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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
W_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabal no, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
/ ^-¿^ ^-'"'-.3''

SUMAR IO

**■ Páscoa e o Enigma da Historia


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^ "Nossos País nos Contaram"


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« "CristSos sob Fogo"
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2 Prolongamento Artificial da Vida e
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ANO XXVII ABRIL - 1986 287


PERGUNTE E RESPONDEREMOS ABRIL - 1986

Publicacab mensal No 287


•■: !■!.:.■

SUMARIO
DiretorResponsável:

Estévlo Bettencourt OSB Urna re-leitura bíblica:


Autor e Redator de toda a materia
publicada neste periódico "NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM" 2
Diretor-Adminisirador
Nicaragua:
D. Hildebrando P. Martins OSB
"CRISTÁOS SOB FOGO" 13
Administracao e distribuido:
Que dif erenca há entre
Edicoes Lumen Christi
Dom Gerardo, 40 - 5"? andar, S/501 O HOMEM E OS ANIMÁIS IR RACIONÁIS? 26
Tel.: (021) 291-7122
Caixa postal 2666 A Celeuma de um Filme:
20001 - Rio de Janeiro - RJ
"JE VOUS SALUE, MARIE" 39

Composicáo e Impretsao: Um Enigma:

"Marques Saraiva"
PROLONGAMENTO ARTIFICIAL DA VIDA
Santos Rodrigues. 240
E DETERMINAQÁO EXATA DA MORTE . . 45
Rio de Janeiro
LIVROS EM ESTANTE 47

Assinatura de 1986: Cz$ 100,00


Número avulso CzS 11,00 NO PRÓXIMO NÚMERO
Para pagamento da assinatura de
288 - Maio - 1986
1986, queira depositar a importan
cia no Banco do Brasil para crédito
O Evangelho de Marcos antes de 50? — "Da
na Conta Corrente n? 0031 304-1 Teología ao Homem" {P. • E. Charbonneau).
em nome do Mosteiro de Sao Bento - "Contra toda Esperanca" (Armando Valla
do Rio de Janeiro, pagável na Agen dares). - A Educapio na Nicaragua. - "Ho-
cia da Praca Mauá (n° 0435) ou en mossexualidade: Ciencia e Consciéncia" (M.
viar VALE POSTAL pagável na Vidal e outros).
Agencia Central dos Correios do COM APROVAQÁO ECLESIÁSTICA
Rio de Janeiro.

RENOVÉ QUANTO ANTES COMUNIQUE-NOS QUALQUER


A SUA ASSINATURA MUDANCADEENDERECO
BIBLIOTECA

Páscoa e o Enigma da Historia

O cristao que acaba de festejar a Páscoa, celebrou-a no contexto de días


turbulentos. . . A historia é um enigma aos olhos do observador: Porque a
desonestidade e a corruppSo parecem merecer o favor de Deus? Nao se diría
que Este esquece os seus amigos?

Tais perguntas já atormentavam as mentes dos Profetas bíblicos (cf. Jr


12,1s; Hab 1,1-4; 2,1-4; MI 2,17) e de Jó. Atormentaram também os cristffos
do sáculo I como os do sáculo XX.

Ora, sob o impacto da ressurreigSo de Cristo, Sao Joao, em 96, escre-


veu o seu Apocalipse, que é precisamente urna revisao da historia á luz do
dom de Páscoa. Neste escrito, o autor sagrado apresenta a corte celeste á se-
melhanca das cortes orientáis antigás {cf. Ap 4-5): Deus Pai, sobre o seu tro
no, entrega ao Cordeiro que foi ¡molado e traz as marcas das suas chagas,
mas está em pé como quem triunfou, o Livro da Historia da humanidade;
neste livro todo o futuro dos dómense dos povos está registrado pela preci-
éncia de Deus (que nao tira a liberdade dos homens): háb de se desenrolar
calamidades, que farao os homens gemer (cf. Ap 6), mas nenhuma dessas
desgrapas perturbará a corte celeste, qVie no decorrer de todo o livro canta
um Aleluia permanente (cf. Ap 7,10-12; 11,15-18; 15,3s; 16,5-7. . .). Com
efeito; os anjos e santos sabem que cada evento da historia está dimensiona-
do pela Providencia Divina e faz parte de um harmonioso plano de santifica-
cSo dos homens; nada acontece fora dos designios da Sabedoria Divina. O
Cordeiro chagado, mas vitorioso, é o Senhor da historia; Ele a sustenta em
suas maos, de modo que ela na verdade nada tem de absurdo, mas através
das linhas tortas, tragadas pelo livre arbitrio dos homens, serve ao plano de
salvacao de Deus.

Eis a resposta crista para o enigma da historia. Nao pretende (nem po


de, como ninguém pode) explicar cada acontecimento, mas afirma, com
plena conviccao, que o Senhor Jesús é o Rei dos sáculos, aos quais Ele im
prime o seu caráter de Páscoa; a dor, decorrerite da fragilidade das criaturas,
é redimida pelo Amor, que transfigura e diviniza todo sofrimento, fazendo-
o penhor da Gloria futura.

E tu, cristao, que responderás ao desafio dos teus tempos? — Procura,


sem dúvida, trabalhar ardorosamente em prol da Boa Causa; mas lembra-te
de que tens um recurso muito mais teu, menos dependente de meios extrín
secos: sim, sé mais santo, mais perfeitamente cristao, pois "urna alma que se
eleva, eleva o mundo inteiro".
E. B.

145
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
ANO XXVII -n?287
Abril de 1986

Urna re-leitura bíblica:

"Nossos País nos contaram"


por Marcelo de Barros Souza

Em sfntese: O livro em pauta é um espécimen da córreme moderna de


re-leitura da Biblia em chave socio-política. /Marcelo de Barros Souza narra a
historia sagrada como sendo a de um povo oprimido económica e politica
mente por outros povos; tende a se libertar, masnemsempre é feliz na reali
zado desse projeto; incide, por exemplo, na tentacao de instituir um reí,
que o governa e torna a oprimir. Este modo de reler a Biblia vem a ser uni
lateral e esvazia a riqueza da mensagem bíblica; especialmente os capítulos
1-3 do Génesis, que contém verdades fundamentáis para a fé fíustica origi
nal, pecado dos prímeiros país, promessa de Messias...), sao desviados em
sentido alegórico, para significar lutas entre povos e classes sociais.
Alias, o método exegético que Marcelo de Barros Souza adota, merece
serias restricoes. Na segunda parte deste artigo, é apresentada a doutrina do
Concilio do Vaticano II referente á interpretado dos livros sagrados (ver
Constituido Dei Verbum nP 12): apregoa primeiramente o estudo da face
humana da Biblia lexame dos textos origináis, dos géneros literarios, do con
texto histórico e geográfico dos autores sagrados...); a seguir, incute que o
texto sagrado seja colocado no quadro gerat da RevelacSo Divina, devendo
ser interpretado em consonancia com esta. A Igreja cabe, em última instan
cia, a funcao de transmitir auténticamente a mensagem dos livros sagrados.
Por último, o artigo examina algunos objecSes levantadas pela nova córreme
exegética contra a interpretacao científica da Biblia.

A Sagrada Escritura, livro básico para a formacaodos cristaos, tem si


do mais e mais difundida no povo de Deus. Existe mesmo uma corrente de
estudiosos que procura transmiti-la nao somente em linguagem popular, mas
também a partir da ótica do povo e para o povo; chegam a apregoar certa
oposicao entre a concepcao científica (que seria elitista) da leitura bíblica,
muito em voga no século XIX, e a leitura da Palavra viva, feita segundo cri
terios sociológicos, económicos e políticos. O enfoque-chave seria o de uma

146
"NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM"

classe social oprimida que luta por conseguir a sua libertacáo frente á classe
opressora. Esta maneira de proceder é justificada pelos seus mentores, se
gundo o$ quais a Biblia foi escrita por pobres (os pobres de Israel) e só pode
ser lida e entendida adequadamente pelos pobres de hoje: "a Bi'blia vé as
coisas do ponto de vista do pessoal mais humilde, do povinho" (Suplemento
Informativo de Biblia-Gente nP 1, p. 1). Conseqüentemente tal modo de ler
a Biblia se interessa muito por acao, transformacao, principalmente no cam
po social.
Espécimen muito significativo dessa nova exegese da Biblia é o livro
do Pe. Marcelo de Barros Souza O.S.B., Diretor da Escola de Evangelho da
diocese de Goiás e Assessor de Teologia do Secretariado Nacional da Comis-
sfo Pastoral da Térra, livro intitulado "Nossos Pais nos Contaram. Nova Le i
tura da Historia Sagrada"1. Como diz o subtítulo, tal obra pertence á cate
goría das releituras bíblicas, freqüentes em nossos dias.
Abaixo proporemos breves observacoes sobre o livro em pauta e o
método que ele adota.

1. O LIVRO: CONTEÜDO E COMENTARIOS

1. O autor tenciona contar "velhas historias" de "maneira nova". Com


efeito; considera toda a historia ao Antigo Testamento através do prisma da
economia, da política, da sociología e da religiao; apresenta assim "um povo
oprimido (Israel) que lutava para se libertar, quando apareceu urna forca
extraordinaria, a presenca de alguém que veio fazer caminho conosco" (cf.
p. 13). Esse alguém é o Senhor Deus; a sua atuacao se confunde com a atua-
cao do próprío povo que luta. "Tudo virou urna coisa só. A acSo de Deus se
mostrou clara através do trabalho e luta do povo. Quando a Biblia diz: 'Deus
fez, Deus falou', está dizendo também ao mesmo tempo: 'O povo fez, o po
vo falou'"(p. 14).
2. A preocupacSo com os elementos socio-políticos leva o autor a
re-interpretar toda a historia sagrada, especialmente os onze primeiros capí
tulos do Génesis, que propoem verdades básicas da fé crista. Estas s3o total
mente silenciadas em favor de urna exegese artificial, Ets urna amostragem
deste procedimento:
"Um tempo depois daquela reuniao de Siquém, o povo de Israel foi
muito influenciado pela cultura dos vizinhos e cananeus, que adoravam a
serpente como sendo deus. E, como os vizinhos, o povo de Israel desejou
também ter um reí. AtéentSo a comunidade das tribos vivía na igualdade. E
dizia que o único reí do povo era Deus. Mas comecou a querer ter um reí e
isso mudou muito na vida deles. O povo da roca foi quem mais sofreu.

1 Ed. Vozes, Petrópolis. 1984. 137 x 210 mm, 422 pp.

I47
"PERGUNTE E RESF ONDEREMOS" 287/1986

A i era normal que, nesta situafáb, eles lembrassem do paraíso, guando


Deus criou o homem e tudo era bem melhor. E por que de repente tudo fi-
cou diferente?
Para explicar eles contaran) unta historia:

O que estava por tras


Gn3 desta historia

"1. A serpente era o mais sabido de A serpente era adorada pelos cana-
todos os animáis que o Senhoi ti- neus e por isso representava a sode-
nha criado. dade dos cananeus. De fato.a sode-
dade dos cananeus era mais sabida
que a de Israel e também mais avan-
cada.

2. A serpente disse á mulher: É Foi a sodedade dos cananeus que


verdade que voces nao podem co influendou a comunidade de Israel
mer das frutas de nenhuma árvore adesejar umrei.
dojardim?

3. A mulher respondeu: Podemos Ñas ddades secas da Palestina, só


comer dos frutos das árvores do quem tinham jardim era o palacio
jardim, menos do fruto da árvore do reí.
que está no meio do jardim porque Israel tinha autoridades, mas nao
Deus nos disse: se voces comerem centralizadas (no meio do jardim).
dele, morrem. Isso Deus tinha pfoibido.

4. A serpente respondeu: Voces nao O fruto era o poder de reinar. Ami


morrem de jeito nenhum. Deus sabe gamente os reís eram considerados
que no dia em que voces comerem como deuses.
deste fruto, vao abrir os olhos e
váo ser como deuses. Váo conhecer
a feüddade e a infelicidade.

5. A mulher viu que a árvore devia O poder dos reís dá milita seguranca
ser boa para comer e era bonita de e prestigio. Dá aparéncia de segu
se ver. Tomou do seu fruto, comeu ranca nacional.
e depois deu ao seu marido que a
acompanhava. Eele comeu também.

148
"NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM' 5

6. Entáo os olhos deles se abriram Quando Israel passou a ter reis co-
e notaram que estavam ñus. Cada mecou a desigualdade entre o prd-
um fez tiras de folhas para se cobrir. prio povo de Deus e as comunida
des do campo ficaram mais pobres
e sem nada.

7. Ouviram entlo os passos do Se- Cotn a experiencia da realeza houve


nhor na hora do entardecer. O ho- urna crise religiosa no meio do povo.
mem e a mulher se esconderán!
envergonhados.

8.0 senhor chamou o homem e


perguntou: Onde está vocé?

9. Ele respondeu: Escutei sua voz


no jardim e fiquei com tnedo por
que estava nu. Por isso me escondí.

10. Quem revelou a vocé que estava


nu? Vocé comeu da árvore que
proibi de comer?

11. A mulher que o Senhor me deu •Nos povos antigos a mulher era li
como companheira me deu da fruta gada á propriedade da térra. É a
e eu comi. mulher que dá fruto.

11.0 Senhor disse á mulher: O que Foi naquela época que a socieda-
foi que vocé fez? A mulher respon- de de Israel venceu de urna vez a
deu:Aserpente me tludiu e eu comi. sodedade dos cananeus que justa
Ai Deus amaldicoou a serpente. mente influendou Israel a ter reis.

13. Já que fízeste isto.sejas maldita A partir daí os cananeus passaram


entre todos os animáis da térra. a ser dominados pelo povo de Is
Vais andar te arrastando no cháo.e rael. As comunidades do povo de
terás de comer poeira da térra a vi Deus justificavam isto com histo
da toda. rias como esta (Deus amaldicoou
a sodedade dos cananeus, como
descendentes da serpente que eles
adoravam).
14. Porei inimizade entre ti e a mu
lher, entre a tua descendencia e a
déla. A descendencia déla vai esma-
gar tua cabeca e tu Ihe pegarás no
calca nhar.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

15. E dbse i mulher: Vou lhe dar Os sofrimentos de Israel em sua


muilos sofrimentos na gravidez e historia vio ser como dores de
vocé vai dar á luz seus fílhos com parto.
dores. Vai precisar de homem e ele
vai dominar vocé. Os profetas de Deus avisaram ao po-
vo sobre este perigo de dominacáo
dos reís ñas comunidades (ISm 8).

16. Finalmente Deus disse ao ho A regiSo de Judá era de térra muito


mem: Como vocé atendeu á sua mu ruim para a lavoura.
lher e comeu da fruta que eu proibi
de comer, a tena seja maldita por
sua culpa.

17. Vocé vai precisar de se cansar E a vida dos laviadores, mesmo mais
para conseguir tirar da térra a sua no norte, onde a térra era melhor
comida todos os días. A térra vai no tempo dos reís, era muito dura
darespinhos. e de milita opressao.

18. Vocé vai comer o pao com o


suor do seu rosto até voltar á térra
porque vocé é pó e vai de novo
virar pó.

19.0 homem chamou a sua mulher A Comunidade de Israel aprende


de Vida (Eva),por ela ser a míe de que tem urna missáo. Pouco a pou-
todos os vivos. co vai notar que esta missáo é para
com todos os outros povos = dar a
O Senhor fez para o homem e a eles a revelacáo do Deus vivo e o mo
mulher roupas de pele e os vestiu. do dos homens conviverem entre si.
Depois disse:

O homem se fez como um de nos. Deus impede que o reí de Israel seja
Já que se fez de juiz do que é bom absoluto. O reí nSo pode tomar o
e do que é mau nao vá se apropriar lugar de Deus.
também da árvore da vida, porque
ao comer desta árvore vivera para
sempre.

Por isso Deus expulsou o homem Mais tarde os imperios opressores


do jardim do Éden para o homem (persas, assírios, babilónicos), que
cultivar a térra da qual foi feito. E acreditavam nestes anjos com espa
colocou anjos com espadas de fogo das de fogo, é que impedirán) os
na entrada do jardim para impedir reís de Israel de serem donos de
o homem de ir até a árvore da vida. tudo".

