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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTTAgÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
£_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortaleca
J"" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
SUMARIO

Benevolencia e Verdade
O
O Evangelho de Marcos Antes de 50?

"Contra toda Esperanza"

"Da Teología ao Homem"

A Educacao na Nicaragua

"Homossexualidade: Ciencia e Consciéncia"

oo
O
ce
Q.

ANO XXVII _ MAIO — 1986


288
PERGUNTE E RESPONDEREMOS. MAIO - 1986
N9288
Publicado mensal

Diretor-Responsável:
SUMARIO
Estévao Bettencourt OSB
Autor e Redator de toda a materia Descoberta inesperada:
publicada neste periódico
O EVANGELHO DE MARCOS ANTES DE 50? 2
Diretor-Administrador

0. Hildebrando P. Martins OSB 22 anos em Gulag cubano:

"CONTRA TODA ESPERANQA", por Ar


mando Valladares 9
Administracáo e distribuicáo:

Edicoes Lumen Christi "Ensato sobre a Teología da Libertacao":


Dom Gerardo. 40 - #? andar, S/501
"DA TEOLOGÍA AO HOMEM", por P. - E.
Tel.M021» 291-7122
Charbonneau ' 25
Caixa postal 2666
20001 - Rio de Janeiro - RJ Urna Carta dos Pais de Familia:
A EDUCACÁO NA NICARAGUA 35

Composicáo e Impressao: Na Ordem do Dia:

"Marques Saraiva"
"HOMOSSEXUALIDADE: CIENCIA E
Santos Rodrigues. 240 CONSCIÉNCIA", por Marciano Vidal e outros . 41
Rio de Janeiro

Assinatura de 1986: Cz$ 100,00


Número avulso CzS 11,00 NO PRÓXIMO NÚMERO
Para pagamento da assinatura de
1986, queira depositar a importan 289 - Junho - 1986

cia no Banco do Brasil para crédito


"Sobre a Liberdade Crista e a Libertacao" (S.C.
na Conta Corrente n? 0031 304-1 D F ) - "Antropología do Sofrimento" (H.Leparg-
em nome do Mosteiro de Sao Bento neur). - "O Mito da Idade Media" (R. Pernoud).-
do Rio de Janeiro, pagável na Agen ''A Arte do Aconselhamento Psicológico" (Rollo
cia da Praca Mauá (n? 0435) ou en May). - "A Igreja da Libertacao" (filme). - Ensino
viar VALE POSTAL pagável na Religioso Interconfessional.
Agencia Central dos Correios do
Rio de Janeiro.

RENOVÉ QUANTO ANTES COMUNIQUE-NOS QUALQUER


A SUA ASSINATURA MUDANCADE ENDERECO
Benevolencia e Verdade
A suspensao do silencio imposto a Frei Leonardo Boff suscitou comen
tarios. Parecía que a Teología da Líbertacao de fundo marxista, que Leonar
do defenderá, estava reabilitada. — Ora tal nao é o caso.

Sem dúvida, Boff recorreu ao marxismo para elaborar sua teología — o


que foi erróneo. Mas o motivo mais poderoso da sua condenacao sao as teses
defendidas pelo franciscano no seu livro "Igreja: Carisma e Poder". Com
efeito; aos 11/03/85 a S. Congregacao para a Doutrina da Fé publicou urna
Notificado, em que chamava a atencao para quatro pontos erróneos da
obra: 1) Jesús nao teria fundado a Igreja; por conseguinte, esta pode ser re-
feita em nossos dias; 2) as fórmulas de fé seriam relativas a certa época e a
determinadas circunstancias; por isto seriam passíveis de reformulacao hoje;
3) a autoridade seria exercida na Igreja á semelhanca do que acontece nos
países totalitarios de esquerda, havendo, pois, manipulacSo dos bens de con
sumo (a palavra de Deus e os sacramentos); 4) cada crístSo é profeta, apto a
ensinar e servir na Igreja segundo o seu "carisma", cabendo á hierarquia ape
nas o papel de propiciar a harmonia entre os varios profetismos e servicos.
Foram tais proposicoes que provocaram decisivamente a intervencao da
S. Congregapao para a Doutrina da Fé; exigem urna retratacao que até hoje
nao ocorreu, pois o livro censurado continua a ser vendido sem retoque al-
gum, como se a advertencia da Santa Sé nao merecesse consideracao concre
ta.

A atitudede Roma para com Leonardo Boff foi de benevolencia ; a Igreja


nao somente é Mestra, mas também é Míe. Ademáis a imposicao de silencio
devia um dia, cedo ou tarde, chegar ao seu termo; a Santa Sé escolheu para
tanto a festa de Páscoa de 1986, que foi a celebracao do grande perdáb ou-
torgado por Deus aos homens. Tal benevolencia, que é também um voto de
confiañca, aguarda a correspondente atitude do teólogo. A Igreja tem o di-
reito de a exigir, pois a caridade ná"o pode estar dissociada da Verdade; as
verdades da fé, entregues por Cristo á Igreja, há*o de ser preservadas incólu
mes por vontade do próprio Senhor. Por isto Frei Leonardo tem urna divida
a resgatar para com a Verdade, ferida nos quatro pontos indicados pela S.
Congregacao para a Doutrina da Fé. Nao se pode reduzir o Cristianismo a
mera comunhao de caridade; esta, distanciada da luz da verdade, seria cega e
redundaría em traicao do próprio Senhor Jesús.

Permita Deus que o teólogo retifíque as suas proposicoes com a humil-


dade que sempre caracterizou os grandes homens e os santos!

E.B.
«PEROUHTE E RESPONDEREMOS»
ANO XXVII - n? 288 - Maio de 1986

Descoberta inesperada:

0 Evanselho de Marcos antes de 50 ?

Em símese: Na década de 1960 foram descobertos manuscritos gregos


na sétima gruta de Qumran (Palestina) ou 7Q. Destes um, o de n? 5, foi em
1972 identificado pelo papirólogo José O'Callaghan como sendo o texto de
Me 6,52s. Os críticos puseram-se a discutir a proposta, mas nos últimos anos
convergen? mais e mais para a aceitacSo da mesma, como se depreende do
carpo desta comunicacao. Se tal tese é verídica, como serios argumentos in-
dicam, os estudos da origem dos Evangelhos devem ser fundamentalmente
revistos: o Evangelho segundo Marcos seria pouco anterior ao ano de 50 -
o que muito o aproxima da pregacáo oral de Jesús (27-30 ou 30-33); fica
assim afastada qualquer tendencia racionalista a admitir um hiato entre Je
sús e os evangelistas - hiato que teña propiciado a formacao de mitos e f ic:
cSes em torno de Jesús. — O assunto já foi abordado em PR 154/1972, pp.
454-460. Agradecemos a gentil colaboracao do Pe. Joao Agripino Dantas
(Caico, RN) nesta reapresentacSo.

* * *

Até meados do sáculo presente o mais antigo fragmento ma


nuscrito dos Evangelhos que se conhecia, era o Papiro 52 (p") ,
também dito John Rylands 457 (pois está guardado na John Ry-
land's Library de Manchester, Inglaterra). Apresenta os dizeres de
Jo 18, 31-33. 37-38; deve ter sido escrito no Egito (pois lá foi
encontrado) por volta de 125. Tal papiro foi publicado pela pri
me ira vez em 1935 por C. H. Boberts. Em conseqüéncia, os estu
diosos puderam, e podem, afirmar com certeza que a redacao do
Evangelho segundo S. Joao se deu no fim do século I; se redigido
em Éfeso (Asia Menor), como de fato foi, admita-se o intervalo
de 25 anos, a fim de que pudesse passar da Asia Menor para o
Egito.
C.H. Roberts verificou aínda que o Papiro 52 (p") era um
segmento de folha escrita em frente e verso; apresentava sete li-

194
O EVANGELHO DE MARCOS ANTES DE 50?

nhas, de caracteres assaz nítidos. Tentando reconstituir a imagem


de urna folha inteira, concluiu que cada lado de folha devia apre-
sentar dezoito linhas, cada qual com trinta ou trinta e cinco le
tras; consecuentemente, o código assim formado teria compreen-
dido 130 páginas, cada qual do formato de 21,5 x 20 cm.
Esta descoberta arqueológica fo¡ de enorme importancia,
pois dissipou as teorías daqueles que datavam o quarto Evangelho
do século II, como se fosse obra de um discípulo dos Apostólos,
imbuido de filosofía grega mais do que de cultura ¡udeo-crista.
- Em nossos dias há quem situé a redaclo do quarto Evangelho
ainda em época maís recuada, ou seja, por volta de 70 - o que
é menos provável.
Todavía na década de 1960 veio a baila urna noticia ainda
mais surpreendente para os exegetas bíblicos: terá sido descober-
to um fragmento do Evangelho de S. Marcos redigído por volta
do ano de 50. As conseqüéncías desta nova descoberta eram de
grande alcance, como se depreenderá da exposicao abaixo. - Es
ta terá caráter de certa erudicao; nao o evitaremos para que os leí-
tores habilitados possam aferir o peso das respectivas conclusoes.

1. O AdHADO

1. Em 1962 tres arqueólogos publícaram a noticia de suas


pesquisas realizadas em pequeñas grutas do deserto de Qumran, a
N. O. do Mar Morto. Chamava-lhes a atencao especialmente a
gruta n° 7 (7Q), situada á parte das demais, na extremidade da
plataforma que se extende ao sul de Khirbet; continha tao-so-
mente manuscritos gregos, sem mésela de fragmentos hebraicos.
Todos eram de papiro, ao passo que ñas demais grutas se achavam
pergaminhos. Esses papiros eram portadores de texto sobre urna
só de suas faces - o que significa que pertenciam a rolos.1 Eram
estes os manuscritos encontrados em 7Q:

7Q1, que os estudiosos sem grandes dificuldades ¡dentif ¡caram com Ex


28.4-6;
7Q2, que com probabilidade foi identificado com Baruque 6 (carta de
Jeremías), versículos 43b-44.

1 Cf. M. Baillet/J. T. Milik/R. de Vaux, Discoveries in the Judean De-


sert of Jordán 111: Les Petites Grottes de Qumran. Oxford 1962.

195
4 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

Havia outros dezesseis manuscritos, que ficaram nio identificados, até


que em 1972 o papirólogo espanhol José O'Callaghan pro pos as seguintes
conclusoes de seus estudos:'

7Q4 = 1 Timoteo 3,16; 4, 1-3;


7Q5 = Marcos 6, 52-53;
7Q6i = Marcos 4,28;
7Q6j= Atos dos Apostólos 27,38;
7Q7 = Marcos 12,17
7Q8 = Tiago 1,23-24;
7Q9 = Romanos 5, 11-12;
7Q10 = 2Pedro1,15;
7Q15= Marcos 6,48.

Ora é certo que em 68 d.C. tais grutas foram fechadas e


abandonadas pelos monges hebreus (essénios) moradores da re-
giao; fugiram entao dos invasores romanos. Há quem julgue que
durante a segunda revolta judaica, ou seja, entre 132 e 135 as
grutas foram reabertas; esta hipótese é muito discutida pelos es
tudiosos, que geralmente aceitam a seguinte sentenca: as grutas
de Khirbet Qumran podem ter sido utilizadas entre 132 e 135,
mas a ocupacao das mesmas e o depósito de manuscritos em seu
bojo sao anteriores a 68 d.C.
Ora as propostas papirológicas de O'Callaghan eram sur-
preendentes e, se aceitas pela crítica, levariam a urna revisao total
das datas até entao assinaladas para a redapao dos escritos do
Novo Testamento.

2. Os pesquisadores, interpelados pelo enorme alcance


das teses de O'Callaghan, puseram-se a estudá-las com senso críti
co. As opinioes se foram dividindo a partir de 1972. Acontece,
porém, que nos últimos anos há consenso significativo, se nao
unánime, sobre a identidade de 7Q5: seria fragmento dos versí
culos de Me 6, 52-53. Esta afirmacao so pode ser comprovada se
se leva em conta o original grego de Me e a maneira como os ami
gos escreviam - o que ultrapassa a finalidade das páginas desta
revista. Como quer que seja, tentaremos esbocar o raciocinio dos
críticos, usando caracteres latinos.

1 J. O'Callaghan.i Papiros neotestamentarios en la cueva 7 de Qumran?


em "Bíblica" 53 (1972) pp. 91-100.
O EVANGELHO DE MARCOS ANTES DE 50?

Tratava-se de cinco linhas, com letras ora mais, ora menos


legíveis. Após muito conjeturar, O'Callaghan e sua equipe admi-
tem a seguinte configuracao para o papiro 5 da gruta 7 (7Q5):

ytone

e kaiti
nnes

thesa

Ora o texto assim reconstituido sugere algumas pondera-


coes:

a) Trata-se de um texto de escrita continua (sem separacao


entre as palavras). Nao obstante, na terceira linha há um hiato en
tre e e kaiti, o que parece estranho. Todavía explica-se bem pelo
fato de que o e termina urna narracao (a do caminhar de Jesús so
bre as aguas) e o kai dá inicio a outra seccao (a da cura de doen-
tes em Genesaré).

b) A palavra kai da terceira linha corresponde em grego á


nossa cópula e. Nao é a preposicao habitual para ligar as frases em
grego clássico; contudo ficou sendo muito usual ñas Ifnguas semi
tas (no hebraico e no aramaico, por exemplo). Sao Marcos, que
redige a catequese pregada por Sao Pedro em aramaico, conser-
vou freqüentemente no texto grego do seu Evangelho a parataxe
do linguajar semita ou a justaposicao de frases mediante a cópula
kai (e).

c) Na quarta linha há o estranho bloco nnes. Procuraram al-


guns identificar ai a forma verbal egénnesen (gerou), e concluí-
ram que o fragmento pertencia a urna tabela genealógica, como
seria a de Mt 1,1-14. O'Callaghan, porém, observou que tal bloco
bem poderia ser parte do nome Gennesaret, o que foi aceito por
outros críticos. Assim é que as cinco linhas se apresentam como
fragmento dos versos 52 e 53 de Me 6. Este fragmento supoe um
conjunto de versos mais ampio ou mesmo urna parte conspicua
do Evangelho, se nao o livrq inteiro de Marcos. O texto completo

197
6 . "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

do papiro 5 da gruta 7 de Qumran seria, em caracteres latinos, o


seguinte:
synekan e pitoisartoie
aliena ytone kardiapepopho
men e kaiti aperasantes
elthoneise nnes arektai
prosormis thesa nkaiexel

Os críticos perguntam qual seria a probabilidade de que o


conjunto de letras de 7Q5 possa ocorrer em outro texto (de sig
nificado inteligfvel) que nao Me 6, 52-53. E respondem que a im-
probabilidade de que tal aconteca é da ordem de 2,25 x 10'6515'.
é ao mesmo resultado que os estudiosos chegam quando pergun
tam: com que probabilidade um macaco, utilizando urna má
quina datilográfica, escreveria as obras de Goethe?... ou urna ex-
plosao ocorrente numa tipografía imprimiría as tragedias de Sha
kespeare? A probabilidade de que tais coisas acontecam é pratica-
mente nula.
3. O fragmento de 7Q5 foi redigido, como dito atrás, em es
crita continua, designada técnicamente como Zierstil (estilo de
corativo, ornamental). Ora a época de uso de tal escrita, como in
dica a paleografía, sao os decenios que vao de 50 a.C. a 50 d.C.
Isto quer dizer que 7Q5 nao é do ano de 68 (ano em que a res
pectiva gruta foi fechada e abandonada), mas é de 50 d.C. ou de
data anterior. Com efeito; é decrerque o manuscrito nao tenha si
do confeccionado em Qumran, mas que tenha vindo do Ocidente.
Para corroborar esta suposicao, observa-se o seguinte:
Na gruta 7 encontraram-se também fragmentos de um jarro,
cuja parte superior trazia duas vezes a inscricao hebraica r w m
(o que se lé Ruma). Em 1962 os pesquisadores admitirán) que se
tratasse de um nome próprio nabateno1, o qual indicaría o pro-
prietário ou o reméteme do jarro. Outros estudiosos maís tarde
pensaram na aldeia Ruma, que Flávio José menciona na obra
"Sobre a Guerra Judaica" 3,7:21. O arqueólogo J. A. Fritzmeyr,
perito em estudos de Qumran, propós que rwm seria a designa-
cao da cidade de Roma, capital do Imperio. Todavía os professo-

r
Nabatenos eram habitantes do deserto, que se fortalecerán e, nos
tempos de Cristo, constituíram um reino localizado na regiao de Petra, ou
se/a, na vizinhanca da Palestina.

