Professional Documents
Culture Documents
www.revistasamizdat.com
15
abril
2009
ano II
ficina
Prometeu
e o mito da criação
da Mulher
SAMIZDAT 15
abril de 2009
Autores Convidados
Tulio Rodrigues
Seção do Leitor 8
COMUNICADO
SAMIZDAT Especial - Humor 10
ENTREVISTA
Marcos Fernando Kirst 12
MICROCONTOS
Marcia Szajnbok 18
Henry Alfred Bugalho 18
Carlos Alberto Barros 20
Volmar Camargo Junior 20
Joaquim Bispo 21
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Milorad Pávitch, o engenhoso 22
Henry Alfred Bugalho
CONTOS
Duas Mulheres, Duas Estradas 36
Carlos Alberto Barros
O Atraso da Primavera 44
Joaquim Bispo
A Busca 48
Henry Alfred Bugalho
Piso 23 50
José Espírito Santo
O Anômalo 54
Léo Borges
O Amor segundo o Ódio 57
Léo Borges
Tentativas de Existência 57
Léo Borges
Jogo da Memória 58
Marcia Szajnbok
O Admirador - Parte 1: as coroas 60
Maristela Deves
Autor Convidado
Sonetos 62
Tulio Rodrigues
TRADUÇÃO
Hesíodo e a vida do homem comum 64
Henry Alfred Bugalho
O Mito de Prometeu - Teogonia 66
Hesíodo
TEORIA LITERÁRIA
A Arte de Trair 70
Henry Alfred Bugalho
CRÔNICA
Nós, mulheres, as eternas insatisfeitas 74
Maristela Scheuer Deves
As incongruências do “né?” 76
Léo Borges
Monumento ao vandalismo 78
Joaquim Bispo
No Confessionário 83
Mariana Valle
Gauderiadas I 85
Volmar Camargo Junior
POESIA
Laboratório Poético: A Narração na Poesia 88
Volmar Camargo Junior
Meu Amor 90
Guilherme Augusto Rodrigues
Palavras Inúteis 91
Mariana Valle
Poemas 92
José Espírito Santo
Eterníndia 94
Dênis Moura
saudade 95
Maria de Fátima Santos
6
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,
www.revistasamizdat.com
www.revistaamizdat.com 7
Seção do Leitor
SEÇÃO DO LEITOR
O leitor da Revista SAMIZDAT também pode colaborar com a elabora-
ção da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da
revista: Resenha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa,
Tradução e Autor Convidado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@gmail.com
www.revistasamizdat.com 9
Comunicado
SAMIZDAT Especial
Humor
10 SAMIZDAT abril de 2009
10
O lugar onde
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
b - Teoria Literária ou que entrem em contato
do Humor; até o final de abril, atra-
vés do e-mail
c - Autor convidado
(prosa ou poesia); revistasamizdat@hotmail.com
3 - Serão seleciona-
dos, ao todo, entre 3 e Abraços a todos,
http://www.flickr.com/photos/billselak/1043526089/sizes/l/
4 - Não há limites
de palavras, mas como
se trata duma publica-
ção voltada para o meio
digital, solicita-se que ficina
não sejam enviados tex-
www.oficinaeditora.org
11
Entrevista
www.revistasamizdat.com 13
destas coisas, algumas e não fazem nenhuma
delas após submetidas ao exigência de “moral no
óbvio e necessário pro- final”. Quem exige isto
cesso de reescrita. Tenho são os adultos (alguns),
dois romances inéditos e acabam impondo esta
escritos há poucos anos condição para as artes
esperando a hora de voltadas às crianças. É a
nascerem oficialmente. mesma coisa que, no uni-
Estou desenvolvendo dois verso adulto, exigir po-
livros de crônicas temá- sicionamento e reflexão
ticas, ambos quase finali- política nas obras de arte.
zados, e outro juvenil de Arte é arte, e não “tem
aventuras também quase que” nada. Arte precisa,
pronto. E muitos projetos sim, causar prazer estéti-
literários já delineados co, e ponto final. Música,
para irem sendo traba- escultura, teatro, cinema,
lhados ao longo dos anos. dança, literatura e to-
Produzo ficção sempre das as artes têm uma só
que acontece o que cha- obrigação: tocar a alma,
mo de “conjunção astral encantar. Se um autor de-
literária favorável”, que se sejar usar alguma espécie
concretiza no momento de arte para passar deter- acha delas?
em que estou com von- minada mensagem espe-
Marcos Fernando Kirst:
tade de escrever, tenho o cífica, ótimo, vá em fren-
Conheço as obras e as-
tempo necessário e surge te, é um formato válido.
sisti aos filmes derivados
um tema instigante. São Mas não é uma exigência
delas, sei do que tratam
conjunções raras e, quan- intrínseca ao ato de fazer
e de como seus autores
do acontecem, procuro arte. As artes não têm a
escrevem. O velho cli-
aproveitá-las ao máximo. obrigação de serem enga-
chê maniqueísta do bem
jadas a nada. Independen-
contra o mal permeia a
temente da faixa etária
Samizdat: Com a honro- literatura (o cinema e a
a que se destinam. Da
sa exceção do Menino televisão também) desde
mesma forma, a literatura
Maluquinho, a maioria sempre, e não vai mu-
dita infantil tem uma só
dos livros para crianças dar, pois é uma fórmula
obrigação: encantar seus
ainda segue a ideologia de sucesso fácil. Nós,
leitores. Se conseguir fa-
das fábulas, com uma seres humanos, somos
zer isto, estará já fazendo
“moral da história” e maniqueístas, basta ver
muito, pois estará tocan-
tal... Será que dá pra que julgamos o mundo
do almas, abrindo olhos,
escrever para crianças a partir de nossa pró-
revelando universos.
sem cair nessa panfle- pria visão pessoal dele,
tagem moral? Será que na qual, invariavelmente,
criança curte literatura Samizdat: Pensando nós estamos certos (so-
pela literatura? num público mais juve- mos o bem) e os outros
nil, o sucesso das séries e o mundo estão sempre
Marcos Fernando Kirst:
Harry Potter e Desven- errados (representam o
Tenho certeza absoluta
turas em Série parece mal). Por isto, histórias
de que criança – talvez
colar no bom e velho em que o Bem (os moci-
até mais do que adultos
bem contra o mal e no nhos) e o Mal (os vilões)
– curte literatura pela
desafio de ler sempre o são claramente identi-
literatura. Na verdade,
próximo volume. Você ficáveis fazem, sempre
crianças curtem histórias,
leu essas obras? O que fizeram e sempre farão
www.revistasamizdat.com 15
um norte mais oficial que não sabia de nada, repercussão muito maior,
para a pretensa carreira como você avalia a re- imprevisível, imensurável
de um pretenso escritor. percussão de obras de e indomável, justamente
Ao ser premiado, teu ficção e não-ficção no por ser absolutamente
texto passa, incógnito, público leitor? universal. Identificam-se
pelo crivo de um júri (a Marcos Fernando Kirst: com o livro pessoas de
princípio) gabaritado, que Falo a partir de minha todas as idades, não ape-
o analisou e o classificou (ainda singela) experiên- nas crianças, além de dia-
tanto por seus méritos cia em termos de pu- logar também com qual-
literários em si quanto blicação de obras (duas, quer pessoa que goste de
em relação aos demais exatamente as que citaste) animais de estimação. O
concorrentes. É a prova nestas duas áreas. O pri- segredo, no entanto, para
de que, afinal, aquilo que meiro livro, lançado em ambas as obras, tanto as
você escreve tem algum 2007, dirigia-se a um pú- de ficção quanto para as
valor capaz de atingir a blico específico, interessa- de não-ficção, é, além de
leitores que não te conhe- do em conhecer a histó- encontrar um tema ab-
cem. Mostra que você, ria da Biblioteca Pública sorvente, conseguir de-
mal ou bem, iniciante ou Municipal de Caxias do senvolver uma narrativa
não, tem uma voz literá- Sul. Apesar de que, ao que prenda a atenção do
ria, que fala e consegue redigir o texto, procurei leitor. Acho que consegui
ser ouvida por outros. não produzir uma obra alcançar o objetivo nas
Confere segurança, in- enfadonha e cronológica, duas obras.
centiva uma pretensão. pelo contrário: escrevi
Mas infelizmente, os de forma a transformar
concursos, atualmente, a própria biblioteca em
muitas vezes, morrem personagem, na qual con-
neles mesmos. A impren- vivem e coabitam outros
sa, via de regra, ignora o personagens interessan-
trabalho dos vencedores tes, ou seja, os livros, os
e raramente as obras pre- leitores e os funcionários.
miadas chegam ao públi- Apesar de partir das
co de forma mais ampla. características específicas
Noticia-se os vencedores da biblioteca caxiense,
anuais dos concursos fiz um livro com o qual
com notinhas de rodapé pode se identificar qual-
e pronto, cumpre-se com quer frequentador de Coordenação da entrevista:
a obrigação. A estrada do qualquer biblioteca do Maristela S. Deves
pretenso futuro escritor, país e do mundo. Até por
mesmo com os concur- causa do título, a obra
sos, continuará sendo pe- ficou mais limitada e, Perguntas feitas por:
dregosa. E talvez até seja mesmo assim, cumpriu
positivo que seja assim, seu papel, o de marcar Henry Alfred Bugalho
afinal, nada cai do céu. um momento histórico, Marcia Szajnbok
alcançando a repercus- Volmar Camargo Junior
Samizdat: Fazendo uma são que tinha possibi-
comparação entre seus lidades de obter dentro Joaquim Bispo
livros A História nas da limitação de tema e Carlos Barros
Estantes – 60 Anos da momento a que se sub-
Biblioteca Pública Mu- metia. Já o livro ficcional
nicipal Dr. Demetrio sobre o gato, lançado em
Niederauer e O gato 2008, tem alcançado uma
ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 17
www.oficinaeditora.org
Microcontos
Filho de peixe,
Peixinho é
Reprise
http://www.flickr.com/photos/yeenoghu/204251889/sizes/o/
Marcia Szajnbok
Cresceu apanhando. Todo santo dia o pai chegava bêba-
do, fedendo a cigarro e a perfume barato de puta, tirava a
cinta e lascava todo mundo, começando pela mãe e termi-
nando sempre nele, o caçula. Nas poucas vezes que tentou
se defender, veio logo o tapa na cara e o grito:-
Cala a boca! Você é o último que fala e o primeiro que
apanha!
