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CURITIBA
2008
MARIA HELENA SABURIDO VILLAR
CURITIBA
2008
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da UTFPR – Campus Curitiba
... aos meus pais, Elvira e Luis, que sempre incentivaram minha
curiosidade e minha dedicação aos estudos.
... e, em especial:
... à minha pequena Ana, que acompanhou este trabalho tão de perto.
Mesmo me obrigando a me afastar de tudo e roubando minha atenção só
pra ela.
Philippe Dubois
5
RESUMO
Este estudo propõe investigar e discutir o uso da câmera estenopeica por artistas e fotógrafos
contemporâneos e a mediação que se estabelece entre eles e o processo envolvido no ato de
fotografar com estes artefatos. Fotografia estenopeica, conhecida também como fotografia
pinhole, é a terminologia adotada para definir imagens obtidas com câmeras de orifício - as
objetivas das câmeras fotográficas tradicionais são substituídas por um pequeno furo. Partindo da
premissa que o resgate do uso desta técnica, pelos artistas contemporâneos, se dá no sentido de
questionar os padrões, rompendo com a homologia no processo da fotografia tradicional,
entendida como o registro e reprodução “fiel” da realidade. Percebe-se que essas posturas revelam
mais claramente a subjetividade e a presença do usuário – artista/fotógrafo - como construtor da
representação. Por isso, optou-se por estudar a recente produção de imagens fotográficas
estenopeicas, resultado da retomada da técnica por fotógrafos e artistas contemporâneos, porque,
além de buscar novas opções expressivas de manifestação estética, esses artistas procuram
questionar o meio e as determinações das “novas tecnologias” impostas pela indústria fotográfica.
Para compreender essas posturas, foi preciso entender quais as principais características da
fotografia estenopeica, e as possibilidades de intervenção criativa do artista, nas diferentes etapas
de produção das imagens. A simplicidade da técnica e as múltiplas possibilidades de construção da
câmera aproximam o fotógrafo do processo de realização da imagem, transformando as relações
de tempo e de espaço representados, e questionando os conceitos da fotografia tradicional. Na
medida em que subverte o padrão convencionalmente imposto ao aparato fotográfico, o artista
tem condições de utilizar a fotografia estenopeica como forma de expressão alternativa e
ferramenta de criação. A opção estética do artista se inicia no momento em que ele constrói sua
câmera. Conclui-se que, a partir deste estudo, foi possível confirmar que, por meio da fotografia
estenopeica, é possível questionar os padrões e perturbar a prática comum de constituição de
imagens fotográficas, desconstruindo o conceito de homologia do processo da fotografia
tradicional e, ao mesmo tempo, evidenciando as dimensões sócio-culturais da tecnologia.
ABSTRACT
This study proposes to investigate and to discuss the use of stenopaic photography by
contemporary artists and photographers, as well as the mediation established between them and
the process involved in the act of photographing with these devices. Known as pinhole
photograph, stenopaic photograph is the terminology adopted to define images produced by
orifice cameras. A tiny hole replaces the lenses of traditional photographic cameras. This study
understands that some contemporary artists are rediscovering this technique in order to question
the standards, disrupting with the common praxis of photographic images constitution, breaching
with the homology of traditional photography, understood as a faithful register and reproduction
of the reality. These attitudes disclose more clearly the subjectivity and the presence of the user -
artist/photographer - as the constructor of the representation. In this sense, the option is to study
the recent pinhole images production, result of resumption of the technique by contemporaries
photographers and artists, because, besides looking for new expressive options of aesthetic
manifestation, these artists intend to question the means and the “new technologies”
determination imposed by photographic industry. In order to do this, we attempt to understand
which are the main characteristics of pinhole photography and the possibilities of creative
intervention in the different stages of image production. The simplicity of this technique and the
multiple possibilities of camera construction approach the photographer to the process of image
accomplishment. Time and space relations represented in pinhole photography are transformed
and finish questioning traditional photography concepts. At the same time the artist subverts the
conventional pattern imposed to the photographic apparatus, this artist has conditions to use the
pinhole photography as an alternative expression medium and creation tool. The artist’s aesthetic
option begins at the moment he builds the camera. Throughout this study, it was possible to
attest that the use of pinhole photography is a possibility to question the standards and breaching
with the common praxis of photographic images constitution, deconstructing the homology of
traditional photography, and, at the same time, making evident the sociocultural dimensions of
technology.
LISTA DE FIGURAS
Figura 37: Abelardo Morell, eclipse solar, Brookline, MA, 1994. .......................................................... 128
Figura 38: Formação da imagem através de um orifício. ....................................................................... 129
Figura 39: Reflexão da luz..................................................................................................................... 131
Figura 40: Refração da luz. ................................................................................................................... 132
Figura 41: Reflexão total da luz............................................................................................................. 132
Figura 42: Formação da imagem no interior da camera obscura............................................................ 133
Figura 43: Thomas Hudson Reeve, Brooklyn Bridge, s.d...................................................................... 134
Figura 44: Proporção da imagem estenopeica........................................................................................ 135
Figura 45: Luminosidade da imagem estenopeica. ................................................................................ 135
Figura 46: Danilo pedruzzi, s. d............................................................................................................ 136
Figura 47: Material sensível paralelo. .................................................................................................... 137
Figura 48: Peter Zirnis, Backyard, 1998 ............................................................................................... 137
Figura 49: Joaquín Casado, Hotel Arts - Port Olímpic, Barcelona, 2003. ............................................. 138
Figura 50 e Figura 51: Material sensível côncavo. ................................................................................. 138
Figura 52: Kenneth Ransom, Rockport, ME, 1991. ............................................................................. 139
Figura 53: Câmera panorâmica côncava................................................................................................ 139
Figura 54: David Van Zandt, 2006. ..................................................................................................... 139
Figura 55: Material sensível convexo..................................................................................................... 140
Figura 56: Câmera estenopeica 360°. .................................................................................................... 140
Figura 57: Jürgen Lechner, Schloss weibenstein1, Eckental Alemanha, 2006. ....................................... 141
Figura 58: Ana Angélica Costa, Janelas, Brasília, 2003.......................................................................... 141
Figura 59: Material sensível inclinado................................................................................................... 142
Figura 60: Eric Renner, Stretch Marilyn, 1997. .................................................................................... 142
Figura 61: Câmera tubular 360° ........................................................................................................... 143
Figura 62: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. ............................................................................. 143
Figura 63: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. ............................................................................. 144
Figura 64: Julian Beever, c. 2004. ......................................................................................................... 144
Figura 65: Julian Beever, Ilustração vista de outro ângulo. .................................................................... 145
Figura 66 (esq): Lente convergente. ...................................................................................................... 147
Figura 67 (dir): Lente divergente. ......................................................................................................... 147
Figura 68: Imagem formada por uma lente simples............................................................................... 147
Figura 69: Imagem formada por um orifício e detalhe. ......................................................................... 148
Figura 70: Formação da imagem através de um orifício. ....................................................................... 149
Figura 71: Formação da imagem através de uma lente convergente. ...................................................... 149
Figura 72: Luz passando através de uma fenda sem apresentar difração. ................................................ 150
Figura 73: Luz passando através de uma fenda apresentando difração. .................................................. 150
Figura 74: Veijo Vilva, s.d. ................................................................................................................... 152
Figura 75: Uso de slit vertical e slit horizontal....................................................................................... 153
Figura 76: Doris Markley, sem título, 1987. ......................................................................................... 153
9
Figura 117: Neide Jallageas, fotogramas de Realidades Meramente Superficiais, 2000. ......................... 191
Figura 118: Paula Trope, Contos de Pasagem, 2000............................................................................. 193
Figura 119: Paula Trope, Os Meninos, 1993/1994............................................................................... 194
Figura 120: Claudia Wornum, Eletric Montains, Walker Lake, Eastern Sierra Nevada, 1999. .............. 194
Figura 121: Marcus Kaiser, sem título, 1990. ....................................................................................... 195
Figura 122: Ilan Wolff, Concorde, Paris, 1997. .................................................................................... 196
Figura 123: Robert Doisneau, Dancers, s.d........................................................................................... 204
Figura 124: Andreas Müller-Pohle , Transformance 3590, 1980........................................................... 205
Figura 125: Frederic Fontenoy, Métamorphose, 1988-1990. ................................................................ 208
Figura 126: Andrew Davidhazy, Peripheral Portrait de Bruce Made, c. 1967........................................ 208
Figura 127: Nam June Paik, TV Magnet, 1965. ................................................................................... 209
Figura 128: Zbigniew Rybczynski, The Fourth Dimension, 1988. ....................................................... 210
Figura 129: Steve Pippin, Laundromat-Locomotion (Horse & Rider) 1997. ........................................ 211
Figura 130: Joaquín Casado, Port Olímpic, Barcelona, 2003................................................................ 218
Figura 131: Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999.......................................... 218
Figura 132: Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985.................................. 218
11
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.......................................................................... 13
CONCEITO DE TECNOLOGIA..........................................................................23
3 APONTAMENTOS.................................................................................. 215
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Camera obscura é o termo latino para câmera escura – (camera - compartimento ou aposento de uma casa e, em
especial, o quarto de dormir; e obscuru (a) - falta de luz; pouco claro; sombrio, tenebroso). A expressão é utilizada
para designar o princípio de formação de imagens através de orifícios no interior de compartimentos escuros.
Inicialmente as cameras obscuras eram utilizadas para a observação de eclipses. Posteriormente, na forma de pequenas
caixas portáteis, foram utilizadas para auxiliar no desenho. Nessas caixas foram acrescentadas lentes no lugar do
orifício para melhorar a qualidade da imagem, e uma superfície translúcida do lado oposto, para decalcar a imagem.
No início do séc. XIX, com a introdução de um material sensível na face onde se forma a imagem ela se transformou
na câmera fotográfica.
16
significa uma “imagem muito fiel ao modelo”; uma “cópia fiel”; uma “reprodução exata”. Mesmo
com o advento do digital, no qual a pós-fotografia2 não depende da luz para a formação da
imagem, diferente, portanto, em sua gênese, da fotografia tradicional, a figuração permanece
sendo o grande referencial. As imagens de modulação digital direta, que não dependem das
especificidades do processo fotográfico – fenômenos físico/químicos responsáveis pela formação
da imagem: luz, câmera, conjunto óptico, processamento químico/eletrônico – ainda perpetuam o
modelo figurativo da construção perspéctica renascentista. Com toda a corrida pela mais alta
tecnologia de produção de imagens, alardeada aos sete ventos pela indústria fotográfica, se chega,
no final, ao modelo que se repete há quase dois séculos pela fotografia tradicional.
A inquietação com essa concepção acerca da imagem fotográfica, como cópia fiel do
referente e da tecnologia como sinônimo de progresso técnico, desligada de todo o contexto
social, cultural e histórico que a envolve, motivou a reflexão e a busca por possibilidades de
produção de imagens que colocassem em questão essas concepções. Encontrou-se na fotografia
estenopeica uma possibilidade. Assim, este estudo propõe-se a discutir as imagens estenopeicas
fotográficas, com a preocupação de investigar diferentes conceitos e discussões que se estabelecem
no entorno da imagem fotográfica e do conceito de tecnologia. Opta-se por observar a prática da
fotografia estenopeica, pois se acredita que ela permitirá evidenciar e colocar em discussão uma
série de aspectos, de conceitos e de pré-conceitos que, de certa forma, estão cristalizados no senso
comum, a respeito da imagem fotográfica tradicional e das demais mídias visuais que dela são
herdeiras. Dessa forma, o objetivo desta pesquisa é o estudo da fotografia estenopeica como
possibilidade de romper com o conceito de homologia no processo da fotografia tradicional3 com
lentes e, ao mesmo tempo, como forma de evidenciar as dimensões sócio-culturais da tecnologia.
A noção de ruptura é adotada com o sentido de indicar uma quebra com as convenções
formais e conceituais estabelecidas em torno da fotografia tradicional. Apesar da intensidade do
termo, ele é adotado, neste trabalho, para identificar posturas que se propõem, não apenas a
questionar, mas também desconstruir práticas da fotografia tradicional e limitações impostas pelo
2
O termo pós-fotografia se refere a imagens de aparência “fotográfica” que são modeladas diretamente no
computador sem a necessidade da existência de um objeto real, um referente que reflita a luz para formar a imagem.
3
Neste trabalho, o termo “fotografia tradicional” se refere tanto à prática quanto às imagens obtidas através da
utilização de câmeras fotográficas convencionais com uma postura também convencional, ou seja, que reproduz o
padrão estético figurativo da perspectiva renascentista. Consideram-se câmeras convencionais aquelas disponíveis
comercialmente – analógicas ou digitais – nas quais a imagem é formada através de um conjunto óptico - objetiva –
sobre um material sensível disposto numa superfície perfeitamente plana do lado oposto à objetiva e delimitado por
uma área retangular.
17
mercado ao aparato fotográfico. Posturas que estabelecem um corte conceitual e formal com a
idéia da fotografia como reprodução fiel da realidade visível, como um análogo do referente.
Para isso, optou-se por estudar a recente produção de imagens fotográficas estenopeicas,
resultado da retomada da técnica por fotógrafos e artistas contemporâneos que, além de buscar
novas opções expressivas de manifestação estética, procuram, muitas vezes, questionar o meio e as
determinações das “novas tecnologias” impostas pela indústria fotográfica.
Através de uma pesquisa bibliográfica de caráter descritivo/exploratório, buscou-se
inicialmente um levantamento bibliográfico para fundamentar as bases conceituais delimitadas
pela pesquisa. A partir do referencial teórico, observaram-se aspectos conceituais envolvidos na
ontologia da imagem fotográfica. Paralelamente, realizou-se uma pesquisa bibliográfica a respeito
dos aspectos técnicos envolvidos na construção da câmera e na formação da imagem. Outro
procedimento adotado foi pesquisar o uso da técnica da fotografia estenopeica em atividades
artísticas e de pesquisa estética a partir da observação de imagens, assim como, do
acompanhamento da produção estenopeica artística contemporânea. Esses três caminhos de
investigação procuram descrever os aspectos tecnológicos envolvidos com a forma de captação e
de registro das imagens estenopeicas. Ao mesmo tempo, estabelecer parâmetros para identificar
em que medida os resultados formais possibilitados pelo uso desse tipo de tecnologia aliados às
posturas estéticas dos artistas/fotógrafos podem permitir o distanciamento das concepções de
objetividade e mimese fotográficas.
Inicialmente buscaram-se textos e publicações teóricas em língua portuguesa assim como
imagens e artistas que trabalham com a técnica. Diante da escassez de material impresso, recorreu-
se a produções em outras línguas e, principalmente, a rede mundial de computadores. Cabe
ressaltar que o contato com a produção recente, nacional e internacional, só foi possível por meio
de pesquisas na internet, uma vez que os acervos das bibliotecas e museus não dão conta dessa
produção. Distribuída por diferentes países, e com praticantes que não se restringem ao meio
artístico institucionalizado, a prática da fotografia estenopeica abordada na pesquisa inclui
usuários diversos, entre eles: artistas, fotógrafos profissionais e “amadores” - no sentido de
amantes da fotografia. Usuários com diferentes conhecimentos técnicos que encontraram na
fotografia estenopeica um meio de expressão e experimentação estética. Entrevistas com artistas
brasileiros, realizadas por meio de correio eletrônico, foram essenciais para direcionar e identificar
18
o foco de interesse e a postura artística com relação à técnica, além de orientar as pesquisas na rede
mundial de computadores.
Apesar de restrições técnicas, conceituais e ideológicas, os artistas contemporâneos
buscam, cada vez mais, alargar as fronteiras que limitam a fotografia, tanto como possibilidade
expressiva como em sua conceitualização teórica. Isso vem reforçar a postura de alguns deles na
direção de um rompimento com a técnica e a estética fotográfica praticadas convencionalmente.
O uso de câmeras rudimentares, tecnologicamente “primitivas” ou que apresentam “deficiências”
construtivas e a utilização de processos químicos alternativos, não disponíveis comercialmente,
trazem aos artistas outras perspectivas expressivas. O artista/fotógrafo se desprende de certos
estatutos visuais da fotografia para estabelecer outros, mais adequados às suas necessidades
expressivas. No contexto artístico contemporâneo, a fotografia estenopeica, assim como o
fotograma e outros inúmeros processos fotográficos históricos, chamados hoje de alternativos -
tais como o cianótipo, a goma-arábica, o platinótipo e a fotogravura, entre outros -, estão sendo
retomados4. O intuito dos artistas, ao retomar essas técnicas, não é apenas o de produzir imagens
diferentes daquelas obtidas pela fotografia tradicional, mas, principalmente, buscar maneiras de
discutir o próprio meio.
As possibilidades de rompimento com o processo fotográfico tradicional entendido
como registro e reprodução “fiel” do referente, que surgem de propostas estéticas e atitudes
experimentais na busca pelo entendimento dos processos de representação e dos códigos inscritos
nas imagens técnicas5, revelam mais claramente a subjetividade e a presença do usuário –
artista/fotógrafo - como construtor da representação. Ao mesmo tempo, essas novas imagens
estimulam tanto aquele que as cria, quanto aquele que as observa a questionar a maneira como
simbolizam e interpretam sua própria realidade, evidenciando que representações visuais como a
fotografia são construções simbólicas social e culturalmente constituídas. A técnica não determina
sozinha o resultado simbólico das imagens. Uma técnica mais avançada não significa
necessariamente novos resultados simbólicos ou novas posturas estéticas. A construção simbólica
das imagens fotográficas não está na técnica em si, mas nas intenções e posturas do
4
Para maiores informações sobre os processos fotográficos históricos, ver Monforte (1997). Uma versão eletrônica do
livro está disponível em: <http://www.luizmonforte.com>. Acesso em: 10 fev. 2008.
5
Segundo Flusser imagens técnicas são aquelas produzidas de forma programática ou com uma tendência
automatizada, que fazem parte de um sistema em geral fechado para quem o opera e sempre mediado por um
aparelho (FLUSSER, 2002).
19
artista/fotógrafo ao dispor daquele meio para criar imagens, e na tecnologia fotográfica, ou seja, a
técnica fotográfica inserida no complexo contexto sócio-cultural do qual fazem parte o
artista/fotógrafo criador das imagens e o espectador que as observa.
Ao discutir-se a imagem fotográfica não se pode deixar de ter em mente a dimensão
interdisciplinar do processo de construção do conhecimento e a importância da imagem como
instrumento de conhecimento da realidade social mediado pela cultura e especialmente por um
tipo de cultura visual do qual fazem parte as imagens fotográficas. Os seres humanos têm a
capacidade de dar significado a tudo que se relaciona à sua realidade. É através do significado
atribuído às representações (aos signos) - visuais ou não - que se dá sentido às experiências
(GEERTZ, 1978). A fotografia está entre esses signos que estão na base do conjunto de processos
de significação que é a cultura, regulando e identificando a existência humana. Produtos de um
sujeito social e historicamente localizado, essas construções simbólicas são elaboradas a partir da
vida em sociedade, resultado da interação entre os vários grupos sociais, com suas diferentes
experiências, pois a história é dinâmica, e as experiências, heterogêneas. Cada grupo humano, em
cada época, constrói os processos de significação, envolvendo sempre uma dimensão de
pluralidade, porque suas experiências são diferentes e múltiplas. Essas experiências são
incorporadas ao cotidiano, produzindo e reproduzindo as condições de existência através das
práticas e das técnicas comuns a cada grupo, a cada cultura. Como resultado, tem-se diversas
maneiras de significar o mundo, múltiplos discursos e diferentes “verdades”, ou, nas palavras de
Bakhtin, inúmeras vozes sociais através das quais dá-se sentido ao mundo. Um mesmo signo
poderá ter significações diferentes, dependendo da voz social que o enuncie (BAKHTIN, 1981,
apud FARACO, 2003).
As discussões sobre a imagem fotográfica seguem essa mesma lógica, trilhando por
inúmeros e distintos caminhos que se entrelaçam e se entrecruzam como numa teia. Se existem
fronteiras entre esses caminhos, elas são móveis e estão em constante transformação. Assim,
podem-se lançar sobre a fotografia tantos pontos de vista quantos são os ângulos possíveis de se
observar um objeto ou de fotografá-lo. Da mesma maneira como se modifica o sentido atribuído
às imagens - representações visuais -, os conceitos sobre elas vão sendo alterados e transformados
no decorrer da história, refletindo as experiências daquele contexto histórico, social e cultural.
Essas diferentes vozes estão num contínuo diálogo, no qual ora se estabelecem trocas, ora
20
confrontos, como que em posições opostas. São olhares distintos, mas não isolados uns dos
outros. É através dessa relação dialógica entre essas diferentes vozes que esta pesquisa procura se
aproximar da imagem fotográfica.
No decorrer desta dissertação, ao estudar o desenvolvimento histórico e os diferentes
conceitos acerca da fotografia, percebe-se que, em alguns momentos, na história da fotografia, se
privilegia um determinado olhar (uma determinada voz) em detrimento de outro, como num
diálogo monológico, onde apenas uma das vozes prevalece. Entretanto, se observa que esses
diferentes pontos de vista podem, e devem, ser lançados sobre a imagem fotográfica ao mesmo
tempo. Nesta perspectiva, acredita-se que analisar a construção de imagens através da fotografia
estenopeica permite perceber que a presença simultânea dessas diferentes vozes, desses diferentes
olhares, é possível. Um olhar que é mimético, outro olhar que é desconstrutor, outro que é
indicial, ou ainda outros que misturam um pouco de cada um deles.
Todos esses olhares buscam, de alguma maneira, discutir a imagem fotografia em sua
relação com o “real”. Desde seu surgimento, a fotografia trouxe consigo uma série de
questionamentos conceituais acerca da semelhança que a aparência de suas imagens apresenta com
a realidade. A intenção de reproduzir automaticamente a realidade, sem a interferência da
subjetividade e da presença humana nos processos de registro do mundo visível, fez com que a
fotografia, desde os seus primórdios, fosse conhecida como o “espelho do real”6. Diferentemente
de outras técnicas de registro figurativo da realidade usadas pelo homem, como a pintura, a
gravura e o desenho, o processo fotográfico trouxe, em sua constituição, a sensação aparente de
não precisar e nem depender das habilidades manuais de quem a utilizasse. Gerando assim, a
crença de que a gênese mecânica do meio supria a interferência humana na captação da imagem,
em função de sua objetividade técnica. Num outro extremo, o conceito de fotografia, como
“transformação do real”, considera a fotografia uma codificação ideológica produzida pela
interferência de diversos elementos (técnicos, culturais, sociológicos, estéticos e outros) que agem
determinando um rompimento com a idéia de que a fotografia se manifeste conceitualmente
como um duplo do real.
Voloshinov (1995) defende que a realidade material da ideologia é formada por signos:
entidades elementares que constituem todos os sistemas de representação – numa definição
6
As expressões “espelho do real”, “transformação do real” e “traço de um real” foram tomadas da discussão de
Philippe Dubois (1994) sobre a questão do realismo na fotografia.
21
simplificada, signo seria aquilo que representa algo que não é ele próprio. Para ele “essa
representação das coisas se dá de forma dupla e contraditória: os signos ao mesmo tempo refletem
e refratam a realidade visada pela representação” (MACHADO, 1984, p. 20). Os verbos refletir e
refratar, tomados da óptica, significam igualmente modificar uma onda de luz pela interposição
de uma superfície qualquer. No fenômeno da reflexão os raios são devolvidos ao meio de origem e
na refração eles são absorvidos e desviados.
Segundo Machado:
[...] o fenômeno da refração nos impede de obter uma reprodução “fiel” dos
sinais luminosos, já que ele os “deforma” ou os “transfigura” de acordo com a
natureza do material cristalino interposto em seu percurso. É justamente esse
caráter “transfigurador” dos signos que Voloshinov tem em mente ao apropriar-
se da expressão óptica refração [...] Eis porque refratar, na acepção de
Voloshinov, significa operar uma modificação nos fenômenos. (MACHADO,
1984, p. 21).
Se, por um lado, existe a semelhança entre a imagem e o objeto representado e, por
outro, a desconstrução da imagem fotográfica, que interpreta e transfigura o “real”, existe também
uma forte ligação entre a imagem e seu referente. Na abordagem que considera a fotografia como
“traço de um real”, um índice, na classificação semiótica de Peirce (2003), a inevitável sensação de
presença do referente se dá pela conexão física entre o objeto e sua representação. A imagem
fotográfica não seria possível caso não existisse o objeto que reflete a luz e que formará a imagem
no interior da câmera. Assim, segundo Peirce, as fotografias são “produzidas em circunstâncias
tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto a ponto à natureza” (PEIRCE, 2003 p.
65).
Nessa mesma teia que envolve as discussões sobre a imagem fotográfica também está
presente o conceito de tecnologia. A multiplicidade de olhares com relação à tecnologia, com
definições e conceitos confusos, muitas vezes, faz com que se tenha um entendimento equivocado
de suas amplas dimensões, que vão muito além da técnica ou do artefato em si, mas se estendem
como uma construção humana. Pode parecer estranho relacionar fotografia e tecnologia. A
tendência seria, provavelmente, considerar a fotografia como uma técnica específica, ou no
máximo falar em tecnologia fotográfica. No entanto, o mesmo olhar que leva a enxergar a
imagem fotográfica como uma forma de significar o mundo e apreender a realidade, construindo
conhecimento, permite olhar para a tecnologia como uma construção social complexa, com papel
fundamental nos processos de significação do real e do simbólico. Da mesma forma, o mesmo
olho que vê a tecnologia como “logos da técnica”, ou como a ciência aplicada à técnica, enxerga
na fotografia apenas a aplicação prática de uma técnica, de um saber, ambas isoladas das relações
sociais.
As interpretações e os determinismos que envolvem os conceitos de fotografia e de
tecnologia estão muito próximos. Assim, pode-se tomar a fotografia como um exemplo de como
se constrói simbolicamente a idéia de tecnologia. E neste ponto, estudar uma técnica fotográfica
específica ou um artefato em particular, como a fotografia estenopeica, permite verificar uma série
de características que evidenciam certas concepções acerca da fotografia em si, e, ao mesmo
tempo, acerca da tecnologia. Tanto a prática da fotografia estenopeica como os resultados
imagéticos que ela possibilita permitem questionar os diferentes conceitos sobre a fotografia e, de
certa forma, evidenciar algumas questões que envolvem sua prática. Assim, cabe inicialmente
23
discutir as definições que se traçam acerca da tecnologia como uma maneira de estabelecer desde
já como serão lançados os olhares sobre a fotografia.
CONCEITO DE TECNOLOGIA
O avião não foi feito para voar, mas para o homem voar.
É importante estabelecer uma diferenciação entre o uso que se fará dos termos técnica e
tecnologia. Etimologicamente, o termo “tecnologia” vem da língua grega - technología, - tecknê:
arte ou ofício, e logos: estudo, ciência, saber -, significando “o conhecimento da técnica”; o
conjunto ou a totalidade de conhecimentos, especialmente de princípios científicos, que se
aplicam a uma determinada atividade. Nesta acepção, o termo se confunde com a definição de
técnica - do grego technikós, ‘relativo à arte’, ou pelo latin technicu - o conjunto de processos de
uma arte; maneira, jeito ou habilidade especial de executar ou fazer algo. (FERREIRA, s.d.)
O que se percebe é que, no senso comum, se estabelece uma hierarquização entre eles. A
palavra “técnica” é associada a uma prática que se realiza de maneira mecânica, repetitiva,
automática, como a fabricação de um utensílio ou de uma ferramenta, como a pedra lascada nas
sociedades primitivas, resultado de um treinamento, destituído de qualquer elaboração sensível ou
intelectual, enquanto “tecnologia” envolve a aplicação de teorias e experimentações científicas
mais elaboradas. Milton Vargas define tecnologia como o desempenho científico da técnica,
atribuindo a passagem da “técnica” para a “tecnologia”, não a uma evolução ou ao
desenvolvimento interno das técnicas, mas às condições sócio-econômicas em que a tecnologia
estaria inserida. (VARGAS, 1984 apud BASTOS, 2000) Neste caso, a passagem da técnica para a
tecnologia se dá com a aliança entre a técnica e o conhecimento científico a partir do séc. XVIII,
com a Revolução Industrial.
No entanto, ambas são consideradas realizações humanas, e nelas estão inseridas questões
que envolvem a produção das condições materiais de vida que fazem parte da experiência
7
PINTO, 2005, p. 80, v. 1
24
humana, desde os primórdios de sua existência. Assim, diferencia-se técnica de tecnologia não a
partir de um momento histórico específico, ou de um modelo sócio-econômico, mas sim no uso
que se faz do termo. Neste trabalho a palavra “técnica” é usada quando se está referindo ao
conjunto de procedimentos e materiais utilizados para executar determinada tarefa, incluindo
todo o desenvolvimento histórico e científico envolvidos em sua prática. Ao usar a palavra
“tecnologia”, se está considerando todo o complexo contexto sócio-cultural do qual ela faz parte:
o jogo de valores culturais, políticos, religiosos e econômicos no qual a técnica está inserida, e não
apenas o processo de forma isolada, por isso a importância de se esclarecer desde já o
entendimento do termo para este trabalho.
É inegável que a tecnologia faz parte do contexto atual. Cada vez mais, objetos e bens
que simbolizam e remetem à tecnologia, cercam a vida humana. No entanto, a percepção da
tecnologia como uma vasta variedade de instrumentos e máquinas, desenvolvidas para satisfazer
necessidades e melhorar a qualidade da vida humana é apenas uma das possibilidades de concebê-
la. O termo assume diferentes sentidos e interpretações dependendo do contexto em que estiver
sendo abordado, o que torna sua conceituação extremamente complexa, levando muitas vezes a
definições vagas e confusas.
O olhar mais freqüente sobre a tecnologia é aquele que privilegia suas dimensões
materiais, com concepções utilitaristas que atribuem ao termo um significado instrumental e que
envolve basicamente as máquinas. Sob esse olhar, a tecnologia é vista como a aplicação de
conhecimentos científicos: o que consequentemente atribui ao desenvolvimento e à inovação
tecnológica o papel de transformar conhecimento científico em valor econômico.
Outros olhares procuram pensar a tecnologia de forma mais ampla, apresentando
conceitos que consideram também suas dimensões sócio-culturais, relacionando tecnologia e
sociedade. Dentro desse modo de ver a tecnologia, se destacam as reflexões de Ruy Gama (1986),
para quem a tecnologia moderna é a “ciência do trabalho produtivo”. Dentro do pensamento de
tradição marxista, ele adota o conceito clássico de trabalho nas suas relações com o modo de
produção. Entretanto, ao considerar o “trabalho produtivo”, Gama limita o conceito, por
estabelecer uma ligação direta entre a tecnologia e o modo de produção capitalista, uma vez que
ele considera como trabalho produtivo apenas aquele que produz valor de mercadoria (GAMA,
1986). Apesar de ampliar a compreensão do termo ao considerar suas dimensões sociais, Gama
25
Lima Filho e Queluz (2005) apresentam uma outra maneira de pensar a multiplicidade
de significados e apropriações que se fazem do termo. Buscando uma sistematização teórica,
reunindo afinidades e discordâncias entre os diferentes conceitos de tecnologia, eles destacam duas
matrizes conceituais que, de certa forma, englobam os significados descritos anteriormente. Cabe
ressaltar, que mesmo dentro de cada uma das matrizes apontadas, existem posições e
conceituações diversas ou até divergentes. A matriz instrumental, ou reduzida, concebe a
tecnologia como técnica, isto é, “como aplicação prática de saberes e conhecimentos”. A matriz
relacional, ou plena, compreende a tecnologia em sua dimensão relacional, ou seja, como
“construção, aplicação e apropriação das práticas, saberes e conhecimentos.” (LIMA FILHO &
QUELUZ, 2005, p.19). Este trabalho não se detém numa discussão profunda de cada uma dessas
acepções. Busca apenas destacar alguns aspectos de sua conceituação, para nortear a discussão e
apresentar a concepção de tecnologia da qual se partilha e que é adotada neste trabalho.
