.
O fato marcou para sempre a vida do menino, que fez da Astronomia um dos pontos
principais, se não o principal, do seu programa de vida.
A família, em dificuldades financeiras, mudou-se para Paris, onde Camille foi para o
seminário. Além dos estudos normais, ingressou num curso de desenho. Foi nessa época que
ele firmou o propósito de ser desenhista, astrônomo e , um plano respeitável, que demandava
mesmo tempo suficiente a ponto de impedir que o menino pudesse se dedicar às brincadeiras
comuns da infância.
A leitura era uma rotina constante e preenchia todo o tempo disponível.
O excesso de atividade fez com que ele tivesse um mal súbito que acabou ditando de
vez o rumo de sua vida.
O incidente aconteceu em uma tarde de domingo, em uma missa.
Em casa, foi atendido pelo médico da família, Dr. Eugene Fournier. Junto ao leito, um
livro manuscrito por Camille, com cerca de 500 páginas, que anos mais tarde seria publicado
com o título de “O mundo antes da aparição do homem” pelo seu irmão, Ernest, que iria
fundar a Editora Flammarion, ainda hoje em atividade na França.

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30

O livro abordava a formação dos planetas, a história física do mundo, desde os tempos
mais recuados até o reinado do gênero humano, os fósseis, os movimentos do globo. Continha
ainda uma “explicação científica” da gênese bíblica (FLAMMARION:1911:139).
Curiosamente, uma obra com o mesmo tema, sob uma ótica eminentemente espírita, seria
publicada em 1867, por um dos muitos amigos de Camille, o professor Rivail (que utilizava o
pseudônimo “Allan Kardec”). O livro, intitulado “A gênese, os milagres e as predições
segundo o Espiritismo”, continha um capítulo com o sugestivo nome de “Uranografia”, uma
referência à deusa grega Urânia, que representa o Céu e a Astronomia, considerada a musa
dos que se dedicam a olhar para os céus.
Feita esta breve digressão retorna-se ao leito de Camille enfermo e ao livro que ele
escrevera, que estava na cabeceira da cama. O médico não podia deixar de notar o manuscrito
e ao tomar conhecimento de seu conteúdo foi tomado de espanto e admiração quando Camille
disse que era ele mesmo o autor daquele trabalho. Camille tinha então 16 anos.
O médico conhecia o famoso astrônomo Jacques LeVerrier, que era diretor do
Observatório Nacional de França, a quem Camille foi apresentado. Submetido a um exame
para testar seu conhecimento, Camille saiu-se com brilho e foi admitido a trabalhar no
Observatório. O caminho de vida do jovem estava traçado: adolescente ainda, ele se tornara
um astrônomo profissional, passando a observar as estrelas e a fazer anotações e cálculos que,
segundo alguns registros, teriam servido como parte dos dados utilizados pelo diretor
LeVerrier na descoberta do planeta Urano.
O fato é que Camille e LeVerrier não tardaram a entrar em conflito. Enquanto o
famoso astrônomo via a sua atividade com ênfase na elaboração de cálculos, Camille não
abria mão de se dedicar à observação. E, o cúmulo da ousadia, publicou um livro tratando da
“Pluralidade dos mundos habitados”, teoria que o diretor do observatório tratava como
totalmente desprovida de credibilidade.
A partir daí, Flammarion se desligou do Observatório Nacional e foi trabalhar no
“Bureau des Longitudes”, onde pode dar vazão às suas idéias e ao seu caráter eminentemente
atuante.

4.1. A atividade de Flammarion

Livre das amarras burocráticas dedicou-se ao que mais amava: observar, tomar notas,
proferir conferências, escrever, ensinar e divulgar o objeto de sua paixão: a Astronomia.
Torna-se, então, um dos maiores divulgadores científicos de que se tem notícia.