Anos a fio o ódio fermentando no cadinho do coração,
crescendo, crescendo...Um dia arrumou uma moça, resol-
veu casar. Na festa de casamento, encheu a cara. Quando
foi se deitar com ela, a noiva fez cara de nojo diante do
cheiro de cerveja e cigarro. Não teve dúvida: tirou a cinta,
e começou a bater ali mesmo, em plena lua-de-mel.
Um gênio da música
http://www.flickr.com/photos/blmurch/428349468/sizes/l/
http://www.flickr.com/photos/15302763@N04/3157820748/
http://www.flickr.com/photos/pierofix/1353521365/
Pai e filho sentados à mesa de jantar.
— Você vai ser médico, assim como eu, seu avô, seu bisavô, assim
como seus tios e irmãos.
Uma carreira de
sucesso
Henry Alfred Bugalho
O filho era uma bicha. Ator e bicha. Destino pior não
existia.
Tinha vergonha dele na rua: o que seus amigos iriam
dizer do filho bichola afetada quebrando o pulso e rebo-
lando?
Expulsou-o de casa aos dezesseis anos e não teve mais
notícias.
Então, surgiram os rumores e, por fim, a confirmação: o
filho seria o protagonista da próxima novela das oito.
Toda família se reuniu para assistir ao primeiro capítu-
lo.
Assim que o filho apareceu na tela da TV, o pai, enxu-
gando as lágrimas:
Beleza genética
Henry Alfred Bugalho
A mãe, Miss Universo em 1988.
A filha, campeã de boquete universitário em 2009.
http://www.flickr.com/photos/15302763@N04/3157820748/
19
Benjamin Button e
seu filho
Carlos Alberto Barros
Assunto encerrado
Volmar Camargo Junior
http://www.flickr.com/photos/tragicendingtoabeautifulstory/2679869007/sizes/l/
Crepúsculo
http://www.flickr.com/photos/suvcougar/913593933/sizes/o/
Joaquim Bispo
www.revistasamizdat.com 21
Recomendações de Leitura
http://www.khazars.com/galerija/pavic-mihajlovic015.jpg
Henry Alfred Bugalho
Milorad Pávitch,
o engenhoso
O termo literatura er- Exemplos de obras er-
gódica foi cunhado, ini- gódicas há vários, desde o
cialmente, pelo teórico da livro oracular “I-Ching” até
literatura (apesar de que “Fogo Pálido” de Nabokov,
“ludologista” classificaria mesmo que para, Aarseth,
melhor sua área de pesqui- os melhores exemplos do
sa) Espen Aarseth. Em linha gênero se desenvolveram
gerais, literatura ergódica e predominam no mundo
remete-se àquela forma digital, como os jogos de
narrativa que exige do computadores, que através
leitor um esforço não-con- de várias linhas narrativas,
Dictionary of the Khazars vencional, ou seja, diferente possuem o desempenho
Autor: Milorad Pavić do processo trivial de ler definido pelas escolhas dos
página após página. usuários.
Editora: Alfred A. Knopf
www.revistasamizdat.com 23
Autor em Língua Portuguesa
Frei Simão
Machado de Assis
http://www.flickr.com/photos/cactusbones/76928028/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 25
Entretanto procedeu- II vam ambos o casamento,
se ao inventário dos coisa que parece mais
As notas de frei Simão
objetos que pertenciam natural do mundo para
nada dizem do lugar do
ao finado, e entre eles corações amantes.
seu nascimento nem do
achou-se um rolo de
nome de seus pais. O Não tardou muito que
papéis convenientemen-
que se pôde saber dos os pais de Simão desco-
te enlaçados, com este
seus princípios é que, brissem o amor dos dois.
rótulo: Memórias que há
tendo concluído os es- Ora é preciso dizer, ape-
de escrever frei Simão
tudos preparatórios, não sar de não haver decla-
de Santa Águeda, frade
pôde seguir a carreira ração formal disto nos
beneditino.
das letras, como desejava,apontamentos do frade, é
Este rolo de papéis foi e foi obrigado a entrar preciso dizer que os re-
um grande achado para como guarda-livros na feridos pais eram de um
a comunidade curiosa. casa comercial de seu egoísmo descomunal.
Iam finalmente penetrar pai. Davam de boa vontade
alguma coisa no véu o pão da subsistência a
Morava então em casa
misterioso que envolvia Helena; mas lá casar o
de seu pai uma prima de
o passado de frei Simão, filho com a pobre órfã é
Simão, órfã de pai e mãe,
e talvez confirmar as que não podiam consen-
que haviam por morte
suspeitas do abade. O tir. Tinham posto a mira
deixado ao pai de Simão
rolo foi aberto e lido em uma herdeira rica, e
o cuidado de a educa-
para todos. dispunham de si para si
rem e manterem. Parece
que o rapaz se casaria
Eram, pela maior que os cabedais deste de-
com ela.
parte, fragmentos in- ram para isto. Quanto ao
completos, apontamentos pai da prima órfã, tendo Uma tarde, como esti-
truncados e notas insu- sido rico, perdera tudo vesse o rapaz a adiantar
ficientes; mas de tudo ao jogo e nos azares do a escrituração do livro-
junto pôde-se colher que comércio, ficando redu- mestre, entrou no escri-
realmente frei Simão zido à última miséria. tório o pai com ar grave
estivera louco durante e risonho ao mesmo
A órfã chamava-se
certo tempo. tempo, e disse ao filho
Helena; era bela, meiga
que largasse o trabalho e
O autor desta nar- e extremamente boa.
o ouvisse. O rapaz obe-
rativa despreza aquela Simão, que se educara
deceu. O pai falou assim:
parte das Memórias que com ela, e juntamente
não tiver absolutamente vivia debaixo do mesmo — Vais partir para a
importância; mas procu- teto, não pôde resistir província de ***. Preci-
ra aproveitar a que for às elevadas qualidades e so mandar umas cartas
menos inútil ou menos à beleza de sua prima. ao meu correspondente
obscura. Amaram-se. Em seus Amaral, e como sejam
sonhos de futuro conta- elas de grande importân-
www.revistasamizdat.com 27
plicarem. Entretanto, como o as cartas de Simão iam
espírito dos amantes não parar às mãos do velho,
Este salvo, posto na
é menos engenhoso que que, depois de apreciar
boca de Amaral como
o dos romancistas, Simão o estilo amoroso de seu
incidente, era a oração
e Helena acharam meio filho, fazia queimar as
principal. A carta do pai
de se escreverem, e deste ardentes epístolas.
de Simão versava assim:
modo podiam consolar-
Passaram-se dias e
Meu caro Amaral, se da ausência, com
meses. Carta de Helena,
presença das letras e do
Motivos ponde- nenhuma. O correspon-
papel. Bem diz Heloísa
rosos me obrigam a dente ia esgotando a veia
que a arte de escrever foi
mandar meu filho desta inventadora, e já não
inventada por alguma
cidade. Retenha-o por lá sabia como reter final-
amante separada do seu
como puder. O pretexto mente o rapaz.
amante. Nestas cartas
da viagem é ter eu ne- juravam-se os dois sua Chega uma carta a
cessidade de ultimar al- eterna fidelidade. Simão. Era letra do pai.
guns negócios com você,
Só diferençava das ou-
o que dirá ao pequeno, No fim de dois meses
tras que recebia do velho
fazendo-lhe sempre crer de espera baldada e de
em ser esta mais longa,
que a demora é pouca ativa correspondência,
muito mais longa. O
ou nenhuma. Você, que a tia de Helena surpre-
rapaz abriu a carta, e leu
teve na sua adolescência endeu uma carta de
trêmulo e pálido. Conta-
a triste idéia de engen- Simão. Era a vigésima,
va nesta carta o honrado
drar romances, vá inven- creio eu. Houve grande
comerciante que a He-
tando circunstâncias e temporal em casa. O tio,
lena, a boa rapariga que
ocorrências imprevistas, que estava no escritório,
ele destinava a ser sua
de modo que o rapaz saiu precipitadamente e
filha casando-se com Si-
não me torne cá antes tomou conhecimento do
mão, a boa Helena tinha
de segunda ordem. Sou, negócio. O resultado foi
morrido. O velho copia-
como sempre, etc. proscrever de casa tinta,
ra algum dos últimos
penas e papel, e instituir
necrológios que vira nos
vigilância rigorosa sobre
jornais, e ajuntara algu-
III a infeliz rapariga.
mas consolações de casa.
Passaram-se dias e Começaram pois a es- A última consolação foi
dias, e nada de chegar cassear as cartas ao po- dizer-lhe que embarcasse
o momento de voltar à bre deportado. Inquiriu e fosse ter com ele.
casa paterna. O ex-ro- a causa disto em cartas
O período final da
mancista era na verdade choradas e compridas;
carta dizia:
fértil, e não se cansava mas como o rigor fiscal
de inventar pretextos da casa de seu pai adqui- Assim como assim,
que deixavam convenci- ria proporções descomu- não se realizam os meus
do o rapaz. nais, acontecia que todas negócios; não te pude
www.revistasamizdat.com 29
A velha igreja do lu- para a recém-chegada, samento de Helena fora
gar estava atopetada de que acabava de desmaiar. obrigado pelos tios.
povo. Frei Simão teve de parar
A pobre senhora não
o seu discurso, enquan-
À hora anunciada, frei resistiu à comoção. Dois
to se punha termo ao
Simão subiu ao púlpito meses depois morreu,
incidente. Mas, por uma
e começou o discurso deixando inconsolável
aberta que a turba deixa-
religioso. Metade do o marido, que a amava
va, pôde ele ver o rosto
povo saiu aborrecido no com veras.
da desmaiada.
meio do sermão. A razão
Frei Simão, recolhido
era simples. Avezado à Era Helena.
ao convento, tornou-se
pintura viva dos caldei-
No manuscrito do mais solitário e tacitur-
rões de Pedro Botelho
frade há uma série de no. Restava-lhe ainda
e outros pedacinhos de
reticências dispostas em um pouco da alienação.
ouro da maioria dos
oito linhas. Ele próprio
pregadores, o povo não Já conhecemos o acon-
não sabe o que se pas-
podia ouvir com prazer tecimento de sua morte
sou. Mas o que se passou
a linguagem simples, e a impressão que ela
foi que, mal conhecera
branda, persuasiva, a que causara ao abade.