O olhar que se lança sobre a questão da tecnologia considera que ela está presente e é
desenvolvida de forma relacional em todas as culturas, como uma construção social complexa,
participando e condicionando as mediações sociais, como força intelectual e material do processo
de produção e reprodução social. Entende-se que ela não pode ser considerada como fenômeno
isolado das relações sociais, independente das necessidades do modo de produção capitalista,
como concebida pela conceituação instrumental, que atribui autonomia e neutralidade à
tecnologia, pois não a considera como relação social, mas apenas como uma técnica, artefato ou
máquina. (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005)
Bastos considera que a tecnologia é a capacidade humana de “perceber, compreender,
criar, adaptar, organizar e produzir insumos, produtos e serviços”. Ela ultrapassa a dimensão
puramente técnica, incorporando outros elementos da vida social, tornando-se “um vetor
fundamental de expressão da cultura das sociedades” (BASTOS, 1998, p. 32).
Compreender a tecnologia em sua dimensão sócio-cultural, como um elemento
formador da sociedade, não significa acreditar que ela, de alguma forma, a determine. O
desenvolvimento tecnológico se intensifica com a consolidação do capitalismo, e junto com ele, a
idéia de que a tecnologia determina a vida social. Esta, capaz de trazer progresso e transformar
toda a sociedade: como se as inovações e avanços tecnológicos fossem responsáveis pela melhoria
da qualidade de vida, e como se essas melhorias fossem acessíveis a todos. Essa valorização
27
8
Máquinas semióticas segundo Machado seriam aquelas cuja propriedade básica é de “estarem programadas para
produzir determinadas imagens e para produzi-las de determinada maneira, a partir de certos princípios científicos
definidos a priori. [...] cuja função básica é de produzir bens simbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do
homem.” (MACHADO, 2002, p.149)
29
∗ ∗ ∗
Retomando a questão das representações visuais, pode-se dizer que as imagens figuram
nesses sistemas simbólicos construídos para representar o mundo com uma importância cada vez
maior. Uma vez que as imagens atuam como instrumentos de conhecimento da “realidade” social,
principalmente hoje que se vive em um tempo cuja compreensão e assimilação dependem cada
vez mais das imagens.
Entre as maneiras encontradas pelo ser humano para construir imagens está o uso da
máquina fotográfica. Como artefato humano, se parece com ele, na medida em que busca
reproduzir seu olhar. No entanto, as máquinas fotográficas, ao menos as convencionalmente
produzidas em escala industrial, se limitam a um modo de olhar específico, eliminando outros
inúmeros pontos de vista, outros olhares possíveis ou imagináveis, suprimindo outras
possibilidades de olhar para o mundo.
Este olhar “fotográfico”, impregnado na imaginação e na experiência visual humana, é
fruto de uma “cultura visual” formada por meio da representação de um modelo geométrico: a
perspectiva linear, que passou a codificar a informação visual através de cálculos matemáticos
desde o Renascimento e, a partir de então, assumido como reprodução fiel do visível.
Esse modelo perspéctico geométrico, que caracteriza o olhar fotográfico, não se
restringiu às imagens construídas a partir da câmera fotográfica ou dos demais artefatos que
surgiram a partir da câmera, mas se estende, ao menos no ocidente, a todo o imaginário visual, até
mesmo às imagens obtidas a partir de outros meios de representação – tais como o desenho e a
pintura.
O olhar foi moldado ao “fotográfico” antes mesmo do advento da própria fotografia,
transformando a forma de perceber o mundo através das imagens e a própria interpretação que se
faz dele (JALLAGEAS, 2007). Igual a fotografia, a perspectiva é uma construção simbólica, um
artefato humano que procura reproduzir um modo de representar e pensar o mundo.
9
Arlindo Machado considera o conceito de ideologia, a partir da perspectiva de classes de Marx e Engels em A
ideologia Alemã. Simplificadamente, ideologia seria o “sistema das representações de que se valem os homens para se
dar conta das relações materiais (naturais e sociais) em que se acham mergulhados”. (MACHADO, 1984, p. 12)
30
Considerar que a tecnologia está nos artefatos, ou mesmo que esses artefatos são
“neutros” e “transparentes”, significa ser determinista e aceitar a posição de espectador passivo,
ou, segundo as proposições de Vilém Flusser (2002), a posição de “funcionário”10. Neste aspecto,
a fotografia estenopeica figura como uma possibilidade de rompimento com o determinismo dos
aparelhos fotográficos produzidos em escala industrial. Ao construir sua própria câmera o
artista/fotógrafo está rompendo com a cadeia de consumo e ao mesmo tempo interferindo
profundamente no olhar escolhido para construir a representação e no resultado plástico/formal e,
portanto, estético da imagem. Com a possibilidade de romper com diferentes conceitos
limitadores que se estabelecem com relação à imagem fotográfica tradicional, a prática da
fotografia estenopeica demonstra que as imagens técnicas são também construções
técnicas/simbólicas sócio-culturalmente elaboradas.
Diferentemente de abordagens instrumentais, já citadas anteriormente, que consideram
a máquina como determinante do processo, acredita-se que as opções estéticas do artista, ao
construir a câmera estenopeica, permitem questionar os modelos de representação do
“fotográfico”, e os inúmeros conceitos que se estabelecem sobre sua relação com o real,
evidenciando a dimensão relacional da tecnologia. O questionamento e as atitudes contestadoras
com relação ao meio permitem a esses artistas/fotógrafos colocar-se de forma mais consciente e
responsável diante de suas práticas sociais. Com o desafio de questionar conceitual e formalmente
seus meios, os artistas/fotógrafos contemporâneos, fortemente envolvidos pelas mediações
técnicas, encontram na prática da fotografia estenopeica, uma maneira de repensar as imagens
técnicas e, ao mesmo tempo, o determinismo tecnológico embutido na concepção do aparato
fotográfico e das demais máquinas semióticas derivadas da câmera fotográfica.
A presença da imagem, como instrumento de conhecimento do real, sempre caracterizou
a vivência humana: desde a pré-história, com a reprodução de suas experiências no interior das
cavernas por meio das pinturas rupestres; ou as inscrições hieroglíficas do antigo Egito; até hoje,
com o crescente aumento da dependência das imagens visuais para compreender e assimilar a
realidade social. As diferentes maneiras de expressar essas experiências cotidianas apresentam–se
nas imagens com uma multiplicidade de possibilidades de interpretação e de transformação da
10
Quando o usuário utilizar um aparelho sem conhecer seu funcionamento interno, lidando apenas com as opções
disponíveis e limitadas pelo programa da máquina está atuando como um “funcionário”. O conceito de “funcionário”
de Vilém Flusser é abordado de forma detalhada na página 203 desta dissertação.
31
realidade. A percepção e a interpretação do que é o real e de como ele é representado permeia toda
a discussão em torno das representações visuais e da fotografia. As maneiras como se percebem e
se interpretam as imagens estão em constante transformação e tomam características que, de certa
forma, condizem com os valores do contexto histórico social e cultural no qual estão inseridas.
A cada momento se esta interferindo, construindo, desconstruindo e reconstruindo
novas formas de perceber e de representar a realidade. Como resultado, são lançados diferentes
olhares sobre a imagem, e especialmente sobre a imagem fotográfica. Para compreender esses
diferentes olhares, opta-se por desenvolver este trabalho em três momentos: inicialmente serão
abordadas as relações da imagem fotográfica com o real. Em seguida, apresentam-se os aspectos
técnicos da câmera estenopeica e suas implicações na imagem. Num terceiro momento, será feito
um breve comentário a partir da observação de três imagens estenopeicas, nas quais podem ser
percebidas diferentes vozes, que ressoam diferentes conceitos acerca da imagem fotográfica. Entre
os conceitos discutidos no decorrer da dissertação, opta-se por tratar de apenas três deles,
evidenciados pela fotografia estenopeica, e que se apresentam, em maior ou menor grau,
materializados em cada uma das imagens escolhidas.
Conforme foi apresentado anteriormente, podem-se lançar sobre a fotografia múltiplos
olhares. Sem a intenção de limitá-los, mas apenas para compreender melhor sua diversidade,
apresentam-se duas maneiras de abordar o assunto, que reúnem, em cada uma delas, uma
diversidade de olhares possíveis. Em um extremo está a fotografia como representação simbólica.
Noutro extremo tem-se um ponto de vista técnico, que visa descrever o dispositivo e seus
potenciais. Este trabalho procura se aproximar da imagem fotográfica por esses dois olhares,
aparentemente opostos, como forma de simplificar a abordagem. O caminho trilhado para se
aproximar desses olhares, que passa inicialmente pela ontologia da fotografia e segue com a
abordagem dos aspectos técnicos de constituição da fotografia estenopeica é apenas um recurso
metodológico necessário dentro das limitações de um texto construído linearmente. De forma
alguma se pretende suprimir a complexidade do debate. Na verdade, perceber-se-á que esses
olhares se interpenetram e se complementam, uma vez que cada um deles é composto por
inúmeros outros olhares. Em nenhum momento se acredita que só existam essas duas abordagens
possíveis, ou que elas possam existir de forma estanque, com o início de uma encerrando a outra.
No entanto este trabalho se limitará a elas como estratégia de abordagem.
32
SEUS CÓDIGOS
O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se
com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas – que
espelho? Há-os “bons" e "maus", os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas
honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é
que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o
comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções
análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam
superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato
um após outro, os retratos sempre serão entre si ‘muito’ diferentes. Se nunca atentou nisso, é
porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes.
referente, que atribui a ela um valor de testemunho, de prova indicial da existência do objeto
fotografado.
Com o objetivo de se aproximar desses múltiplos olhares que se lançaram e que se
lançam sobre a fotografia, este capítulo apresenta inicialmente uma breve abordagem da produção
de conhecimento por meio das representações visuais como construção de bens simbólicos, mais
especificamente, a representação através da imagem fotográfica. Em seguida, para apresentar os
diferentes conceitos ontológicos da fotografia, discute-se o uso da perspectiva renascentista como
forma de esclarecer o modelo de representação adotado pela fotografia; para então apresentar as
diferentes concepções acerca da fotografia com relação ao mundo visível real: como espelho
perfeito; como agente transformador; como índice; ou ainda, como o conjunto dos três aspectos.
A seção seguinte trata da trajetória da fotografia, observando-se os diferentes conceitos
ontológicos acerca da imagem fotográfica e buscando-se os momentos em que as posturas
conceituais e formais se aproximam da fotografia estenopeica; descrevendo-se principalmente
aqueles que apresentam posturas experimentais e questionadoras com relação ao meio fotográfico.
O capítulo é encerrado com a apresentação do contexto artístico contemporâneo. Destaca-se a
produção fotográfica que busca romper com as barreiras que limitam a fotografia, discutindo-se
para isso, o conceito de “fotografia expandida”. Finaliza o capítulo, um breve panorama da
produção fotográfica contemporânea brasileira.
Através da arte, assim como das demais expressões dos objetivos humanos como a
religião, a moralidade, a ciência, o comércio, a tecnologia, a política, o direito, ou nas formas de
lazer e até na forma como organiza sua vida prática e cotidiana, é que um povo transmite os
sentimentos que tem pela vida (GEERTZ, 2002).
A arte faz parte desse sistema geral de formas simbólicas que é a cultura. Os sinais com
que os artistas trabalham são reflexos de uma sensibilidade formada coletivamente com base na
vida social, materializando uma forma de viver, trazendo “um modelo específico de pensar para o
mundo dos objetos, tornando-o visível” (GEERTZ, 2002, p. 150). Esse processo de significação,
constituído social e historicamente, só faz sentido se observado considerando-se seu contexto
cultural e temporal específicos, respeitando-se as diferenças e semelhanças entre povos e
indivíduos. A forma como o ser humano percebe e interpreta esses signos é determinada pela
sociedade que influencia sua experiência de vida. Ele vive e vê o mundo com os olhos e valores de
sua época (GEERTZ, 2002).
Dentro do universo das artes, as imagens estão entre os mais importantes objetos
simbólicos dos quais o ser humano se utiliza para pensar, sentir e traduzir seu mundo. As
diferentes culturas fizeram e fazem usos distintos das imagens, sejam elas imagens mentais ou
imagens visuais concretas. As imagens mentais são abstratas, imateriais, e aparecem como visões,
fantasias, imaginações, modelos, ou seja, como representações construídas mentalmente por
outros estímulos perceptivos: táteis, olfativos, auditivos ou gustativos e não pelos olhos. As
imagens visualmente concretas são representações visuais com um suporte definido
materialmente: como desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,
televisivas, holo e infográficas (SANTAELLA & NÖTH, 2001). As imagens, mentais ou visuais,
seja qual for seu uso, se caracterizam como uma representação cultural, uma forma de construção
de conhecimento sobre a realidade.
Em seu significado filosófico, representação é o conteúdo concreto apreendido pelos
sentidos, pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento11. Dentre os diversos usos do termo,
11
Verbete representação (FERREIRA, s.d.).
38
Jacques Aumont (1993) aponta como ponto comum, que representação “é um processo pelo qual
institui-se um representante que, em certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa”
(AUMONT, 1993, p. 103). Para Peirce, representação é o processo da apresentação de um objeto
a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e o objeto. Santaella e Nöth explicam que,
para estabelecer uma distinção, Peirce nomeia como representação o ato de representar e designa
aquilo que representa como representamen. (SANTAELLA & NÖTH, 2001)
12
Para distinguir os conceitos de perspectiva artificialis e perspectiva natural Jallageas (2007, p.45) cita a definição de
René Taton (1915-2004) e Albert Flocon (1909-1994): “A palavra prospectiva ou perspectiva designava, no latin da
Idade Média, a ciência óptica que os gregos chamavam de [...] optikê, ciência que trata dos fenômenos luminosos. A
perspectiva geométrica, elaborada pelos artistas, chamar-se-á então perspectiva artificialis, enquanto a óptica, receberá
o nome de perspectiva communis ou naturalis” (1967, p. 47).
39
a interpretação psicológica e cultural que se faz dela. A questão do realismo é vista como uma
construção social com regras determinadas. “O realismo, enfim, é um conjunto de regras sociais,
com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que
formula essas regras” (AUMONT, 1993, p. 105).
O fascínio pela representação do mundo por meio de imagens e a sua ilusão de realidade
são até hoje os mesmos descritos por Platão na “alegoria da caverna”13. No Mito da Caverna, os
prisioneiros, acorrentados e imobilizados, sem poder mover a cabeça, observam sombras de
marionetes projetadas pela luz do fogo na parede da caverna e imaginam ver seres verdadeiros.
Um dos prisioneiros, ao se libertar e sair da caverna, é inicialmente cegado pela luz e em seguida
começa a distinguir as imagens dos seres vivos e os próprios seres. Essa dificuldade colocada por
Platão nessa alegoria, em dissociar a aparência da realidade, a imagem de seu original, é vivida
ainda hoje, quando a relação com as imagens se dá de forma ingênua, sem a consciência de que
são apenas “imagens”.
Platão, em A República (1996), coloca que são as formas inteligíveis (as idéias) que
permitem um saber legítimo, imutável e eterno. As formas materiais sensíveis (as coisas físicas e os
seres) são manifestações inferiores, que encobrem e mascaram as formas ideais que devem guiar o
conhecimento: as idéias. Para alcançar a verdade, deve-se desprender-se da matéria, direcionando
a atenção para as formas puras e verdadeiras que não estão ao alcance dos sentidos. Segundo
Entler (2008), Platão (1996) diz que o artista, ao partir do mundo material visível para extrair
dele sua aparência, segue o caminho contrário, pois, as imagens são simulacros que falam de
modo sedutor aos sentidos, mas estão ainda mais distantes das formas ideais que interessam ao
conhecimento. Por isso, as imagens não podem ser fontes da razão. Representar é imitar as
13
“Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz
exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a
cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o
mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos
prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes
do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens,
mulheres, animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as
próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros,
tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o
muro. Sai da caverna, no primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não
estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a
felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. [...] A caverna,
diz Platão, é o mundo sensível onde vivemos. A réstia de luz que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz
verdadeira (as idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos
pelas verdadeiras. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos e opiniões.” (CHAUI,
2007, s.p.)
40
aparências, e a arte de imitar está muito afastada do verdadeiro, pois a imitação só toma uma
pequena parte de cada coisa, passa a ser um simulacro ou fantasma. Aqueles que se deixam seduzir
por essas falsas manifestações são como prisioneiros dentro de uma caverna, que acabam tomando
como realidade as sombras projetadas em seu interior (ENTLER, 2008).
Ainda segundo Platão, tomar a imitação como verdade é ser “tolo”. Olhar para uma
imagem e acreditar que é a realidade é não discernir a “ciência” da “ignorância”. A noção de
imagem se relaciona com a falsidade: “Aparecer e parecer, mas não ser, dizer algo, porém não a
verdade” (PLATÃO apud SILVA, 2001, p. 71). A imagem é parecida, feita à semelhança daquilo
que é verdadeiro: uma cópia meramente reproduzida a partir do que é o autêntico ser. No
entanto, apesar de não ser o verdadeiro, a imagem é enquanto cópia. Assim, a imagem é e não é
ao mesmo tempo (SILVA, 2001). Em outras palavras, a imagem não é o real, mas enquanto
imagem é um ente real, cuja ontologia14 merece ser investigada.
Jacques Aumont15
As imagens assumem hoje, de forma cada vez mais intensa, o papel de instrumentos de
compreensão e assimilação da realidade social. As imagens visuais invadem a vida contemporânea
e a saturação de imagens na experiência diária acaba por distorcer e criar uma tensão entre o real e
o imaginário. A imagem fotográfica, de certa forma, enfatiza essa dissolução entre realidade e
representação e traz consigo uma série de questionamentos acerca de sua semelhança com a
realidade.
A questão da semelhança entre a representação e o objeto representado se faz mais
presente na história das artes do ocidente a partir do Renascimento. A busca por aproximar as
14
A ontologia estuda a essência ou sentido dos seres ou entes - físico ou natural, do ente psíquico, lógico,
matemático, estético, ético, temporal, espacial, etc. - antes de serem investigados e transformados em conceitos pelas
ciências e depois de se tornarem objeto de interesse para nossa vida cotidiana. Busca as diferenças e as relações entre
eles, seu modo próprio de existir, sua origem, sua finalidade. (CHAUI, 2007)
15
AUMONT, 1993, p. 163.
41
16
Segundo Jacques Aumont (1993), a noção de forma simbólica, foi proposta por Ernst Cassirer e se aplica a todas as
grandes construções intelectuais e sociais pelas quais o homem se relaciona com o mundo - arte, mito, religião,
cognição - “para ele, a linguagem como forma simbólica dos objetos na comunicação verbal, a imagem artística como
forma simbólica das idéias da comunicação visual, os mitos e depois a ciência como forma simbólica de nosso
conhecimento do mundo natural” (AUMONT, 1993, p. 215). A expressão foi popularizada por sua aplicação à
perspectiva feita por Erwin Panofsky. Ao retomar a noção de forma simbólica, Panofsky quer mostrar que a
perspectiva não é uma convenção arbitrária, mas que “cada período histórico teve ‘sua’ perspectiva, ou seja, uma
forma simbólica da apreensão do espaço, adequada a uma concepção do visível e do mundo.” (AUMONT, 1993, p.
215)
42
apertar de um botão de uma máquina que capta a imagem. Ao comparar a fotografia e a pintura,
André Bazin, em seu texto Ontologia da imagem fotográfica de 1945, atribui à fotografia uma
objetividade essencial: “uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído” (BAZIN,
2005). A formação da imagem por meio de um instrumento mecânico regido por leis científicas
como a física e a química, dotou a fotografia de uma objetividade que permitiu a formação de
imagens do mundo exterior sem a intervenção do artista. Dessa forma, a fotografia gerou uma
confiança de que a gênese mecânica do meio supria a interferência humana na captação da
imagem em função de sua objetividade técnica. Nas Palavras de Bazin:
Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação nada se interpõe a
não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se
forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um
rigoroso determinismo. [...] Todas as artes se fundam sobre a presença do
homem, unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. (BAZIN,
2005, s.p.)
Susan Sontag, em seu livro Ensaios sobre a Fotografia de 1973, comenta a gênese
automática da fotografia, e a independência maior do processo com relação à interferência do
autor na imagem:
A fotografia tem poderes que nenhum outro sistema de imagens jamais possuiu,
pois, ao contrário dos anteriores, ela não depende do fotógrafo. Por mais
cuidadoso que seja o fotógrafo ao intervir na organização e orientação do
processo fotográfico, o processo em si mesmo permanecerá sempre óptico-
mecânico (ou eletrônico), com funcionamento automático, com uma
maquinaria que será indubitavelmente adaptada para fornecer mapas da
realidade cada vez mais detalhados e, em conseqüência, mais úteis. A gênese
mecânica de tais imagens, e a exatidão da força que conferem configuram nova
relação entre imagem e realidade. (SONTAG, 1981, p. 151-152)
A credibilidade da fotografia como testemunho do real, que perdura até os dias de hoje,
se deve principalmente à consciência que se tem do processo mecânico de produção de suas
imagens - sua gênese mecânica. Contudo, a fotografia não é um meio neutro e a participação do
artista na construção da imagem vai além da escolha do enquadramento e do momento de apertar
o botão. A mesma Sontag, admite que, “[...] embora num certo sentido a câmera efetivamente
capte a realidade [...] a fotografia constitui uma interpretação do mundo, da mesma maneira que
a pintura ou o desenho.” (SONTAG, 1981, p.7)
As discussões em torno da fotografia estão repletas desses olhares diversos e, por vezes,
contraditórios, como os de Susan Sontag, que num momento vêem a fotografia de forma
43
transparente; no instante seguinte como interpretação; mais adiante como prova documental. Essa
variedade de interpretações não são mais do que o resultado da multiplicidade de possibilidades
que caracterizam essa complexa forma de representação.
Para entender essa complexidade da imagem fotográfica, busca-se em sua ontologia as
questões que envolvem sua produção e sua percepção. Todas as discussões a esse respeito
concentram-se de uma forma ou de outra em torno da relação de semelhança entre os objetos e
sua representação e os diferentes níveis de interferência causados por sua gênese mecânica de
produção.
Pode-se dizer que as diferentes abordagens ontológicas da fotografia se reúnem em torno
de dois principais conceitos. Inicialmente o discurso da mimese, que predominou no século XIX,
entende a fotografia como um espelho perfeito da realidade. No século XX, prevalece o discurso
da desconstrução que busca apontar que, apesar de sua gênese mecânica, a fotografia sofre
interferências; na verdade, a imagem fotográfica, ao invés de espelhar, interpreta e transforma a
realidade. Têm-se, mais recentemente, abordagens que pensam a imagem fotográfica dentro da
semiótica de Charles Sanders Peirce. A fotografia pode ser considerada como um traço do real,
como índice na classificação de Peirce (2003). Essa concepção assinala a conexão física entre o
objeto e sua imagem como razão fundamental para a sensação inevitável de realidade perante as
imagens fotográficas. Essa conexão entre imagem e o objeto fotografado alimenta a discussão de
alguns autores sobre o referente; é ele que causa a fotografia.
Alguns investigadores do campo da imagem, como Arlindo Machado (2001), colocam a
fotografia na que seria a ordem dos símbolos de Peirce: como a expressão de um conceito geral e
abstrato. Machado (2001) cita ainda Flusser (2002), quando este afirma que a fotografia é a
tradução de teorias científicas em imagens; a materialização de conceitos da ciência; ou, nas
palavras de Flusser: “são conceitos transcodificados em cenas” (FLUSSER, 2002, p. 32).
Ainda dentro da semiótica de Peirce, existe a tendência de considerar a fotografia como
um signo completo. José Luis Caivano considera a fotografia “como uma mensagem visual
complexa [...] que não pode ser considerada em uma classe específica de signos [pois,] distintos
aspectos de uma mesma fotografia podem funcionar como distintos tipos de signos.”17
17
Tradução do texto em espanhol: “[...] es pertinente considerar a la fotografía como um mensage visual complejo,
[...] que no puede ser encasillado em uma classe espacífica de signos. [...] distintos aspectos de una misma fotografía
pueden funcionar como distintos tipos de signos.” (CAIVANO, 1999, p. 40)
44
(CAIVANO, 1999, p. 40). A imagem fotográfica é considerada índice por sua gênese; pode
guardar semelhança com seu referente, portanto, pode ser ícone e, ao mesmo tempo, pode ser
símbolo, por se caracterizar como uma interpretação baseada em convenções científicas. Essas
várias abordagens convivem até hoje em maior ou menor grau, dependendo principalmente do
uso que se faz da imagem fotográfica e da percepção que se espera dela junto aos espectadores.
Apesar de se tratar de um debate extenso, a discussão da ontologia da imagem fotográfica
será apresentada como uma maneira de compreender a complexidade do signo fotográfico. Para
isso, o percurso que se traça, a partir daqui, para tratar das diferentes teorias a respeito da imagem
fotográfica, toma como base a discussão de Philippe Dubois, sobre a questão do realismo na
fotografia, presente em seu livro O ato fotográfico e outros ensaios, de 1990. Dubois apresenta
diferentes posições, defendidas por críticos e teóricos da fotografia no decorrer da história,
reunidas em três diferentes pontos de vista: “a fotografia como espelho do real (o discurso da
mimese)”; “a fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução)”, e
“a fotografia como traço de um real (o discurso do índice e da referência)” (DUBOIS, 1994, p.
26). Antes de lançar esse olhar mais detalhado sobre as diferentes questões que envolvem a relação
entre a imagem fotográfica e suas ligações com a realidade, se discute, inicialmente, a construção
simbólica da representação em perspectiva, para, em seguida, tratar das diferentes abordagens
ontológicas acerca da imagem fotográfica.
Ao transpor o que ele vê na realidade para o plano bidimensional da tela, o artista opera
uma tradução do real, ele acrescenta, retira e transforma uma série de informações como as cores,
o movimento e o espaço. Os critérios que o artista usa para essa transposição são resultados de
uma tradição enraizada na cultura e que foi absorvida por ele, assim como pelo observador da
obra, ao longo de sua formação e de sua educação. Se, ao observar uma imagem, acredita-se que
ela reproduza o real, é porque esse modelo de representação corresponde às expectativas. Para isso,
tem-se que estar habituado a enxergar através desses modelos. Assim, o artista usa a perspectiva
para orientar a percepção do espaço supostamente tridimensional, pois esse tipo de construção
simbólica faz parte da “cultura visual”. (ENTLER, 2007)
Ao longo da história da arte pode-se observar a presença de diferentes construções
perspectivas, como a perspectiva medieval ou invertida, utilizada na Idade Média, ou a perspectiva
cavaleira das estampas japonesas clássicas, para citar apenas dois exemplos. No entanto, a mais
conhecida foi aquela que se consolidou no Renascimento. A perspectiva renascentista, também
conhecida como perspectiva artificialis, central, linear ou uniocular, está baseada em leis
científicas de construção do espaço fundamentadas na geometria euclidiana e na representação
cartesiana do espaço que materializam as concepções de espaço de Isaac Newton e Gottfried
Wilhelm Leibniz.18
A perspectiva que interessa a este trabalho é a artificialis. Assim, a partir daqui, a
utilização do termo “perspectiva”, estará se referindo à perspectiva artificialis.
Os princípios óticos que fundamentam a perspectiva já haviam sido observados através
do funcionamento da camera obscura. As características da formação da imagem no interior da
câmera conduziram à afirmação da propagação retilínea da luz, um dos postulados da Óptica
Euclideana, que coincide com a compreensão do funcionamento do mecanismo ótico da visão de
Leon Battista Alberti. Em 1435, Arberti escreve De Pictura, um tratado sobre a pintura que
defende a figuração realista da natureza e para isso, recomenda que o artista obedeça ao código da
perspectiva artificialis. Dedicou seu livro ao arquiteto italiano Filippo Brunelleschi, que realizou
uma série de experiências que se tornaram importante subsídio para a matematização da
perspectiva (FRAGOSO, 2004).
18
A esse respeito ver: FRAGOSO, 2003.
46
Em 1415, Brunelleschi realiza sua primeira experiência com a tavolleta na Praça São
Giovane, em Florença. Ele pinta sobre um pequena tábua (tavolleta) o batistério São Giovane
visto do portal da catedral Santa Maria del Fiore. Em seguida ele elabora um dispositivo para fazer
o espectador ver a imagem pintada sobreposta à realidade que ela representa. A imagem pintada
de acordo com a construção perspectiva tinha um grande poder de convencimento devido à
sensação de verossimilhança entre a imagem que se observa através da tavolleta e a imagem do
Batistério observada a olho nu. (Figura 1 e Figura 2)
19
Disponível em: <http://www.istitutomaserati.it/prospettiva/Storia/Brunelleschi.html> Acesso em 20 fev. 2008.
47
Segundo Jallageas, Alberti (1989) afirma que um quadro funciona como uma janela
através da qual se observa uma secção do mundo visível (JALLAGEAS, 2007, p. 34). Assim, a
representação perspectivada seria uma secção plana da “pirâmide visual” que reproduz a projeção
do campo visual a sua frente.21 A maneira como Alberti descreve o traçar das linhas reforça a
afinidade entre a representação em perspectiva e a visão humana. Ele descreve as linhas
conectando ponto-a-ponto os objetos do mundo e os olhos do observador. Fragoso (2004) cita a
descrição de Alberti: “quando se vê, produz-se um triângulo cuja base é a quantidade vista e os
lados são esses raios, os quais se estendem dos pontos da quantidade até o olho” (ALBERTI,
1989, p. 76).
Para construir a perspectiva, um ponto fixo era escolhido para representar o centro
visual, que correspondia ao centro da “pirâmide”. Desse ponto partiam linhas retas que se ligavam
aos contornos de todos os objetos que estavam dentro do campo de visão. Esse ponto fixo é
chamado ponto de fuga. (Figura 3 e Figura 4)
20
Disponível em: <http://www.albertiefirenze.it/english/mostra/opere/sez6/sez6_136.htm#ancora_inizio_pagina>.
Acesso em 20 fev. 2008.
21
“Pirâmide visual” é o termo utilizado por Alberti para denominar o ângulo de visão do olho.
48
Um estudo para a obra A Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci mostra com
bastante clareza a precisão na construção da perspectiva, como, por exemplo, o traçado das linhas
do piso, que orientam o posicionamento dos objetos, como no modelo de Alberti. (Figura 5).
22
Disponível em: <http://www.arte.unb.br/museu/grace.htm>. Acesso em 20 fev. 2008.
23
Disponível em: <http://www.loc.gov/exhibits/leonardo/leonardo-exhibit.html>. Acesso em 20 fev. 2008.
49
Esta ilustração de Brook Taylor, mostra como um olho está sendo usado para observar o topo do cubo,
ABCD, projetado na janela de Leonardo, que é a superfície de intersecção FGHI.
A gravura de Dürer mostra o artista utilizando uma grade quadriculada para facilitar a construção da
perspectiva da cena. A mesma grade é reproduzida no plano onde o artista desenha. É importante
observar a pequena haste, que continha um furo por onde o artista deveria olhar a cena para manter seu
ponto de vista fixo. Tanto artistas quanto modelo deveriam se manter na mesma posição durante todo o
trabalho, para que a reprodução da perspectiva fosse eficaz.
50
[...] a partir do início do século XV, muitos artistas ocidentais usaram a óptica –
com o que me refiro a espelhos e lentes (ou uma combinação dos dois) – para
criar projeções fieis. Alguns dos artistas usavam essas imagens projetadas
diretamente para produzir desenhos e pinturas, e cedo esse novo modo de
retratar o mundo – esse novo modo de ver – disseminou-se. (HOCKNEY,
2001, p. 12)
Alguns aparelhos, além de lentes para melhorar a qualidade da imagem, continham um espelho que
refletia a imagem em uma superfície translúcida, normalmente um vidro despolido, para facilitar o
controle e a visualização da imagem.
24
Disponivel em:
<http://museumvictoria.com.au/scidiscovery/image_pages/mn005936.asp?URL=/scidiscovery/light/pinhole.asp>.
Acesso em: 04 mar. 2008.
25
Ver: AUMONT, 2004, p. 215; FRAGOSO 2004, p. 108; MACHADO, 1984, p. 73.