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Demonstrando verdadeira vocação pedagógica, foi dos primeiros a utilizar imagens


para ilustrar suas palestras, por meio de instrumentos de projeção então existentes (um
projetor de diapositivos, então conhecido como “lanterna mágica”). Seu livro “Astronomie
Populaire” foi distribuído a assinantes, pelo preço de 10 centavos cada exemplar, atingindo
tiragem de cerca de 130 mil exemplares. Traduzido depois em várias línguas (inclusive para o
português, como já referido), calcula-se que tenha atingido a soma de um milhão de leitores.
Por esta obra, recebeu o equivalente a 15 mil Euros, prêmio concedido pela Academia
francesa (CHALAMONT:2005).
Vê-se, assim, a dimensão do alcance de seu trabalho, se consideradas as condições
daquela virada de século (em um de seus volumes de divulgação, há, inclusive, um alentado
estudo a respeito da questão revivida no ano 2000, sobre qual seria o ano representativo do
início de um novo século ou de um novo milênio).
A mente irrequieta do menino se tornara madura, autônoma, crítica.
Olhar para o céu com os pés na Terra fez com que as idéias religiosas que lhe foram
transmitidas durante sua formação passassem a ser questionadas. Como admitir que a Terra
fosse o centro de tudo? Como pensar em um Deus que estaria sobrepairando sobre a cabeça
da humanidade, lá no alto? Como falar em “ascensão de Jesus”? Estas referências espaciais
perdem qualquer sentido diante da simples constatação de que o planeta tem um movimento
de rotação, o que faria com que, em doze horas, tudo o que estava “em cima” passasse a estar
“em baixo”. Em sua autobiografia, Flammarion chega a sugerir, para mostrar o absurdo da
idéia, que formara a imagem mental de um Cristo crucificado, com tudo de cabeça para baixo,
o que faria com que na verdade, a “ascensão” se tornasse uma descida “para baixo”. E a
sobrenatural concepção virginal, mais incompatível ainda com a atribuição de uma
descendência do rei Davi, que só seria plausível se Jesus tivesse nascido sem subversão da
natureza, do pai biológico? Como admitir a Terra fixa e imutável no centro do Universo,
quando aos olhos do telescópio e da razão, tudo é movimento? (FLAMMARION, 1911:170-
171).
Questionamentos como esses fizeram com que Flammarion buscasse novas
concepções religiosas.
Tomou conhecimento das correntes espiritualistas.
Então, o materialismo ainda estava em fase de ascenção entre os cientistas e filósofos,
mas as idéias espiritualistas ainda eram debatidas e discutidas nos meios que poderíamos
chamar de acadêmicos.

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Ainda em nossos tempos, a sua independência e dinamismo chamam a atenção. Há


alguns anos, procedeu-se a minucioso inventário da imensa quantidade de objetos que foram
acumulados em sua propriedade, o Observatório de Juvisy: lunetas, telescópios, objetos
utilizados em suas experiências científicas, além de uma numerosa correspondência mantida
com a comunidade científica internacional. Entre eles, um globo de 1 metro de diâmetro
pesando 150 quilos, reproduzindo o céu, tudo dando testemunho de sua mente voltada para a
busca do conhecimento amplo. Um espírito “enciclopédico”, que se voltava para os
fenômenos celestes ao mesmo tempo em que dirigia sua atenção para o simbolismo dos
planetas, para o espiritismo, para a presença do sagrado no universo. Uma coleção de objetos
que foi qualificada como “não institucional”, demonstrando o distanciamento do seu
proprietário em relação aos meios oficiais tradicionais (CHALAMONT, 2004b).
A paixão pela Astronomia fazia com que a sua linguagem fosse das mais exaltadas,
quando se tratava de falar de todas as idéias que povoavam o seu pensamento. Na
“Astronomie Populaire”, resume a idéia fundamental que aqui se pretende ver ressaltada:

Loins d’être une science isolée et inaccessible, l’Astronomie est la science qui nous
touche de plus près, celle qui est la plus nécessaire à notre instruction générale, et en même
temps celle dont l’étude offre le plus de charmes et garde en réserve les plus profondes
jouissances. Elle ne peut pas nous être indifférente, car elle seule nous apprend où nous
sommes et ce que nous sommes ; de plus, elle n’est pas hérrissée de chiffres, comme de
sévères savants voudraient le faire croire ; les formules algébriques ne sont que des
échafaudages analogues à ceux qui ont servi à construire un palais admirablement conçu: que
les chiffres tombent, et le palais d’Uranie resplendit dans l’azur, offrant aux yeux émerveillés
toute sa grandeur et toute sa magnificence ! (FLAMMARION, 1911:2).