Helena, continuou o
serviam de modelo as
frade o discurso. Era en- A cela de frei Simão
conferências do funda-
tão outra coisa: era um de Santa Águeda esteve
dor da nossa religião.
discurso sem nexo, sem muito tempo religio-
O pregador estava a assunto, um verdadeiro samente fechada. Só
terminar, quando en- delírio. A consternação se abriu, algum tempo
trou apressadamente na foi geral. depois, para dar entrada
igreja um par, marido e a um velho secular, que
V
mulher: ele, honrado la- por esmola alcançou
vrador, meio remediado O delírio de frei Si- do abade acabar os seus
com o sítio que possuía mão durou alguns dias. dias na convivência dos
e a boa vontade de tra- Graças aos cuidados, médicos da alma. Era
balhar; ela, senhora esti- pôde melhorar, e pareceu o pai de Simão. A mãe
mada por suas virtudes, a todos que estava bom, tinha morrido.
mas de uma melancolia menos ao médico, que
invencível. Foi crença, nos últi-
queria continuar a cura.
mos anos de vida deste
Mas o frade disse positi-
Depois de tomarem velho, que ele não estava
vamente que se retirava
água-benta, colocaram-se menos doido que frei
ao convento, e não houve
ambos em lugar de onde Simão de Santa Águeda.
forças humanas que o
pudessem ver facilmente
detivessem. FIM de Frei Simão
o pregador.
O leitor compreende Fonte: http://www2.uol.
Ouviu-se então um
naturalmente que o ca- com.br/machadodeassis/
grito, e todos correram
http://fellipefernandes.files.wordpress.com/2008/07/machado-de-assis.jpg
Entre os 6 e os 14 anos, Machado Na década de 1880, a obra de últimos romances “Esaú e Jacó”
perdeu sua única irmã, a mãe e Machado de Assis sofreu uma ver- (1904) e “Memorial de Aires”
o pai. Aos 16 anos empregou-se dadeira revolução, em termos de (1908), que fecham o ciclo realista
como aprendiz numa tipografia e estilo e de conteúdo, inaugurando iniciado com “Brás Cubas”
publicou os primeiros versos no o Realismo na literatura brasi-
jornal “A Marmota”. Em 1860, foi leira. Os romances “Memórias
convidado por Quintino Bocaiúva póstumas de Brás Cubas” (1881); Machado de Assis morreu em sua
para colaborar no “Diário do Rio “Quincas Borba” (1891); “Dom casa situada na rua Cosme Velho.
de Janeiro”. Datam dessa década Casmurro” (1899) e os contos Foi decretado luto oficial no Rio
quase todas as suas comédias te- “Papéis avulsos” (1882); “His- de Janeiro e seu enterro, acompa-
atrais e o livro de poemas “Crisá- tórias sem data” (1884), “Várias nhado por uma multidão, atesta a
lidas”. histórias” (1896) e “Páginas fama alcançada pelo autor.
Em 12 de novembro de 1869 recolhidas” (1899), entre outros,
casou-se com Carolina Augusta revelam o autor em sua plenitude.
O espírito crítico, a grande ironia, O fato de ter escrito em português,
Xavier de Novais. Esse casamen- uma língua de poucos leitores, tor-
to ocorreu contra a vontade da o pessimismo e uma profunda re-
flexão sobre a sociedade brasileira nou difícil o reconhecimento inter-
família da moça, uma vez que nacional do autor. A partir do final
Machado tinha mais problemas do são as suas marcas mais caracte-
rísticas. do século 20, porém, suas obras
que fama. Essa união durou cerca têm sido traduzidas para o inglês,
de 35 anos e o casal não teve Em 1897, Machado fundou a o francês, o espanhol e o alemão,
filhos. Carolina contribuiu para Academia Brasileira de Letras, despertando interesse mundial. De
o amadurecimento intelectual de da qual foi o primeiro presidente, fato, trata-se de um dos grandes
Machado, revelando-lhe os clás- pelo que a instituição também nomes do Realismo, que pode se
sicos portugueses e vários autores ficou conhecida como casa de Ma- colocar lado a lado ao francês
de língua inglesa. chado de Assis. Ocupou a Cadeira Flaubert ou ao russo Dostoievski,
Na década de 1870, Machado N.º 23, de cujo patrono, José de apenas para citar dois dos maio-
publicou os poemas “Falenas” e Alencar, foi amigo e admirador. res autores do mesmo período na
“Americanas”; além dos “Contos Em 1904, a morte de sua mulher literatura universal.
Fluminenses” e “Histórias da foi um duro golpe para o escritor.
meia-noite”. O público e a crítica Depois disso, raramente ele saía
consagraram seus méritos de de casa e sua saúde foi piorando Fonte: http://educacao.uol.com.br/
escritor. Publicou os romances: por causa da epilepsia. Os proble- biografias/ult1789u180.jhtm
“Ressurreição” (1872); “A Mão e mas nervosos e uma gagueira con-
a Luva” (1874); “Helena” (1876); tribuíram ainda mais para o seu
www.revistasamizdat.com 31
Autor em Língua Portuguesa
Henriqueta Lisboa:
o modernismo remodelado pela timidez
Esse despojamento
esse amargo esplendor.
Beleza em sombras
Sacrifício incruento.
O escuro em torno
e a lucidez
http://www.flickr.com/photos/iainalexander/179318796/sizes/o/
violenta lucidez terrível
batida de encontro ao rosto
como uma ofensa física.
www.revistasamizdat.com 33
http://www.flickr.com/photos/iainalexander/179318796/sizes/o/
Horizonte Calendário
www.revistasamizdat.com 35
Contos
Duas Mulheres,
Duas Estradas
Carlos Alberto Barros
www.revistasamizdat.com 37
Fiquei sem saber o que – Ah, você não sabia Eu já estava na porta do
fazer. Pedi que se acal- deste detalhe? Assim como carro quando ela enfiou a
masse, disse-lhe que esta- todos que riram de mim, mão novamente na mo-
va tudo bem, que eu não você também não sabia chila. Tirou um revólver e
mais a incomodaria. De que eu levava ele no meu apontou em minha dire-
repente, gritou: colo. O meu bebê, meu ção. Sem saber ao certo
– Cala a boca! Você não filho! como, já me encontrava
sabe de nada! Vi aquilo e senti nojo. abaixada atrás do volante
Um corpo minúsculo, tentando ligar o carro.
Levantou-se, e seu choro
se misturou a uma explo- enrugado, a pele escura, – Isso mesmo, vá em-
são de ódio. Comecei a como que cheia de he- bora! – ela gritava. – Volte
ficar com medo. matomas, os pequeninos para sua vidinha! Hoje,
membros retorcidos. Se riem de mim, amanhã,
– Sabe por que riram de o que eu via já fora um será de você!
mim? – inquiriu-me, sem bebê, naquele momento
deixar que eu respondes- Assim que o carro fun-
não passava de um feto cionou, acelerei sem olhar
se. – Um tombo! Tropecei mal formado em decom-
no meu próprio pé e caí, o que havia pelo caminho.
posição, talvez um bicho Imaginando que a mulher
como uma criancinha morto já apodrecendo.
atrapalhada aprendendo a estava bem para trás, arris-
andar. – Foi um acidente! – co- quei levantar a cabeça. O
meçou a se explicar, en- carro já quase ia fora da
Diante da confissão, não quanto ninava o que dizia estrada. Trouxe-o de volta
consegui deixar de imagi- ser seu filho. – Eu caí por e continuei acelerando.
nar a cena. E o engraçado cima do pobrezinho. Tão Quando olhei pelo retrovi-
não era nem tanto o tom- frágil... Tão pequeno... Eu sor, ouvi o disparo.
bo em si, mas o fato de o matei! – gritou. – Mas,
ela ter abandonado tudo A mulher caiu com seu
agora, eu cuido bem de filho ao colo. Dessa vez,
por isso. Fugir por conta você, não é, meu anji-
de um tombo? Comecei a teve cuidado para não cair
nho – falava com carinho, sobre ele. E, dessa vez, nin-
achar que estava lidando olhando-o.
com uma louca. Dei um guém riu.
sorriso torto, elevando – Meu Deus! Você é lou- Não tive coragem para
apenas um dos cantos da ca... Louca... – eu falava, me voltar. Só fui parar quando
boca, quase como uma enroscando nas palavras e o primeiro posto policial
careta de estranhamento recuando em direção ao apareceu. Contei a histó-
– muito mais pela perple- carro. ria enquanto o choro me
xidade em que me encon- – Você é só mais uma dominava. Depois de tudo,
trava do que pela graça da que ri de mim, sua va- desisti de viajar em bus-
situação. gabunda! Você e o resto ca do que eu não tinha.
– Isso! Seja mais um a do mundo! Nem aqui, no Naquele momento, meu
rir de mim! E que tal rir meio do nada, eu me livro único conforto era saber
disto aqui? – gritou e abriu da hipocrisia de vocês. que havia um lar ao qual
sua mochila. O que tirou Mas, eu estou cansada eu podia retornar.
de lá me deixou ainda disso! Cansada! – berrou
mais confusa e assustada. com tanta força que pude
ver saliva saltando de sua
– Meu Deus! – exclamei. boca.
– O que é isso?
O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 39
w
gr nl
át
oa
is d
Contos
http://www.flickr.com/photos/m_orellana/2115887309/sizes/o/
Ela perguntou apontando do meu carapau? - Minha puta sem ver-
o peixe e sentindo que era E ela seguindo, que sem- gonha a desfazer no meu
a primeira vez que falava pre a deliciara ouvi-las peixe. Badalhoca…
desde há horas. Perguntou naquele afã de fazer pela Maria do Carmo ri-se à
distraída: vida. E a mulher do cara- socapa e apreça duas pos-
- A como está o carapau? pau fresquinho arrematava tas. Ela que nem sabe se
- Dois mil réis, madama. impropérios na direcção dormiu ou simplesmente
- respondeu a peixeira e já da camisola muito branca rebolou ainda uma e outra
ela ia andando que Maria do Carmo vestira vez debaixo dele, por cima
ainda há pouco. dele, ao lado dele na cama
Ela andando e a ven- e no soalho e nem sabe
dedeira com as palavras Maria do Carmo a olhar
noutra banca uma chaputa mais senão que havia um
dependuradas do grito, mais bidé com suporte de ferro
censura que rogo: de olho arregalado apesar
de muito morta. E a ven- por detrás de um cortinado
- Venha cá minha cari- dedeira de carapau ainda a soprado pela brisa fria que
nha de anjo…. Não gosta chama: vinha de uma greta da jane-
www.revistasamizdat.com 41
Contos
Chave de ouro
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com
http://www.flickr.com/photos/moriza/486919884/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 43
Contos
O atraso da
Primavera Joaquim Bispo
http://www.flickr.com/photos/vaitu/3075851092/sizes/l/
www.revistasamizdat.com 45
enquanto lhes servia um é espantoso? elas tocavam começaram
ponche quente. a lançar rebentos que se
– Claro! Eu acho que
abriam em folhas e flo-
O Outono, mais cor- isto não pode continuar!
res. Cheiros adocicados
dato, sorveu um trago e Ou bem que se assumem
flutuavam ao sabor da
indagou: compromissos ou não!
brisa suave. Nuvens de
– Mas diz-nos, Inver- Pouco depois, entrava abelhas, besouros e gafa-
no, que se passa com a jovem, deslumbrante nhotos cruzavam os ares
ela para deixar assim as num vestido de pétalas em azáfamas surpreen-
plantas e os animais em de amendoeira e uma dentes. Passarada de to-
completa desorientação? tiara de flores amarelas dos os tamanhos e cores
de giesta que acentuavam revoluteava a alimentar-
– Ela esteve no outro se, a acasalar, a construir
o azul celeste dos olhos.
hemisfério, como faz ninhos. Os seus inúmeros
todos os anos, mas desta – Oh, que queridos! chilreios misturavam-se
vez parece que conheceu Preocupados por minha com as cegarregas de gri-
lá alguém interessante – causa! – beijou ambos, ao los e cigarras e o coaxar
um tal a quem chamam mesmo tempo que lhes das rãs.