52
Nesta gravura, Escher constrói um objeto impossível respeitando as regras geométricas da perspectiva.
Acompanhando o percurso da água parece que ela está descendo, mas está subindo. O que num
momento está atrás, noutro momento está na frente. Olhando para as colunas, por exemplo, elas estão na
frente e atrás ao mesmo tempo.
26
Disponível em: <http://www.artchive.com/artchive/e/escher/escher_waterfall.jpg>. Acesso em 04 mar. 2008.
53
Nesta fotografia só se percebe a forma real do objeto por seu reflexo no espelho. Este tipo de ilusão só
acontece se porque a foto foi tirada de um ponto de vista específico, como as construções em perspectiva.
Se o ponto de vista mudar, a ilusão se desfaz.
27
Esta imagem também está disponível em: <http://www.moillusions.com/2006/04/impossible-objects-in-real-life-
no2.html>. Acesso em 25 mar. 2008.
54
atribui uma quarta dimensão ao espaço – o tempo; ou a teoria das cordas e das supercordas, que
surgiu no final do século XX, na tentativa de explicar a propagação da luz no vácuo e que propõe
um espaço em dez dimensões, unificando a teoria da relatividade geral de Einstein e a mecânica
quântica (FRAGOSO, 2003). Ainda assim, elas não foram suficientes para que a construção do
espaço através da perspectiva renascentista deixasse de ser vista como a forma mais correta de
representar o mundo.
Deve-se ter em mente que o modelo da perspectiva é um artifício que codifica o sistema
fotográfico, assim como os demais sistemas visuais posteriores à fotografia, que se baseiam no uso
de câmeras e lentes. Essa codificação, assumida como modelo, faz com que as imagens
perspectivadas sejam vistas como uma forma “natural” de representação, como janelas; artefatos
transparentes e neutros e não como sistemas simbólicos, produtos da experiência humana,
construídos a partir de conjuntos de crenças socialmente constituídos.
28
O conceito de mimesis designa, em sua acepção mais geral, “imitação”. De origem grega, foi desenvolvido por
Platão e Aristóteles. Pode-se apresentar, de forma abreviada, o conceito de mímesis a partir da discussão entre as
posições sobre a obra de arte em Platão, na República, e em Aristóteles, na Poética. Para Platão o conceito de mimesis
é pejorativo. Ao tratar do conceito de imitação em sua obra, refere-se a ele como uma impossibilidade de ser “cópia
fiel da realidade”. Afirmando que o decalque, uma reprodução perfeita só é possível a um deus, nunca ao homem.
Essa imitação é extremamente perigosa para a obtenção do objetivo dos “cidadãos da República” que é se aproximar
55
qualquer pessoa poderia utilizá-la, sem a necessidade do gênio criador de um artista para construir
a representação. É o que se percebe em comentários como o de Sontag: “a fotografia tem a
desagradável reputação de ser considerada a mais realista e, por conseguinte, a mais fácil, dentre as
artes miméticas (1981, p.51)”. Enquanto a fotografia está a serviço da pintura ela é muito bem
vista. Entretanto, ao menor sinal de que a fotografia poderia vir a reclamar seu papel como arte,
surgem reações e criticas intensas. Dubois (1994) apresenta essa questão, descrevendo a reação dos
artistas contra o domínio crescente da indústria técnica durante todo o séc. XIX. Diferentemente
da pintura, que faz parte do universo das artes, a fotografia era colocada no campo da indústria
técnica, afastada da criação e do criador. Dubois (1994) cita as críticas do poeta e teórico da arte
francês Charles Baudelaire, com relação à fotografia:
[...] a fotografia é a arte que, numa superfície plana, com linhas e tons, imita
com perfeição e sem qualquer possibilidade de erro a forma do objeto que deve
reproduzir. Sem qualquer dúvida a fotografia é um instrumento útil à arte
pictural. É manejada muitas vezes com gosto por gente culta e inteligente, mas,
afinal, nem se cogita compará-la com a pintura (TAINE, 1865 apud DUBOIS,
1994, p. 29).
da realidade do mundo das idéias. Para Aristóteles há na espécie humana a tendência natural para o imitar. Ele
compreende o conceito mimesis como um aspecto fundamental das artes miméticas. A mimesis é imitação da ação.
Há uma separação entre os indivíduos que praticam as artes miméticas e esta divisão é estabelecida conformemente à
qualidade dos que representam a imitação. Conclui-se, por fim, que todas as artes poéticas - inclusive a dança,
pintura, escultura e música - são reconhecidamente artes miméticas. A imitação, para Platão era reprodução sem
criação, mera repetição. Aristóteles, como discípulo de Platão, toma para si o conceito de mimesis, mas refuta o
mestre, afirmando a mimesis como imitação criadora. Imitação que também produz e não só reproduz. (ARAÚJO,
2007; OLIVEIRA, 2007)
56
Por outro lado, teóricos como Walter Benjamin conseguem perceber algo positivo com a
participação da fotografia no mundo das artes. Em seu ensaio A obra de arte na época de suas
técnicas de reprodução, de 1936, Benjamin afirma que, com as novas técnicas de produção e
reprodução, como a fotografia e o cinema, desenvolvidos entre os séculos XIX e XX, a obra de
arte perde sua “aura”. Ao mesmo tempo em que qualidades como a “autenticidade” e
“autoridade” deixam de fazer sentido, por outro lado, ao perder sua “aura”, a arte deixa para trás o
aspecto elitista e tradicional, deixando de ser privilégio de apenas alguns para atingir a grande
massa, ou seja, segundo Benjamin, as novas técnicas de reprodução da arte poderiam, em última
análise, promover a democratização no campo das artes: “multiplicando as cópias, elas
transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas” (BENJAMIN,
1980, p. 8).
Os mesmos discursos que, à primeira vista, se referem à fotografia de forma positiva,
trazem ainda uma separação entre arte e fotografia. Ao enxergar na fotografia um instrumento fiel
de reprodução do real, “uma técnica muito mais bem adaptada do que a pintura para a
reprodução mimética do mundo”, a fotografia passaria a cumprir funções que até então eram
exercidas pela pintura (DUBOIS, 1994, p. 30).
Dubois acrescenta que, segundo esses discursos:
Essa idéia de libertação da pintura pela fotografia fica bastante explícita no texto de
André Bazin, A ontologia da imagem fotográfica, de 1945:
Por trás desse discurso libertador, existe uma separação bastante clara entre os domínios
da fotografia e da pintura. Para a fotografia, a função documental, a referência, o concreto, o
conteúdo, enquanto que para a pintura se destinam: a arte, a busca formal, o imaginário. Esta
separação é reflexo de um conjunto de “pré-conceitos” que colocam a técnica e as atividades
57
Atribuir uma segunda mensagem à fotografia seria “significar uma coisa diferente
daquilo que é mostrado” (BARTHES, 1990, p. 14). Para Barthes (1990), os procedimentos de
conotação na fotografia são bastante frágeis e não fazem parte da estrutura fotográfica. São
manipulações de origem externa à própria estrutura da fotografia, como as trucagens, a pose, as
imagens construídas para remeter o leitor a uma determinada leitura, seja pela composição dos
objetos da cena, seja pela fotogenia ou estetismo da fotografia, ou pela imposição de uma sintaxe,
que induz o observador a uma leitura discursiva da imagem. Essas intervenções humanas de
ordem conotativa se contrapõem ao registro mecânico, que atua como uma garantia de
objetividade, que é reforçada pela ausência de código da mensagem fotográfica e que atribuem a
ela o mito do “natural”. “A relação entre os significados e os significantes da imagem fotográfica
não é de ‘transformação’, mas de ‘registro’” (BARTHES, 1990, p. 36). Barthes admite que essa
crença na naturalidade da imagem fotográfica limita sua percepção como construção cultural
simbólica. A ausência de código naturaliza a mensagem simbólica: “a natureza parece produzir
espontaneamente a cena representada” (BARTHES, 1990, p. 37); a mensagem literal parece ser
suficiente, fornecendo meios de “mascarar o sentido construído sob a aparência do sentido
original” (BARTHES, 1990, p. 37).
O discurso mimético olha para a fotografia como uma “imagem sem código”, como um
processo autônomo e sem interferências de ordem subjetiva ou de outra natureza, atribuindo à
fotografia uma transparência que impede que se enxerguem nela todos os demais elementos que
59
fazem parte de sua complexa construção simbólica. O que se vê é apenas o reflexo do mundo,
uma cópia fiel isenta de interpretações.
A caixa preta fotográfica não é um agente reprodutor neutro, mas uma máquina
de efeitos deliberados. Ao mesmo modo que a língua, é um problema de
convenção e instrumento de análise e interpretação do real.
Philippe Dubois29
O conceito da fotografia como uma reprodução mecânica fiel à realidade começa a ser
questionado ainda no século XIX. Na busca de um estatuto artístico para a fotografia, surgiram
discussões acerca de suas possibilidades como construtora da realidade. Ao invés da reprodução
automática do real graças a sua gênese mecânica, a fotografia passa a ser vista como resultado da
interpretação do sujeito-fotógrafo, que atua como intermediário entre a realidade e a
representação. Essas discussões culminaram com o movimento pictorialista que, apesar de ser
considerado, na maioria das vezes, um movimento conservador, que pretendia da fotografia uma
imitação da pintura, foi responsável por importantes reflexões sobre o estatuto da imagem
fotográfica como simplesmente uma técnica precisa de registro da realidade.
No século XX, paralelamente ao discurso da mimese, intensificam-se os
questionamentos quanto à fidelidade da imagem fotográfica ao real, apontando também para sua
capacidade de interpretação e transformação, desconstruindo a realidade. Dentro dessa discussão
da fotografia como mensagem codificada, transformadora do real, podem-se encontrar alguns
grupos com diferentes tendências. Philippe Dubois (1994) destaca, além dos discursos
semiológicos30 - três tendências teóricas principais. Uma delas vem dos estudos da psicologia da
percepção com Rudolf Arnheim e Siegfried Kracauer, baseada na observação da técnica
fotográfica e seus efeitos perceptivos. Em seguida, teóricos como Hubert Damisch, Pierre
Bourdieu e Jean-Louis Baudry se caracterizam pelo caráter ideológico na interpretação da
29
DUBOIS, 1994, p. 40-41.
30
Sobre as discussões semiológicas da fotografia como mensagem codificada Dubois cita Christian Metz, Umberto
Eco, Roland Barthes e René Lindekens entre outros. (DUBOIS, 1994, p. 37)
60
transformação do real que se estabelece pela fotografia, considerando que a câmera fotográfica não
é neutra, mas ao contrário, que a concepção de espaço que ela reproduz está ligada às convenções
da perspectiva renascentista. Uma outra abordagem diz respeito aos usos antropológicos da
fotografia, que não aparece mais como um espelho transparente, mas como uma mensagem
codificada cuja significação é determinada culturalmente (DUBOIS, 1994). Neste sentido, a
fotografia não funciona apenas como um registro das representações comportamentais, mas como
uma possibilidade de tradução das representações mentais de um grupo. (SAMAIN, 1997)
A questão da fotografia como transformação do real será observada, neste trabalho, a
partir da idéia de que ela é uma construção simbólica constituída ideológica e culturalmente. Para
isso, busca-se nas concepções de signo ideológico de Mikhail M. Bakhtin e Valentin N.
31
Volochinov as bases para a abordagem sócio-semiológica da discussão da fotografia como
transformação do real. Apesar de privilegiar a linguagem verbal, suas considerações se aplicam de
forma bastante apropriada aos signos visuais como a imagem fotográfica.
Signo, numa descrição simplificada da semiótica de Peirce, “é aquilo que, sob certo
aspecto ou modo, representa algo para alguém” como também “qualquer coisa que conduz
alguma outra coisa” (PEIRCE, 2003, p.46; p.74).
Segundo Voloshinov, a ideologia32 e a realidade material dos signos não se separam. Para
ele, signo é qualquer corpo físico que, mesmo fazendo parte da realidade material, de alguma
forma adquiriu significado, convertendo-se em signo, ou seja, remetendo a algo fora de si mesmo,
refletindo ou refratando em alguma medida uma outra realidade. Um corpo físico que vale por si
só, que coincide com sua própria natureza, sem se remeter a algo fora dele mesmo não é ideologia.
“Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Sem
signos não existe ideologia” (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1995, p. 31). Um instrumento de
produção ou um produto de consumo também podem ser transformados em signos e adquirir
31
Apesar da confusão com relação à autoria de algumas obras de Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev
(1892-1938) que foram posteriormente creditadas a Mikhail M. Bakhtin, adota-se V. N. Voloshinov como o autor
do livro Marxismo e filosofia da linguagem, conforme observações de Faraco (2003, p. 13-14).
32
A palavra ideologia é usada por Bakhtin e Voloshinov para designar o universo da produção imaterial humana, que
engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as áreas da criatividade
intelectual humana. Neste sentido, não guarda nenhuma conotação restrita ou negativa com o sentido marxista de
“mascaramento do real”. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov afirma que tudo que é ideológico - ou
seja, todos os produtos da cultura dita imaterial -, possui significado; e, portanto, é um signo. (FARACO, 2003, p.
46-47)
61
“um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades” (BAKHTIN & VOLOSHINOV,
1986, p. 31)
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Voloshinov inicia a discussão de uma filosofia
da linguagem pela natureza ideológica e dimensão histórica dos signos. A linguagem é entendida
como forma de construção e formação de sentido a partir da interação social, como um sistema
simbólico culturalmente construído para representar um mundo em que os interesses sociais, os
saberes e os poderes estão em constante conflito. Cada um desses sistemas simbólicos - como a
linguagem, a religião, a ciência, o direito, etc. - tem seu modo próprio de se relacionar com a
realidade, e a reflete ou a refrata de maneira diferente, de acordo com seu papel na vida social.
Nas palavras de Voloshinov:
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e
refrata outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de
um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de
avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc)
(BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p.32).
Os signos são criados no curso das relações sociais e determinados pelas formas de
interação dentro dos diferentes grupos e entre eles, por isso são “vivos” e “móveis”, refletindo as
alterações na vida social:
O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O
que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de
interesses sociais nos limites de uma só comunidade semiótica, ou seja: a luta de
classes. Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo
termo entendemos a comunidade que utiliza um mesmo e único código
ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma
só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-
se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a
luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior
importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna
o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986,
p. 46)
Assim, para Voloshinov, as diferentes classes sociais, ao partilharem uma mesma língua,
atribuem a um mesmo signo, diferentes sentidos, fazendo com que o signo se torne o local onde
acontece o confronto de valores contraditórios. Ao mesmo tempo, o que torna o signo ideológico
vivo e dinâmico também faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. No
entanto, as contradições são obscurecidas pelas classes dominantes que tendem a conferir ao signo
62
ideológico “um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a
luta dos índices sociais de valor que aí se trava”. (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p. 47)
Voloshinov acrescenta:
Na realidade, todo signo ideológico vivo tem [...] duas faces. Toda crítica viva
pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns
a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente
a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições
habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se
mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo
ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta por assim dizer, estabilizar o
estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de
ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador
do signo ideológico nos limites da ideologia dominante. (BAKHTIN &
VOLOSHINOV, 1986, p. 47)
Em função do citado acima, com os signos, não só o mundo é descrito como também é
construído. Na concepção de Voloshinov, Bakhtin e demais membros do chamado Círculo de
Bakhtin, ao se referir ao mundo, os signos refletem e refratam esse mundo, ou seja, através dos
signos aponta-se para uma realidade externa a ele, mas isso se faz não somente descrevendo o
mundo (refletindo), mas construindo diversas interpretações (refrações) desse mundo. É dessa
forma que os diferentes grupos humanos geram diferentes modos de dar sentido ao mundo (de
refratá-lo). Para o círculo, não é possível significar sem refratar, pois as significações não estão
dadas no signo em si,
analogia com a fotografia, Arlindo Machado comenta que no processo fotográfico o fenômeno da
refração opera uma transformação equivalente. Ao se interpor um material cristalino entre os
objetos e o material sensível, a direção dos raios luminosos se altera. Dessa forma, o fenômeno da
refração impede que se obtenha uma reprodução “fiel” dos sinais luminosos, uma vez que os
“deforma”, e os “transfigura”. Essa deformação óptica (refração) operada pela câmera equivale à
transformação (refração) dos signos que se opera na vida social.
Assim, a ilusão de verossimilhança da imagem fotográfica atua como uma censura
ideológica que tenta esconder seu caráter de transformação e interpretação da realidade, impondo
uma sensação de naturalidade às imagens que faz com que o observador as perceba como a
própria realidade, ocultando os processos de reflexão e refração que constituem o sistema
simbólico. (MACHADO, 1984, p. 28-29).
De acordo com Dubois (1994), para alguns autores como Damisch, Baudry e Bourdieu,
o código ideológico operado pela imagem fotográfica é o da perspectiva renascentista:
inventou. O caráter ideológico não está na deformação da realidade, mas na imposição dessa visão
de mundo como sendo universal, transparente e neutra, ocultando a codificação do signo e
encobrindo as contradições entre os diferentes grupos e classes sociais.
Arlindo Machado acrescenta:
[...] para que a ideologia dominante possa aparecer como dominante, ou seja,
para que ela se imponha como o sistema de representação de toda a sociedade e
não de uma classe em particular, ela não pode se mostrar como ideologia.
Aqueles que forjam a ideologia dominante se dizem e se julgam fora dela: a
imprensa se diz “objetiva”, a religião se diz “universal”, o sistema político se diz
“democrático”, a instituição jurídica se diz “igualitária” e a produção intelectual
se diz “científica” (MACHADO, 1984, p. 15).
Olhar para a fotografia não apenas como um espelho neutro, que apenas reflete a
realidade, isento de interpretações e de refrações, é o que busca fazer Arlindo Machado em seu
livro A ilusão especular, de 1984. Analisando uma a uma as características da imagem fotográfica,
ele defende que a imagem refletida pela câmera nada tem de inocente, evidenciando a
determinação ideológica, consciente ou inconsciente, que está por trás da fotografia. Através da
desconstrução de cada característica - da representação perspectiva; da escolha do instante; do
enquadramento; do ponto de vista; do recorte; da pose; do tempo congelado; do foco; das
deformações ópticas; da proximidade ou distância - ele desmistifica a ilusão especular do reflexo
de realidade fotográfico e evidencia as refrações que comprometem a transparência da
representação.
Defendendo a fotografia como uma mensagem codificada, Machado (1984) reafirma
que a representação fotográfica passa por um processo de transfiguração, pois, apesar de se referir
a algo real, ela sofre todas as interferências inerentes ao processo fotográfico.
Assim:
E conclui que “Só um domínio eficiente do código que opera em cada sistema nos
reconcilia com o referente e nos permite ver com clareza a dialética do reflexo e da refração
operando sobre as formas simbólicas.” (MACHADO, 1984, p. 159)
Observar a imagem fotográfica com um olhar desconstrutor significa compreender que a
visão de mundo que se constitui por essa representação é uma visão transfigurada por uma série de
interpretações e interferências. Tais transformações operadas pelo código fotográfico devem ser
decifradas e não simplesmente vistas e aceitas como se fossem reflexos “especulares” da própria
realidade. Olhar para a fotografia como algo transparente e neutro, como um espelho do real, é,
na verdade, ocultar toda a codificação que está por trás da construção da representação. Como se
aquele olhar, impregnado de intenções e interpretações, fosse um olhar puro e universal sem
filtros ou distorções. Como se as fotografias fossem apenas janelas, e não construções simbólicas,
signos que, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade.
Na discussão sobre as relações entre a imagem fotográfica e o real, além das abordagens
ontológicas da fotografia como espelho do mundo e da fotografia como agente desconstrutor do
real, mais recentemente tem se pensado a imagem fotográfica dentro da classificação semiótica
indicial de C. S. Peirce. Essa abordagem está diretamente ligada ao fenômeno ótico que envolve a
formação da imagem no processo fotográfico. Como a imagem foi produzida através da reflexão
da luz do objeto, mais do que a questão da semelhança entre a imagem e o objeto, é a ligação
física entre eles que estará no foco da discussão.
Peirce desenvolve sua classificação semiótica dos signos já na segunda metade do século
XIX33. Não se pretende aqui desenvolver uma discussão aprofundada das categorias semióticas
propostas por Peirce. Também não se tem a intenção de utilizar suas postulações de maneira
reducionista ou deslocada do complexo contexto de sua semiótica. Apenas busca-se, de uma
forma muito simplificada e despretensiosa, abordar a tríade ícone, índice e símbolo, no que diz
respeito às relações que podem ser estabelecidas entre a fotografia (como signo) e os objetos,
33
Segundo Lucia Santaella, Peirce propõe suas categorias sígnicas em seu ensaio “Por uma nova lista das categorias”
de 1867. (SANTAELLA, 1995, p. 107)
66
principalmente aos usos que correntemente se fazem dessas três categorias quando da discussão da
ontologia da imagem fotográfica.
Um signo pode ter, segundo Peirce (2003), três espécies de identidades semióticas que
correspondem ao tipo de relação que este signo pode estabelecer para com o objeto (do qual ele é
signo). O “signo” é considerado um Ícone do objeto se ele se identifica com o objeto por
similaridade, ou semelhança ou igualdade em algum aspecto, quer o objeto exista ou não.
“Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer
coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um signo seu” (PEIRCE,
2003, p.52).
Um “Índice” é um signo que se relaciona com seu objeto por uma conexão física,
independentemente de ser interpretado ou não. Não é o intérprete que confere ao signo o poder
de índice, mas a relação que existe entre signo e objeto:
haver uma conexão física entre a fotografia e seu referente, como uma impressão digital que lhe
confere uma correspondência ponto a ponto com a natureza.
Segundo Peirce, um signo se inscreve na categoria indicial, porque ele se refere a seu
objeto, não em virtude de uma similaridade ou analogia, nem pelo fato de estar associado a
características que por ventura o objeto também tenha, mas sim por estar em uma “conexão
dinâmica”, inclusive espacial, tanto com o objeto individual, quanto com os sentidos ou a
memória da pessoa a quem serve de signo (PEIRCE, 2003, p. 74). Essa definição se encaixa
perfeitamente no discurso da fotografia como índice, como traço do real. Mais do que a
semelhança - que é apenas uma possível conseqüência de sua gênese -, a relação entre a fotografia
e o referente se dá tanto pela conexão física com o objeto quanto pelos sentidos ou a memória de
quem a observa.
A partir das proposições da semiótica de Peirce os questionamentos acerca da “essência”
da fotografia são deslocados. O resultado formal das imagens que prevalece no discurso mimético
é substituído pela ênfase no processo de produção das imagens que passa a ser o foco de uma série
de discussões. André Bazin (1945) afirma que a essência da fotografia está em sua gênese. Barthes
(1984) leva a discussão para o campo da referência como uma conexão mais sensível do que física.
Dubois (1994) retoma a questão da referência de Barthes e coloca a discussão ontológica da
fotografia no campo do traço físico do real. O que irá definir os fundamentos essenciais da
fotografia não será a representação em si, mas a imagem e o ato que a definem ao mesmo tempo,
pois a fotografia “não é apenas uma imagem produzida por um ato, é também, antes de qualquer
outra coisa, um verdadeiro ato icônico ‘em si’, [...] uma imagem-ato.” (DUBOIS, 1994, p. 59)34
Susan Sontag (1981) discutiu a fotografia sob os mais diferentes aspectos, e, apesar de
não utilizar claramente o termo índice, em alguns momentos também caracterizou a fotografia de
acordo com a categoria peirceana:
34
Observações referentes aos autores: André Bazin em Ontologia da imagem fotográfica de 1945 (BAZIN, 2005);
Roland Barthes no livro A câmara clara de 1980 (BARTHES, 1984) e Philippe Dubois no livro O ato fotográfico e
outros ensaios de 1990 (DUBOIS, 1994).
68
1.2.4.1 Referente
Sejam quais forem as objeções do nosso espírito crítico, somos obrigados a crer
na existência do objeto representado, literalmente representado, quer dizer,
tornado presente no tempo e no espaço [...] A imagem pode ser nebulosa,
69
deformada, descolorida, sem valor documental, -mas ela provém por sua gênese
da ontologia do modelo; ela é o modelo. (BAZIN, 1987, s.p.)
O sentimento de Barthes diante da imagem da mãe salienta uma das características mais
marcantes da imagem fotográfica, seu caráter fetichista, principalmente do retrato fotográfico: a
crença de que a fotografia capta a essência da pessoa fotografada, como se fossem verdadeiros
“objetos vodu”. A ligação com o referente é tão intensa que a fotografia passa a ser sentida como
uma emanação do passado.
Nas palavras de Barthes:
‘mensagem sem código’).” Dubois (1994) classifica esse instante da exposição propriamente dita
como “um índice quase puro”, um instante de “pura indicialidade”. “Aqui, mas somente aqui, o
homem não intervém e não pode intervir sob a pena de mudar o caráter fundamental da
fotografia (DUBOIS, 1994, p.51).” Para Dubois (1994), a fração de segundo desse instante traz
como principal conseqüência teórica, a questão da referência como característica indiscutível da
fotografia.
Dubois (1994) se baseia nas três categorias básicas de Peirce (2003): a fotografia é um
“índice”, inseparável do ato que a funda, uma representação por contigüidade física com seu
referente; pode ser “ícone”, por se assemelhar ao real de forma mimética, como um espelho do
mundo; e é “símbolo” por se tratar de uma interpretação/transformação cultural e ideológica do
real, um conjunto de códigos. Nessa abordagem, a imagem fotográfica se identifica com a
categoria indicial por sua característica elementar de traço, de conexão física – imagem formada
através do contato da luz emitida pelo objeto com a superfície sensível. E pelas qualidades
essenciais de um índice: por sua singularidade como prova da unicidade referencial que se
estabelece entre o signo e seu objeto como uma relação de metonímia; pelo princípio de atestação
- ou seja, a fotografia, por sua gênese, testemunha, certifica, atesta a existência do que mostra; e
por designação – pois indica o referente. Assim, a fotografia é por sua gênese um índice, pode
estabelecer semelhança com o referente se tornando um ícone e finalmente adquirir sentido e ser
símbolo.
Outro exemplo que demonstra uma abordagem mais moderada com relação ao referente
está na utilização da fotografia como fonte de informação histórica. A condição referencial da
representação fotográfica é um valor fundamental para que ela possa ser tomada como
documento. Entretanto, com o cuidado de não considerar a fotografia de forma ingênua, apenas
como uma imagem transparente, um duplo do real. Boris Kossoy (1999) apresenta algumas
considerações bastante críticas com relação ao uso da fotografia como fonte histórica. Para ele, o
potencial informativo da fotografia pode ser alcançado se esses fragmentos forem contextualizados
historicamente em seus múltiplos desdobramentos – sociais, políticos, econômicos religiosos,
artísticos, culturais. Ele observa que a fotografia tem uma realidade própria, uma “segunda
realidade”, construída, codificada, sedutora em sua montagem e em sua estética, de forma alguma
inocente, mas que é decisiva para desvendar o passado. A fotografia é uma “segunda realidade”,
73
sua ligação referencial com a realidade é indiscutível, ela “é certamente um registro do visível”,
mas é fundamental decifrar sua “realidade interior”, desmontando as construções ideológicas que
se materializam nos testemunhos fotográficos (KOSSOY, 1999, p. 143). Essa “segunda
realidade”, apresentada pela fotografia, não corresponde necessariamente à verdade histórica –
primeira realidade. A realidade da fotografia reside no conjunto de intenções do construtor da
representação – fotógrafo, e nas múltiplas interpretações, nas diferentes “leituras” que cada
receptor faz dela num dado momento. E assim deve ser analisada, como uma construção
simbólica, constituída histórica e culturalmente.
deterá na discussão das questões que se colocam no entorno pós-fotografia. Cabe apenas observar
que, apesar de não serem obtidas pelo processo fotográfico, essas imagens de modulação digital
direta acabam por ecoar muitas das características formais da fotografia com lentes.
Dentro desses olhares focados nos conceitos científicos que estão por trás da construção
das máquinas semióticas se estabelecem outros questionamentos que buscam deslocar a fotografia
mais claramente para a categoria dos signos simbólicos. Mais do que somente um reflexo
mimético, um vestígio da realidade, ou a desconstrução do real operado pela construção da
imagem fotográfica, e além da questão ideológica da adoção do modelo perspectivo como forma
simbólica, a imagem fotográfica passa a ser encarada como a expressão de conceitos gerais e
abstratos, conceitos científicos que se transformam em imagens (FLUSSER, 2002, p.32). Mais do
que um simples traço do real, como uma impressão digital ou uma pegada, o traço registrado pela
câmera fotográfica depende de um grande número de processos físico-químicos/eletrônicos
inerentes ao processo fotográfico. As mediações técnicas que se interpõem entre o objeto e o
registro de seu traço se alternam em uma infinidade de combinações que impedem que o registro
da imagem seja simplesmente uma impressão indicial direta do objeto fotografado. Entre essas
mediações técnicas, pode-se destacar, entre muitas outras: as características construtivas da câmera
e da objetiva: sua distância focal, a escolha do foco; as escolhas da abertura do diafragma e da
velocidade do obturador; também as propriedades do material sensível35: como a sensibilidade
espectral, o contraste, a resolução, a granulação; além do processamento químico (ou eletrônico)
da imagem (Figura 11). Ou seja, não há contato físico direto entre o objeto e o material sensível.
A imagem é formada no material sensível quando este é exposto aos raios de luz refletidos por um
determinado objeto ou mesmo pelos raios de luz provenientes de uma fonte luminosa, como uma
lâmpada, por exemplo. A formação da imagem dependerá dessa informação luminosa, que está
sujeita às suas próprias características e às propriedades reflexivas do objeto, além de ser
interpretada de acordo com as características físico-químicas do material sensível (MACHADO,
2001). Além disso, sofrerá a interferência de todos os dispositivos internos da câmera, sobretudo
da objetiva, que se interpõe fisicamente entre o objeto e o material sensível. No limite, o máximo
35
O termo “material sensível” será adotado para designar tanto as emulsões sensíveis do processo fotográfico
analógico-químico quanto os sensores digitais do processo fotográfico eletrônico/digital. Apesar de suas
especificidades (com relação á sensibilidade e resposta cromática) ambas possuem características semelhantes no que
diz respeito à interpretação e às interferências que sofrem dos dispositivos internos da câmera.
75
que se pode dizer é que existiu um contato físico entre os fótons da energia luminosa e o material
sensível.
Várias características presentes nessa imagem questionam sua classificação como ícone e mesmo como
índice. A ausência de foco, associada à movimentação da câmera faz com que a imagem apareça
“borrada”, o que dificulta a relação indicial de correspondência “ponto a ponto” entre a imagem e a cena.
O recorte do quadro despersonaliza a imagem, se identifica apenas o local (Viaduto Santa Efigênia em
São Paulo) pelo desenho do gradil. A granulação - provocada por uma série de fatores: baixa
luminosidade; filme de alta sensibilidade; processamento químico que favorece o aumento do tamanho
dos grãos – diminui sua definição (revelação “puxada”), aproxima a imagem da aparência e textura dos
processos de gravação, que naturalmente já a afastam da noção de espelho do real fotográfico. Apesar da
presença de uma diagonal que sugere a perspectiva, a textura e a ausência de foco fazem com que a
imagem se apresente mais como um plano, dificultando a percepção de profundidade do espaço
tridimensional.
Todo esse instrumental científico que se interpõe entre o objeto fotografado e sua
imagem questionam o enquadramento da fotografia na categoria de índice e reforçam a defesa da
fotografia como símbolo dentro da definição semiótica de Peirce. Segundo Machado (2001),
tanto quanto a imagem digital, a fotografia é uma imagem científica informada pela técnica. Ela é
resultado da aplicação técnica de conceitos científicos - dos campos da óptica, da mecânica e da
química -, acumulados durante séculos. Mesmo que, na maioria dos casos, ainda esteja presente
certo grau de indicialidade, o “traço”, quando existe, não está em estado bruto, mas
profundamente mediado e interpretado pelo saber científico. Por isso, concorda-se com a
76
afirmação de Machado de que, “a verdadeira função do aparato fotográfico não é [...] registrar um
traço, mas sim interpretá-lo cientificamente” (MACHADO, 2001, p.129).
