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Carção

A Capital do Marranismo

Autores:
António J. Andrade
M. Fernanda Guimarães

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Ficha Técnica:

Título: Carção, a Capital do Marranismo

Edição: Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação


CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara
Municipal de Vimioso

Autores: António Júlio Andrade e Maria Fernanda Guimarães

Impressão: Escola Tipográfica - Bragança

Depósito Legal N.º

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ÍNDICE

I – Uma história de resistência à Inquisição


II – Conseguiu iludir os Inquisidores
III – Apanhada pela justiça em fuga para Espanha
IV – De Carção para o Porto a comerciar com o mundo
V – Quis resistir como a Mãe dos Macabeus
VI – O medo e a suspeição apoderam-se das mentes de todos
VII – Filha do patriarca condenada à morte de forma benigna e
piedosa
VIII – Apresentou-se como verdadeiro Judeu e professor da Lei
IX – O cheiro a carne queimada e os fantasmas dos Sambenitos
X – No Kipur de 89 andaram os clérigos a espreitar pelo povo
XI – O Perna, Pícaro, Castelhano… de ruim consciência
XII – Por mor de cinco pessoas não se há-de perder o povo
XIII – Esfaqueou o padre que o queria prender
XIV – O massacre de uma aldeia
XV – Metida na casa do inferno por ficar louca
XVI – Condenada à fogueira pelo bispo que a crismou
XVII – Os senhores inquisidores andam estafadinhos e ela muito
mais
XVIII – Tinha um livro que herdou de seu pai
XIX – Rezou missa judaica na capela de Santo Estêvão
XX – Mestra da Lei e mestra da escola de costura e bordado

5
XXI – Que os seus ossos sejam desenterrados e feitos pelo fogo em
pó e cinzas
XXII – Está muito bem alancada a ameixoeira
XXIII – A primeira devassa do comissário Noga
XXIV – Foi a sepultar vestida como de noiva
XXV – Põem no altar uma mulher e a adoram
XXVI – O roubo dos Sambenitos da Igreja Matriz
XXVII – O padre vestiu de luto a Senhora da Conceição
XXVIII – Requereu nova devassa paga à sua custa
XXIX – Uma nova vaga de prisões

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PREFÁCIO

Sinto-me lisonjeado por poder manifestar a minha opinião acerca


deste trabalho singular, que de um modo particular é de extrema
importância para ultimar a história de Carção e no geral, mais um tributo
enriquecedor para a História de Portugal.
Até à presente data, existia pouca documentação fundamentada
acerca do povo sefardita de Carção, podendo, apenas, verificar-se
algumas menções instrutivas por Francisco Alves (Abade de Baçal),
Amílcar Paulo, Leite Vasconcelos, Francisco Rodrigues entre outros.
Esta obra vai ao encontro da nossa história, enriquecendo-a pela
grande quantidade de factos passados do quotidiano dos populares entre
o século XVII e metade do século XVIII que, até ao momento, eram do
desconhecimento de todos nós.
O título da obra “Carção – a capital do marranismo” evidencia bem
a importância da comunidade judaica/cristã-nova no nordeste
transmontano, tanto em termos económicos (possuidores das indústrias
de curtumes, cola, destilação de aguardente e outros ofícios) como pela
sua convicção/fervor religioso, que no mínimo é surpreendente.
Apesar de ser um povo severamente massacrado no decorrer dos
séculos pelo Tribunal do Santo Ofício, podendo mesmo apelidar-se de
holocausto, proveniente do que se passou, principalmente, entre 1691 e
1701 (130 presos!!!), conseguiram resistir, superar todas as atrocidades e
mesmo as fugas e muitas condenações à fogueira nos Autos-de-Fé de
Coimbra e Lisboa, surpreendendo-nos a preservação e evolução dessa
cultura no decorrer dos séculos pelas gerações seguintes.
Uma frase parafraseada pelos autores no início deste projecto “… a
história da comunidade judaica de Carção está para lá de tudo o que se
possa imaginar…” elucida bem a importância da ocorrência de factos
marcantes na história desta comunidade, a exemplo do rabi que vai a
Livorno à procura de mais informações religiosas para doutrinar a
restante comunidade, a audácia da usurpação dos sambenitos da Igreja
Matriz, a crença e fervor religiosa, assim como o “modus vivendi” da
época desde a alimentação, ofícios, mentalidades, etc.
A comunidade é tão forte e importante que o Padre António Vieira
chega a referir que existiam no seu tempo povoações inteiras
constituídas exclusivamente por cristãos-novos, e a esse número devia