El Niño – e só voltou fazia uma festinha no
há meia dúzia de dias. rosto. – Estava cansadíssi- A temperatura era ago-
Vinha exausta e toda ma. Foram umas férias e ra fresca mas amena, os
alvoroçada, de modo que tanto! Fiz falta? campos fervilhavam de
eu achei melhor ela des- cores e vida e os homens
cansar uns dias antes de estavam felizes. Atrasa-
reiniciar as suas tarefas. Posta a conversa em da mas fulgurante, tinha
Esperai que eu vou cha- dia, a Primavera des- chegado a Primavera.
má-la! pediu-se. Com as suas
asas brancas elevou-se
Enquanto se afastava
nos ares, sob o olhar
para a zona mais escura
embevecido do trio. As
da caverna, o Verão mos- [Conto publicado, em
nuvens negras rasgaram-
trava-se inquieto: Maio de 2007, na revista
se e dissiparam-se, o
CAIS – revista vendida
– Acreditas nele? céu azul apareceu e o
na rua pelos sem-abrigo
Sol beijou os prados, os
– Não sei. Vamos espe- portugueses, de cuja venda
pomares e os bosques.
rar. Mas, se for verdade, guardam 70% e que cons-
Do alto, começaram a
acho incrível que a meni- titui o seu modo de subsis-
cair pétalas de todas as
na tenha ficado no bem- tência temporário]
cores que esvoaçavam e
bom, para lá da licença, e
pousavam delicadamente
que, chegada aqui, o papá
sobre todas as plantas. Os
ainda ache que a filhinha
talos esqueléticos onde
precisa de descansar. Não
http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma vintena
de autores, que jamais se encontraram
fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, tornou-se
apenas um bem de consumo, tornou-se um
elemento de exclusão cultural.
A proposta da Oficina Editora é resgatar o
valor natural e primeiro da Literatura: de bem
cultural. Disponibilizando gratuitamente
e-books e com o custo mínimo para livros
impressos, nossos autores apresentam
a demonstração máxima de respeito à
Literatura e aos leitores.
www.revistasamizdat.com 47
Contos
A Busca
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com
Sir Morton de Buckin- conhecida, que ocuparia to- ele descobriu a origem da
http://www.flickr.com/photos/germeister/2865405626/sizes/l/
ghamshire não era um dos os espaços do Universo, palavra, remontada aos gre-
homem das Ciências, mas o desde a vastidão do espaço gos, filósofos naturais, que
último fascículo de Proce- sideral até o vazio entre a recorreram a este conceito
edings of the Royal Acade- matéria física. O éter era o para fundar a existência do
my of London, deixado — medium por onde as ondas mundo físico.
acidentalmente? — em sua eletromagnéticas e lumi- Surgiu-lhe a idéia de
escrivaninha por um amigo, nosas se propagavam, do escrever um romance:
o havia intrigado. mesmo modo que o som se
O artigo principal dis- propaga no ar.
sertava sobre o éter e suas Mas não eram as pro- Um filósofo sarraceno
propriedades. A questão priedades físicas do éter obtém, pelas mãos de pe-
básica, aparentemente, era que interessavam Sir Mor- regrinos do Ocidente, uma
entender como a luz se pro- ton, e sim este misterioso cópia da META TA FUSIKA
pagava no espaço. Segundo caráter de permear todas as de Aristóteles. Deslumbrado
a compreensão de Sir Mor- coisas, de estar por detrás com os horizontes apre-
ton, o éter era uma subs- do mundo visível. sentados pelo sábio grego,
tância, a quinta substância este filósofo mouro inicia
Numa rápida pesquisa,
www.revistasamizdat.com 49
Contos
www.revistasamizdat.com 51
para si mesmo: “ Vinte e mesmos quadros com cerca de trinta minutos,
três? Piso vinte e três?” “marketing” de empresa, o desvaneciam-se os deta-
O “Ponto V” era um mesmo tapete turco e, ao lhes, todas as imagens.
espaço acolhedor com balcão, uma alma gémea Ficava a sós com as vá-
uma estátua gorda de de Sara, a secretária de rias divisões de paredes
Buda à entrada e as qua- cabelo loiro curto, corta- brancas e nuas e a porta
tro paredes decoradas do “à escovinha”, a teclar do elevador que haveria
de cores vivas. Sempre rapidamente. Consultava de o trazer de volta. Mas
vestido de grupos de algo e o telefone fora do nada disso o impediu de
pessoas jovens e bonitas bocal era indício de que, passar a fazer as visitas
a misturar conversas em algures, um cliente espe- rotineiramente. Tornara-
voz baixa, educada, par- rava por resposta. se um vício.
tilhando o espaço sonoro Estranho. Como podia As coisas na empresa
com a música de fundo estar ela ali se a tinha pioraram. Primeiro foi o
instrumental, raramente acabado de avistar no relatório de projecto que
asiática e quase sempre piso de baixo? Sem saber o Silva “chumbou” e que
Jazz. Desfrutou o sabor bem o que fazer, atirou o mesmo “Silva” mandou
do bife de seitan chaman- um “Olá Sara.” que ela que fosse alterado. Que
do mentalmente parvos não ouviu. Indiferente enviaram então ao cliente
a todos aqueles que con- à sua presença, desviou e que o cliente não acei-
fundem vegetariano com os olhos da tela e a mão tou. Seguiram-se outros
coisa descolorida e fraco direita voltou a pegar no desastres. Sempre que
sabor. Depois, terminou a bocal. o chefe metia a colher,
refeição com a sobremesa Aproximou-se mais e a coisa descambava. As
deliciosa: uma bavaroise foi então que reparou na reuniões tornaram-se in-
de amoras recheada com data: Quinze de Janeiro suportáveis. Estava já para
molho de iogurte. de 2009. Amanhã. enviar o currículo para
De volta à cabine do outras empresas quando
elevador, estava já para lhe surgiu a ideia. Porque
sair e retornar ao escri- O PLANO É ELABORA- não tinha pensado nisso
tório quando decidiu - ia DO antes? Se tinha aquela
esclarecer a coisa de uma O insólito só o é quan- viagem para o “amanhã”,
vez por todas. Premiu o do ainda não totalmente apesar de ser um mero
botão sentindo imediata- absorvido pelas malhas observador, poderia fazer
mente um leve trepidar, da rotina. Embora não hoje que o amanhã in-
sinal de que o dispositi- obtivesse qualquer expli- cluísse algo digno de ser
vo se tinha colocado em cação racional, habituou- visto. O plano que nasceu
movimento. Após uns se a ter por certa aquela nesse preciso momento
breves segundos, o trans- viagem ao futuro. As era muito simples: Sa-
porte imobilizou-se e as possibilidades eram limi- bendo que o sorteio do
portas abriram. tadas – não era visto nem Euromilhões é efectuado
podia interagir, era mero ao fim da tarde de sexta-
Em frente, o “hall”. feira, Sábado bem cedo
Similar, demasiado igual espectador. Além disso,
o tempo de que dispu- voltaria ao escritório e
ao que tinha no seu piso. obteria os números cer-
O mesmo candeeiro, os nha em cada visita era
igualmente escasso. Após tos. Depois, bastava dei-
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
tudo, mesmo em frente à
tagens do Silva actuando grelha do seu automóvel.
com outros espécimes A colisão foi inevitável.
do mesmo sexo e expe-
rimentando as posições Três horas e quatro
menos decorosas. Alo- costelas partidas depois,
jou-a no servidor e pro- ei-lo que acorda e per-
videnciou para que fosse gunta aos seres de bata
enviada para os postos branca e máscara:
de trabalho da empresa “Onde estou? Que me
no fim do processamento aconteceu? Que dia é
“batch” de Domingo. hoje?”