Estar consciente desse processo interpretativo é fundamental para a compreensão e o
deciframento da fotografia. Como símbolo, ela precisa ser decifrada, no entanto, a aparente
objetividade da gênese mecânica fotográfica, torna a fotografia uma imagem transparente, fazendo
com que ela não pareça ser símbolo, portanto, não precise ser decodificada. Essa questão é
discutida amplamente no livro Filosofia da Caixa Preta, de 2002 de Vilém Flusser, e será objeto
de discussões mais detalhadas na seção 2.4.1 (p.199).
Até aqui, buscou-se mostrar a multiplicidade de olhares ou as várias vozes que se deixam
ouvir nos diferentes discursos sobre a imagem fotográfica. A fotografia pode ser vista por sua
iconicidade, por sua analogia com o objeto fotografado, observando as semelhanças que a imagem
fotográfica guarda com as características plásticas e formais do referente, por suas características
miméticas. Por outro lado, pode-se olhá-la como uma marca, um traço do real, que atesta a
existência do referente, como um índice, uma prova da presença do objeto fotografado. Outro
olhar possível, considera a fotografia como um símbolo, por concretizar uma série de conceitos
científicos envolvidos no processo fotográfico e traduzi-los em imagens. Para além das categorias
de Peirce (2003), que possibilitam analisar a fotografia pela relação entre a representação e o
objeto ou coisa fotografada, aspectos que estão mais diretamente ligados à gênese fotográfica,
procura-se olhar para a fotografia como um artefato, que materializa uma construção-simbólica
formada sócio-culturalmente, que envolve todo o desenvolvimento do aparato câmera fotográfica,
a interpretação do sujeito que constrói a imagem e a interpretação do sujeito que a recebe.
fotógrafo” é aquele que consegue “dominar a técnica”. Aquele que consegue obter,
fotograficamente, as imagens que estão em sua imaginação, ou, no mínimo, que consegue, no
momento do “clique”, antever como ficará a imagem final.
No entanto, em alguns momentos surgem posturas que rompem com essas concepções,
repensando a fotografia como meio de expressão e incorporando a experimentação, a imprecisão,
a anamorfose e o acaso na imagem fotográfica. Posturas que procuram explorar ao máximo as
possibilidades da fotografia, sem, necessariamente, se deter ao específico fotográfico.
Apesar de extremamente rica e interessante, este trabalho não se deterá em descrever toda
a trajetória da fotografia, mas em pontuar, no decorrer de seu desenvolvimento histórico, alguns
momentos em que se percebem essas posturas questionadoras. Entre eles, serão destacados os que
envolvem diretamente o experimentalismo e a manipulação técnica, como o pictorialismo, as
vanguardas e a fotografia subjetiva; ou que exploram o registro dinâmico e a inscrição do tempo
na imagem fotográfica, como os experimentos de Muybridge e Marey, e o fotodinamismo
futurista dos irmãos Bragaglia. Posturas que, de alguma maneira, dialogam com o objeto de
estudo deste trabalho: a prática da fotografia estenopeica pelos artistas contemporâneos.
Algumas bases para a compreensão do desenvolvimento da fotografia já foram expostas
anteriormente, como a perspectiva Renascentista e os diferentes aspectos ontológicos que
envolvem a percepção da imagem fotográfica. Para traçar um paralelo entre a fotografia
estenopeica e a fotografia tradicional com lentes, inicialmente apresenta-se os princípios de
formação da imagem através de orifícios, que culminam com o desenvolvimento da camera
obscura que, por sua vez, é precursora tanto da fotografia tradicional com lentes quanto da
fotografia estenopeica.
Como estratégia metodológica, os momentos escolhidos, e que serão destacados neste
trabalho, vão obedecer ao desenvolvimento histórico, cronológico, da fotografia que será dividido
por períodos. A primeira fase compreende da invenção da fotografia até a metade do séc. XIX, e
destaca-se o caráter de reprodução fiel e automática da realidade com que foi encarada a fotografia
no seu início. A segunda fase estende-se da segunda metade do séc. XIX até, aproximadamente, o
início do séc. XX, e observa-se, paralelamente ao uso da fotografia como documento, os primeiros
experimentos que procuram o registro do movimento e, principalmente, a busca pelo
reconhecimento da fotografia como arte, destacando-se o movimento pictorialista e a presença da
78
fotografia estenopeica. Na terceira fase, que vai, aproximadamente, do início até a metade do
século XX, destacam-se o experimentalismo das vanguardas históricas em oposição à
“objetividade” da “fotografia direta”. Como último momento, na quarta fase, será dado destaque
à experiência da “fotografia subjetiva” com sua influência na fotografia moderna brasileira, e a
retomada da fotografia estenopeica no contexto artístico pós década de 1960.
Desenho ilustrando a projeção de imagens externas através de um orifício em uma cabana do paleolítico.
Algumas imagens de gravuras da época podem ter sido feitas pelo decalque direto dessas imagens
projetadas pelo princípio da camera obscura.
36
Os estudos sobre a teoria da “paleo-camera”, desenvolvidos por Matt Gatton, pesquisam a influência da observação
das imagens formadas pelo princípio da camera obscura, como uma das experiências perceptivas que contribuíram
para a compreensão das representações bidimensionais. Gatton simula algumas situações em diferentes modelos de
cabanas paleolíticas, reconstruídos por arqueólogos na Bélgica, para mostrar que os desenhos gravados nas pedras,
podem ter sido feitos através do decalque direto das imagens externas, projetadas no interior das cabanas através dos
orifícios na pele que as revestia. (GATTON, 2007).
79
Com uma mão sobreposta à outra, os orifícios que se formam no cruzamento entre os dedos permite a
projeção de imagens do eclipse parcial do sol, simulando a experiência de Aristóteles.
37
“Why is it when the sun passes through quadrilaterals, as for instance in wicker work, it does not produce figures
rectangular in shape, but circular (Aristotle 1936:333,341 apud GREPSTAD, 2006, s.p; Aristóteles, Livro XV, 6
apud RENNER, 2000, p.4)
38
“Why is it that an eclipse of the sun, if one looks at it through a sieve or through leaves, such as a plane-tree or
other broadleaved tree, or if one joins the fingers of one hand over the fingers of the other, the rays are crescent-
shaped where they reach the earth? Is it for the same reason as that when light shines through a rectangular peep-
hole, it appears circular in the form of a cone? [...]” (Aristotle 1936:333,341 apud GREPSTAD, 2006, s.p;
Aristóteles, Livro XV, 6 apud RENNER, 2000, p.4)
80
Althazen, (Ali al Hasan, ou ainda Ibn al-Haytham), astrônomo e óptico árabe, descreve,
por volta do ano 1020, os conceitos e fundamentos dos fenômenos ópticos de formação de
imagens por meio de experimentos práticos e não de teoria, e propõe, para isso, o uso de uma
camera obscura. (CANTÃO, 2005). Nos séculos seguintes, os cientistas passaram a utilizar o
princípio da camera obscura para estudar fenômenos ópticos, inspirados em Althazen.
No séc. XVI, o astrônomo Gemma Frisius, que utilizava a técnica para observar eclipses
solares, registrou em seu livro De Radio Astronômica et Geométrico (1545), a primeira ilustração
que se conhece de uma camera obscura.
O termo camera obscura é creditado a Johannes Kepler (1571-1630) (do latin camera
significando quarto e obscura se referindo a escuro). No Renascimento, a técnica passou a ser
utilizada principalmente por cientistas na observação astronômica. A partir do século XVI, o
instrumento foi aperfeiçoado, com a inclusão de uma lente no lugar do orifício, e passou a ser
utilizado também pelos artistas, com a finalidade de auxiliar na produção de desenhos fiéis à
natureza, de acordo com o sistema da perspectiva renascentista.
Descrições sobre a utilização da camera obscura, também são encontradas em escritos de
Leonardo da Vinci (Codex Atlanticus e Manuscript D), e posteriormente por Giovanni Batista
della Porta (1538-1615). A grande repercussão do trabalho de della Porta (Magia Naturalis,
1558) creditou a ele, erroneamente, a invenção da camera obscura.
39
Disponível em <http://www.acmi.net.au/AIC/CAM_OBS_LOUVAIN_1544.GIF>. Acesso em: 21 set 2006.
81
Durante o século XIX, muitas câmeras obscuras foram construídas com fins de
entretenimento. Eram grandes ambientes, onde as pessoas entravam, para observar as cenas
externas. Algumas dessas construções existem ainda hoje.40
40
Muitas informações sobre grandes câmeras escuras podem ser encontradas online na página de Jack e Beverly
Wilgus, The magicmirror of life: an apreciation of the camera obscura. Disponível em:
<http://brightbytes.com/cosite/cohome.html>. Acesso em: 21 set. 2006.
82
XIX, a fotografia sobre papel passou a predominar por permitir a difusão da imagem numa escala
maior.
41
Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/wiltshire/content/image_galleries/lacock_fox_talbot_gallery.shtml>. Acesso
em: 12 abr. 2008.
83
a ela uma dimensão industrial, colocando ao alcance de um público cada vez maior, a
possibilidade de ter seu retrato de forma simples e barata. (FABRIS, 1998b).
Se, de um lado, existiu esse discurso realista por parte da fotografia documental, ainda
no século XIX, alguns fotógrafos procuraram, ao contrário, explorar suas potencialidades plásticas,
deslocando o discurso de cópia fiel e instaurando a fotografia como realidade construída.
No caminho contrário ao da massificação da fotografia, por sua crescente
industrialização de equipamentos e materiais, alguns fotógrafos “amadores” como Julia Margareth
Cameron e o escritor Lewis Carrol, desligados do mercado fotográfico, buscaram, na fotografia,
um meio de expressão artística. (MELLO, 1998). Annateresa Fabris (1998c) cita ainda os
fotógrafos David Octavius Hill, Robert Adamson, Gustave Le Gray, Nadar, e Antoine Samuel
Adam Salomon, por procurarem explorar as possibilidades plásticas da fotografia em busca de
efeitos artísticos.
Neste primeiro momento, a pintura foi a principal referência da “fotografia artística”.
Segundo o pensamento da época, a maneira mais lógica de garantir para a fotografia o estatuto de
obra de arte seria fazer a fotografia incorporar os princípios da arte acadêmica, tanto na temática
quanto na técnica (COSTA, 1995).
Pictorialismo
Heloise Costa (1998) descreve três principais correntes da fotografia artística, que
passaram a ser conhecidas, indistintamente, como Pictorialismo.
A primeira delas teve início na década de 1850, tendo como maior representante, o
pintor Oscar Gustave Rejlander. Suas imagens resultavam da combinação de vários negativos.
Esse processo, denominado impressão composta, utilizado inicialmente por questões técnicas,
para resolver o problema do foco em diferentes planos, é incorporado por Rejlander com o
objetivo de dar sentido artístico a suas obras. (MELLO, 1998). Sua obra mais famosa é The two
ways of life (1857) - Os dois caminhos da vida -, que combina mais de trinta negativos diferentes
para produzir um tema alegórico com personagens míticos. A obra obedecia à iconografia da
pintura acadêmica, imitando, inclusive, a pose das figuras que evocavam estátuas greco-romanas
(FABRIS, 1998c). No caminho contrário ao das idéias correntes da fotografia como registro fiel
da realidade, Rejlander molda os recursos da técnica fotográfica assim como o próprio real, com o
objetivo de expressar uma idéia. (MELLO, 1998) “[...] à medida que a fotografia é reconhecida
85
Numa segunda corrente, Costa (1998) destaca o pintor Henry Peach Robinson, que
também se dedicou a produzir imagens através da fotomontagem. Diferentemente de Rejlander,
Robinson buscava uma fotografia de cunho realista. Sua obra mais famosa é Fading away (1858)
– Uma vida que se apaga -, que associa cinco negativos diferentes para criar uma imagem que
simula a morte de uma jovem cercada por seus parentes. A montagem dos diferentes negativos
permitia, ao fotógrafo, representar os objetos posicionados em planos distintos com o foco
apropriado, mantendo a relação entre as diferentes distâncias e corrigindo assim, os problemas
técnicos causados pela lente. A fotografia podia ser dividida em várias partes, que eram depois
reunidas em um só papel. Isso fazia que cada parte da imagem recebesse atenção especial,
obtendo-se maior perfeição nos pormenores. O objetivo era reforçar a atmosfera e os detalhes que
ampliassem a dramaticidade da cena. (MELLO, 1998).
Se contrapondo ao “academicismo” de Rejlander e Robinson, com cenas posadas em
estúdio e montadas de forma artificial, Peter Henry Emerson propôs uma volta à natureza como
42
Disponível em: <http://www.geh.org/fm/rejlander/htmlsrc2/m197808410001_ful.html#topofimage>. Acesso em
21 abr. 2008.
86
fonte de inspiração. Sua fotografia, denominada “naturalista”, tinha por base as pesquisas
científicas de então, sobre a visão humana. Diferentemente da imagem captada pela câmera
fotográfica, a percepção do olho humano não tinha a precisão de foco da fotografia. O campo de
visão do olho não é inteiramente uniforme. Os olhos enxergam com nitidez apenas a área central
da imagem. Assim, Emerson buscava aproximar a imagem fotográfica da experiência visual
humana, defendendo que, para reproduzí-la, o fotógrafo deveria deixar a lente ligeiramente “fora
de foco”. (JANSON, 1993). A percepção que se tem da natureza, segundo Emerson, é mediada
pelo olhar humano, e a imagem captada pela câmera não representa esse olhar. A seleção das
informações acontece de acordo com as características técnicas do processo e da intermediação do
fotógrafo. Assim, a fotografia reproduz a realidade de forma muito distinta da visão humana.
Mello comenta que as discussões da fotografia acadêmica e da fotografia naturalista
articularam as idéias do pictorialismo:
Essas técnicas de manipulação e intervenção faziam com que a fotografia perdesse sua
ligação com o “real”, afastando-a de sua referência direta à natureza e, ao mesmo tempo, da
prática documental do século XIX. Diretamente influenciada pela pintura impressionista, essa
prática fotográfica, “de foco suave e temática afetada”, caracteriza a terceira corrente da fotografia
artística, dentro do que se conhece como pictorialismo, citada por Costa (1998), e que se
difundiu a partir do final do século XIX.
43
Disponível em: < http://www.metmuseum.org/special/Gilman/view_1.asp?objectID={273FAA58-16E6-443B-
8847-29DA4A78D37E}&imageID={A80F74AC-706E-4CBD-974A-69120D91C537}>. Acesso em: 25 abr. 2008.
89
de estruturação da imagem. [...] Por mais conservadoras que tenham sido suas
intenções, abriu um vasto campo de questionamento para a fotografia por meio
do experimentalismo. (COSTA & SILVA, 2004)
Fotografia de movimento
44
Disponível em: <http://www.masters-of-photography.com/M/muybridge/muybridge_galloping_horse_full.html>.
Acesso em 21 abr. 2008.
45
Segundo Machado o conceito de anamorfose é utilizado, a partir do século XVII, para designar procedimentos que
consistem em relativizar ou mesmo “perverter” os cânones da perspectiva geométrica do Renascimento. Ele utiliza o
termo anamorfoses cronotópicas para se referir às “deformações” que resultam da inscrição do tempo na imagem. O
termo cronotopo deriva das idéias de Bakthin quanto à “materialização privilegiada do tempo no espaço”: a
possibilidade de encarar o tempo como uma categoria que tem uma expressão sensível, que se mostra na matéria
significante, e que pode, portanto, ser modelada artisticamente. (MACHADO, 1993, p. 100).
91
Figura 20: Étienne-Jules Marey, homem correndo vestindo roupa negra com listras brilhantes,
1880-90.
Fonte: Homepage Expo Marey.46
Além de Muybridge e Marey, o físico francês Jules Janssen, o pintor americano Thomas
Eakins e o médico Francês Albert Londe, também realizaram estudos do movimento por meio da
fotografia no mesmo período. (SOUGEZ, 1988; MACHADO, 1993)
Esses experimentos, de registro fotográfico do movimento, transmitem o sentimento
tipicamente moderno da dinâmica, refletindo o novo ritmo de vida da idade da máquina.
(JANSON, p. 938) Ao mesmo tempo, alteraram os padrões de representação do movimento nas
artes visuais. As imagens seqüenciais de Muybridge e, mais especificamente, a cronofotografia de
Marey, vão influenciar diretamente o trabalho de artistas como Duchamp, em Nu Descendan
l’Escalier (1912) e principalmente dos futuristas italianos, no início do século XX. O
fotodinamismo, dos futuristas Anton Giulio, Arturo e Carlo Ludovico Bragaglia, tem como
ponto de partida a cronofotografia de Marey, por sua potencialidade em dissolver as figuras e
gerar anamorfoses. (MACHADO, 1993).
Fotografia estenopeica
Com relação à fotografia estenopeica, é importante ressaltar que ela não foi precursora
da fotografia tradicional. As cameras obscuras já utilizavam lentes antes mesmo do surgimento da
fotografia. Os primeiros processos fotográficos exigiam tempos de exposição muito longos, devido
à pequena sensibilidade dos materiais sensíveis, o que dificultava ainda mais a obtenção de
imagens sem a utilização de lentes. Renner (2000) cita o cientista Inglês David Brewster como um
46
Disponível em: <http://www.expo-marey.com/home.html>. Acesso em: 21 abr. 2008.
92
dos pioneiros na fotografia com câmeras de orifício e credita a ela o termo pin-hole, utilizado por
Brewster em seu livro The Stereoscope, de 1856.
No campo da documentação, o conjunto de fotografias estenopeicas mais antigo que se
tem conhecimento foi feito pelo arqueólogo inglês Flinders Petrie, durante suas escavações no
Egito, na década de 1880. (RENNER, 2000)
Figura 21: Flinders Petrie, Waiting to Begin Work, Egito, 1883 84.
Fonte: Renner, 2000.
Flinders Petrie utilizava a fotografia estenopeica para registrar suas expedições por causa da grande
profundidade de campo que ela permite. Sua câmera tinha duas opções de tamanho de orifício e o tempo
exposição variava de 2 seg. a no máximo 30 seg.
Figura 22: George Davison, An Old Farmstead, ou The Onion Field, 1890.
Fonte: Renner, 2000.
A repercussão do prêmio de Davison rendeu a seguinte crítica do jornal inglês Times: “É realmente uma
piada para com os ópticos, depois de exaustivas pesquisas científicas para desenvolver uma lente perfeita,
o melhor trabalho poder ser produzido com instrumento óptico não mais elaborado do que um pedaço
de folha metálica com um pequeno furo.” (RENNER, 2000, p. 47)47
O uso de câmeras sem lentes é ainda defendido por Alfred Maskell num artigo para o
informativo Photographic Quaterly de outubro de 1890.
É surpreendente como poucas pessoas estão cientes do fato de que uma imagem
fotográfica pode ser obtida com a forma mais simples de camera obscura; ou
seja, sem a adição de lentes, e por meio apenas de uma abertura de dimensões
muito pequenas através da qual os raios de luz podem atingir e imprimir sobre
uma placa sensível. [...] O objetivo deste artigo é chamar a atenção para um
assunto do interesse de um certo grupo de fotógrafos [...] que buscam o
reconhecimento artístico de fotografias que, ao invés de mostrar a intensa
definição característica da fotografia como normalmente se conhece, têm, ao
contrário, a definição, ou a nitidez de foco, mais ou menos modificada. [...] Em
minha opinião, o melhor método para produzir esses resultados é aquele no
qual a lente é inteiramente suprimida, e uma simples abertura, de diâmetro
muito pequeno é usada no seu lugar. (MASKELL, 1890, p. 17-18)48
47
Tradução livre do texto em inglês: “It is certainly a satire on the labours of the optician that after the resources of
science have been exhausted to produce a perfect lens, the best work can be produced with no more eleborate optical
instrument than a bit of sheet metal with a hole pierced in it.” “Exhibition of the Photographic Soociety”, Times
(Londres) 29 de setembro de 1890. (RENNER, 2000, p. 47)
48
Tradução livre do texto em inglês: “It is surprising how few people are aware of the fact that a photographic picture
can be made with the simplest form of camera obscura; that is to say, without the aid of any glass lens, and by means
only of an aperture of very small dimensions through which the rays of light are allowed to fall upon and impress the
sensitive plate. […] The object of this paper is, therefore, to endeavour to attract general interest to a subject which
94
has of late been steadily making progress amongst a certain section of photographers – viz. , the claims to artistic
recognition of pictures which, instead of showing the intense definition characteristics of a photograph as generally
understood, have, on the contrary, that definition, or sharpness of focus, more or less modified. […] in my opinion
the best method of producing this result is that I which the lens is entirely suppressed, and a simple aperture of more
or less minute diameter used in its stead. .” (MASKELL, 1890, p. 17)
95
fotográfica. Inicialmente, essas propostas estéticas foram seguidas por um grupo de fotógrafos
conhecido como a Escola Americana, com nomes como Paul Strand, Edward Steichen, Clarence
H. White, Gertrude Käsebier, Edward Weston e Ansel Adams.
Na Europa, os primeiros indícios dessa proposta fotográfica começam a aparecer de
maneira sutil, na primeira década do século XX, nas imagens do fotógrafo francês Eugène Atget.
As fotografias de Atget retratavam, com simplicidade, mas com uma técnica apurada, temas
comuns da paisagem urbana de Paris, como vendedores ambulantes e lojas de bairro. Atget
influenciou a geração de fotógrafos que ficou conhecida como a Escola de Paris, na qual
figuraram nomes como André Kertész, Gyula Halasz conhecido como Brassaï e Henri Cartier-
Bresson.
Considerado um dos criadores do fotojornalismo artístico, Cartier-Bresson sintetiza, em
sua obra, alguns dos conceitos do grupo. Os cuidados com a composição e com o ato de
fotografar são levados ao extremo com a idéia do “momento decisivo”. O termo, cunhado por
Bresson define o reconhecimento do ato fotográfico como sendo o momento exato para a
captação da fração de segundo essencial para a organização visual de um acontecimento no
“momento mais intenso da ação e da emoção, de modo a revelar seu significado intrínseco e não
apenas a registrar sua ocorrência” (JANSON, 1993, p. 1049). (Figura 23)
49
Disponível em: <http://www.laurencemillergallery.com/currentexhibition.htm>. Acesso em: 25 abr. 2008.
97
estranhamento causado pela imagem, fazendo com que o observador adote uma postura ativa na
leitura da imagem, e evidenciando a presença do artista como construtor (enunciador) da
representação.
Essas idéias aparecem também nas propostas de artistas plásticos como Kasimir
Malévitch e El Lissitzky, e do movimento Suprematista, que defendia a supremacia da
sensibilidade sobre o próprio objeto. “Malevitch [...] dizia que as aparências exteriores da natureza
não tinham para ele nenhum interesse, o essencial era a sensibilidade, livre das impurezas que
envolviam a representação do objeto, mais do que isso, que envolviam a própria percepção do
objeto” (MORAIS, 1991: 70). Ligados, mais diretamente, ao Abstracionismo, esses artistas
trabalhavam com as imagens fotográficas, que são destinadas, de algum modo, à reprodução do
real, de uma abstrata. Suas composições partiam de fotografias aéreas que mostravam imagens
abstratas, desvinculadas de qualquer relação figurativa. Definindo uma maneira diferente de
perceber e representar o espaço, que não mais reproduz a perspectiva renascentista, essas imagens
constituem um novo tipo de relação entre o sujeito e o mundo. A realidade é transformada e
precisa ser decodificada (DUBOIS, 1994).
As fotografias aéreas podiam ser imagens tomadas de avião, exibindo paisagens “transformadas”, de difícil
identificação – “sem horizonte, nem profundidade, sem buracos, nem saliências, achatadas,
geometrizadas, ‘abstratizadas’, metamorfoseadas em texturas, em configurações cromáticas ou formais, em
jogos de formas ‘a serem interpretadas’” (DUBOIS, 1994 p. 261). Podiam ainda ser imagem tomadas
verticalmente do solo, mostrando esquadrilhas de aviões.
99
Figura 26: László Moholy-Nagy, From the Radio Tower Berlin, 1928.
Fonte: Homepage MOMA.50
50
Disponível em:
<http://www.moma.org/collection/browse_results.php?criteria=O%3AAD%3AE%3A4048&page_number=19&tem
plate_id=1&sort_order=1>. Acesso em: 25 abr. 2008.
100
Ainda na Alemanha, a liberdade de expressão proposta pela Nova Visão seria fortemente
contestada, no final da década de 1920, por um grande grupo de fotógrafos sob a denominação
de Nova Objetividade. Com princípios formalmente muito próximos daqueles da fotografia
direta americana, a Nova Objetividade traz o preciosismo técnico e a uniformidade de pontos de
vista para criar imagens de texturas, seqüências de objetos, detalhes arquitetônicos e de produtos
industriais diversos, tentando dar conta da realidade material das coisas de modo impessoal
(COSTA, 1995). Com nomes como Albert Renger-Patzsch, August Sanders e Karl Blossfeld, as
idéias propostas pela Nova Objetividade obtêm grande repercussão, inclusive dentro da Bauhaus.
Paralelamente à discussão estética, estabeleceu-se um confronto ideológico. As idéias da Nova
Visão foram perseguidas e combatidas pelo Nazismo, que encontrou nos princípios da Nova
Objetividade, os padrões estéticos preconizados pelo regime. Na Alemanha, o experimentalismo
na fotografia só reapareceria na década de 1950, com as propostas do grupo Fotoform, no que
viria a ser chamado de Fotografia Subjetiva (COSTA, 1995).
Na França, o nome do pintor norte-americano Man Ray se destaca por suas
experimentações com a técnica fotográfica. Na década de 1920, ele fez parte do que viria a ser
chamado de Vanguarda Francesa na fotografia, que estava ligada mais diretamente ao
Surrealismo51 e ao Dadaísmo52. Man Ray alterava o processamento químico fotográfico para
51
Surrealismo. O manifesto inaugural foi publicado em Paris, em 1924. Nele, André Breton define o surrealismo
como um “automatismo psíquico puro”, ou a “ausência do controle exercido pela razão, com exclusão de toda
preocupação estética e moral” (MORAIS, 1991) O termo traz consigo um sentido de afastamento da realidade
ordinária. Trata-se, segundo Breton, de “resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação
de uma realidade absoluta, uma supra-realidade”. Sob a influência da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, os
artistas tiram partido do imaginário e dos impulsos ocultos da mente para produzir suas obras. O movimento fez uso
de variados canais de expressão - revistas, manifestos, exposições etc. - mobilizando diferentes modalidades artísticas:
escultura, literatura, pintura, fotografia, artes gráficas e cinema. Na literatura, além de Breton, destacam-se os nomes
de, Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Bataille, Michel Leiris, Max Jacob, etc. Nas artes plásticas, René
Magritte, André Masson, Joán Miro, Max Ernst, Salvador Dali, entre outros. Na fotografia, Man Ray, Dora Maar e
Brasaï. No cinema, Luis Buñuel. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008).
52
O Dadaísmo ou Dada apresenta-se como um movimento de ampla crítica cultural, que interpela não somente as
artes, mas modelos culturais, passados e presentes. As manifestações dos grupos dada são intencionalmente
desordenadas e pautadas pelo desejo do choque e do escândalo. O dadaísmo é inaugurado oficialmente com a criação
101
distorcer a imagem obtida pela câmera, utilizando, por exemplo, solarizações ou mudanças
bruscas de temperatura que provocavam granulação e texturas nas imagens. Ele também
desenvolveu uma série de trabalhos utilizando o que chamou de rayograph. Os rayogramas de
Man Ray eram obtidos exatamente pelo mesmo processo técnico do fotograma utilizado por Fox
Talbot nos photogenic drawings. (desenhos fotogênicos). Objetos eram colocados sobre o papel
fotográfico que em seguida era exposto à luz, gravando no papel a silhueta, a sombra dos objetos,
as diferenças de claro e escuro e as texturas, de acordo com a transparência ou opacidade do
objeto. Outros artistas como Moholy Nagy e Christian Schad também utilizaram o fotograma,
para produzir, fotograficamente, imagens abstratas sem a utilização da câmera. (NEWHALL,
1993)
do Cabaré Voltaire, em Zurique, 1916, pelos escritores alemães H. Ball e R. Ruelsenbeck, e pelo pintor e escultor
alsaciano Hans Arp, o clube literário - ao mesmo tempo galeria de exposições e sala de teatro - promove encontros
dedicados à música, dança, poesia, artes russa e francesa. O movimento se difunde em diferentes grupos, em diversas
cidades, aproximados pelo espírito de questionamento crítico e pelo sentido anárquico das intervenções públicas,
num clima de desilusão e ceticismo instaurados pela 1ª Guerra Mundial, que alimenta reações extremadas por parte
dos artistas e intelectuais em relação à sociedade e ao suposto progresso social. Na Alemanha, destacam-se os nomes
de R. Ruelsenbeck, R.Haussmann, Johannes Baader, John Heartfield, G.Groz e Kurt Schwitters. Em Colônia, Max
Ernst. Albert Gleizes e A. Cravan, em Barcelona.. Em Nova York, Francis Picabia, Marcel Duchamp e Man Ray. Nas
artes visuais, os ready-made de Duchamp constituem um dos melhores exemplos do espírito que caracterizou o
dadaísmo. Ao transformar qualquer objeto escolhido ao acaso em obra de arte, Duchamp realiza uma crítica radical
ao sistema da arte. Assim, objetos utilitários sem nenhum valor estético em si são retirados de seus contextos originais
e elevados à condição de obra de arte ao ganharem uma assinatura e um espaço de exposições, museu ou galeria. No
Brasil são citadas influências dadaístas nos trabalhos de artistas como Ismael Nery, Cicero Dias, Jorge de Lima e
Flávio de Carvalho. (MORAIS ,1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008).
53
Disponível em: <http://www.geh.org/amico2000/htmlsrc/m197900950001_ful.html#topofimage>. Acesso em: 25
abr. 2008.
102
54
Disponível em: <http://www.doctorhugo.org/synaesthesia/art/index.html>. Acesso em: 25 abr. 2008.
103
Neste período, cabe destacar alguns momentos nos quais o experimentalismo fotográfico
se fez presente. O primeiro deles é a constituição de alguns grupos de fotógrafos que renovaram o
ambiente fotoclubista internacional. Esses grupos absorvem as idéias modernistas, buscando
aprofundar as possibilidades do meio fotográfico, sem, no entanto, se prender apenas ao específico
fotográfico ou à radicalidade das posturas pictorialistas. É o caso dos grupos Combined Society de
Londres, o Groupe des XV da França, o La Bussola da Itália, o La Ventana do México, o La
Capeta de los Diez da Argentina, e o mais conhecido deles, o grupo Fotoform da Alemanha. No
Brasil, a influência das idéias desses grupos pôde ser percebida claramente na produção do Foto
Cine Clube Bandeirantes. (COSTA & SILVA, 2004). A experimentação se destaca também na
retomada da fotografia estenopeica a partir do final da década de 1960, como uma alternativa
para explorar as possibilidades do meio fotográfico.
O grupo Fotoform da Alemanha surge, na década de 1950, a partir da reunião de alguns
fotógrafos como Wolfgang Reisewitz, Heinz Hajek-Halke e Peter Keetman que procuram rever a
herança da fotografia do período de vanguarda, especialmente da Bauhaus para propor uma
atuação contemporânea. Em seguida, se junta ao grupo Otto Steinert, que, ao lado de Frans Roh
e Eisenwerth, seria o nome de maior destaque do grupo. Steinert foi o teórico do que viria a ser
104
chamado de Fotografia Subjetiva, cujo conceito, em clara oposição à Nova Objetividade, era a
valorização da visão pessoal e a retomada do experimentalismo como base de uma fotografia
criativa. (COSTA, 1995).
Figura 29: Otto Steinert, Lamps at the Place de la Concorde, luminograma, 1952.
Fonte: Homepage IFA - Institute for Foreign Cultural Relations – Alemanha. 55
55
Dispon[ivel em: < http://cms.ifa.de/en/exhibitions/exhibitions-abroad/foto/subjektive-fotografie/>. Acesso em: 25
abr. 2008.