198
O EVANGELHO DE MARCOS ANTES DE 50?

res Y. Yadin e D. Flusser, da Universidade de Jerusalém, replica-


ram que inscricoes em jarros nao costumam significar lugares ou
cidades, mas ou sao nomes de pessoas ou indicam o conteúdo do
respectivo jarro. — Esta última observacao seria fecunda no caso
de 7Q5: poderia significar que a comunidade crista* de Roma, en
viando esse jarro com os manuscritos (talvez mesmo como invo
lucro de um manuscrito), queriam lembrarque oscristaos de Ro
ma eram os doadores e remetentes de tais manuscritos. Esta supo-
sicao se torna especialmente plausível se levamos em conta que o
Evangelho de Marcos foi originariamente redigido em Roma (a
Tradipao refere que Marcos reproduziu, segundo o seu estilo, a
catequese pregada por Sao Pedro em Roma).

2. CONCLUSÁO

Depois de muito debater a questao, verifica-se que os críti


cos em nossos dias sao mais e mais favoráveis á tese de O'Cal la-
ghan. Varias tentativas foram feitas no sentido de propor outras
interpretares para 7Q5 (excluida a hipótese de se tratar de Me
6,52-53); os estudiosos, usando computadores, procuraram na
traducao grega do Antigo Testamento (dita dos LXX) urna passa-
gem que ilumine o conjunto de letras ocorrente em 705. Assim
pensaram em Ex 36,10-11; 2Rs 5,13-14; 2Sm 4,12-5,1, como
também pensaram em Mt 1,2-3. Todavia nenhuma destas possí-
veis explicacoes se revelou suficiente, porque exigiriam alteracoes
pouco verossímeis ou muito farpadas no texto de 7Q5 para poder
adaptá-lo á respectiva passagem do Antigo ou do Novo Testamen
to; de modo especial, o parágrafo ou o hiato da linha 3 dificulta
a adaptacao a outra seccao que nao Me 6,52-53. Em conseqiién-
cia, um dos últimos estudiosos do assunto, Carsten Peter Thiede,
concluíu após longas consideracoes: "Wer von 7Q5 = Mk 6,52-53
ais aeltestem erhaltenen Fragment eines neutestamentlichen Tex-
tes sprechen will, darf das ruhigen Gewissens tun. — Quem quer
considerar 7Q5 = Me 6,52-53 como o mais antigo fragmento até
hoje conservado do texto do Novo Testamento, pode fazé-lo com
a consciéncia tranquila."1
Tal conclusáo deverá ter enorme repercussao em toda a pes
quisa referente á origem dos Evangelhos: exigirá urna revi sao das

1 Ver bibliografía, artigo de C.P. Th. em Bíblica 65 (1984), p. 557.


199
8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

datas até agora assinaladas. A crítica do século passado, movida


por preconceitos racionalistas, tendía a distanciar da pregacao de
Jesús (anos de 27-30 ou 30-33) a redacto dos Evangelhos; esta
era atribuida ao século II (até o ano de 180). Tao longo intervalo
de tempo, segundo tais críticos, terá sido propicio á cria cao de
mitos ou de falsas imag'ens de Jesús elaboradas paulatinamente
pela fantasía popular e finalmente no século II consignadas pelos
evangelistas em seus escritos! Aos poucos, porém, tal suposicao
preconceituosa foi sendo desfeita pela evidencia dos manuscri
tos encontrados, entre os quais o p" mencionado no inicio des-
ta comunicacao.

Com o progresso dos estudos verifica-se que mais ainda se


devem aproximar entre si a redacao dos Evangelhos e a pregacao
de Jesús. Isto contribui para evidenciar que a fé crista nao está
baseada em ficcSes imaginosas da mente ignorante dos antigos,
mas na veracidade dos dizeres do próprio Cristo. O Evangelho faz
eco muito próximo e fiel a quanto disse Jesús.
Todavia alguém poderá indagar: o fragmento de 7Q5 supoe
o Evangelho de Marcos já em sua forma definitiva ou pertence a
urna das etapas da redacao desse livro sagrado? — Bons exegetas,
entre os quais Kurt Aland, rejeitam esta última hipótese. Toda
via a questao permanece aberta; qualquer que seja a resposta da
da, fica sendo inegável que entre as palavras de Jesús e as do
evangelista Marcos há continuidade; o Jesús descrito por Marcos
nao é um "outro" Jesús, mas é o próprio Jesús que caminhava e
pregáva pela Palestina.

Bibliografía:

Caster Peter Thiede, Ein Markus-Fragment ca. 50 n. Ch. geschrieben.


Sensationeller Befund mit weitreichenden Folgen, em: "Theologisches"
n? 188, dezember 1985, cois. 6769-6774.
ídem, 7Q. Eine Rückkehr zu den neutestamentlichen Papyrusfragmen-
ten in der siebten HShle von Qumran, em "Bíblica" 65 (1984), pp. 538-559.
José O'Callaghan, Papiros neotestamentarios en la cueva 7 de Qum
ran? em "Bíblica" 53 (1972). pp. 91-100.
M. Baillet/J. T. Mi/ik,/fí, de Vaux, Discoveries ¡n the Judean Desert
of Jordán til: Les Petites Grottes de Qumran, Oxford 1962, pp. 27-31 e
143s.
A revista "Bíblica" de 1972 e 1973aprésenla varios artigos e comuni-
capóes relativos ao assunto.

200
22 anos em Gulag cubanos:

"Contra Toda Esperanza"


por Armando Valladares

Em símese: As páginas subseqüentes apresentam um capitulo das Me


morias de PrisSo do poeta cubano Armando Valladares publicadas em cas-
telhano com o título "Contra toda Esperanza. 22 años en el Gulag de las
Americas" (Buenos Aires). O autor foi detido por confessar-se cristao; ora
em Campos de trabalhos forcados, ora em prisSes-gavetas, ora em ptitSes-
túmulos, foi sujeito a todo tipo de tortura (fome, sede, nudez, espanca-
mentas, pressóes psicológicas. . .) para que aceitasse a "reabilitacao políti
ca" ou a doutrinacüo marxista. Os seus carrascos o levaram varias vezes até
o limiar da morte, mas nido fizeram para que nao chegasse a morrer; nao
queriam provocar o martirio de um ccistab, mas a "conversao" do mesmo
para o comunismo. Armando Valladares resistiu com a graca de Deus, e, por
mediacao de varias autoridades estrangeiras, inclusive do Presidente Fran-
cois Mitterand, logrou a liberdade aos 22/10/1982, tendo sido preso com
23 anos de idade aos 28/12/1960. - O livro é de grande valor documentário;
deverá sair brevemente em traducao brasileira.

* * *

Armando Valladares é poeta cubano. Pelo fato de se ter declarado


cristao e haver resistido ao processo de "reabilitacáo política" l= doutrina-
pao marxista) do regime comunista de Cuba, foi encarcerado aos 26/12/1960
com vinte e tres anos de idade, e so foi libertado aos 22/10/82, após 22
anos de cárcere ou 7.236 dias e noitesde so frimemos ¡ndizíveis, pía nejados
e aplicados "científicamente" pelos revolucionarios cubanos. O seu único
crime foi haver dito: "Se Fidel Castro se revela marxista, eu nSo o poderei
seguir, porque sou cristao". Durante 46 dias do longo período de encarce-
ramento, negaram-lhe alimentos para tentar dobrar a sua vontade; em conse-
qüéncia deste e de outros maus tratos, passou oito anos em cadeira de rodas.
Finalmente Anistia internacional adotou Armando Valladares como
"prisioneiro de consciéncia". Governantes, intelectuais e a imprensa de to
das as partes do mundo ocidental exigiram sua liberdade. Em 1982 o Presi
dente Francois Mitterrand, da Franga, conseguiu que o poeta fosse soltó.

201
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

Já durante os anos de prisao A. Valladares comecou a escrever suas


Memorias. Posto em liberdade, publicou a obra "Contra Toda Esperanza.
22 arios en el Gulag de las Américas", Editorial ínter Mundo S.A., Buenos
Aires, Argentina, 160 x 230 mm, 412 pp.
O livro é altamente interessante porque revela realidades difícilmente
imagináveis e que nao ficam atrás dos campos de concentracao nazistas e
soviéticos. O mais desumano regime visava a dobrar os súditos nao confor
mistas, levando-os até o limiar da morte, todavía sem permitir que morres-
sem. As Memorias de Valladares seráo publicadas em tradupao brasileira
nos próximos meses. Délas extrai'mos o capítulo XL, pp. 292-302, que nao
é o mais aterrador de todo o livro, mas já diz muito do que é o regime mar-
xistaem Cuba.

UMA PRISAO NAZISTA NO CARIBE1

De todas as prisoes e de todos os campos de concentracao


de Cuba, a Penitenciaria de Boniato, na extremidade oriental da
Una, é a mais repressiva. Talvez tenha havido urna época em que
a/guns detentos ai experimentaran! condicoes normáis. Mas para
os prisioneiros políticos provenientes das provincias ocidentais
e para lá transferidos pelo Governo, Boniato foi e é sempre esse
inferno.
Boniato fica sendo o acampamento preferido pelos comunis
tas cubanos quando querem realizar experiencias biológicas e
psíquicas sobre um grupo de prisioneiros ou simp/esmente quan
do querem ocultar, espancar e torturar impunemente os seus
detentos. Escondido no fundo de um vale, cercado de campos
militares, afastado das aldeias e das estradas, Boniato é o lugar
ideal para esse tipo de experiencias. Ninguém consegue ouvir as
que/xas dos torturados nem as rajadas das metralhadoras. Os
gritos derradeiros dos moribundos se perdem também eles na
solidao dessa serie de montes e colinas. E as familias das vi'timas
estao longe, tao longe, a mil quilómetros de lá. E, quando após
urna peregrinacao interminável e esgotante, um familiar chega
perto da Penitenciaria, onde sofre um dos seus, é para receber a
ordem de voltar ao lugar donde veio. O ocultamento secreto é
um dos objetivos que nenhuma outra prisao conseguiu atingir
com tanta perfeicao.

1 Este é o título do capítulo, devido ao autor. Os subtítulos sao do


tradutor.

202
"CONTRA TODA ESPERANZA"

Para nos, a viagem para Boniato foiapiorde todas. A capa-


cidade dos vetolios carcerários era de vinte e dois prisioneiros,
apertados ao máximo. Ora éramos vinte e seis quando nos vimos
no interior do nosso carro, empurrados para dentro aos golpes
de coronha de espingarda.
¿ramos quatro num dos cárceres sobre rodas previsto para
tres detentos sentados. Eu me coloquei, como pude, debaixo da
banqueta de madeira, encurvado e esbarrando ñas pernas dos
outros. Embora muito sacudido, adormecí até que um dos meus
companheiros. Piloto, incomodado pelo cheiro de gasolina e afe-
tado pelo enjoo da viagem, comecou a vomitar. O único recipien
te que tfnhamos, era um pote déaluminio que eu Ihe dei.
Em Santa Clara, 300 km mais longe, distribuiram-nos, para
urinarmos, urna lata de conserva vazia. De novo deitei-me de
baixo da banqueta. Todas as vezes que o carro freava brusca
mente ou sempre que passávamos por cima de um trilho, um
tanto de urina pulava da lata e nos salpicava as pernas. Piloto
continuava doente e nada tínhamos para aliviar as suas náuseas.
Um dos nossos veículos sofreu um enguico ao chegarmos em
Camagüey, com a conseqüéncia de que a viagem durou mais de
vinte e cinco horas. Por fim, a-caravana estacionou diante da
entrada da prisao de Boniato. Quando o portao se abriu, tive
o tempo de perceber um ¡menso cartaz onde se lia um letreiro
muito em voga na época: "Cuba, primeiro territorio livre da
América!"
A segunda parada, dessa vez definitiva, ocorreu no fundo da
prisSo. Fizeram-nos entao descer e levaram-nos ao pavilhSo n? 5.
Diante da Seccao C, que era a do nosso destino, aproveitei o
tumulto causado pelos prisioneiros e guardas para entregar a
Enrique Diaz Correa, lá chegado antes de mim, um pequeño
pacote, que eu havia escondido e que continha urna cañeta,
urna minúscula fotografía de Marta,1 alguns pedacos de papel
muito fino e um pequeño frasco de tinta fabricada na prisao. Se
nSo tomasse tal providencia, eu teria perdido tudo quando, logo a
seguir, me rebuscaran), pois fui despido e examinado a fundo até
mesmo atrás da bolsa dos testículos.

Marta era a filha de um prisioneiro. amigo de Armando Valladares.


Casou-se com o poeta. (N.d. T.}.

203
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

Cercaram-nos semblantes hostis e baionetas sem nos perder


de vista por um só instante. Mas a nossa chegada se desenrolou
sem brutalidades. Naque/a noite foram-nos distribuidas, em latas
vazias de conserva de carne russa, tres colheradas de macarrao
férvido com um pouco de pSo. Era o dia 11 de fevereiro de 1970.
Esta data é também aqueta em que comecamos a sofrer um
plano de exterminio e de experimentacao biológica e psicológica,
que é o mais brutal, o mais desapiedado e o mais desumano de
todos os que o mundo ocidental conheceu depois dos crimes dos
nazistas. Um sistema totalitario de crueldade mental, de furor e
de torturas.
Boniato e as suas celas cercadas de muros ficario sendo para
sempre um testemunho atroz contra esse regime, a prova de que
Fidel Castro submeteu ao suplicio, condenou á loucura e as-
sassinou os seus presos políticos. Mesmo que se esquecessem todas
as outras vio/acoes dos direitos humanos cometidas por Fidel
Castro, o que aconteceu em Boniato bastaría para tornar o regime
castrista o mais cruel e o mais degradante de todos os que co
nheceu o continente americano.