150
"NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM"

Este texto, bem típico da exegese da escola cm foco, sugere algumas


observacoes:

a) há alegorizacao arbitraria ou realizada sem provas: o texto bíblico,


que conta a historia do pecado original, seria apenas uma versSo figurada
de acontecimentos políticos ocorridos em Israel após o regime de Josué
(1220-1200 a.C).
As auténticas versoes de tais acontecimentos ou da instituicao da mo
narquía se encontram de maneira clara, sem alegorías, em ISm 8, 1-22;
9, 1-10, 16; 10, 17-24; 11, 1-15. Se, portanto, queremos conhecer o modo
como Israel considerava o surto da realeza, devemos recorrer a ISm e nao a
Gn 3; este texto é violentado arbitrariamente quando submetido á interpre-
tacao proposta; seria preciso que o exegeta comprovasse a sua nova versao
mediante paralelos literarios, apresentacao de simbologia semelhante e de
expressionismo orientáis correspondentes. Muitas vezes as novas escolas
de exegese falham por afirmar sem provar, ou por formular hipóteses mais
ou menos gratuitas, que pouco adiante, no decorrer da exposicSo, reapare-
cem como sentencas certas, as quais dio margem á formulacSo de novas
hipóteses, que por sua vez mais adiante sSo tidas como definitivas...
b) O texto de Gn 3, 1-24 contém, segundo toda a TradicSo crista
(firmada pelo magisterio da Igreja), profundas verdades atinentes á origem
do género humano: este, no inicio da sua historia, foi elevado a filiapao
divina, gozando de dons gratuitos; sub'metido a uma prova, o homem disse
Nao ao convite de Deus e perdeu o estado de santidade original em que se
achava; em conseqüéncia, todos os homens nascem carecendo de tais dons
— carencia esta que se chama "o pecado original originado"; cf. PR 285/
1986, pp. 84s.
c) Significativo é o fato deque para Gn 3,15 (3,14 no texto transcrito
atrás) o autor n3o tem interpretado alguma. Na verdade, tal versículo é o
proto-evangelho ou o primeiro anuncio da Boa-Nova: a muiher entraría em
inimizade com a serpente tentadora e a descendencia da muiher esmagana a
cabeca da serpente. Entendido em sua plenitude, este texto se refere a
María SS. e a Jesús Cristo. — Ora nada disto se encontra no livro em foco; á
muiher, para o autor da obra, significa a própria comunidade de Isreel
(cf. p. 26)!
3. A historia de Caím e Abel (Gn 4, 1-16) é entendida também de mo
do alegorizante, fora da linha de pensamento do autor sagrado. Eiscomo a
explica Marcelo de Barros Souza:

"As comunidades antigás tinham uma continuacao para esta historia


do homem expulso do jardim de Deus. é difícil saber quando foi que sur-
giu esta historia de Caím e Abel. Mas provavelmente comenta o relaciona-
mentó entre comunidades conhecidas uma da outra (Caím e Abel} e o de-

151
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

sentendimento entre o povo da ropa (Israel) e o povo da cidade (cananeus)'


fpp. 26s).

A exegese científica teria sido muito útil no caso, pois estuda as carac
terísticas literarias, arqueológicas, geográficas... do texto de Gn 4, 1-16 e
tira desta análise conclusoes objetivas e ¡ndependentes de premissas precon
cebidas. Em vez de falar de desentendimento entre povo da roca e povo da
cidade, a exegese científica leva a ver em Cafm um famoso fratricida, que é
apresentado pelo autor sagrado logo após o pecado dos primeiros pais para
lembrar ao leitor que, quando o homem diz Nao a Deus, inevitavelmente se
dispSe a dizer Nao (ou a matar) a seu irmSo.
4. Em conseqüéncia das suas preocupacoes socio-políticas, Marcelo
Souza n3o focaliza devidamente a arteria central do Antigo Testamento, a
saber: há urna Alianca do Senhor Deus com o género humano travada no
paraíso, violada pelo pecado e objeto de promessas subseqüentes, que cul-
minam na restauracao dessa Alianca em Jesús Cristo. A historia bíblica
gira em torno destes dois eixos ou dois homens compendiosos: o primeiro
Adao e o segundo Ad3o (Jesús Cristo). Entre um e outro situam-se aliancas
parciais e provisorias, que sao etapas no caminho da restauracao: as aliancas
com AbraSo, com Moisés e o povo de Israel, com Davi e sua casa... O Antigo
Testamento, á luz do Cristianismo, toma o seu pleno sentido se considerado
como a historia de urna lenta pedagogía de Oeus, que prepara o homem pe
cador a receber a mensagem do Messias; Este traz ao homem muito mais
riquezas espirituais do que as que foram perdidas pelo pecado de Adá*o. A
grande graca do Messias é a vocacSo do homem a ver Deus face-a-face e
participar do consorcio da vida trinitaria (cf. Gl 4,6; Rm 8,15).
Está claro que o homem assim amado por Deus no Antigo e no Novo
Testamento deve esforcar-se por realizar em torno de si um mundo justo e
fraterno, que espelhe a Leí do Senhor e seja urna sementé do Reino de
Deus. Todavía essa tarefa socio-política nao é meta primeira da Revelacao
bíblica; vem a ser a decorréncia da mensagem teológica e dos dons estrita-
mente sobrenaturais que o Senhor Deus quis conceder aos homens através
dos tempos.

5. é necessário reconhecer que o livro de Marcelo de Barros Souza é


escrito de maneira agradável e fácil, preenchendo a sua finalidade de atingir
o povo simples. Faz muito bem ao justapor textos do Antigo e do Novo
Testamento, mostrando como certos personagens ou episodios foram apro-
fundados pelos autores do Novo Testamento; é pena, porém, que este proce-
dimentó nlo tenha tido mais ampia repercussSo na obra do autor; com efei-
to, o Antigo Testamento, em última análise, se torna patente no Novo, en-
quanto o Novo Testamento está latente no Antigo.

152
"NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM"

Passemos agora a considerares sobre o próprio método de interpretar


a Biblia.

2. COMO INTERPRETAR A BIBLIA

O Concilio do Vaticano II, fazendo eco á Tradic3o exegética católi


ca, formulou em poucas sentencas o método a ser adotado para interpretar
auténticamente a S. Escritura. Ver Constituicao Dei Verbum n? 12, cu jo
teor vai aquí reproduzido.
A S. Escritura é livro divino e humano. Divino. . . porque o próprio
Oeus fala através do texto sagrado; a Biblia nao apenas contém, mas é a Pa-
lavra de Deus.' Humano—, porque o Senhor Deus quis servir-se de homens,
que contribuiram com sua linguagem e sua cultura para a redacao do texto
sagrado.
Em conseqüéncia, a interpretado da Biblia se desenvolve em duas eta
pas: 1} análise da face humana do texto sagrado; 2) percepc3o da mensagem
divina transmitida por essa face humana.

2.1. Análise da face humana

Já que Deus falou mediante homens, o intérprete deve, antes do mais,


procurar entender o que os autores sagrados (hagiógrafos) queriam dizer em
seu linguajar próprio. Para tanto, deve recorrer aos idiomas origináis do tex
to biblico (o hebraico, o aramaico, o grego) e ao contexto histórico, geográ
fico, social... do autor bCblico a fim de entender o texto como o hagiógrafo
o entendía. Com outras palavras: o intérprete deve transpor-se para o mundo
dos judeus e nao judeus anteriores a Cristo ou do século I após Cristo, mun
do esse que tinha seus problemas próprios e seu modo peculiar de os colo
car. De modo especial, merecem atencáo os chamados "géneros literarios"
ou as normas de vocabulario e estilo vigentes entre os antigos para redigir
historia, profecías, poesia, leis. . .; com efeito, nao se pode interpretar urna
poesia como se interpreta urna lei (a poesia é essencialmente figurada, reti
cente, ao passo que a lei deve ser sempre precisa e breve).

"A verdade é apresentada e expressa de maneiras diferentes nos tex


tos. . . históricos, profétícos ou poéticos ou nos demais géneros de exprés-
sao. Ora é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas
circunstancias, o hagiógrafo, conforme a situacaó do seu tempo e de sua cul
tura, quis exprimir e exprimiu por meio dos géneros literarios entSo em uso "
CDei Verbum n? 12).

1 Esta é a verdade primeira e fundamental da fé católica: Deus se revé-


lou aos homens por via oral primeramente, e depois também por via escrita.

153
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

Isto nlo quer dizer que todo leitor da Biblia deva conhecer I taguas e
cultura orientáis, mas implica apenas que procure certa iniciagao antes de
abordar determinado livro; para tanto, podem servir-lhe as páginas de intro-
ducüo que as boas edicoes da Biblia costumam apresentar. O leitor estará
consciente de que nao deve ler a Biblia como leña urna página de jornal ou
um escrito moderno, redigido segundo as categorias de pensamento e lin-
guagem do próprio leitor.

2.2. Percepcao da mensagem .divina

Embora seja indispensável, nao basta ao intérprete conhecer exatamen-


te o sentido humano de determinada página bíblica; isto redundaría em mu-
til agio da mensagem respectiva. Em conseqüéncia, deverá colocar o texto sa
grado dentro do contexto da Revelaca"o Divina; cada página bíblica é ilumi
nada pelas demais e deve ser entendida em harmonia com estas ou segundo a
analogía (= consonancia) da fé. Afirma o Concilio:
"Visto que a S. Escritura deve ser ¡ida e interpretada naque/e mesmo
Espirito em que foi escrita, para apreender com exatidao o sentido dos tex
tos sagrados, deve-se atender com nao menor diligencia ao conteúdo e á uní-
dade de toda a Escritura, levadas em coma a Tradicao viva da Igreja toda e a
analogía da fé...
Todas essas coisas que concernem á maneira de interpretar a Escritura,
estao sujeitas, em última instancia, ao ¡uizo da Igreja, que exerce o divino
mandato e ministerio de guardar e interpretar a Palavra de Deus" rOei Ver-
brnnn? 12).
Vé-se que, em última análise, a interpretacao da Biblia está sujeita aos
criterios da fé: eremos que Deus falou aos homens e quis confiar á sua S.
Igreja o ministerio da Palavra, assegurando-lhe para isto a assisténcia do Es
pirito Santo (cf. Mt 16, 16-19; Le 22. 31s; Jo 14, 16s; 16, 13-15).
Estas normas sao válidas para todos os homens e todos os tempos.
Urna vez depreendida a mensagem teológica do texto sagrado, compreende-
se que seja preciso procurar as implicagoes concretas da mesma na conduta
dos leitores. A Palavra de Deus é viva e eficaz; quer ser transformada em ges
tos significativos; por conseguinte, ela inspira urna auténtica Ética crista", que
atenderá aos anseios de justica e fraternidade dos homens.
Resumindo, podemos propor o seguinte roteiro de interpretacao da
Biblia:

1) penetracao científica
2) percepcao da mensagem teológica
3) aplicacao á vida ética dos leitores

Examinemos agora algumas objecóes que se fazem a tal método.

I54
"NOSSOS PAÍS NOS CONTARAM" 11

2.3. Objetes

1) "A exegese científica é ideológica, porque realizada por sabios, que


sao naturalmente levados a trabalhar em favor da classe dominante contra a
classe dominada ".
Em resposta, devemos distinguir a erudicá*o ou o saber, que ¡negavel-
mente tem enorme valor, e a atitude ética com que alguém cultiva o saber.
Como tal, a erudicao é moralmente neutra; pode ser aplicada tanto para o
bem como para o mal. Por conseguinte, nüo se diga que toda erudicao é
ideológica e opressora. Ao contrario, o estudioso movido por auténtico espi
rito cristao poderá tanto melhor servir aos seus irmaos quanto mais capacita
do estiver no plano da ciencia.
2) "A exegese científica é abstraía; perde-se em teorías, que ficam
bem longe da realidade do povo simples".
Respondemos: o saber é sempre precioso; é a penetracSo dentro da
verdade, para a qual a inteligencia humana fo¡ feita. Em todo homem há
urna sede espontánea de verdade. Nao se deve, pois, desprezar o estudo
especulativo; ao contrario, é preciso que ele se torne o bem oferecido a to
dos os homens — ricos e pobres. Doutro lado, a filosofía ensina que a ver
dade é ¡nseparável do bem; por conseguinte, ela deve ter repercussoes na
vida prática. Isto é particularmente válido para as verdades da fé ou para a
mensagem escriturística; toda a erudicao bíblica so tem sentido pleno se
leva o cristífo a melhor conhecer e amar o Senhor Jesús num genui'no serví-
co aos irmaos.
Ponderemos ainda o seguinte: por nao levarem em conta a face huma
na da Biblia, muitos leitores se dao a interpretacoes fantasiosas, seguindo cri
terios meramente subjetivos, decorrentes de um fervor mal iluminado. E o
que acontece, por exemplo, com os cristaos que julgam poder depreender da
Biblia a data do fim do mundo, as catástrofes que o precederao, a existencia
de discos voadores, de habitantes em outros planetas e outras noticias "pro-
féticas"...
O cristao que é materialmente pobre, mas carece de orientacáo para
ler a Biblia, poderá deduzir desta as nocoes mais estranhas, que ele atribuirá
ao Espirito Santo. Verdade é que Oeus fala muitas vezes aos pequeninos ou
aos que, além da pobreza material, cultivam a pobreza espiritual; mas o Se
nhor Deus nao está obrigado a fazer milagres para revelar ao homem oque
este pode adquirir pelo estudo.

3) "Nao se deve refletir sobre a Biblia em favor do pobre ou para o


pobre listo redunda em assistencialismo e paternalismo),' mas sim com o

"Assistencialismo " e "paternalismo "sao palavras geralmente enten


didas em sentido pejorativo; significam a atitude de quem da' esmota, preen-
chendo necessidades momentáneas e criando dependencia para o pobre, em
vez de resolver de maneira cabal o problema dos pequeninos.

155
12 "PERCUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

pobre (este deve ser o autor da sua historia, sem ter que depender dos pode
rosos).
Respondemos: o estudioso auténticamente cristao é um pobre que,
com os seus irmaos pobres, tem o zeto pela implantadlo do Reino de Deus.
Com efeito; pobres nao sa"o apenas aqueles que carecem de bens materiaís,
mas sSo também os que tém o espirito de pobre, isto é, o desapego e a liber-
dade interior que um cristao deve ter dentro de si. Um tal cristao aplicará
sua erudica"o em favor dos semelhantes. — De resto, em vez de jogarmos os
homens uns contra os outros, procuremos fazer que se sintam solidarios
entre si, unidos na familia dos filhos de Deus. Isto será possi'vel se todos
se empenharem pela conversJo do coracao, da qual resultará certamen te um
mundo melhor.

4) "Os pobres sao o autor humano da Biblia e sao e/es, em última ins
tancia, que tém a chave da sua interpretado ".
Respondendo, devemos observar que, entre os autores dos livros sagra
dos, houve homens das mais diversas classes sociais: Isaías, por exemplo, era
um freqüentador da corte do rei Acaz (736-716); Ezequiel e sua escola eram
de estirpe sacerdotal; os autores de livros históricos do Antigo Testamento
eram provavelmente oficiáis da corte dos reís; Amos era pequeño pastor...
No Novo Testamento, Sao Mateus era cobrador de impostos; SSo Lucas, mé
dico. . . Verdade é que todos tiveram o espirito de pobre. Em conseqüéncia,
nao se pode dizer que somente os pobres no plano material tém a chave da
interpretacao bíblica; a pobreza material nao recomenda ninguém a Deus a
nao ser que acompanhada de espirito de pobreza; este é o valor decisivo
(que se traduz certamente em sobriedade e simplicidade no plano material).
— Poderfamos, alias, reformular a objecSo proposta nos seguintes termos:
O Espirito Santo é o autor principal dos livros sagrados; por conseguinte,
aqueles que tém o Espirito Santo, possuem a chave dé interpretado dos
mesmos, independentemente de categoría social.-

SSo estas algumas ponderacoes que no momento parecem importan


tes para esclarecer o uso da S. Escritura ñas comunidades do povo de Deus.
Como se vé, a Igreja, como Mae e Mestra, tem algo a dizer sobre tSo momen-
toso assunto, a fim de que nSo se desvirtué a riqueza da Palavra de Deus.