7
pertencer a aldeia dos Carções, no Distrito de Bragança, cuja
personalidade «de judeus» ainda hoje é apontada pelos vizinhos1.
Esta obra poderá ser também, o embalo para Carção se tornar num
lugar central na rota do Turismo Judaico de Trás-os-Montes, que do meu
ponto de vista, foi um dos núcleos mais importantes. Por conseguinte, é
uma ajuda preciosa na reposição da verdadeira história de Carção, que de
alguns anos a esta parte tinha vindo a ser deturpada e desviada em
detrimento de outras.
Felicito os autores pela originalidade desta investigação, podendo
tornar-se num importante e valiosíssimo suporte e ponto de partida para
futuros estudiosos.

Paulo José Fernandes Lopes


(Mestrado em História da Arte;
Lic. em Ensino Básico, v. E.V.T.;
Presidente de Associação Almocreve)

1
ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, Inquisição e Cristãos-Novos, 6.ª Edição, Editorial Estampa, p. 152,
1994.

8
Agradecimentos

Ao Dr. Paulo Lopes e à Associação Cultural dos Almocreves de


Carção que promoveram a publicação deste livro.

Ao Professor Doutor Borges Coelho que muito tem apoiado e


incentivado o trabalho dos autores.

À cátedra de Estudos Sefarditas da Universidade Clássica de


Lisboa, pelo apoio na investigação.

Aos funcionários da Torre do Tombo, sempre incansáveis e


disponíveis na ajuda à consulta dos processos.

À Câmara Municipal de Vimioso, Junta de Freguesia de Carção e à


Associação CARAmigo – Associação de Melhoramentos de
Carção, pelo apoio concedido para a edição da obra.

9
10
I

UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA À INQUISIÇÃO

Carção é uma aldeia do concelho de Vimioso, no mais profundo


Trás-os-Montes, afastada das rotas comerciais e turísticas. Seus
habitantes, porém, sempre tiveram arte e engenho para quebrar o
isolamento da terra e sair a mercadejar por toda a parte. Sobre eles
escreveu, há cerca de um século, o douto Abade de Baçal:
- Percorrem o distrito de Bragança com venda ambulante de
bacalhau, arroz, azeite e outros géneros, comprando ao mesmo tempo
peles ovinas, bovinas e caprinas (…) Encontram-se estabelecidos nos
povoados principais, aldeias ricas e férteis do reino, colónias e até do
estrangeiro, onde entram à formiga, sem eira nem beira, nem ramo de
figueira, apenas com dois centos de sardinhas em cima de um burro
podre e dentro de uma dúzia de anos chegam a preponderar pela fortuna
adquirida no negócio2.
Muito semelhante é o retrato feito por outros historiadores, literatos
e etnólogos que escreveram sobre o génio mercantil e empreendedor das
gentes de Carção. E todos associam esta qualidade à sua herança judaica.
Leite de Vasconcelos, por exemplo, usou estas palavras:
- A gente de estirpe judaica destas últimas povoações (Carção e
Argozelo) vivia, até há pouco, sobretudo do comércio e da indústria dos
curtumes. Com suas mulas de carga, era vê-los de casa em casa de terra
em terra a vender bacalhau, arroz e azeite e outros géneros alimentícios
ou a ajustar as peles para o fornecimento da sua indústria. Dizia-se até
que a um judeu de Carção ou Argozelo nada mais faltava para fazer
fortuna do que uma libra e uma mula. E, a respeito dos de Carção, que,
quando nascia algum, logo nascia uma mula, tão habitual era neles a
ocupação de almocreves e recoveiros.3
Trindade Coelho, famoso escritor de Mogadouro, esse ia mais longe
escrevendo:
- Nos meus sítios, a mula como meio de locomoção é quase
exclusiva dos judeus. Por isso já dizia em Cortes, in illo tempore, um
deputado trasmontano – que de 10 em 10 anos se deveria confiscar toda

2
FRANCISCO MANUEL ALVES, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança,
vol. V, p. LI
3
J. LEITE DE VASCONCELOS, Etnografia Portuguesa, vol. IV, p. 197-198.

11
a fortuna aos judeus, e deixar só, a cada um, uma mula e 10 moedas. Daí
a 10 anos voltavam outra vez a estar ricos, e ia-se-lhes para cima com
novo confisco4.
Nos últimos 150 anos, com a abertura das modernas estradas e
linhas de caminho de ferro, houve um particular movimento migratório
das gentes de Carção para a nova vila e depois cidade de Macedo de
Cavaleiros que conheceu um progresso notável, absorvendo vários
concelhos da região. E esse movimento migratório foi registado pelo
nosso povo na seguinte quadra:

Para cá do Marão
Mandam os que cá estão;
Mas em Macedo1
Mandam os de Carção.

