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Formas de tratamento ou Portugal ***

em discurso directo: o outro somos nós Segundo Lindley Cintra, os portugueses utilizam três tipos de
tratamento no diálogo com um interlocutor: verbais (na 2.ª e na 3.ª
Vera Oliveira
pessoas: Fazes-me este favor? Diga-me o seu nome), pronominais
(tu, você) e nominais (o senhor, a senhora, o pai, a mãe, o doutor, o
engenheiro, o António, a Benilde...). As formas de tratamento nomi-
nais registam, na nossa língua, uma frequência e uma variedade de
emprego tais que, sem paralelo em outras línguas europeias, muito
dificilmente os estrangeiros as compreendem. Os especialistas, por
seu turno, consideram-nas uma forma de tratamento arcaica e orien-
talizante, tão estratificada que se aproxima de uma hierarquização
própria de um sistema militar ou de castas.
Para Lindley Cintra, a segunda característica das formas de tra-
tamento, em Portugal, consiste na respectiva estruturação em três
planos que se opõem entre si:
No passado mês de Junho, um anúncio radiofónico de uma conhe-
cida instituição bancária exemplificava a utilização expressa e mas- 1. o das formas de tratamento próprias da intimidade,
siva de diversas formas de tratamento no diálogo com um único 2. o das formas de tratamento entre iguais ou de superior para
interlocutor, ou seja, no discurso directo, em português. Com efeito, inferior, mas sem intimidade,
nele se enunciavam três diferentes formas de tratamento, corres- 3. o das formas de tratamento «de reverência» e «de cortesia»,
pondentes a três fases da vida de um mesmo potencial cliente: que, por sua vez, regista diferentes variações «correspondentes
a distâncias diversas entre os interlocutores», nomeadamente:
1. Tu, enquanto adolescente e jovem; «V. Ex.ª, o senhor, o senhor Dr., o António, a Maria, o Sr. Antó-
2. Você, enquanto (jovem) adulto; nio, a Sr.ª Maria, a D. Maria, etc.»
3. O senhor, enquanto adulto e mais velho.
Este registo extremamente diferenciado de formas de trata-
Para perceber o complexo uso das formas de tratamento, com que mento não existia, contudo, nas origens da língua portuguesa, então
quotidianamente lidamos no nosso país, socorremo-nos do trabalho similar, neste aspecto, a outras línguas europeias. Com efeito, nos
de Lindley Cintra, «Origens do sistema de formas de tratamento de sé­culos xii-xiii, as formas de tratamento eram simples: pronominais
português actual», que constitui o fundamento e a validação do que (tu, vós) e verbais (2.ª pessoa do singular ou do plural), apenas varia-
adiante se afirma. Tudo o mais, além da divulgação deste texto e da vam consoante o número de interlocutores:
obra A estrutura na antiga sociedade portuguesa, de Vitorino Maga-
lhães Godinho, que o contextualiza historicamente, deverá ser lido 1. Para um interlocutor, utilizava-se o tu (Tu sabes a verdade.);
como uma síntese pessoal e, enquanto tal, assumidamente impres- 2. Para dois ou mais interlocutores, o vós (Sabeis vós a ver-
siva e imprecisa. dade?).