105
Neste, como em outros trabalhos, Barros substitui os limites precisos do papel fotográfico retangular, por
um formato irregular, mais adequado a imagem por ele criada. As intervenções gráficas na imagem,
através de desenho com tinta nanquim e riscos com ponta seca, são feitas diretamente sobre o negativo,
mantendo o caráter de reprodutibilidade das imagens.
106
Se, durante o século XIX, a fotografia esteve marcada por seu poder de analogia, como
reprodução fiel da realidade, ao longo do século XX, se observa um esforço da fotografia em
anular esse vínculo com o real, enfatizando seu poder de transformação e reconstrução da
realidade. No entanto, a partir da década de 1950, algumas práticas artísticas, ao invés de negar a
ligação que a imagem fotográfica tem com o real, assumem a fragilidade dessa ligação, tirando
partido dela e ao mesmo tempo redefinindo a noção de realismo da imagem fotográfica, em
práticas que se apropriam da fotografia, explorando e reinventando as “realidades” representadas
em suas imagens. (ENTLER, 2005)
As questões não estão mais polarizadas entre a mimese e a desconstrução, entre uma
fotografia documental e outra artística, ou entre a especificidade do meio ou o domínio técnico, e
as possibilidades de experimentação e intervenção, mas a integração, material e simbólica, do
fotográfico, ou, nas palavras de Dubois:
Fotografia estenopeica
construção de câmeras estenopeicas, quase sempre buscando conformações diferentes das câmeras
convencionais – outros formatos, vários orifícios.
Paralelamente às experimentações artísticas, dois cientistas também trabalharam com a
fotografia estenopeica. Kennet A. Connors, nos Estados Unidos, pesquisou a definição e a
resolução de imagens formadas através de orifícios. Na Inglaterra, Maurice Pirenne utilizou a
óptica da fotografia estenopeica para estudar a perspectiva em seu livro Optics, Painting and
Photography, de 1970.
Aos poucos, a prática da fotografia estenopeica se popularizou e, no final dos anos 1970,
a técnica passou a ser utilizada associada a processos fotográficos históricos, como o cianótipo, a
goma-bicromatada, a platinotipia, entre outros. A fotografia estenopeica era o ponto de partida
para qualquer processo de impressão que necessitasse de negativos de grandes formatos. Uma
câmera para acomodar grandes negativos poderia ser feita de qualquer material. (RENNER,
2000).
A partir da década de 1980, com a publicação do livro The Visionary Pinhole (1985), de
Lauren Smith, e a organização de algumas exposições, a diversidade de experiências artísticas com
a fotografia estenopeica começa a ser divulgada. (RENNER 2000).
Além de fabricar suas próprias câmeras, ou reaproveitar caixas e latas, ou ainda, adaptar
câmeras fotográficas convencionais, por meio da substituição da lente pelo orifício, os usuários
têm a opção de comprar uma câmera estenopeica pronta. Renner (2000) cita pelo menos seis
câmeras diferentes produzidas comercialmente na década de 1980.
A técnica passa a ser incorporada às práticas experimentais das mais diversas. O corpo é
utilizado como câmera, como nos trabalhos de Thomas Bachler (Figura 107 e Figura 108, p.
176), Paolo Gioli (Figura 98, p.169) e Jeff Guess (Figura 96 e Figura 97, p.168). Objetos diversos
são transformados em câmera (Figura 101, p.170; Figura 104, p.171; Figura 95, p.167), e a
própria câmera passa a fazer parte da obra. (Figura 43, p.134 e Figura 102, p.171)
Os artistas/fotógrafos contemporâneos não se utilizam da fotografia estenopeica em
busca apenas dos resultados plásticos que ela pode permitir – como as distorções de perspectiva, a
dissolução das imagens pelos longos tempos de exposição, ou a possibilidade de grande
profundidade de campo. O que se percebe é que a técnica tem sido, cada vez mais, adotada por
suas potencialidades em questionar, criticamente, a fotografia tradicional com lentes e os
109
conceitos que estão nela arraigados. Tendência esta que pode ser observada através dos trabalhos
dos diferentes artistas apresentados ao longo desta dissertação.
Não cabe aqui, fechar questão sobre a abrangência do termo Arte Contemporânea, nem
discutir seus limites temporais, ou mesmo a relevância da utilização do termo arte contemporânea
para designar as tendências artísticas mais atuais, menos ainda avaliá-la, uma vez que não existe
um consenso sobre o assunto. Apenas se buscará trazer o contexto da produção artística produzida
nas últimas décadas, que convencionalmente se costuma chamar “arte contemporânea”.
A arte sempre refletiu os valores, as concepções de mundo e as inquietações humanas que
ocorrem no decorrer da história e no interior da sociedade. As inúmeras transformações e
alterações entre os diferentes estados da arte56 não resultam de atitudes isoladas de artistas ou
grupos, mas são decorrência das modificações em outros campos da atividade humana, do pensar
e do fazer.
O contexto cultural e artístico das últimas décadas, ao menos nas sociedades ocidentais
urbanizadas, reflete os rumos instáveis e complexos do pensamento e da vida contemporâneos.
Transformações decorrentes, por um lado, das alterações nos cenários: econômico, político, e
tecnológico pós segunda guerra – a mundialização da economia, o novo modelo de produtividade
capitalista, as novas redes de comunicação; e, por outro, resultado da evolução do pensamento
científico - com a teoria da relatividade, a mecânica quântica e a teoria da incerteza. O
estreitamento das noções de tempo e de espaço, a visão de mundo estático e sujeito a leis
imutáveis e deterministas é substituído por outro instável e dinâmico, onde predominam a
incerteza, o acaso e a multiplicidade (FOGLIANO, 2002). O comportamento instável do
universo e a nova divisão política e social do planeta fazem com que os valores desse novo período
– o instável, o transitório, o fragmentário, o descontínuo, o caótico - sejam incorporados à vida e
ao pensamento humano.
56
Quando se fala de estado da arte se está referindo às características de um modo de ser e fazer artístico: arte
figurativa, arte abstrata, arte construtiva, arte performática entre outros. As escolas ou movimentos artísticos – ismos -
podem apresentar mais de um estado da arte; “a arte cinética, por exemplo, tem aspectos construtivos e tecnológicos”
(MORAIS, 1991, p. 15).
110
Esses valores que passam a ser objetos da discussão de alguns dos principais movimentos
artísticos desse período: a liberdade do gesto do Expressionismo Abstrato57, a aproximação entre
obra de arte e cultura de massa da Pop Arte58 e a priorização do conceito e da atitude mental em
relação à aparência da obra da Arte Conceitual.59. A participação do observador na construção da
obra foi uma preocupação estética e cultural que fez parte, sob as mais variadas formas, da maioria
dessas correntes artísticas do final da década de 1950 até a década de 70.
A participação do observador é fundamental na obra de arte de qualquer tempo.
Retomando as idéias do Círculo de Bakhtin, a comunicação artística é um tipo especial de
comunicação que depende profundamente da relação que se estabelece no diálogo entre autor e
espectador. “Ela se torna arte apenas no processo de interação entre criador e contemplador”
(VOLOSHINOV, 1976, p.4). Vista do lado de fora desta comunicação, a obra se torna apenas
um artefato que não pode se tornar um “médium”, o meio de sua comunicação, não pode
igualmente ser recipiente de valor artístico (VOLOSHINOV, 1976). Para Bakthin e Voloshinov,
uma obra só se completa com a participação ativa do que Bakhtin chama de “compreendente
ativo”, um ser humano ou uma cultura toda que, ao se deparar com a obra responde a ela,
renovando seu sentido, compreendendo-a, dando-lhe acabamento. (JALLAGEAS, 2007)
57
Expressionismo Abstrato refere-se a um movimento artístico que tem lugar em Nova York, no período
imediatamente após a 2ª Guerra Mundial. Numa explicação simplificada, no Expressionismo Abstrato a
racionalidade é substituída pela subjetividade e pelo inconsciente. A obra de arte passa a ser fruto de uma relação
corporal do artista com a obra que nasce da liberdade de improvisação, do gesto espontâneo, da expressão de uma
personalidade individual. Diante da diversidade de obras produzidas algumas figuras e técnicas acabaram diretamente
associadas ao expressionismo abstrato como a “action painting” de Jackson Pollock e a “color field painting” de Mark
Rothko. Dentre outros artistas, se destacam também, Adolph Gottlieb, Willem de Kooning, Ad Reinhardt, Arshile
Gorki, Robert Motherwell, Barnet Newman e Isamu Noguchi. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes
Visuais, 2008)
58
A expressão Pop Art criada pelo crítico britânico Lawrence Alloway (1926 – 1990) batiza um movimento que
segue a idéia de uma “arte popular” que se comunique diretamente com o público por meio de signos e símbolos
retirados do imaginário que cerca a cultura de massa e a vida cotidiana. A defesa do popular traduz uma atitude
artística contrária ao hermetismo da arte moderna. Um de seus traços característicos é a incorporação das histórias em
quadrinhos, da publicidade, das imagens televisivas e do cinema. Entre os artistas mais destacados cita-se: David
Hokney, Richard Hamilton, Eduardo Luigi Paolozzi, Richard Smith, Peter Blake, Andy Warhol, Roy Lichtenstein,
Claes Oldenburg, James Rosenquist e Tom Wesselmann. No Brasil, são citados trabalhos de Antonio Dias, Rubens
Gerchman, Claudio Tozzi e Wesley Duke Lee. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
59
Para a Arte Conceitual, vanguarda surgida na Europa e nos Estados Unidos no fim da década de 1960 e meados
dos anos 1970, o conceito ou a atitude mental tem prioridade em relação à aparência da obra. O mais importante
para a arte conceitual são as idéias, a execução da obra fica em segundo plano e tem pouca relevância. A arte deixa de
ser primordialmente visual, feita para ser olhada, e passa a ser considerada como idéia e pensamento. Muitos
trabalhos que usam a fotografia, xerox, filmes ou vídeo como documento de ações e processos, geralmente em recusa
à noção tradicional de objeto de arte, são designados como arte conceitual, como as performances do Grupo Fluxus,
apesar do grupo ser descrito por Maciumas como Neo-Dadá. Entre os artistas citados se destacam: Robert Barry,
Joseph Kosuth, Lawrence Weiner, Douglas Huebler, Vito Acconci, Chris Burden e Bruce Nauman. Do Grupo
Fluxos – George Maciunas, Joseph Beuys, Wolf Vostell, John Cage, Nam June Paik e Yoko Ono. No Brasil são
citados: Cildo Meireles, Antonio Dias e Waltércio Caldas. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes
Visuais, 2008)
111
Esse conceito, trazido para as obras contemporâneas, se expande para além dos limites da
recriação pela interpretação, a ponto de converter o receptor em co-criador da obra. A intervenção
ativa do espectador, que pode agir sobre a obra, transformando-a através da manipulação, é
fundamental para sua plena realização. Pode-se citar os mais diversos exemplos dentro da
produção artística da década de 1960, como os happenings do Grupo Fluxos, os parangolés de
Hélio Oiticica60 ou os bichos de Lígia Clark (1960), para citar apenas alguns exemplos.
Essa preocupação participacionista retorna com maior intensidade e com formas de
participação muito mais elaboradas e expandidas pela introdução das novas tecnologias
“numéricas” na arte recente. “A interação não se produz mais somente entre a obra e o espectador,
mas entre a coletividade dos espectadores, através da obra” (COUCHOT, 2002, p. 102). A obra
deixa de ser fruto exclusivo da autoridade do artista, para se estender a um diálogo em tempo real
com o espectador, que se torna em certa medida seu co-autor. A arte participacionista cede seu
lugar para a arte interativa. (COUCHOT, 2002)
A diminuição progressiva das fronteiras homem-máquina/arte-ciência, trazida pelas
novas tecnologias, evidenciam a interdisciplinaridade dos conhecimentos e ampliam a discussão
sobre as novas posturas perceptivas e os novos problemas de representação que poderão, talvez,
dar conta das novas formas de compreender e de se relacionar num mundo com um número
crescente de recursos e mediações tecnológicas. Essas inquietações, refletidas nas artes, são
traduzidas nos trabalhos dos artistas contemporâneos cada vez mais envolvidos pelas novas
tecnologias digitais tanto na produção como na veiculação de suas obras.
Ao discutir as poéticas tecnológicas contemporâneas, Arlindo Machado (1997) cita
algumas tendências gerais e características estruturais que estão presentes no terreno recente das
“artes midiáticas”: a “multiplicidade” – com a desintegração de qualquer unidade ou
homogeneidade; a “mestiçagem/hibridação” das linguagens – que dissolve as fronteiras formais e
materiais entre os diferentes suportes e as linguagens; “processamento e síntese” – com a
manipulação e a edição digital que colocam em xeque a questão referencial e o valor documental
das imagens técnicas; a “metamorfose” – as imagens anamórficas desconstruídas pela infinita
manipulação eletrônica e a “interatividade” – que pressupõe a intervenção ativa do espectador
para a plena realização da obra, abolindo as fronteiras entre autor e espectador. Características que
60
Sobre Hélio Oiticica, a poética participacionista e Arte Tecnológica Contemporânea ver SPRICIGO (2004)
112
1.4.1 A Fotografia
A eletrônica força hoje a fotografia a viver a sua hora da verdade e a livrar-se das
convenções e das idéias preconcebidas que entravam o seu pleno
desenvolvimento como arte e como meio de comunicação. À medida que o
público for se acostumando às imagens digitalmente alteradas, à medida que
essas alterações se tornarem cada vez mais visíveis e sensíveis, até como uma
nova forma estética, e que os próprios instrumentos dessas alterações estiverem
ao alcance de um número cada vez maior de pessoas, também para a
manipulação no plano doméstico, o mito da objetividade e da veracidade da
imagem fotográfica desaparecerá da ideologia coletiva e será substituído pela
idéia muito mais saudável da imagem como construção e como discurso visual.
(MACHADO, 1997, p. 246)
61
Sobre a diluição das fronteiras ver: MACHADO, 1997, p. 240; MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004, p. 103 e
FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 10.
114
O trabalho Face Codes de Muller-Pohle é composto por fotografias eletrônicas feitas com câmera de
vídeo digital (still vídeo). Todas as imagens foram remodeladas utilizando os mesmos parâmetros. O
texto que corre na parte inferior da imagem representa o código alfanumérico da respectiva imagem
traduzido em ideogramas da língua japonesa.64
62
Still vídeo é o termo usado para a imagem fotográfica que, ao invés de ser registrada em um material físico como o
filme ou papel, é gravada diretamente em um suporte magnético ou ótico.
63
Disponível em: <http://www.muellerpohle.net/projects/facecodes.html>. Acesso em: 24 mar. 2008.
64
Tradução livre do texto em ingles: “The Face Codes, taken in Kyoto and Tokyo, are digital video stills that were
later reworked and typified using identical parameters. The text running along the lower edge of the image, similar to
subtitles in a non-synchronized film, represents the alphanumeric code of the respective image, which has been
translated “back” into the Japanese code. (AMELUNXEN, 2008)”.
115
A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais inquietos, que
desde as vanguardas históricas, deram início a esse percurso de superação dos
paradigmas fortemente impostos pelos fabricantes de equipamentos e materiais,
para, aos poucos, fazer surgir exuberante uma outra fotografia, que não só
questionava os padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, com
65
Existem outras denominações para designar esse tipo de produção fotográfica: fotografia experimental, construída,
contaminada, manipulada, criativa, híbrida, precária, entre tantas outras. Opta-se pelo termo fotografia expandida,
utilizado por Arlindo Machado (2001) e Rubens Fernandes Júnior (2006).
66
Rubens Fernandes Júnior discute a questão da fotografia expandida em sua tese de Doutoramento em
Comunicação e Semiótica, pela PUC/SP, defendida em 2002, sob o título A fotografia Expandida. Em breve, será
publicado também o livro: A fotografia expandida, do mesmo autor pela editora Cosac & Naify.
67
KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the expanded field. In: Revista October, n. 8, primavera de 1979;
YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. Dutton Paperback, 1970. (FERNANDES JÚNIOR, 2006)
116
O fotógrafo que produz a fotografia expandida, além de buscar romper com as barreiras
que tradicionalmente definem as categorias ontológicas da fotografia, procura uma postura
interventora, trabalhando com categorias não previstas na concepção do aparelho, penetrando no
interior da caixa preta e subvertendo as regras estabelecidas, conforme as concepções de Flusser
(2002), abordadas mais adiante, na seção 2.4.1.
Dentro do conceito de fotografia expandida são considerados todos os tipos de
intervenções que possam ampliar os limites da fotografia enquanto linguagem sem se deter em sua
especificidade. Intervenções que ofereçam à imagem final um caráter perturbador, fazendo com
que a fotografia deixe de se relacionar com o mundo visível imediato ligado às aparências, para
provocar o estranhamento68 dos sentidos. Para Rubens Fernandes Júnior, trata-se de
“compreender a fotografia a partir de uma reflexão mais geral sobre as relações entre o inteligível e
o sensível, encontradas nas suas dimensões estéticas” (FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 17). Em
sua pesquisa, ele sugere três níveis de interferência nas imagens a partir de uma conexão entre as
estratégias propostas por Muller-Pohle e as propostas de intervenção no programa do aparelho de
Flusser. Interferências que façam com que as imagens contemporâneas de base fotográfica, que se
afastam cada vez mais de seu caráter de veracidade para se aproximar do mundo da ficção,
superem as limitações do aparelho e alcancem resultados que ultrapassem suas próprias barreiras
(FERNANDES JÚNIOR, 2006).
O primeiro nível de interferência diz respeito ao “artista e o objeto”. Com o arranjo da
cena, a construção da encenação, através de procedimentos como: a reapropriação de imagens; a
encenação do auto-retrato; a nova natureza morta; as construções por miniatura; a direção das
cenas; as instalações e as esculturas; a construção de “realidades”; os diários íntimos; entre outros.
O segundo, diz respeito ao “artista e o aparelho”, se referindo diretamente às propostas de Flusser
com relação ao rompimento com as funções pré-estabelecidas pelos programas dos aparelhos e a
exploração de suas potencialidades escondidas, como: o movimento da câmera durante o registro;
a câmera cega; a superposição de imagens; o desfoque como estratégia de representação; o uso de
68
A expressão estranhamento foi utilizada, nos anos vinte, pelos formalistas russos, sobretudo Chlóvski, para se referir
a um “conjunto de técnicas desconstrução, cuja função seria perturbar as nossas percepções rotineiras forçar a
sensibilidade a ‘estranhar’ o arranjo simbólico que lhe é apresentado”, impedindo o envolvimento inocente e exigindo
o empenho do leitor/espectador para decodificar o “texto”. (MACHADO, 1984, p. 112-113)
117
câmeras artesanais, amadoras, sem lentes (estenopeicas), ou com lentes de baixa qualidade; a
fotografia sem câmera, entre outros. No terceiro nível estão o “artista e a imagem” – “interferindo
na própria fotografia”, ou seja, a intervenção no suporte após o registro da imagem, no negativo
e/ou no positivo, misturando diferentes processos ou combinando-os com outras mídias, ou
transferindo-as para outros suportes. Destacando: a solarização; o fotograma; as fotomontagens;
os processos de revelação forçada ou alterada; a utilização de processos primitivos como o
cianótipo, a heliografia, a fotogravura, o Van Dyke, a goma arábica, o platinótipo; e ainda a
manipulação pós digitalização através de softwares variados.
Para Fernandes Júnior (2006), todas essas interferências, além de outras mais, que
caracterizam a chamada fotografia expandida, foram as respostas encontradas pelos artistas para
suas inquietações com relação à prática fotográfica tradicional impregnada pela idéia de
veracidade e de completude do momento decisivo.
A busca por novos sentidos perceptivos e interpretativos para suas imagens fez com que
os artistas passassem a fazer uma releitura de seus meios de expressão. Nesse caminho, a fotografia,
quando operada no contexto de produção contemporânea de maneira mais conceitual, tem,
muitas vezes, suas qualidades estéticas e seus procedimentos formais, tão importantes para o
fotógrafo contemporâneo, deslocados para estabelecer um outro ponto de vista acerca da arte e de
sua inserção cultural e ideológica. Ponto de vista este, articulado pelo poder que a imagem
fotográfica tem em complementar e requalificar o mundo, devido à sua vinculação com a
realidade. Ao mesmo tempo, a mestiçagem e a hibridação entre os diferentes processos produtivos
caminham, cada vez mais, na direção de um entrelaçamento entre os procedimentos tradicionais,
as posturas das vanguardas históricas e os processos alternativos, resultando em experimentações
que desestabilizam as convenções. Nesse sentido, a fotografia contemporânea se apresenta como
uma obra em aberto que se oferece ao espectador em seus sentidos múltiplos e provisórios
(MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004).
118
69
Sobre o trabalho fotográfico de Geraldo de Barros ver: BATISTA, 2006.
119
anos, as autoras traçam a história visual da fotografia com a propriedade necessária para que se
sinta segurança em apresentar o contexto da fotografia contemporânea a partir de suas pesquisas.
Entre os múltiplos caminhos da fotografia brasileira nas últimas décadas, Magalhães &
Peregrino apresentam, de forma referencial, diferentes estratégias artísticas da fotografia
contemporânea que oscilam entre uma postura documental e uma tendência neopictorialista com
a utilização de procedimentos antigos70, o uso de câmeras estenopeicas71; passa pela utilização de
polaroids, por vezes alterados ou destruídos72, a utilização de novas mídias73, a apropriação de
fotos e uso de textos74, além da utilização de procedimentos pictóricos75 e da construção de
objetos e ou instalações76 e de ações performáticas77. Essas propostas estéticas procuram mostrar a
complexidade e o poder projetivo da imagem, sua capacidade de criar realidades, além de discutir
sobre a presença da subjetividade, da aura, da autonomia, da imanência e da originalidade da
imagem. (MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004).
Paralelamente a essas estratégias artísticas, um número expressivo de fotógrafos
desenvolvem trabalhos voltados a outras temáticas, como a fotografia de natureza, o
fotojornalismo e a fotografia documental, buscando a legitimação de seu trabalho através de uma
atitude autoral.78 Entretanto, este trabalho se deterá em apresentar apenas alguns exemplos de
trabalhos de fotógrafos, cuja postura estética e conceitual rompem mais diretamente com a
linguagem da fotografia tradicional e ajudam a compreender o atual processo de expansão da
fotografia.
A fotógrafa inglesa, Maureen Bisilliat, fez parte de uma geração de fotógrafos
estrangeiros que se estabeleceram no Brasil entre o final da década de 1950 e o final da década de
1960. Essa geração contribuiu para “a criação da imagem de um país de identidade própria, com
70
Via os trabalhos de: Ana Duães, Kenji Ota, Marie Iwariki, Marta Viana.
71
Via os trabalhos de: Paula Trope, Raquel Stolf, Regina Alvarez, Tiago Rivaldo.
72
Via os trabalhos de: Gal Oppido, Cláudio Feijó, Jair Lanes, Márcia Xavier, Marcos Bonisson, Regina Stella, Rose
Van Lengen.
73
Via os trabalhos de: Arthur Omar, Carlos Fadon Vicente, Levindo Carneiro, Luis Monforte, Mickele Petruccelli,
Milton Montenegro.
74
Via os trabalhos de: Rosângela Rennó, Odires Mlászho, Rogério Ghomes, Cristina Miranda, Cristina Guerra.
75
Via os trabalhos de: Alex Flemming, Sinvall Garcia, Ana Farache.
76
Via os trabalhos de: Arthur Leandro, Flávya Mutran, Miguel Rio Branco, Rochelli Costi, Rubens Mano.
77
Via os trabalhos de: Amílcar Packer, Brígida Baltar, Hudnilson Jr., Lenora de Barros, Ynaiê.
78
Para informações mais completas sobre os fotógrafos que trabalham com essas temáticas, consultar: MAGALHÃES
& PEREGRINO, 2004.
120
suas idiossincrasias, mas sem preconceitos e o ranço folclórico que durante anos nos caracterizou
no exterior” (FERNANDES JÚNIOR, 2003, p.154). Com um olhar documental, Maureen
buscou compreender as raízes culturais brasileiras por meio de um diálogo com a literatura. Seu
trabalho registra a cultura brasileira com imagens que fogem do padrão estético da fotografia
documental tradicional, que preza pela qualidade técnica de iluminação, foco e reprodução
cromática, para se aproximar de posturas mais radicais que buscam provocar o estranhamento.
(Figura 32)
“Suas imagens são fantasmagóricas, realizadas nas baixas luzes, com foco crítico, buscando ora a singeleza
de um povo, ora a sua dignidade perdida [...] A transformação das cores, a imprecisão do foco, os cortes
pouco convencionais, assombras expressionistas, as imagens monocromáticas, as luminosidades
exageradas, as ausências, tudo isso para elaborar um fio condutor lógico e mágico, que é a sua sintaxe, na
maioria das vezes instigante, para provocar inquietações.” (FERNANDES JÚNIOR, 2003 p.154)
sentido. Em alguns casos, as imagens são manipuladas por ranhuras e ataques químicos que
dificultam ainda mais a identificação dos personagens. Depois essas imagens são rearticuladas e
colocadas num outro contexto, dando a elas outro sentido. “As imagens resultam apenas em
traços opacos e sem sentido de singularidades perdidas, que atestam não só a imperfeição da
fotografia como documento ou revelação de realidade, como também a impossibilidade de uma
memória verdadeira” (MACHADO, 2001, p. 136).
Rennó busca forçar o espectador a buscar a imagem no limite de sua visibilidade. A falsa
opacidade das imagens dificulta sua decodificação por parte do espectador, que precisa se voltar
para seus próprios referenciais para reconstruir a imagem (TVARDOVSKAS, 2006). Em alguns
casos, ela nega a fotografia através da subtração da imagem. Na série Arquivo Universal, a imagem
é substituída por notícias sobre fotografia ou dramas fotográficos. A imagem visual fotográfica é
substituída pela imagem concebida pela percepção visual de cada um a partir da leitura do texto.
As referências imagéticas transitam/transportam-se de visuais em imagens verbais (FABRIS,
1996).79 (Figura 33)
Neste trabalho, da série Cicatriz, Rennó utiliza trechos de notícias retiradas de jornal (de seu Arquivo
Universal), subtrai as identidades de seus personagens e associa a fotografias de tatuagens de detentos,
resultado de um trabalho de recuperação de negativos de vidro do acervo do Museu Penitenciário
Paulista no Carandiru. “Algumas imagens foram propositadamente associadas a textos, no intuito de criar
79
Sobre o trabalho de Rosangela Rennó ver: BATISTA, 2003; FABRIS, 1998; RENNÓ, 1998 e TVARDOVSKAS,
2006.
122
uma intertextualidade, de forçar uma associação duplamente ilustrativa: texto ilustrando imagem e
imagem ilustrando texto” (RENNÓ, 1997, p.8).
“O projeto [Arquivo Universal] nasceu de duas constatações com relação ao texto jornalístico. A primeira,
da grande freqüência com que no jornal aparecem referências a uma fotografia em particular, mas a
imagem que é publicada é outra, de arquivo. A segunda [...] da freqüência com a qual o sentimentalismo
é explorado”. As imagens tornam-se banalizadas e transformam-se em clichês. (RENNÓ, 1997, p. 18)
Neste ensaio, Fadon mistura o processo químico e o eletrônico para obter imagens que se caracterizam
pela aleatoriedade. Ele faz múltiplas exposições num mesmo fotograma– com negativo em cores – de
imagens provenientes de uma mistura de sinais de televisão recebidos fora de sintonia e elementos de
natureza eletrônica (virtuais) e não eletrônica (concretos), trazidos por desenhos, computação gráfica ou
mesmo fotografias. “O acaso e os imprevistos produzem imagens fotográficas com diferentes cores e
texturas, com estranhos alongamentos e distorções. Como num princípio de colagem e montagem
aleatória, Fadon consegue criar um mundo visível cujo resultado é uma trama, uma superposição de
retículas, tomadas em diferentes aproximações” (FERNANDES JÚNIOR, 2003, p. 170).
80
Disponível em: <http://site.pirelli.14bits.com.br/autores/25/obra/349>; e
<http://site.pirelli.14bits.com.br/autores/25/obra/351>. Acesso em 26 mar. 2008.
123
Por trás da experimentação conceitual e estética, desses e de outros fotógrafos, está uma
proposta questionadora com relação à representação fotográfica, uma reflexão sobre a natureza
intrínseca da imagem fotográfica, seus limites e suas ambigüidades. Através do estranhamento
provocado pelas imagens, seus trabalhos buscam denunciar que os meios técnicos – como a
fotografia - não são transparentes, muito menos neutros. Ao contrário, são opacos, resultados de
uma elaboração cultural e intelectual.
A partir dessa reflexão, o próximo capítulo procura se aproximar da fotografia
estenopeica como artefato, buscando um olhar que relacione a técnica e os resultados formais da
imagem para que se possa compreender como os aspectos técnicos construtivos da câmera
influenciam na representação simbólica das imagens. Para isso, inicialmente serão abordadas as
características técnicas do aparelho: a formação da imagem no interior da câmera; a ausência da
objetiva; os longos tempos de exposição; as opções construtivas e de formato da câmera. Na
seqüência, serão observadas algumas experiências artísticas que mostram diferentes opções
construtivas de apropriação do artefato: a mudança de ponto de vista; a experimentação e o acaso,
para em seguida apresentar outras posturas estéticas e conceituais de artistas contemporâneos que
trabalham com a técnica. Finalizando o capítulo, será discutido o conceito de “caixa preta” de
Vilém Flusser para logo depois demonstrar como o artista, ao construir a câmera estenopeica, está
penetrando no interior da caixa e desvendando seu programa.
124
Cleber Falieri
125
O capítulo anterior trata das relações simbólicas que se estabelecem entre a percepção da
imagem fotográfica e os vínculos que, a partir delas, são estabelecidos com a realidade. A partir
daqui, lança-se um olhar sobre a imagem fotográfica a partir e seus aspectos mais objetivos, ou
seja, como os artefatos utilizados para construir as imagens interferem e estão relacionados com a
realidade e, consequentemente, com a maneira como se constrói a noção de mundo e de
realidade. Busca-se, então, neste momento, entender a fotografia como artefato. Caminhando
nesta direção, usa-se a fotografia estenopeica como uma possibilidade de evidenciar que a imagem
é construída culturalmente, assim como são também construídos culturalmente outros artefatos,
como a fotografia tradicional.
No decorrer do capítulo, mostrar-se-á, através da discussão de cada um dos aspectos
técnicos da fotografia estenopeica – da câmera, do processo e da imagem final -, que ela não é um
artefato neutro, muito menos transparente, assim como não o é a fotografia tradicional com
lentes. Para isso analisam-se inicialmente as características técnicas da câmera estenopeica, suas
possibilidades construtivas e a formação da imagem em sua relação óptica e de registro do tempo.
Em seguida, fala-se como a estrutura espacial da câmera pode alterar a representação do espaço. A
partir daí, discute-se como as características técnicas desse meio podem significar novas
possibilidades expressivas para as imagens e, ao mesmo tempo, ser uma opção estética, que
permite o rompimento com as determinações do processo tradicional da fotografia com lentes.
Ao longo do capítulo e em especial na seção 2.3.2, apresenta-se a produção estenopeica
de alguns artistas contemporâneos, que mostram as diferentes posturas e os diferentes resultados
imagéticos possibilitados pelo uso dessa técnica: imagens miméticas; anamorfoses ópticas e
cronotópicas; distorções cromáticas e espaciais. A opção pela experimentação é do
artista/fotógrafo que passa a construir não só a representação, como também o artefato. O
resultado das imagens é fruto de suas escolhas e da mediação de um artefato que possibilita um
distanciamento das convenções estéticas e conceituais da fotografia tradicional. Ao construir a
câmera ele estará buscando resultados formais para a imagem a partir de suas opções estéticas e
conceituais, de sua visão de mundo e de sua cultura.
126
81
Lopes & Sander, 2000, p. 164.
127
Figura 36: Abelardo Morell, projeção do sol sobre mesa coberta, 2000.