4.2. Flammarion educador

Estudo necessário e prazeroso, que nos conduz a aprender onde estamos e o que
somos. Conhecimento que está ao alcance de todos, não estando reservado exclusivamente a
iniciados detentores do conhecimento superior de números e cifras.
Tais palavras, mais do que justificar o sucesso que Camille Flammarion alcançou
como divulgador e verdadeiro professor de Astronomia que foi, demonstram não se restringir
ao mero discurso todas as idéias por ele defendidas.
Dedicou-se a proferir palestras por toda a França, incentivando a instauração de
círculos de estudo e de bibliotecas. Foi membro ativo do Círculo Parisiense da Liga do
Ensino, do qual foi presidente e vice-presidente (FLAMMARION [auto-biografia], 1911:384
e 390). Naquela época, especialmente na França, as Sociedades de Estudos congregavam os
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estudiosos, que não se restringiam à Universidade (BIGHETO:2006:42). Por isso, Camille


Flammarion podia prescindir de título acadêmico e merecer o respeito de seus pares.
Além das obras de conteúdo filosófico e de ciências gerais, Flammarion publicou
diversos trabalhos dirigidos ao ensino de astronomia (“Qu’est que le Ciel? Astronomie
élémentaire”; “Initiation Astronomique”; “Astronomie des Dames”; “Astronomie Populaire”;
“Les étoiles et les curiosités du Ciel”; “Les terres du ciel. Description des planètes; “Les
merveilles célestes”; “Copernic et le Système du Monde”; “Annuaires Astronomiques”), e à
astronomia prática (“La planète Mar et ses conditions d’habitabilité”, “La planète Vênus”;
“Les étoiles doubles”, “Histoire du Ciel”, “Études sur l’Astronomie” – em 9 volumes;
“L’invention des lunettes d’approche et Galilée”; “Grand atlas céleste”; “Grand carte céleste”,
“Planisphere Móbile”, “Globes de la Lune et de la Planète Mars”; “Carte générale de la
Lune”. Além disso, publicou obras de divulgação de ciências em geral (sobre meteorologia,
viagens em balão, erupções vulcânicas, curiosidades sobre o tempo e o calendário,
relâmpagos etc. (GRANJA, 1981:227).
A preocupação com o ensino está bem patenteada na simples leitura deste rol de
trabalhos, que incluem não apenas livros, mas globos reproduzindo a Lua e o planeta Marte,
planisfério (destinado à localização das estrelas e astros visíveis no céu, para sua observação).
Por tais motivos, Flammarion é considerado “paradigma da divulgação científica” no
século XIX (PANZA e PRESAS, 2005).

4.3. A importância de Flammarion

Para Jader dos Reis Sampaio, “Crítico dos sistemas religiosos e das verdades
misteriosas bastante difundidas em sua época, Flammarion se rendia ao espírito religioso e à
construção de uma religião natural, sem dogmas, sem mistérios e sem sobrenatural, como o
pensava Allan Kardec” (SAMPAIO, Boletim Geae, 1998).
“Religião sim, religiões não”, dizia ele (FLAMMARION, 1911:185).
Sua postura analítica e eqüidistante dos excessos, acabou fazendo com que surgisse
certo ressentimento perante o movimento Espírita da época, que parece subsistir, ainda que
veladamente, até hoje.
Esta possível futura conseqüência de sua independência não lhe passou despercebida,
até porque em vida teve diversas experiências neste sentido. Ao correr da leitura de sua
autobiografia, fica patente a sensação de que ele previu que acabaria ficando à margem das
duas correntes, tanto a científica com a religiosa.

