Professional Documents
Culture Documents
CURSO DE PÓS-G
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA ESPÍRITA
RUY ALBERTO GATTO
A
ARRE
ELLE
EVVÂ
ÂNNC
CIIA
ADDO
OEEN
NSSIIN
NOOD
DAAA
ASST
TRRO
ONNO
OMMIIA
A
N
NAA PPE
EDDA
AGGO
OGGIIA
AEESSPPÍÍR
RIIT
TAA
SANTOS-SP
2006
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................8
1. A ASTRONOMIA E A EDUCAÇÃO SEGUNDO O ESPIRITISMO ..................9
2. UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA ESPÍRITA.............................................12
2.1. O Colégio Allan Kardec .................................................................................12
2.2. A cosmovisão espírita ....................................................................................14
2.3. Eurípedes, Maria e a Astronomia ...................................................................16
3. UM ASTRÔNOMO OLHA PARA O CÉU E VÊ O ESPÍRITO .........................20
3.1. O divórcio entre ciência e espírito .................................................................23
3.2. A autoridade do espírito científico .................................................................23
3.3. Uma revolução científica e filosófica ............................................................26
4. ENTRE A TERRA E O CÉU ...............................................................................29
4.1. A atividade de Flammarion ............................................................................30
4.2. Flammarion educador ....................................................................................32
4.3. A importância de Flammarion .......................................................................33
5. FLAMMARION E EURÍPEDES – COSMOS E ESPIRITUALIDADE .............36
6 - ECOLOGIA, UNIVERSO, ESPIRITISMO ........................................................38
CONCLUSÃO ..............................................................................................................41
APÊNDICE ...................................................................................................................42
Ilustrações extraídas do livro “Petite Astronomie Descritive” (FLAMMARION,
1887) dão idéia dos recursos didáticos utilizados por Flammarion (e por Eurípedes, no
Colégio Allan Kardec). .........................................................................................................42
Urânia, deusa da Astronomia (reprodução na capa), Ilustração do livro “Astronomie
Populaire” (FLAMMARION, 1911:401) .................................................................................43
BIBLIOGRAFIA. .........................................................................................................44
INTRODUÇÃO
1
Dado o escopo deste trabalho, não cabe maior digressão acerca da Pedagogia Espírita. O conceito, com seus
antecedentes e suas implicações, está bem definido, em especial, na tese de doutorado de Dora Incontri,
“Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes”, adaptada para publicação em livro pela Editora
Comenius (ver INCONTRI, 2004).
Universo, dá a sua mensagem inteligente através das infinitas formas da Natureza, desde os
reinos mineral, vegetal e animal até o reino hominal, onde a mediunidade se define em sua
plenitude (PIRES, 1978:16, apud INCONTRI, 2004:220).
Dentro desse contexto, o aprendizado deve despertar uma consciência cósmica, dada a
condição de que todos os educandos são, em última análise, espíritos em busca da evolução.
Esta consciência, como decorre dos ensinos dos Espíritos e da Codificação de Kardec, é
racional, raciocinada, advinda do estudo, da comparação, da investigação, sem importar,
portanto, em mero exercício de metafísica ou misticismo irracionais.
Para Herculano Pires, a educação deve ser compreendida em seu mais amplo sentido
e é a chave para o progresso moral:
Educar, entretanto, não é apenas lecionar, ensinar nas escolas. A educação abrange
todos os setores das atividades humanas e todas as idades e condições do homem. ... A
educação Espírita deve ser feita em todos os sentidos, através da palavra e do exemplo,
numa luta incessante contra o egoísmo e em favor da caridade. (PIRES, 1995:178-179,
grifamos)
Pois bem. Diante desta compreensão da prática educacional, é nosso intento destacar
que o ensino da Astronomia deve merecer especial atenção dos educadores que se proponham
a construir esse novo ser.
Para isso, vamos partir de uma experiência ocorrida no Brasil, no início do século
passado, que pode fornecer importantes subsídios destinados à prática pedagógica a ser
adotada nos dias de hoje, de acordo com os preceitos que são trazidos pela Doutrina Espírita.
Segundo Bigheto, foram adotadas no Colégio Allan Kardec ações inovadoras que
rejeitavam as práticas institucionalizadas baseadas na memorização de conteúdos e na rigidez
de princípios.