Fonte: Homepage Lens Culture: Contemporary Photography Magazine. 82
As fotografias mostram pequenas imagens do sol formadas pela projeção da luz que atravessa as folhas de
uma árvore. Normalmente, quando se olha para os círculos de luz que se formam sob as árvores não se dá
conta de que, na verdade, eles são projeções da imagem circular do sol. (Figura 36) Durante um eclipse
solar, isso fica evidenciado pelo formato em meia lua das projeções. (Figura 37)
82
Disponível em: <http://www.lensculture.com/morell.html>. Acesso em: 03 fev. 2008.
83
Disponível em: < http://abelardomorell.net/camera46.html >. Acesso em: 03 fev. 2008.
129
Os princípios óticos responsáveis pela formação dessas imagens através dos orifícios que
se formam entre as folhas das árvores são os mesmos observados na câmera obscura e na câmera
estenopeica.
A luz que ilumina o objeto é refletida em todas as direções. Apenas uma pequena porção dos raios
refletidos por cada ponto do objeto atravessa o orifício e forma uma imagem na superfície oposta a ele. A
imagem aparece invertida na horizontal e na vertical devido à trajetória retilínea da luz. Assim, a parte
superior do objeto aparece na porção inferior da imagem, da mesma forma, a parte esquerda do objeto
aparece na lateral direita da imagem.85
84
Disponível em: <http://www.paleo-camera.com/camerapage.htm>. Acesso em 20 set. 2007.
85
Informações mais detalhadas na seção 2.1.1.1 Luz: propriedades ópticas, p.130.
130
registrar altas energias em simulações sobre as reações nucleares no interior do sol (RENNER,
2000).
No meio artístico, depois de ter sido abandonada e retomada uma série de vezes, a
fotografia estenopeica tem sido redescoberta por inúmeros artístas como ferramenta para a
construção de imagens fotográficas, justamente, por suas particularidades na formação das
imagens.
Algumas características específicas da formação da imagem na câmera estenopeica são
extremamente importantes de serem observadas. Isso, para que se possa compreender o resultado
final de suas imagens, principalmente quando comparadas às características das imagens formadas
pelas câmeras fotográficas convencionais (com lentes) disponíveis comercialmente no mercado.
Para entender como se dá a formação dessas imagens, se lança, inicialmente, um breve olhar sobre
as propriedades ópticas da luz; em seguida, observa-se como a imagem é projetada no interior da
câmera estenopeica, as conseqüências da ausência do fenômeno óptico da refração e dos longos
tempos de exposição sobre as características finais das imagens.
explicação bastante simplificada, os filtros deixam passar a luz de sua própria cor e absorvem as
cores opostas. Para absorver o excesso de luz amarela emitida por uma lâmpada incandescente,
por exemplo, utiliza-se um filtro de cor azul. A energia luminosa que é absorvida será
transformada em um outro tipo de energia qualquer, como o calor.
Outra parte da luz que atinge essa mesma superfície pode ser refletida, ou seja, pode
voltar para seu meio de origem. (Figura 39). A reflexão da luz é um dos fenômenos ópticos mais
importantes presentes nas câmeras fotográficas convencionais. Além de ser observado no interior
das objetivas, nos espelhos e no prisma, a reflexão permite que a imagem seja vista na sua posição
correta.
Quando a luz é refletida, o ângulo formado entre o raio que incide sobre a superfície (ângulo de
incidência – i) em relação a uma reta perpendicular ao plano (reta normal – N) é igual ao ângulo
formado pelo raio refletido (ângulo de reflexão - r ) Quando a superfície refletora é muito polida, diz-se
que a reflexão é especular (do latin speculo que significa espelho) Se a superfície for rugosa, a reflexão é
difusa.
Em alguns casos, a luz que atinge uma superfície pode atravessá-la, mas mudar de
direção, ou seja, a luz pode ser refratada. Neste caso, a luz muda de direção porque passou de um
determinado material óptico para outro de densidade diferente, o que provocou uma alteração na
velocidade de propagação da luz, desviando-a de seu percurso original. (Figura 40)
132
O ângulo de incidência do raio de luz (i) que atravessou de um meio para outro (passou do ar para a
água), sofreu uma alteração, ou seja, foi refratado pelo meio. Neste caso, o índice de refração da água é
maior do que o índice de refração do ar. Se por acaso, o ângulo de incidência (i) do raio de luz coincidir
com a reta normal (N), a mudança da velocidade não vai significar desvio na direção do raio.
Quando a luz passa de um meio cujo índice de refração é maior para outro de índice de refração menor,
pode ocorrer a reflexão total dos raios de luz, ou seja, todos os raios de luz retornam para o meio de
origem, sem transmissão, refração ou absorção de nenhum raio.
A imagem formada através do orifício tem algumas características importantes que irão
determinar o resultado final da imagem. Normalmente, quando se pensa em câmera escura, ou
mesmo quando se pensa na fotografia tradicional com lentes, se imagina a imagem sendo formada
apenas na superfície oposta ao orifício ou lente, no interior de uma caixa retangular. No entanto,
quando a luz atravessa o orifício (ou lente), ela forma imagem em todo o interior do
compartimento (Figura 42). A delimitação de uma porção, normalmente retangular, para a
formação da imagem é uma das convenções que se estabeleceu com a fotografia tradicional. Nessa
porção delimitada, a imagem normalmente aparece com maior definição, sem grandes distorções
ópticas ou de luminosidade.
Desenho mostrando que a imagem se forma em todo o interior do ambiente escuro, independentemente
de seu formato.86
86
Os desenhos esquemáticos apresentados nesta seção tomam como base as ilustrações de RENNER, 2000.
134
Esta imagem de Thomas Hudson Reeve demonstra a formação da imagem em todo o interior do
ambiente escuro. Ele construiu a câmera usando uma folha de papel fotográfico colorido. A câmera é o
próprio material sensível, depois de usada, ela deixa de existir como câmera e passa a ser a própria
imagem. O papel fotográfico colorido (sensível a todas as cores) é recortado e dobrado na ausência total
de luz e guardado em um ambiente (saco) escuro até o momento da exposição. Além do orifício por onde
entra a luz para a formação da imagem, algumas frestas da câmera deixam que raios de luz entrem,
provocando interferências na imagem final. Depois de exposta, a câmera é levada ao laboratório, onde é
retirada a fita que cobre a face onde fica o orifício juntamente com um pequeno pedaço dessa face
(pequeno quadrado preto na parte superior da imagem), por onde são introduzidos, com a ajuda de um
funil, os produtos químicos de revelação. Diferenças de temperatura ou irregularidades provocadas pelo
vazamento dos químicos durante o processamento passam a fazer parte da proposta. Depois do
processamento (revelação e fixação) a superfície interna da câmera pode ser exposta à luz. A câmera é
então desmontada e o papel volta ao seu formato plano. O resultado é uma imagem formada em todo o
interior da caixa, com as distorções de perspectiva provocadas pela projeção da imagem nos diferentes
planos.
Segundo Eric Renner (2000), a imagem que se forma no interior da câmera tem um
diâmetro de 3,5 vezes a medida da distância entre o furo e o material sensível. Por exemplo: uma
câmera retangular com 10 cm de profundidade (distância entre furo e material sensível) formará
uma imagem com 35 cm de diâmetro (Figura 44). No entanto, a imagem formada não é
uniforme. À medida que se afasta da parte central, a imagem vai “sumindo” gradativamente.
Nessas bordas, a luz vai perdendo intensidade devido ao aumento da distância entre o orifício e o
ponto onde se formará a imagem. (Figura 45 e Figura 46)
135
O desenho mostra a proporção da imagem formada no interior de uma câmera estenopeica em relação à
profundidade da câmera. A imagem que se forma tem um formato circular com diâmetro de 3,5 vezes a
distância entre o orifício e o plano do material sensível e um ângulo de aproximadamente 125º.
À medida que se afasta da parte central da imagem, a distância entre o furo e o material sensível aumenta,
provocando a diminuição da intensidade da luz, por isso, a imagem se atenua a medida que se aproxima
das bordas. Vale ressaltar que pequenas variações na distância provocam redução acentuada na
intensidade luminosa. Dobrar a distância significa reduzir a quantidade de luz para ¼ da intensidade
inicial. Ou seja, se a distância entre uma fonte luminosa aumenta de 1m para 2m, a energia luminosa se
reduz a ¼ do valor obtido para a distância de 1m.
136
Nesta imagem, observa-se o centro da imagem bastante claro e as bordas escurecendo gradativamente. O
fotógrafo optou por manter a imagem completa formada pela câmera 4”x5”. A distorção perspectiva que
se observa nas bordas da imagem se deve ao grande ângulo de visão possibilitado pelas câmeras
estenopeicas. Nas câmeras fotográficas tradicionais o recorte do fotograma se limita à área central com
exposição mais equilibrada. Por exemplo, numa câmera 35 mm (35 mm é a bitola do filme), usando uma
objetiva normal que tem 50 mm de distância focal, a imagem total formada teria um diâmetro de 150
mm. No entanto, o recorte do fotograma limita o enquadramento a um retângulo de 24 x 36 mm
(diagonal 43,3 mm). Nessa área a exposição da imagem é mais uniforme. Ainda assim, quando se
utilizam objetivas com um ângulo de visão muito grande (super grande-angulares) também se pode
observar o escurecimento das bordas da imagem.
Da mesma forma que a fotografia tradicional delimita uma pequena porção retangular
para o registro da imagem, também se convenciona que o material sensível deve estar disposto
numa superfície plana, exatamente oposta ao orifício, perpendicular ao eixo central da objetiva e
paralela ao objeto a ser fotografado para que a imagem se forme. No entanto, numa câmera
estenopeica, a imagem se forma com relativa nitidez, seja qual for sua posição. O material sensível
pode estar inclinado, dobrado ou mesmo curvado que, ainda assim, registrará a imagem. Nestes
casos, a imagem se forma de maneira distorcida, com diferentes deformações que irão depender
da posição e da curvatura do material (Figura 49).
A seguir, são descritos alguns exemplos de diferentes formatos de câmera e de
posicionamento do material sensível e as respectivas deformações que podem ocorrer, segundo
descrições de RENNER (2000).
87
Disponível em: <http://www.fotolobiettivo.com/#>. Acesso em 20 fev. 2008.
137
Quando o material sensível é colocado paralelamente ao objeto fotografado, numa superfície plana e
exatamente oposta ao orifício, a imagem se forma sem distorções lineares. As distorções que se percebem
se devem apenas ao fato de não se costumar ver imagens com o ângulo de visão tão grande quanto as
imagens obtidas nessas situações. (Figura 46)
Para se obter imagens sem distorções de perspectiva, deve-se utilizar uma câmera com profundidade
(distância entre o orifício e o material sensível) equivalente à medida da diagonal do filme que se pretende
utilizar. (Figura 48)
88
Disponível em: <http://www.pinholeformat.com/peterz1.html>. Acesso em 20 abr. 2008.
138
Figura 49: Joaquín Casado, Hotel Arts - Port Olímpic, Barcelona, 2003.
Fonte: Homepage Estenopeica. 89
Nesta imagem, Joaquin Casado utilizou o material sensível de forma ondulada, provocando a distorção
da estrutura metálica do prédio.
Quando se utiliza uma superfície curva, a imagem se forma de maneira distorcida. Ao utilizar uma
câmera cilíndrica côncava a imagem se forma sobre um ângulo de aproximadamente 160º no material
sensível colocado em torno de todo seu interior. Nas extremidades mais próximas ao furo a imagem é
mais intensa e menor. (Figura 52)
89
Disponível em:<http://www.estenopeica.com/Artistas/Joaqu%EDn%20Casado/pages/comic_b_jpg_jpg.htm>.
Acesso em: 20 mar. 2008.
139
Uma possibilidade da disposição do material sensível numa superfície curva é a obtenção de imagens
panorâmicas sem a distorção de perspectiva ou diferenças de exposição. Se a distância entre o orifício e o
material sensível se mantiver constante, a imagem será formada de maneira homogênea, sem perder
intensidade nas bordas. (Figura 54)
90
Disponível em: http://www.geocities.com/ransomk/PINHOLE/pic16.html>. Acesso em 18 abr. 2008.
91
Disponível em; < http://idea.uwosh.edu/nick/rotary/index.htm>. Acesso em 10 abr. 2008.
140
Quando se utiliza uma superfície convexa, a intensidade da luz nas bordas diminui rapidamente, fazendo
com que a imagem “suma” de forma abrupta. Essa diminuição repentina na intensidade do registro da
imagem é vantajosa quando são utilizados vários furos, como nas imagens feitas com câmeras cilíndricas
em que o material sensível é colocado internamente também de forma cilíndrica.
É muito comum a utilização de latas redondas de biscoito para fazer fotografias que cobrem 360º e
utilizam vários furos. O desenho da Figura 56 mostra uma câmera com seis furos, cada um deles forma
uma porção de 60º da imagem. A diminuição repentina da iluminação nas bordas de cada porção
imagem faz com que a imagem completa final apresente uma exposição equilibrada. Para isso, o raio do
cilindro interno deve ter a mesma medida que a distância entre o furo e o material sensível. (Figura 57 e
Figura 86, p. 159)
141
A Figura 58 faz parte da série Janelas da brasileira Ana Angélica Costa. Ela utiliza uma câmera cilíndrica
com quatro furos que é posicionada na janela de diferentes ambientes e moradias. A imagem resultante é
composta por quatro imagens que se fundem: uma do interior do ambiente que abriga a janela; uma do
parapeito do lado direito; uma do exterior, mostrando a paisagem vista da janela; e a última do parapeito
do lado esquerdo.
92
Disponível em: <http://casadopinhole.net/images/ovni29.jpg>. Acesso em: 15 fev.. 2008.
142
A imagem pode ser feita com o plano do filme inclinado, ou praticamente perpendicular ao furo. Nesses
casos, a diferença de luz entre as extremidades laterais da imagem é bastante grande.
A utilização do plano do filme inclinado provoca uma diferença de exposição muito grande entre as duas
laterais da imagem. Para conseguir um equilíbrio, a imagem de Marilyn feita por Eric Renner foi
trabalhada posteriormente em laboratório. O fotógrafo expôs as laterais da imagem a quantidades
diferentes de luz para compensar as diferenças de exposição do negativo (burning e dodging). Para
observar a imagem sem distorções ela deve ser vista com apenas um dos olhos aproximando-o do canto
esquerdo da imagem.
casos, também essas câmeras que provocam deformações e anamorfoses sejam fabricadas
(artesanalmente) para serem comercializadas via internet.
Nesta câmera o plano do filme esta paralelo ao eixo central do orifício; ao contrário das câmeras
fotográficas tradicionais com lentes, onde o plano do filme é perpendicular ao eixo central da objetiva.
Aqui a imagem se forma em toda a extensão lateral da câmera, formando uma imagem com uma
cobertura que pode chegar a 360°. Dependendo da posição escolhida para fazer a fotografia, a imagem
apresenta anamorfoses que desconstroem a lógica de construção da imagem em perspectiva. As diferenças
de exposição são provocadas pela variação de distância entre o furo e o material sensível. (Figura 62)94
93
Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/cfalieri/galeria/s2/tubo1.html>. Acesso em: 20 abr. 2008.
94
A câmera “ominiscope” é vendida pela internet e segue esse mesmo princípio de construção. Maiores detalhes sobre
a câmera no link: <http://www.abelsonscopeworks.com/cameras/omniscope.htm>. A câmera pode ser comprada na
144
Nesta imagem a câmera foi posicionada apoiada no chão, com o orifício voltado para cima. O registro
mostra um predomínio de céu, e a distorção da imagem é mais sutil. Note-se o alongamento da imagem
que se percebe mais claramente no prédio que parece ter sido “esticado” verticalmente.
Um aspecto interessante dessas imagens anamórficas é que elas podem ser visualizadas
sem distorções se observadas por apenas um único olho exatamente da mesma posição do furo
que formou a imagem. (Figura 64 e Figura 65)
Neste exemplo, Julian Beever reproduz de forma inversa a anamorfose provocada pela inclinação do
plano de formação da imagem. Para provocar a ilusão de tridimensionalidade, ele desenha no chão, cenas
completamente distorcidas que, quando observadas exatamente de um determinado ponto de vista, por
um único olho, se apresentam perfeitas. Para construir as imagens e para visualizá-las sem distorções ele
utiliza uma câmera (fotográfica ou de vídeo), que é colocada exatamente no ponto de vista que teria
formado a imagem.
97
Disponível em: <http://www.moillusions.com/2006/03/more-sidewalk-chalk-illusions.html>. Acesso em: 20 fev.
2008.
146
Neste momento, discute-se a refração como fenômeno óptico que representa uma das
características mais importantes do processo de formação de imagens que distingue as câmeras
estenopeicas das câmeras tradicionais com lentes. Nas câmeras fotográficas convencionais, a luz
refletida pela cena, antes de atingir a superfície sensível, tem que atravessar um conjunto de lentes,
chamado objetiva, que é composta normalmente por vidros especiais denominados vidros ópticos.
Como comentado anteriormente, ao passar de um meio para outro, os raios de luz são desviados
de seu percurso original, ou seja, sofrem refração. Portanto, ao atravessar a objetiva, os raios de luz
são refratados e mudam de direção. Na câmera estenopeica, a luz que chega até o material
fotossensível para formar a imagem atravessa apenas um pequeno orifício. Nenhum material se
interpõe entre a cena e a superfície sensível, ou seja, na câmera estenopeica os raios de luz
refletidos pela cena formam a imagem sem sofrer desvio em seu percurso.
Para entender como a definição das imagens obtidas pela câmera de orifício as
diferenciam das imagens formadas com a utilização das lentes da câmera fotográfica convencional,
é fundamental compreender como o fenômeno óptico da refração opera na formação da imagem.
A utilização de lentes nas câmeras se deve principalmente ao aumento da intensidade de
luz que pode entrar na câmera para formar a imagem sem perda da nitidez. Por definição, uma
lente é “um sistema óptico onde ocorre predominantemente refração, e tem pelo menos uma
superfície curva” (TRIGO, 1998, p. 51). O comportamento óptico das lentes depende de seu
formato e do meio no qual está imersa. No caso da fotografia, as lentes estão imersas no ar, ou
seja, a luz passa do ar para a lente e depois volta para o ar. A diferença de espessura entre a parte
central e as bordas determina o comportamento da lente: ao atravessar uma lente com bordas
finas os raios de luz convergem – lente convergente; ao atravessar uma lente com bordas espessas
esses raios divergem – lente divergente.
147
Ao atravessar uma lente convergente os raios de luz são refratados e se aproximam do eixo central da
lente. Numa lente divergente, os raios de luz que a atravessam sofrem refração e se afastam do eixo central
da lente.
O desvio dos raios de luz, que ocorre na lente por causa da refração, pode provocar ao
mesmo tempo a separação das cores. Para reduzir esses efeitos, utiliza-se uma associação de lentes
que minimiza as aberrações cromáticas. Ainda assim, esse conjunto de lentes, que é a objetiva,
funciona como um sistema óptico convergente. Da mesma forma que nos olhos, onde o cristalino
faz convergir os raios de luz que irão formar a imagem sobre a retina, na câmera fotográfica as
objetivas são convergentes, para que os raios de luz se concentrem, formando no material sensível
um único ponto. (Figura 68)
A luz é refletida por cada ponto do objeto em todas as direções. Parte desses raios refletidos atingem a
lente, que irá convertê-los novamente em um único ponto na imagem. A imagem final é composta por
todos esses pontos, que no limite, correspondem cada um a um ponto da imagem.
148
Esse ponto deve estar numa distância determinada, denominada distância focal. É nessa
distância que deve estar o plano do material sensível para que a imagem tenha foco, ou seja, é
apenas nesse plano que a imagem se forma perfeitamente focalizada. Objetos posicionados em
diferentes distâncias formam a imagem em planos diferentes. Esses diferentes planos podem
aparecer com foco na imagem de acordo com a profundidade de campo que é determinada por
uma série de fatores como a abertura do diafragma, a distância focal da objetiva, a distância do
objeto à objetiva e o diâmetro do círculo de confusão, mas não convém, neste trabalho, um
aprofundamento nestes fatores.
Nas câmeras fotográficas com recurso de focalização, a distância entre o centro óptico da
objetiva e o plano do material sensível pode ser alterada, permitindo ajustar o foco para objetos
situados a diferentes distâncias.
Quando a imagem se forma sem o auxilio das lentes, como na câmera estenopeica, os
raios não convergem para um ponto; no interior da câmera eles continuam divergentes. Isso faz
com que o furo tenha que ser bastante pequeno para que se obtenha uma imagem definida.
(Figura 69)
Cada parte do objeto reflete luz em todas as direções. Desses raios, alguns atravessam o orifício para
formar a imagem. Assim, de cada ponto no objeto, alguns raios atravessarão o orifício e formarão não
exatamente um ponto, mas uma pequena área circular na imagem. A sobreposição de todos esses círculos
formará a imagem total.
A imagem obtida com o auxilio das objetivas possui sempre uma nitidez maior,
entretanto, essa nitidez se limita ao plano de foco. Numa imagem formada através de um orifício,
149
sem o uso de lentes, a nitidez é menor, já que os raios de luz não convergem para um único
ponto, mas para um pequeno círculo, que irá se misturar ao pequeno círculo correspondente ao
ponto adjacente do objeto. Pode-se dizer que na imagem formada pelo orifício, não existe “foco”,
mas uma nitidez relativa. No entanto, na imagem formada pela objetiva, a nitidez se limita ao
plano de foco; o que estiver fora desse plano irá perdendo a nitidez gradualmente, à medida que se
afastar dele.
Na comparação da imagem formada através do orifício com a imagem formada através de uma lente (ou
sistema) convergente, nota-se que a alteração do plano de formação da imagem (plano do material
sensível) na câmera de orifício (Figura 70) não produz grandes alterações no tamanho do “ponto”
formado na imagem. Na câmera com lentes (Figura 71) qualquer pequena alteração na posição do plano
onde se forma a imagem (plano do material sensível) provoca uma grande mudança no tamanho do
“ponto” formado na imagem.
150
Figura 72: Luz passando através de uma fenda sem apresentar difração. 98
A difração é uma distorção causada numa onda eletromagnética que incide sobre um obstáculo. Estes
obstáculos podem ser aberturas num anteparo, objetos opacos tais como esferas, discos e outros. Em
todos esses casos, o caminho seguido pelo raio não obedece às leis da óptica geométrica, sendo desviado
sem haver mudanças no índice de refração do meio. A difração ocorre com qualquer tipo de onda e pode
ser percebido mais facilmente quando o obstáculo tem dimensões comparáveis ao seu comprimento de
onda. Nas ondas sonoras, por exemplo, permite que se escute a voz de uma pessoa chamando, mesmo
que esta pessoa esteja atrás de um obstáculo. Com a luz também ocorre a difração, porém é mais difícil
perceber, porque os obstáculos e aberturas em que a luz incide são normalmente bastante grandes em
relação ao seu comprimento de onda. Nas bordas do orifício a luz vai sempre difratar: se o orifício é
pequeno, a fração de luz que desvia por difração é uma parte considerável da luz. Quando o orifício é
grande, a difração também acontece, mas a porção de luz que passa sem difratar, isto é, sem encontrar as
bordas é muito maior e os efeitos da difração passam a ser pequenos e irrelevantes. Por isso, ao fazer com
que a luz passe por orifícios cada vez menores, a parcela de luz que sofrerá difração será mais significativa.
Na fotografia, a difração passa a ser relevante quando as aberturas são muito pequenas. Cabe ressaltar
também que, na fotografia, não se trabalha com um comprimento de onda único, mas sim com uma
banda de diferentes comprimentos (luz branca). Assim, a difração é mais acentuada quanto maior for o
comprimento de onda e quanto menor for o tamanho da fenda pela qual ela vai passar. Por exemplo: o
comprimento de uma onda sonora varia em média de 1,7cm (som agudo) até 17m (som grave). Já o
comprimento de uma onda luminosa varia de 0,4 X 10-9 m (luz violeta) até 0,7 X 10-9 m (luz vermelha).
Ou seja, quando se lida com a luz, fala-se em ondas realmente muito pequenas. Portanto, para se
perceber a difração da luz, é necessário que as fendas sejam de tamanho comparável ao do comprimento
de uma onda luminosa, isto é, fendas de tamanho microscópico.100
É importante ressaltar que, apesar da nitidez da imagem formada pelo orifício ser menor,
ela não se limita a um plano específico, como na fotografia com lentes. Pode-se dizer que, em
qualquer plano no interior da câmera estenopeica a imagem será formada relativamente com a
mesma nitidez. (Figura 74) Por isso o material sensível pode adotar qualquer posição ou formato
no interior da câmera. Além disso, na fotografia com câmera de orifício, objetos próximos e
objetos afastados são registrados com a mesma nitidez relativa, ou seja, com uma profundidade de
campo maior se comparada com as câmeras convencionais com lentes.
100
Informações disponíveis em: <http://br.geocities.com/saladefisica3/laboratorio/difracao/difracao.htm>;
<http://efisica.if.usp.br/otica/universitario/difracao/huygens/>;
<http://educacao.uol.com.br/fisica/ult1700u41.jhtm>. Acesso em: 9 abr. 2008.
152
Esta imagem apresenta uma boa nitidez do primeiro plano até o último, apesar da diferença de
luminosidade nas bordas. Para se conseguir uma imagem com essa nitidez, todo o processo deve ser
extremamente cuidadoso, desde a escolha da cena e da iluminação; a precisão do orifício, que deve ter o
tamanho exato para o formato da câmera e deve ser feito em um material metálico de ótima qualidade
sem apresentar rebarbas; e o processamento químico posterior do material, buscando o maior rendimento
possível.
101
Disponível em: <http://www.estenopeica.com/Artistas/Veijo%20Vilva/index.html>. Acesso em: 20 fev. 2008.
153
A figura mostra alguns exemplos de slits. Neste caso, estes slits são vendidos prontos em um kit que inclui
todos os acessórios para serem adaptados no lugar das objetivas de diferentes câmeras fotográficas
convencionais.
102
Disponível em: <http://casadopinhole.net/slits_cast.htm>. Acesso em: 10 mar. 2007.
155
103
Disponível em: <http://casadopinhole.net/slit_galeria_cast.htm>. Acesso em: 12 set. 2005.
104
Disponível em: <http://casadopinhole.net/slit_galeria_cast.htm>. Acesso em: 15 fev. 2008.
156
O zone plate consite em uma série de anéis concêntricos, alternados entre transparentes e
opacos. (Figura 82) A luz que atravessa os vários anéis transparentes se sobrepõe formando uma
imagem difusa e suave, com a tendência de formar halos nos limites de maior contraste da
imagem. (Figura 84) Sua construção é bastante complexa e, como a imagem se forma com melhor
qualidade em um determinado plano, como com as lentes, seu diâmetro e sua conformação
dependem do comprimento da câmera.
105
Disponível em: <http://pinhole.stanford.edu/zp.html>. Acesso em: 17 abr. 2008.
106
Disponível em: <http://www.zeroimage.com/web2003/EntryPage/entryFrameset.htm>. Acesso em 10 abril 2008.
157
Para registrar corretamente uma imagem, o material sensível deve receber uma
determinada quantidade de luz. Nas câmeras fotográficas, essa quantidade de luz é controlada de
duas maneiras: pelo tamanho da abertura do orifício ou diafragma da câmera por onde a luz entra
e pela quantidade de tempo que se deixa a luz atingir o material sensível, que é controlada pelo
obturador. Um aumento na quantidade de luz que entra pelo diafragma, deve ser acompanhado
de uma diminuição no tempo que a luz atinge o filme ou, ao contrário, aumenta-se o tempo de
exposição e diminui-se o diâmetro do diafragma.
Como visto anteriormente na seção 2.1.2, para garantir a qualidade da imagem na
fotografia estenopeica, o orifício deve ser o menor possível. O pequeno tamanho do furo faz com
que os tempos de exposição sejam bem mais longos do que na fotografia tradicional. Dependendo
do material sensível utilizado, este tempo é maior ainda (papéis fotográficos preto e branco, por
exemplo). As frações de segundo, dos registros proporcionados pelos equipamentos fotográficos
convencionais com lentes, transformam-se em longos minutos numa câmera de orifício. Durante
esse período, a luz se modifica, se movimenta, assim como as pessoas. Esses longos tempos de
107
Disponível em: <http://www.pinholeresource.com/gallery/spencer_beth.html>. Acesso em 18 fev. 2008.
158
exposição também podem ser conseguidos com a fotografia tradicional com lentes, mas, no caso
da fotografia estenopeica, são características quase que determinantes do processo.
Existem várias fórmulas para calcular o tempo de exposição nas câmeras estenopeicas.
No entanto, a dificuldade em precisar o tamanho do furo faz com que o método tentativa e erro
seja o mais utilizado. Na rede mundial de computadores, estão disponíveis várias tabelas que
podem servir como ponto de partida para estimar o tempo de exposição para uma determinada
câmera. Da mesma forma, algumas câmeras, vendidas prontas, fornecem tabelas indicativas para
diferentes situações de luz: normalmente, informam o diafragma equivalente para que o usuário
possa aferir, com maior precisão, o tempo de exposição para qualquer situação de luz utilizando
um fotômetro de mão.
A inscrição do tempo108 na imagem fotográfica é bastante complexa. A fotografia traz
consigo a idéia de imagem congelada, de fragmento instantâneo e único da realidade. Todo o seu
desenvolvimento se deu na busca por materiais fotográficos mais sensíveis e câmeras com
obturadores mais rápidos, justamente para eliminar a anotação do tempo que desestabiliza e
deforma a imagem. Mas, no limite, caso se pense matemática e fisicamente, mesmo a menor
fração de segundo corresponde a um intervalo de tempo; a suspensão absoluta do tempo
significaria trabalhar com a velocidade da luz, o que está muito longe da prática fotográfica.
Assim, mesmo com as maiores velocidades de obturação, o intervalo de tempo da exposição é
longo o bastante para registrar uma duração. “Isso quer dizer que em toda imagem fotográfica há
necessariamente inscrição do tempo” (MACHADO, 1993, p. 103). O que acontece,
normalmente, é que se busca controlar a velocidade do obturador e do objeto, de modo a
suprimir do registro fotográfico qualquer referência à duração desse intervalo. Na fotografia
estenopeica isso é muito mais difícil; em minutos, até mesmo as nuvens de uma paisagem deserta
podem se movimentar. Por outro lado, o longo tempo de exposição pode provocar o efeito
contrário: imagens desertas que registram apenas os objetos concretamente estáticos. Pessoas ou
objetos que se movimentam diante da câmera não ficam gravados na imagem.
108
Entler (2004) cita três formas distintas de representação do tempo na fotografia. O tempo inscrito traduz, de
forma contínua, o deslocamento no espaço, de um objeto ao longo de uma duração de tempo. Esse registro aparece
sob a forma de um “borrão” do movimento, que Arlindo machado chamou de anamorfose cronotópica (ver nota 45,
p.90). O tempo denegado, como num “instantâneo” que tem o movimento “congelado”. A percepção desse tempo é
denunciada, justamente, pelo esforço em seu ocultamento, pela interrupção abrupta do movimento. Como terceira
forma Entler define o tempo decomposto, como aquele em que as diferentes etapas do movimento são fracionadas e
representadas em um conjunto de imagens estáticas, como no cinema ou nos quadrinhos.
159
Em sua série de fotografias do projeto Cine-Teatros de Portugal Jochen Dietrich comenta a dificuldade
em fotografar com câmeras que registram 360º. Se o fotógrafo não quiser aparecer na imagem, ele precisa
se mexer permanentemente, ou deixar a câmera sozinha durante o tempo de exposição. “Todos os locais
que fotografei eram movimentados. [...] havia carros e pessoas passando, assim como uma centena de
pombos [...]. Obviamente não ficaram gravados na imagem, pois o tempo da foto é um tempo próprio.”