Passamos a noite encerrados em quarenta celas. Para ir á la-


trina, tfnhamos que chamar o guarda. Coisa curiosa: nao houve
chamada de controle na tarde anterior. A minha cela tinha urna
esteira de saco de ¡uta esburacada.
De manha os guardas irromperam no corredor herrando e
chamando-nos "filhos da puta". Eu sabia o que isso significava:
esse tipo de carrascos precisa sempre de se excitar para criar cora-
gem; precisa de se embriagar, primeiro, com o barulho ensurde-
cedor das suas armas — barras de ferro ¡ntroduzidas num tubo
de borracha (para nao ferir a pele), cafados, espiráis de fios ele-
trieos, correntes e baionetas — com as quais batiam nos muros e
ñas grades.

Sem justificativa nem mesmo pretexto, abriam metódica


mente cela após cela, maltratando os ocupantes de cada urna. A
primeira cela era a de Martín Pérez. Lembro-me disto por causa
de sua voz grossa: senhor de si até o fim, ele continuou a maldi-
zer os comunistas sem fazer grosserias. Quis aproximar-me da
grade para ver, mas um golpe de corrente me jogou para tras;
o agressor faltou atingir-me no rosto, como ele evidentemente
quería.

204
"CONTRA TODA ESPERANQA" 13

Eu os ouvi abrir as celas n? 3, 4 e 5. Á medida que se


aproximavam, eu me sentía tomado de um temor interno que
contraía todos os meus músculos e me dificultava a respiracao.
O medo, a consciéncia de minha incapacidade e a cólera se mes-
clavam em mim, enquanto eu ia ouvindo cada vez mais distinta
mente o ruido dos golpes que eram desferidos sobre as.costas
nuas e os cránios dos meus companheiros, os arquejos de uma
futa desesperada, mas rápida, a queda dos corpos no chao. Eu
esperava a minha vez numa especie de alienacao de mim mesmo,
de aniquilamento, de destruicao do meu ser. Antes mesmo que
os carrascos entrassem ñas nossas celas, atguns de meus compa
nheiros de desgraca nao conseguiam conter-se, tendo a resisten
cia nervosa esgotada; punham-se a soltar gritos, cuja histeria
aumentava ainda o horror daquele momento.
O primeiro guarda que abriu a grade do meu cárcere, estava
armado com uma baioneta. Atrás dele, outros tres bloqueavam
a entrada. Apenas tive o tempo de observar que um deles trazia
uma corrente ñas maos. Para poder levantar os bracos e espancar
meu companheiro e a mim, tiveram que nos empuñar para o
fundo da cela; apesar disto, estavam quase colados a nos, e, dada
a nossa resistencia tenaz, quase nao conseguiram manejar as suas
baionetas e as suas correntes.
Fazi'amos tudo para nao nos separarmos, conscientes de
que o perigo seria ainda maior. Infelizmente caí por térra. Um
ponta-pé em pleno rosto me abriu uma ferida profunda no la
bio inferior. Quando voltei a mim, meu rosto voltado para o chao
jazia numa poca de sangue. Meu companheiro de cela tinha o
nariz a sangrar e o punho fraturado.
Houve diversos ferídos em grave estado. O sargento "Buena
Gente" tinha quebrado a maca do rosto de um dos irmaos Grai-
no. 0 golpe fora tao violento que a vítima tinha cuspido varios
de seus molares e o sangue derramado Ihe recobria uma face in-
teira do rosto. Pechuguita, um camponés de Pinar del Rio, pre-
cisou de doze pontos de sutura para fechar um ferimento no
couro cabeludo.
Fomos todos espancados, sem excecao, metódicamente,
cela após cela.

205
[f "PERGUNTE E RESPONDEREMOS1' 288/1986

Pior a expectativa da tortura do que a tortura

Depois dos carrascos vieram oficiáis e um médico, que nos


examinaran). Juntaran» todos os prisioneiros ferídos, e um en-
fermeiro, que empurrava urna carreta de medicamentos, costurou
e enfaixou os ferimentos. A cada qual dos ferídos repetirán) iróni
camente a mesma frase: "Nao vas dizer depois que te recusaram
os cuidados médicos!"
Quando voltamos para as nossas celas, julgamos que seria
para aguardar urna próxima surra.
Meu corpo estava recoberto de placas azuis. Eu tinha o ros
to ¡nchado e a sangrar. Quase nao podia ficar em pé, tantas
eram as dores que eu sentía por todo o corpo: mofdo de basto
nadas, tinha a pele dilacerada em varías partes do corpo. Mas o
que me tinha atetado mais do que os golpes, era a expectativa
dos mesmos, da qual eu guardava urna lembranca mais atroz do
que os meus próprios ferimentos. Tive mil vezes inveja dos pri
sioneiros da primeira cela: os carrascos entravam, espancavam,
mas sem que os prisioneiros sofressem antes a tortura mental
da espera, espera insuportável, capaz de me destruir os ñervos.
Um dos detentas ferídos mais gravamen te após essa primeira
onda de brutalidade era Odilo Alonso, um espanhol que emigrara
para Cuba no fim da década de 50. Quando Castro confiscou a
propríedade rural em que trabalhava, aconselharam-no a voltar
para a Espanha. Ele o podia, mas respondeu que Cuba /he abrirá
os bracos como a um filho e que o seu deverera lutarpela líber-
dade do país. Ele tomou urna espingarda, e foi reunirse ñas mon-
tanhas de Escambray aos guerriiheiros que combatiam contra o
comunismo. Feito prisioneiro, fora condenado a vinte anos de
reclusSo. Cristao idealista e generoso, recusava o plano de reabi-
litacao1. Até o último día guardou urna atitude intransigente
diante dos seus a/gozes.
Na noite seguinte, os nossos carrascos voltaram, e o pesade-
lo da manha recomecou: a lenta abertura das celas, urna após a
outra, os golpes, e aínda mais gente ferida.

1 fíeabilitacaó política era o regime de "reeducacao " que os presos polí


ticos cubanos podiam pedir quando renegavam os seus "erros"passados e
prestavam ato de submíssao ao castro-comunismo. Os "reabilitados" traziam
uniforme azul, como os presos comuns. (Nota do tradutor).

206
"CONTRA TODA ESPERAN CA"

Conseguimos, mediante gritos, comunicar-nos com as outras


seccoes do edificio: assim dissemos uns aos outros os nomes dos
ferídos mais graves.
Na manha seguinte, Odilo Alonso tinha a cabeca monstruo
samente inchada. Eu nunca vira urna tal inflamacao. O inchaco
atingirá o cranio inteiro, para tras das orelhas; dir-se-ia que trazia
urna peruca.

Após tres días de violencias á manha e á noite, alguns den-


tre nos jé nao conseguiam ficar em pé. Martín Pérez e de Vera
urinavam sangue; outros jé quase nao podiam abrir os olhos tesa
dos e quase colados por causa dos golpes. Isto, porém, nao im-
portava aos nossos torturadores: nenhum de nos, mesmo em tais
condicoes, escapava aos golpes.. .
O sargento Buena Gente, cujo verdadeiro nome era Ismael,
pertencia ao Partido Comunista. Tinha um bigode pendente a
moda de Pancho Villa. Quando os guardas se lancavam aoassalto
para nos espancar, ele nao deixava de aclamar o comunismo.
"Viva o comunismo!" era, para ele, urna especie de grito de guer
ra. Pedia aos outros que Ihe deixassem os ferídos para que pudes-
se baté-los por cima das bandagens: "Assim, explicava ele, nao
poderao provar que foram espancados duas vezesl"
Outro sargento batía também nos ferídos, mas dizendo o
contrario: "Assim hao de te costurar duas vezes!"
Em conseqüéncia dos golpes que Ihe haviam dado na cabeca,
o estado de Odilo se agravou. De suas orelhas comecou a sairpú's
misturado com sangue, e o seu semblante também ficou inchado.
Quando finalmente viram que ele já nao conseguía ficar em pé,
transportaram-no para o hospital.
Nem aos ferídos mais graves se dava ao menos urna aspirina.
Nossa seccao era um recinto fechado, do qual nSo safa prisioneiro
atgum a menos que estivesse em perigo de morte. E/es nao tínham
em absoluto a intencao de nos matar rápidamente; seria generoso
demais da parte dos nossos carrascos.

Sadismo científico para dobrar os prisioneiros

Eles tinham sempre o mesmo objetivo: torturar-nos e incu-


tir-nos um tal terror que acabaríamos aceitando o seu plano de
reabilitacao política. Para atingir a sua finalidade, planejaram
fríamente urna lenta e inexorável desintegracao: levar-nos-iam ao

207
16 'gERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

limiar da morte e ai nos manteríam, sem permitir que o atraves-


sássemos. Todo estava preparado com sadismo meticuloso, a tal
ponto que, quando partimos de Havana, fomos vacinados contra
o tétano. Doravante poderiam ferir-nos a golpes de baioneta ou
de machado, poderiam dilacerar-nos o coro cabeludo com suas
correntes, se'm que contraissemos essa molestia.
Nossa atitude coletiva foi analisada na revista Moneada,
órgao oficial do Ministerio do Interior. Foi Medardo Lemus mes-
mo o responsável pelas Penitenciarias e Prísoes, quem escreveu
ess'e artigo. Confessava que a nossa resistencia atrasava os planos
do Governo, Que Quería aplicar a todos os deten tos os métodos
da reabilitac'ao política, e que essa atitude de revoita e indisci
plina diante das normas penitenciarías era um mau exemplo para
os outros encarcerados. Era preciso, portanto, que nos isolassem
do resto da populacao carcerária. Certamente nosso comporta-
mentó se tornara um desafio a todos os métodos soviéticos des
tinados a quebrar a forca moral dos prisioneros.
Muitos foram os que nao puderam resistir aos assa/tos, duas
vezes por día, dos nossos carrascos, ao terror, as torturas psíqui
cas Acabaraffl por se vestir como os outros. Essas desercoes eram
dolorosas para nos, como se nos arrancassem um pedaco de nos
mesmos. Eu me sentía diminuido cada vez que um dos nossos
desertava. Anos de terror, de privacoes e o mesmo sonho de li-
berdade nos tinham tanto unido!
Como é difícil medir a capacidade de resistencia de um ser
humano! Os mesmos homens que haviam desferido o golpe de
fogo contra a ditadura casuista ñas montanhas da guerrilha ou
ñas cidades . ■ Que tinham cumprido missoes perígosas saindo de
Cuba e a¡"'entrando clandestinamenter .. que tinham multipli
cado as pravas do seu valor e do seu heroísmo, foram incapazes,
urna vez desarmados, de resistir por muito tempo ao terror, ao
ocultamento, 3 urna reclusao solitaria. Cederam. Mas afina! de
contas foi m'elhor para nos: nosso núcleo se consolidou por oca-
siao de cada defeccao.
De dia para dia, nosso corpo emagrecia, nossas torcas dimi-
nuíam nossas pernas já nao nos sustentavam, mas um cimento
interior se consol¡dava em cada um de nos, e sentíamos urna
forca indestnttível a levantarse dos recantos mais profundos do
nosso cerebro e da nossa alma. Cada golpe de baioneta, cada ve-
xame, cada ignominia, cada chaga só fazia fortalecer a nossa fé.

208
"CONTRA TODA ESPERABA" 17

Nos cárceres da Direcao da Penitenciaria, que haviam sido


preparados debaixo das escadas, os prisioneiros políticos resis-
tiram durante quase um ano. Esses ¡ovens haviam regressado clan
destinamente ao nosso país, desembarcando no litoral da provin
cia do Oriente.

Um oficial da Policía Política, que chamavam "El Pinto",


fora amigo de um dos prisioneiros. Vafeu-se dessa amizade para
engañar a todos, dando-lhes a crer que os ajudaría a fúgir. Ape
nas um dos detentos desconfiou da armad'i/ha e nao caiu nela. O
oficial forneceu-lhes todo o material necessário para abrirem seus
cárceres. Urna vez fora, nao chegaram nem mesmo ao primeiro
portao de seguranca: os guardas os esperavam atrás do pequeño
hospital. De urna só vez todos os projetores se acenderam, e
rajadas de metralhadoras abateram tres deles. O quarto, que
caminhava um pouco afastado numa faixa de sombra, pode es
conderse atrás de um monte de areia, declarando em alta voz
que se entregava. Os guardas Ihe responderam que se aproximasse
com as maos cruzadas por cima da cabeca. Quando chegou na
faixa iluminada, os guardas abriram o fogo das suas metralhado
ras. Assim foram assassinados aos 19 de marco de 1971 Armando
Rodríguez, Raúl Valmaseda, Mario Fernández e Rafael Pena.

Torturados a ponta-pés porque rezavam

Todos os días, ao cair da tarde, a voz reboante de Gerardo,


o pregador protestante que nos chamávamos "o Pregador da Fé",
fazia-se ouvir nos corredores da nossa prisao, chamando-nos to
dos a oracao: "Levanta-te, filho de leao, levanta-te e caminha,
pois o Senhor te espera!" E todos aqueles que o podiam, res-
pondiam ao seu apelo sempre igual.
Sem resultado, a direcao comunista tentou proibir toda
prática religiosa. Interrompiam nossas oracoes; mandavam que
nos calássemos, e nossa resistencia era a ocasiao de urna racao
suplementar de golpes.
Da primeira vez, estávamos a celebrar o culto quando os
guardas entraram em cada cela e nos espancaram a ponto que jul-
gávamos estar para morrer. Mas apenas haviam os guardas saído
de um cárcere, os prisioneiros espancados recomecavam a cantar
com os demais. Era urna cena impressionante. Os guardas se mo-
viam e distribuían) seus golpes, encarnando urna realidade que

209
_[8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

contrastava com a nossa, prísioneiros que rezávamos e cantáva-


mos. Vi na cela de frente os algozes tratar aos ponta-pés dois
prísioneiros caídos por térra. Mal, porém, haviam sai'do e as vfti-
mas recomecaram a dar gloria a Deus, enquanto aqueles que canta-
vam na cela vizinha se calavam sob os golpes durante alguns
instantes para, logo depois da saída dos carrascos, se associarem
ao louvor do Senhor proferido por todos os colegas. E, por cima
de todo esse tumulto, a voz do Irmao da Fé entoava: "Gloria,
Gloria, Aleluia!"
Certa noite, outro pregador protestante, o irmao Rivero lia
urna pequeña Biblia introduzida clandestinamente apesar da vigi
lancia dos guardas. Absorvido em sua leitura, deixou-se pegar em
flagrante. Ora a descoberta de um depósito de armas nao teña
perturbado os comunistas mais do que esse livrinho! Cinco minu
tos mais tarde, o diretor da Prisao, o Chefe de Policía Política e
um grupo de oficiáis estavam aglomerados diante da cela de
Rivero, um negro velho, que era todo bondade, carinho e docura
conosco, mas rebelde e azedo para com os inimigos. Entraram,
espancaram-no com um sabré de cava/aria. Por todo o corredor,
chegava até nos o ruido da pesada lámina de acó que se pro/etava
sobre as costas desnudas e veneráveis do irmao Rivero. Nao sei
mais quantos golpes Ihes ap/icaram para puni-lo do seu crime:
talvez quinze, vinte ou quicá mais, nao sei... Chetos de odio e
raiva, picaram diante dele a Biblia em pedacinhos antes de ir em-
bora, deixando o anciao com o dorso em carne viva.
A minha cela dava para a padaria, de tal modo que pude fa-
zer contato com um prísioneiro que trabalhava no forno. Nao
dispondo de outro papel, tive a idéia de utilizar o dos meus cigar
ros. Escrevi um bilhetinho para Marta e escondí-o dentro do mió
lo que tirei de um pedaco de pao. Para melhor dissimulá-lo, fiz
com isso urna bolinha. Depois, com muita cautela, aproveitei o
momento em que o preso estava sobre a rampa da padaria e os
arredores estavam vazios, e lancei a bolinha por entre as grades.
Ela rolou pelo chao até chegar quase aos pés do colega. Este nao
se abaixou para recolhé-la, mas pegou-a com os dedos dos pés e
colocou-a dentro do sapato. Na semana seguinte, o bilhete saiu
escondido dentro da dentadura postica do meu amigo. Chegou as-
sim ató Marta, que conseguiu fazé-lo sair do país a fim de atestar
a maneira como eram tratados os prisioneros.