Contudo, destaca o mesmo autor, na falta de documentos confiáveis, “seria incorreto
pensar que Eurípedes Barsanulfo somente tenha recebido influência dos grandes educadores
como Rousseau, Pestalozzi ou Froebel, que estavam representados palidamente nos discursos
mineiros do período pela defesa intransigente do método intuitivo e na tentativa de criação de
uma moderna pedagogia” (BIGHETO, 2006, p. 147).
Eduardo Carvalho Monteiro reforça esta idéia, ao se referir a uma entrevista concedida
por Thomaz Novelino, qualificado como “discípulo mais fiel” de Eurípedes, em que este
assinala ter convivido intensamente com o seu mestre, sem ter ouvido uma vez sequer o nome
de Pestalozzi: “realmente, era um autodidata, um espírito inteligentíssimo. Mas naquele meio
acanhado, talvez nunca tivesse tido notícia dos métodos educacionais de Pestalozzi”
(MONTEIRO, 2005, p. 81).
Bigheto, por fim, arremata:
Kardec foi aluno, em Yverdun, e seguidor de Pestalozzi (ver, por todos, WANTUIL e
THIESEN, 1979, p. 32). Não é de surpreender, pois, a identificação do método de Eurípedes,
com as correntes dos grandes educadores, especialmente Pestalozzi.
No que interessa ao objeto do nosso estudo, releva ressaltar a afirmação de que a
praxis adotada por Eurípedes está toda ela embasada na maneira de ver o mundo sob a ótica
da Doutrina Espírita.
Léon Denis estabelece ligação entre a concepção do mundo (por isso “visão cósmica”)
e o progresso na compreensão do Universo:
Uma lei, já o dissemos, rege a evolução do pensamento, como a evolução física dos
seres e dos mundos; a compreensão do Universo se desenvolve com os progressos do espírito
humano.
Essa compreensão geral do Universo e da vida foi expressa de mil maneiras, sob mil
formas diversas no passado. Ela o é hoje em outros termos mais latos, e o será sempre com
mais amplitude, à medida que a Humanidade for subindo os degraus de sua ascensão. (DENIS,
1979:21).
A doutrina codificada por Allan Kardec, a par de pretender que o espiritismo reúna, a
um só tempo, características de religião, ciência e filosofia, contém um caráter eminentemente
pedagógico e pretende, inegavelmente, inserir o indivíduo neste contexto de mundo, dotando-
o de uma visão cósmica.
E o faz caminhando de par em par com a ciência. Allan Kardec não descurou deste
aspecto, enfatizando a importância da ciência, a despeito de seu contorno eminentemente
materialista, ao lado do Espiritismo, que daquela não prescinde, mas lhe vai além:
No sentido de que Espiritismo não está amarrado ao Positivismo do século XIX, Dora
Incontri destaca o método de Kardec, que “valoriza a observação, mas também valoriza o
pensamento racional, a dedução lógica e, ao mesmo tempo, a intuição e a revelação
espiritual”. Acrescenta ela:
Certas críticas que o pós-moderno faz ao século XIX, Kardec também as fazia no seu
tempo: o cientificismo inchado, as utopias sociais dogmáticas, o pensamento sistemático –
tudo isso é objeto de questionamento sistemático de Kardec. Mas ele não arranca o trigo junto
com o joio. Assim como não nega a religião por causa dos inquisidores, não nega a ciência por
causa dos positivistas, não nega a filosofia por causa dos sistemas exagerados de pensamento;
não nega a possibilidade de verdade, pelo dogmatismo de alguns; não nega a necessidade de
transformação social, por causa das teorias autoritárias e finalistas. Usa o bisturi da crítica,
sem destruir a essência das coisas. (INCONTRI, 2004:59).
Tendo presentes estas ponderações, impende ressaltar que a Astronomia surgiu como
importante ponto de apoio para formar a compreensão geral do Universo.
O curso de Astronomia recomendado pelo Espírito de Maria foi criado pelo mestre
também. Ele houvera recebido de presente a excelente obra “Astronomia Popular”, de Camille
Flammarion, e montou o curso com aulas baseadas nos capítulos do livro. Em 1911, o
professor comprou um “possante” binóculo e, à noite, as estrelas sofriam uma doce
perseguição dos alunos de Eurípedes. Qual o método de Pestalozzi, também levava seus
alunos para estudar Botânica e Zoologia em meio à natureza e dava aulas práticas mostrando
os astros no céu (MONTEIRO, 2005, p. 83-84).