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No entanto, o papel de divulgador de princípios Espíritas, de acordo com o protocolo


dos meios científicos oficiais foi compreendido por Allan Kardec, como se vê desta
passagem:

O autor não a escreveu do ponto de vista do Espiritismo, que nela só figura de maneira
acessória e como ensinamento; escreveu-a do ponto de vista filosófico, de maneira a abrir as
portas que lhe teriam sido fechadas, se tivesse imprimido a essa obra a etiqueta de uma crença
nova. É o complemento da Pluralidade dos mundos habitados, do Sr. Flammarion, que, por
seu lado, vulgarizou um dos grandes princípios de nossa doutrina, sem dela falar
expressamente. (Revista Espírita, 1865, janeiro, p. 47).

Conhecer a figura, colocando-a no contexto do seu tempo, contribui para uma melhor
compreensão do problema, fazendo com que sobressaia a contribuição daquele astrônomo do
século XIX, que bem pode ser projetada para os dias de hoje.
Sobre a personalidade e a visão de Flammarion, cabe transcrever o que afirmou o já
referido Jader dos Reis Sampaio:

Dos colaboradores de Kardec, Camille Flammarion foi o que mais valorizou a


construção do conhecimento Espírita a partir da metodologia empírica e positivista. Como
conseqüência desta sua postura ele passou anos de sua vida buscando fatos, sobre os quais
construiu a convicção na imortalidade da alma, na comunicabilidade dos espíritos e na
existência de faculdades extra-sensoriais nos homens, o que frutificou-se na Metapsíquica de
Richet e posteriormente na Parapsicologia de Rhine.
Esta sua visão de ciência e as suspeitas que passou a ter para com os aspectos
filosóficos e religiosos do Espiritismo não o tornaram, contudo, um iconoclasta, aos moldes de
alguns críticos contemporâneos do aspecto religioso do Espiritismo. Suspeitando do método
de Kardec, Flammarion lançou-se ao estudo continuado da fenomenologia Espírita,
oferecendo-nos, quando desencarnou, uma obra que tornou mais sólidas as bases científicas da
Doutrina Espírita. Quem sabe estes últimos não possam ter suas idéias arejadas pelo
pioneirismo do astrônomo francês e redirecionar suas ações em uma cruzada de construção e
consolidação.
[...]
A obra Espírita de Flammarion sustentou e alimentou diversas gerações de Espíritas
em nosso país, foi uma fonte importante nas discussões que o movimento Espírita brasileiro
teve de sustentar com diversos segmentos científicos e políticos de nossa sociedade para
manter o direito constitucional de existir. Consideramos fundamental que a geração nova, que
vem adquirindo as bases do conhecimento Espírita nas muitas mocidades e juventudes de
nosso país, não olvidasse a obra deste cientista Espírita. Se assim o dizemos aos jovens, o que
não diríamos aos muitos grupos e reuniões de estudo sistematizado do Espiritismo.
(SAMPAIO, Boletim Geae, 1998).

Flammarion soube compreender que, sem levar em conta o conhecimento humano


acumulado, não se podia romper as amarras do dogmatismo imposto pelas religiões
institucionalizadas e que ainda hoje cerceiam a individualidade. Teve ele a sensibilidade de

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formar uma visão cósmica sem importar em crença desprovida de razão, em tudo semelhante
à adotada pelo espiritismo.

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5. FLAMMARION E EURÍPEDES – COSMOS E ESPIRITUALIDADE

De tudo o que ficou até aqui exposto, é possível constatar pontos de convergência
dignos de relevo entre as idéias e os ideais do astrônomo francês e a prática pedagógica de
Eurípedes.

Reforça esta afirmação o fato de que Barsanulfo se utilizou dos trabalhos didáticos e
dos instrumentos óticos popularizados por Flammarion.