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Neste contexto, o vós, à semelhança de outras línguas europeias, tor, a só poder «ser utilizáveis para pessoas que não mereciam tanta
é um pronome «com duplo emprego, singular de cortesia e plural cortesia como a que a utilização daquelas formas representava».
indiferente». E, em caso de cortesia, no singular, aplicava-se sem- Da segunda metade do século xviii em diante, regista-se, assim, o
pre que não existisse intimidade e confiança entre os interlocutores, abandono da utilização da 2.ª pessoa do plural (pronominal e verbal)
independentemente do respectivo estatuto social. no diálogo com um único interlocutor, à excepção do diálogo com
É só a partir do século xiv que surgem, em português, formas de Deus que, só em finais do século xx, passará a fazer-se na 2.ª pes-
tratamento de cortesia, nominais: Vossa Mercê, Vossa Alteza, Vossa soa do singular. A utilização da 2.ª pessoa do plural, pronominal
Senhoria, então importadas de outras línguas e apenas utilizadas ou verbal, no diálogo com dois ou mais interlocutores, embora mais
para as pessoas do rei e da rainha. O respectivo emprego irá con- lenta, recua, por seu turno, para a categoria de regionalismo e de
tudo generalizar-se, ao longo dos séculos xv e xvi, estendendo-se, arcaísmo.
primeiro, à nobreza e, mais tarde, à alta burguesia. A progressiva É neste contexto que o lugar então deixado vago pelo vós passa a
generalização destas novas formas de tratamento nominal irá arras- ser ocupado pelo novo você, «semelhante pelas origens às referidas
tar «naturalmente o verbo para a 3.ª pessoa». fórmulas, mas muito mais evoluído dos pontos de vista semântico
As formas nominais de cortesia e a posterior fixação da forma de e fonético», que o substituirá progressivamente, tanto mais quanto
tratamento na 3.ª pessoa têm a sua origem, para Lindley Cintra, será reforçado pela tendência, no uso da língua, para a simplifica-
num ideal de estabilidade associado a uma sociedade hierarqui- ção, no caso, da complexa flexão verbal portuguesa. Instalado na
zada, sentido em Portugal nos finais do século xiv, e confirmado nossa língua a partir do século xviii, começa também a admitir-se o
ao longo do século xv – primeiro, com o império de Carlos V e, emprego do pronome você no tratamento entre iguais.
depois, com o domínio filipino. Não apenas, mas também por se Verifica-se, então, a entrega do tratamento de cortesia ao domí-
afirmar num primeiro tempo de consolidação da nossa língua (que nio quase absoluto da 3.ª pessoa e das formas nominais as quais,
é simultaneamente o tempo da nossa génese enquanto país), uma entre meados do século xviii e meados do século xx, se diversifica-
das características da estrutura na sociedade portuguesa, que a riam e especializariam de um modo que não tem paralelo em outras
referida obra de Vitorino Magalhães Godinho descreve, será pois línguas europeias.
a defesa, mais ou menos consciente, de uma sociedade hierarqui- Definida esta evolução, Lindley Cintra, que se apoia nas formas
zada e a correspondente rejeição de uma sociedade mais igualitá- de tratamento utilizadas, nos anos setenta, pelas camadas mais
ria. É neste jogo de forças entre, por um lado, a crença colectiva na jovens pertencentes às classes sociais mais elevadas da sociedade
necessidade de defesa de uma hierarquização social e, por outro, portuguesa, preconiza a seguinte tendência evolutiva:
o inelutável movimento de ascensão social próprio das sociedades
europeias, que a evolução das formas de tratamento deve, até hoje, 1. Progressiva eliminação do tratamento por V. Ex.ª;
ser entendida. 2. Progressivo alargamento do campo do tu e da 2ª pessoa do sin-
Um dos primeiros indícios desta evolução é a alteração do trata- gular do verbo;
mento por vós com o verbo na 2.ª pessoa do plural, no diálogo com um 3. Progressiva ampliação do emprego do pronome você;
interlocutor que se irá reduzir e degradar na medida da ampliação 4. Progressiva eliminação de diferenças de tratamento que assen-
do campo de emprego dos tratamentos de cortesia (nominais e na 3.ª tam numa diferenciação social (Senhora Maria, Dona Maria,
pessoa verbal). Compreende-se, deste modo, a razão pela qual vós e a Senhora Dona Maria).
2.ª pessoa do plural dos verbos passam, no diálogo com um interlocu-

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*** Por outro lado, a forma de tratamento nominal o senhor, a senhora
com o verbo na 3.ª pessoa, mas sem recurso expresso ao nome pró-
Ora, trinta anos volvidos sobre este prognóstico, o que se passou prio e apelido, é ainda muito utilizada como forma de tratamento de
com as formas de tratamento em Portugal? cortesia: (Dr.ª) Manuela Ferreira Leite, a senhora seria capaz de...
Como referimos já, o nosso país continua, na primeira década Enquanto resposta de cortesia, parece ter-se mesmo estereotipado
do século xxi, a caracterizar-se pela singularidade, face aos outros (como V. Ex.ª), já que muitas vezes se ignora a concordância com o
países europeus, de utilização generalizada de múltiplas formas de interlocutor (sim, senhor; não, senhora), o que aliás acontece com a
tratamento. E muito dificilmente poderia ser de outro modo, já que fórmula obrigado/a na concordância com o respectivo sujeito.
as formas de tratamento são consideradas, do século xvi aos nossos A outrora mais vincada distinção social entre o tratamento de
dias (e por nós próprios), «uma preocupação nacional». No entanto, um interlocutor apenas pelo nome próprio ou pelo nome próprio e
é também verdade que todas as tendências apontadas por Lindley apelido, bem como entre estas duas combinações e as introduzidas
Cintra se confirmaram e, de entre todas, a primeira e a quarta pare- pela forma nominal senhor(a), parece presentemente diluir-se numa
cem-nos as mais pronunciadas. confusão quanto à respectiva forma mais apropriada de emprego.
A tendência 1. (Progressiva eliminação do tratamento por V. Ex.ª) Assim, atesta-se ainda, para o sexo masculino, uma gradação entre
terá sido talvez a que mais se afirmou. Muito embora ainda se uti- João, João Antunes, Senhor João, Senhor João Antunes. Para o sexo
lize, tornou-se aparentemente uma formalidade protocolar a que se feminino, a gradação inclui ainda mais níveis: Ana, Ana Silvestre,
recorre, sobretudo, na língua escrita. A evolução recente da sociedade Senhora Ana; Senhora Ana Silvestre, Dona Ana, Dona Ana Silves-
portuguesa permite-nos afirmar que também se assinala uma lenta, tre, Senhora Dona Ana e Senhora Dona Ana Silvestre. E isto no que
mas «progressiva eliminação de diferenças de tratamento que assen- apenas se refere à forma de tratamento na 3.ª pessoa do singular,
tam numa diferenciação social», a tendência 4., à primeira vista, não contando pois com o tratamento na 2.ª pessoa do singular, reser-
parece estar a generalizar-se o uso da forma nominal correspondente vado à intimidade, mas também ainda às relações de superior para
à profissão, à habilitação profissional ou académica, em detrimento inferior:
de todas as outras e cada vez menos acompanhada ou agregada ao
nome senhor(a): Engenheiro Rui de Carvalho, Doutora Margarida – O senhor engenheiro quer mais sopa?
Oleiro, Arquitecto António Braga, Comandante Manuel Neves... – Claro que sim, Ana. Esta tua sopa é a minha preferida.
Todavia, na ausência ou no desconhecimento da profissão, da
habilitação académica ou do cargo hierárquico, a forma actualmente No entanto, a sensação que temos é a de que a memória da cor-
mais generalizada de tratamento de um interlocutor do sexo mascu- respondência entre as diferenças sociais e as formas de tratamento
lino parece ser ainda a de Senhor, seguido de nome próprio e ape- parece enredar-se numa miscelânea em que coexistem diversas for-
lido (Senhor João Antunes), tendo o Dom caído inequivocamente em mas de tratamento, mas em que se desconhece a hierarquização ade-
desuso. Para as mulheres, parece ser a de Dona, seguida de nome quada. No uso da língua, este desconhecimento e a tendência para
e apelido (Dona Ana Silvestre); esta última forma de tratamento a simplificação constituem muitas vezes, como sabemos, o primeiro
parece usar-se mais do que apenas a de Senhora (Senhora Ana Sil- passo para a eliminação de vocábulos e de expressões.
vestre), ou do que a de Senhora Dona (Senhora Dona Ana Silvestre), A forma de tratamento que, a nosso ver, se pode mais rapida-
talvez por influência brasileira e talvez também castelhana, para mente vir a generalizar é a que se reduz ao nome próprio e apelido
além da tendência para a de economia na utilização da língua. na 3.ª pessoa do verbo. Muitos jornalistas tratam já deste modo os