Corina Novelino põe fecho a qualquer dúvida, dando ênfase à atitude crítica,
inquisitiva e investigativa do mestre de Sacramento:
Não se concebe melhor exemplo de que o aprendizado deve conduzir à aplicação dos
princípios estudados. Como conclui Corina Novelino, “O Curso de Astronomia, como os
demais, levava os alunos, através da sensibilidade elevada do mestre, à compreensão da Obra
Divina, penetrando-lhe a profunda Beleza” (NOVELINO, 1991:135).
2
No original: “Religion placed a different requirement on astronomy compared with agriculture, however. The
start of the various seasons did not need to be known exactly for agricultural purposes, but religious observances
demanded a precise calendar so that their rituals could be planned in advance”.
A partir da revolução copernicana teve início a reviravolta que iria destruir e romper
com o universo aristotélico. E, como conseqüência, gradualmente se foi destruindo a
concepção religiosa até então prevalente.
Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu, Newton, foram pouco a pouco tirando a Terra do
centro do Universo. Embora todos esses grandes homens estivessem, cada um a seu modo,
ligados a alguma forma de espiritualidade, especialmente quanto à crença inabalável em Deus
e no seu papel de criador de todo o Universo, a verdade é que, juntamente com o
desmoronamento do mundo aristotélico, destruiu-se a idéia da perfeição e imutabilidade do
mundo, esteio do sistema eclesiástico que dominava os corações e as mentes do medievo.
Até então, Deus ainda era mencionado sem qualquer restrição e a concepção do
Universo não prescindia da idéia da criação originada em um ser onipotente.
Descartes e Bacon acabaram por afastar de vez a concepção antiga e introduziram a
nova forma de pensar o mundo que, a partir da primeira metade do século XIX, transformou a
atividade humana de observar a natureza. Consumava-se ali uma verdadeira guinada para o
materialismo.
O espírito científico, na prática, traduz-se por uma mente crítica, objetiva e racional.
A consciência crítica levará o pesquisador a aperfeiçoar seu julgamento e a
desenvolver o discernimento, capacitando-o a distinguir e separar o essencial do acidental, o
importante do secundário.
...
A consciência objetiva, por sua vez, implica o rompimento corajoso com todas as
posições subjetivas, pessoais e mal fundamentadas do conhecimento vulgar. Para conquistar a
objetividade científica, é necessário libertar-se de toda a visão subjetiva do mundo, arraigada
na própria organização biológica e psicológica do sujeito e ainda influenciada pelo meio
social.
A objetividade é a condição básica da ciência. O que vale não é o que algum cientista
imagina ou pensa, mas aquilo que realmente é. Isso porque a ciência não é literatura.
Pouco a pouco, institui-se um mundo científico ou, como dizia Bachelar, uma “cidade
científica”, cujos costumes e leis constituem o espírito científico. Este é, portanto, o espírito de
um grupo, quase um espírito de corporação no qual cada aprendiz de sábio é iniciado; quase
como os novos membros de um clube, ou como os calouros das grandes escolas são iniciados
pelos veteranos, no espírito e tradições do grupo. (CERVO e BERVIAN, 1996:17).
Este mesmo “espírito de corporação” pode ser visto de modo bem menos ideal.
Brian Martin, em artigo no qual propõe “estratégias para cientistas dissidentes”,
assinala que quando se fala em “Ciência”, o conhecimento é concebido como uma forma
essencial acima e além de quaisquer interesses subalternos (“above and beyond human
interests”). No entanto, reconhece o autor, citando David Lindsay Watson, que o
conhecimento científico é criado por seres humanos e, como tal, ganha inevitalmente
contornos delimitados por questões bem humanas, que acabam influenciando o processo,
direção, ritmo e conteúdo deste mesmo conhecimento. Entram em cena, então, interesses mais
“mundanos” como os ditados por corporações, governo, burocracia, profissões, carreiras, sem
contar o aspecto psicológico dos participantes do processo. Para o mesmo autor, tais
influências determinam uma espécie de conservadorismo, fazendo com que o conhecimento
estabelecido (o que alguns chamam de mainstream, anotamos) se transforme em verdadeiro
Diz Japiassu:
Historicamente, nem sempre tal projeto foi realizado de modo tão racional e objetivo
como se imaginou. De uma forma ou de outra, sempre esteve próximo do mito e do
imaginário. Copérnico assumiu as visões místicas de Filolao. Paracelso interrogou a medicina
das parteiras. Kepler mesclou astrologia e astronomia. Newton fez amplo uso da alquimia. E,
quando Comte saúda a vitoriosa revolução cientifica e o advento do estado “positive”, confia à
Ciência o cuidado exclusivo de garantir, na ordem religiosa e política, o papel dos mitos e das
ideologias ultrapassadas. Se consagra a ruptura e instaura uma nova ordem do espírito, não
desconhece as necessidades irracionais do homem e da sociedade. A política positiva visava à
gestão racional e competente das relações sociais. A religião positiva busca congregar os
indivíduos no Grande Ser: a Humanidade histórica. (JAPIASSU, 2005:72).