Os Macedenses, por seu turno, fixaram também em versos aquela


“invasão” de imigrantes de Carção:

Vindos dos lados da Arábia


E de balança na mão
Vieram os de Carção
Que com grande lábia
Invadiram a Estação 5

De certo aquela é uma herança judaica e marrana, uma herança que


as gentes de Carção souberam preservar. E é fantástico que eles tenham
perseverado em sua crença na lei mosaica apesar de todas as
perseguições inquisitoriais e eclesiásticas. Vejam, a propósito, o que o
pároco de Carção dizia em carta de 2.6.1852, para o bispo de Bragança:
- Neste povo grassa desde tempo imemorial uma seita que em
tempo da Inquisição era muito oculto, mas de 34 (1834) a esta parte é
isso muito divulgado, quero dizer que não se escondem os sectários

4
TRINDADE COELHO, O Senhor Sete, p. 66
5
Foi em volta da estação de caminho de ferro de Macedo de Cavaleiros que os de Carção se fixaram
preferencialmente e ainda hoje a generalidade dos moradores da Avenida da Estação tem raízes
carçonenses.

12
como outrora; assim há muita gente, que pelo menos in confuso sabem
disso … O erro é a seita, ou Lei Mosaica. 6
De como eles se comportavam, guardando os sábados, celebrando
no “vinhago” a festa do Kipur, jejuando de estrela a estrela, cumprindo
rituais próprios do casamento, baptizado e óbito e rezando suas orações,
nos dá também conta o já citado Abade de Baçal. E o mais curioso é que
estas informações ele as recolheu de gente que, mais de 400 anos depois
da expulsão dos judeus, continuava, em Carção, a guardar esta herança
marrana! Como ele fez questão de frisar, omitindo, naturalmente o nome
do informador, quando escreveu:
- Foram-me ditadas por uma pessoa deste povo, convicta praticante
da “Lei mosaica” e até director religioso, espécie de sacerdote. Pelo que
ela nos disse, conclui-se que a liturgia mosaica já está ali muito
adulterada, mas seguem-na no que sabem e há muitos adeptos. 7
Como se vê, por 1920, a comunidade marrana de Carção continuava
mantendo as suas celebrações religiosas e tinha “até o seu director
religioso, espécie de sacerdote” – como ele dizia – espécie de rabi –
diremos nós.8
Esta é uma herança fantástica, de um valor cultural inexcedível e
que merece ser estudada e divulgada. E como há cada vez mais pessoas
desejosas de conhecer e fruir este tipo de bem cultural, imperioso se
torna inscrever a aldeia de Carção na Rota dos Judeus e Marranos que
vimos ajudando a traçar desde há anos nas cartas de turismo de Trás-os-
Montes.9
Viajemos então no tempo e vamos até Carção, aos últimos anos do
século de 600. Na aldeia de Carção habitavam então menos de 150
famílias. Não sabemos quantas delas seriam cristãs-velhas e quantas
seriam cristãs-novas, pois nesse tempo já não havia judeus em Portugal.
Temos é sinais de que havia uma clara separação entre as duas

6
– ALVES… Memórias… VII - 698.
7
– ALVES... Memórias...VII - 698
8
Para além das recolhas feitas por Francisco Manuel Alves, Leite Vasconcelos e outros, vejam-se as
seguintes publicações referentes ao assunto, editadas pela câmara municipal de Vimioso, ou com o
seu apoio:
FRANCISCO MANUEL ALVES e ADRIÃO MARTINS AMADO, Vimioso – Notas Monográficas
– 2002.
SERAFIM DO ROSÁRIO, Terras de Vimioso – Retalhos de Literatura Oral – edição sem data.
FRANCISCO ANTÓNIO FERNANDES RODRIGUES, Carção – Suas gentes – Usos e Tradições –
2002.
SERAFIM JOÃO, Festas e Capelas de Carção – 2002.
9
ANTÓNIO JÚLIO ANDRADE e MARIA FERNANDA GUIMARÃES, Caminhos Nordestinos de
Judeus e Marranos, in: jornal Terra Quente. Trata-se de uma página quinzenal iniciada em 15.4.1999
e que continua