210
"CONTRA TODA ESPERANgA" 19

Túmulos para encerrar esses mortos vivos

No pavilhao n? 4 estavam reformando as celas e as conver-


tiam nos cárceres mais desumanos e repressivos que ¡amáis exis-
tiram, com excecao das "celas-gavetas" dos campos de concentra-
ció Tres Macfos e San Ramón.
Día após día víamos horrorizados o avanco da construcSo.
Evitávamos talar do assunto entre nos. Apenas a contempláva-
mos com angustia crescente, sem comentario a/gum.
No dia 6 de Janeiro deixamos o pavilhSo n? 5 e passamos
para as celas muradas, nossos túmulos. Era um sinistro presente
de festa dos neis, dia de alegría que as enancas de Cuba ¡é nao
celebram porque foi supresso pelos comunistas. A nossa novaprí-
sSo parecia-se com urna cripta com vinte nichos de cada lado.
Todo o Estado-Maior da Penitenciaría assistiu ao desfile de nossos
corpas famélicos, com os ossos á flor da pele. A/guns arrastavam
as pernas. outros só podiam caminhar com ajuda. Aqueles que
empurravam as cadeiras de rodas dos inválidos, por sua vez.
apoiavam-se nelas. Jé éramos ruinas humanas..., mas o pior
aínda nao tinha comepado. Creip, porém, que havia em todos
os nossos olhos urna vida incrivelmente pu/ante, urna chama, um
anseio, urna decisao ¡nabalável: a de nSo nos dobrarmos. Exte-
nórmente esses olhos eram o único elemento que aínda conser-
vávamos vivo. Mas por dentro levávamos um mundo de sois e
estrelas, de luzes, de cores, e a vítalidade espiritual que os nossos
carcereiros nao nos tinham podido arrancar.
Nossas celas-túmulos tinham tOpés (3 metros) de comprí-
mento e 4,5 pés (1,35 mi de largura. Num canto, um buraco
fazia as vezes de latrina; em cima dele, quase pegado ao teto, um
tubo recurvado fazia as vezes de chuveiro. De fora, o guarda
de servico, posto na sua guarida, dispunha das duas chaves neces-
serías para abrir ou fechar, a seu arbitrio, o fornecimento de agua
de um e de outro lado do corredor.
Guando os militares acabaram de fabricar as celas muradas
do cárcere de Boniato, quiseram estudar os efeitos dos mesmos
sobre delinqüentes comuns. E puseram ali os mais "ferozes",
que já tinham passado anos em rec/usao. Esses criminosos, que-
rendo sair de lá, cortaram as veías de seuspunhos, engo/iram pre-
gos, pedacos de colher, pequeñas láminas; a ficar lá, preferíam

211
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

que Ihes fosse aberto o ventre. Aquele que mais tempo agüentou,
nao resistiu mais do que tres meses.
Esses "túmulos" foram construidos especialmente para nos,
presos políticos cubanos. Após os fracassos anteriores, as autori
dades confiavam na eficacia dos mesmos para atingir os seus obje
tivos. Segundo os seus construtores, essas celas muradas deviam
produzir aquilo que nao tinham conseguido os trabalhos foreados
na Una de Pinos, com seus pantanos, suas pedreiras, suas semea-
duras, suas torturas, suas mutilacoes e seus assassinatos.

Agora, ao escrever estas Memorias, nao posso deixar de pen


sar ñas centenas de homens que foram meus companheiros e
que aínda se acham nesse inferno, em condicoes aínda piores. Há
dois anos, para isolá-los aínda mais, a administracao penitenciaría
teve a idéia de levantar de cada lado desse pavilhao um e/evado
muro, mais alto do que o próprio edificio; a seguir, cotocaram
urna rede de árame ¡untando um muro ao outro, de modo que
todo o pavilhao ficou dentro de urna jaula. Os corredores eram
vigiados por circuitos fechados de televisao.
Os dirigentes das prísoes cubanas podiam estar satisfeitos.
Todos os diretores dos campos de concentracao e das Peniten
ciarias da provincia compareceram para nos ver inaugurar essa
obra-prima. Contentes consigo mesmos, riram com a ufanía de
filántropos e homens de bem que se congratulassem por ter cons
truido um hospital ou urna escola. Havia ironía e escarnio no tom
das vozes que nos chegavam, como se de antemao estívessem sa
boreando o triunfo que esperavam. Finalmente tornara-se urna
realidade a idéia dos cárceres-túmulos! Para tanto, os constru
tores haviam aproveitado toda a experiencia acumulada pelos
soviéticos, os tchecos, os húngaros e os comunistas alemaes em
materia de torturas e de aniqu¡/amento da pessoa humana. Tudo
o que havia de mais eficiente nos aparelhos repressivos da Europa
Oriental, estava conjugado naquela obra. Médicos epsicólogos de
países comunistas, inclusive de Cuba, prestaram sua contribu¡cao
científica ao preparo de regimes alimentares, ao cálculo de calo
rías, a producao de situacoes desestabilizantes, a provocacao das
doencas de carencia mais penosas.. .

Quando estávamos para entrar ñas celas, a/guns oficiáis nao


nos ocultaram que os mais duros dos prisioneiros comuns nao
haviam podido resistir a reclusao nesses túmulos; por conseguin-

212
"CONTRA TODA ESPERANZA" 21

te, antes de seis meses nos estaríamos pedindo perdió de ¡oe-


Ihos... Depois empurraram-nos para dentro dos cárceres. O
ruido dos cadeados e dos ferrolhos foi sufocado pelo barulho
ensurdecedor das pesadas portas de ferro que se fecharam atrás
de nos, sem que soubéssemos por quanto tempo. Alguns dentre
nos nao sairiam vivos dali.

Mergulhados nos excrementos e privados de agua

De manha o sol aquecia ao máximo a placa de ferro que


tapava a minha janela, voltada para Leste. A cela tornava-se en-
tao urna especie de forno onde eu me derretía em suor. Essa
transpíracio, acompanhada da emulsao gordurosa dos nossos po
ros, enchia com o seu odor fétido (semelhante ao de peixe po
dre) aquele espaco fechado e a escuridao perpetua na qual viviam
doís homens.

De tarde, á medida que o sol avancava, eram as placas da


frente que exalavam um calor de estufa. Passamos semanas inteiras
sem nos lavar. Os carcereiros, sentados em suas guaridas, abriam
os condutores de agua a seu bel-prazer ou por ordem superior.
Faziam-no sem se perturbar, a qualquer hora sentados a sua mesi-
nha, movendo as duas torneiras de comando. No verao esperavam
que as placas de ferro estivessem candentes. No invernó, abriam-
ñas de madrugada fría. Do corredor, anunciavam-nos, aos gritos,
que tinhamos cinco minutos para nos lavar. Quando calculavam
que tfnhamos o corpo coberto de sabio, fechavam as torneiras..
Diante do clamor de indignacao que se erguía, iam-se tranquila
mente para a cozinha a fim de tagarelar com os guardas do outro
pavilhao. 0 sabio secava sobre o nosso corpo, formando urna
especie de carnada pastosa que distendía a nossa pele e lambuzava
os nossos pelos e os nossos cábelos. Com os ñervos a flor da pele,
nos nio cessávamos de reclamar agua aps gritos — o que era urna
tortura a mais. Naquele inferno, tudo estava previsto para solapar
aos poucos o nosso equilibrio mental, a fim de realizarmos o
objetivo final dos nossos carcereiros.

Era-nos proibido ter um recipiente qualquer para fazerpro-


visao de agua; só nos era deixada urna lata de um quarto de litro.
Poucos días após a nossa chegada, o buraco-latrina da nossa pri-
sao se entupiu; ao redor deste, havia urna pequeña cavídade de ci-

213
22 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

mentó, que logo ficou cheia de urina, de excrementos e de um


liquido pestilento. Esse líquido, em que flutuavam excrementos,
transbordou, recobrindo aos poucos o chao da cela. Pepino e eu
fizemos o impossível para desentupir o buraco. Meternos nele o
braco tao profundamente quanto possível, como também as co-
Iheres. Tudo era inútil. Os nossos esforcos nao deram resultado.
Quando os guardas abriam as torneiras, tinhamos que ficar em pé
debaixo do tubo de agua, em cima daquele buraco onde ¡á havia
vermes. A agua caía diretamente no centro daquela poca infec
cionada, salpicando a nos e as paredes. A partir daquela ocasiSo
vivemos numa la trina, cujo mau cheiro insuportável aderia as
nossas narinas. Era como se tivéssemos constantemente um tam-
pao de excrementos dentro do nariz.
Para comer, segurávamos a lata na palma da mao, como se
faz sempre em casos semelhantes; faz ¡'amos tudo para nao tocar
os alimentos com nossos dedos e assim evitar qualquer doenca
contagiosa. Também nao usávamos a colher, mas derramávamos,
bem ou mal, o alimento diretamente dentro da boca como se
fosse um líquido. 0 cardápio era sempre o mesmo: macarrSo fér
vido, a/etria, pao,... pSo, aletria, macarrSo férvido.

Numa noite vieram buscar quatro dos nossos, que e/es


colocaram em outras celas, e outros prisioneiros ocuparam os
cárceres vazios. Quando o baruiho dos ferrolhos e dos cadeados
cessou e os guardas se retiraram, tentamos comunicar-nos com
esses detentos para sabermos quem eram. Mas em v§o chama-
ram-nos os colegas das celas vizinhas; nao responderam. Insisti
mos em inglés e francés, /'ulgando que talvez fossem estrangeiros.
Nada. Silencio permanente. En tao adormecemos. No dia seguíate
haverfamos de tentar mais urna vez fazer contato com os recém-
chegados. Talvez tivessem medo por serem prisioneiros novos.
Um grito horrível acordou-nos em sobressalto. 0 eco
repercutiu longamente nos corredores, onde o mínimo baruiho se
prolongava indefinidamente. E logo ouvimos, estupefatos, urna
explosao de gargalhadas, gritos e frases incoerentes... Haviam
colocado dois loucos naque/as celas. Com a chegada desses
infelizes, haviamos de ser acordados bruscamente em mu¡tas
outras madrugadas. Eram dois prisioneiros comuns, perdidos
irremediavelmente ñas trevas de um espirito que nao resistirá ao
encarceramento. A chegada desses pobres loucos fazia parte do

214
"CONTRA TODA ESPERANZA" 23

plano dos nossos carrascos: queriam a todo prego desintegrar-nos.


Desde entao passamos noites inteiras sem poder fechar o olho.
Esses gritos e gañidos eram desconcertantes. Dormiam durante o
dia, como mu¡tos dementes, para moverse e pór-se a berrar de
noite, como animáis, sem nos deixar dormir...

Resistencia que impressiona os carrascos

Passaram-se meses.
Um dia, foi visitar-nos um capitao da Policía Política. Esses
"especialistas" nao compreendiam a nossa resistencia, que osdei-
xava estupefatos. Vinha para pressionar-nos urna vez mais.
Nossos guardas nos tinham feito sair das celas para proceder
a urna vistoria. Estávamos ñus, com as costas coladas á parede
perto da nossa porta, quando ele entrou. Seu semblante era inex-
pressivo; ele nao caminhava normalmente, mas marchava como se
estivesse fazendo exercícios de infantaria. Deteve-se no meio do
pavilhao, com as mSos ñas costas, para comunicar-nos que a re
volucao, irritada por nossa atitude, nao a podía mais suportar e
que, se nao mudássemos de comportamento, seriam toreados a
tomar contra nos medidas enérgicas.

Prosseguiu, dizendo que a revolucao nos oferecera um meio


de sair do cárcere, sem odio e sem espirito de vinganca. Mas nSo
tfnhamos aceito. Se nos teimássemos, o alto comando do Minis
terio do Interior já tinha disposicoes e planos que seriam executa-
dos. Até entao, eles se haviam mostrado extremamente tolerantes
para conosco, mas nos tudo tfnhamos feito para esgotar a sua pa
ciencia:

"A revolucao nao quer despejar em cima de voces todo o


seu rigor,^ mas, se voces a obrigarem, nunca mais tomarao a ser
gente. Nao vamos matá-los, mas taremos de cada um de voces
um farrapo!"

E acrescentou ao sair:
"Nao o esquecam!"
As suas pa/avras haviam de ser mais do que simples ameacas.

215
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

O capítulo transcrito dispensa qualquer comentario. Apenas


Ihe acrescentamos o final do livro em foco, onde se lé a seguínte
declaracao de Fidel Castro, feita a jornalistas franceses e norte
americanos no Palacio da Revolucao em La Habana aos 28/07/83.
Foram publicadas no jornal Granma, edicao de 10/08/83. Trans-
crevemo-las no seu teor original:

"Desde nuestro punto de vista, nosostros no tenemos ningún


problema de derechos humanos: aquí no hay desaparecidos,
aquí no hay torturados, aquí no hay asesinados. En veintecinco
años de revolución, a pesar de las dificultades e los peligros por
que hemos atravesado, jamás se ha cometido una tortura, jamás
se ha cometido un crimen".

Alias, é notorio que, para o marxismo, o fim justifica os


meios - o que quer dizer que a revolucao justifica a mentira e a
hipocrisia.

NOVIDADE!