seleção natural. Neste sentido, todos nós seríamos apenas marionetes manipuladas por nossos
genes”.
Para Japiassu, com este tipo de raciocínio reducionista, a ciência se converte em mito,
uma vez que não cabe mais, hoje em dia, supor que o conhecimento puro e simples das
unidades elementares nos permita conhecer os conjuntos de que fazem parte. E conclui:
Esta tendência tem se acentuado ultimamente. A idéia de que o pensamento seria uma
excrescência da atividade cerebral tem sido atualizada com a contribuição da genética, que de
modo reducionista, tende a ver no gene uma capacidade determinística supervalorizada a
ponto de eliminar qualquer possibilidade de escolha do ser humano. Para esta corrente,
alguns bits de DNA contêm uma identidade programada e codificada para cada indivíduo,
qualquer mutação sendo possível tão somente em face de reações deste sistema codificado aos
sinais externos, uma abordagem excessivamente tecnocientífica que merece cuidadosa
análise, até mesmo para conter os possíveis excessos (GRENE e DEPEW, 2004:347).
De todo modo, faz-se oportuno mencionar, aqui, a abordagem feita por Alexander
Koyré quanto ao que ele denomina a “crise” do século XVII (“uma radicalíssima revolução
espiritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo, a raiz e o fruto”), admitindo serem
aceitáveis as descrições deste rompimento com o mundo antigo, relatando que neste processo
ocorreu uma “substituição da preocupação pelo outro mundo e pela outra vida pela
preocupação com esta vida e este mundo”, ou ainda, a substituição do objetivismo dos
medievos – que buscavam a pura contemplação da natureza e do ser – pelo subjetivismo dos
modernos – que com a vita activa¸buscam “a dominação e a subjugação [da natureza e do
ser]” .
Para Koyré, a questão pode ser mais aprofundada. Trata-se de uma revolução
científica e filosófica – dado que não é possível separar um de outro, por sua interdependência
– que causou a destruição do Cosmos, como era entendido na antiguidade e até a revolução
copernicana, a concepção de um mundo “como um todo finito, fechado e ordenado
hierarquicamente”, que acabou substituída por um universo “indefinido e até mesmo infinito
que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no qual todos
esses componentes são colocados no mesmo nível de ser”. Esta substituição, para Koyré
“implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em
conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo e, finalmente, a completa
desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos” (KOYRÉ,
2006:6).
Esta concepção, no entanto, vem sendo confrontada com a evolução das descobertas
astronômicas, que implicam em uma abertura cada vez mais ampla das concepções
cosmológicas.
Pensava-se que tudo o que constitui o Universo fosse composto de matéria como a
conhecemos na Terra. Esta suposição, sabe-se hoje, era superficial. Mais de 70 por cento do
Universo é composto de uma forma de energia não detectável (a chamada “energia escura”)
cuja precisa identidade é desconhecida. Ela revela sua presença a partir da constatação de uma
dramática expansão acelerada do universo. Ao contrário de outras formas conhecidas de
matéria, que exercem força gravitacional atrativa, esta energia escura responde
É David Leverington quem afirma que se, em 1600, Giordano Bruno desafiou as
doutrinas religiosas sugerindo que haveria um número ilimitado de mundos semelhantes ao
nosso, em volta de outro tanto de estrelas, todos aptos a suportar vida inteligente, num
momento ou em outro, ainda hoje esta idéia pode vir a trazer profundo impacto em alguns
círculos religiosos (LEVERINGTON, 2003:1). Em alguns círculos científicos, também,
poder-se-ia acrescentar.