13
comunidades e sabemos que, naquela década (1690 – 1700) a Inquisição
ali prendeu, pelo menos 130 pessoas, todas acusadas de judaísmo.
Espantoso: 130 prisões num povoado de menos de 150 fogos! – Poderá
depreender-se destes números que a comunidade cristã-nova era
predominante na terra? Certamente que sim.
Do que temos a certeza é que a generalidade dos cristãos-novos de
Carção tinham ofícios de cardadores, tecelões, sapateiros, surradores e,
muito especialmente, de curtidores de peles, para além de andarem
metidos no negócio destes e doutros produtos. Aliás, eles ganharam o
epíteto de caninéus, exactamente porque, na preparação das peles,
usavam a canina, que era o excremento dos cães, a qual apanhavam na
rua. E ficou na boca do povo cristão esta quadra que o rapazio gritava,
em tom insultuoso:10

Caga perro, caga cão,


P´ra curtir o cordovão;
Caga cão, caga perro,
P´ra curtir o bezerro.11

Não vamos agora historiar todas aquelas prisões e analisar todos os


processos. Escolhemos para isso alguns que nos pareceram exemplares.
Por agora, vamos tão só deixar algumas notas de maior interesse e
originalidade sobre a vivência dos marranos de Carção.
Em primeiro lugar, diremos que as comunidades de Carção,
Argozelo e Vimioso estão umbilicalmente ligadas, parecendo formar
uma única grande família, quase sempre com casamentos endogâmicos.
E também nos parece que as origens da comunidade remontam ao tempo
da expulsão dos judeus de Espanha, pois não existe qualquer documento
que nos fale de judeus em Carção antes daquela época. Aliás, os
processos mostram que muitos deles tinham casa montada cá e lá,
declarando-se frequentes vezes “moradores em Carção e assistindo em
Castela” e vice-versa.12

10
As profissões mais referidas nos processos são as seguintes:
Curtidores 38
Sapateiros 23
cardadores 11
lavradores 7
tendeiros 5
surradores 4
11
J: LEITE VASCONCELOS, Etnografia Portuguesa vol. IV, p. 198.
12
Diz-se em Trás-os-Montes que, dos judeus expulsos de Espanha que atravessaram a fronteira por
Quintanilha, os mais pobres, que vinham descalços, se ficaram por Carção e Argoselo, os que

14
Uma segunda nota para dizer que é impressionante a capacidade de
resistência desta comunidade à Inquisição. Eles chegaram a roubar os
sambenitos que estavam pendurados na igreja matriz por ordem daquele
tribunal! Onde é que isto se viu?13
Uma última referência às cerimónias e ritos tipicamente marranos
praticados nesta comunidade e que deixarão igualmente espantados um
rabi judeu e um padre católico: chegaram a rezar missa judaica na capela
de S. Estêvão, procedendo à elevação de um pedaço de pão, como se de
uma hóstia consagrada se tratasse! E, para ridicularizar o dogma católico
da virgindade de Maria, colocavam uma donzela (ou já mulher, mas
“formosa”) em um pedestal, fazendo de Nossa Senhora!14
Feita esta breve introdução, vamos estudar alguns dos cerca de 228
processos instaurados pela Inquisição a cristãos-novos de Carção.

vinham calçados seguiram até ao Azinhoso e Vilarinho dos Galegos e os mais afortunados, que
vieram a cavalo demandaram terras mais ricas para se fixar, como eram Mogadouro e Lagoaça.
O que parece certo é que nas proximidades de Vimioso e Carção, no chamado Prado das Cabanas,
foi então estabelecido um acampamento de refugiados judeus castelhanos, para pagamento do
imposto estabelecido por D. João II para obterem o “visto de entrada e residência” em Portugal. E
esta terá sido a origem da comunidade marrana de Carção entre outras.
13
A significar este espírito de resistência à autoridade, há em Carção um monumento singular: a
pedra lavrada. Trata-se de uma pedra de granito plantada no largo da aldeia onde está escrito o
seguinte texto:
- Neste sítio estavam as casas da morada de Francisco Mendes que foi condenado à morte pela de
Gaspar Gonçalves, que foi juiz neste lugar, na alçada em que procedeu o Doutor Cristóvão Pinto de
Paiva, Desembargador da Casa da Suplicação, no ano de 1651. El-Rei Nosso Senhor assim as
mandou arrasar e salgar, pela impiedade com que ele se ouve na dita morte e pouco respeito aos
sacramentos.
Refira-se que este “pouco respeito” consistiu em ele ter decepado com uma foice roçadora uma
imagem do Cristo Crucificado.
14
Significativo que na comunidade se registou a existência de pelo menos 3 livros judaicos,
proibidos por lei. E registaram-se também ligações bastante estreitas à comunidade judia de
Livorno, Itália.