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seus entrevistados, mesmo quando são indiscutivelmente figuras do drinhamento das tendências 1., 2. e 4., como «uma útil contribuição
topo da hierarquia: António Vitorino, diga-nos a sua opinião... Bel- linguística para a tão necessária reforma… da estrutura mental e da
miro de Azevedo, acha que a crise... organização social» do nosso país.
No que respeita à progressiva ampliação do emprego do pronome Ao tomarmos consciência das origens e do significado do nosso
você (tendência 3.), parece-nos mais evidente a generalização conso- complexo sistema de formas de tratamento, parece fazer todo o sen-
lidada do tratamento verbal na 3.ª pessoa, do que a ampliação (que tido que, na condição, entre outras, de revisores e editores de texto
não deixa de ser um facto) do emprego do pronome você. Por seu em língua portuguesa, pugnemos pela respectiva simplificação.
turno, o progressivo alargamento do campo do tu e da 2.ª pessoa E, nomeadamente, pela eliminação de diferenças entre tratamentos
do singular do verbo (tendência 2.) não conseguiu ainda abolir a nominais que assentam em diferenças entre níveis sociais, mesmo
fronteira entre o tu, considerado demasiado íntimo, e a 3.ª pessoa que à custa de um empobrecimento da língua, «já que tal facto seria
verbal com ou sem forma nominal expressa. E, quando nesta última uma útil contribuição linguística para a tão necessária reforma de
se recorre à utilização expressa do pronome você é, ainda em muitos certos aspectos da estrutura mental e da organização social dos Por-
casos, considerada uma forma de tratamento pouco educada, próprio tugueses».
de pessoas com pouca cultura. E, pelo menos no Centro e no Norte de
Portugal, onde esta interpretação é mais consensual e viva, a forma
de tratamento nominal senhor(a) substitui generalizadamente o
você, no singular e o vós ainda corrente no plural, o vocês.
Compreendem-se, assim, as recomendações, consideradas edu-
cadas e cultas, de atenção e parcimónia no emprego de formas de
referência a outrem, através do uso dos pronomes ele(s), ela(s) e,
do mesmo modo, no uso do nome colectivo gente em que o sujeito se
inclui. São registos considerados vulgares: daqueles está ausente a
forma nominal de cortesia e deferência, e o colectivo a gente parece
demasiado popular, coloquial e indistinto, para não dizer promíscuo.
É também esta explicação que desautoriza o emprego dos artigos
definidos o, a antes dos nomes de outros que designamos: se a Joel
Serrão se poderia permitir o artigo na referência a Lindley Cintra
(O Lindley Cintra disse-me...) é porque tal se justificava como forma
de referência simultaneamente inter pares e íntima, mas nunca se
lho permitiria em contexto profissional. E, a qualquer um de nós,
jamais.
É neste sentido que sublinhamos uma das observações mais
modernas deste ensaio: aquela em que Lindley Cintra nos convoca
para um «franco apoio» à utilização da «estrutura da língua her-
dada», como forma de alterar uma «maneira de ver o mundo», a
nossa. E, mais ainda, quando nos convida para o inequívoco apa-

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