3
“The architects of our religious and scientific pictures of the universe, and the many commentators on their
meanings that followed them, could see only a small part of what there is and knew only a small part of what it
has to teach us about our place in the universe. We begin to see afresh the extraordinary nature of our local
environment and the link that attaches life to the vastness o space and time. Appearances can indeed be
deceptive”.
A emoção da Astronomia, que parece estar sendo retomada diante da ampliação das
descobertas astronômicas, estava presente em toda a sua plenitude na vida e na obra de
Flammarion.
Em um artigo escrito por ocasião dos 80 anos da morte de Camille Flammarion, o
astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão escreveu:
O livro abordava a formação dos planetas, a história física do mundo, desde os tempos
mais recuados até o reinado do gênero humano, os fósseis, os movimentos do globo. Continha
ainda uma “explicação científica” da gênese bíblica (FLAMMARION:1911:139).
Curiosamente, uma obra com o mesmo tema, sob uma ótica eminentemente espírita, seria
publicada em 1867, por um dos muitos amigos de Camille, o professor Rivail (que utilizava o
pseudônimo “Allan Kardec”). O livro, intitulado “A gênese, os milagres e as predições
segundo o Espiritismo”, continha um capítulo com o sugestivo nome de “Uranografia”, uma
referência à deusa grega Urânia, que representa o Céu e a Astronomia, considerada a musa
dos que se dedicam a olhar para os céus.
Feita esta breve digressão retorna-se ao leito de Camille enfermo e ao livro que ele
escrevera, que estava na cabeceira da cama. O médico não podia deixar de notar o manuscrito
e ao tomar conhecimento de seu conteúdo foi tomado de espanto e admiração quando Camille
disse que era ele mesmo o autor daquele trabalho. Camille tinha então 16 anos.
O médico conhecia o famoso astrônomo Jacques LeVerrier, que era diretor do
Observatório Nacional de França, a quem Camille foi apresentado. Submetido a um exame
para testar seu conhecimento, Camille saiu-se com brilho e foi admitido a trabalhar no
Observatório. O caminho de vida do jovem estava traçado: adolescente ainda, ele se tornara
um astrônomo profissional, passando a observar as estrelas e a fazer anotações e cálculos que,
segundo alguns registros, teriam servido como parte dos dados utilizados pelo diretor
LeVerrier na descoberta do planeta Urano.
O fato é que Camille e LeVerrier não tardaram a entrar em conflito. Enquanto o
famoso astrônomo via a sua atividade com ênfase na elaboração de cálculos, Camille não
abria mão de se dedicar à observação. E, o cúmulo da ousadia, publicou um livro tratando da
“Pluralidade dos mundos habitados”, teoria que o diretor do observatório tratava como
totalmente desprovida de credibilidade.
A partir daí, Flammarion se desligou do Observatório Nacional e foi trabalhar no
“Bureau des Longitudes”, onde pode dar vazão às suas idéias e ao seu caráter eminentemente
atuante.
Livre das amarras burocráticas dedicou-se ao que mais amava: observar, tomar notas,
proferir conferências, escrever, ensinar e divulgar o objeto de sua paixão: a Astronomia.
Torna-se, então, um dos maiores divulgadores científicos de que se tem notícia.
Loins d’être une science isolée et inaccessible, l’Astronomie est la science qui nous
touche de plus près, celle qui est la plus nécessaire à notre instruction générale, et en même
temps celle dont l’étude offre le plus de charmes et garde en réserve les plus profondes
jouissances. Elle ne peut pas nous être indifférente, car elle seule nous apprend où nous
sommes et ce que nous sommes ; de plus, elle n’est pas hérrissée de chiffres, comme de
sévères savants voudraient le faire croire ; les formules algébriques ne sont que des
échafaudages analogues à ceux qui ont servi à construire un palais admirablement conçu: que
les chiffres tombent, et le palais d’Uranie resplendit dans l’azur, offrant aux yeux émerveillés
toute sa grandeur et toute sa magnificence ! (FLAMMARION, 1911:2).
Estudo necessário e prazeroso, que nos conduz a aprender onde estamos e o que
somos. Conhecimento que está ao alcance de todos, não estando reservado exclusivamente a
iniciados detentores do conhecimento superior de números e cifras.
Tais palavras, mais do que justificar o sucesso que Camille Flammarion alcançou
como divulgador e verdadeiro professor de Astronomia que foi, demonstram não se restringir
ao mero discurso todas as idéias por ele defendidas.