15
16
II

CONSEGUIU ILUDIR OS INQUISIDORES

Ao início do mês de Dezembro de 1637, foi deliberado em Mesa da


Inquisição de Coimbra, mandar prender uns 19 cristãos-novos de
Quintela de Lampaças, acusados de práticas judaicas e desrespeito pelo
tribunal do Santo Ofício. A ordem de prisão foi enviada para o
comissário de Bragança, Lucas Fernandes de Andrade que, em 13
daquele mês, um domingo, se apresentou em Quintela, para a executar.
Porém… a maioria dos réus tinha fugido e poucos foram feitos
prisioneiros. 15
Não sabemos qual foi a reacção do comissário, mas temos o
depoimento do padre António Rodrigues da Costa, abade de Sendas,
prestado mais tarde e do seguinte teor:
Nesse dia estava ele em Quintela de Lampaças, em casa de um
cristão-novo chamado Francisco Róis Sancho, casado com Lucrécia
Nunes. E então estes terão feito o seguinte comentário: “- Luís da Serra e
os mais que prenderam foram pouco venturosos e acautelados, pois se
deixaram prender e não fugiram, sendo que haviam tido aviso de
Coimbra, de como vinha ordem para os prender”. Parece, aliás, que este
Luís da Serra se terá atrasado, pois tinha também tudo preparado para
fugir.
Acrescentou ainda o padre Costa que, logo naquele dia, ele se
dirigiu ao comissário Lucas contando-lhe o que ouvira e aconselhando-o
a que, como tinha em Coimbra um irmão que era inquisidor – Cristóvão
de Andrade Freire – o informasse do caso para averiguar se algum
funcionário menos diligente daquele tribunal teria dado o aviso.16
Começaram as especulações e as suspeitas logo recaíram sobre um
indivíduo de Carção que, na sexta-feira anterior, pelas 10 horas da
manhã, chegara a Quintela de Lampaças, montado em uma mula
castanha escura e se plantara à porta de Martim Rodrigues. A mula foi
depois metida na loja e o forasteiro entrou para casa daquele e ali
“jantou”, comendo bacalhau assado. De tarde, viram-no ainda com Pêro
Fernandes e com Baltasar Dias, deixando Quintela já de noite.

15
Quintela de Lampaças foi uma das terras trasmontanas que mais cedo foi alvo das investidas da
Inquisição por causa da Confraria do Burraço. O tema foi tratado pelos autores no jornal Terra
Quente de 1.6.1999.
16
Francisco Rodrigues Sancho faleceu mesmo naquele dias das prisões. Será coincidência?

17
O abade de Quintela, padre Paulo Peixoto de Sá, também logo
começou a indagar e escreveu para a Inquisição de Coimbra a dar conta
de suas suspeitas. De Coimbra responderam em 9 de Fevereiro,
passando-se ordem ao abade para que, chamando para secretário um
padre cristão-velho, ouvisse em segredo e sob juramento, as testemunhas
que entendesse e de seus depoimentos fossem lavrados os respectivos
autos e enviados para Coimbra. Recomendavam ao abade que agisse
“com a cautela e miudeza que pede negócio tão grave” e louvavam o
zelo demonstrado.17
Não vamos aqui reproduzir os vários depoimentos colhidos, que
todos foram mais ou menos concordantes com o de Melchior Martins,
alfaiate, de 35 anos que “disse que vira um homem pequeno já barbudo,
de 30 anos, em casa de Martim Rodrigues, sendo seu hóspede e diziam
ser parente de sua mulher, o qual hóspede ele viu, dois dias antes da
prisão da gente da nação, e fora voz pública ser ele o que trouxera carta
de aviso e logo naquele dia todos se ausentaram e outros mudaram fato
para Castela e andavam inquietos”.
Um dos depoentes acrescentou que o tal homem fora bem pago
pelos cristãos-novos de Quintela, que se quotizaram e “ajuntaram
bastante dinheiro”.
Em 14 de Março de 1638, remeteu o abade os autos para Coimbra e
uma carta onde anotou algumas impressões pessoais e acrescentou outras
informações. Vamos resumir esta carta:
- É certo que houve aviso e que quem os avisou foi o tal Jorge
Lopes.
- O dito “Martim Rodrigues é da nação e ainda está neste lugar e
cuido estar ainda por ser curtidor e ter couros em pelames (…) e se não
fosse isso já teria ido, visto ter sua fazenda toda vendida”. O mesmo se
passa com um outro que se chama André Dias. E também ficaram
vivendo ainda em Quintela um tal Gaspar Álvares e um Manuel Dias.
Todos os outros se foram residir para o lado de lá da raia de Castela e
“em um lugar chamado Travanca devem estar muitos dos que foram
porque os filhos vêem aqui às feiras tratar dos negócios”.18
No dia 1 de Abril de 1638, pelo comissário da Inquisição de
Bragança, Miguel de Sousa Correia, que se fazia acompanhar de seu
irmão e de um meirinho foi Jorge Lopes Henriques preso em Carção.
Dali foi levado a Bragança e na madrugada do dia seguinte remetido para
Coimbra, com uma carta do comissário explicando que “ao preso não fiz
17
A secretariar esteve o padre Matias Ferreira, cura da mesma igreja de Quintela.
IANTT, inquisição de Coimbra, processo 3271, de Jorge Lopes Henriques.
18
Gaspar Álvares processo 3775, filho de Bernardo Rua processo 9737 da Confraria do Burraço.