Além dos Cursos de Iniciacáo Bíblica e de Iniciacáb Teológica a Esco


la "Mater Ecclesiae" oferece. a partir de marco 1986, também um Curso
de Teología Moral por Correspondencia (em 28 módulos).
As inscricóes podem ser feitas em qualquer época do ano. A duracáo
do Curso está a criterio do aluno. Quem se matricular, receberá as primeiras
licoes em casa; após estudar, responderá ás perguntas respectivas- mandará
sua prova para a sede da Escola, que Ihe devolverá o trabalho corrigido jun
tamente cotn novas licoes. Taxa de inscricáo e 1°.s módulos: Cz$ 10,00.
Inscricoes e pedidos de informacoes sejam dirigidos á Escola "Mater
Ecclesiae", Rúa Benjamin Constant 23, 3? andar, 20241 Rio (RJ).
Sao Pedro nos diz que todo cristao deve estar sempre pronto para res
ponder a quem Ihe pega razoes de sua esperanca (1Pd 3,15). Amigo aprovei-
te a oportunidade de melhor conhecer sua fé e os porqués do seu modo de
vi ver cristao!

216
"Ensaio sobre a Teología da Libertagao":

"Da Teología ao Homem"

por P. — E. Charbonneau

Em síntese: O livro de Charbonneau elogia a Teología da Libertadlo


(TL) como Grapa de Deus, de valor perene. Todavía nao expoe com clare
za que tipo de Teología da Libertadlo é assim elogiado; ás pp. 155-158 o
autor sintetiza o seu conceito de TL em oito itens, que incluem a Doutrina
Social da Igreja; quem lé tais páginas, diria que o autor em seu livro tenciona
enaltecer a ética Crista Social. Todavía á p. 294 Charbonneau afirma que a
TL deve adotar elementos do marxismo sem se tornar marxista. Ora a Doutri
na Social da Igreja nao se coaduna com o marxismo, nem reconhece como
válida a análise marxista da sociedade que Charbonneau quer assumir. Daí a
ambigüidade central do livro. Outras muitas ambigüidades ou mesmo falhas
de conteúdo podem ser apontadas nessa obra: a identificacáo da Teología
clássica, académica, com o Nominalismo; a aversao ao arístotelismo, que te-
ria provocado a "aristotelizacao do.Cristianismo até hoje vigente" (I); a
apresentacáo da TL (impregnada de marxismo) como algo de tradicional,
arraigado ñas Escrituras e na Tradicao e fadado a afastarda América Latina
o marxismo.

é de notar que o ¡nteresse pelos pobres nao é privilegio da TL hoje


em dia discutida; a Igreja sempre o teve e praticou; a novidade da TL nao
está na proposta de justica e amor aos pobres (que ela nao poderá cumprir
se estiver aliada ao marxismo), mas, sim, no fato de que utiliza o marxismo
para tentar reformular a sociedade. — O livro, prolixo e irónico, se desdas-
sifica tanto por seu estilo como por seu conteúdo.

0 Pe. Paul-Eugéne Charbonneau, desta vez, entrega ao públi


co um livro sobre Teología da Libertagao (TL)1 ... Exalta a esta

1 Charbonneau. Da Teología ao Homem. Ensaio sobre a Teología da


Líbertagao. - Ed. Loyola, Sao Paulo, 1985, 210 x 140 mm, 311 pp.

217
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

qual Grapa de Deus ' (alias, o autor exaltou também o filme "Je
vous salue, Marie" como Grapa de Deus; cf. "Folha de Sao Pau
lo, 26/01/86, p. 94). Seria a mais genuína expressao da mensa-
gem bíblica e da Tradicao crista (cf. p. 86); seria "teología pere
ne, que nao passará como o Oeus que ela prega" (p. 115). "Inevi-
tavelmente toma emprestados alguns dos instrumentos de análise
oferecidos pela marxismo, pois ninguém melhor que Marx conse-
guiu explicar certos fenómenos que caracterizam a sociedade in
dustrial" (cf. p. 294)1; todavia, segundo o mesmo Charbonneau,
a Teología da Libertacao nao deve adotar a filosofía marxista
nem pactuar com o marxismo (p. 278); ela sería até "o único
obstáculo que se levanta entre o marxismo e a América Latina;
é cegó quem nao vé ¡sto, e infeliz quem nao o compreender"
(p. 154).
A TL opor-se-ia assim á Teología académica ou á Teología
escolástica e neo-escolástica, que Charbonneau castiga com seve
ros adjetivos. Em compensacao propoe como mestres os teólogos
da libertacao, entre os quais Gustavo Gutiérrez, freqüentemente
citado, Juan Luís Segundo, Leonardo Boff...
Frente ao magisterio da Igreja, que já se pronunciou sobre a
TL3, Charbonneau toma posícao Hvre. Afirma, sim, que o magis
terio simplesmente ordinario (isto é, os pronunciamentos do Pa
pa ou dos Bíspos que nao sejam definícoesde fé e de Moral) me
rece respeito e consideracáo prudente, mas nao é infalível ; por-
tanto "no caso do Magisterio simplesmente ordinario, a crítica é
o crisol em que se tempera a fé. Esta é a razao pela qual nao há
que ter medo. Contestar certas consideracoes veiculadas por do-

1 "Deus no-la deu; ela nao é outra coisa senao a expressSo da sua Gra-
ca. Longe de escandalizar-nos, desertamos todos rejubilar com o fato de
urna teología rao renovada nos tenido dada no momento propicio" (p. 117).
"Era preciso que surgisse urna Teología da LíbertacSo. Ela foi provo
cada pela Graca de Deus" (p. 126).

2 Charbonneau parece esquecer que na sua obra "Marxismo e Socialis


mo Real" ele mesmo criticou severamente os principios "científicos" do
marxismo: formulados em meados do sáculo passado, estariam ultrapassa-
dos em nossos dias. Cf. PR 239/185, pp. 101-122.

3 Cf. PR 277/1984, pp. 457-470.

218
."DA TEOLOGÍA AO HOMEM" 27

cumentos emanados de Roma será, portanto, legítimo, sadio,


ortodoxo. Os que se escandalizarem com isso, demonstram igno
rar as regras da interpretacao teológica" (p. 39). Por conseguinte,
Charbonneau se faz de juiz do magisterio ordinario da lgr.eja,
definindo o que haja de certo e de errado nos pronunciamentos
deste.

Em síntese, eis o conteúdo do livro, escrito em estilo proli-


xo e repetitivo, em tom nao raro irónico e caricatural, cheio de
adjetivos e de sentencas "magistrais", que dáo orientapoes tanto
ao magisterio da Igreja quanto aos teólogos da libertacao e aos
seus adversarios. Procuremos refletir sobre os principáis tópicos
dessa obra.

REFLETINDO...

1. A TL que o livro exalta

Como se sabe, a expressao "Teología da Libertacao" recobre


um leque de comentes teológicas*, inclusive o pensamento paulino,
que fala da nossa Reden cao e da liberdade dos filhos de Deus
frente ao pecado e á Lei de Moisés; cf. 1 Cor 6,20; 7,23; Gl 5,1.
Charbonneau, desde o cap. I do livro, menciona a TL (cf. p. 22),
mas nao explica o que entende por esta designacao. Só as pp.
155-157 expoe o "seu" significado de TL: refere entao oito itens
que compendiam tal significado. Ora quem os lé, tem a ¡mpres-
sao de que a TL apregoada por Charbonneau nao é senao a Dou-
trina Social da Igreja, que Charbonneau explícitamente abraca
no item 8: "A TL endossa tudo o que o Concilio apresenta como
sendo a Doutrina Social da Igreja, que nos oferece as pistas pelas
quais podemos escapar á ¡njustica" (p. 157). Os outros itens sao
todos inspirados em documentos de Paulo VI ("Evangelii
Nuntiandi") e Joao Paulo II, e nao em obras de Gutiérrez, Segun
do, Sobrino, Boff... Se tal é a proposta de Charbonneau, nao a
deveria chamar "Teología da Libertacao" (pois este vocábulo é
ambiguo) e, sim, "Doutrina Social da Igreja"; esta, com efeito,
merece os encomios que Charbonneau tece á sua proposta.

219
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

Infelizmente, porém, o autor entra em contradicao consigo


mesmo, pois á p. 294 afirma que sua Teología da Libertacao de-
ve adotar elementos do marxismo sem se tornar marxista. Ora
esta tese contradiz frontalmente á Doutrina Social da Igreja1. O
autor parece querer guardar urna "certa" fidelidade á Igreja, mas
sem desagradar (ao contrario, favorecendo) aos teólogos da li-
bertacao extremados.

2. O conceito de Teología

Como diz a etimología da palavra, teología é o discurso


(lógos) a respeito de Deus (Theós). Por conseguinte, ela supoe
a fé em Deus e na sua Palavra e procura aprofundar tudo que
esta nos diz a respeito de Deus e do seu plano de salvacao. Tudo
na Teología é considerado sob a luz de Deus, inclusive o próprio
homem e a historia. Do aprofundamentó teológico segue-se a
Etica ou a Moral Teológica; esta considera diretamente nao Deus,
mas o ethos ou os mores do homem, propondo normas para que
o comportamento do individuo e da sociedade mais e mais se
conforme ao modelo do Reino de Deus. A Moral teológica nao
anula nem dispensa a chamada Teología Sistemática, isto é, a re-
flexao sobre Deus em si (seus predicados, sua vida trinitaria), a
criacao, a Encamacao do Filho, a graca divina, a consumacao da

1 Alias, nao é esta a única contradicao em que incorre Charbonneau:


depois de haver combatido a filosofía grega e o uso da mesma (especialmen
te de Aristóteles) por parte dos teólogos medievais, inclusive S. Tomás, o
autor diz em seguida: "Com Santo Tomás a teología atingiu um climax. A
Suma Teológica é certamente insubstitufvel" (pp. 77s). Perguntamos: se é
certamente ¡nsubstituível, por que Ihe substituir a Teología da Libertacao,
que adota premlssas marxistas? Ademáis a Suma Teológica de S. Tomás
serve-se da filosofía aristotélica.
Á p. 138 diz o autor que a TL é "teología inédita", ao passo que á
p. 75 afirma: "A Teología da Libertario nao faz senáo exprimir em lingua-
gem acessfvel ao homem contemporáneo o que sempre foi ensinamento
da Igreja".
Oremos que, se Charbonneau tivesse escrito menos ou menos prolixa-
mente, teña evitado as contradicoes em que incorre.

220
"DA TEOLOGÍA AO HOMEM" 29

historia. Ao contrario, a Moral teológica so pode ser elaborada


como decorréncia da Teologia Sistemática (que é a teologia pro-
priamentedita).
Ora, quando Charbonneau se refere á Teologia da Liberta-
pao, parece ter em vista tao somente a Ética crista: é o que se
depreende dos oito itens expostos as pp. 155-157. A teologia, no
caso, já nao estudaria Deus e a riqueza de sua vida nem a criacio
nem o misterio da Encarnacao..., mas se voltaria para o homem
e a sua libertacao integral. Alias, é ¡sto também que insinúa o
estranho título do livro: "Da Teologia ao Homem"; significa que
passamos do discurso sobre Deus, considerado academicista,
inexpressivo, ultrapassado, para o discurso sobre o homem?
Também chama estranhamente a atencao a concatenacao de
conceitos proposta por Charboneau: a TL se interessa pela reali-
dade, nao por abstracoes (pp. 51, 56, 57, 69...). Opoe-se assim
á Teologia académica, que versa sobre abstracóes e irrealidades
(pp. 44, 49...) e que recorre ao instrumental da filosofia, especial
mente da Filosofia grega (que Charbonneau impugna duramente,
pp. 43s). Por sua vez, a Teologia académica é, muito erróneamen
te, identificada com o Nominalismo (pp. 45-49)'; é tida qual
Trigonometría matemática abstráta (p. 47) - o que só se pode
entender como decorréncia do espirito preconcebido caricatural
e sarcástico, a que Charbonneau cede em seu escrito. — Ora o
autor do livro assim generaliza e simplifica ou porque carece de
acume filosófico ou porque está obcecado por seu espirito crí
tico preconcebido. Com efeito.

1 O Nominalismo é urna escola de Filosofía da Idade Media. Afirma-


va que os conceitos universais (justica, fortaleza, beleza, flor, péssaro, ho
mem..J sao meros sopros de voz ou meros nomes, sem base na realidade
concreta. Tal corrente ficou sendo lateral dentro da Filosofia medieval; os
grandes mestres da época condenaram o Nominalismo, afirmando que os
universais nao sao meros produtos da mente, mas tém seu fundamento na
realidade concreta, donde sao abstraídos pelo raciocinio: quando vejo urna
crianca, um velho, um gordo e um magro, um branco e um preto, digo
que todos sao seres humanos; abstraio da realidade concreta de cada um a
sua esséncia perene e universal (sao viventes racionáis), que me permite dife
renciar da pedra ou da planta o ser humano.

221
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

1) Nao se diga que a TL é que recupera o homem e a reali-


dade concreta, ao passo que estes tinham sido esquecidos pelos
teólogos anteriores. A Teologia anterior á da Libertacao (que co-
meca na década de 1960) tinha profunda consciéncia do plano
de Deus neste mundo; cultivava sua antropología teológica e sua
soteriologia... Ela nao versava sobre abstracoes e irrealidades, a
menos que se diga que Deus e a sua •mensagem sao irrealidades.

2) A Teologia académica, isto é, a que estuda Deus como


tal e sua Palavra, está longe de ser Nominalismo; está longe de
"preparar o triunfo das palavras sobre Deus ou um diluvio ver
bal teológico no qual se afogara a verdadeira face de Deus"
(p. 46). Se houve teólogos nominalistas no fim da Idade Media
e posteriormente, estes nao representam a teologia clássica,
muito menos a teologia tomista (recomendada mais urna vez
por Lelo XIII, pelo Concilio do Vaticano II e pelo novo Códi
go de Direito Canónico, can 252, § 3). O estudo da verdade
como tal, sem preocupacóes utilitarias, é ¡menso valor; nem se
diga que a verdade é irrealidade - o que seria contraditório.
Está claro que a verdade é inseparável do bem, de modo que,
por si mesma, ela há de inspirar urna Etica altamente constru-
tiva, á qual se refere Sao Paulo em Ef 4,15: "seguir a verdade
em amor."
Quanto á utilizacao da Filosofía na elaboracao do discur
so teológico, nao há por que a condenar (como faz Charbonneau).
A própria Teologia da Libertagao extremada, rejeitando a Filo
sofía clássica, adota a Filosofía de Marx, segundo a qual a praxis
é anterior ao lógos e produz o lógos (ou o pensamento).