Dedicou-se a proferir palestras por toda a França, incentivando a instauração de
círculos de estudo e de bibliotecas. Foi membro ativo do Círculo Parisiense da Liga do
Ensino, do qual foi presidente e vice-presidente (FLAMMARION [auto-biografia], 1911:384
e 390). Naquela época, especialmente na França, as Sociedades de Estudos congregavam os
Reprodução autorizada, com citação da fonte - ruygatto@gmail.com
33
Para Jader dos Reis Sampaio, “Crítico dos sistemas religiosos e das verdades
misteriosas bastante difundidas em sua época, Flammarion se rendia ao espírito religioso e à
construção de uma religião natural, sem dogmas, sem mistérios e sem sobrenatural, como o
pensava Allan Kardec” (SAMPAIO, Boletim Geae, 1998).
“Religião sim, religiões não”, dizia ele (FLAMMARION, 1911:185).
Sua postura analítica e eqüidistante dos excessos, acabou fazendo com que surgisse
certo ressentimento perante o movimento Espírita da época, que parece subsistir, ainda que
veladamente, até hoje.
Esta possível futura conseqüência de sua independência não lhe passou despercebida,
até porque em vida teve diversas experiências neste sentido. Ao correr da leitura de sua
autobiografia, fica patente a sensação de que ele previu que acabaria ficando à margem das
duas correntes, tanto a científica com a religiosa.
O autor não a escreveu do ponto de vista do Espiritismo, que nela só figura de maneira
acessória e como ensinamento; escreveu-a do ponto de vista filosófico, de maneira a abrir as
portas que lhe teriam sido fechadas, se tivesse imprimido a essa obra a etiqueta de uma crença
nova. É o complemento da Pluralidade dos mundos habitados, do Sr. Flammarion, que, por
seu lado, vulgarizou um dos grandes princípios de nossa doutrina, sem dela falar
expressamente. (Revista Espírita, 1865, janeiro, p. 47).
Conhecer a figura, colocando-a no contexto do seu tempo, contribui para uma melhor
compreensão do problema, fazendo com que sobressaia a contribuição daquele astrônomo do
século XIX, que bem pode ser projetada para os dias de hoje.
Sobre a personalidade e a visão de Flammarion, cabe transcrever o que afirmou o já
referido Jader dos Reis Sampaio:
formar uma visão cósmica sem importar em crença desprovida de razão, em tudo semelhante
à adotada pelo espiritismo.
De tudo o que ficou até aqui exposto, é possível constatar pontos de convergência
dignos de relevo entre as idéias e os ideais do astrônomo francês e a prática pedagógica de
Eurípedes.
Reforça esta afirmação o fato de que Barsanulfo se utilizou dos trabalhos didáticos e
dos instrumentos óticos popularizados por Flammarion.
As notas de outros alunos, também faziam expressa referência às lições extraídas dos
escritos de Flammarion. É, o caso, por exemplo, de Efigênia Pinto Valada, cujas anotações a
respeito de uma aula sobre as leis de Kepler e o sistema solar mencionam: “Segundo o Senhor
Camille Flammarion, o Sol tem o diâmetro 109 vezes maior do que a Terra. A luz e o calor
aumentam e diminuem na razão quadrada de sua distância” (BIGHETO, 2006:232).
As referências fazem induzir que Eurípedes teria conhecimento de uma obra produzida
por Flammarion especificamente destinada a crianças: “Petite Astronomie Descritive”,
publicada em 1887.
Neste trabalho, em linguagem acessível, Flammarion se dedica a iniciar os pequenos
aspirantes a astrônomo nos conhecimentos da Terra, do Sol, dos outros Planetas e Estrelas, do
Universo, enfim, de modo bem didático. Neste livro, há referência a atividades práticas, com
ilustrações que bem podem ter inspirado Eurípedes, como testemunhou Tomás Novelino,
quanto aos aparelhinhos que “mostravam o giro da Terra e da Lua em torno do Sol”.
A Astronomia parece ser importante por levar à compreensão de Deus (como estaria
referido na mensagem a Barsanulfo) de uma maneira peculiar: o indivíduo, tomando
conhecimento do Universo, nele se situa e daí surge uma consciência que foge do lugar
comum, pois se somos um grão de areia no universo, nem por isso o todo pode ser concebido
sem a presença do espírito que somos.