156
Nicaragua:

"(listaos sob Foso"


por Humberto Belli

Em sintese: Humberto Bel/i foi, por dez anos, sandinista militante,


doutrinado peto marxismo-leninismo, que ele adotava com entusiasmo. To
davía converteu-se ao Cristianismo por observar as incoeréncias do comunis
mo. Jornalista como era, quando viu que o Governo sandinista em 1982 o
submetia a severa censura, foi para os Estados Unidos, onde continua sua
carreira de escritor. O livro apresentado neste artigo é o depoimento de H.
Belli, que diz o que viu e experimentou do comunismo nicaragüense. Poe
freqüentemente em relevo o principio leninista: "É preciso dar dois passos á
frente e um para tras", a fím de promover o avanco comunista sem encon
trar grande resistencia da parte dos adversarios e do público perplexos. Espe
cialmente na América Latina os comunistas sabem que precisan) da colabo
rado dos cristaos para fazer a RevolucSo; daias ambigüedades e camufla-
gens que eles costumam aplicare de fatb tém aplicado na Nicaragua. 0 Gover
no sandinista se apresentou como diferente dos regimes marxistas ateus,
contando até sacerdotes em seus altos escaldes; isto vem ludíbriando a opi-
niSo pública dos próprios cristaos, que.muítas vezes tém prestado solidar/e-
dade aos torturadores dos cristaos e nao aos cristSos perseguidos na Nica
ragua.
0 autor ilustra seu depoimento apresentando numerosos fatos acom-
panhados de documentos em fac-simile, fotografías, citacdes ou transen-
coes. . . - o que torna o livro altamente interessante; tratase de informa-
poes pouco conhecidas provenientes da parte de quem tem autoridade para
falar.

Humberto Belli é nascido na Nicaragua em 1946. Ucenciou-se em Di-


re i to pela Universidade de Madrid e realizou seu Mestrado em Sociología na
Universidade da Pensilvánia (U.S.A.).
Marxista durante mais de dez anos, colaborou com o Movimento San
dinista contra a ditadura de Somoza.1 Converteu-se ao Cristianismo em

1 Sis o testemunho verbal de Humberto Belli:


"Eu estive pessoalmente envolvido com os sandinistas, primeiro em
1966, logo de 1973 a 1975, como membro de urna célula clandestina diri
gida por quem ho/e é comandante da regiao do Atlántico, William Ramírez.
Enquanto estive na FSLN tive reunioes com Tomás Borge e outros líderes,

157
14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

1977, tornando-se expressivo porta-voz do Evangelho no seu país. Após a


vitória da revolucao sandinista em 1979, Bel I i assumiu a di reglo da página
editorial do diario La Prensa, único jornal independente da Nicaragua. Mas
a imposicao de censura total em marco de 1982 levouo a deixar a patria
para continuar sua tarefa de escritor no estrangeiro. Em Janeiro de 1982 foi
nomeado pela Santa Sé Consultor do Secretariado para os Nao Crentes. Re
side atualmente nos Estados Unidos, onde formou um Centro chamado Pue
bla Inititute, para promover a resposta cristS á problemática da América
Latina (P. O. Box 520, Carden City, Michigan 48135, U.S.A.)
H. Belli publicou em portugués o livro "Nicaragua: CristSos sob Fogo",
edicao do Instituto atrás indicado, onde relata, com o apoio de documentos
em fac-simile, fotografías e depoimentos, o que tem ocorrido na Nicaragua,
a fim de que a opiniSo pública se possa orientar; os meios de comunicacSo tém
exibido entrevistas com líderes da América Central propicias a entusiasmar
os cristaos. Humberto Belli, tendo vivido intensamente as experiencias so-
mozista e sandinista, dá seu testemunho para mostrar qual a situaca*o da po-
pulacáb, especialmente dos crístSos, da Nicaragua sob o regí me sandinista.
Realcaremos, a seguir, alguns tópicos importantes do livro.

1. QUEM SAO OS SANDINISTAS?

A identidade dos sandinistas é discutida: seriam auténticos marxistas?


Ou cristSos que conseguiram urna mésela rara de valores marxistas e cris
taos?
Para responder, H. Belli lembra que, quando Fidel Castro marchou
triunfante pelas rúas de Havana em 1959, trazia um rosario pendente ao pes-
coco; procurava assim dissimular suas verdadeiras intencóes. Todavia alguns
anos mais tarde suas posicoes anti-religiosas eram evidentes. Algo de seme-
Ihante ocorre na Nicaragua: os líderes revolucionarios, vitoriosos em 19
de julho de 1979, dizem-se "sandinistas" porque inspirados por Sandino;
proclamaran!, no inicio da sua gestao, respeito pela religiSo, mas na verdade
procedem como condiscípulos de Fidel Castro na escola de Marx e Lenin;

e em determinado momento este encarregou-me da tarefa de ensinar marxis


mo a meus companheiros. Como membro da FSLN, nSo tfnhamos dúvida
sobre a natureza marxista-leninista de nossa organizado. Usávamos como
cartilha o livro 'Marxismo-leninismo para Principiantes' de George Pulitzer,
por sua clareza e simplicidade. Castro era nosso herói e Cuba nosso modelo.
Ele parecía simbolizar o valente Davi diante do Golias imperialista, enquanto
Cuba era o exemplo de sociedade onde o povo tínha resolvido libertarse
da opressio mediante um elogiável esforco coletivo que nao dava tugara in
decisos. O totalitarismo implícito nesta concepcao nio nos preocupaba"
(ob. cit. p. 11).

158
"CR1STÁ0S SOB FOCO" 15

tal escola ensina que é preciso avancar dando dois pasaos para a frente e um
para tras, a fim de que a opiniao pública se deixe confundir pelos passos
observados.
Eis alguns episodios que traduzem claramente a identidade do sandi-
nismo:
Por ocasiáo do primeiro Natal ocorrido sob o regime sandinista, o Go-
verno publicou o chamado "Memorando de Natal", que procurava politizar
o conteúdo da fé e, ao mesmo tempo, ocultava as ¡ntencóes anti-religiosas
do sandinismo, como se depreende dos dizeres seguintes extraídos do Me
morando:
"Agora, depois do triunfo da Revolucio Popular Sandinista, estamos
dirigindo a celebracao do Natal, específicamente para as enancas, e com um
conteúdo diferente, fundamentalmente político.
Enfrentar no presente momento de maneira direta, a quase cinco me
ses do triunfo, urna tradicio de mais de 1979 anos nos levaría a conflitos po
líticos e perderíamos influencia entre o nosso povo.
Além disto, a 62 anos da revolucio na URSS esta tradicio religiosa
aínda nao pode erradicarse como um todo. Da/ constituirse urna manifes
tado de revolucionarísmo pequeño burgués pretender tolher o nosso povo
em tao pouco tempo de revolucio ".
Tal documento é interessante porque mostra que os sandi nistas estao
conscientes de que nao é prudente agredir de uma vez e frontal mente a re-
ligiao; julgam melhor proceder indiretamente e aos poucos para nao cho
car o povo.

No sistema educativo da Nicaragua foram introduzidas mudancas no


sentido de implantar na escola o materialismo marxista. Isto seconcretizou,
entre outras coisas, num livreto publicado em 1981 pelo Ministerio da Edu-
cacao com o título "Dialética: categorías e leis fundamentáis". Este manual
foi imposto a todos os professores e alunos de qualquer escola da Nicaragua;
á p. 4 o texto analisa a diferenca entre "idealismo subjetivo" e "materialis
mo dialético". O primeiro, segundo a cartilha, afirma que "Deus criou o
mundo e a humanidade com um propósito determinado", ao passo que o
materialismo dialético ensina que "o mundo n3o teve principio e que a na-
tureza sempre existiu. . . 0 desenvolvimento das ciencias confirma que o
materialismo é a verdadeira filosofía científica e a única corrente filosófica
que proporciona respostas claras conforme a realidade objetiva.
No dia 1/5/81, por ocas ¡a o do Oía Internacional do Trabalho, um car-
taz gigantesco foi colocado pelos sandinistas na fachada da catedral arruina
da de Managua. Nele se lia: "Marx, Engels,.Lenin: Gigantes do Pensamento
Proletario". Com imagens de Lenin, Fidel Castro e Marx, "ornamentaram"
os edificios públicos.
O totalitarismo de esquerda do Sandinismo manifestase ainda:
- na sufocacao gradual do pluralismo político. Os Partidos nao san-

159
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

dinistas tiveram suas sedes invadidas; a maioria dos seus dirigentes, todos
opositores do regime de Somoza, foram para o exilio: assim Wilfredo Mon-
talván, do Partido Social Demócrata; Alfonso Róbelo, do Mov¡mentó De
mocrático Nicaragüense; José Davial M., do Partido Social Cristao; Edgard
Macías, do Partido Popular Social Cristao; e Adolfo Calero, do Partido Con
servador Nicaragüense;
— na supressao de Organizares Trabalhistas independentes. Urna vez
no poder, os sandinistas criaram seus Sindicatos próprios: a Central Sandi-
nista dos Trabalhadores (CST) e a AssociacSo dos Trabalhadores do Campo
(ATC). Em 1981, a CST filiou-se á Federacao Mundial dos Sindicatos con
trolada pela URSS e comecou a ser imposta aos operarios como "a única
Central verdadeiramente representativa da classe operaría". Os trabalhadores
que se unissem a outras organizacoes, eram despedidos — o que violava o di-
reitp as associacfies livres reconhecido pela DeclarapéEo Universal dos Direitos
do Homem, que a Nicaragua assinou em 1948;
— na criacüo de grupos de choque destinados a intimidar os oposito
res. Essas tropas armadas e motorizadas agrediram disidentes políticos, jor-
nalistas independentes e pastores da Igreja, entre eles tres bispos católicos,
além de numerosos fiéis. Daniel Ortega, o chefe do Governo sandinista, cha
ma-as "tropas divinas";
— na confusSo entre Estado e Partido. Os sandinistas seguem o padrfo
marxista segundo o qual Estado e Partido se identificam. O exército nicara
güense é o "Exército Popular Sandinista"; seus soldados sSo credenciados
como membros da Frente Sandinista de Libertadlo Nacional (FSLN). Cri
ticar o marxismo na Nicaragua significa ser inimigo da nacao; todos os an
ticomunistas sao "assassinos"!
Varias outras manifestares públicas da vida nicaragüense evidenciam
que o sandinismo é urna forma de marxismo camuflado pela ambigüidade
para nao assustar a populacao crista do país. O próprio Fidel Castro, em dis
curso proferido aos 26/7/79 (ou seja, pouco após a vitória do sandinismo),
recomendou ao Governo da Nicaragua procedesse mais devagar em suas re
formas do que Fidel procederá; e isto, porque a Nicaragua nSo é urna ilha:
além do qué, tem urna populacao camponesa independen te e aguerrida,
muito dedicada a Igreja e aos valqres da fé.

2. SANDINISTAS E CRISTÁOS

1. Os comunistas estSo convencidos de que, para tomar o poder nos


países da América Latina, precisam da colaborarlo dos cristaos. É, entre ou-
tros, o cristao chileno que se fez marxista, Pablo Richard, quem o diz:
'"Fidel nos convidou a ir a Cuba. Ficamos tros semanas conhecendo
o processo cubano, e por fim passamos quase dez horas discutindo com o
comandante Fidel os temas da alianca entre marxistas e cristaos. Também

160
"CRISTAOS SOB FOGO" 17

nos ajudaram muito as famosas palavras de Che Guevara: 'Quando os cris


tSos revolucionarios se atreverem a dar testemunho integral, nesse día a re-
volucao latino-americana será irreversfvel'. Fidel estava profundamente con
vencido de que nao haveria RevolucSo na América Latina sem os cristSos"
(Pablo Richard, La experiencia de los Cristianos en Chile durante la Unidad
Popular, em Cristianos Revolucionarios // n? 4, Managua 1980, p. 31).
Esta conviccao levou e leva os sandinistas a dissimular o seu espirito
anticristSo. A principio, alegavam a presenca de varios cristSos revolucio
narios, inclusive sacerdotes, nos altos escaldes do Governo.
Os cristaos revolucionarios sio os chamados "Cristaos para o So
cialismo", que assumem o marxismo como a única via de libertacao social.
0 Governo sandinísta aproveita-se da colaboracSo destes para difundir men-
sagens como a seguinte, proclamada no com eco de 1981: "Os verdadeiros
cristSos, os cristSos sinceros, abracam a cpcao da revolugSo sandinista, que
é hoje, na Nicaragua, o caminho em direcSo á opcSo pelos pobres" (Jornal
Barricada, de 02/2/81).
A conseqüéncia deste principio é que os cristSos nao sandinistas nao
sSo cristSos verdadeiros ou sinceros. Portanto, o criterio para distinguir dos
falsos cristaos os auténticos discípulos de Cristo é político ou é o compro-
misso com a FSLN. Quem nao se compromete com esta, é infiel nao so ao
povo (que a FSLN supSe representar), mas também a Cristo. O compromis-
so com a FSLN há de ser incondicional ou absoluto. É o que diz o jesu íta Pe.
Juan Hernández Pico, do Instituto Histórico Centroamericano de Managua:
"Para um cristao nao existe outra maneira de mostrar sua fé no Reino
de Deus a nao ser que se comprometa absolutamente com um projeto rela
tivo".
Pablo Richard vai mais adían te:
"Nao se trata de procurar no Evangelho urna justificativa para o nosso
compromisso, mas dá-se totalmente o contrario: a partir de um compromis-
so que é assumido por si e por sua própria racionalidade, nos queremos re
pensar toda a nossa fé" (Volver a repensar nuestra lé.na obra citada atrás).
Como se vé, nessa perspectiva o valor tido como inquestionável e dog
mático é a RevolucSo sandinista; a própria fé há de ser adaptada aos ditames
desta, e nao vice-versa. Por conseguinte, o pecado se identifica com o capita
lismo; a salvacSo se consegue lutando contra este por meio da revolucSo ar
mada; o Messias é o Partido Revolucionario, que leva o povo ao verdadeiro
Reino de Deus ou ao Socialismo; assim como Deus se encarnou num ho-
mem, assim os cristSos devem encarnar-se num projeto político, que é a re-
volucao marxista. Jesús foi o primeiro revolucionario dedicado á libertadlo
política de Israel. Em conseqüéncia, dizem os cristSos revolucionarios com
Juan Hernández Pico S. J.: "No nos bastó Jesucristo" (em Cristianos Revo
lucionarios II); com efeito, para eles, o Cristianismo necessita da "mediacao
de urna teoría histórica e de urna praxis revolucionaria invariavelmente mar
xista, a fim deque as promessas comidas no Evangelho se tornem reaüdade".

161
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

O Pe. Ernesto Cardenal, hoje Ministro da Cultura do Governo ¡andi


nista, chegou a declarar á imprensa:
"Cheguei á revoluto por meio do Evangelho. Nao fot pela leitura de
Marx, mas pela de Cristo. Pódese dizer que o Evangelho me fez marxista. O
marxismo é a única solufSo para omur.do ".
"O verdadeiro cristSo nao somente pode, mas deve ser marxista... 0
comunismo vem a ser um elemento essencial do Cristianismo, como provam
alguns textos de SSo Paulo, em que este emprega o termo grego koirtcnfa
(comunhao) para exprimirá partilha comunitaria dos bens materiais".
As palavras de Ernesto Cardenal só se podem entender se se abstrai
daquilo que o Cristianismo tem de específico, ¡sto é, o seu relacionamento
com Deus e os valores transcendental. Somente o Cristianismo esvaziado de
sua própria identidade pode levar ao marxismo ateu ou assimilar o comunis
mo ateu.

2. Os cristaos revolucionarios nao pregam aos marxistas no intuito de


atrai-los a Jesús. É o contrario que se dá: pregam aos cristSos para atrai-los
a Marx; converter os cristSos ao marxismo é, na verdade, o mais forte empe-
nho dos revolucionarios. O Instituto Histórico Centroamericano de Mana
gua, dirigido pelo Pe. Alvaro Arguello, imprimiu numerosos folhetos acense-
Ihando os cristlos a nlo ter medo do marxismo e apresentando Fidel Castro
como amigó do Cristianismo.
O ateísmo de Marx nao perturba os cristaos revolucionarios. Para es
tes, crer ou nSo crer em Deus nao tem importancia fundamental. O Pe. Mi
guel D'Escoto, Ministro das Relacoes Exteriores do regime sandinista, decla-
rou em 1980 ao jornal La Prensa:
"Há pessoas que se dizem ou se confessam atetas, e nos temos de res-
peitar que as pessoas se digam atéias. Na verdade, do ponto de vista cristSo,
isto nao tem maior importancia. O que tem importancia, é o comportamen-
to das pessoas, a prática, nao a teoría".
Referindo-se a Alejandro Bermúdez, conhecido comunista nicaragüen
se que faleceu em 1979, o Pe. D'Escoto continuou:
"Ele era, apesar de que teóricamente se tenha dito ateu, urna das
pessoas mais crentes."
Se perguntássemos a D'Escoto por que assim julga, respondería que
Bermúdez lutava pela revolucao e nela acreditava. Tal concepcao bem revela
um conceito de fé secularizado ou despojado de seu conteúdo religioso.
Alias, o Credo sandinista, como foi publicado em El Nuevo Diario de
07/1/84, professa urna mensagem laica ou arreligiosa:

162
"CR1STÁ0S SOB FOGO" 19

CREDO SANDINISTA

por Dionisio Herrera y Canales

"Creio em Sandino, Pa¡ de Nossa Revoluto Popular Anti-Imperialista,


que nasceu de mae camponesa proletaria, descendente da casta de Diriangén,
Estrada. Castro e Zeledón.