Passou o resto da ma- A resposta veio, calma
nhã a fingir que estava e segura.
trabalhando. Um pouco “Sabe… Teve muita
antes da hora de almoço, sorte. Muitos foram desta
sentiu que estava chegado para melhor por muito
o momento e dirigiu-se menos. Que raio lhe deu
então para o elevador. para atravessar no ver-
Tudo estava certo, o melho e nem reparar no
botão vinte e três, aquele trânsito? Teve realmente
que apenas ele via, espe- muita sorte. Se tudo cor-
rava-o e, mal tocado, fez rer bem, terá alta já na
o mecanismo obedecer às terça-feira. Da parte da
suas ordens. No entanto,
ficina
tarde.”
ao chegar ao seu escritó-
rio, esperava-o uma se-
cretária vazia – nem sinal
www.oficinaeditora.org
53
Contos
Léo Borges
O anômalo
Uma aula de antro- que queriam tomar seus ao contrário, mantidas e
pologia nunca me saiu empregos. Preconceito? propagadas. As conseqü-
da cabeça. Foi quando Que nada. Estavam apenas ências dos atos advindos
a professora comentou exercendo um ato sobe- de uma cultura precon- http://www.flickr.com/photos/cjohnson/4933589/sizes/o/
sobre como o preconceito rano, digno de defesa da ceituosa são normalmente
procura brechas no fa- pátria. discriminatórias e violen-
migerado “politicamente tas, mas tanto o precon-
correto” para se perpetuar. O respaldo em ques- ceito quanto a influência
Ela citara o exemplo de tão é necessário para que retórica que o suporta são
jovens alemães que espan- não haja uma conduta amplos e sutis, delicados
cavam tunisianos, turcos e violenta sem fundamento. como a própria hipocrisia
marroquinos com a ideo- Assim, tudo é justificado humana.
logia de que estavam sen- convenientemente e as
do cívicos, isto é, inibindo raízes do preconceito não Nessa mesma aula a
a presença de estrangeiros são abordadas e muito professora ainda comen-
menos discutidas, mas tou sobre um suposto
www.revistasamizdat.com 55
Ele argumentava que ção de uma grade televi- chons” a preço de banana
não tinha o aparelho por siva. Um outro freqüen- no canal de compras da
não gostar de ver televi- tador da roda comentou, TV por assinatura. Mas,
são, de não gostar do que posteriormente, que acre- o que mais me intrigou
a TV exibe. E não queria ditava que esse “Sem-TV” nisso tudo não foi o fato
gastar dinheiro para ver era algum tipo de “metido de termos entre nós um
a barbárie nos telejornais a intelectual”, que queria indivíduo que resistia em
ou as assépticas tramas passar a imagem de “alter- comprar um aparelho de
novelísticas. Não queria nativo”, mas que no fundo televisão, mas como aqui-
ver seriados, programas era, sim, “um anômalo”. lo, discretamente, transtor-
de auditório e talk shows. Ele usou essa palavra com nou o comportamento dos
Sua alegação era a de que uma sinceridade aterra- demais. As pessoas nitida-
filmes ele via no cinema; dora. Seria anomalia uma mente, nos encontros em
esportes ele ia ao estádio. pessoa não querer gastar que ele estava presente,
Notícias? Lia jornal ou uma grana num aparelho não abordavam mais as-
acessava a internet (cujo de TV? A máquina de suntos que pudessem criar
computador ficava em ou- consumo não iria gostar algum possível embara-
tro cômodo que não o seu se muitas pessoas agissem ço (terceiro preconceito
quarto, conforme frisava). como ele, pois algumas enraizado). Outros, que
O sujeito começou, então, lojas e indústrias teriam faziam a vez de defenso-
a ser visto como um ere- de enxugar seus quadros res do Homem Sem-TV
mita e muitos passaram, e demitir. O Poder Judi- (como se ele precisasse de
a partir daí, a boicotá-lo ciário também iria ter de advogados), diziam que
nas conversas, mesmo rever suas decisões. Tudo ele estava certo mesmo,
com provas irrefutáveis por causa de um anôma- que a programação da TV
de que ele possuía plena lo irresponsável que não apenas cria na cabeça do
condição de debater qual- quis comprar um televi- espectador necessidades
quer assunto. E esse era o sor, aparelho este que já supérfluas, que proliferam
seu diferencial: gostava de existe, inclusive, em mo- injustiças e “idiotizam a
viajar, de ler, de interagir, delos ultrafinos, de plas- massa”. O cidadão em
se recusando a participar ma ou LCD, podendo ser questão não desenvolvia o
como pólo passivo - sen- adquiridos em módicas assunto quando estava no
tado, mudo e sonolento prestações. centro do debate. Ficava
– diante de um ruidoso sem jeito, pois não queria
aparelho de TV. É. O tal sujeito que ser um “anômalo”, um bi-
relutava em ter um apa- cho de circo dos horrores
Uma senhora comentou relho de TV talvez fosse por não ter uma simples
entusiasmada que achava mesmo um anômalo, pe- televisão. Queria apenas
“muito bacana” a atitude dante, subversivo, indolen- conversar. Desde que
dele, mas que não tinha te, desrespeitador, um ele- não fosse sobre o último
“coragem de fazer o mes- mento altamente nocivo capítulo de alguma nove-
mo”. Aqui podemos obser- à engrenagem capitalista, la, pois sobre isso ele não
var como é interessante essa mesma que seduz teria a mais vaga idéia.
o termo “coragem” em- as crianças com o Papai
pregado por ela. É como Noel de gorro vermelho,
se ficar sem TV fosse todo encasacado no verão
um vertiginoso salto em de 42 graus brasileiro,
queda-livre sem a prote- exibindo os “pleistei-
Tentativas de
http://www.flickr.com/photos/abhi_ryan/2252867966/sizes/m/
existência
Léo Borges
http://www.flickr.com/photos/paulvaarkamp/1172499910/sizes/m/
www.revistasamizdat.com 57
Contos
Marcia Szajnbok
Jogo da Memória
Como dois vetores que Ele: Quantos anos faz É uma área difícil, sabe?
se anulam, iam pela rua, que terminamos a escola? O mercado... blá-blá-blá...
mesma direção, sentido Uns vinte? (Não acredi- (Meu deus! Quem é?).
http://www.flickr.com/photos/indrasensi/1774025759/sizes/l/
contrário. O encontro to... Ela não se lembra de
dos olhares não durou mim?!). Ele: Pois é... Coisas do
mais que a metade de um nosso país... Veja você, eu
instante. Ela: Por aí... (Meu deus! sou engenheiro... blá-blá-
Quem é?). blá... (Não tem aliança no
Ele: Puxa, há quanto dedo, mas esse pessoal das
tempo! (Nossa! Ela conti- Ele: Me conta, você faz humanas é meio diferen-
nua linda...). o quê da vida? (Me diga te...).
que está solteira... ou se-
Ela, sorrindo um pou- parada...). Ela: blá-blá-blá... (Essa
co sem graça: É mesmo... cara não é estranha…
(Meu deus! Quem é?). Ela: Fiz jornalismo, mas da escola… raio de
não trabalho com isso... memória que me deixa
www.revistasamizdat.com 59
Contos
O Admirador
Parte 1: As coroas
Maristela Scheuer Deves
http://www.flickr.com/photos/viamoi/2524148977/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 61
Autor Convidado
Sonetos
Tulio Rodrigues
O amigo e o poeta
Ao meu querido amigo Adriano Andrade!!!!
a boa Literatura
é fabricada
ficina
www.revistasamizdat.com 63
www.oficinaeditora.org
Tradução
Hesíodo e a vida do
homem comum
64 SAMIZDAT abril de 2009
64
O poeta grego Homero tor, do artesão, do escravo e
dispensa apresentações — au- da mulher.
tor de obras clássicas como As duas grandes obras de
“Ilíada” e “Odisséia” —, é Hesíodo são a “Teogonia” e
considerado um dos pais da “Os Trabalhos e os Dias”. Na
poesia épica e deu a forma primeira delas, é narrado o
definitiva de histórias mito- nascimento dos deuses e a
lógicas como a da Guerra de criação do mundo, de acordo
Tróia, da rivalidade entre o com a crença popular e com
rei Agamênon e Aquiles, ou a religião corrente à época,
da viagem cheia de peripé- na segunda, Hesíodo pres-
cias do herói Odisseu. Teóri- creve normas de condutas e
cos debatem a existência de preceitos para o bom viver,
tal personagem, defendendo quais as melhores épocas
que, na verdade, os poemas para se plantar, para se viajar,
atribuídos a Homero nada e como sobreviver à dura
mais passam do que uma vida campesina. Ambas as
compilação de tradições obras estão intimamente rela-
orais do povo grego primiti- cionadas, pois, enquanto que
vo, utilizadas para fins peda- o homem de Homero se põe,
gógicos. às vezes, em pé de igualdade
Werner Jaeger, no livro com as divindades — são fi-
“Paidéia”, apresenta esta fun- lhos e filhas de deuses, semi-
ção educacional de Homero deuses, e desafiam os deuses
de modo muito explícito: a olímpicos, como o caso de
nobreza (areté) dos heróis Diomedes que ataca Afrodite
homéricos deveria servir de durante a batalha — o ho-
referencial de nobreza para a mem de Hesíodo se encolhe
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4f/Athena_Herakles_Staatliche_Antikensammlungen_2648.jpg
www.revistasamizdat.com 65
Tradução
O Mito de Prometeu
Hesíodo (Ἡσίοδος)
tradução: Henry Alfred Bugalho
Virgem. Ao orgulhoso Menécio Zeus de vasta visão παρθένον. ὑβριστὴν δὲ Μενοίτιον εὐρύοπα Ζεὺς
Precipitou do Érebo, atirando-lhe raio fumegante, εἰς ἔρεβος κατέπεμψε βαλὼν ψολόεντι κεραυνῷ
Por sua presunção e virilidade arrogante. εἵνεκ' ἀτασθαλίης τε καὶ ἠνορέης ὑπερόπλου.
Atlas sustém o vasto céu sob violenta tortura, Ἄτλας δ' οὐρανὸν εὐρὺν ἔχει κρατερῆς ὑπ' ἀνάγκης,
Nos confins da terra, diante das Hespérides de voz harmoniosa, πείρασιν ἐν γαίης πρόπαρ' Ἑσπερίδων λιγυφώνων
Apoiando-o em sua cabeça e nos braços incansáveis; ἑστηώς, κεφαλῇ τε καὶ ἀκαμάτῃσι χέρεσσι·
Pois este destino lhe designou o prudente Zeus. ταύτην γάρ οἱ μοῖραν ἐδάσσατο μητίετα Ζεύς.
Atou com inquebrantáveis amarras Prometeu pleno de idéias, δῆσε δ' ἀλυκτοπέδῃσι Προμηθέα ποικιλόβουλον,
Grilhões dolorosos passados em meio a uma coluna, δεσμοῖς ἀργαλέοισι, μέσον διὰ κίον' ἐλάσσας·
E sobre ele instigou uma águia de largas asas. Esta o fígado καί οἱ ἐπ' αἰετὸν ὦρσε τανύπτερον· αὐτὰρ ὅ γ' ἧπαρ
Imortal comia, regenerando-se nas mesmas proporções, ἤσθιεν ἀθάνατον, τὸ δ' ἀέξετο ἶσον ἁπάντῃ
Durante a noite, o comido de dia pela ave de largas asas. νυκτός, ὅσον πρόπαν ἦμαρ ἔδοι τανυσίπτερος ὄρνις.