18
sequestro dos bens (porque) me disse que levava dinheiro para gastos de
seu caminho com sua pessoa”.
Sim, que o prisioneiro tinha que pagar também o aluguer da
cavalgadura em que seguia e os ferros com que ia algemado e a jeira ao
homem que o levava preso – 140 réis por dia. Assim, a viagem custou a
Jorge Lopes um total de 5236 réis, assim discriminados no processo:

Da cavalgadura que o trouxe – 2 400 rs


Ao homem que veio com ele 2 260 rs.
Gastos de seu mantimento 400 rs.
Diversos – 176 rs.

Enquanto isto, em Quintela se prendeu também Gaspar Álvares e


também o cura da aldeia, padre Matias Pereira, escrevia para Coimbra
acrescentando informações fresquinhas “acerca de quem avisou a gente
da nação antes da prisão que se fez a 13 de Dezembro de 1637”. Vejam:
- Sábado pela manhã, véspera da Páscoa, 3 de Abril de 1638, saindo
eu da igreja, se veio a ter comigo um filho que ficou de Francisco Róis
Sancho, gente da nação, por nome Diogo, de 18 anos, e como vizinho
meu, e por motivo de vizinhança, me disse: - “Saberá VM que agora
prenderam a meu tio Gaspar Álvares e a Jorge Lopes, de Carção!” –
Perguntando-lhe eu porquê, ele respondeu simplesmente: -. “Ao de
Carção o prenderam por dar aviso à gente da nação”. E perguntei se isso
era mesmo verdade, e disse “que sim”. E que este Jorge Lopes viera a
este lugar com uma carta de aviso a Quintela, aviso em que se
nomeavam 19 pessoas culpadas, a qual carta trouxera um irmão de Jorge
Lopes, de Lisboa, o qual viera dela em 6 dias e por chegar enfadado,
logo mandara a este seu irmão Jorge Lopes com a carta. E não me soube
dizer o nome do irmão…
Metido na cadeia, logo Jorge Henriques foi chamado à Mesa. E
então contou uma história deveras saborosa e que bem convenceu os
inquisidores. Relatou que, ao início de Dezembro do ano próximo
passado, ele estava em sua casa, em Carção e recebeu uma carta de
Lisboa, enviada por Baltasar Lopes de Leão, cristão-novo, fanqueiro,
natural de Mogadouro, morador na rua da Fancaria de Cima, seu amigo e
companheiro em alguns negócios, encarregando-o de proceder à
cobrança de 100 mil reis, da mão de Francisco Rodrigues, o sinal, de
alcunha, morador em Quintela de Lampaças, dinheiro proveniente das
rendas de uma comenda de que era comendador um fidalgo de Lisboa,
um “fulano Correia”.