A Filosofia é a concatenacao lógica dos conceitos. Os gre-


gos, especialmente Aristóteles, elaboraram tal sistema que foi
posteriormente reconhecido como o mais lúcido e mais corres
pondente á verdade. E, assim como a verdade é urna só, também
a concatenacao verídica dos conceitos ou a Filosofia assim cons
truida vem a ser Filosofia perene; pouco importa que se derive de
Aristóteles, de Platao ou de outra fonte; a verdade será sempre
verdade e se imporá á inteligencia humana, qualquer que seja o
canal que a transmita.
■ "DA TEOLOGÍA AQ HOMEM" 31

Repetir a verdade em materia filosófica n§o é vergonhoso


para ninguém, como nao é vergonhoso repetir o teorema de Pi-
tágoras, os postulados matemáticos de Euclides, as le¡s da flutua-
cao dos corpos, da gravidade, dos vasos comunicantes já conhe-
cidas por Arquimedes e outros gregos pré-cristaos. Será que, por
tratar-se de verdades formuladas pelos gregos pagaos, deveremos
rejeitá-las?
Em conseqüéncia, nao se entende porque Charbonneau tan
to relativize a Filosofía, especialmente a Filosofía aristotélica,
quando o próprio Charbonneau utiliza urna Filosofía, que ele jul-
ga melhor do que as outras. . . Nao se entende também por que
Charbonneau chame a Filosofía grega (a aristotélica) Filosofía
paga (pp. 76-79); seria paga se estivesse impregnada de paganis
mo; mas, se impregnada de paganismo, já nao seria Filosofía (se
ria mitología); a Filosofía como tal nao tem confissao religiosa,
nao é nem paga nem crista, pois so atinge as verdades que estao
ao alcance da razio,

3) Também é estranho ler sob a pena de Charbonneau um


texto tao falso como este:
"Com o Concilio de Trento, a Palavra de Deus se tomón,
em última anal¡se, prisioneira dé Aristóteles. O paganismo havia
emprestado sua face ao Cristianismo, para a maior infelicidade
deste. . . 0 malfadado resultado foi a arístotelUacSo do Cristia
nismo" (p. 82).

A p. 88 diz Charbonneau que hoje estamos diante de urna


"caricatura de Jesús" ou de um "Cristo aristotélico". A Revé la
clo foi parausada porque se antepós Aristóteles a Cristo" (pp.
88s). Com que base o diz? Para provar o contrario, basta percor-
rer a bibliografia teológica e mística dos últimos séculos para veri
ficar quao vivo está presente o Cristo dos Evangelhos na reflexlo
católica. Somente um pensador preconcebido e desejoso de sati
rizar pode escrever tal inverdade.
A propósito observamos que o Cristianismo nunca deixou
de ser genuinamente tal; basta lembrar os santos que viveram na
época do Concilio de Trento (1545-1563) e nos séculos posterio
res: Sao Joao da Cruz, S. Teresa, S. Inácio de Loiola, S. Francisco
Xavier, S. Pedro de Alcántara, S. Vicente de Paulo e tantos ou
tros até S. Teresinha de Lísieux. . .; pouco ou nada souberam de
Aristóteles, mas no Evangelho beberam a sua doutrina, que deu
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

origem a escritos e ¡nstituicoes notáveis por seu vigor puramente


cristao. Registramos também que em nosso século XX, antes da
Teología da Libertacao, surgíram os movimentos litúrgico, bíbli
co e catequético, que sao testemunhos da vitalidade da Igreja a se
opor ao racionalismo dos últimos tempos e que vao muito mais as
fontes do Cristianismo do que a Teologia da Liberta cao. Mais: a
preocupacao com os pobres nao é bandeira da Teologia da Liber
tacao; é de todos os tempos da Igreja; muito antes que os teólo
gos da libertacao propusessem suas teses, os Papas haviam levan
tado o brado a respeito da questao operaría.
Nem se diga que a Teologia da Libertacáo é oriunda da Amé
rica Latina e orientada para as populacoes deste continente. Com
efeito; as premissas exegético-bíblicas da Teologia da Libertacáo
foram ha uri das ñas escolas do protestantismo liberal da Alema-
nha {de Rudolf Bultmann especialmente) por teólogos europeus
ou latino-americanos que estudaram na Europa. E, quando tal
teologia é apregoada ás populacoes simples da América Latina, es
tas se mostram desinteressadas por causa do secularismo de tal
pregacao (preocupada com greves, eleicoes políticas, inflacao,
Constituinte, Reforma Agraria. . .) e vao procurar ñas seitas pro
testantes a resposta para os seus anseios religiosos.
Ademáis nota-se que Charbonneau afirma muitas proposi
tes sem as documentar ou sem citar fontes ou textos básicos {ás
vezes refere-se a comentadores ou historiadores modernos, mas
nao se chega aos mananciais das idéias); é o que torna a sua obra
superficial, mais passional do que científica. Se tivesse sido mais
conciso, nao teria incorrido em tantas fainas de forma e de con-
teúdo.
Para ilustrar quá*o injusto é dizer que o tomismo ou a Teolo
gia clássica alheava os cristaos da realidade (realidade que só a
Teologia da LibertacSo estaria considerando adequadamente), po-
de-se citar o Papa Leá"o XIII: este tanto recomenda o tomismo
(em oposicao ás esteréis filosofías racionalistas e f i deístas do sé-
culo XIX) como é autor da encíclica Rerurn Novarum (1891),
que abre a serie dos documentos pontificios relativos á questao
social.

4) Também nao se pode aceitar a expressao de Charbonneau


ocorrente a p. 80: "reafirmar certos dogmas e formular novos
dogmas". — A Igreja nao cria novos dogmas; nao tem poder para

224
"DA TEOLOGÍA AO HOMEM" 33

tanto. Em suas def inicoes solenes, Ela apenas afirma serem dog
mas de fé verdades tao antigás quanto o próprio Evangelho.

3. O Magisterio da Igreja

Ás pp. 23-39 o autor trata do magisterio da Igreja, guarda e


intérprete do depósito da fé credenciado pelo próprio Cristo (cf
Mt 16,16-19; Le 21,31s; Jo 21, 15-17; Jo 14,16s; 16,13s).
Distingue oportunamente entre Magisterio extraordinario (o dos
Concilios Ecuménicos e o do Sumo Pontífice quando definem
proposicoes de fé e de Moral) e Magisterio ordinario. Ao primeiro
reconhece o carisma da infalibilidade; reconhece-o também ao
magisterio ordinario da Igreja, desde que implique o ensinamento
unánime e universal dos Bispos espalhados pelo mundo inteiro.
Quanto aos documentos pontificios (que Charbonneau classifica
como "magisterio simplesmente ordinario"), o autor os considera
falfveis, embora merecam respeito e consideracao (pp. 32-35).
"Isto significa que é possível descobrir falha, isto é, erras nos do
cumentos que criticam (por vezes ásperamente) as teses defendi
das pelos teólogos da Libertacao. Significa também que estes
erros, como tais, devem ser combatidos, já que os erros pontifi
cios, por solenes que sejam, nao gozam de privilegio algum peran-
teaverdade" (p. 38).

Estes dizeres sao altamente significativos. Charbonneau re


conhece a autoridade dos documentos pontificios, que por si nao
gozam do carisma da infalibilidade porque nao tencionam definir
proposicoes... Naprática, porém, afirma que qualquer fiel (p. 38)
pode arvorar-se em arbitro desses documentos e "filtrá-los" (p.
(p. 38) segundo o seu parecer pessoal. No caso, presume-se que
naja um dom de infalibilidade para qualquer fiel, dom que falta
ao Sumo Pontífice; qualquer fiel será juiz do Papa enquanto este
nao disser: "Defino tal ou tal proposicao. . ."! Assim poe-se ter
mo praticamente ao Magisterio da Igreja. Quando este fala, mes-
mo sem proferir definicoes, só o faz depois de muitos estudos e
após especial assisténcia do Espirito Santo, de que certa mente
nao se beneficia nenhum fiel em particular {nem mesmo um teó
logo). Observando isto, nao queremos cair no "infalibilismo",
mas desejamos lembrar que é preciso haver razoes muito serias e
densas para que alguém rejeite o magisterio da Igreja (Charbon
neau fala em "combaté-lo"); pode um cristao presumir, sem fal-

225
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

tar á fé e á humildade, ser o arbitro sempre infalível do magiste


rio falível? é preciso lembrar que o magisterio da Igreja nao éo
de urna Academia de Ciencias ou de Letras, mas é assistido pelo
Espirito Santo (como admite o próprio Pe. Charbonneau á p. 34:
goza da "garantia de urna assistencia do Espirito Santo de ordem
prudencial e pastoral").

A mentalidade assim instilada por Charbonneau (e outros


autores) tem levado a grandes danos dentro da Igreja: esta be le-
ceu-se o hábito do livre exame, segundo o qual vale para cada um
"o que ele acha" (o "achismo"). O espirito de fé se enfraquece,
de modo que muitas instituicoes (obras e Congregacoes Religio
sas) se vao esfacelando. A juventude, em vez de ser atraída pela
onda de subjetivismo, se afasta de tais instituicoes, que se encami-
nham para a extincao total por falta de vocacoes. E pelos frutos
que se conhece a árvore (cf. Mt 7,16-20); a perda da identidade
e a descaracterizacao de muitos setores da Igreja tém sido mortais
para os mesmos.

Muitas outras consideracoes poderiam ser feitas a respeito


do livro de Charbonneau. As suas expressoes eufóricas, semelhan-
tes áquelas com que o autor saudou o filme "Je vous salue, Ma-
rie", parecem fora de propósito. Os próprios teólogos da liberta-
cao nunca elogiaram tanto a sua teología como Charbonneau a
elogia. O enfoque passional que o autor toma, o seu caráter am
biguo e, por vezes, confuso sugerem ao leitor serias restricoes
a tal obra. Afinal de contas, que tenciona dizer de serio e cien
tífico?
* * *

Desculpa, Oeus, aínda nao sei rezar, pelo Pe. José (Zezinho) Fernandes
de Oliveira SCJ. - Ed. Santuario, R.Pe. Claro Monteiro 342, 12570 Apareci
da (SP), 98 x 135 mm, 158 pp.
Rezar nem sempre é fácil, visto que as coisas sensíveis nos atraem e di
ficultan? o diálogo com Deus. Por isto já os Apostólos pediram ao Senhor:
"Ensina-nos a rezar!" (Le 11,1). Consciente disto, o Pe. Zezinho procura
ajudar a quem o queira, principalmente aos jovens. No livrinho ácima pro-
posto, É margem de textos bíblicos, o autor formula oracoes de estilo vivaz,
que pSem á tona o íntimo do ser humano com seus anseios e seus proble
mas; o leitor é assim incitado a continuar a oracáb com suas próprias refle-
xoes e aspiraedes na presenca de Deus.
A obra lembra a de Michel Quoist: "Poemas para Rezar", que tanto
bem faz ao nosso público.

226
Urna Carta dos Pais de Familia:

A Educacáo na Nicaragua

Em símese: O documento aqui publicado é urna carta de pais de fami


lia nicaragüenses dirigida ao Ministro da Educacáo do seu país. Pe. Fernando
Cardenal: denuncia as táticas totalitarias aplicadas á educacSo de criancas,
adolescentes e jowens da Nicaragua, e expoe o sentido da libertacao que cor
responde as aspiracoes dos cristaos. O texto é corajoso e belo, além de muí-
to expressivo.

Como se sabe, o Ministerio da Educacáo na Nicaragua foi


confiado pelo Governo Sandinista ao Pe. Fernando Cardenal. Es
te (alias, suspenso de ordens pela Santa Sé por infringir normas
do Direito Canónico) tem feito as vezes de promotor do marxis
mo no setor que Ihe foi entregue, a ponto de provocar a réplica
das familias nicaragüenses cristas. Redigiram belo documento que
protesta contra a sufocacao dos direitos humanos assim ocorrente
e expoe o auténtico sentido da libertacao crista a que aspiram.

Abaixo publicamos o texto em pauta. O original espanhol se encontra


no boletim CELAM de junho 1985; foi traduzido para o francés e publica
do por "La Documentation Catholique" n? 1905, de 03/11/1985 pd
1035s. '

CARTA AO MINISTRO DA EDUCACÁO

Ao Pe. Fernando Cardenal


Ministro da Educacao

Sr. Ministro,

Com grande surpresa, os pais de familia dos colegios cristaos


tomaram conhecimento da carta circular enviada pelo Ministerio
de que estáis incumbido. Obriga todas as criancas da escola pri
maria, em coordenacao com a Associacao das Criancas Sandinis-
tas (ANS), a seguir, durante duas horas semanais, o que se chama

227
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

"o Plano de Educacao Patriótica da Infancia"; este compreende


palestras de índole política e militar, acampamentos, excursoes e
¡ogos que visam a formar ñas criancas urna mentalidade de Partí
do e a fomentar o odio das classes, a violencia, o gosto pelas ar
mas e a guerra. Além disto, tratase de um programa informal, pa
ra o qual nao existem conteúdo nem diretrizes previamente ma
nifestadas aos diretores de colegios, aos professores e, menos aín
da, aos país de familia (dado que o programa é enviado mes por
mes pelo Ministerio da Educacao). Assim tal programa pode cons
tar de tudo que passe pela mente dos responsáveis designados
pelo Ministerio; isto implica que os país sao obrigados, de olhos
fechados, a enviar seus filhos ao colegio a fim de que deformen)
seus coracoes e seus espiritos segundo os designios e os interesses
do Partido governante. Se bem que os programas de estudos atual-
mente em vigor, de acordó com o que se chama "Objetivos e Fi
nalidades da nova Educacao" — que foram impostos á revelia
dos país de familia, os quais os tiveram por inoportunos — já se-
jam bastante alienantes para os jovens adolescentes, a campanha
de doutrinacao se endurece agora contra os inocentes, dado que
nao encontrou eco na ¡mensa maioria da juventude que reflete.

AMEAgAÁLIBERDADE

País de familia, estamos extremamente preocupados com


urna serie de fatores que, dia após dia, adquirem maior significa
do no processo de educacao da juventude. Entre esses enume
ramos:

— Todas as materias do ensino (pré-escolar, primario, se


cundario e superior) tém conteúdo político, que se acentúa cada
vez mais rápidamente.
— O horario da semana é cada vez mais carregado de ensina-
mentos marxistas-leninistas, ao passo que a educacao da fé (nos
colegios particulares confessionais) nao tem espaco oficialmente
autorizado, de maneira que, cada dia que passa, é mais difícil a
esses colegios educar na fé, embora sejam oficialmente autoriza
dos a funcionar.
— Exerce-se vigilancia muito estrita e dura sobre a educacao
dispensada pelas instituicoes particulares, e sobre cada um dos di
retores dessas instituicoes (dos quais muitos sao estrangeiros)
pesa a ameaca da destituicao ou da expulsao.

228
A EDUCACÁO NA NICARAGUA 37^

— Os diretores de colegios, o corpo docente e os alunas in-


dependentes estao constantemente as voltas com pressoes do que
se chama "a Juventude Sandinista Wdejulho". Esta, embora se-
ja urna pequeña minoría (mesmo ñas escolas públicas), recebe o
apoto do Ministerio, da Polfcia Sandinista, da ANDEN, dos CDS
e de todas as autoridades do país para impor pela forca as suas di-
retrizes políticas.

— £ exercida pressao sobre os professores para que se filiem


é Associacao Nacional dos Educadores Nicaragüenses (ANDEN),
que vem a ser um organismo de massa inscrito na Frente Sandi
nista de Libertacao, através do qual o Estado canaliza as subven-
coes especiáis para os professores "conseqüentes" e mantém a
maioria numa situacao de inquietude.