Como já foi visto anteriormente, há registro documental da aquisição, por Eurípedes,


de um binóculo de campo, “da marca Flammarion”, utilizado nas aulas práticas do Colégio
Allan Kardec.
As aulas eram baseadas em apostilas escritas pelo próprio Eurípedes, “baseadas em
suas pesquisas, e principalmente organizadas a partir do livro do astrônomo francês”. Tomás
Novelino fala a respeito:

Astronomia popular, a primeira edição de Flammarion, traduzida para o português, um


volume magnífico com belíssimas gravuras, (...) aí ele formou umas apostilas e os alunos
estudavam Astronomia. Tinha uns aparelhinhos simples, aparelhinhos que mostravam o giro
da Terra e da Lua em torno do Sol, tinha uma luneta para observar a noite e explicava as
constelações” (BIGHETO, 2006:230)

As notas de outros alunos, também faziam expressa referência às lições extraídas dos
escritos de Flammarion. É, o caso, por exemplo, de Efigênia Pinto Valada, cujas anotações a
respeito de uma aula sobre as leis de Kepler e o sistema solar mencionam: “Segundo o Senhor
Camille Flammarion, o Sol tem o diâmetro 109 vezes maior do que a Terra. A luz e o calor
aumentam e diminuem na razão quadrada de sua distância” (BIGHETO, 2006:232).

As referências fazem induzir que Eurípedes teria conhecimento de uma obra produzida
por Flammarion especificamente destinada a crianças: “Petite Astronomie Descritive”,
publicada em 1887.
Neste trabalho, em linguagem acessível, Flammarion se dedica a iniciar os pequenos
aspirantes a astrônomo nos conhecimentos da Terra, do Sol, dos outros Planetas e Estrelas, do

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Universo, enfim, de modo bem didático. Neste livro, há referência a atividades práticas, com
ilustrações que bem podem ter inspirado Eurípedes, como testemunhou Tomás Novelino,
quanto aos aparelhinhos que “mostravam o giro da Terra e da Lua em torno do Sol”.

O Apêndice, ao final deste trabalho, contém reproduções de ilustrações extraídas do


livro e que dão idéia do que poderiam ser, àquele tempo, tais aparelhos didáticos.

Em seu livro “Astronomie Populaire” (FLAMMARION, 1911:828), Flammarion


fornece, ao final, detalhadas informações acerca de métodos e instrumentos de observação,
estimulando a formação de grupos e a participação na Sociedade Astronômica Francesa, que
ele fundara anos antes (e que se mantém em atividade até os dias de hoje).

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6 - ECOLOGIA, UNIVERSO, ESPIRITISMO

A Astronomia parece ser importante por levar à compreensão de Deus (como estaria
referido na mensagem a Barsanulfo) de uma maneira peculiar: o indivíduo, tomando
conhecimento do Universo, nele se situa e daí surge uma consciência que foge do lugar
comum, pois se somos um grão de areia no universo, nem por isso o todo pode ser concebido
sem a presença do espírito que somos.
Impõe-se, assim, uma releitura da Astronomia, releitura que leva em conta a atitude
demonstrada pelos que ensinaram antes do advento da ciência positivista e seus subseqüentes
desenvolvimentos. Pode, perfeitamente, passar pela proposta pedagógica de Eurípedes.
Em certo sentido, esta releitura é consentânea com a abordagem que hoje toma forma
nos meios acadêmicos. O progresso tecnológico tem levado a ampliar cada vez mais o campo
de discussão a respeito da conformação do Universo e das suas implicações para a
humanidade, especialmente no que diz respeito às conseqüências advindas da ocupação
planetária e seus reflexos para o equilíbrio ecológico.
Daí tem surgido uma consciência cada vez mais acentuada no sentido de fazer com
que o ser humano compreenda seu posicionamento no mundo em que vive, ampliando o
conceito de meio ambiente.
A angústia é de todos, espiritualistas e Espíritas, de um lado, cientistas pós-modernos,
de outro.
Lê-se em um trabalho recentemente publicado por pesquisadores brasileiros, da
UNESP e do INPE-MCT, voltado para a divulgação da Astronomia:
Estamos vivendo uma era de descobertas astronômicas fabulosas! Percebemos, a cada
dia, o quanto ainda nos resta descobrir sobre o cosmo e o quanto as novas tecnologias têm-nos
ajudado nessa aventura do descobrimento, permitindo a abertura de novas janelas pelas quais
podemos apreciar a beleza do Universo. Esperamos que o leitor se sinta entusiasmado a
participar dessa aventura e a aprender, cada vez mais, sobre o meio ambiente que nos cerca,
que inclui, além do ar, dos mares, dos rios e das florestas, também o Sol, a Lua, os planetas, as
estrelas, as galáxias, os aglomerados de galáxias, os quasares, os pulsares,os burados negros...
Descobrir o Universo com o auxílio de algumas das ferramentas tecnológicas de que o
Homem dispõe é a aventura que propomos ao leitor! (ABDALLA e VILLELA NETO. 2005:13).