O forte filho de Alcmena de belos tornozelos, τὸν μὲν ἄρ' Ἀλκμήνης καλλισφύρου ἄλκιμος υἱὸς
Heracles, a matou e repeliu o horrível sofrimento Ἡρακλέης ἔκτεινε, κακὴν δ' ἀπὸ νοῦσον ἄλαλκεν
Não sem o consentimento do soberano Zeus Olímpico, οὐκ ἀέκητι Ζηνὸς Ὀλυμπίου ὕψι μέδοντος,
Para que a fama de Heracles Tebano fosse ὄφρ' Ἡρακλῆος Θηβαγενέος κλέος εἴη
Maior do que antes sobre a fecunda terra. πλεῖον ἔτ' ἢ τὸ πάροιθεν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν.
Com estes cuidados honrou seu notável filho e, ταῦτ' ἄρα ἁζόμενος τίμα ἀριδείκετον υἱόν·
Ainda que estivesse irritado, mitigou-lhe a cólera que possuía καί περ χωόμενος παύθη χόλου, ὃν πρὶν ἔχεσκεν,
Contra aquele que desafiou a vontade do muito poderoso Crônida. οὕνεκ' ἐρίζετο βουλὰς ὑπερμενέι Κρονίωνι.
Em Mecona, com ânimo resoluto, um enorme boi ele Μηκώνῃ, τότ᾽ ἔπειτα μέγαν βοῦν πρόφρονι θυμῷ
Ofertou dividindo, tentando enganar a inteligência de Zeus. δασσάμενος προέθηκε, Διὸς νόον ἐξαπαφίσκων.
Pois à carne e às gordas vísceras com banha Τοῖς μὲν γὰρ σάρκας τε καὶ ἔγκατα πίονα δημῷ
Sob a pele guardou, ocultas no ventre do boi, ἐν ῥινῷ κατέθηκε καλύψας γαστρὶ βοείῃ,
E, aos brancos ossos do boi, com astúcia enganadora, τῷ δ᾽ αὖτ᾽ ὀστέα λευκὰ βοὸς δολίῃ ἐπὶ τέχνῃ
Ordenou, cobrindo-os, ocultos, com brilhante gordura. εὐθετίσας κατέθηκε καλύψας ἀργέτι δημῷ.
Então se dirigiu a ele o pai dos homens e deuses: Δὴ τότε μιν προσέειπε πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε·
Ó amável, com que parcimônia dividiste as partes de cada um!” ὦ πέπον, ὡς ἑτεροζήλως διεδάσσαο μοίρας.
Assim falou, zombando, Zeus conhecedor dos desígnios imortais. Ὥς φάτο κερτομέων Ζεὺς ἄφθιτα μήδεα εἰδώς.
www.revistasamizdat.com 67
Sorrindo de leve, não se esquecendo de sua astúcia enganadora: ἦκ᾽ ἐπιμειδήσας, δολίης δ᾽ οὐ λήθετο τέχνης·
“Zeus, o mais ilustre e poderoso dos deuses sempiternos, Ζεῦ κύδιστε μέγιστε θεῶν αἰειγενετάων,
Pega dentre os dois aquele que, em seu âmago, dita a vontade.” τῶν δ᾽ ἕλε᾽, ὁπποτέρην σε ἐνὶ φρεσὶ θυμὸς ἀνώγει.
Falou, pois, com pensamentos enganadores. Zeus, conhecedor dos Φῆ ῥα δολοφρονέων· Ζεὺς δ᾽ ἄφθιτα μήδεα εἰδὼς
desígnios imortais,
Soube e não ignorava o engano; mas antevia em seu espírito males γνῶ ῥ᾽ οὐδ᾽ ἠγνοίησε δόλον· κακὰ δ᾽ ὄσσετο θυμῷ
Aos homens mortais, aos quais deveriam se realizar. θνητοῖς ἀνθρώποισι, τὰ καὶ τελέεσθαι ἔμελλεν.
Com ambas as mãos apanhou a branca gordura. Χερσὶ δ᾽ ὅ γ᾽ ἀμφοτέρῃσιν ἀνείλετο λευκὸν ἄλειφαρ.
Irritou-se em seu íntimo, a cólera alcançou-lhe o espírito, Χώσατο δὲ φρένας ἀμφί, χόλος δέ μιν ἵκετο θυμόν,
Quando viu os alvos ossos do boi sob astúcia enganadora. ὡς ἴδεν ὀστέα λευκὰ βοὸς δολίῃ ἐπὶ τέχνῃ.
Desde então, a estirpe dos homens sobre a terra aos imortais Ἐκ τοῦ δ᾽ ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ᾽ ἀνθρώπων
Queima brancos ossos nos olorosos altares. καίουσ᾽ ὀστέα λευκὰ θυηέντων ἐπὶ βωμῶν.
E àquele disse Zeus cumulador de nuvens, grandemente indignado: Τὸν δὲ μέγ᾽ ὀχθήσας προσέφη νεφεληγερέτα Ζεύς·
“Japetônida, de tudo conhecedor dos desígnios, Ἰαπετιονίδη, πάντων πέρι μήδεα εἰδώς,
Ó amável, não esqueceste de tua astúcia enganadora!” ὦ πέπον, οὐκ ἄρα πω δολίης ἐπιλήθεο τέχνης.
Assim encolerizado disse Zeus, conhecedor dos desígnios imortais. Ὥς φάτο χωόμενος Ζεὺς ἄφθιτα μήδεα εἰδώς·
Desde então, lembrou-se sempre deste engano ἐκ τούτου δὴ ἔπειτα δόλου μεμνημένος αἰεὶ
E não deu o ardor infatigável do fogo nos freixos οὐκ ἐδίδου μελίῃσι πυρὸς μένος ἀκαμάτοιο
Para os homens mortais que habitam sobre a terra. θνητοῖς ἀνθρώποις, οἳ ἐπὶ χθονὶ ναιετάουσιν.
Mas o enganou o bom filho de Japeto, Ἀλλά μιν ἐξαπάτησεν ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο
Escondendo o brilho que se vê de longe do fogo infatigável κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον αὐγὴν
Em um bastão oco. Então, feriu profundamente o espírito ἐν κοΐλῳ νάρθηκι· δάκεν δέ ἑ νειόθι θυμόν,
De Zeus tonitruante e irritou-se em seu coração Ζῆν᾽ ὑψιβρεμέτην, ἐχόλωσε δέ μιν φίλον ἦτορ,
Quando avistou entre os homens o brilho que se vê de longe do fogo. ὡς ἴδ᾽ ἐν ἀνθρώποισι πυρὸς τηλέσκοπον αὐγήν.
E, em troca do fogo, preparou um mal para os homens: Αὐτίκα δ᾽ ἀντὶ πυρὸς τεῦξεν κακὸν ἀνθρώποισιν·
Modelou a terra o ilustre Coxo γαίης γὰρ σύμπλασσε περικλυτὸς Ἀμφιγυήεις
Semelhante a pudica donzela, por vontade do Crônida. παρθένῳ αἰδοίῃ ἴκελον Κρονίδεω διὰ βουλάς.
A deusa Atena de olhos glaucos cingiu-a e a adornou Ζῶσε δὲ καὶ κόσμησε θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη
Com um vestido de resplandecente brancura; cobriu-a desde a cabeça ἀργυφέη ἐσθῆτι· κατὰ κρῆθεν δὲ καλύπτρην
Com um véu bordado por suas próprias mãos, maravilha de se ver; δαιδαλέην χείρεσσι κατέσχεθε, θαῦμα ἰδέσθαι·
E com coroas de erva fresca trançada com flores, [ἀμφὶ δέ οἱ στεφάνους, νεοθηλέος ἄνθεα ποίης,
Atraentes, rodeou Palas Atena suas têmporas. ἱμερτοὺς περίθηκε καρήατι Παλλὰς Ἀθήνη. ]
Em sua cabeça colocou uma coroa de ouro ἀμφὶ δέ οἱ στεφάνην χρυσέην κεφαλῆφιν ἔθηκε,
Que o próprio ilustre Coxo cinzelou, τὴν αὐτὸς ποίησε περικλυτὸς Ἀμφιγυήεις
Trabalhando manualmente, agradando ao pai Zeus. ἀσκήσας παλάμῃσι, χαριζόμενος Διὶ πατρί.
Nela gravou muitos ornamentos, maravilhas de se ver, Τῇ δ᾽ ἐνὶ δαίδαλα πολλὰ τετεύχατο, θαῦμα ἰδέσθαι,
Monstros terríveis que o continente e o mar nutrem; κνώδαλ᾽, ὅσ᾽ ἤπειρος πολλὰ τρέφει ἠδὲ θάλασσα·
Muitos deles pôs — em todos se manifestava a beleza —, τῶν ὅ γε πόλλ᾽ ἐνέθηκε,—χάρις δ᾽ ἀπελάμπετο πολλή,—
Maravilhosos, quais seres vivos dotados de voz. θαυμάσια, ζῴοισιν ἐοικότα φωνήεσσιν.
Após preparar com beleza o mal, em troca de um bem, Αὐτὰρ ἐπεὶ δὴ τεῦξε καλὸν κακὸν ἀντ᾽ ἀγαθοῖο,
Conduziu-a onde estavam os demais deuses e os homens, ἐξάγαγ᾽, ἔνθα περ ἄλλοι ἔσαν θεοὶ ἠδ᾽ ἄνθρωποι,
Enfeitada com adorno pela deusa de olhos glaucos de pai poderoso. κόσμῳ ἀγαλλομένην γλαυκώπιδος ὀβριμοπάτρης.
E um estupor se apoderou dos deuses imortais e dos homens mortais θαῦμα δ᾽ ἔχ᾽ ἀθανάτους τε θεοὺς θνητούς τ᾽ ἀνθρώπους,
Quando viram o escarpado engano, irresistível para os homens. ὡς ἔιδον δόλον αἰπύν, ἀμήχανον ἀνθρώποισιν.
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
ficina
www.revistasamizdat.com 69
www.oficinaeditora.org
Teoria Literária
A Arte de Trair
Breves reflexões sobre o ofício da tradução
em momentos de refle-
É neste salto entre a Se para um brasilei- xão, surgem-nos no livro
origem e o destino que ro compreender uma da mente frases perfeitas,
encontramos o primeiro expressão de Portugal é sentenças irretocáveis e
abismo. necessário, por vezes, um parágrafos ou páginas
esforço para se pôr no inteiras dignas de um
Toda língua possui sua
registro cultural daquele mestre.
www.revistasamizdat.com 71
No entanto, assim que cionava com a cultura de Portanto, entre a reali-
elas são transportadas sua época. dade e nossos pensamen-
para a folha de papel, tos também existe um
muitas destas ideias se abismo, e este é realmen-
revelam imperfeitas, ou Que nós retrocedamos te intransponível.
tolas, ou ridículas. Não um passo, então.