— Há ingerencia de pessoas estranhas as escolas no processo


educativo, como também no programa dito "de formacao voca-
cional", que escapa ao controle dos diretores de colegio e dos
professores, os quais nSo sao autorizados a assistir as aulas de
tal programa. "Técnicos" sao enviados pelo Ministerio da Educa-
cSo, a freqüéncia é obrigatória e controlada por um membro
da Juventude Sandinista. Como .explicar esse segredo e esse regu-
lamento tao peculiar?

Pais de familia, julgamos que os jovens devem receber nao


apenas os conhecimentos que Ihes servirao para se formar como
profissionais liberáis ou técnicos, mas também urna educacao que
Ihes permita agir na vida cívica como cidadaos plenamente forma
dos; isto, porém, está longe do que se tenciona fazer na Nicara
gua, onde as autoridades querem aproveitar o processo educativo
para utilizar a ¡uventude em prol de urna ideologia materialista
estranha, que nega o valor da pessoa humana como tal. Nem se
pode alegar que estamos a formar cidadaos verdaderamente Ii-
vres, marcados por urna ideologia independente e pluralista, e nao
alienados em relagao as potencias estrangeiras, pois todos sabe
mos que tal nao é o caso.

A VERDADEIRA LIBERTAQÁO

Queremos que nossos filhos conhecam seu país, que o amem,


que se sintam ufanos de ser nicaragüenses e que nao tenham de

229
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 285/1986

sofrer no estrangeiro pelo simples fato de serem tais. Queremos


que se formem cidadaos íntegros, sinceros, fraternos, de espirito
e coracao puros, que amem seu próximo e /he sirvam, que cons-
truam a paz e a unidade mediante o amor e o sacrificio, e que
amem a liberdade como pessoas, como ñiños de um Deu's infini
tamente bom e generoso, que os torna livres para que procedam
como cidadaos dignos de seus atos. Nao queremos que nossos fi-
Ihos se/'am apenas números numa multidao amorfa, que obede-
cam a ordens que nao correspondam nem mesmo aos interesses
do seu país. Nao queremos vt'ver num país em que os cidadaos
pensam como Ihes manda o Partido governante e em que é delito
"nao estar de acordó" com o modo como os interesses públicos
da nacao sao tratados. Também nao imaginamos que os nicara
güenses possam aceitar um Estado policial, em que os membros
da mesma familia desconfiem uns dos outros. NSo podemos
aspirar a esse tipo de "iibertacao".

E tudo depende da educacao. Vos, que sois sacerdote, sa


béis, meihor que muitos, de que é que nos devemos libertar. Sa
béis que as causas da servidao, nos nao as encontramos fora das
nossas fronteiras, nem para além das paredes de nossos lares, nem
mesmo fora de nossas prúprías pessoas. Como sacerdote, sabéis
onde se encontra a raiz do pecado e por que ele frutifica. Como
sacerdote, sabéis o que o Senhor espera de nos comopaisde fami
lia, como filhos, como irmaos, como amigos. Sabéis como fomos
formados e por qué. Sabéis que os pais de familia tém urna obri-
gacao sagrada a cumprir para completar a obra que o nosso Cria
dor iniciou. Sabéis que isto nao é apenas um deverque enche de
alegría e que todo pai de familia está disposto a cumprir com
amor, mas é também um direito que nao nos foi conferido por
algum Estatuto, Dec/aracao, Convenció ou Lei, mas que recebe
mos, ao nascer, como parte de nos mesmos e que, por conseguir)-
te, nao podemos ceder nem delegar nem transferir a quem quer
que se/a, mesmo que isto se chame "o Estado".

Nos, como cristaos, em maioría católicos, eremos que, se o


Governo que dirige este pais vos escolheu a vos sacerdote para
Ministro da Educacao e mostrou grande empenho em que con
tinuéis como responsável por essa pasta, é porque ele considera
que, como sacerdote católico, estáis ñas melhores condicoes para
dirigir a educacao neste pais, de acordó com a doutrina que nossa

230
A EDUCAgÁO NA NICARAGUA 39

Santa Mae a Igreja apregoa em materia de educacao. Ele (o Go-


verno) reconhece, de fato, que tal é a verdadeira educacao liberta
dora.

£ por isto que temos confianza em que sabereis reorientar


os rumos que a educacao vai tomando em nosso país, segundo o
que se espera de vos como discípulo de Jesús Cristo, e nao segun
do o que recomendam os tao numerosos conselheiros estrangeiros
que ocupam os Departamentos desse Ministerio. Como primeiro
passo em demanda dessa reorientacao, nos vos seriamos gratos
se suspendesseis ¡mediatamente o "Plano de Educacao Patriótica
da Juventude" que recordamos atrás e que motivou esta exposi-
cao.

Contai com nossas oracoes para que o Senhor vos ajude a


cumprir a tarefa sagrada que, direta ou indiretamente, Ele con-
fiou a vossa responsabi/idade.

Rogamo-vos excusar-nos por nos termos dirigido a vos de


maneira pública. Dada a urgencia do assunto a tratar, nao podía
mos esperar que nos oferecesseis urna audiencia mais tarde; nao
obstante, estamos dispostos a nos encontrar convosco quanto an
tes para tratar de maneira mais ampia deste e de outros temas de
interesse comum.

Nos vos saudamos com votos cristaos de Páscoa, que impli-


cam simultáneamente o sentido antigo da Páscoa, o da libertacSo
da escravidao (Antigo Testamento), e o sentido novo que Ihe deu
a ressurreicao de Nosso Senhor, o da libertacao do pecado.

Cristo ontem.
Cristo hoje.

Cristo sempre.

Que Deus vos abencoe!

Managua, 9 de abril de 1985

O Comité de Direcao da UNAPAFACC (Uniao Nicaragüense


das Associacoes de Pais de Familia dos Colegios Cristaos).

231
40 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

Sofon/'as C/SNEROS L, Presidente


Francisco ECHEGOYENM., Vice-presidente
Francisco ORTEGA G., Secretario.

Seguem-se 23 outras assinaturas.

O texto é tao significativo que dispensa comentarios. Bem


p6e em relevo a importancia básica da educacao numa sociedade,
a ponto de que todo Governo totalitario, logo que sobe ao poderi
tente monopolizá-la, a fim de conseguir formar cidadá"os obedien
tes as ordens dos governantes e incapazes de ter seu modo de pen
sar próprio. O texto também poe em relevo o modo sorrateiro e
dissimulado como procedem os regimes totalitarios: guardando
capa democrática, sufocam por vias aparentemente legáis ou ino
cuas a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Isto lembra a
palavra do Senhor Jesús: "Quem faz o mal, odeia a luz, e nao vem
para a luz, para que suas obras nao sejam demonstradas como cul-
páveis. Mas quem pratica a verdade, vem para a luz, para que se
manifesté que suas obras sao feitas em Deus" {Jo 3.20s).

A enanca e a Televisao. Amigos ou Inimigos?, por Luiz Monteiro Tei-


xeira. - Ed. Loyola, Sao Paulo 1985, 140 x 205 mm, 61 pp.
O autor registra influencias negativas da prolongada assisténcia á tele-
visSo por parte de enancas. As pesquisas revelam que, de modo geral, a
enanca gasta mais tempo assistindo aos programas televisionados do que de-
senvolvendo qualquer outra atividade, a nSo ser o sonó. A televisao se Ihe
torna urna "escola paralela ", que influí sobre os pequeños mais do que a es
cola institucional. Tal influencia prejudica a saúde física e a saúde mental da
enanca, além de interferir deleteriamente na formapáb moral da mesma. Em
conseqüéncia, o Prof. Luiz Teixeira ná*o recomenda que se proiba a televisao
ás enancas (o que seria antididático), mas, sim, que se proponham outras
atividades mais condizentes com o seu estágio de desenvolvimento, a fim de
que "nao se torne um futuro consumidor passivo de produtos e idéias". é
importante também que os pais proporcionem aos filhos um debate crítico
acerca dos programas apresentados. - O livro é bem documentado e enri
quecido com a narracao de tatos, de modo a merecer o acato de pais, educa
dores e da sociedade em geral, fortemente influenciada pelos meios de co
mún ¡cacao social.

232
Na ordem do dia:

"Homossexualidade: Ciencia e Consciéncia"


por Marciano Vidal e outros

Em sfntese: Os estudos do livro em foco, de caráter interdisciplinar,


convergem para amenizar o julgamento sobre o homosexualismo. Este, ao
menos em certos casos, poderia ser aceito na sociedade ao lado do heterosse-
xualismo. A principal razao aduzida vem a ser o caráter ainda obscuro do
fenómeno homossexual; nao devería ser avaliado do ponto de vista mera
mente biológico ou fbiológico, mas do ponto de vista psicológico e afetivo;
se praticado por amor, dizem, é algo que tem seu valor e merece respeito no
plano ético ou moral.
A propósito observamos que 1) o livro n3o leva na devida conta a lei
natural, que é parámetro seguro para se julgar o homossexualismo como
prática aberrante no plano fisiológico e, por conseguinte, no plano ético;
2) o livro nada diz a respeito dos recantes procesos terapéuticos aptos a
reintegrar o homossexual na sociedade. Hoje em dia existem estudos que
aparesentam resultados notáveis obtidos mediante tratamento psicoterapia
de individuos homossexuais.

* * *

9 'lvr? "Homosse*ual¡dade: Ciencia e consciéncia" é obra


interdisciplinar, que estuda o mesmo tema do ponto de vista da
biología, da antropología cultural, da psicología, da sociología, da
Biblia, da historia do Cristianismo, da Moral e do Direito. Colabo-
ram na obra Marciano Vidal, Javier Grafo, José María Fernández-
Martos, Pablo Lasso, Gregorio Ruiz, Gonzalo Higuera, professo-
res do Departamento de Praxis da Universidade Comillas (Ma
drid)1. Trata-se de um estudo ampio, que tem certo peso. Por is-
to vamos dedicar-lhe as páginas subseqüentes, analisando a sua te
se fundamental, que perpassa os diversos artigos e procurando
refletir sobre a mesma.

1 Tradufio do espanhol por Roberto Peres de Queiroz e Silva e Marcos


Marcionilo. - Ed. Loyola, Sao Paulo 1985, 140 x 210 mm, 154 pp.

233
TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

1. ATESEDOLIVRO

Nos estudos referentes á "Ciencia" (pp. 7-80) é posto em re


levo o caráter aínda obscuro do homossexualismo: seria fenóme
no congénito, arraigado no próprio processo genético do indivi
duo? Seria, ao contrario, devido ao ambiente em que o individuo
cresce, e as influencias que sofre durante os seus anos de forma-
cao? Com outras palavras: teria raizes biológicas ou meramente
psicológicas?

Após longas explanares, o Prof. Javier Grafo ("Biología da


Homossexualidade") concluí seu estudo com as seguintes palavras:
"Embora os dados biológicos se/am aínda fragmentarios e
incompletos, nao se pode excluir, em minha opiniao, que deter
minados fatores biológicos tenham importante incidencia no fato
da homossexualidade: fatores genéticos, influencias hormonais
pré-natais, sexualizacao do cerebro. . .Sobre estes pontos se faz
necessário um maior aprofundamento, que deverá ser levado em
conta em urna avaliacao integral do fenómeno da homossexua/i-
dade. Em qualquer caso, os dados que citamos, parecem apontar
preferencia/mente para urna explicatSo psicológica ou sociológica
atual dos nossos conhecimentos, a possibilidade de que determi
nados fatores biológicos possam favorecer ou predispor para um
comportamento homossexual" (pp. 29s).

Em nome da Psicología, concluí o Prof. José María Fernan


dez-Martos:

"Eu, a partir da psicología clínica, sonho com o dia em que


o homossexual se veja e viva muito mais integrado no conjunto
da humanidade. Se fantasiamos esta como urna grande orquestra,
pensó que cada um de nos traz, desde nossa primeira idade, iden-
tidade e pobreza á singular música de nosso instrumento. A sinfo
nía conjunta iría mal, se o oboe desprezasse o celo, ou o piano a
flauta, ou oyiolino se enchesse de orgulho e nao soubesse retirar
se em movimentos rápidos. Coube ao homossexual um instru
mento nada fácil de dominar, mas creio que nem por isso menos
valioso ao conjunto. Sua maior sensibilidade, seu sangrar com a
conflitividade do humano, sua falta de defesa, sua capacidade pa
ra o matiz, etc. podem-nos ser valiosíssimos por integrar em nossa

234
"HOMOSSEXUALIDADE: CIENCIA E CONSC1ENCIA" 43

grande orquestra tao heterossexual, machista e viril e que, para


ser sincero, nao passou, depois de sáculos, de tocar uma fan farra
mais ruidosa que atraente e melódica. Quem sabe tenham algo de
cómico o trombone ou o bumbo, mas lá estao com sua surpresa e
seu encanto. Por desgraca, nao é apenas a minoría homossexual
que os da orquestra dos fortes e 'como devem ser' mantSm a mar-
gem. Ai estao outros instrumentos esperando ser ouvidos: defi
cientes físicos, Terceiro Mundo, idosos,etc. Eles sao mais pobres
ou menos valiosos? Teñamos de parar e ouvir a sua música"
(p. 64).

Logo no primeiro artigo, Marciano Vidal e J.M.F.-Martos


afirmam: "é o homossexual, enquanto homossexual, um anor
mal? Nossa resposta decidida é: nao" (p. 12). A p. 15 acres-
centam: "Todos estes fatos indicam que a homossexualidade é
uma variante, se preferível, nao desejável, porém, lógica e normal
dentro do vastíssimo reino da sexualidade humana".

Passando ao plano ético. Marciano Vidal pondera diversos


aspectos da questao e afinal nao toma pos ¡cao moral diante do
fenómeno: critica tanto a total condenacao como a total libera-
cao do homossexualismo, e propoe em sua conclusao alguns itens
significativos:

"/. Impde-se, em primeiro lugar, adotar uma atitude de pro-


visoriedade ñas abordagens e ñas solucoes, sejam estas de caráter
aberturista ou conservador. Os dados antropológicos nao sao defi
nitivos: conseqüentemente, o /uízo ético nao pode ser fechado. A
avaliacSo moral da homossexualidade deverá ser formulada em
uma chave de busca e de abertura.. .

4. Destacamos, de modo especial, o respeito á estrutura día-


/ética do ¡uízo ético, que tem de ser ao mesmo tempo objetivo-
subjetivo e particular-geral. Nao se pode cair em reducionismos
nem 'objetivistas e universa/izantes' nem 'sub/'etivistas e carismá-
ticos'.

6. Para o homossexual irreversível, a coeréncia salvadora pa


ra sua situacSo nao passa necessaríamente pela única saída de
uma moral rígida: mudanga para heterossexualidade ou abstinen
cia total. A moral crista é suficientemente criativa e salvadora pa
ra q matiz etc. podem-nos ser valiosíssimo por integrar em nossa

235
fj "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

cial, ao ser humano que, sob o olhar do Deus Amor, se encontra


existindo a partir da condigao homossexual" (pp. 125s).

Dir-se-ia que, conforme Marciano Vidal, o juízo ético favo-


rável ou desfavorável á prática do homossexualismo varia de caso
para caso. Poderá haver situacoes em que tal procedimento será
lícito, como também haverá circunstancias em que o mesmo seja
moralmente ilícito.