(DIETRICH, 2000, p. 150)
O que se pode observar, é que a questão do tempo faz parte de muitas das discussões
daqueles que utilizam câmeras de orifício. A postura, principalmente por parte dos artistas, é,
justamente, de uma aproximação com a fotografia estenopeica por conta da relação temporal
estabelecida por suas imagens. Os artistas tiram partido da fotografia estenopeica e de seus longos
tempos de exposição para evidenciar a representação do tempo nas imagens. Além disso, a
fotografia estenopeica permite questionar a passagem do tempo, pois expressa de maneira
diferenciada a passagem imperceptível do tempo, tornando visível o que é invisível para o olhar
humano, e, vice-versa, em alguns casos, tornando invisível o que é comumente visível pela visão
humana.
109
Disponível em: <http://www.galerie-gerhard.com/dietrich_camera_obscura.htm>. Acesso em: 04 out 2007.
160
Na série Duração, Ana Angélica registra o desenvolvimento de determinadas ações durante um certo
período de tempo.
110
Disponível em: <http://www.projetosubsolo.com/galeria.php>. Acesso em: 10 mar 2007.
161
Este daguerreótipo de Louis Daguerre de 1839 mostra uma rua de Paris aparentemente deserta. A
sensação deve-se ao longo tempo de exposição, cerca de 20 minutos, o que fez que tudo o que se movesse
não ficasse registrado na imagem. No canto inferior esquerdo pode-se observar, de forma bastante clara, a
figura de um homem em pé que tem seus sapatos engraxados por um engraxate. Ele provavelmente
permaneceu imóvel durante todo o tempo da exposição. Supõe-se que seja a primeira pessoa a ser
fotografada.
Utilizando diferentes procedimentos, Bragaglia, Gioli, exploram a idéia de registrar percursos no decorrer
de um intervalo de tempo. Bragaglia utiliza longos tempos de exposição, e Gioli utiliza uma câmera
35mm transformada em câmera de orifício e altera o sistema do obturador de forma similar aos
experimentos de Davidhazy (ver Figura 126, p. 208).
111
Disponível em: <http://www.metmuseum.org/special/Gilman/view_1.asp?objectID=%7BFC052D18-8607-
47BD-9520-549057D5146E%7D&imageID=%7BE99812B0-3DC9-4A26-8561-D857CDA21EEE%7D>. Acesso
em: out 2007.
112
Disponível em: <http://www.paologioli.it/fotografia2d.htm>. Acesso em: 10 mar. 2008.
163
Os longos tempos de exposição necessários para captar as imagens faz com que a presença temporária do
vendedor deixe impressa na imagem apenas um “fantasma”. Como resultado, Dirceu Maués obtém um
ensaio documental no mercado Ver-o-peso cujas imagens “transitam entre a solidez e a desmaterialização,
a opacidade e a translucidez, a dureza e a fluidez, sonhos e realidade”. (MAUÉS, 2008)
Algo mais pode ser observado nessa relação de duração que existe no registro da imagem
pela câmera estenopeica. Nas câmeras da fotografia tradicional com lentes, o tempo de
sensibilização da imagem é curtíssimo, e normalmente não passa de frações de segundo. O disparo
do botão e o pequeníssimo período de tempo durante o qual a luz impressiona o material sensível
confundem-se e tornam-se um só. Esse apertar automático do botão pode levar a crer que o ato de
registro da imagem é uma realização do fotógrafo. Ao mesmo tempo, de certa forma, o momento
específico da exposição da imagem carrega consigo a idéia da ausência do usuário/fotógrafo: nesse
instante, não há a intervenção humana e a fotografia é então, nas palavras de DUBOIS, “um
índice quase puro” (1994, p.51).114
113
Disponível em: <http://www.furodaagulha.k6.com.br/>. Acesso em: 20 fev. 2007.
114
Essa questão é discutida na seção 1.2.4.1 Referente. Ver p. 68.
164
115
Disponível em <http://www.estenopeica.com/Artistas/Danilo%20Pedruzzi/pages/00_jpg.htm>Acesso em: fev.
2007.
165
ele utilizou quatro câmeras estenopeicas colocadas em quatro ângulos diferentes para registrar o
movimento do sol por um período de seis meses. Cada máquina gravou as linhas brancas do
percurso do sol durante seis meses em uma única imagem. Ele abriu a máquina em dezembro de
1981 e fechou-a em junho do ano seguinte. Durante o tempo de exposição da imagem (seis
meses) a máquina ficou sozinha, “fotografando”, sem a sua presença. “O autor não tem que estar
presente, nem pode estar presente neste caso, porque o tempo necessário para esta exposição não é
o mesmo que o do nosso ritmo, da nossa vida” (DIETRICH, 2000, p. 149).
Fabio Goveia116
116
GOVEIA, 2005, p. 66.
117
Sobre o tempo de exposição consultar: <http://www.pinhole.cz/en/pinholecameras/exposure_01.html>;
<http://www.pinhole.org/make/exposure.cfm>. Sobre o tamanho do furo:
<http://www.photo.net/photo/pinhole/pinhole>; <http://www.mrpinhole.com/holesize.php>;
<http://ca.geocities.com/penate@rogers.com/pinsize.htm>. Existe um programa para o sistema operacional windows
que ajuda a calcular o diâmetro do furo e o tempo de exposição: Programa “PinholeDesigner 2.0”. Disponível em:
<http://www.pinhole.cz/en/pinholedesigner/>. Páginas acessadas de fev. a jul. de 2008.
167
A construção da câmera pode ser incrementada com a inclusão de um visor para pré-
visualização, ou um sistema de avanço, quando se utiliza um filme em rolo como material
sensível, permitindo a obtenção de várias imagens. Também, podem ser compradas câmeras
prontas. Hoje, com as facilidades de comunicação via internet, pode-se entrar em contato com
diversos fabricantes, espalhados em diferentes países, que produzem câmeras de construção
refinada, já testadas, e que produzem imagens de altíssima qualidade.118
No entanto, a possibilidade de construção de sua própria câmera é a característica mais
atraente da fotografia estenopeica. O fotógrafo pode partir do zero, ou seja, construir a “caixa” em
todos os seus detalhes para ser a câmera, ou, pode re-utilizar uma lata ou caixa, de uma
embalagem, por exemplo, e transformá-la em uma câmera. No entanto, a liberdade de construção
permite uma gama tão extensa de experimentações que levam os artistas a utilizar os mais
diferentes materiais como câmera, desde seu próprio corpo até construções arquitetônicas. “Tudo
que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica: um depósito de lixo, um ovo, um
quarto, um caracol, um despertador, uma casca de coco, um pimentão vermelho.” (DIETRICH,
2000, p. 144)119
Figura 95: Ilan Wolff, Red Pepper Used Like a Camera Obscura, s.d.
Fonte: Homepage de Ilan Wolff.120
118
Páginas que vendem câmeras e acessórios: <http://www.pinholeresource.com/store/agora.cgi?product=Cameras>;
<http://www.zeroimage.com/web2003/EntryPage/entryFrameset.htm>;
<http://www.lenoxlaser.com/pinholephotos/>; <http://www.pinholeblender.com/pages/about.html>;
<http://www.paintcancamera.com/camerasorders.html>. Acessos: de jun. 2007 a jun. 2008.
119
Ver da Figura 95 a Figura 106.
120
Disponível em: <http://www.ilanwolff.com/iloops/modules/xcgal/displayimage.php?pid=66&album=16&pos=3>.
Acesso em: 20 mar. 2008.
168
Entre artistas que utilizaram seu próprio corpo como câmera, citam-se os trabalhos do
alemão Thomas Bachler entre as décadas de 1980 e 1990 e do americano Jeff Guess na década de
1990. Ambos os artistas utilizaram a boca como câmera e os lábios como orifício para formar a
imagem (Figura 96, Figura 97, e a Figura 107 e Figura 108, da página 176). O italiano Paolo
Gioli utilizou sua mão para obter imagens estenopeicas. Com a mão fechada e o material sensível
em seu interior, ele deixou passar a luz através do pequeno orifício que se forma pelo dedo
mindinho quando se cerra o punho. (Figura 98 e Figura 99)
Jeff Guess fez imagens estenopeicas utilizando sua própria boca como câmera e os lábios como orifício,
sem conhecer o trabalho de Thomas Bachler, que já havia registrado imagens estenopeicas com a boca na
década anterior.
121
Disponível em: <http://www.guess.fr/projets/from-hand-to-mouth/fr/>. Acesso em: 20 de jan. 2008.
169
Paolo Gioli fez imagens estenopeicas utilizando o próprio punho como câmera, orifício e obturador, para
produzir imagens intituladas “Janela no meu punho” (Window in my Fist – La finestra in pugno) e
“punho contra mim” (Fist Against Myself – Pugno contro me stesso)
122
Disponível em: <http://www.paologioli.it/fotografia18a.htm>. Acesso em 02 mar. 2008.
123
O termo ready-made é criado por Marcel Duchamp para designar um tipo de objeto, por ele inventado, que
consiste em um ou mais artigos de uso cotidiano, produzidos em massa, selecionados sem critérios estéticos e expostos
como obras de arte em espaços especializados (museus e galerias). Seu primeiro ready-made, de 1912, é uma roda de
bicicleta montada sobre um banquinho. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
170
material sensível (Figura 102). O alemão Jochen Dietrich transformou despertadores mecânicos
em câmeras estenopeicas para obter uma seqüência de doze imagens estenopeicas num intervalo
de 1 hora. Mais recentemente, Steve Pippin transformou máquinas de lavar de uma lavanderia,
um chuveiro e até mesmo o vaso sanitário de um trem, em câmeras estenopeicas. (Figura 129, p.
211)
Figura 100: Paolo Gioli, Imagem feita com a Câmera Crackerstenopeica, 1980.
Nesta imagem obtida com o uso da câmera Crackerstenopeica os vários furos da bolacha funcionam
como orifícios que formam imagens múltiplas que se sobrepõe.
124
Disponível em: <http://www.paologioli.it/strumenti14.htm>. Acesso em 07 abr. 2008.
171
Jeff Fletcher desenvolveu uma série de auto-retratos utilizando um “porta pimenta” como câmera e cascas
de ovos como suporte sensível. Fletcher teve a idéia de utilizar os ovos por seu aspecto simbólico de
regeneração, ciclo de morte/vida, origem de uma nova vida. Para isso, ele sensibilizou cascas de ovos com
uma emulsão fotográfica líquida, que pode ser utilizada em qualquer suporte, assim, as imagens ficaram
gravadas nas próprias cascas dos ovos. As cascas eram colocadas no interior de um “porta pimentas”. No
fundo do “porta pimenta” ele fez um orifício para formar a imagem, e os furos em forma de “P” por onde
saía a pimenta foram tampados. Depois de muitos problemas e muitos testes, ele conseguiu registrar as
imagens. O resultado são dezoito aspectos de sua intimidade mostrados em imagens anamórficas nas
cavidades de dezoito cascas de ovos. (RENNER, 2000, p. 77-78)
125
Disponível em: <http://www.pinholeresource.com/gallery/fletcher_carton.html>. Acesso em 4 nov. 2007.
172
Jochen Dietrich transformou despertadores mecânicos em câmeras estenopeicas. Ele adaptou um disco
com uma pequena janela no eixo do ponteiro dos minutos. O disco gira junto com o ponteiro de
minutos, que demora uma hora para dar a volta completa. Os números das horas foram substituídos por
pequenos furos. Quando a janela do disco se encontra com um dos furos, sai uma foto. No término de
uma hora são registradas 12 imagens, “portanto a máquina grava em doze tiragens numa única chapa
redonda tudo que acontece em frente ao relógio (DIETRICH, 2000, p. 154).”
126
Disponível em: <http://www.pinholeresource.com/gallery/dietrich_circle.html>. e
<http://www.pinholeresource.com/gallery/dietrich_clock.html>. Acesso em 2 mar. 2008.
127
O termo instalação é incorporado ao vocabulário das artes visuais na década de 1960, designando ambientes
construídos nos espaços das galerias e museus. Modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o
auxílio de materiais muito variados, na tentativa de construir um certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado
pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o corpo do observador. Para a apreensão da obra é preciso
percorrê-la, passar entre suas dobras e aberturas, ou simplesmente caminhar pelas veredas e trilhas que ela constrói
por meio da disposição das peças, cores e objetos. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
173
Alguns artistas, como Marja Pirilä e Abelardo Morell, transformam quartos ou outros
grandes ambientes em cameras obscuras e fotografam as imagens que se formam no seu interior
(Figura 105 e Figura 106). Em sua série Bom voyage, Thomas Bachler transformou um caminhão
em câmera estenopeica. Uma única imagem registrava todo o trajeto da viagem, que poderia
percorrer, até 100 km, dependendo da luminosidade. Ilan Wolff usa um furgão transformado em
câmera para produzir imagens estenopeicas de grande formato da cidade de Paris (Figura 122, p.
196).
Abelardo Morell trabalha com a formação de imagens em camera obscura desde 1991. Em seu trabalho
recente, ele utiliza negativo colorido de grande formato (8 x 10”) para registrar as imagem formadas no
interior dos grandes ambientes transformados em camera obscura. Segundo ele, obter a imagem no
interior da sala é simples, basta um ambiente escuro com uma pequena entrada de luz. A maior
dificuldade está em registrar fotograficamente a imagem que se forma. Normalmente são necessárias até 8
horas de exposição (MORELL, 2008).
128
Disponível em: <http://abelardomorell.net/camera49.html>. Acesso em: 03 fev. 2008.
174
Neste trabalho da série Sleeping Rooms, Marja Pirilä registrou, com uma câmera fotográfica
convencional, a imagem externa projetada no interior do quarto. A imagem invertida ocupa todo o
ambiente, desde o chão até às paredes, o teto e os objetos no interior do quarto.
Jochen Dietrich129
129
DIETRICH, 1998, p 62.
176
do processo de produção do imaginário, possibilitado a cada nova câmera construída, a cada nova
imagem. Nas palavras de Dietrich:
Como exemplo de uma outra subjetividade possível, Dietrich cita o trabalho O Terceiro
olho, do alemão Thomas Bachler, que utiliza a própria boca como câmera (Figura 107 e Figura
108). “Ele próprio, seu corpo, era ao mesmo tempo sujeito, objeto e a ‘câmera’. Através da
fotografia ele viu o mundo segundo um novo olhar.” (DETRICH, 2000, p. 156). O que chama a
atenção, no trabalho de Bachler, não é o resultado formal das imagens que ele obteve, que não
possuem qualidade técnica (definição, contraste, nitidez, equilíbrio de iluminação, etc), mas sim
sua postura diante do ato de fotografar.
Figura 107 (esq): Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 3.5 x 5 cm, 1999.
Em 1986, Bachler colocou pequenos pedaços de filme 35mm dentro da boca. As imagens eram feitas
diante de um espelho, os lábios funcionavam como orifício e obturador ao mesmo tempo. O resultado foi
uma série de 63 auto-retratos intitulada The Third Eye, ou O Terceiro Olho (RENNER, 2000, p. 74).
Em 1999 ele fez outras duas séries, uma de auto-retratos e outra de modelo, com papel fotográfico P&B
seguindo o mesmo princípio. “Usando minha própria boca, eu caminhei até a frente de um espelho com
177
um pedaço de papel fotográfico em minha boca. Meus lábios, levemente abertos, funcionaram como o
orifício de uma pinhole e eu fotografei a imagem do espelho – uma fotografia minha de dentro de mim.”
(BACHLER, 2008).130
130
Tradução livre do texto em inglês: “Using my own body as a camera, I stepped in front of a mirror with a piece of
photo paper in my mouth. My slightly opened lips worked as a pinhole aperture and took a picture of the mirror
image – a picture of me in me.” (BACHLER, 2008)
178
tradicional se mantém: a luz refletida pelos objetos penetra num ambiente escuro e atinge um
material sensível, que se altera quimicamente e registra uma imagem. No entanto, o resultado
formal, muitas vezes, ao invés de perpetuar o realismo especular, a que se está acostumado na
fotografia tradicional com lentes, assemelha-se muito mais à linguagem estética dos novos meios
digitais. Principalmente considerando-se a experiência de um observador que tem como referência
apenas as alterações de imagens realizadas por meio de softwares e aparatos fotográficos,
construídos com funções pré-estabelecidas, e desconhecendo outras alternativas técnicas, que
precedem essas possibilidades de forma mais interventora e, porque não, expressiva.
É possível encontrar nas imagens estenopeicas características presentes em imagens
produzidas por artistas contemporâneos, que utilizam as mais diferentes tecnologias, desde a
fotografia eletrônica (still vídeo), até a manipulação digital. No entanto, ao invés de interferências
e manipulações sobre o registro inicial, na fotografia estenopeica a imagem registrada pela câmera
pode apresentar essas características anamórficas e imprecisas, distanciando, ainda mais, suas
imagens dos aspectos formais herdados do Renascimento. Essas características não são
intervenções/edições posteriores, mas constituídas no próprio registro, no instante mesmo da
captação da imagem. Determinadas, em parte, pelo fotógrafo, no momento que constrói a câmera
e, em parte, pela imprevisibilidade intrínseca ao próprio processo da fotografia estenopeica.
A imprevisibilidade, na formação das imagens, é ampliada pelas características de
formação da imagem no interior da câmera estenopeica: a luz que penetra a câmera, forma
imagem em todo o seu interior, sem a delimitação de enquadramento; a ausência de um plano
focal faz com que a imagem se forme com relativa nitidez, em qualquer ponto, no interior da
câmera, e o pequeno tamanho do furo faz com que os tempos de exposição sejam mais longos do
que na fotografia tradicional com lentes. Além disso, normalmente, as câmeras estenopeicas não
contam com um visor para a pré-visualização da cena.
Outro aspecto marcante na fotografia estenopeica é a multiplicidade de opções que o
fotógrafo tem no momento que constrói a câmera. As possibilidades multiplicam-se a cada
pequena alteração na câmera, a cada escolha do fotógrafo, distância do objeto, tempo de
exposição, suporte sensível. Seguir o mesmo caminho e tentar repetir o resultado, será, única e
exclusivamente, uma escolha do fotógrafo. Ainda assim, podem aparecer deformações inesperadas,
uma vez que, a indeterminação e a descontinuidade são traços mais do que presentes na fotografia
179
estenopeica. Cada percurso escolhido pelo fotógrafo traz um resultado diferente e, de certa forma,
imprevisto. Poder-se-ia dizer percursos e resultados infinitos, uma vez que, como comentado
anteriormente, a câmera pode ser construída com qualquer material: de uma casca de ovo a um
pimentão ou sapato, ou mesmo usando a própria boca como câmera. A imprevisibilidade, a
descontinuidade dos resultados e o acaso fazem parte das “escolhas” desses artistas/fotógrafos que
buscam, na fotografia estenopeica, a experimentação. Ao optar pela técnica da fotografia
estenopeica eles sabem que estas são características intrínsecas ao processo.
Entretanto, deve-se ressaltar que as possibilidades expressivas da fotografia estenopeica
não se devem, exclusivamente, às diferenças técnicas e formais com relação à fotografia
tradicional, mas principalmente à conceitualização teórica que está por trás da postura daquele
que constrói e usa a câmera. Sua participação no ato de produzir a câmera, mais do que uma
atitude ativa perante a construção da representação, está em sua procura por uma nova
visualidade; na consciência de estar caminhando, de certa forma, na contramão das convenções
representativas da fotografia tradicional: buscando expandir os limites da fotografia, procurando
romper com suas restrições técnicas, colocando em evidência o processo de construção do
artefato-câmera, evidenciando a construção da representação, conseqüentemente, a construção da
mensagem simbólica; mostrando que a mensagem simbólica resultante desse ato não é apenas
uma janela transparente para o real, mas o resultado de um processo complexo de escolhas e
posturas que refletem sim, mas não necessariamente o real. Posturas que expõem os valores e os
sentimentos que estão por trás, não só da construção ou da manipulação do aparelho, mas de todo
o imaginário simbólico/cultural daquele que constrói e daquele que interpreta a representação.
A postura crítica não está simplesmente no uso de uma câmera construída
artesanalmente, mas na busca, por parte do usuário, em lançar novos olhares, novas formas
expressivas que questionem não apenas a gênese da imagem, mas que possibilitem se distanciar
dos conceitos que estão cristalizados na construção dos aparelhos semióticos. A câmera
estenopeica e a câmera fotográfica com lentes, assim como a câmera de vídeo e os demais meios
técnicos de produção de imagens, não podem ser responsabilizados, sozinhos, pela construção da
representação ou por seu resultado simbólico. Ao mesmo tempo, eles não são artefatos
transparentes ou neutros. Atribuir a eles neutralidade seria responsabilizá-los por todo e qualquer
resultado, que ratifica a analogia da imagem ou que rompe com ela. Se a imagem rompe ou não
180
com a homologia convencionalmente atribuída às imagens técnicas, isso se deve, também, a uma
opção do usuário e não apenas ao meio. O que um meio pode trazer, como no caso da utilização
da câmera estenopeica, é uma maior facilidade em romper com esse estatuto homológico das
imagens técnicas.
Não se quer dizer com isso que, por trás da construção do aparelho, já não estejam
presentes ideologias que conformam seu modo de representar. Mas, voltando às idéias de
Machado (2002b) e Flusser (2002), é na postura interventora do usuário diante dos aparelhos que
se coloca a possibilidade de rompimento com os padrões, caso contrário se estará sendo apenas
“funcionário”.
A experimentação e a liberdade possibilitadas pela fotografia estenopeica permitem, mais
facilmente, o rompimento de certas amarras impostas ao artefato fotográfico, principalmente,
com relação à idéia de homologia que a fotografia tradicional carrega consigo desde seu
surgimento. Isso não significa que a fotografia estenopeica esteja isenta de limitações, ou que a
fotografia tradicional com lentes não permita a experimentação, significa, apenas, que a fotografia
estenopeica não está presa às convenções técnicas e de construção do olhar moldados pela
perspectiva da mesma forma que a fotografia tradicional com lentes.
Arlindo Machado (2001) afirma que, na fotografia, para se obter o efeito indicial e a
homologia icônica, é necessário um controle preciso de todos os elementos envolvidos no
processo fotográfico - exposição correta à luz, qualidade do material sensível, tempo e temperatura
de processamento, natureza da luz no registro e na ampliação, etc. (MACHADO, 2001, p. 136).
Se a fotografia tradicional com lentes depende da precisão desse processo, na fotografia
estenopeica, controlar todos esses elementos, principalmente na captação da imagem, é ainda mais
difícil, o que não quer dizer impossível. O fotógrafo pode, mediante cálculos e testes, avaliar a
quantidade de luz necessária para a melhor exposição de uma determinada câmera; pode prever a
distorção que será provocada por um determinado formato da câmera ou do material sensível;
pode até mesmo supor os efeitos do longo tempo de exposição em uma determinada cena. Como
já acontece na fotografia tradicional com lentes, ele pode simplesmente evitar as situações que
possam perturbar a precisão homológica do processo, ou então, como comenta Machado,
descartá-las:
Os acidentes do acaso são muito mais freqüentes do que se possa imaginar, mas
o espectador ou usuário da fotografia não chega a tomar consciência disso,
181
porque as fotos que ele vê cotidianamente nos álbuns, nas revistas, nas galerias,
são quase sempre as fotos felizes, aquelas em que o controle estocástico surtiu
efeito, reconciliando a imagem com o modelo figurativo da pintura; as demais
são simplesmente destruídas ou negligenciadas ainda sob a forma de contato
(MACHADO, 1984, p. 44).
2.3.1 Acaso
sobre as imagens digitais, afirma que a experiência da diferença do digital está trazendo para a
fotografia a possibilidade de se repensar. O surgimento de um novo meio não substitui os
anteriores, mas transforma seu contexto, criando para eles uma nova configuração. “[...] quando
surge um meio novo, não é nele próprio que observamos algo novo, é nos meios antigos à sua
volta, nos quais reparamos mudanças e alterações. [...] Em conseqüência, o novo vai aparecer
primeiro no meio antigo” (DIETRICH, 2003, p. 6; p. 9).
Diante disto, a fotografia estenopeica é retomada pelos artistas contemporâneos não só
por suas características expressivas, mas, também, por seu potencial crítico, questionador dos
conceitos que se estabelecem com relação à fotografia e sua ligação com o real.
Para Dietrich:
Neste contexto, o uso da câmera estenopeica tem sido retomado como uma opção de
rompimento estético e conceitual com relação às práticas convencionais da fotografia tradicional
com lentes. Não é, necessariamente, o resultado plástico das imagens que os artistas
contemporâneos, que utilizam a fotografia estenopeica, têm procurado questionar e colocar em
evidência, mas sim, o próprio ato fotográfico e os conceitos ontológicos que estão enraizados nas
imagens fotográficas.
Além dos trabalhos, com fotografia estenopeica, de alguns artistas apresentados no
decorrer da dissertação (Thomas Bachler, Eric Renner, Paolo Gioli, Ilan Wolf, Marja Pirilä,
Joaquin Casado, Jochen Dietrich, Jeff Guess, e dos brasileiros Dirceu Maués, Ana Angélica Costa,
entre outros), neste momento, apresentam-se mais algumas propostas artísticas que, além do
resultado plástico das imagens, procuram explorar a fotografia estenopeica em seu potencial
crítico com relação aos conceitos da fotografia tradicional com lentes.
A simplicidade da técnica e o baixo custo das câmeras viabilizam propostas de alguns
artistas como Jochen Dietrich e Tarja Trigg, que transformam o trabalho de autor em obra
coletiva distribuindo câmeras que serão utilizadas por diferentes pessoas ao redor do mundo. Essas
185
propostas se abrem para a participação do outro, de outra cultura, de outro lugar, às vezes até de
outra época.
Dietrich partiu da figura histórica do Infante de Sagres, Henrique o “Navegador”, para
desenvolver um projeto iniciado em 1996 e sem prazo para se encerrar. Ele construiu 120 câmeras
estenopeicas, utilizando os potinhos pretos que embalam os filmes 35 mm. Colocou-as em
garrafas plásticas, à prova de água, juntamente, com um folheto contendo um texto explicando,
em várias línguas, como tirar uma foto com aquela câmera e lançou-as ao mar. No texto, ele pede
para que as pessoas que encontrarem as máquinas, tirem uma foto e devolvam a máquina pelo
correio. As câmeras foram jogadas no Oceano Atlântico, na costa de Portugal, para retornar dias,
meses, ou mesmo anos depois. Mais do que jogar cento e vinte câmeras no mar, este trabalho de
Dietrich pode permitir conectar diferentes culturas, em diferentes épocas. Don Henrique, apesar
de ser chamado de o “Navegador”, não realizou as viagens; ele mandou que outros fossem em seu
lugar. Dietrich, da mesma forma, espera que outros enviem para ele, as imagens do além mar. Nas
palavras de Dietrich: “mandar meus barcos para me trazerem imagens do além do horizonte
(2000, p. 151)
Até o ano de 2000, Dietrich recebeu de volta apenas quatro câmeras; uma delas sem
imagem, mas, com uma carta de um pescador agradecendo e explicando que não fez a fotografia,
pois utilizou a câmera para salvar seu dedo, cortado num acidente durante uma pescaria. O
pescador utilizou a Câmera para guardar o pedaço do dedo e levá-lo para que fosse costurado
novamente.
No projeto “World Map of Solargraphs”, Tarja Trygg pretende traçar um mapa dos
trajetos do sol em todas as regiões do globo terrestre. Para isso, ele conta com amigos e voluntários
do mundo todo, que instalam as câmeras nas suas cidades e, depois, as enviam de volta para ele.
Muitos dos voluntários (can-assistents) entram em contato com Trygg graças à rede mundial de
computadores. Usuários da rede e aficionados por pinhole tomam conhecimento do projeto e se
candidatam como voluntários.
Trygg utiliza câmeras estenopeicas para obter imagens que registram o trajeto do sol
durante longos períodos de tempo. Da mesma forma que Dominique Stroobant, na década de
1980 (Figura 94, p165), Trygg utiliza a técnica estenopeica para registrar o movimento aparente
sol, durante períodos de três ou seis meses, nos intervalos entre os solstícios e equinócios. Nesses
186
intervalos, o sol traça um percurso que vai de uma curva mais próxima ao horizonte à mais
afastada, ou vice-versa, dependendo da época do ano e do hemisfério. Em cada região, o sol traça
um percurso diferente, dependendo das coordenadas geográficas de cada localidade (latitude e
longitude). O projeto foi iniciado em maio de 2002, e continua por tempo indeterminado. As
imagens do projeto podem ser vistas em uma página na internet, que reúne as várias “grafias
solares”, em grupos separados por ano ou por região.
A cada dia, fica registrado o trajeto do nascer ao por do sol. No final do período as várias linhas mostram
o percurso do sol durante todo o período que o material sensível foi exposto. As falhas nas linhas brancas
se devem à presença de nuvens. As fotografias são feitas utilizando papel fotográfico preto e branco como
material sensível. Devido ao longo tempo de exposição, a imagem se forma no papel e é visível sem a
necessidade de processamento químico. Se a imagem for processada quimicamente, o papel ficará
completamente preto devido à exposição excessiva. Por outro lado, sem o processamento químico o papel
continua sensível à luz. Ao retirar o material sensível da câmera, ele é digitalizado antes que a imagem
desapareça por completo ao ser exposta à luz. O aparecimento das cores, mesmo com a utilização de
papel P&B se deve também è exposição prolongada à luz.
∗ ∗ ∗
Outro artista que desenvolve trabalhos com câmera estenopeica, com um cunho bastante
experimental, é Thomas Bachler. Em seu trabalho com câmeras estenopeicas, ele explora os
conceitos e as características da fotografia, ora utilizando a boca como câmera (The Third Eye,
década de 1980-90 - ver Figura 107 e Figura 108, p. 176), ora transformando veículos em
131
Disponível em: <http://www2.uiah.fi/~ttrygg/project.html>. Acesso em 10 mar. 2008.
187
grandes câmeras de orifício para registrar o trajeto entre diferentes cidades (bon voyage!, década
de 1990 - Figura 110), ou mesmo, postando, pelo correio, pacotes transformados em câmeras que
registram seu trajeto de uma cidade a outra (Travel Memoires - Figura 111, Figura 112 e Erro!
Fonte de referência não encontrada., p.225).
As fotografia da série Bon Voyage! foram feitas em um caminhão reconstruído especialmente para
funcionar como câmera estenopeica. As fotografias eram tiradas durante o percurso. Dependendo da
quantidade de luz e da rota, uma foto pode registrar um percurso de até 100m. (BACHLER, 2008)
Figura 111 (esq): Thomas Bachler, From Nuernberg to Kassel, Travel Memories, 1985.
Figura 112 (dir): Thomas Bachler, Pinhole Parcel, Travel Memories, 1985.
Fonte: Bachler, 2008.
Bachler transformou vários pacotes em câmeras estenopeicas e os enviou pelo correio de cidades
diferentes. A exposição durou todo o trajeto. “[...] enviada como um pacote, a câmera traz consigo uma
188
longa exposição de seu caminho de volta pra casa. Tentar entender essas imagens, ou lê-las, é como ouvir
palavras familiares ditas em uma língua completamente estranha.132
Na série Scenes of Crime (cenas do crime), caixas fechadas, com material sensível no seu
interior, são transformadas em câmeras de orifício, quando atingidas por balas de revolver. Ao
atirar na caixa, o furo da bala permite a entrada da luz que irá formar a imagem. “Apenas o tiro
transforma a caixa em uma câmera e o lugar em cena do crime” (BACHLER, 2008, s.p.). (Figura
113)
A Figura 114 mostra uma imagem feita por Bachler, seguindo a mesma idéia de Scenes
of Crime, utilizando o que ele chamou de “shot” pinhole câmera. Nas palavras de Bachler:
132
Tradução livre do texto em inglês: “A pinhole camera, sent as a package brings a long exposure of its trip back
home. The attempt to understand these pictures, to read them, is similar to trying to listen for familiar words in a
completely alien tongue. (BACHLER, 2008)
133
Tradução livre de um depoimento feito por Bachler: I “opened” a (still closed) pinhole câmera with a pistol shot.
The picture of me has been made through the entry hole of the bullet. The bullet went through the pinhole camera
and left through a hole at the back side. That is why there is a hole exactly where my eye is supposed to be. The
photograph has thus been made with the help of the bullet, which at the same time destroys the most important part
of the picture, my eye. (RENNER, 2000, p. 170)
189
Segundo Renner (2000), não se trata de uma metáfora de auto-destruição, mas, uma
metáfora para que os olhos se abram o máximo possível para uma visão artística.