19
Essa a razão da sua deslocação a Quintela, na tal sexta-feira. E, ali
chegado, soube que o Francisco “sinal” tinha ido a Bragança, mas que
viria naquele dia. Resolveu, pois, esperar até à noite. Como não viesse,
decidiu voltar para sua casa, aonde só chegou no dia seguinte, vendo-se
obrigado a dormir a meio caminho, em Izeda. Por acaso, veio depois a
saber que Francisco Rodrigues era um dos tais 19 que estavam para ser
presos e fugiu, certamente por ter sido avisado.
Claro que a história era convincente, mas os inquisidores também
eram desconfiados e matreiros. Por isso fizeram mil e uma pergunta
sobre o modo como ele conheceu e ficou “a servir” o fanqueiro de
Lisboa. E aqui entra um fulano Carvalho de Mogadouro, família que
aparece mais vezes referida neste trabalho, pelas suas ligações a Carção.
Perguntaram-lhe também pela carta, dizendo ele que a entregara a
Baltasar Dias, cunhado do “sinal”. Foi questionado sobre o motivo por
que, naquele dia, se encontrou também em Quintela com Pêro
Fernandes, cristão-novo, respondendo ele que “foram ver um aparelho de
curtir, coisa que tinha que ver, e por lho terem gabado”.
A muitas outras perguntas insidiosas ele respondeu
satisfatoriamente. E saiu-se tão bem que, dias depois, em 15 de Abril de
1638, os inquisidores o mandaram embora, concluindo “que não havia
culpa para ser preso o réu nos cárceres… que nos autos não resulta culpa
alguma contra ele”.
Tinha então Jorge Lopes Henriques 28 anos. Nascera em Miranda
do Douro, na rua da Costanilha, onde residiam seus pais, Luís Lopes e
Beatriz Henriques. E a história de seus pais e avós e bisavós e tetravós na
Inquisição era já nessa altura mais comprida que a linha do comboio e
leva-nos até ao tempo em que ainda havia judeus em Portugal, ou seja,
antes que o rei D. Manuel publicasse o decreto de expulsão (ou melhor:
de conversão forçada), em 1496. Vejamos um pouco dessa história:

* Seus pais, Luís Lopes e Beatriz Henriques, naturais e moradores


em Miranda do Douro, foram presos pela Inquisição de Coimbra em
18.12.1618, saindo penitenciados no auto-de-fé de 29.11.1621. Anos
depois, esta voltou a ser presa e foi queimada na fogueira no auto de 25
de Junho de 1645.19
19
IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 3497, de Luís Lopes; pº 2115, de Beatriz Henriques.
Impressionante a descrição do tormento a que foi submetido Luís Lopes. Depois de levantado e ter
partido ossos, com os médicos a dizer que parassem pois corria “notável perigo de vida”, os
inquisidores fizeram deitá-lo no potro e aplicaram-lhe o garrote de água. Veja-se a descrição por eles
feita no processo:
- Foi atado perfeitamente e sendo alevantado, foi outra vez admoestado (…) e novamente começado
a alevantar e por dizer que era quebrado e os cirurgiões depois de visto, decidiram que não podia

20
* Sua avó paterna, Catarina Vaz, foi presa pela Inquisição de
Coimbra em 1582 e foi penitenciada no auto de 25.11.1584.20

* Seus Bisavós paternos, Francisco Vaz e Leonor Fernandes, naturais


e moradores em Mogadouro, foram presos pela Inquisição de Évora em
1544, saindo penitenciados no auto-de-fé de 27.10.1548.21

Conjugando os dados destes e de outros processos, chegamos àqueles


tempos em que, oficialmente ainda havia uma nação judaica em
Portugal, convivendo com a nação católica. E eram judeus, certamente
“baptizados em pé”, os tetravôs de Jorge Lopes Henriques: Diogo
Fernandes e Isabel Fernandes (pais de Francisco Vaz) e João Fernandes e
Branca de Rua (pais de Leonor Fernandes), todos moradores em
Mogadouro.
Acerca de Diogo Fernandes, diremos que ele tinha um irmão
chamado João Fernandes, que casou em Torre de Moncorvo com Beatriz
Nunes e uma irmã, Branca Pires, igualmente casada em Torre de
Moncorvo com Gaspar Dias.
Ainda sobre este Diogo Fernandes (Xave), há notícias de que ele
substituía algumas vezes o mestre António de Valença no ensino da lei
de Moisés aos marranos de Mogadouro, como consta do processo deste
último, o qual “possuía uns livros em hebraico”.22
Pelo testemunho de Cristóvão de Castro, sabemos também que em
casa de Francisco Vaz, o mestre António de Valença pregava e lia em
hebraico que depois traduzia. E o próprio A. Valença confirma o facto ao
afirmar que aquela “he casa honde se mais conversava, na dita vila,
alguma cousa de judaysmo que em nehuma outra casa”.
Costumavam participar em tais encontros e cerimónias Diogo
Fernandes Xave, pai de Francisco Vaz, João Fernandes, seu irmão e Pêro