é a toa que boa parte do Não estamos falando
trabalho de um escri- Todo pensamento de algo como uma coisa
tor é na hora de revisar, deriva duma impressão em-si, ou a essência das
de cortar, de remendar sensorial. Cotidianamen- coisas, estamos falando
sua obra. Basta acompa- te, vemos, ouvimos, senti- de algo mais simples e
nharmos a biografia de mos, degustamos, somos bem distante de toda
qualquer grande escritor afetados por inúmeras e qualquer metafísica:
e veremos que quase sensações. nosso conhecimento é
todos duelavam com suas fragmentado, temos ape-
Não creio que devamos nas acesso a parcelas da
obras, refazendo-as, rees-
empreender uma inves- realidade.
crevendo-as, às vezes até
tigação profunda sobre o
renegando-as.
processo cognitivo do ser
A criação da obra humano, se nossa mente Acompanhe então todo
literária não é uma via- é uma tabula rasa, vazia o processo feito por nós:
gem por mares tranqui- de conteúdos e que vai
los, mas sim um embate sendo construída com o a - da tradução ao tex-
constante e interminável, tempo, ou se nós possu- to de origem;
que chega até a perdurar ímos várias faculdades
que vão sendo alimenta- b - do texto de origem
após a publicação das
das com nossas vivências, ao autor deste texto;
mesmas.
mas o que importa é que c - do autor do tex-
Qualquer autor sabe a maior parte do nosso to aos pensamentos do
que, entre os pensamen- conhecimento surge atra- autor;
tos e a escrita, há tam- vés dos sentidos.
bém um abismo. d - dos pensamentos
No entanto, nosso co- do autor às vivências des-
Como suprir esta nhecimento do mundo é te autor;
lacuna, nós nos pergunta- parcial. Nossos olhos, ou-
mos? Como traduzir com vidos, mãos, palato, nariz e - das vivências do
propriedade este conflito nos mostram facetas da autor à realidade.
que surge com o primei- realidade. Se vemos o sol
ro pensamento do autor Cinco etapas que nos
nascente, por exemplo,
e se manifesta na palavra afastam do sentido, cinco
percebemos sua cor e as
escrita? decisões totalmente arbi-
tonalidades do céu, sen-
trárias, comprometidas e
Também neste caso, a timos seu calor, mas não
duvidosas. Quatro destas
resposta parece ser sim- temos um conhecimento
etapas ocorrem através
ples: basta conhecermos a da totalidade do que é o
do autor e do processo
biografia do autor; basta sol. Acercamo-nos deste
de escrita, a última se dá
lermos o conjunto de sua objeto dentro de nossas
pelas mãos do tradutor,
obra e como ele se rela- limitações sensoriais.
completamente distante
www.revistasamizdat.com 73
Crônica
http://www.flickr.com/photos/mcsimon/2762383402/sizes/l/
Maristela Scheuer Deves
Nós, mulheres,
as eternas insatisfeitas
Está ali, no espelho: esse salão de beleza para deixá-
cabelo não toma jeito, mes- los cheios de cachinhos -
mo! Quem dera ele fosse isso de vez em quando, pois
igual ao daquela colega, ou já que a natureza não quis
ao daquela outra amiga... assim, meu bolso se recusa
Duvido que haja mulher a acompanhar o preço das
que não tenha ainda vivido manobras necessárias para
essa cena. Eu, pelo menos, driblar a genética. A cor,
ainda não entendi por que claro, também precisa ser
Deus me fez nascer de ca- mudada de vez em quando.
belos lisos, quando sempre Ora, onde já se viu, quem
adorei vê-los ondulados. E escolheu esse castanho sem
vai baby liss, rolos, horas no sal para colorir minhas
www.revistasamizdat.com 75
Crônica
http://www.flickr.com/photos/87765855@N00/3105128025/sizes/l/
Léo Borges
As incongruências do “né?”
Um grande temor que estão ali apenas para tentar um pouco familiarizado.
percebo no mundo de hoje dividir a culpa? Bom, é aí As duas letrinhas e a inde-
é o medo por algo que não que entra em ação o tão fectível interrogação vêm
deu certo ou pelo que pode decantado “né?”. sempre no final da frase
vir a não dar. Se fechou Essa corruptela de “não e buscam a redenção da
bem, ótimo, a coisa funcio- é?” é uma das engenhosi- mesma.
nou, foi adiante, cumpriu dades do ser humano para - Todo mundo estudou
seu papel. Mas e se existir a fazer com que o receptor pra essa prova, né? – per-
possibilidade de dar errado? da mensagem se veja encur- gunta um dos alunos que
Ou se ainda restam dúvi- ralado. Ele deverá assumir não estudou nada e que
das, muitas vezes frágeis, uma situação já fracassada, quer saber se vai poder
que admitem um trágico próxima do desastre ou encontrar alguém que lhe
fim da operação e que com a qual não está nem forneça a cola. A pergunta,
www.revistasamizdat.com 77
Crônica
Monumento ao
vandalismo
Joaquim Bispo
(no Parque Eduardo VII, Que mente doentia, que desde o momento em que ela
em Lisboa) espírito atormentado, que foi entregue ao público e se
Alguém vislumbrou, men- alma putrefacta é que ence- tornou bem cultural colecti-
talmente, esta forma imersa ta a actividade de mutilar e vo, nem mesmo o artista que
na pedra amorfa e executou desfigurar uma escultura em a concebeu.
este trabalho grandioso; obra pedra, tão simples e majesto- (E quanto alguns querem
difícil de conceber, dolorosa sa como esta? alterar a sua obra! É paradig-
de parir. Concedamos, esta escultu- mática a história dum pintor
ra não é das melhores obras francês que, tendo uma obra
que a Humanidade já pro- sua num museu importan-
Outro alguém optou por
duziu mas, ainda que fosse te, mas estando descontente
executar a tarefa fácil, mes-
a mais aberrante, ninguém com um determinado matiz
quinha de a desagregar e
tem o direito de alterá-la, e, que tinha usado, conseguiu
devolver ao informe.
www.revistasamizdat.com 79
Crônica
Livin’ in America
Obama, o 44º
presidente branco
80 SAMIZDAT abril de 2009
80
Sei que é um pouco tade branco, o Obama é meu segundo carro.
tarde para falar da elei- o cachorro bege.
Lula era temido porque
ção à presidência de
E o segundo evento foi trazia à tiracolo o estig-
Barack Obama, principal-
quando, en passant, escu- ma do comunismo. No
mente porque os votos
tei, com o rabo de ouvi- entanto, bastou ele mudar
já foram contados e ele
do, a conversa entre uma a imagem, vestir terno e
até já tomou posse, mas
mulher e um homem, gravata, reduzir o tom de
há algo que me inquieta,
brancos, sobre a eleição. voz e falar pausamente,
desde que todo este furor
A mulher, aparentemente que a classe média foi
começou e Obama des-
defendendo seu ponto de conquistada.
pontou como o favorito à
vista e justificando seu
Casa Branca. Lula foi eleito, e reelei-
voto em Obama, disse:
to.
Dois eventos em parti-
- Sabe o que é estra-
cular despertaram mi- Vejo um grande para-
nho? Eu não vejo Obama
nha desconfiança sobre lelo, neste sentido, entre
como um negro, mas
esta eleição; dois eventos Lula e Obama. Ambos
apenas como um homem.
frívolos, corriqueiros, mas disseminavam uma men-
que me revelaram uma Estas duas histórias sagem de esperança, am-
nova perspectiva sobre imediatamente me fize- bos representavam uma
como os americanos ram recordar do nosso mudança significativa no
brancos viam Obama. presidente Lula. Toda a cenário político - o pri-
imagem que havia sido meiro, um torneiro me-
Havia três cachorros
criada durante a carreira cânico, sem muita educa-
na rua: um preto, um
política dele era a do sin- ção, tornado presidente;
marronzinho (quase
dicalista, camiseta verme- o segundo, um negro,
bege-claro) e um branco.
lha, barba desgrenhada num país extremamente
Alguns mendigos passa-
e gritos de ordem sobre preconceituoso, tornado
ram e apontaram para os
um palanque improvisa- presidente. Ambos de-
cachorros e começaram a
do. pendiam da classe média
nomeá-los. O branco era
para se elegerem.
a Hillary Clinton, o preto Mas esta imagem de
http://gossiponthis.com/wp-content/uploads/2009/01/barack-obama.jpg
www.revistasamizdat.com 81
parte dos negros america- Obama se esforçou para
nos possui, as calças lar- se afastar do pastor Jere-
gas mostrando a cueca, o miah Wright, cujo culto
jaquetão de couro, o boné ele frequentou por vários
de aba reta virado pro anos, e dos discursos
lado, o inglês de gueto e antipatriotas dele, mesmo
os ameaçadores gestos de que este pastor houvesse
cantor de rap. dito muitas verdades.
No confessionário
Mariana Valle
http://www.flickr.com/photos/keepwaddling1/3256953391/sizes/l/
Chiquinho estava agitado. ouvir relatos de luxúria. Deus.
Misturados ao seu alívio e Aquela divisória de madeira - Mas, então? Estaria o
àquela preguicinha boa que entre ele e o penitente era fiel cometendo o pecado do
dá logo após uma relação se- perfeita para esconder sua adultério?
xual, havia no ar uma agonia, inevitável excitação. Ainda - Tô e num tô, excelência.
um desespero. Sabe quando mais quando o pecado da - Não compreendi. Expli-
um claustrofóbico fica con- carne era confessado por que-se, por obséquio.
finado com várias pessoas uma voz masculina. Geraldo - É que está tudo em fa-
num elevador minúsculo? tinha que fazer um esforço mília, não sabe? Na verdade,
A sensação era exatamente infernal para não demonstrar acho até que fiz um bem à
essa. Era a tradicional angús- seu desejo se avolumando. minha esposa.
tia que lhe tomava o corpo E a culpa por trás daquelas - O senhor está querendo
sempre depois do prazer. O palavras em especial era um afirmar que trair sua esposa
que não o impedia de ter a verdadeiro bálsamo para é uma atitude generosa?
próxima relação. Pelo con- seus ouvidos. Geraldo en- - Vou lhe contar como
trário: só aumentava a von- fim sentia-se compreendido. tudo começou, pro senhor
tade de entrar em ação. Era Como ele queria derrubar me entender. Quando casei
como se, para compensar a aquela parede! com a Josefa, ela tinha uma
angústia, ele tivesse que em- filhinha linda, branquinha
barcar nas delícias do sexo Por isso, Geraldo não se como a neve, com os cabelos
novamente. Aliás, parecia até aguentou de curiosidade e assim cheios de voltinhas.
que Chico ansiava por essa inquiriu o penitente: Parecia um anjinho. Só que
inquietude. Estranho. Por - Mas por que praticar o ela tinha um problema,
isso, José Francisco da Silva amor tanto lhe angustia, meu sabe? Problema de cabeça. O
resolveu se confessar. jovem? Acaso não é casado? disgramado do pai só sirviu
- Sou sim, seu padre. pra fazer essa menina com
Dom Geraldo adorava Muito bem casado, graças a defeito e depois meteu o pé.
www.revistasamizdat.com 83
- Meteu o pé na filha? bichinha nem falar, fala! quinha, dava umas risadinhas
- Não, seu padre. Meteu o - E o que você fez, filho? lindas. Depois, ela começou a
pé, fugiu, foi embora. - Ah, padre... Foi a primei- chorar. Não sei o que deu na
- Ah, sim... Continue, meu ra de muitas noites maravi- menina.
filho, continue... lhosas. Mas eu fui carinhoso - Não sabe...