Impõe-se, assim, uma releitura da Astronomia, releitura que leva em conta a atitude
demonstrada pelos que ensinaram antes do advento da ciência positivista e seus subseqüentes
desenvolvimentos. Pode, perfeitamente, passar pela proposta pedagógica de Eurípedes.
Em certo sentido, esta releitura é consentânea com a abordagem que hoje toma forma
nos meios acadêmicos. O progresso tecnológico tem levado a ampliar cada vez mais o campo
de discussão a respeito da conformação do Universo e das suas implicações para a
humanidade, especialmente no que diz respeito às conseqüências advindas da ocupação
planetária e seus reflexos para o equilíbrio ecológico.
Daí tem surgido uma consciência cada vez mais acentuada no sentido de fazer com
que o ser humano compreenda seu posicionamento no mundo em que vive, ampliando o
conceito de meio ambiente.
A angústia é de todos, espiritualistas e Espíritas, de um lado, cientistas pós-modernos,
de outro.
Lê-se em um trabalho recentemente publicado por pesquisadores brasileiros, da
UNESP e do INPE-MCT, voltado para a divulgação da Astronomia:
Estamos vivendo uma era de descobertas astronômicas fabulosas! Percebemos, a cada
dia, o quanto ainda nos resta descobrir sobre o cosmo e o quanto as novas tecnologias têm-nos
ajudado nessa aventura do descobrimento, permitindo a abertura de novas janelas pelas quais
podemos apreciar a beleza do Universo. Esperamos que o leitor se sinta entusiasmado a
participar dessa aventura e a aprender, cada vez mais, sobre o meio ambiente que nos cerca,
que inclui, além do ar, dos mares, dos rios e das florestas, também o Sol, a Lua, os planetas, as
estrelas, as galáxias, os aglomerados de galáxias, os quasares, os pulsares,os burados negros...
Descobrir o Universo com o auxílio de algumas das ferramentas tecnológicas de que o
Homem dispõe é a aventura que propomos ao leitor! (ABDALLA e VILLELA NETO. 2005:13).
Em sua história da astronomia, David Leverington traça um perfil da questão que pode
ser um indicador seguro para o raciocínio que se pretende fazer prevalente.
Afirma ele, em linhas gerais, que a Astronomia era vista como a mais importante e
fundamental das ciências, pois cuidava de eventos dotados de alta relevância para os antigos.
Hoje, tudo mudou, em nosso mundo cínico, materialista, em que a religião está lutando para
sobreviver, onde a ciência é julgada pela maioria de acordo com sua utilidade imediata.
Nestes termos, a tecnologia da computação e a engenharia genética são consideradas mais
importantes do que tentar entender como teve início o universo, ou se haveria vida em outros
planetas do sistema solar ou em alguma outra galáxia distante. Agora, estamos começando a
entender quão frágil e delicado é, em nosso planeta, o equilíbrio da natureza. Estamos
compreendendo que estudar outros mundos do nosso sistema solar pode ajudar-nos aqui em
nossa casa terrestre. Espera-se que estes estudos possam ajudar-nos a decidir como corrigir os
males causados pelo desenvolvimento desregrado antes que seja tarde demais, de modo a
impedir que a vida, como a conhecemos, acabe seriamente comprometida.
(LEVERINGTON, 2003:1).
Não dissente de tal opinião, Rodolpho Caniato:
Esta abordagem é em tudo compatível com a perspectiva trazida pelos princípios que
informam a Pedagogia Espírita, com o acréscimo do que já antevia Kardec, no sentido de que
a ótica da ciência, acrescida da dimensão espiritual, sem deixar de lado os cuidados
metodológicos tão prezados pelo Codificador do Espiritismo, conduzem a uma nova visão do
Cosmos.
Em particular, trata-se de uma forma de pensar que pode conduzir a uma proposta de
ensinar a Astronomia nos moldes do que já preconizavam Kardec, Flammarion, Eurípedes.
Retoma-se a perspectiva que une ciência e espiritualidade, partindo sempre da
observação, sem deixar de lado o conhecimento estruturado de acordo com o método
científico, mas ampliando o objeto do aprendizado de modo a incluir o elemento humano
como parte integrante do universo (aqui entendido como o objeto do estudo, do
conhecimento). Tudo isso, sem prescindir da atitude do educador voltada para estimular e
respeitar a individualidade do educando, este sim aquele que deve ter acesso à informação e
La religion future será fondée sur les vérités astronomiques associées aux
connaissances psychiques. Luther et Calvin ont apporté des réformes, mais bien incomplètes.