Em sua história da astronomia, David Leverington traça um perfil da questão que pode
ser um indicador seguro para o raciocínio que se pretende fazer prevalente.

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Afirma ele, em linhas gerais, que a Astronomia era vista como a mais importante e
fundamental das ciências, pois cuidava de eventos dotados de alta relevância para os antigos.
Hoje, tudo mudou, em nosso mundo cínico, materialista, em que a religião está lutando para
sobreviver, onde a ciência é julgada pela maioria de acordo com sua utilidade imediata.
Nestes termos, a tecnologia da computação e a engenharia genética são consideradas mais
importantes do que tentar entender como teve início o universo, ou se haveria vida em outros
planetas do sistema solar ou em alguma outra galáxia distante. Agora, estamos começando a
entender quão frágil e delicado é, em nosso planeta, o equilíbrio da natureza. Estamos
compreendendo que estudar outros mundos do nosso sistema solar pode ajudar-nos aqui em
nossa casa terrestre. Espera-se que estes estudos possam ajudar-nos a decidir como corrigir os
males causados pelo desenvolvimento desregrado antes que seja tarde demais, de modo a
impedir que a vida, como a conhecemos, acabe seriamente comprometida.
(LEVERINGTON, 2003:1).
Não dissente de tal opinião, Rodolpho Caniato:

A Astronomia sempre foi uma espécie de vanguarda a acumular todo o conhecimento


mais avançado da humanidade. Mas a cada dia ela se irá tornando também uma nova visão de
TODO O CENÁRIO QUE NOS ENVOLVE, em que vivemos em nossa pequena e querida
Terrinha. Afinal a ASTRONOMIA se ocupa do estudo de toda nossa VIZINHANÇA NO
ESPAÇO, com a beleza, com as possibilidades e com os riscos que isso representa: uma visão
AMBIENTAL, no sentido mais amplo. (CANIATO:2005, destaque em caixa alta, no original).

Esta abordagem é em tudo compatível com a perspectiva trazida pelos princípios que
informam a Pedagogia Espírita, com o acréscimo do que já antevia Kardec, no sentido de que
a ótica da ciência, acrescida da dimensão espiritual, sem deixar de lado os cuidados
metodológicos tão prezados pelo Codificador do Espiritismo, conduzem a uma nova visão do
Cosmos.
Em particular, trata-se de uma forma de pensar que pode conduzir a uma proposta de
ensinar a Astronomia nos moldes do que já preconizavam Kardec, Flammarion, Eurípedes.
Retoma-se a perspectiva que une ciência e espiritualidade, partindo sempre da
observação, sem deixar de lado o conhecimento estruturado de acordo com o método
científico, mas ampliando o objeto do aprendizado de modo a incluir o elemento humano
como parte integrante do universo (aqui entendido como o objeto do estudo, do
conhecimento). Tudo isso, sem prescindir da atitude do educador voltada para estimular e
respeitar a individualidade do educando, este sim aquele que deve ter acesso à informação e