Foi proletario com consciéncia de classe, autodidata, patriota e guer-


rílheiro nacionalista, e, como o David bíblico, derrotou o Golias.

Creio em Sandino organizador do EDSN, formado por operarios e


camponeses, que lutou em montanhas, vales e povoados, e cidades contra
traidores, entreguistas e aínda contra as legioes do imperio tanque, defenden-
do nosso solo patrio, nossa soberanía e dignidade nacional.
Foi traído e assassinado por um Judas, "fifho" do Tio Sam, que em
pagamento recebeu anos de ditadura militar e muitos dólares. Os assassinos
e profanadores de seu cadáver foram anistiados por urna cómplice comissib
livre-conservadora.

Creio em Carlos Fonseca, seu dileto filho, que herdou seus ideáis e
tíficas de luta guerrilheira, que foi fundador da FSLN, nossa vanguarda po
lítico-militar, e que no altar da patria está ao lado de seu pai revolucionario,
cuja doutrina enriqueceu com novos pensamentos filosóficos e revoluciona
rios de conteúdo proletario e que transmitiu a seus irmios de luta mais che-
gados.
Creio na Revoluto Popular Sandinista e na sabia conducSo político-
militar de nossa Direcao Nacional da FSLN que traba/ha para e pelo bem-es-
tar das massas populares nicaragüenses antes exploradas e margina/izadas, e
luta pela paz na América Central.

Creio ñas doutrinas e lutas de Marx, Engels, Lenin e Che, grandes


mestres e guias da classe trabalhadora, que é forca produtiva e verdadeiro
motor da luta de classes, que enterraré para sempre a classe exploradora, an-
ti-cristae desumanizada.

Creio na construcao da sociedade socialista marxista-leninista. Creio


na imortalidade e respeito por nossos heróis e mártires. Creio no poder po
pular em maos dos operarios e camponeses, e em sua existencia até a consu-
macao dos séculos. Amém".

3. Uma das táticas utilizadas pelos revolucionarios é a de dividir a


Igreja, jogando os fiéis contra os bispos, especialmente contra Mons. Miguel

163
20 "PERGUNTEE RESPONDEREMOS" 287/1986

Obando y Bravo, arcebispo de Managua.1 Com outros termos: propunham a


promocao da Igreja Popular ou dos pobres (ou dos cristaos sandínistas) con
tra a Igreja institucional dos ricos, que é a Igreja oficial; esta seria "arrogan
te, autoritaria, contra-revolucionaria, inimiga do povo".
Em julho de 1981, por exemplo, os sandinistas suspenderam a trans-
missáo da Missa dominical celebrada pelo arcebispo já havia mu i tos anos.
Logo se impuseram fortes restricoes a emissora de Radio católica, a única do
país, que, alias, hoje está supressa. Os jomáis também passaram a ser seve
ramente censurados para que nao apoiassem a Igreja oficial na sua luta con
tra o sandinismo. O Ministerio do Interior chegou a determinar que as ho
milías e os sermSes de maior alcance deveriam ser previamente censurados
pelo Governo.
'Alguns sacerdotes passaram a ser perseguidos em sua honra e dignida-
de; com efeito, foram armadas citadas, especialmente contra o Pe. Bismarck
Carbatlo, porta-voz do arcebispado, que foi fotografado em lugar compro
metedor sem que tivesse a mínima culpa. Alguns sacerdotes foram expulsos
do país a título de "reacionários" e por falsas acusacóes, que suscitaram pro
testos da Radio Vaticana, dos bispos da Venezuela, de Costa Rica e dos Es
tados Unidos.
4. Em conseqüéncia da perseguidlo á Igreja hierárquica, registrou-se
um fato paradoxal: a "Igreja dos pobres" tornou-se rica e a "Igreja dos ri
cos" ficou sendo pobre. Com efeito; os cristaos revolucionarios receberam
vultosa ajuda económica internacional por parte de protestantes e nao cató
licos: assim, por exemplo, em 1983, o Conselho Mundial das Igrejas doou
176.000 dólares ao Centro Valdivieso (Sandinistas cristaos); o Conselho Na
cional das Igrejas dos Estados Unidos deu ao mesmo a importancia de
365:329 dotares; o Comité Metodista Unido para a Ajuda Ihe deu 100.000
dólares; o Programa Presbiteriano Unido para Combater a Fome doou
10.000 dólares. A Junta Global dos Ministerios da Igreja Metodista Unida
entregou 25.000 dólares. En tremen tes o Governo, por decreto de agosto
de 1982, proibiu que a Igreja Católica e as instituicoes particulares recebes-
sem doacoes do estrangeiro. Assim os católicos fiéis á Igreja oficial carecem
de centros de comunicacio e mal podem fazer chegar ao estrangeiro as no
ticias concernentes á sua dolorosa condicao de perseguidos.

1 Mons. Miguel Obando y Bravo, arcebispo de Managua desde 1970,


opunha-se ao Governo de Somoza para defender a causa dos camponeses;
as denuncias que fazia, de sucessivas violacoes dos direitos humanos, vale-
ram-lhe ameacas e um atentado contra a sua vida, além de campanhas de
difamafSo, que Ihe atribuiam o titulo de "comunista". Mons. Miguel Oban
do y Bravo apoiou o Governo sandinista até se patentear a índole anticris
ta do mesmo; desde entao é arauto da verdadeira democracia na Nicaragua.

164
"CRISTÁOSSOBFOGO" 21

Notemos aínda que a "Igreja dos pobres", rica como é, veio a ser en
cabezada por urna élite de ¡ntelectuais, em maioria estrangeiros, ao passo
que a Igreja institucional é pobre e constituida principalmente por indígenas
(os indios Meskito, entre outros) e goza de respaldo esmagador entre os po
bres da Nicaragua; em 1981 urna pesquisa realizada em 900 lares demons-
trou que Morts. Obando, arcebispo de Managua, era a figura mais popular
do país {a partir desta pesquisa, alias, o Governo promulgou urna lei que
proibia a realizacao de pesquisas sem autorizacao do Estado).

3. A VISITA DO PAPA EM 1983

Preparando sua visita á Nicaragua, o S. Padre JoSo Paulo II enviou aos


bispos do país urna carta datada de 29 de ¡unho de 1982, em que expressava
sua solidariedade com a Igreja naquele país e se opunha á fundacao da Igreja
Progressísta que o Governo sandinista planejava. Ora o Ministerio do Interior
proibiu a publicacio de tal carta na Nicaragua.

Eis os fatos que acompanharam a visita do Papa, em marco de 1983, á


Nicaragua:

1) Os sandinistas dificultaram ou detiveram o tráfego na maior parte


do país para nSo permitir o encontró dos fiéis com o Sumo Pontífice. JoSo
Paulo II, consciente do que ocorria, saudou "os milhares de nicaragüenses
aos quais nao pdde dirigir-se como desejara".
2) O Governo impediu que as pessoas se reunissem com antecedencia
nos lugares onde o Papa devia aparecer. Em Managua a polícia disparou ar
mas automáticas sobre os fiéis que procuravam conseguir acomodacoes ñas
primeiras horas do dia.
3) JoSo Paulo II foi interrompido por gritos e alaridos durante o seu
sermao e na parte restante da Missa em Managua. Durante a Comunh3o, por
exemplo, um agitador sandinista gritou através de potente megafone: "San
to Padre, se realmente o senhor é o representante de Cristo na térra, exigi
mos que seja solidario conosco". A própria policía dirigía as intervencoes
estranhas.
4) Técnicos do Governo distribuiram microfones entre os grupos pro-
governamentais e os ligaram ao sistema principal de alto-falantes, amplifi
cando os gritos de "Poder Popular!", que ¡nterrompiam continuamente as
palavra do Papa. Em repetidas ocasioes o S. Padre pediu silencio.
5) Durante a celebracSo da Missa, os nove membros do Diretório Na
cional da FSLN - incluindo o Presidente Daniel Ortega - fizeram causa co-
mum com os agitadores, movendo o braco esquerdo com a mSo cerrada em
punho e gritando: "Poder Popular! Poder Popular!"
6) A Igreja e o Governo haviam decidido que a visita papal seria
apolítica ou exclusivamente religiosa; por isto o clero pediu aos fiéis que se
abstivessem de demonstracoes políticas. Nao obstante, os sandinistas leva-

165
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

ram piquetes e cartazes políticos, gritando seu slogans atravésde megafones


e concluiram a Missa papal cantando o hiño do Partido.
É de notar que tais manifestacóes nao foram atitudes espontáneas do
povo, mas, sim, acoes premeditadas que partidarios da FSLN devidamente
tre ¡nados levaram a cabo.

4. OS JOVENS E O SERVIDO MILITAR

Aos 29/8/1983 a Conferencia dos Bispos da Nicaragua publicou uma


Carta Pastoral que questionava a legitimidade da lei do servico militar obri-
gatório para todos os jovens. A argumentado dos Bispos — compartilhada
por numerosos jovens e seus pais — procedía do fato de que o exército sandi-
nista é uma organizacao do Partido e nSo da patria; forcar todos os cidadSos
a servir a essa instituidlo seria uma violacao das consciéncias. O diario Barri
cada publicou tal documento dos Bispos, insinuando que era uma prova de
"traicao" do episcopado nicaragüense. Um mes mais tarde, aos 30 de outu-
bro de 1983, produziu-se uma onda de ataques coordenados contra vinte e
duas igrejas aproximadamente situadas em diversos pontos do país: as tropas
de choque, armadas de paus e armas de fogo, agrediram durante a celebra-
gao da S. Missa: destrocaran! portas e janelas e espancaram brutalmente os.
fiéis, inclusive o Bispo Auxiliar de Managua e outros sacerdotes. Uma pro-
cissao em honra da Virgem Maria também foi alvo, nesse dia, de tratamento
similar. Ao anoitecer, novos grupos atacaram outros Templos.
O jornal "L'Osservatore Romano" do Vaticano comentcu os fatos co
mo sendo provocacao e expressio de intolerancia religiosa (2/11/1983).
O Governo sandinista convidou entao a Igreja ao diálogo: oferecia-lhe
a suspensSo dos ataques f i'sicos em troca de uma declaragao eclesiástica que
condenasse a agio dos contra-revolucionarios e as ameacas de invasKo estran-
geira. A proposta era comprometedora. Se a Igreja condenasse a contra-revo-
lucao, os sandinistas explorariam o fato em seu favor; se na*o o fizesse, pode-
ría ser acusada de traidora da Patria. Os Bispos nicaragüenses, representados
por Mons. Pablo Vega, Presidente da Conferencia Episcopal, responderam:
"É muito difícil dizer qual invasSo seria a mais grave: a invasao militar de
fora ou a invasao ideológica de dentro que está ameacando todas as aspira-
coes e necessidades fundamentáis do homem". Nao houve reacao ¡mediata
dos governantes sandinistas.
NIo obstante, muitos jovens cristSos nicaragüenses passaram a sofrer
serios vexames: a juventude sandinista, protegida pela Policía, resolveu dar
buscas em casas particulares, ónibus, restaurantes, salces de cinema, igrejas,
pedindo aos jovens em idade militar que mostrassem suas carteiras de mem-
bros do Exército; quem nio tivesse a sua, era violentamente agredido e su-
jeito a represalias académicas ou outros castigos.

166
"CRISTÁOS SOB FOGO" 23

5. HUMANISMO REVOLUCIONARIO?

1. Corre por vezes o rumor de que os sandinistas sao revolucionarios


muito humanos; n3o se terao vingado dos seus opositores nem terao realiza
do execucSes sumarias.
Ora tres Comissoes de magistrados ¡nvestigaram as ocorréncias na Ni
caragua e puderam atestar o uso da violencia brutal e milhares de assassina-
tos. Tais foram a ComissSo Permanente de Oireitos Humanos Nicaragüense,
a Comissao de Juristas Nicaragüenses e a Comissao Internacional de Juris
tas das Nap6es Unidas. - Humberto Belli em seu livro exibe depoimentos,
documentos e fotografías que comprovam a brutalidade desumana aplicada
pelos revolucionarios a quem nao se quisesse submeter á ideología implanta
da.
Entre outros, merece ser citado o caso dos indios Miskito, populapáo
de aproximadamente 80.000 pessoas, que viviam na regiá"o quase desolada
da costa atlántica, alimentando-se de caca e pesca: como tivessem suas carac
terísticas culturáis e religiosas próprias, que o sandinismo nao tolerava, so-
freram, em parte, remocao para acampamentos sob resguardo militar (cam
pos de concentrado); em parte, fugiram para Honduras, onde subsistem co
mo refugiados em condicoes muito precarias; em parte, permanecen) no li
toral atlántico, sujeitos á lei marcial e á contfnua provocapib policial. Co
menta H. Belli:
"Caso queirantos identificar a causa decisiva da tríbulacSo dos Miski
to, diremos que é a determinacao dos sandinistas de tornar comunista a so-
ciedade nicaragüense — pretensao que viola as tradicoes e aspiracdes mais
profundas do povo Miskito, simples, religioso e outrora pacífico. A remocSo
massiva de populacoes inteiras. .. tem sido constante na prática marxista,
ao redor do mundo. Stalin 're-assentou' os Kulaks (camponeses russos) ñas
décadas de vinte e trinta; os cambo/anos vermelhos 're-assentaram' sua po-
'pulacao urbana na década de setenta. O comunismo encama um dos maiores
esforcos que se podem encontrar na historia para impor, sem consideracao
de custo humano, urna sociedade uniformizada sob um Estado absoluto. As
diferencas individuáis, os direitos da pessoa ou das minorías culturáis ou
étnicas nSo contam. Do ponto de vista marxista, a destruicáb daqueles que
se negam a integrarse á grande utopia é algo completamente justificado.
A tragedia dos Miskito é só o capítulo mais recente de um longo histórico
comunista de supressao das minorías étnicas" (pp. 85s).
2. Os avancos sociais alcanzados pelo Governo sandinista sao muitas
vezes apresentados como contra-peso do que se atribuí de negativo ao mes-
mo regime. Humberto Belli observa o seguinte:
Esses progressos sociais nao estao dev idamente documentados; seria
preciso demonstrar melhor a sua realidade histórica. Além do qué, tém
aspectos que costumam passar despercebidos aos observadores estrangeiros.

167
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

"A campanha de alfabetizado, por exemplo... Um exame mais minu


cioso da realidade revela que a campanha de alfabetizado fot possivel pela
participado e o apoio logfstíco e financeiro de toda urna gama de agrupa-
mentos alheios ao Governo. Na campanha participaran) todas as escolas ca
tólicas; as associacóes de país de familias cristas deram vasto apoio logfstico
aos analfabetos; as igrejas católicas e evangélicas exortaram todos os seus
membros a participar; o entao Presidente da Conferencia Episcopal, Mons.
Otando, viajou aos Estados Unidos para coletar fundos para a Campanha;
muitos empresarios também deram o seu apoio a esta tarefa. Por outra par
te, a campanha foi principalmente financiada com fundos provenientes dos
países ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e da Alemanha Fede
ral, e 70% do custo total foi coberto por fontes norte-americanas tanto pú
blicas como privadas. Em constraste, a URSS fomeceu aproximadamente
J % do total" (p. 87).
"No referente a me/horas ñas áreas de saúde pública, habitacao e re
forma agraria, também resulta difícil discernir entre propaganda e política.
A falta de dísponibilidade de dados esta tísticos confiáveis, assim como o
controle aplicado a todos os aspectos da administracao pública nicaragüen
se impossibilitam a avaliacao objetiva destes fatos" (p. 88).