sofrer tormento de polé sem notável perigo de sua vida, foi mandado descer e desatado e levado ao
potro para nele ter o tormento correspondente, com um trato esperto e outro corrido e começado a
alevantar, como era seu pulso tomado, sendo lançado no dito potro, lhe foi dada uma volta com um
garrote de água e admoestado dissesse a verdade e por dizer que era bom cristão, lhe foi dada outra
volta com outro garrote de água e admoestado dissesse a verdade e por tornar a dizer que era bom
cristão e vir o cirurgião à Mesa e dizer que estava satisfeito o assento que neste pulso estava tomado,
foi mandado desatar e tirar do dito potro.
20
IANTT, Inquisição de Coimbra processo 268 de Catarina Vaz.
21
IANTT, Inquisição de Évora, processo 8776; processo 11213 de Leonor Fernandes.
22
IANTT, Inquisição de Évora, processo 8232 de António de Valença. Sobre o assunto ver:
MARIA JOSÉ FERRO TAVARES - Para o Estudo dos Judeus em Trás-os-Montes – sec. XVI, in:
Cultura, História e Filosofia - 1985, p. 297.
ANTÓNIO JÚLIO ANDRADE E MARIA FERNANDA GUIMARÃES, Maese António de
Valença, in: Jornal Terra Quente, de 1 e 15 de Outubro de 2000.

21
Martins, filho do Tamburilheiro. Estes últimos “ficavam em baxo
embuçados como discípulos escondydos que ouvyão ho que ele doutor
mestre António dizya” – mas os embuçados estavam também presentes –
como explica Maria José Ferro Tavares, que tratou o processo e
acrescenta:
- Juntavam-se duas e três e às vezes uma vez por semana e nestas
reuniões mestre António dizia-lhes quando calhavam os jejuns judaicos,
assim como as festas e a razão delas e entre outras coisas ensinava-lhes
como se fazia a festa do pão ázimo e como se amassava o pão sem
levedar (…) A mulher de Diogo Fernandes Xave, quando adoeceu, viu
na doença um castigo por não jejuar os jejuns dos judeus.
E a história da família de Jorge Lopes Henriques na Inquisição
haveria de continuar a fazer-se. Seu irmão Belchior Lopes, por exemplo,
morador em Miranda do Douro, seria preso em 1644, saindo reconciliado
no auto-de-fé de Coimbra de 25.1.1647. De suas declarações, retiraram
os inquisidores esta nota interessante: - Toda a gente da nação daquela
cidade (Miranda do Douro) guarda a lei de Moisés. 23
Sendo assim comprida a história da família de Jorge Lopes na
Inquisição, estranhar-se-á como os inquisidores se deixaram enganar por
ele. Pensamos que isso ficou a dever-se a uma falha na troca de
informações entre os tribunais de Coimbra, Lisboa e Évora, aliada à
situação política que então se vivia, com as atenções concentradas na
chamada revolta do Manuelinho, em Évora. O que não deverá estranhar-
se é que Jorge Lopes Henriques logo se tenha posto em fuga para Castela
e dali para Livorno.
Aliás, a história desta família é verdadeiramente exemplar, do ponto
de vista da mobilidade. Enquanto Jorge seguia para Livorno, seu irmão
Francisco ficava em Carção e dois outros irmãos em Miranda do Douro.
Em Zamora, vivia seu irmão Manuel, que tinha uma filha ali casada com
médico, Dr. Manuel Fernandes. A irmã Joana, essa fixou-se noutro
extremo da Castela, em Múrcia e a irmã Antónia estabeleceu sua casa em
Medina del Rio Seco.24

23
IANTT, Inquisição de Coimbra, pº 1916, de Belchior Lopes.
Em 15.12.1646, Belchior Lopes foi submetido a tormento, o qual durou “quarto e meio de hora”,
sendo “alevantado até ao libelo e lhe foi dado um trato esperto e por dizer que sempre fora bom
cristão foi dado outro trato esperto e por não confessar foi-lhe dado terceiro trato esperto”. Registe-
se que os dois inquisidores que dirigiram a sessão do tormento eram de Bragança: Cristóvão de
Andrade Freire e António Leitão Homem.
24
O Dr. Manuel Fernandes Garcia era natural de Miranda do Douro e estudou Artes e Medicina na
Universidade de Salamanca nos anos de 1626 a 1633. – ANGEL MARCOS DIÓS, Índice de
Portugueses en la Universidad de Salamanca (1580-1640), in: Brigantia, XIX, 1-2, 1999, p. 141.

22
Voltando a Jorge Lopes, diremos que ele foi o primeiro cristão-novo
de Carção a ser importunado pelo tribunal do Santo Ofício. Se foi bem
ou mal julgado, se foi ou não ele que avisou os outros para fugirem, não
o sabemos. O que sabemos é que, logo de seguida, ele deixou Carção e a
Pátria e se foi para a cidade de Livorno, em Itália, onde livremente podia
praticar o judaísmo. Voltaremos a falar dele, como falaremos de outros
Carçonenses que foram para Livorno.

23

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