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trabalhá-la para que adquira conhecimento sólido e livre de pré-conceitos impostos de


maneira apriorística.
Esta forma de abordagem deve levar o educando a entender-se como ser integrado à
natureza; compreender que o processo evolutivo individual está intimamente ligado à
evolução do Universo; aprender que o relacionamento do ser humano com a natureza, que o
cerca, é essencial para o processo de existência/evolução.
A preservação do meio ambiente passa a ter conotação mais ampla e mais profunda do
que a mera preocupação com a preservação da humanidade, do ponto de vista material.
Corolário de toda esta compreensão, é que daí surgirão, necessária e inevitavelmente,
conseqüências de cunho ético e moral.
De tal tipo de educação resultará um indivíduo que, para usar a expressão de
Flammarion, é antes de mais nada um cidadão do universo, ciente de todas as conseqüências
que este posicionamento implicam. Assim, não se formará um indivíduo limitado a se
encaixar no sistema social, cumpridor de seus deveres e obediente ao sistema, para que se
considere “ajustado” aos padrões vigentes.
Como afirma Dora Incontri,
A ênfase excessiva na cidadania [em sua acepção usual] é um entendimento do
homem apenas em seu aspecto social e uma tentativa de fazer dele uma engrenagem bem
ajustada ao sistema. Essa visão está geralmente ligada à Ética, concebida apenas como regras
sociais a que o indivíduo deve se conformar. A concepção espiritualista, ao contrário, é a
de que a moralidade reside na consciência íntima e independe de regras externas
(INCONTRI, 2005:58, grifo nosso).

Sem um propósito de transcendência, arremata Dora Incontri, a Educação é uma idéia


vazia e estreita e pode sempre se tornar instrumento de manipulação dos poderes sociais
(idem, p. 61).
Para a percepção dessas idéias é que surge oportuno pensar a respeito da visão
cósmica trazida pelo Espiritismo, com o auxílio valioso da visão da ciência astronômica
adotada por Flammarion, de que Eurípedes se tornou exemplo vivo.
Para encerrar, fica a previsão (que nada tem de astrológica) encontrada em um
manuscrito inédito, que acabou publicado postumamente pela Sociedade Astronômica da
França, 80 anos depois da morte de Flammarion. Deixou ele o seguinte registro:

La religion future será fondée sur les vérités astronomiques associées aux
connaissances psychiques. Luther et Calvin ont apporté des réformes, mais bien incomplètes.
Il faut se dégager entièrement des dogmes chrétiens, en conservant la pure morale de Jésus,
ordonner l’union de la science et de la religion.Vérités ne peuvent être opposées l’une à
l’autre. (FLAMMARION, 2005:468).

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CONCLUSÃO

O ensino da Astronomia deve passar, pois, por uma releitura feita à luz da atitude
demonstrada pelos que fizeram astronomia antes do advento da ciência positivista e seus
subseqüentes desenvolvimentos, no pós-modernismo, o que não equivale a dizer que se fala
em retomar como modelo único o que ficou para trás na história.
Esta visão, aliada à perspectiva trazida com os princípios firmados por Kardec, que
informam a Pedagogia Espírita, conduzem
a uma nova proposta de ensinar a Astronomia:
a) retomando a perspectiva que une ciência e espiritualidade,
b) partindo sempre da observação, sem deixar de lado o conhecimento estruturado de
acordo com o método científico, mas
c) ampliando o objeto do aprendizado de modo a incluir o ser humano como parte
integrante do Universo, que não se limita ao aspecto puramente material, mas se compõe
também do elemento espiritual, que não pode ser ignorado;
d) como corolário do respeito à individualidade do espírito, a atitude do educador deve
estar voltada para estimular o educando a buscar a informação e trabalhá-la para que o
conhecimento adquirido se solidifique, livre de pré-conceitos impostos de maneira autoritária
e sem possibilidade de questionamento.

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APÊNDICE

Ilustrações extraídas do livro “Petite Astronomie Descritive” (FLAMMARION, 1887)


dão idéia dos recursos didáticos utilizados por Flammarion (e por Eurípedes, no Colégio
Allan Kardec).

O Telescópio (luneta de aproximação), “para


alcançar a luz dos astros que nossos olhos não
podem perceber, senão como pequenos pontos
brilhantes...”

Uma laranja trespassada por uma agulha de


tricô servia para reproduzir os movimentos da Terra

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Com objetos do cotidiano, ilustrações explicam a observação das fases da Lua.

Urânia, deusa da Astronomia - Ilustração extraída do livro


“Astronomie Populaire” (FLAMMARION, 1911:401)

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