6. CONCLUSÁO

. O relatório de H. Belli termina com algumas reflexñes a guisa de


conclusao, que podem ser assim compendiadas:
A populacho nicaragüense está sob um regime que, apesarde todas as
promessas de respeito á religiao e aosdireitos humanos, é urna ditadura mar-
xista-leninista.
A participapao dos crinaos na vitaría do sandinismo foi de grande con
veniencia para este. Sim;deu foros de credibilidade a pretensSo sandinista de
ser um regime novo, no qual Cristianismo e revolucSb (marxista) poderiam
caminhar juntos. Os cristaos sandinistas convidam seus irmaos na fé a se
aproximar de Marx, mas nSo convidam os marxistas a se aproximar de Cris
to; a mao é única rumo ao comunismo ateu.
A teología pro-marxismo apresentada por tais cristaos nSo é produto
da reflexáó do povo nicaragüense; mas é concebida em salas de aula e biblio
tecas confonáveis dos Estados Unidose da Europa;é levada para a Nicaragua
por estrangeiros, que também f inanciam a sua propagacSo. A grande maioria
dos cristá'os nicaragüenses, principalmente os mais pobres, nao tém dado
grande importancia a esse Evangelho penetrado de marxismo. Bem observa-
va JoSo Paulo II em Puebla: "Como por instinto evangélico, os fiéis humil
des e simples captam espontáneamente quando se serve a Igreja e ao Evan
gelho, e quando se procura esvaziar seus conteúdos ou asfixiá-los em pro-
veito de outros interesses" (III, 6).

168
"CRISTAOS SOB FOGO" 25

Por último, Humberto Belli nota, com certa dor, que os crinaos do
mundo inteiro pouco apoio tém dado aos seus irmaos na fé nicaragüenses
que sofrem perseguicao. Muitos assim procedem por ignorarem a situacao
real da Igreja naquele país; outros talvez, porque se deixam fácilmente em-
polgar por messianismos políticos de ocasiio, esquecendo-se da originalidade
e da riqueza insondável da mensagem de salvaclo crista. Eis a propósito um
dos depoimentos mais significativos:
Armando Valladares, poeta cubano cristao, passou vinte e dois anos
na prisao em Cuba até 1982. Conta que a experiencia mais dolorosa dos cris
taos cubanos era o apoio que os cristaos no estrangeiro davam ao Governo
marxista em vez de o dar aos cristaos perseguidos Dor este Governo:
"Durante todos estes anos, com o objetivo de forjar-nos a abandonar
nossas crencas religiosas e para desmoralizar-nos, os doutrinadores comu
nistas usavam constantemente declarares de apoio á revolucio cubana pu
blicadas por alguns representantes das igrejas cristas americanas. Cada vez
que se publicava um folheto nos Estados Unidos, cada vez que um sacerdote
escrevia algum artigo, apoiando a ditadura de Fidel Castro, mostravam-nos
urna tradufSo e isso para nos, prisioneiros políticos cristaos, era pior do que
os golpes que recebfamos ou a fome á qual nos submetiam. Enquanto espe-
rávamos com ansiedade o abracó de solidariedade da parte de nossos irmaos
em Cristo, de maneira incompreensfvel para nos os que recebiam este abraco
eram os nossos torturadores" (p. 8).

Precisamente o objetivo do livro de H. Belli é informar documenta


damente os leitores de Ifngua portuguesa acerca do que padecem os cris-
tSos da Nicaragua ou a quase totalidade da populacSo nacional, cerceada
em seus direitos humanos pelo marxismo, é importante que o público leia
o depoimento de quem conhece o comunismo por experiencia direta. A
palavra de H. Belli é particularmente ponderável porque parte de quem fo¡
adepto militante do marxismo e se decepcionou com o que viu ñas fileiras
comunistas. Mais de urna vez o autor p5e em relevo no seu relato a tática
marxista de "dar dois passos á frente e um passo para tras", a fim de confun
dir a opiniáo pública e assim avancar sem suscitar a resistencia que encontra
ría urna campanha nlo camuflada; cf. pp. 29. 57. 60.

O Cristianismo possui em sua mensagem diretrizes lúcidas que podem


contribuir poderosamente para a solucSo dos problemas sociais da América
Latina sem o recurso á violencia. Já disse mais de urna vez Joao Paulo II
que a doutrina crista nSb precisa de complementacSo heterogénea para res
ponder aos anseios dos homens.

O livro de H. Belli pode ser solicitado gratuitamente ao endereco indi


cado á p. 158 deste fascículo.

169
Que diferen?a há entre

O Homem e os Animáis Irracionais?

Em sfntese: É freqüente perguntar se no homem existe alma espiritual


ou algo que transcenda a materia. Há quem responda negativamente, afir
mando que corpo e alma nao sao senáo duas facetas da mesma realidade.
A questao se resolve mediante o exame dasatívidades do ser humano;
se estas sao imateríais ou uitrapassam as possibiiidades da materia (como de
fato uitrapassam), supoem um principio vital ¡material ou espiritual; sendo
espiritual, este nao tem origem a partir da materia nem perece com a mate
ria, mas é dotado de imortalidade. — As atividades que permitem chegar a
tal conclusao sSo: a formulario de nocoes abstraías ou universais, a lingua-
gem simbólica, o exercfcio da liberdade de arbitrio, a consciéncia que o
homem tem de si mesmo, a cultura e o pmgresso, o cultivo de valores moráis
e religiosos.

Muitas teorías sao hoje oferecidas ao estudioso para ilustrar a identi-


dade da criatura humana; seria um macaco aperfeicoado? E, caso se diga
que tem alma espiritual, será que esta se distingue do corpo? Pode-se admi
tir a dualidade (nSo o dualismo) de corpo e alma?1
Em nossa resposta, exporemos, antes do mais, algumas nocoes básicas,
a respeito das quais se exige clareza para poder raciocinar. A seguir, exami
naremos dados de experiencia, que nos sugerirSo algumas reflexSes. O as-
sunto já foi abordado em PR 226/1978, pp. 423-434; volta agora um tanto
enriquecido.

1. NOQOES BÁSICAS

Faz-se mister ter conceitos claros de corpo (materia) e alma (espirito).


A materia é urna realidade extensa, dotada de figura, cor, peso. . . 0
corpo humano é materia viva ou materia (calcio, ferro, hidrogénio, oxigé-

1 Dualismo é a distincao que implica oposicao, como existe entre luz


e trevas, bem e mal... Dualidade é a distincao real que nao implica oposi
cao, como existe entre homem e mulher, corpo e alma.

170
O HOMEM E OS ANIMÁIS IRRACIONA1S 27

nio...) penetrada por um principio vital, que a faz funcionar como um toHo
orgánico ou um organismo.

Dizemos que esse principio vital do homem (ou a alma humane) é


espiritual. - Que é espirito?
Espirito é um ser real, que nSo tem tamanho nem cor, nem sabor,
nem peso..., mas é dotado de inteligencia e vontade; é pelas manifesta
res intelectivas, que nada tém a ver com vozes, toques, imagens..., que
reconhecemos a existencia do espirito. Distinguimos tres modalidades de
espirito:

[nao criado: Deus


Espirito^ I para v¡ver sem corpo: anjo
[criado <
I para se unir a um corpo: alma humana

A alma humana, como principio vital, é responsável por todas as fun


coes vitáis do corpo a que está unida: funcoes vegetativas (alimentar-se, cres-
cer, reproduzir-se...), funcoes sensitivas (conhecer objetos concretos, mate-
riaisl, funcoes intelectivas (conhecer nocoes abstratas, universais, def inicdes,
proporcoes entre meios e fim...).

Os estudiosos tém examinado atentamente o comportamento do


homem e dos animáis irracionais. Em conseqüéncia deste estudo, pode-se
instituir o seguinte raciocinio:
1) O homem se distingue dos animáis irracionais em seis, ao menos,
das suas expressoes ou atividades características: formulacao de conceitos
abstratos e definicSes, linguagem simbólica, exercicio da liberdade de arbi
trio, consciéncia de si mesmo, cultura e progresso, cultivo de valores moráis
e religiosos;
2) ora essas atividades sao imateriais: o seu objeto nao apresenta ta
manho, extensao, peso, cor...;
3) por conseguinte, existe dentro do homem um principio de ativi
dades que deve ser ele mesmo ¡material ou isento de tamanho, extensao,
peso, cor..., pois ninguém produz o que nSo tem; tal principio é chamado
"a alma humana espiritual", a qual conseqüentemente se distingue da mate
ria ou do corpo do homem.
Iniciemos agora o nosso exame de fatos acompanhado de ref lexoes.

2. AS ATIVIDADES TILICAS DO SER HUMANO

Seis sSo essas atividades, a comecar pelo pensamiento abstrativo.

171
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

2.1. Formulacao de conceitos universais

Distinguimos conceitos concretos e conceitos universais.


Conceitos concretos sao aqueles que nos apresentam um objeto preci
so e singular: esta rosa, este menino, este beija-flor..., com seu tamanho,
sua cor, seus traeos individuáis. Na mente temos a imagem exata de tal obje
to bem determinado.
Conceitos universais ou abstratos sao aqueles que nos apresentam os
elementos essenciais de tal ou tal objeto concreto: por exemplo, nesta rosa
que vejo agora, há tragos que só ela tem (tal cor, tal tamanho...) e há traeos
que todas as rosas e todas as flores tém (esta rosa é flor, como o cravo é flor,
como a violeta é flor...}; o conceito abstrato ou universal de flor é, pois,
aquele que prescinde dos trapos próprios desta rosa e me apresenta aquilo
que a flor como flor (¡ndependentemente de ser rosa, cravo ou violeta...)
deve ter; é universal porque tal conceito convém a toda e qualquer flor.
Pois bem. 0 hotnem é capaz de formular conceitos universais, ao passo
que os irracionais nSo sao tais.

2.1.1. Observando o ser humano

O homem, e só o homem, é capaz de conceber nopSes abstraías ou


universais: posta diante de diversos individuos humanos, por exemplo, um
preto, outro branco, um gordo, outro magro, um velho, outro jovem..., a
mente concluí que nSo é o tamanho nem a cor, nem o sexo, que faz a pessoa
ser gente, mas é o fato de ser v ¡vente racional...
Pois bem; o conceito de vivente racional, como o de flor, o de pássa-
ro. . . é um conceito ¡material, ao qual nSo é inórente extensSo, tamanho,
peso... Quando digo "vivente racional", na"o devo imaginar um homem
concreto, porque a mulher também é vivente racional; nao devo imaginar
um adulto concreto, porque a enanca também é vivente racional; em suma,
nada posso imaginar de particular e concreto, porque precisamente tenho
um conceito que está para além de todos os pormenores contingentes e
abrange apenas o essencial de cada ser. Muitos outros exemplos podem ser
aduzidos para provar que o homem é capaz de conceber nocoes universais;
assim virtude (n§o esta ou aquela virtude), justiga (nao este ou aquele ato
de justiga)... s3o nocoes ñas quais nao posso apontar lado direito e lado es-
querdo, parte de cima e parte de baixo... como os aponto numa imagem;
nSo posso afirmar que sao de hoje ou de amanha, porque sSo de todos os
tempos. Quem pode dizer qual seja a auténtica imagem da justipa? - Urna
mulher com os olhos vendados, trazendo uma balanga na mSo? Mas o ope
rario que trabalha conscienciosamente nSo está também praticando a jus
tica? O patrao que paga o digno salario ao pedreiro, nao é também imagem
da justica? - Verdade é que cada uma destas imagens encerra o conceito de
justiga, mas nenhuma esgota tal conceito, porque este transcende cada um

172
O HOMEM E OS ANIMÁIS IRRACIONAIS 29

destes atos particulares e estende-se a numerosos outros, com os seus varia


dos aspectos. Diremos, pois, que a justica, a flor, a enanca, o pássaro...
existem fora da nossa mente com seus traeos concretos, como que "encar
nados" na materia; em nossa mente passam a existir de outro modo, ou seja,
de modo ¡material.
Mais um passo no raciocinio: se os conceitos produzidos pela mente
humana sao imateriais (pois abstraem da materia), a própria mente deve ser
¡material ou espiritual; ela é urna faculdade da alma humana, que por isto
também há de ser tida como ¡material.
Estas ponderacoes seráo confirmadas no parágrafo seguinte.

2.1.2. Observando os ¡rracionais...

Os animáis ¡nfra-humanos tém seu psiquismo, dotado de memoria,


afetos, instintos, reflexos condicionados..., mas na"o tém manifestacoes
intelectual (raciocinio, formulacSo de conceitos abstratos, jufzos...).
Com efeito...
Pode-se realizar a seguinte experiencia:1
Disponha-se urna serie de vasilhas fechadas, na primeira das quais se
coloca o alimento de um macaco. O animal, posto diante de tal serie, ná"o
sabe onde encontrar a sua racáo; o operador entao abre a primeira vasilha e
Ihe mostra o seu alimento.
Ftepita-se a experiencia, encerrando na segunda vasilha o alimento, e
nao na primeira. O animal, recolocado diante da serie, é guiado pela memo
ria sensitiva e, recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai á primeira vasi
lha. O operador entao o coloca diante do segundo recipiente, do qual o ani
mal se serve.
Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro rec¡:
píente: guiado pelas impressoes sensíveis do ensaio anterior, o macaco se
dirige para o segundo vaso... Caso se multipliquen! as experiencias, verifi
ca-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que no ensaio an
terior encontrou o que Ihe interessava. Nunca chega a abstrair dessas diver
sas experiencias a lei da progressao que as rege. Nunca se desvencilha das no
tas concretas da vasilha em que por último encontrou a sua racao, deduzin-
do que nSo é o fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que in-
teressa, mas é o fato de ser a vasilha n + 1 (fórmula em que n designa o nú
mero da experiencia anterior). Ora urna enanca sujeita a tal teste, depois de
tres ou cinco experiencias, consegue abstrair a lei n + 1 do fenómeno.
Oestes ensaios se concluí que o animal, por mais semelhante que seja
ao homem, jamáis se desembarazada percepcao do concreto, material; ele per-

1 Feita pela primeira vez por G. fíevesz, Reconnaissance d'un princi


pe, em Archives Neerlandaises de Physiologie 8 (1923), pp. íss.

173
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

cebe o primeiro, o segundo, o terceiro objetos... postos á sua frente, mas é


incapaz de perceber a proporcao que há entre esses objetos:

1 =n + 1
2 = n + 1
3 = n + 1
4 = n + 1
5=n + 1

Na coluna da esquerda temos ácima a lista dos termos concretos, par


ticulares, ao passo que na coluna da direita temos a fórmula universal e a in-
dicacáb de proporcSes. Ora passar da coluna da esquerda para a da direita
percebendo a constante n + 1 por debaixo das variacoes 2, 3, 4, 5... é al
go que só a inteligencia faz, porque só esta abstrai do concreto. O animal
irracional ná*o se eleva ao abstrato, universal. Por conseguinte, o irracional
ná*o tem principio de conhecimento ou principio vital ¡material ou espiri
tual; a alma do macaco ou do animal irracional é material. Ao contrario, o
homem, que é capaz de abstrair do concreto singular, possui um principio
vital ou urna alma ¡material ou espiritual.
J. V. Hamilton realizou outra experiencia,1 com dez pessoas e 27
animáis. Cada um desses individuos foi introduzido varias vezes num recinto
fechado com quatro portas; tres destas só se podiam abrir do lado de fora,
mas urna podía ser aberta por um empurrao de dentro do recinto. A porta
que se podía abrir, variava vez por vez segundo um principio ou urna lei
geral, que era preciso descobrir por deducSo. - Ora tal descoberta só foi efe-
tuada pelos seres humanos, ao passo que os animáis nSo conseguirán) fazé-la.
Isto confirma que os irracionais sá*o incapazes de formular principios abstra-
tos ou nio tém inteligencia.

2.2. A linguagem simbólica

Observemos separadamente o homem e o macaco.

2.2.1. A linguagem humana

Em que consiste propriamente o falar?


— A linguagem é a capacidade que temos de formular conceitos uní-
versáis e exprimí-los mediante sons concretos, que variam de idioma para
idioma. Assim os conceitos de pai e mae, por exemplo, sao conceitos un ¡ver-
sais, que todo ser humano concebe espontáneamente, mas que cada povo
ou cada grupo lingüístico exprime de modo diferente. O homem é capaz de

1 J. V. Hamilton, A study of trial and error reactions ¡n mammals, em:


Journal of Animal Behaviour 1,1911.