A posicao de Marciano Vidal parece representar bem a men-


talidade da obra; esta nao assume atitude definida diante da práti
ca do homossexualismo; tende mesmo a fazé-lo passar por legíti
mo em muitos casos (excluidos naturalmente aqueles em que o
homossexualismo implica violencia sobre parceiro, abuso de
enancas e adolescentes, prostituicao homossexual...). A Biblia e
a Tradicao da Igreja sao abordadas também em termos liberáis, de
modo a nao se tirar dessas fontes nenhum argumento que conde
ne peremptoriamente as práticas homossexuaisquando derivadas
de homofilia ou de "amor". Entre as razoes alegadas em favor de
um juízo brando sobre o assunto, está a seguinte: na Idade Media
considerava-se a prática homossexual únicamente do ponto de
vista biológico ou genital (era tida, em conseqüéncia, como anti
natural); ora nos tempos atuais dever-se-iam levar em conta o
relacionamento interpessoal e os afetos que o homossexualismo
propicia e exprime (cf. pp. 104s). O fato de ser urna manifesta-
cao de "amor" tornaría legítima a prática homossexual.

2. UMA REFLEXÁO

Proporemos tres pontos.

2.1. O criterio básico

1. O livro em foco, cheio de ponderacoes e propostas formu


ladas em nome da ciencia e da filosofía contemporáneas, eviden
cia a necessidade de se procurar um ponto de partida e o fio da
meada para avaliar a prática homossexual. Ora esta hade ser jul-
gada á luz da lei natural. A natureza normalmente leva seus indi
viduos á masculinidade ou á feminilidade (biológica e psicológi
ca); urna existe para encontrar sua complementacao (física e psí
quica) na outra... complementacao que se traduz no fruto do

236
"HOMOSSEXUALIDADE: CIENCIA E CONSClENCIA"45

amor ou na prole. Neste contexto, a prática homossexual apare


ce, a mais de um título, como anormalidade, pois agenitalidade
masculina foi estruturada para se unir á feminina e vice-versa; e
somente nestas condicoes a vida sexual atinge a sua razao de ser e
a sua plena fecundidade.

é sobre este raciocinio que se baseia o juízo da Igreja (e de


muitos pensadores nao cristaos) sobre a prática do homossexua-
lismo. Ver Declaracao "Persona Humana" da S. Congregapao pa
ra a Doutrina da Fé, de 29/12/75.

2. Dir-se-á: a biologia é algo de cegó ou neutro dentro do


ser humano e nao representa a sua personalidade; esta se exprime,
por excelencia, nos afetos e no amor. Por conseguinte, se há amor
numa relacao contraria a natureza ou homossexual, nao existe ra
zao para condenar tal prática.

Em resposta, observamos: os afetos e o amor da pessoa hu


mana pertencem a um ser psicossomático, isto é, composto de
alma e corpo. O corpo nao é algo de estranho á pessoa, de modo
que esta nao pode amar auténticamente desprezando o seu corpo
e as Ieis da biologia; quem ama, é um sujeito corpóreo, que só
subsiste e sobrevive se observa as Ieis da corporeidade ou da sua
biologia; se quero comer pedras, respirar gas carbónico, viver no
fundo dos mares..., destruo a minha pessoa, porque destruo a
minha corporeidade com as suas Ieis biológicas. Paralelamente
dizemos: se quero amar, praticando o uso do sexo contrariamen
te ás Ieis da natureza, estou cometendo urna aberracao que afeta
a minha pessoa e o meu próprio ser.

3. Formulemos a mesma proposicao a partir de urna obje-


cao. Para tentar provar que nao existe léi natural e que o homem
na"o está sujeito ás normas da sua biologia, já se disse o seguinte:
o homem domina os rios (desviando o seu curso), as montanhas e
colinas (derrubando-as para fazer estradas), os mares (aterrándo
os); assim o homem muda a natureza que o cerca para implantar-
Ihe as marcas da sua inteligencia. Como entao nao Ihe seria lícito
mudar ou desviar as Ieis naturais do seu organismo para impor-lhe
as tendencias da sua afetividade? - Em resposta, notemos que os
rios, as colinas e os mares sao objetos postos fora do homem; nao
sao o próprio homem, ao passo que o corpo nao está fora do ho
mem; este nao tem um corpo (como pode ter um rio ou urna

237
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

montanha...), mas é o seu próprio corpo; quando digo eu, é meu


corpo que o diz; por isto as leis do corpo (ou da biología) sao as
leis do próprio eu, sao as minhas leis; se violo essas leis, se volun
tariamente uso a sexualidade de maneira antinatural, destruo-me
no plano físico e também no plano moral. — Nao há como fugir
desta verificacao básica.

4. É certo que a ciencia moderna aponta elementos outrora


desconhecidos pelos moralistas. Mostra, por exemplo, que no ini
cio da sua existencia o ser humano pode ser sexualmente indife-
renciado; no decorrer de toda a sua vida, a pessoa masculina guar
da traeos de feminilidade, e vice-versa; entre o masculino e o fe-
minino pode haver tipos intermediarios {em vez de XX e XY, po-
dem-se encontrar individuos XYY, XXY, XO, XXX...)... Estas
descobertas, porém, nao habilitam o cientista a falar de um ter-
ceiro ou de um quarto sexo...; reconhece apenas que, em algu-
mas pessoas masculinas, os caracteres femininos sao mais acentua
dos, e vice-versa. Neste contexto os individuos homossexuais e
transexuais1 sao estatisticamente minoritarios (os homossexuais
vém a ser 4 ou 5% nos levantarnentos feitos até agora); dir-se-ia
que correspondem áquela faixa de desacertos que a natureza,
embora sabia, sempre produz; o processo genético está sujeito a
desvíos diversos e o ambiente no qual o individuo vive, pode sus
citar a evolucao transviada do potencial genético da pessoa.
Reafirmada a anormalidade do homossexualismo, o que a sa
filosofía hoje propoe como algo de novo, é que os individuo» ho
mossexuais merecem tratamento compreensivo. Sao pessoas que
geralmente sofrem, porque marginalizadas ou reduzidas a solidao.
Muitas vezes nao tém culpa de ser tais. Daí surge a necessidade de
ajudá-las a superar a problemática mediante recursos terapéuti
cos. Isto na*o quer dizer que se legitimem as práticas homosse
xuais. Para vencer as dificuldades, será muito útil ás pessoas ho
mossexuais dedicar-se ao trabalho, á arte ou a algum hobby, que
sublime os respectivos afetos. Certamente tal condicao pode ser
penosa; todavia o sofrimento implicado pelo autodominio e a
temperanca é inerente a todo programa de auto-real¡zacao huma-

1 Observamos que homossexual é o individuo que aceita seu sexo e procura


parceiro do mesmo sexo. Ao contrario, transexual é aquele que recusa seu
sexo e quer mudá-lo.

238
"HOMOSSEXUALIDADE: CIENCIA E CONSC1ÉNCIA" 47

na; mesmo os heterossexuais tém que praticar o autodominio e a


renuncia em varios pontos, se nao se querem entregar as paixoes
que degradam. Nao há grandeza de personalidade sem firmeza de
opcoes radicáis. Infelizmente a psicología moderna pouco leva em
cons¡deragao este fator de engrandecimento da pessoa; as escolas
contemporáneas induzem seus clientes a crer que a renuncia trau
matiza e prejudica;quem acredita nesta proposicao, sugestiona-se
no sentido de evitar qualquer programa de austeridade; torna-se
incapaz de resistir aos instintos pré-deliberados e se torna escravo
das paixoes. O problema da homossexualidade é entao pretensa
mente resolvido pela concessao aos impulsos eróticos. — Todavía
quem sabe que austeridade e disciplina de vida sao elementos in-
dispensáveis á formacáto de qualquer personalidade, encontra me
nos dificuldade em praticá-las e colhe os frutos positivos de tal
autodominio. A pessoa homossexual pode ser feliz mesmo num
quadro de abstencá*o e continencia.

2.3. A fundamentacao bíblica

O Prof. Gregorio Ruiz abordaa homossexualidade na Biblia (pp.81-94).


Considera longamente o texto de <3n 19,1-16, que narra o pecado de Sodo-
ma, do qual se derivam as expressoes '.'sodomía" e "sodomita". O exegeta
tende a mostrar que a interpretacao homossexual do episodio talvez seja in
fiel ao texto bíblico: tratar-se-ia nSo de pecado sexual, mas de falta de hospi-
talidade e acolhida por parte dos habitantes de Sodoma. G. Ruiz nao afirma
categóricamente a nova ¡nterpretacao, mas a tem como conjetura bem fun
damentada.

Independentemente, porém, do texto de Gil 19, o autor reconhece


que a S. Escritura condena peremptoriamente o homessexualismo em pas-
sagens como Lv 18,22; 20,13; Rm 1,26s; ICor 6,9s; 1Tm 1,9-11. Procura,
porém, atenuar a condenacáb 1) observando que sao relativamente poucos
os textos bíblicos que rejeitam o homossexualismo e 2) tentando relativizar
o seu significado pelo fato de dependerem da cultura antiga (hoje ultrapassa-
da) e especialmente de catálogos de victos confeccionados pelos estoicos.
Notamos, porém, que, 1) se a Biblia se refere poucas vezes ao homos
sexualismo, ela o faz com muita clareza e firmeza, principalmente em Lv 18,
22; 20,13 e Rm 1,26s; 2) o fato de que, antes dos autores sagrados do Novo
Testamento, já os estoicos haviam condenado tal prática, nao esvazia as pala-
vras de Sao Paulo, mas, ao contrario, manifesta que, á luz mesma da razao
natural, o homossexualismo parecía antinatural e reprovável fora da Revelapao
bíblica. Eis por que o artigo da coletánea referente á Biblia é fraco, se nao
inspirado por premissas preconcebidas.

239
'ERGUNTE E RESPONDEREMOS" 288/1986

3. CONCLUSÁO
modernas muito alargaram o horizonte dos estudiosos no
tocante ao homossexualismo. Um de seus grandes beneficios consiste em
fazer-nos compreender que alguém pode ter umaestrutura homossexual por
fatores biológicos e psicológicos involuntarios; muitos sao tais sem culpa
moral. Ao mesmo tempo, porém, verifica-se na bibliografía moderna a ten
dencia a inocentar ou mesmo legalizar a própria prática homossexual com
dolorosas conseqüéncias moráis para os individuos e a sociedade.
Ponderando tais dados, chegamos á seguinte conclusao:de um lado, as
ciencias contemporáneas, apesar de seus progressos, nao permitem tirar ao
homossexualismo a qualificacao de prática aberrante e antinatural. De outro
lado, seguir a natureza ou as leis naturais é penhor de retidlo e grandeza pa
ra o ser humano. Basta lembrar que, após as calamidades ocorridas na guerra
de 1939-1945, as NacSes Unidas houveram por bem reafirmar ditames da
própria natureza sancionados na Declaracaó Universal dos Direitos do Ho-
mem; esta, em grande parte, nada mais é do que a promulgacao solene da lei
natural e do direito natural. Por ¡sto com muita sabedoria a Moral crista*
reprova as práticas homossexuais; fazendo-o, ela presta um servigo á humani-
dade, que tende a destruir os seus valores mais típicos, que sao os da Ética.
Essa reprovacáb, porém, é acompanhada de urna atitude de compreensáo be
nigna que, em vez de esmagar, procura ajudar o irmüo a se reencontrar com
seu modelo natural e assumir o lugar que Ihe compete na sociedade.

É lamentável que o livro em foco tenha obscurecido tal perspectiva,


usando de estilo nao raro ambiguo, mas tendente a concessSes pouco sadias.
Alias, é estranho nao haja no livro um capítulo sobre a terapia do homosse
xualismo ou sobre os procedimentos da Psicología Clínica contemporánea,
que tem ajudado os individuos homossexuais a se integrarem na sociedade
em que nasceram.

A propósito nao podemos deixar de citar o livro do Prof. Dr. Gerard


van den Aardweg: "Homosexuality and Hope. A Psychologist talks about
Treatment and Change" (Homossexual¡dade e Esperanca. Um Psicólogo fala
a respeito de Terapia e Mudanca). Servant Books Ann Arbor, Michigan, U.S.
A. O autor é doutorem Psicología pela Universidadede Amsterdam (Holan
da); tem dado cursos em diversos países da Europa, nos Estados Unidos e
também no Brasil;em suaclínica especializou-se no tratamento de homosse
xuais; a prolongada experiencia de consultorio forneceu-lhe muitos dados
que integram o seu livro. O Dr. van den Aardweg tem dois capítulos alta
mente interessantes no caso: The Road to change (A Via para Mudar, c. 8) e
Change without Psychoterapy (Mudanca sem Psicoterapia, c. 9). Através de
suas páginas, o clínico mostra que sao recuperáveis, total ou parcialmente,
varios dos pacientes que, por falsa orientacáb, se julgam condenados a ser di
ferentes dos demais seres humanos. É muito importante valorizar o trabalho
dos profissionais que se empenham nessa linha terapéutica.
Estéváo Bettencourt O.S.B.
240
EDigOES "LUMEN CHRISTI"
Rúa Dom Gerardo. 40 — 5? andar — Sala 501
Caixa Poslal 2666 — Tel.: (021) 291-7122
20001 - Rio de Janeiro -.RJ..

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O.S.B. (falecido a 2/12/83). Teólogo conceituado, autor de um tratado
completo de Teología Dogmática, comentando o Credo do Povo de Deus,
promulgado pelo Papa Paulo VI. Um alentado volume de 700 p., best-
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expressao "Tres Pessoas", 1979, 410 p. - CzS 61,00.

O MISTERIO DO DEUS VIVO, P. Patfoort O.P. O autor foí examinador de D.


Cirilo para a conquista da láurea de Doutor em Teología no Instituto
Pontificio Santo Tomás de Aquino em Roma. Para Professores e Alunos
de Teología, é um Tratado de "Deus Uno e Trino", de orientacSo tomista
e de índole didática, 230 p. - CzS 37,00.

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1980. Pontos de referencia para urna prímeira leitura da Biblia.
1?volume. Amigo Testamento, 130 págs CzS 10,40
2?volume, Novo Testamento, 104 págs CzS 10,40

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Em quinze capítulos o Autor considera os principáis pontos da clássica
controversia entre católicos e protestantes, e procura mostrar que a dis-
cussao no plano teológico perdeu muito de sua razáo de ser, poís nao raro
versa mais sobre palavras do que sobre conceitos ou proposícóes —
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(Cap. 1. O catálogo bíblico. 2. Somente a Escritura? 3. Somente a (é.
Nao as obras? 4. O Primado de Pedro. 5. Eucaristía: Sacrificio e Sacra
mento. 6. A confissao dos pecados. 7. O purgatorio. 8. As indulgencias.
9. .Marta, Virgem e Mae. 10. Jesús teve irmaos? 11. O culto dos Santos.
12. As imagens sagradas. 13. Alterando o Decálogo? 14. Sábado ou Do
mingo? 15. 666 (Ap 13. 18).

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