Il faut se dégager entièrement des dogmes chrétiens, en conservant la pure morale de Jésus,
ordonner l’union de la science et de la religion.Vérités ne peuvent être opposées l’une à
l’autre. (FLAMMARION, 2005:468).
CONCLUSÃO
O ensino da Astronomia deve passar, pois, por uma releitura feita à luz da atitude
demonstrada pelos que fizeram astronomia antes do advento da ciência positivista e seus
subseqüentes desenvolvimentos, no pós-modernismo, o que não equivale a dizer que se fala
em retomar como modelo único o que ficou para trás na história.
Esta visão, aliada à perspectiva trazida com os princípios firmados por Kardec, que
informam a Pedagogia Espírita, conduzem
a uma nova proposta de ensinar a Astronomia:
a) retomando a perspectiva que une ciência e espiritualidade,
b) partindo sempre da observação, sem deixar de lado o conhecimento estruturado de
acordo com o método científico, mas
c) ampliando o objeto do aprendizado de modo a incluir o ser humano como parte
integrante do Universo, que não se limita ao aspecto puramente material, mas se compõe
também do elemento espiritual, que não pode ser ignorado;
d) como corolário do respeito à individualidade do espírito, a atitude do educador deve
estar voltada para estimular o educando a buscar a informação e trabalhá-la para que o
conhecimento adquirido se solidifique, livre de pré-conceitos impostos de maneira autoritária
e sem possibilidade de questionamento.
APÊNDICE
BIBLIOGRAFIA:
ALVES, RUBEM. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e suas regras. São Paulo:
Brasiliense, 1981. 176p.
ABDALLA, Maria Cristina B., e VILLENA Neto, Thyrso. Novas janelas para o universo.
São Paulo: Editora UNESP, 2005.
BARROW, John D. Barrow on the great basilica of nature. Science & Theology News. mar.
2006. Disponível em <http://www.stnews.org.php?article_id=2707> Acesso em 15 mar.
2006.
BIGHETO, Alessandro Cesar. Eurípedes Barsanulfo, um educador de vanguarda na
Primeira República. Bragança Paulista: Comenius, 2006. 256 p.
CANIATO, Rodolpho. Astronommia e educação. Disponível em
<www.liada.net/universo/articulos/Caniato/Astronomia%20e%20Educacao.pdf> Acesso em
7 nov. 2005.
CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 4. ed. São Paulo: Makron Books,
1996.
CHALAMONT, ALIX. Camille Flammarion: la passion des étoiles à la portée de tous. 1 fev.
2004a. Disponível em: <http://www.savoirs.essonne.fr> acesso em 4 jan. 2006.
CHALAMONT, Alix et. all. Au secours d’un globe céleste de Coronelli. 1 abr. 2004b.
Disponível em: <http://www.savoirs.essonne.fr> acesso em 15 dez. 2006.
COMMENIUS. Didática magna. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DENIS, LÉON. O problema do ser, do destino e da dor. Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 1979.
FLAMMARION, Camille. Astronomie Populaire. Paris : Flammarion, 2002 [edição fac-
similiar da primeira edição de 1880].
___________________. Mémoires biographiques et philosophiques d’um Astronome.
Paris : Ernest Flammarion, 1911. Disponível em <http://gallica.bnf.fr/> Acesso em 16 fev. 2006
___________________. Petite astronomie descriptive. 4. ed. Paris: Librairie Haichette,
1887. Disponível em <http://gallica.bnf.fr/> Acesso em 22 jan. 2006.
___________________. Fantômes et sciences d’observation. Flammarion inédit. Agnières
– FR: JMG Éditions, 2005.
FREITAS NOBRE. A perseguição policial contra Eurípedes Barsanulfo. 2. ed. São Paulo:
Edicel, 1987.
GRANJA, Pedro. Afinal, quem somos? De onde viemos e para onde vamos. 8. ed. São
Paulo: Edicel, 1981.
GRENE, Marjorie Glicksman; DEPEW, David. The philosophy of biology: an episodic
history. Cambridge – UK: Cambridge University Press, 2004.
INCONTRI, Dora. A educação segundo o espiritismo. 5. ed. Bragança Paulista: Ed.
Comenius, 2003.
______________. Pedagogia Espírita. Um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança
Paulista: Ed. Comenius, 2004.