174
O HOMEM E OS ANIMÁIS 1RRACIONAIS 31

emancipar-se de determinado som associado a determinado conceito univer


sal para propor exatamente o mesmo conceito mediante outra expressao
fonética; é o que se dá com os tradutores, que procuram guardar exatamen
te as mesmas mensagens intelectuais através de diversas sonorizacoes.
Quem olha para a cavidade bucal de um homem e a de um macaco, é
propenso a dizer: se o homem fala, o macaco também fala, pois orgánica
mente este dispSe de tudo o que o homem possui para falar. Nao obstante,
o macaco nao fala. Isto só se pode explicar pelo fato de que no homem há
algo mais do que no macaco; esse algo mais é a espiritualidade do seu prin
cipio vital. Com efeito; o homem só pode falar porque é capaz de perceber
que diversos sons nao significan! sempre diversos conceitos ou porque é ca
paz de distinguir entre o som concreto e o conceito universal, ¡material. Isto
denota no homem a presenca de urna alma ¡material ou espiritual.
Observe-se também: nao há transicáo entre o material e o ¡material (ou
espiritual). O espirito nao é a materia rarefeita ou gasosa energética, pois
mesmo a materia rarefeita e a energía elétrica slo dimensionáveis mediante
números ou estao suje ¡tas á quantidade, ao passo que o espirito nSo é quan-
titativo nem comensurável.

2.2.2. A comunicacáo dos irracionais

Na década de 70, varios psicólogos norte-americanos tentaram ensinar


a linguagem humana a chimpanzés; visto que estes sao incapazes de proferir
palavras, foi-lhes transmitida a sinalizacSo utilizada pelos surdo-mudos.
Os pioneiros foram o casal de psicólogos Alien e Beatric Gardner, que
se dedicaram á chimpanzé fémea Washoe, ensinando-lhe a linguagem de ges
tos e imagens dita Ameslan (American Sign Language): o animal aprendeu
certo número de sinais associando-os entre si, de modo a se comunicar com
os homense com outros animáis que aprenderam depois dele.
Dann M. Rumbaugh treinou a fémea de chimpanzé Lana para que per-
cu tisse as teclas de um computador; sobre estas estavam gravados sinais que
eram associados a acoes e objetos diversos. Lana chegou a completar frases;
por exemplo, o operador escrevia na linguagem convencional: "Please ma
chine give..."; o macaco entao apertava a tecla que significa apple. Donde:
"Por favor, dé a máquina... ao macaco".
Mais: Francise Patterson treinou urna féma de gorila chamada Koko,
de modo que esta nao somente respondia, mas também proferia insultos e di-
zia mentiras!
O casal Gardner conseguiu que outros chimpanzés fizessem desenhos.
Um deles, chamado Moja, após haver tracado rabiscos muito confusos du
rante meses, comecou a fazer algo de melhor. Interrogado sobre o significa
do de um desses desenhos, o animal fez o gesto "Pássaro!"
Será que ¡sto significa que entre o homem e os animáis inferiores há

175
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

apenas diferencas quantitativas, nao, porém, essenciais?


Respondemos: a linguagem propriamente dita implica que alguém uti-
lize determinado som ou geno como símbolo de um conceito mental; esse
símbolo pode variar nos diversos idiomas; o conceito, porém, nSo muda,
porque a pessoa que fala conhece o sentido meramente funcional e ins
trumental do seu símbolo. Ora entre os animáis nio existe tal flexibilidade;
as comunicacoes se devem táo somente ao uso da memoria, ao instinto imi
tativo e a certas intuicoes práticas adestradas por um hábil e paciente treina-
mento. Este provoca associacoes de sinais e gestos ou reflexos condiciona
dos; sim, o treinador induz o animal a fazer tal gesto ou bater tal tecla, asso-
ciando isto a determinado objeto ou atividade;o animal é premiado quando
corresponde á expectativa do operador; se nao, é punido. O treino é repeti
do tantas vezes quantas sao necessárias para obter a associagao de gesto e
efeito.
Observemos que Washoe levou sete meses para associar o gesto de vir
com a acao de vir; após 22 meses de treino, aprenderá 34 gestos. Sarán,
outro macaco, aprendeu em sete anos de treino 130 sinais, que o animal usa
com 75 ou 80% de acertó. - Pergunta-se: por que tanta lentidao na aprendí-
zagem e tao ampia (20 a 25%) margem de erras? A resposta está precisamen
te no fato de que se trata de exercício de memoria associativa, sem com-
preensao dos porqués.
Quanto aos desenhosde Moja, foram examinados pelo Prof. Fernando
Olivier, da Universidade de Montpellier. Este os equiparou ás primeiras gara-
tujas das enancas, que sao muito confusas e nada representam; interrogadas
pelos adultos, as enancas dSo um nome qualquer (pássaro, flor, casa...) a
esses rabiscos.
Pódese, pois, concluir que nem os macacos mais aperfeicoados pos-
suem linguagem simbólica ou linguagem propriamente dita. O que eles pra-
ticam é mímica, associacao de idéias e reflexos condicionados. Ademáis rto-
te-se que tais animáis nao sabem o que é a morte: foi, sim, observado o com-
portamento de chimpanzés diante de um acídente mortal ocorridocom um
semelhante; a indiferenca dos mesmos revelou que nao compreendiam o sig
nificado do ocorrido, nem quando se tratava de mae posta diante do filhote
morto.
A respeito de linguagem dos ¡rracionais ver ulteriores consideracoes
em PR 232/1979, pp. 135-150.

2.3.3. Aprofundando...

A diferenca entre o homem e os i rracionais no tocante á común ¡cacao


pode ser ¡lustrada ainda pelas observacoes seguintes:
Os animáis, dotados de todos os sentidos externos e internos e de urna
configuracSo bucal apta para falar, nao conseguem produzir linguagem, mas
apenas associam sinais e objetos entre si, criando reflexos condicionados, á

176
__ O HOMEM E OS ANIMÁIS IRRACIONAIS 33

custa de longo treinamento. Ao contrario, o ser humano, mesmo privado de


visao, audigao e linguagem oral, consegue comunicar-se com urna linguagem
auténtica e assaz evoluída. Tal foi o caso de pessoas que se tornaram famo
sas por sua forca de vontade e nobreza de caráter.
a) Marie Heurtin nasceu em 1885, surda, muda e cega. Em desespero
de causa, seu pai entregou-a com dez anos de idade (1/111/1895) á escola de
Larnay, dirigida por Irmffs educadoras. A mesma menina, á primeira vista,
parecía fadada a levar vida mais infeliz do que a dos animáis irracionais, pois,
"para penetrar pelas ¡numeras portas do mundo fechado que a cercava, só
tinha o molhe de chaves formado pelos seus dez dedos" (Lucien Descaves).
Urna das Religiosas — a Irma* Margarida — encarregoti-sedeempreender
a educacüo da jovem.
A principio teve que lutar contra os f requemes acessos de cólera de
Marie. Um belo dia, tendo observado que a menina se deleitava em brincar
com um cañivete, retirou-lhe da mSo este objeto; Marie se enfureceu. En-
tao a Religiosa Iho devolveu por um momento; a seguir, colocou-lhe urna das
maos sobre a outra em sentido perpendicular como se a fosse cortar (tal é
o sinal para designar a faca entre os surdo-mudos). A menina de novo mos-
trou-se irritada; mas tembrou-se de fazer por si mesma o sinal convencional
que acabava de aprender; á vista disso, a Irma Ihe restituiu definitivamente
o cañivete.
Marie mostrou assim que compreendia haver urna relacao misteriosa
entre o cañivete e o sinal de mSos. Tendo concebido a idéia de relacao, Marie
pode aos poucos aprender outros sinais convencionais para designar outros
objetos. A Irma" Ihe ensinou o alfabeto dactilógico (as letras expressas pelos
dedos); a Religiosa Ihe fazia sentir na ponta dos dedos a equivalencia exis
tente entre sinais novos e decompostos e o sinal sumario e simples que a jo
vem já aprenderá. Posteriormente Marie aprendeu a equivalencia de todos es-
ses sinais dos dedos e de conjuntos de furos feitos sobre papel segundo o
método de Braille.
Depois que Marie aprendeu a "ler" e "falar" dentro do ámbito das
coisas sensíveis, a Irma Margarida tentou e conseguiu enriquecer sua mente
com nocóes abstratas e imateriais: fé-la apalpar duas companheiras, urna
grande e outra pequeña; a seguir, fé-la tocar atentamente um menino carre-
gador, maltrapilho, inclinado sob o peso de um saco, e urna pessoa bem ves
tida, ornada de jóias e portadora de moedas em sua bolsa; fez também que
passasse as mSos sobre o semblante liso, fresco e juvenil de urna ¡rma e, a se
guir, por contraste tocasse a cabeca trémula, a pele rugosa e o dorso encur-
vado de urna pessoa octagenária.
Por esses meios rudimentares, Marie penetrou no mundo dos conceitos
abstratos, como sSo miseria e riqueza, juventude e velhiee, grandeza e
pequenez; isolou os predicados percebidos (velho, jovem, rico, pobre,
grande e pequeño) das condicdes concretas de espaco e de tempo em

177
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

que os havia conhecido, e concebeu as nocoes perenes de juventude e velhi-


ce, pobreza e riqueza, pequenez e grandeza. — Percebeu a pobreza e a velhi-
ce como realidades que ameacam todos os homens em todos os tempos e
que a ela mesma ameacavam, a tal ponto que Marie se mostrou instintiva
mente revoltada contra tais realidades durante horas.
Marie Heurtin pode assim granjear cultura e tornar-se útil para a socie-
dade. Faleceuem 1921.
Vé-se que a idéia de relacSo ou proporcSo foi, para Marie Heurtin, a
chave da aprendizagem. Tendo essa idéia, a jovem conseguiu associar sinais
sensíveis e conceitos abstratos, universais: tal ou tal conftguracao dos dedos,
das míos ou dos furos de papel com as nocSes gerais de instrumento cor
tante, velhice, juventude, riqueza, pobreza, pai, mae, irmáo— Ora a idéia
de relacao ou proporcSo nao pode ser o produto de órgaos sensfveis mate-
riáis, pois estes só apreendem as coisas concretas. A idéia de relacao e a capa-
cidade de refletir e generalizar escapam ¿s possibilidades do conhecimento
sensível. Donde se conclui que havia em Marie Heurtin, como há de resto
em todos os demais seres humanos, urna faculdade de agir imaterial ou
espiritual.
b) Antes do caso Marie Heurtin, já se registrara, o de Marta Obrecht,
também surda, muda e cega. Confiada á mesma Escola de Larnay, foi edu
cada pela Irm3 Branca, que Ihe aplicou processos semelhantes aos do caso
Heurtin. De modo especial fez que Marta voltasse sua atencao para o concei-
to de mié: a menina aprendeu a discernir o que é essencial na figura da geni-
tora; concebeu assim a nocao gerat ou universal de mae, distinguindo-a de
notas contingentes que se podem encontrar nesta ou naquela mSe. No fim
do aprendizado, Marta, percebendo o papel materno de sua preceptora, es-
crevia: "A IrmS Branca é mSe para Marta".
A Irma Branca procurou também sugerir a Marta a idéia de futuro:
em dado momento, a menina se levantou bruscamente, e, estendendo os
bracos para a frente, pós-se a caminhar rápidamente diante da Irma; acabara
de conceber a clássica comparacao da vida com urna estrada.
A educadora conseguiu outrossim despertar na jovem a nocao de seres
imateriais, como alma e Dous; Marta assimilou também proposjcóes de fé e
moral. Em 1910, entregava-se aos afazeres de dona de casa, á datilografia, á
costura (á máquina) e a outros misteres técnicos.
c) Ana María Poyet tornou-se cega e surda com a idade de tris
meses. Nao obstante, seu pai foi-lhe educando o tato, de modo que pode
conhecer e exprimir muitas nocSes. Um sopro sobre a mSo significava pai,
dois sopros mae, tres so pros avó. Aos sábados, quando o pai, simples traba-
Ihador, voltava a casa, trazendo o salario da semana, a menina apalpava as
moedas respectivas e, reconhecendo-lhes o valor, manifestava a sua alegria.
d) A senhorita americana Mellen Kelleré outroexemploda mesma reali-
dade. Cega, surda e muda, pode aprender, mediante a linguagem simbólica

178
O HOMEM E OS ANIMÁIS IRRACIONAIS 35

do tato, que urna mestra pacientemente Ihe énsinou, as verdades mais


d¡ficéis e abstraías; chegou a tornar-se autora de escritos que ¡mpressionam
peta profundidade de seus sentimentos e o alto ni'vel de seu raciocinio.
Uma reflexáo sobre as quatro jovens que acabam de ser mencionadas,
permite concluir que, no ser humano, mesmo destituido dos melhores de
seus sentidos externos, existe um principio de atividade capaz de distinguir
ñas criaturas o que há de concreto, material e contingente, e o que há de
perene, ¡material e universal; esse principio de atividade, que transcende o
concreto e percebe relacoes ou proporcoes, há de ser ¡material, pois a toda
atividade corresponde um principio adequado; tal principio é o que se cha
ma "a alma humana" espiritual e, por conseguinte, ¡mortal.

2.3. A liberdade de arbitrio

Observamos que os animáis infra-humanos sao levados a comportar-se


de acordó com os seus instintos..., instintos de conservacSo do individuo
e da especie; sao estes que os impelem a certos bens e os retraem decenos
males...
Também o ser humano pode ser movido por instintos, instintos espon
táneos, cegos, anteriores á deliberacao, em virtude dos quais o individuo
prové á sua conservacao ou á conservacSo da especie bu ainda a seu prazer...
Todavia o homem é capaz de disciplinar e controlar os seus instintos e
agir em conseqüéncia de deliberacoes ou decisoes tomadas após conhecer in-
telectualmente a situacSo em que se ache, e escalonar os valores que ela pro-
poe.

Esta atitude própria do homem se explica do seguinte modo:


Todo ser humano, além de conhecer instintivamente o que favorece e
o que prejudica a sua subsistencia física, momentánea, é apto a conceber
também a nocao de Bem, sem restricto; em conseqüéncia, é capaz de que
rer, por sua vontade, o bemsem limites ou Bem Infinito; todo ser hjjmano, ao
querer algo, só o quer porque tal objeto Ihe aparece comoum bem (real ou,
ao menos, aparente); em última análise, a vontade humana quer o bem sem
restricao ou sem mésela de ¡mperfeicüo.
Acontece, porém, que todo bem que a inteligencia aprésente á vonta
de humana, é sempre um bem finito; mesmo o próprio Deus (que é o Bem
Infinito, único capaz de saciar as aspiracoes do ser humano) é reconhecido
na térra á semelhartca dos bens finitos, ou seja, de maneira análoga. Com ou-
tras palavras: todo bem que se aprésente á vontade humana, pode aparecer
como insuficiente ( o próprio Deus pode aparecer nao só como Pai atraen-
te, mas também como Legislador coibitivo de certos prazeres). Por isto a von
tade humana goza de liberdade de arbitrio na vida presente, em relacSo a
qualquer bem criado e em relacao ao próprio Criador. Na medida em que a
inteligencia apresenta á vontade os aspectos de um objeto conveniente ás
disposicóes momentáneas do sujeito, a vontade se inclina para esse objeto;

179
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

dado, porém, que o individuo se ponha a considerar os aspectos do mesmo


objeto que contrariem ás paixoes do sujeito, a vontade já tem fundamento
para o rejeitar. — é este o argumento filosófico que comprova a existencia
do livre arbitrio do homem; ele se baseia, em última instancia, sobre a capa-
cidade que a alma possui de conhecer o universal, o essencial ou o Ser como
tal e o Bem como tal, e nao somente o bem particular, concreto, singular.
Ora tal capacidade supóe, como dito, a ¡materialidade ou a espiritualidade
da alma humana.
Em íntima ligacáo com tal argumento, acha-se o seguinte:

2.4. A consciéncia de si mesmo

Verifica-se que os animáis tém conhecimento de objetos que os cer-


cam, ameacando-os ou favorecendo-os. O ser humano, além deste tipo de co
nhecimento, possui o conhecimento de si mesmo ou a autoconsciéncia; o
homem nao somente senté dor, mas sabe que senté dor ou que está lesado fí
sicamente; este fator aumenta enormemente a sua dor, pois o sujeito huma
no percebe que a sua molestia o impede de trabalhar devidamente, o que
pode prejudicar a sua familia, a sua carreira, o seu ideal... Possuindo o co
nhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o plano de orde
nar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao seu ideal, supe
rando paixoes desregradas, cultivando boas tendencias, etc. Isto tudo esca
pa ás possibilidades de um animal irracional, pois este conhece o seu objeto
concreto, singular, e é incapaz de se emancipar das notas concretas deste e de
se voltar para si mesmo de maneira sistemática a fim de se conhecer. O ser
humano, ao contrario, realiza esta introspecc3o, porque o seu principio de
conhecimento (intelecto) é capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, ma
terial para atingir o próprio sujeito...