- Então a garota – ela se com a menina, não sabe? - Não sei, padre. Com ela
chama Jéssica – foi crescendo Acho até que ela sorriu. eu sou ainda mais carinhoso
cada vez mais bonita e cada Coitada, tem uma vida tão do que com a mais velha.
vez mais maluca. Era um so- disgramada com aquela sem- Essa sabe falar e não é malu-
frimento pra minha mulher, graça da Josefa o tempo todo ca, né?
coitada. E pra menina tam- do lado dela, que eu acho - Mas e a patroa, meu fi-
bém. Ela não pode ser feliz que quando ela está sozinha lho, não sabe o que você faz?
assim com esse problema, comigo tem os momentos - Que nada! Ela pensa que
não é seu padre? mais felizes de sua vida. eu tenho outras, porque eu
- Deus sabe o que faz, meu - Josefa é a sua esposa, a não procuro mais ela, sabe?
filho. Mas e o que aconteceu mãe da Jéssica? Mal sabe que as outras dor-
com a Jéssica? - É, seu padre. A velha. mem no quarto ao lado!
- O que aconteceu foi que A Jéssica não. É nova, linda, - Então o senhor está aqui
eu comecei a sentir umas branquinha. O problema é por que se arrependeu dos
coisas estranhas. Toda vez que ela não para de crescer e seus pecados e quer uma
que estava lá no “bem bom” eu já to começando a achar penitência?
com a minha nega, só con- que a menina vai ficar igual - Não é por isso não,
seguia pensar na Jéssica. Um à minha patroa. padre. É porque a pequena
dia quase troquei o nome da - Mas o que sua patroa ficou grávida, os médicos
mãe pelo da filha. tem a ver com essa história? descobriram e está todo
- Sim. E o que mais? - Não, seu padre. Minha mundo querendo acabar com
- Então um dia a Jéssica patroa é modo de falar. Mi- a vida da minha filha que
tinha ido numa festa à fan- nha patroa é minha mulher. nem nasceu ainda. E eu não
tasia no colégio. Josefa vestiu - Ah, tá... acho isso certo.
a menina de princesa. E ela - Pois é, seu padre. A - É, filho. Não é certo
estava mesmo uma princesa. menina tá crescendo, mas mesmo. O que você fez é
Parecia ter saído daqueles isso não é nada, porque tem errado, mas o que eles estão
desenhos animados da televi- também a irmã menor dela. fazendo é mais errado ainda.
são, sabe? Ela estava com sete Eu te falei da Janete? É um pecado literalmente
anos na época. - Não, não falou não. mortal. Ainda bem que você
- Sei. A princesa... - A Jéssica tá agora com me avisou.
- É, seu padre. Você preci- quatorze anos e a Janete, com - Por que, seu padre? Vai
sava ver que coisa mais linda! nove. me ajudar?
Era muita tentação. Tanto é - Mas a Janete também - Vou, meu filho, mas
que Deus me ajudou. tem problema mental? primeiro eu preciso que você
- Como Deus lhe ajudou? - Que nada, homem! Ela me dê o nome desses assas-
- A jararaca da minha so- é normalzinha da silva. E sinos que estão querendo
gra ligou lá pra casa porque também é uma princesa. abortar o seu filho.
tava passando mal e a minha Ainda mais bonita do que a - Tá bom, padre. Mas e
mulher foi correndo pra casa Jéssica, porque é mais nova e eu, fiz mesmo alguma coisa
dela. E foi assim que eu fi- inteligente. errada?
quei sozinho com a princesa. - Então, com essa você não - Fez, filho, fez.
– Você quis dizer: a Jéssi- faz nada, né? - Mas eu quero conser-
ca. - Que isso? Aí é que eu tar isso. Vou cuidar bem da
- Seu padre, ela lá, ma- faço mesmo. É muito melhor. minha filha. Já pensou se ela
luquinha, toda lindinha de Porque primeiro, quando nasce tão linda como a Jéssi-
princesa, eu podia fazer qual- eu comecei com ela, fui aos ca e a Janete?
quer coisa que ninguém nun- poucos e ela foi gostando,
ca ia saber, não é mesmo? A sabe? Dizia que sentia cos-
Gauderiadas I
Volmar Camargo Junior
http://www.flickr.com/photos/robvini/2831755722/sizes/l/
Entre as coisas que eu Além disso, muitos estrangei- pode fazer o mesmo que
mais gosto no nosso jeito de ros pensam que o "que tri!" tenho feito pelos resultados
falar são as gauderiadas que é de uso comum entre os dos últimos grenais: lamenta-
se usam mesmo entre os gaúchos, o que não é verda- se. Mas no íntimo, e quando
citadinos. Não é exatamente de. Esse sim é um dizer bem se descuidam, esses filhos
uma expressão cultural, por- mais urbano, mais portoale- ingratos deixam escapar, não
que não se ensina e não se grense, néah. Mas sobre isso raro, um bah! e ainda menos
aprende: parece que gaúcho eu falo outra hora. raramente, um tchê.
já nasce gaudério... Talvez o nosso tchê seja Não só de sintaxe, se-
Uma dessas coisas é o equivalente ao sô do caipira, mântica e pragmática, esses
"tchê". Fora o professor e já que na sintaxe, exercem a termos fazem parte do nosso
escritor Luís Augusto Fischer, mesma função: modo de ver as coisas. Nem
um ou outro dicionarista - Buenos dia, tchê. todo gaúcho gosta de músi-
teve o trabalho de dizer o ca tradicionalista, nem anda
que ele significa. Mesmo vertendo para o outro pilchado, e há ainda os que
assim, é o pronome de tra- idioma - o caipira nem gostam de chimarrão
tamento mais comum por - Bão dia, sô. (eu mesmo, só comecei a to-
aqui. A verdade é que o tchê mar mate depois de adulto).
Na verdade, não precisa
é uma das coisas que nos Mas essa coisa meio abarba-
nem nascer no Rio Grande
identifica junto aos "estran- rada que nos faz dizer "bah!"
do Sul; é genético. Filho de
geiros" que moram do lado pra qualquer situação, boa ou
gaúcho - até neto, ouvi dizer
errado do Rio Uruguai. O ruim, ou dizer "E aí, tchê!" na
- pode nascer no Acre, que se
problema é que, para eles, maior, sem vergonha nenhu-
considera gaúcho. Por outro
nós usamos essa gauderiada ma, nos identifica muito mais
lado, tem gente que repudia
linguística - e outras - as do que imaginamos.
sua origem. E desses, só se
vinte e quatro horas do dia.
www.revistasamizdat.com 85
Crônica
Solidão a dois
em tempos de crise
Giselle Sato
http://www.flickr.com/photos/pfv/2870266088/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 87
Poesia
Laboratório Poético:
a narração na poesia
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com
sem ruído
o desenho e as linhas traçadas
unidos no ar
ficaram plantados nalgum canteiro da me-
contornam as linhas mória
de um desenho irreproduzível e por mais atenção que lhes dedique
deles jamais brotou sequer um rascunho
uma vez separados
v.
ii.
as cascas do ovo virariam comida
na secura lisa da casca
o ninho da ave viraria comida
encontrei um oco escondido
o oco da pedra viraria comida
em velha pedra esquecida
vi.
iii.
e se ele devorar a si próprio
o oco da pedra era o ninho
que ironia, meu Deus, que ironia
duma ave cuja exótica dieta
mesmo o nada seria devorado
era de pátrias, homens e livros
http://www.flickr.com/photos/monster/157959391/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 89
Poesia
http://www.flickr.com/photos/_belial/521278577/sizes/o/
Num segundo, minuto, hora, dia
é você em meu coração feliz
que ameniza esta nossa ascendência.
Palavras inúteis
Mariana Valle
Estou rouca
de tanto gritar.
A luz é pouca,
me falta o ar.
Minha cabeça
explode em dor.
Muita conversa,
pouco amor. http://www.flickr.com/photos/paperdollimages/97353996/sizes/o/
Se ando na linha,
me vêm as palmas,
mas sou sozinha
com a minha alma.
www.revistasamizdat.com 91
Poesia
Pac-man
http://www.flickr.com/photos/torley/2957409762/sizes/o/
Pele em fio de caneta, pincel,
pirueta, flor de vida inacabada
www.revistasamizdat.com 93
Poesia
Se eu escrevesse hoje
Escreveria com o estilete macio de uma flor
Uma palavra
Uma só palavra que dissesse tudo
Se eu escrevesse
E eu não o faço, hoje
Repetiria a palavra
Uma, mil e muitas vezes http://www.flickr.com/photos/78993837@N00/2968063343/sizes/o/
Se eu escrevesse hoje
Escreveria saudade
(e por baixo o teu nome)
www.revistasamizdat.com 95
SOBRE OS AUTORES DA
SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa
Revisão
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita, em Lisboa.
episcopum@hotmail.com
Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com
Coordenação de Entrevista
Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a
ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-
rio, suspense e terror, além de crônicas.
www.revistasamizdat.com 97
Colaboração
Volmar Camargo Junior
Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.
marciasz@hotmail.com
Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.
Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.
www.revistasamizdat.com 99
Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre gran-
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
de paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas
a que se dedica cada vez mais.
ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 101
www.oficinaeditora.org
Também nesta edição,
textos de