2.5. A cultura e o progresso

Verifica-se que o homem ¡ntervém no ambiente natural que o cerca,


modificando-o de acordó com as suas intencBes e os seus planos; cria assim
a cultura, que se sobrepoe á natureza, adaptando-a ao homem; assim é que
surgem casas, estradas, cidades, fábricas, artefatos. . . Essa atividade cientí
fica e técnica, social e ética, artística e religiosa, nao é o produto de proces-
sos fisiológicos e psicológicos apenas ou de fatores materiais e económicos
t3o-somente, mas se deve á ac3o intelectiva e planejadora da inteligencia e á
liberdade de arbitrio do ser humano. Com efeito, ao conhecer a natureza
que o cerca, o homem apreende as relacóes entre meios e fins ou as propor-
coes entre diversos termos e concebe projetos para melhorar o seu ambiente
(o seu habitat natural, a sua alimentacSo, o seu vestuario, as expressoes de
sua arte, de seus sentimentos religiosos. . .); vai assim construindo civiliza-
coes sucessivas.. . Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressSes,

180
O HOMEM E OS ANIMÁIS IRRAC1ONAIS 37

porque é guiado por instintos; assim o animal, embora certeiro e apurado em


seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a si mesmo do que faz
e dos porqués da sua atividade; é, por isto, incapaz de se corrigir ou de se
ultrapassar. Em última análise, a raíz da diferenca entre o comportamento
do homem e o do animal reside no fato de que o homem tem um principio
vital ou um principio de atividades ¡material ou espiritual, ao passo que o
animal tem uma alma material ou confinada pelas potencialidades da mate
ria.

2.6. Valores moráis e religiosos

Verifica-se outrossim que os animáis nao tém consciincia moral. Esta


supóe um principio interior que clama: "Pratica o bem, evita o mal"; este
principio nao é forjado pelos homens, mas é congénito; vem a ser a voz de
Deus, que chama a criatura ao seu Fim Supremo. Em conseqüéncia, tudo o
que é condizente com a voz da consciincia bem formada é moralmente
bom; e tudó o que é destoante, é moralmente mau.
Á ordem moral se prende a Religiao. Esta afirma a existencia de um
Ser Superior invisível, que a inteligencia humana reconhece e que o homem
adora e cultua. Uma das mais antigás manifestares do senso religioso é o
sepultamento dos mortos (supoe a vida postuma outorgada pela Oivinda-
de): desde a pré-história um dos mais típicos sinais de existencia de verdadei-
ros homens em algum lugar é a presenca de sepulturas; estao muitas vezes
voltadas para o Sol nascente, que seria o Olho da Divindade a acolher o de-
fumo. Ora os animáis ¡nfra-humanos n3o manifestam senso religioso e, por
conseguinte, nao sepultam os mortos; estas atitudes implicam a percepcao
de valores transcendentais e imateriais; ora tal percepgao só pode ocorrer se
existe no sujeito uma faculdade ¡material ou espiritual de percepcao; o ani
mal irracional nao a tem, mas o homem a possui; este é vivificado por uma
alma espiritual, que nSo é materia fluida, nem energía etétrica, mas um ser
dotado de inteligencia e vontade.

3. Conclusao

Vé-se, pois, que, embora o ser humano seja essencialmente dsícosso-


mático, isto é, uma composicao orgánica e harmoniosa de corpo e alma1, es
tes dois elementos nSo se identif icam entre si, mas sao realmente distintos,
como a materia e o espirito se diferenciam um do outro. — Esta afirmacSo
nao depende de premissas culturáis de uma determinada época, mas resul-

1 Nada do que o homem faz. é meramente corporal; nada é mera


mente espiritual.

181
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

ta da aplicacao da razüo humana, que tem seu acume e sua eficiencia pe


renes.

Quem admite a distincao real de corpo e alma, nao cai no dualismo;


este significaría antagonismo entre corpo e alma (o que nao é cristao). En
tre dualismo e monismo, existe a dualidade, que é real distincÜo sem oposi-
cao, como a que existe entre homem e mulher.

De resto, a Santa Sé, tendo em vista a recente tendencia a identificar


corpo e alma entre si, publicou urna InstrucSo, que reafirma a devida distin
cao, Instrucao já comentada em PR 275/1984, pp. 266-273. Esta palavrado
magisterio da Igreja nSo faz senSo reafirmar a constante doutrina da Tradi-
cao crista. Merece acato da parte dos fiéis, pois o assunto nao é meramente
filosófico, mas toca o próprio patrimonio da fé.

Por último, notemos que, se a alma humana é espiritual, ela nao se ori
gina da materia por evolucSo, mas é criada diretamente por Deus para cada
novo ser humano concebido no seio materno. Além disto, é ¡mortal, ou seja,
nao perece com a materia, já que o espirito nao se decompfle (na"o tem par
tes componentes); a alma humana sobrevive sem corpo, desde que este, des
gastado, nao possa ser mais sede da vida humana.
A propósito citamos

MARCOZZI. VITTORIÓ, Le origini dell'uomo: Milano, 8?ed. 1983;


PR 226/1978. pp. 423-434 (espiritualidade da alma);
PR 227/1978, pp. 475-481 (imortalidade da alma);
PR 95/1967, pp. 453-461 (imortalidade da alma).

CURSOS POR CORRESPONDENCIA

Caro leitor, estao á sua disposicSo tres Cursos por Correspondencia,


destinados a ajudá-lo a fortalecer e esclarecer a sua fé: o de Sagrada Escritu
ra, o de Iniciaclo Teológica e o de Teologia Moral. Na"o perca a ocasiSbde
conhecer melhor a Boa-Nova do Senhor Jesús. Pedidos de ¡nformacdes sejam
dirigidos á
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
RÚA BENJAMÍN CONSTANT, 23, 3?
20241 RIO(RJ)

182
A celeuma de um filme:

"Je Vous Salue, Marte"


de JeanLuc Godard

Em síntese: O filme "Je vous salue, Marie" é evidentemente atentato


rio a fé crista, apesar da interpretado benigna de aiguns críticos, segundo os
quaisJ.L. Godard nao teria intencionado referirse aos personagens bíblicos
María e José; as próprías declaracoes de Godard á imprensa atestam que o
cineasta tinha em mira parafrasear o Evangelho. Sendo ofensiva aos valores
religiosos, tal película nao deve ser exibida ao público, como nao o deve ser
qualquer película ofensiva é patria ou a bandeira nacional; como nao se deve
desrespeitar a mae do próximo, os fiéis católicos tém o direito de exigir que
se respeite a Virgen» María, Mae de Deuse Mae dos homens (cf. Jo 19,25-27);
é de bom alvitre lembrar que os direitos de uns cessam guando comecam os
legítimos direitos de outros. — Ademáis, se há público interessado em pelí
culas de libertinagem sexual e pornografía, nao Ihe falta o que ver nos cine
mas do mundo inteiro; nao existe necessidade de misturar religiao e porno
grafía; a religiao é algo de sagrado e inwcável para quem a professa. Daí a
sabedoria da resolucao do Presidente da República do Brasil, assim como de
diversas declaracoes transcritas na terceira parte deste artigo.

Aos 23/01/85 foi lampado na Franga o filme "Je vous salue, Marie"
(Eu vos saúdo. Maña ou Ave Maria) do cineasta f ranco-sufgo Jean-Luc Go
dard, de origem protestante. Desde entao vem provocando celeuma nos
países da Europa e da América, pois toca profundamente em tema religioso,
muito caro aos fiéis católicos. No Brasil a opiniao pública acompanhou com
vivo interesse as etapas do processo de censura ao filme, que finalmente foi
interditado pelo Presidente da República aos 04/02/86. - Procuremos co
mentar as peripecias do debate e propor um juízo sereno sobre o assunto.

1. O FILME COMO TAL

Eis como o Office Catholique du Cinema da Franca apresenta o filme


em sua ficha técnica:
"Maria, filha de um proprietárío de posto de gasolina, gosta de bas-
quetebol. José, chofer de taxi, ama Maria. Eles sao noivos e vio-se casar lo
go. Um dia chega deaviSo o tío Gabriel, em companhia de urna menina. Eles
se aproximan) de María, e Gabriel Ihe anuncia que ela tere urna crianca.
María se espanta. Mais tarde um médico confirma que Maria está grávida.

183
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

José, com ciúmes e persuadido de que María havia dormido com algum
outro, está profundamente magoado. Aínda mais que María se recusa a en
tregarse a ele. 0 que nao é tao simples para ela, assaltada és vezes por um
dese/o brutal. Como Eva, por exemplo, uma Jovem que, na vila Paraíso, se
entrega a um tcheco, que Ihe dá um curso sobre o universo e a criacao. José
acaba aceitando a situacao; María dé a luz um menino (Jesús). Alguns anos
depois o menino abandona José e María. O tío Gabriel também se vai, e Ma
ría se prepara para levar uma vida de mulher".

Esta ficha, sobria como é, precisa de ser completada por outros dados
significativos.

A personagem central Maria (Myriem Roussel) do filme se apresenta


desnuda em diversas cenas e deixa a camera percorrer lentamente o seu cor-
po em close-up (fotografía tirada de perto). O noivo José (Thierry Rodé)
aproxima a sua mao do ventre grávido de Maria e aos poucos a vai afastan-
do. María incita seu filho a observar o corpo nu de Maria, o que escandali
za o próprio José e o leva a intervir. A linguagem utilizada pelos persona-
gens do filme é vulgar; por motivos bañáis juram, trocam insultos e se refe-
rem, nos termos mais crus, aos órgáos e atos sexuais.

Em longo monólogo, que parece ser uma parodia do Magníficat (Le


1, 46-55), Maria declara seu "desprezo por tudo", seu "odio a tudo"; re-
volta-se contra Deus em acusacoes veementes, tratando o Senhor Deus de
"vampiro" e coisas ainda mais baixas.

Paralelamente ao caso de Maria, Godard apresenta o de um professor


tcheco que discute com estudantes a ongem da vida; é entao que uma jovem
aluna o alicia para um relacionamento sexual, vencida pela paixao, ao con
trario de Maria, que resistiu aos Impetos de José; tal estudante se chama pre
cisamente "Eva", da Vila Paraíso! Estranhamente o professor explica a seus
al unos que "a vida veio de longe, do espapo; todos somos extra-terrestres".
Que pode significar isto na mente de Godard? Alias, o cineasta parece supor
que o pecado dos primeiros pais tenha sido pecado sexual — o que é absolu
tamente falso.

O final do filme apresenta cenas da vida da nova familia: o menino dá


aos seus amiguinhos os nomes de Pedro e Tiago. Os genitores o chamam para
entrar no carro da familia; ele, porém, se recusa, alegando que deve ocupar
se com as coisas de seu pai (cf. Le 2, 41-50). Na rúa Gabriel saúda a mae-
virgem com as palavras: "Ave Maria (Je vous salue, Marie) " Maria diz: "Nao
fui eu que quis esse filho".

O filme assim concebido encontrou defensores e apologistas como


também sofreu críticas severas. Exporemos algumas das tentativas de o
interpretar, sem pretender esgotar o assunto.

184
"JE VOUS SALUE, MARIE" 41

2. IIMTERPRETAQOES FAVORÁVEIS
Podemos distinguir dois tipos de atitude simpática ao filme:
1. "Je vous salue, Marie", dizem alguns, nada tem que ver com o Evan-
gelho; refere-se ao misterio da origem da vida, que suscita a admiracao e o
encanto dos homens. Os personagens María, José, Gabriel, no filme, nao de-
vem ser identificados com os da Biblia. Segundo tal hipótese, o filme n5o
constituiría afronta aos valores religiosos. Ver Herder-Korrespondenz, 6/1985,
pp. 257s.

Oeve-se dizer, porém, que tal ¡nterpretacao é artificial e nao corres


ponde ás intencoes de Godard. Este mesmo terá declarado, conforme a ¡m-
prensa: "é normal que o Papa nSo deseje ver a Virgem María correndo pela
casa, da forma que a retratamos. . . Eu nSo inventei nada. Está tudo na Bi
blia. Quando pensei no assunto, me ocorreu que o mundo moderno é brutal
e nao vejo por que nSo mostrar María em nossos días sendo tratada brutal
mente" (extraído da Folha de Sao Paulo, 13/11/85, p. 43).

Sería necessária grande dose de boa vontade para admitir que é "por
acaso" que no filme todos os nomes sSo bíblicos e lembram a Sagrada Fa-
m(lía e os Apostólos de Jesús,... que é "por acaso" que varias vezes no filme
aparecem as palavras "Naquele tempo. . .", características do anuncio do
Evangelho e se fazem alusSes diretas óu indiretas aos episodios da infancia
de Jesús.

2. "Je vous salue, Marie" seria realmente um filme religioso. . . O Pe.


Paul-Eugéne Charbonneau, por exemplo, que é um dos mais convictos da ■
causa, afirma que "a película é urna Grapa (com G maiúsculo), urna Graca
que vem de Deus e que Godard, incumbido por Ele, nos oferece envolta em
tanta beleza" (extraído da Folha de Sao Paulo, 26/01/86, p. 94). Todavía
o autor nSo explica nem justifica seu ponto de vista; trata-se de posicao
emocional mais do que racional e argumentada. Alias, de modo geral, os crí
ticos que se pronunciaran! em favor da película, pouco entraram no ámago
da questio mediante um raciocinio claro edidático. Oisseram seu sím ás ve
zes com muitos adjetivos e pouca substancia. Sabemos que, em nossos dias,
a emotividade tende a dominar o raciocinio em muitas pessoas de certa pro-
jecao, poís na*o é "simpático" dizer Nao a um filme libertino; torna-se muito
mais cómodo dizer Sim, pois isto pode granjear o aplauso da grande platéia.
Daí a facilidade com que algumas pessoas tomam em público a posicio mais
simpática ou, ao menos, urna posicáo ambigua, que possa satisfazer a gregos
e troianos.

185
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

3. UM JUI'ZO SERENO

Observaremos o seguí nte:

1. Sem querer entrar ñas intenses pessoais de Jean-Luc Godard, deve-


se notar que a apresen tapio-de personagens bíblicos em estilo de nudez, lin-
guagem de baixo cálao, imprecacoes. . . é de todo inconveniente ou, mais
propriamente, blasfema. Se Godard,emsuaconsciéncia, nSo viu nisso mal al-
gum, é indubitável que o público religioso, tomando as imagens como elas
sao (sem fazer malabarismos mentáis muito subjetivos), vé em tais figuras
urna ofensa á mensagem da fé e aos seus sentimentos religiosos. So median
te "restricoes mentáis" e urna acrobacia de pensamento muito dif icéis é que
se pode fugir á obvia evidencia das cenas do filme. Alias, todos os cultores
de arte, desde o inicio do Cristianismo até nossos días, sempre apresenta-
ram María SS. com o máximo respeito; basta contemplar as telas e escultu
ras que a historia da arte nos legou; é a primeira vez em quase vi nte sáculos
que uro produtor de arte ousa representar a SS. Virgem como faz o filme.
— Admitimos que um intelectual queira transpor para o contexto histórico
e geográfico do nosso Ocidente as cenas do Evangelho; mas o que nao se po
de admitir é que o faca de maneira a deturpar seu conteúdo ou a insinuar
o contrario do que aquelas cenas querem dizer.

2. Para o público afeicoado a filmes libertinos e pornográficos, a cine


matografía tem um mostruário muito variado. NSo há necessidade de
associar pornografía e religiao, pois isto implica em desrespeito a cidadüos
que tém o direito de nao ver seus mais caros valores conculcados. Assim co
mo ná"o se deve conspurcar a bandeira de um país estrangeiro, porque isto
fere os filhos de tal nacao, assim também nao se deve ofender a religiao
alheia nem a mae do próximo (María SS. é a Mae de Deus e á MSe de todos
os fiéis, conforme Jo 19,25-27). Os direitos de um cídadao cessam onde co-
mecam os direitos legítimos de outro cidadao.

Por isto eremos que muito sabiamente, cumprindo um dever nao só


de fé, mas também de civismo, o Presidente da República houve por bem ve
tar a exibicá*o de "Je vous salue, Marie". Como base jurídica de sua atitude,
S. Excia. valeu-se do artigo 153, § 8 da Constituicao Nacional, que reza:
"NSo serlo toleradas a propaganda de guerra, de subversfo da ordem ou de
preconceitos de relígiao, de raga ou classe". Ademáis o decreto 20.493, art.
41, de 1946 "nega autorízacao para representacao, exibicao ou transmissSo
radiotelefónica a obras consideradas ofensivas ás coletividades ou religióes";
ainda a Lei 5536/68 impede censura classificatória para obras consideradas
ofensivas pelos mesmos motivos.

Seguem-se pronunciamentos ponderáveis de personalidades eclesiásti


cas, cujos argumentos retomam e completam quanto foi dito até aqui.

186
"JE VOUS SALUE, MARIE" 43

4. DEPOIMENTOS

1.0 S. Padre Joao Paulo II pronunc¡ou-se a respeito através da palavra


do seu Secretarlo de Estado, o Cardeal Agostino Casaroli, que assim se diri-
giu ao Cardeal Ugo Poletti, Vigáriode S. Santidade para a diocese de Roma:

"O Sumo Pontífice se une á unánime deploracao dos fiéis da Diocese


de Roma pela programacao de urna obra cinematográfica que. afrontando te
mas fundamentáis da fé crista, deturpa e vilipendia seu significado espiritual
e seu valor histórico e fere profundamente o sentimento religioso dos eren-
tes e o respeito peto sagrado e pela figura da Virgem María, venerada com
tanto amor filial pelos católicos e tao cara aoscristaos. Espiritualmente pre
sente ao encontró de reflexao e oracio que tem lugar na Basílica de Sao
Joao de LatrSo como gesto de desagravo comunitario a Nossa Senhora. o
Santo Padre invoca sua materna misericordia pela Igreja e pelo mundo e
envía aos participantes da celebracao a sua propiciatoria béncao apostólica."

2. A Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, aos 3/02/86, redigiu


a seguinte Nota oficial assinada por D. Ivo Lorscheiter, bispo presidente, D.
Benedito Ulhoa Vieira, vice-presidente, e D. Luciano Mendes de Almeida,
Secretario Geral:

"1. Desde que surgiu o problema do filme, a CNBB em nenhum mo


mento tentou qualquer negociacáb em troca da censura ao filme. Esta inju
riosa vertió é absolutamente gratuita e fantasiosa.

2. A respeito da legitimidade ou nao de "censura", nota recente do


presidente da CNBB já esclareceu a diferenca entre "censura política e ideo
lógica", que nao se pode aceitar e que tanto mal causou no período do go-
verno militar, e "censura de ordem moral" que pode ser, quando criteriosa-
mente feita, necessária defesa do bem comum. é exatamente o caso deste
filme. No clima emocional, que se estabeleceu nesse momento, já se nao es
tá raciona/mente distinguindo os dois aspectos.

3. Sob o aspecto doutrinal, nao se pode honestamente aceitar que urna


obra, por ser ou pretender ser artística, destrua a verdade histórica de Maria
Santfssima e seja infiel a esta verdade. Afém disto, o sentimento de venera-
cao a Mae de Cristo, que é patrimonio do povo crlstao, merece ser respei-
tado pelos intelectuais. pelos críticos, pelos artistas. Nem pode a Igreja ca
larse, quando sabe, pelos próprios críticos europeus que analisaram a obra
de Godard, que o filme esvazia o misterio cristio.
4. Por fim, lembra esta presidencia aos católicos a palavra do Papa
Joao Pauto II, deplorando que a citada obra cinematográfica "deturpa e vi
lipendia o seu significado espiritual e seu valor histórico e fere profunda
mente o sentimento religioso dos crentes e o respeito pelo sagrado e pela fi-

187
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

gura da Virgem María, Venerada com tanto amor filial pelos católicos e tao
cara aos crístaos". Nem vale, diante da autorizada palavra do Santo Padre,
com quem se sentem em comunhao todos os católicos, qualquer outra opi-
niao déla discordante.

É o que, por dever de consciéncia, a presidencia da CNBBjulga opor


tuno dizer neste momento".

4. 0 Cardeal Francois Marty, arcebispo emérito de París, emitiu a se-


guinte declarafio:

"Por que aviltar as coisas da religiao em um filme barulhento e escan


daloso, que explora o nudismo e a sexualidade? Tudo o que é sagrado me
rece respeito. Por que querer chocar assim a consciéncia dos fiéis?" (O Ca
tolicismo, n? 413, maio de 1985, p. 5).
Possam estas ponderacoes iluminar as mentes dos leitores desejosos de
refletir sobre tío candente e serio assunto!

continuacao da pág. 48

Qual é mu Problema? por Edvino Augusto Fridertchs S.J. ColecSode


Parapsicología XV. - Ed. Loyola, Sao Paulo 1985, 205 x 140mm. 162 pp.

0 Pe. Edvino é parapsicológo, que se tem dedicado a cursos, palestras,


programas radiofónicos e á redacao de obras de sua especialidade. No pre
sente volume apresenta casos de psicología, psiquiatría, parapsicología e reli-
gi3o. .., casos colhidos em cartas de seus ouvintes ou leitores e, a seguir, Ihes
propoe a resposta ou a explicagao devida: aparecem assim temas como a
"brincadeíra do copo", batidas e socos na parede, pintura mediúnica, feitico
no colchSo, cartomancia, macumba, ¡déla fíxa. . . Em poucos parágrafos, o
autor elucida com firmeza os fenómenos mais perturbadores, pelos quais se
interessam muitas e muitas pessoas. O livro pode ser de grande valia para o
nosso público. Apenas há urna resfríelo a fazer á obra: a p. 76 o autor pare
ce negar a possessSo diabólica — o que vem a ser urna posipSo gratuita e pou-
co condizente com a mensagem dos Evangelhos: nestes Jesús aparece a ex
pulsar demonios de possessos (cf. Me 2,23-27.32-34; 5,1-20...). Ora, se n5o
havía possessos, Jesús fez urna pantomina, que confirmou seus contemporá
neos e pósteros num erro grave - o que é aberragao, já que o Senhor veio
para dar testemunho da verdade {cf. Jo 18,37). Nos demais pontos referen
tes á fé, o autor se mostra fiel arauto do pensamento da S. Igreja.

E. B.

188
Um enigma:

Prolonsamento Artificial da Vida e


Determinado Exata da Morte
Esteve reunido, em Roma, nos dias 10, 19 e 21 de outubro,
a convite da Pontificia Academia de Ciencias, um Grupo deTra-
balho composto de cientistas do mundo inteiro, para estudar "o
prolongamento artificial da vida e a determinacao exata da mor
te".
No último dia, os participantes foram recebidos em audien
cia especial pelo Papa Joao Paulo II, que proferiu um discurso
saudando os cientistas, dizendo da importancia de suas investiga-
coes, "dado que a vida é inegavelmente um tesouro", e lembran-
do que nao se pode cooperar nem consentir com a eutanasia, mas
também nao se pode "impor a ninguém a obrigacao de recorrer a
urna técnica que, embora já em uso, aínda nao está isenta de pe-
rigos ou é demasiado onerosa".
Ao final dos estudos e debates, os cientistas emitiram urna
Declaracao, nestes termos:

"Depois de ter constatado os recentes progressos das técni


cas de reanimacao e dos efeitos ¡mediatos e a longo prazo dos da
nos cerebrais, o Grupo de traba/ño debateu os criterios objetivos
da morte e das regras de conduta diante de um estado persisten
te de morte aparente. De um fado, as experiencias efetuadas revé-
lam que a resistencia do cerebro é ausencia de circulacSo cerebral
pode permitir recuperacoes consideradas ¡mpossfveis.
Doutro lado, veríficou-se que, quando a totalidade do cere
bro sofreu um daño irreversivel (morte cerebral), toda a possibili-
dade de vida sensitiva e cognitiva é definitivamente anulada, en-
quanto urna breve sobrevivencia vegetativa pode ser mantida pelo
prolongamento artificial da respiracao e da circulacSo.

1. Definipao de morte

Urna pessoa está mona quando sofreu a perda irreversí-


vel de toda a capacidade de integrar e de coordenar as funcoes fí
sicas e mentáis do corpo.

189
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

A morte ocorre quando:


a) As funcdes espontáneas cardíacas e respiratorias cessam
definitivamente ou
b) Se verificou cessacao irreversivel de toda funcao cerebral.
Do debate emergiu que a morte cerebral é o verdadeiro cri
terio da morte, dado que a parada definitiva das funcdes cardio-
respiratórías conduz rápidamente a morte cerebral.
O Grupo analisou em seguida os diversos métodos clínicos e
instrumentáis que permitem averiguar esta parada irreversivel das
funcdes cerebrais. Para estar certo — mediante eletroencefalogra-
ma — de que o cerebro se tornou liso, isto é, nao apresenta mais
atividade elétrica, é necessário que o exame seja efetuado ao me
nos duas vezes no espaco de seis horas.

2. Regras de comportamento médico

Por tratamento o Grupo entende todas aquetas intervencoes


médicas disponiveis e apropriadas ao caso específico, qualquer
que se/a a complexidade das técnicas.
Se o paciente está em coma permanente, irreversivel, nao se
exige tratamento, mas devem ser-lhe ministrados os cuidados, in
cluíndo-se a alimentacao.
Se clínicamente ficou estabelecido que existe urna possibili-
dade de recuperacao, requer-se o tratamento.
Se o tratamento nao pode trazer beneficio algum ao pacien
te, ele pode ser interrompido, continuando os cuidados.
Por cuidados, o Grupo entende a ajuda ordinaria devida aos
pacientes enfermos, bem como a compaixao e o apoio afetivo e
espiritual devidos a todo o ser humano em perígo.

3. Prolongamento artificial das funcdes vegetativas

Em caso de morte cerebral, a respiracao artificial pode pro


longar a funcao cardíaca por um tempo limitado. Esta sobrevi
vencia induzida dos órgaos é indicada quando se prevé um pro
longamento em vista de um transplante.
Esta eventualidade é possível só em caso de lesao cerebral
total e irreversivel ocorrida numa pessoa jovem, essecialmente de-
pois de um trauma brutal.
Tomando em consideracao os importantes progressos das
técnicas cirúrgicas e dos meios para aumentar a tolerancia aos en-

. 190
PROLONGAMENTO DA VIDA E DETERMINADO DA MORTE 47

xertos, o Grupo considera que os transplantes de órgaos merecem


o apoto da profissao médica, das legislacoes e da populacao em
geral.
A doacao de órgaos deve, em todas as circunstancias, respei-
tar as últimas vontades do doador, ou o consenso da familia, on
de querque e/a se encontré".

Esta declaradlo faz eco fiel a um texto oficial da S. Congregacao para


a Doutrina da Fé datada de 01/05/80, e comentado em PR 252/1980, pp.
516-525. Em símese, quer dizer que n3o há obrigacao deentreter ávida de
um paciente por meios artificiáis grandemente aparatosos, quando as proba
bilidades de melhora sao nulas ou quase nulas ou sao desproporcionáis em
relacáb ao aparato aplicado.

Estévao Bettencourt O.S.B.

livros em estante
Epístola aos Filipenses. Comentario bíblico do Novo Testamento, por
José Comblin. — Ed. Vozes, em co-edicao com Imprensa Metodista e Edito
ra Sinodal, Petrópolis 1985,65 pp.

Eis um dos primeiros fascículos de um novo comentario da Biblia em


70 volumes a ser redigido na ótica da Teología da Libertacáo. O mesmo Pe.
Comblin expós os principios norteadores desse comentario num caderno an
teriormente publicado pelas mesmas Editoras: o pobre (materialmente en
tendido) seria o intérprete, por excelencia, da Biblia Sagrada, visto que esta
foi redigida por pobres; em conseqüéncia, os comentadores procuram reler a
B íblia a partir da praxis social do pobre e em vista de incitamento a esta mesma
praxis. Tais principios já foram comentados as pp. 153-156 deste fascículo
de PR: é de notar que a Biblia tem como autor principal o Espirito Santo,
de modo que só a léem adequadamente aqueles que se deixam mover peto
Espirito Santo; estes nao se podem identificar com alguma categoría social.
Em particular, o comentario da epístola aos Filipenses que ora temos
em vista, é objetivo e procura expor o sentido do texto paulino segundo cri
terios aceitáveis. Transparece a mentalidade própria do Pe. Comblin quando
á p. 17 identifica os judeus e os judeus-cristaos com os ricos "porque nao
querem renunciar a certos bens espirituais (a Lei, as obras, os ritos como a
circuncisao e os sacrificios), que Ihes dao a ¡mpressao de forca e poder, segu-
ranca e afirmacao de si próprios". Tal posicSo é artificial; era, antes, o zelo
religioso e a fidelidade cega as tradicSes mosaicas que levava os judaizantes a
impugnar a obra missionária de Sao Paulo; cf. At 21, 17-25.

191
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 287/1986

J. Comblin propSe a sentenca segundo a qual Fl consta de tres cartas


do Apostólo aglutinadas entre si: Carta A (a mais antiga): 4,10-20; carta B
(posterior): Fl 1,1-3,1a. e4,2-7.21-23;carta C {a última): Fl 3,1b-4,1e 4,8-9.
Tal hipótese nao deixa de ter seu fundamento no texto, mas fica sendo con
jetura.

Biblia. Palavra de Deus. Curso de Introdupáo á Sagrada Escritura, por


Valerio Mannucci. Tradupao de Jo3o Luiz Gaio. ApresentacSo de Luis Alon
so Schokel S.J. ColepSo "Bibliotecade Estudos Bíblicos" n?15. - Ed. Pauli
nas, Sao Paulo 1986, 145 x 210 mm, 421 pp.
Obra de erudito professor de S. Escritura no Seminario Maiorde Fio-
renpa, tal livro apresenta os quatro tratados clássicos que constituem a Intro-
dupao Geral á S. Escritura: InspiracSo, Canon, Historia do Texto e Herme
néutica. Todavía insere estes estudos no contexto ampio da Revelacao Divi
na e da sua Transmissao, seguindo assim a orientacSo deixada pela Constitui-
cao Dei Verbum do Concilio do Vaticano II. Trata-se de obra rica em infor-
macoes e consideracoes de ordem filosófica (veja-se quanto é dito sobre a
Palavra como tal as pp. 15-23), teológica e histórica. Expoe claramente o
que a fé católica ensina a propósito de cada tema, mas nao deixa de apontar
para questdes laterais abertas ou discutidas; faz também freqüentes referen
cias ás posicSes protestantes - o que habilita o estudioso ao diálogo ecumé
nico. Especialmente importantes sao os capítulos 17 e 18 do livro, que tra-
tam da Hermenéutica ou da arte de interpretar a S. Escritura; este setor tem
sido muito disputado nos últimos decenios; os estudiosos tém recorrido
largamente á filosofía da linguagem e ao exístencialismo, especialmente en
tre os protestantes (Bultmann, Fuchs, Ebeling, Pannenberg, Moltmann...),
cujas posicoes Mannucci expoe com fidelidade; presta assim grande servico
ao estudioso brasileiro, resumindo o conteúdo de obras densas edifi'ceisde
autores alemáes, que mu¡ta influencia tém exercido até sobre teólogos lati
no-americanos; por último, Mannucci apresenta com muita clareza as nor
mas hermenéuticas católicas formuladas na Constituicao Dei Verbum n? 12.
A obra assim redigida atende simultáneamente á erudicSó e á piedade,
como é de se desejar quando se estuda a S. Escritura. Recomendase viva
mente esse valioso instrumento de trabalho, que os Seminarios e as Escolas
de Fé poderao utilizar com grande proveito.

continua na pág. 44

192
EDIQOES "LUMEN CHRISTI"
Rúa Dom Gerardo. 40 — 5? andar — Sala 501
Caixa Postal 2666 — Tel.: (021) 291-7122
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cio Arrieta, Universidad de Navarra y Salamanca. Ed. bilingüe anotada,
com índice analítico - 1230 págs, encadernado " CzS 505,00.
2. Nuevo Derecho Canónico (Manual universitario), por Catedráticos de
Direito Canónico da Univ. de Salamanca - 626 págs., ene. CzS 420,00

3. A Fé em crise? (Relatório sobre a Fé), Cardeal Ratzinger, Prefeito da Sa


grada Congregarlo para a Doutrina da Fé. Sua famosa e longa entrevis
ta ao escritor e Jornalista Vittorio Messori - 154 págs., CzS 53,00

4. A Vida de Cristo, J. Pérez de Urbel - Retorno singelo á contemplacao


total da figura de Cristo: como fo¡, quais os sentimentos que domina-
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