∗ ∗ ∗
Da esquerda para a direita o nome de cada uma das câmeras é: Cunhatã 2, Iraci, Minha Mãe, Laurinha,
Maria Luiza, Paula, Carlotinha.
O trabalho com o personagem “Laura” foi iniciado durante estudos no grupo Clara
Cena135, que trabalhava especificamente com câmeras de orifícios e textos de Clarice Lispector, e
134
Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/cfalieri/arquivos/neide-jallageas/cameras.html>. Acesso em: 20 set.
2006.
135
O projeto Clara Cena foi concebido depois da oficina O Olhar e a Percepção de mundo com textos de Clarice
Lispector, coordenado por Paulo Angerami e Neide Jallageas, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em 1998,
com a proposta de criação de imagens através da intertextualização de imagens fotográficas com textos literários,
utilizando de câmeras de orifício. Além de Jallageas e Angerami, participaram do projeto: Adriana Di Benedetto,
Andréa Santana, Delci Rosa Sales, Isabella Carnevale, Marise Rangel e Wilma Yabiku.
191
. .
. .
136
VESTÍGIOS: a leitura fotografada, Ano de Obtenção: 2002. Mestrado em Ciências da Comunicação.
Universidade de São Paulo, USP, Brasil. Orientador: Fredric Michael Litto.
137
Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/cfalieri/arquivos/neide-jallageas/versao2.html>. Acesso em: 20 set.
2006.
192
Através da desmaterialização da imagem figurativa provocada pela contenção da luz e pela formação da
imagem na câmera de orifício, Jallageas procura registrar em cada câmera uma das personalidades de
“Laura”. “A partir da escuridão, a luz prenuncia um corpo de mulher e ensaia desenhos, volumes -
fragmentária. A latência das imagens secretas, íntimas, pulsa onde a luz silencia. A contenção da luz tem
sido minha opção de linguagem e é fruto de um trabalho persistente e investigativo sobre técnica e
poética visual, caracterizando-se, sobretudo, por longas exposições, tanto para o negativo, quanto para o
positivo; o que acaba por provocar um estranhamento intencional ao espectador (JALLAGEAS, 2008,
s.p.)”
∗ ∗ ∗
Paula Trope, artista plástica brasileira, trabalha com câmeras de orifício desde a década
de 1980. No cenário brasileiro é uma das mais importantes artistas a utilizar a técnica. A opção
pela câmera estenopeica faz parte de uma estratégia de estranhamento adotada em seus trabalhos.
“A imagem produzida é turva, muitas vezes indefinida, com aberrações de perspectiva,
contrariando as normas da boa imagem” (TROPE, 2004, p.128). Trope assume uma postura
crítica diante do meio e de sua temática e afirma que seus trabalhos:
Em Contos de Passagem, a captação de imagem e som foi realizada com diferentes câmeras em diferentes
formatos (super-8, VHS, high-8 e 16mm). Todas as câmeras foram alteradas internamente com a retirada
das objetivas originais e a introdução de um orifício através do qual se formaria a imagem.
Posteriormente o material foi transposto para a mídia digital, tratado e editado. A pequena definição e as
imagens no contra luz fazem aparecer apenas as silhuetas dos entrevistados. (TROPE, 2004)
138
Disponível em:
<http://www.agrafc.com/meio/blogtxt/blog_commento.asp?blog_id=19&month=11&year=2006&giorno=&archivio
=OK>. Acesso em: 3 fev. 2007.
194
∗ ∗ ∗
Figura 120: Claudia Wornum, Eletric Montains, Walker Lake, Eastern Sierra Nevada, 1999.
Fonte: Homepage Pinhole Visions.140
Na série Eletric Montains, Claudia Wornum trabalha com câmeras panorâmicas e filme cromo (positivo
direto) em rolo. Para saturar as cores ela revela o filme positivo como se fosse um filme negativo colorido
(cross-processing). Além disso, ela altera as temperaturas, os tempos do processamento, e a formulação
dos químicos. Cada imagem é processada de uma forma diferente, aleatoriamente, fazendo com que os
resultados dificilmente se repitam. Nas palavras de Wornum: “Meu fascínio é por buscar criar imagens ao
mesmo tempo inesperadas e referenciais”. (WORNUM, 2005)
∗ ∗ ∗
139
Disponível em: <http://www.galeriavermelho.com.br/v2/index.asp?irPara=artistas.asp&id_artistas=38>. Acesso
em: 5 fev. 2007.
140
Disponível em: <http://www.pinhole.com/gallery/wornum/3>. Acesso em 25 set. 2005.
195
Cada díptico (dupla de imagens) mostra as duas imagens feitas no mesmo buraco. Na imagem da
esquerda a câmera olha para Berlin Ocidental; o lado direito mostra o olhar da câmera para Berlin
Oriental. A irregularidade dos buracos se repete na imagem.
∗ ∗ ∗
141
Disponível em: <http://www.marcus-kaiser.de/seiten_kaiser/wallvjpg/3.jpg>. Acesso em 07 maio 2008.
196
O fotógrafo israelense, Ilan Wolff, dedica-se, desde 1981, à criação de imagens com a
técnica da fotografia estenopeica. Inicialmente, ele reaproveitava caixas e latas velhas para
construir suas câmeras. Recentemente, seu trabalho está voltado para a produção de imagens de
grande formato. Para isso, ele usa um furgão, com o qual circula pela cidade de Paris, registrando
cenas urbanas. Segundo ele, estar dentro da câmera permite que ele manipule e transforme a
imagem enquanto ela se forma. Ele começou a produzir grandes imagens em 1992, quando
transformou seu ateliê em Paris em uma câmera obscura onde viveu durante seis meses, e passou a
registrar fotograficamente as cenas externas projetadas no seu interior. Enquanto fazia essas
grandes imagens estenopeicas, ele começou a colocar objetos que estavam no interior do ateliê,
inclusive seu próprio corpo, sobre a projeção da imagem, produzindo um misto de fotografia
estenopeica e fotograma, que ele chamou de sténogramme.
Wolff processa suas grandes imagens manualmente com esponja, esfregando os produtos químicos
pedaço por pedaço, o que provoca grande irregularidade na revelação, além disso, ele altera os químicos e
os padrões do processamento, como tempo e temperatura.
A experimentação sempre fez parte de seu trabalho: ele utiliza emulsão líquida para
poder sensibilizar diferentes superfícies, transforma objetos diversos em câmera – como o
142
Disponível em:
<http://www.ilanwolff.com/iloops/modules/xcgal/displayimage.php?pid=208&album=7&pos=18>. Acesso em 20
mar. 2008.
197
pimentão citado na seção 2.2 (Figura 95, p. 169) ou, simplesmente, um buraco no chão. Ele
altera o plano do material sensível e usa câmeras com diferentes formatos para obter imagens
anamórficas; manipula o processamento químico e processa o material manualmente, provocando
irregularidades e manchas nas imagens; faz fotogramas, utilizando apenas a luz da lua
(lunagramme); ou, então, cria imagens, utilizando o calor do fogo e o frio do gelo, para obter
formas pela alteração química no processo de revelação (calorigramme). (F295, 2008)
∗ ∗ ∗
As diferentes posturas estéticas desses artistas diante das imagens, utilizando uma técnica,
aparentemente primitiva, rudimentar ou mesmo ultrapassada, diante da avançada tecnologia dos
recentes aparatos produtores de imagens técnicas, são apenas mais alguns exemplos de que a
fotografia estenopeica representa um meio alternativo às câmeras convencionais. Essas posturas
configuram uma expectativa de busca de novas formas de expressão da imagem e desenvolvimento
da criatividade dentro do processo fotográfico. Isso vem corroborar a hipótese desta dissertação,
ao acreditar que a fotografia estenopeica permite aos artistas expressar suas inquietações e
questionamentos com relação ao universo das imagens, principalmente as fotográficas;
possibilitando, até mesmo, o rompimento com os conceitos e com as práticas da fotografia
tradicional. Não apenas pelo resultado plástico das imagens, mas, principalmente, na mediação
que se estabelece no ato de fotografar. Desde a construção da câmera até o processamento final da
imagem, o fotógrafo pode dispor da técnica com a liberdade e a consciência necessárias para
utilizar o meio na construção simbólica de imagens, que respondam às suas expectativas
conceituais e formais, tirando partido das características intrínsecas ao processo.
Assim, a partir das experiências desses e de outros artistas citados anteriormente, pode-se
dizer que a fotografia estenopeica não é transparente. Ela não reproduz a realidade de forma
neutra, é uma construção simbólica, que não pode ser separada das intenções de quem a utiliza,
muito menos ser isolada da realidade social, na qual se insere. Desse modo, ela figura como um
modelo para se pensar a técnica e a tecnologia. A técnica, como o processo da fotografia
estenopeica em si, e a tecnologia, como o modo que a técnica é utilizada e a forma como ela
responde aos anseios dos artistas, ambos – processo e artista - inseridos num complexo contexto
sócio-cultural.
198
[...] aparelhos são caixas pretas que simulam o pensamento humano, graças a
teorias científicas, as quais, como o pensamento humano, permutam símbolos
contidos em sua “memória”, em seu programa.
Caixas pretas que brincam de pensar.
Vilém Flusser143
143
FLUSSER, 2002, p. 28.
199
a postura estética de alguns artistas com relação ao rompimento com as funções pré-determinadas
pelos programas dos aparelhos.
Na história da arte, até o século XIX, o que predominava eram os meios de produção
artesanal de imagens. Com a revolução industrial, além de máquinas capazes de ampliar a força
física do homem, surgiu outra capaz de produzir imagens: a máquina fotográfica. A partir de
então, as máquinas semióticas, como a máquina fotográfica, assim como outros aparatos
mecânicos, acabam por seguir os mesmos princípios de produtividade e racionalidade, dentro da
lógica capitalista de produção industrial em larga escala.
Entretanto, o uso que o artista faz desses artefatos não segue necessariamente os mesmos
princípios que seu uso por outros setores da sociedade, que os utilizam como meros bens de
consumo. Uma das características e possibilidades da apropriação desses artefatos nas artes é,
justamente, seu questionamento como mediação simbólica. Os artistas buscam decifrar seus
códigos e romper com a lógica de sua produção, contrapondo-se ao determinismo das máquinas
semióticas na busca por outras possibilidades, além daquelas previstas e programadas pelo projeto
industrial. Assim, tentam escapar aos objetivos de produtividade da sociedade
industrial/tecnológica. Nas palavras de Machado:
Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa
sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à
lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das
máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e
finalidades. (MACHADO, 2002b, p. 151)
que calculou a circunferência da Terra 200 anos antes de Cristo. Erastótenes mediu a sombra
projetada por um bastão, fincado no chão, em Alexandria e comparou com a medida da sombra
de um bastão, idêntico, fincado numa cidade distante - Cirene, exatamente no mesmo horário.
Com a inclinação das sombras, e a distância entre as cidades, por meio de uma regra de três, ele
chegou à medida da circunferência da Terra com apenas 15% de erro com relação ao que se
consegue medir hoje com a mais “alta tecnologia”. (TAS, 2000)
Álvaro Vieira Pinto diz que “Toda época teve as técnicas que podia ter. A humanidade,
especialmente em tempos mais próximos, sempre acreditou em cada momento estar vivenciando
uma fase de esplendor” (PINTO, 2005, p. 234). Para ele a idéia de “era tecnológica” tem um
caráter marcadamente ideológico:
Da mesma forma, a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo,
(MACHADO, 2000a). As discussões mais recentes se concentram em estudar a inserção das
novas tecnologias no campo das artes - a era multimídia, a convergência e hibridação dos meios, a
interação da arte com a ciência e a tecnologia - numa nova modalidade, a “arte tecno-científica”.
Segundo Machado, “o atravessamento da arte pela tecnologia está permeado de
acontecimentos cuja natureza é muito mais complexa e muito mais problemática do que querem
nos fazer crer apocalípticos e integrados” (MACHADO, 1996, p. 23). Por isso, é necessário todo
o cuidado ao discutir esse assunto, já que, não se trata apenas de desconsiderar os avanços
tecnológicos ou desprezar as manifestações artísticas recentes que trabalham com esses novos
meios, mas contemporizar o atual deslumbramento tecnológico que faz com que seja necessário o
uso sempre crescente de “novas tecnologias” para dar conta de obras criativas. (TAS, 2000).
Ou como comenta Couchot: “Uma obra mais sofisticada tecnologicamente não é uma
obra mais artística” (COUCHOT, 1997, p. 141). Esse deslumbramento, provocado pela crença
de que se vive um momento especial, com uma explosão criativa possibilitada por meios cada vez
mais modernos colocados à disposição dos usuários pela indústria da eletrônica e a corrida por
avanços e inovações, muitas vezes, impede atitudes mais questionadoras e criativas por parte dos
usuários.
Algumas reflexões a partir das idéias de Vilém Flusser (2002) e de Edmond Couchot
(1997) ajudam a pensar na importância e na necessidade do artista em desvendar os códigos e
conceitos que orientaram a construção e que estão inscritos nas máquinas e aparelhos,
combatendo dessa forma, a automação das “máquinas semióticas”. Assim, a postura de
rompimento com a prática dos meios tecnológicos por parte de alguns artistas pode ser vista como
uma possibilidade de questionamento desses mesmos meios. Ao não se submeter às determinações
desses aparatos técnicos, atuando apenas como um “funcionário”, encarregado de ativar os
mecanismos previstos para que as máquinas cumpram o programa para o qual foram projetadas,
esses artistas estão agindo de forma crítica e criativa: numa discussão que vai para além do uso,
questionando a atitude passiva de somente “usar” esses mecanismos, sem a consciência das
transformações sociais e artísticas desencadeadas por eles e que implicam uma nova maneira de
pensar o mundo e se relacionar socialmente.
Flusser discute em seu livro Filosofia da Caixa Preta de 1983144 algumas questões
relativas à produção de imagens por meio da mediação de aparelhos de codificação, as quais ele
chama de imagens técnicas.
Para Flusser, as imagens têm o propósito de representar o mundo, são mediações entre
homem e mundo. As imagens técnicas, por sua vez, são símbolos abstratos, já que, nos aparelhos
semióticos como a câmera fotográfica, conceitos científicos (óptica, química) são transcodificados
em imagens, ou seja, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas
determinados conceitos relativos ao mundo” (FLUSSER, 2002, p.14). Flusser alerta justamente
para o perigo dessa aparente condição de transparência das imagens técnicas, que leva a crer que
elas não precisam ser decifradas, já que seu significado se imprime de forma automática. A gênese
144
Em língua portuguesa, as edições editadas no Brasil são: Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia
da fotografia. São Paulo, Hucitec, 1995 e Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002. A versão da mesma obra editada em
Portugal tem o título: Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’água, 1998, com
apresentação de Arlindo Machado.
202
Por seu caráter aparentemente não simbólico e objetivo, as imagens técnicas são
percebidas pelo observador como se fossem janelas e não imagens. “O observador confia nas
imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos” (FLUSSER, 2002, p. 14). Essa
aparente transparência das imagens técnicas parece dispensar o observador do deciframento dos
códigos presentes nessas imagens. Nas imagens tradicionais como na pintura, a presença da
subjetividade humana está clara com a presença do artista, que codifica a imagem ao elaborar os
símbolos que serão transferidos para a superfície da imagem. Ao olhar para as imagens técnicas, é
como se o observador eliminasse o conjunto “aparelho-operador” que se interpõe entre a imagem
e o significado. Isto se deve, justamente, à complexidade desse conjunto e ao desconhecimento de
todo o processo codificador que se passa no interior do aparelho. (FLUSSER, 2002).
As máquinas contemporâneas de produção simbólica são construídas com base na
definição semiótica e tecnológica da fotografia, e Flusser, em sua obra, aborda a fotografia com
base, sobretudo, em conceitos da cibernética, utilizando-a como modelo básico para analisar o
modo de funcionamento de todo, e qualquer, aparato tecnológico ou mediático. Ele considera a
fotografia o primeiro e mais simples exemplo de imagem técnica e toma a câmera fotográfica
como modelo para a compreensão essencial de todos os aparelhos, desde os maiores, como os
“aparelhos administrativos”, até os menores como os chips.
Segundo Flusser:
Ao buscar uma definição para “aparelho”, Flusser considera que, os aparelhos são
instrumentos que “informam, simulam órgãos, recorrem a teorias, são manipulados por homens e
servem a interesses ocultos” (FLUSSER, 2002, p. 21-22). Mas, mais do que objetos trazidos da
natureza pelo homem, esses instrumentos passam a se chamar “máquinas” por serem técnicos ao
recorrerem a teorias científicas na sua concepção. Assim, o que caracteriza os aparelhos é o fato de
estarem programados com funções inscritas previamente por aqueles que os produziram,
constituindo as estruturas de determinadas culturas e conferindo, a eles, parte de suas
características ideológicas. Atualmente, são os aparelhos que exercem a função de produzir,
manipular e armazenar símbolos. Considerado sob tal prisma, o que caracteriza o aparelho
fotográfico é o fato de estar programado. “As superfícies simbólicas que produz estão, de alguma
forma, inscritas previamente (‘programadas’, ‘pré-escritas’) por aqueles que o produziram”
(FLUSSER, 2002, p. 23).
Assim, para Flusser, as fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas
no aparelho e o fotógrafo manipula o aparelho, a fim de descobrir suas potencialidades, novas
possibilidades de utilização que, porventura, estejam “ocultas” em seu programa (FLUSSER,
2002). (Figura 123)
Para se relacionar com o aparelho, o usuário deve estar consciente de toda a codificação
cultural e ideológica que está por trás de sua concepção e de sua construção. Se, ao invés disso, ele
se relacionar com o aparelho de forma transparente, como se ele fosse apenas uma prótese, sem
buscar entender, interferir, ou ao menos compreender todo o complexo processo que está por trás
de seu programa, ele estará atuando simplesmente como um “funcionário” que aperta botões e se
submete às limitações determinadas pelo projeto industrial da máquina. Como “funcionário”, o
usuário utiliza esses aparelhos sem conhecer seu funcionamento interno e lida apenas com as
opções disponíveis e limitadas pelo programa da máquina. Ser “funcionário” significa submeter-se
ao aparelho e a todo o complexo código que está por trás de sua construção. Assim, a intenção do
aparelho se sobrepõe à intenção do fotógrafo, e a técnica se sobrepõe à imagem, como adverte
Machado ao comentar as imagens técnicas:
Nesta imagem, Robert Doisneau, tira partido da distorção naturalmente provocada por obturadores de
plano focal quando se fotografa objetos em movimento. Um obturador de plano focal funciona como
uma cortina que se abre para a passagem da luz no momento da tomada da foto. A partir de determinada
velocidade (que varia conforme o modelo do obturador), ao invés de uma abertura total, se abre apenas
uma estreita faixa que se movimenta varrendo toda a extensão do fotograma, como um escaner. A
distorção da imagem é causada pela movimentação da imagem no plano do filme em relação à direção do
movimento de “varredura” da cortina. Assim, uma porção da imagem é exposta com uma pequena fração
de tempo de diferença com relação à outra (ADAMS, 1996). Na foto, Doisneau reduz intencionalmente
a velocidade do movimento de varredura para acentuar a distorção, e fotografa um casal dançando sobre
uma plataforma circular que se movimenta durante o registro da imagem. Há uma diferença de tempo
entre o instante do registro da porção superior da imagem e da inferior. Nesse intervalo de tempo o casal
continua em movimento, causando o efeito em espiral da imagem. (DAVIDHAZY, 2008)
145
Disponível em: <http://people.rit.edu/andpph/photofile-b/doisneau-1.jpg>. Acesso em: 18 fev. 2008.
205
Machado cita o fotógrafo Andréas Müller-Pohle, cujo trabalho foi reconhecido, pelo
próprio Flusser, como um exemplo de como o gesto do fotógrafo pode se desviar do jogo
programado das tecnologias da câmera e da película (MACHADO, 1996). (Figura 124)
146
Disponível em: <http://www.muellerpohle.net/projects/transformance.html>. Acesso em: 19 mar. 2008.
147
Tradução livre do texto em inglês: “The decision was to take a total of 10,000 photographs, in motion and
without looking through the viewfinder. The photographic act is thus deliberately determined as an act of chance,
and chance itself is caught between movement and photographic fixing. The neologism Transformance
(transformation/performance) designates the active but optically impassive intervention in the space-time-continuum
(AMELUNXEN, 2008)”.
206
invés de hesitar ou calcular o momento exato de disparar o botão, Pohle dá a si mesmo e ao acaso uma
chance, sem preconceitos. Para Muller-Pohle, é no acaso que está a liberdade. (FLUSSER, 1993) 148
Para que o usuário possa conseguir novas possibilidades, não previstas na construção do
aparelho, ele precisa desvendar seu programa, penetrar no interior da caixa preta a fim de buscar
suas potencialidades escondidas. Flusser reconhece que essa busca por desviar o aparelho de sua
função programada, evitando a redundância e favorecendo a invenção, ocorre de forma intensa no
campo das artes experimentais. Desvendando o programa do aparelho, subvertendo as funções da
máquina, os chamados fotógrafos experimentais “tentam, conscientemente, obrigar o aparelho a
produzir imagem [...] que não está em seu programa” (FLUSSER, 2002 p. 76).
Entretanto, não tarda muito para que as subversões no programa do aparelho sejam
incorporadas a ele:
148
Tradução livre do texto em inglês de Vilém Flusser sobre o trabalho Tranformance de Andreas Muller-Pohle. (For
Muller-Pohle, chance is the ground on which freedom stands.)
207
Pode-se dizer sem dúvida que, entre os artistas, principalmente entre os experimentais, o
estranhamento, as inquietações e incertezas encontram um espaço bem maior do que entre o
grande número de usuários leigos, público-alvo do mercado industrial, para quem, normalmente,
são produzidas essas máquinas. Em alguns casos, o questionamento constante com relação aos
meios tecnológicos, por parte de alguns artistas experimentais, os leva a um claro afastamento do
projeto inicial desses aparelhos. Esses artistas reapropriam-se dos meios tecnológicos, colocando-os
a serviço de suas propostas estéticas. Desviar-se do caminho esperado para a utilização desses
artefatos é, ao mesmo tempo, reafirmar que eles não são ferramentas inertes e autônomas e
perceber que essa mediação é extremamente complexa, e depende profundamente de uma postura
consciente e crítica diante desses meios.
Dentre os inúmeros artistas que apresentam essas posturas interventoras com relação aos
aparelhos e seus programas, destaca-se Andréas Muller Pohle, já citado anteriormente (Figura
124); as experiências de Frederic Fontenoy (Figura 125, p. 208) e do artista e pesquisador Andrew
Davidhazy, que subvertem o funcionamento da câmera fotográfica para obter anamorfoses de
tempo e espaço; as experimentações do vídeo-artista Nam June Paik, com o aparelho de TV e seus
elementos (Figura 127), e, também, o trabalho The Fourth Dimension (1988) do videoartísta
Zbigniew Rybczynski, que utiliza o computador para desconstruir a imagem eletrônica do vídeo
(Figura 128, p.210), gerando anamorfoses que partem da mesma lógica de decomposição do
tempo e do espaço dos retratos desdobrados de Davidhazy (Figura 126, p. 208) e da imagem
distorcida pelo obturador de plano focal de Doisneau (Figura 123, p. 204). Estes são apenas
alguns, entre os inúmeros exemplos que poderiam ser citados, de experiências estéticas de artistas
que se desviam de tal forma do projeto tecnológico original, reinventando a maneira apropriação
da tecnologia, que se pode dizer que estão reinventando o meio. (MACHADO, 2002b).
208
Frederic Fontenoy utiliza o mesmo princípio de distorção provocada pelos obturadores de plano focal,
associado a uma exposição lenta e ao movimento muito rápido dos corpos, para criar imagens que
desmaterializam as figuras. “As criaturas de Fontenoy são, na verdade, seres elásticos, aéreos, de formas
estilizadas, que evoluem na paisagem como serpentes rastejates” (MACHADO, 1993, 104)
Andrew Davidhazy provoca o que Arlindo Machado chama de “anamorfose cronotópica”. Ele parte das
distorções provocadas por obturadores do tipo plano focal, como a utilizada para na fotografia de
Doisneau (Figura 123, p.204), para desenvolver um dispositivo que ele chamou de “slit-scan” que altera
o funcionamento do mecanismo do obturador da câmera fotográfica. Através de uma pequena fenda a
imagem será registrada durante um determinado intervalo de tempo, como se fosse um escaner, que
“varre a imagem”. Ao mesmo tempo, o mecanismo de avanço da câmera permite que o filme avance
ininterruptamente. Durante o intervalo de tempo do registro (varredura), a câmera pode se deslocar em
torno do objeto, ou ao contrário, o objeto pode girar em torno de seu próprio eixo, permitindo o registro
de todas as suas faces de maneira contínua, num mesmo suporte bidimensional. “No caso das fotos de
Davidhazy, o que se tem é, simultaneamente, uma anamorfose de tempo e de ponto de vista: de tempo
porque o que se registra na foto é o desenrolar no tempo de uma ação de revolução diante da câmera; de
ponto de vista porque o que se acumula no tempo é o conjunto de todos os ângulos de visualização de
uma figura (MACHADO, 1993 p. 105).”
149
Disponível em: <http://www.fredericfontenoy.com/Site/Metamorphose.html>. Acesso em: 15 fev. 2008.
150
Disponível em: <http://people.rit.edu/andpph/bruce.jpg>. Acesso em: 19 mar. 2008.
209
Paik intervém na maneira estabelecida convencionalmente para o funcionamento do aparelho de TV. Ele
procura alterar as imagens dos televisores para mostrar que a imagem da televisão não é algo imutável e
pode ser transformada. No trabalho TV Magnet de 1965, Paik utiliza um poderoso imã que é colocado
nas laterais do aparelho que distorce completamente, objetiva e subjetivamente, as imagens da TV.
(SANTOS, 2007, p. 136). Esta experiência não trata de um simples gesto de distorcer imagens, mas
representa as primeiras imagens não figurativas ou abstratas da televisão, sintetizadas através do
tratamento eletrônico do fluxo de partículas no iconoscópio e, o que é o mais importante, sem a
utilização de uma câmera. (MACHADO, 1997b, p.119)
151
Disponível em: <http://www.paikstudios.com/gallery/10.html>. Acesso em: 19 mar. 2008.
210
No caminho inverso, alguns artistas apropriam-se de artefatos, cujo projeto inicial prevê
sua utilização como bens de consumo, e os transforma em máquinas semióticas. Questionam
desta forma, não só a determinação industrial imposta aos artefatos em geral, mas, também, os
pré-conceitos com relação às máquinas de produção simbólica. Rompem, assim, com a concepção
tradicional de como deve ser uma câmera fotográfica. (Figura 129)
152
Disponível em: <http://www.zbigvision.com/>;
<http://www.festivalmdp.org/2006/peliculas.html?film=thefourthdimension>. Acesso em: 19 mar. 2008.
211
Essas atitudes, que buscam enxergar os meios técnicos por um outro viés, que não o
convencionalmente esperado pelo projeto industrial, mostram a existência da possibilidade de
desvio dos padrões, de intervenção na construção das políticas e das práticas tecnológicas.
Consciente da mediação que se estabelece entre aparato técnico e usuário, assim como de todas as
implicações que estão por traz da concepção e da utilização destes aparatos, o artista deixa de ser
153
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/britain/turnerprize/history/pippin.htm>. Acesso em: 10 jan. 2008.
212
fotografia, principalmente com relação à objetividade e à homologia de suas imagens. (Figura 49,
p. 138; Figura 60, p. 142; Figura 62, p. 143; Figura 80, p. 155; Figura 120, p. 194, entre outras)
Na medida em que subverte o padrão convencionalmente imposto ao aparato
fotográfico, o artista tem condições de utilizar a fotografia estenopeica como uma alternativa de
expressão criativa. Ele não depende mais das alternativas limitadas, oferecidas ou impostas pela
indústria fotográfica. A opção estética do artista já se expressa no momento em que ele constrói
sua câmera, criando um “sistema” subjetivo, expressivo e único de constituição de imagens. Pode-
se dizer que, ao mesmo tempo em que o artista constrói a caixa preta – câmera estenopeica, ele a
está desconstruindo - na concepção de Flusser.
No próximo capítulo, serão observadas algumas imagens para demonstrar como a
fotografia estenopeica permite ao usuário obter imagens com diferentes características formais e
conceituais, de acordo com suas opções estéticas e sua postura interventora ou não no processo
fotográfico.
215
3 A P O N TAM E N T O S
[...] porque este é o dia de ver não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os
que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.
José Saramago
216
Este capítulo apresenta alguns apontamentos, em forma de uma breve exposição escrita,
das impressões sobre um olhar para as imagens estenopeicas completamente contaminado pelo
envolvimento com o objeto de estudo. Na impossibilidade de estabelecer o distanciamento
necessário para fazer uma análise “fria”, isenta de julgamentos pessoais, e despida de qualquer
conceito ou pré-conceito acerca da fotografia, opta-se, neste momento, por lançar um olhar para a
imagem que, além de “ver”, procure “reparar” o que nela chama a atenção, o que nela incomoda e
desestabiliza o olhar, já domesticado pelo fotográfico.
Entre os inúmeros conceitos, acerca da imagem fotográfica, apresentados no decorrer da
dissertação, opta-se pela escolha de apenas três, a partir dos quais se apresentará um breve
comentário, por meio da observação de três imagens que, de alguma maneira, os materializa.
Nenhum desses conceitos é exclusivo da fotografia estenopeica, mas é através dela que serão
observados, pela capacidade que ela tem em evidenciá-los.
A escolha partiu da observação das imagens e das posturas dos artistas contemporâneos
com relação à fotografia estenopeica. Ao buscar compreender os motivos que levam esses artistas a
escolherem a fotografia estenopeica como meio de expressão, percebe-se que algumas inquietações
são recorrentes, e estão presentes nas discussões e nos depoimentos de grande parte deles.
Talvez, o primeiro aspecto que chame a atenção nas imagens estenopeicas seja a
facilidade de obter imagens anamórficas. As distorções de perspectiva, possíveis graças às
características ópticas de formação da imagem e ao uso câmeras de formato diferente daquele
imposto convencionalmente à fotografia com lentes, provocam o estranhamento da imagem. Se o
observador já se habituou às diferentes deformações provocadas pela fotografia com lentes, a
fotografia estenopeica pode provocar tantas outras, que dificilmente passariam despercebidas.
Outro aspecto importante, e que não poderia deixar de ser notado, é a questão do
tempo. Impregnada na fotografia e na imagem fotográfica, essa questão se torna mais aguda na
fotografia estenopeica. Se a imagem fotográfica já registra um tempo que não equivale àquele da
percepção humana, a fotografia estenopeica evidencia isso por meio de seus longos períodos de
exposição. A dificuldade do registro instantâneo da fotografia estenopeica, acaba chamando a
atenção para a discussão do tempo na própria fotografia.
Por fim, aquele que, sem dúvida, pode ser considerado o aspecto mais instigante da
fotografia estenopeica: a possibilidade de construção do próprio aparelho. Os usuários que
217
desconhecem, ou mesmo aqueles que não se preocupam com o conceito de “caixa preta” de
Flusser, estão, de alguma maneira, “desconstruindo” o aparelho.
Assim, a observação das imagens se dará a partir desses três aspectos: a anamorfose, o
tempo e a desconstrução da caixa preta.
Essas características já puderam ser observadas, de diferentes formas e em inúmeras
imagens no decorrer da dissertação. Neste momento, se buscaram imagens que,
independentemente de um apelo estético, apontam a presença, em maior ou menor grau, desses
três conceitos, e apresentam, explicitamente, pelo menos um deles.
218
As imagens
1.
Figura 130: Joaquín Casado, Port Olímpic, Barcelona, 2003.
Fonte: Homepage Estenopeica. 154
2.
Figura 131: Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999.
Fonte: Homepage Blog de Raul Gutierrez.155
3.
Figura 132: Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985.
Fonte: Bachler, 2008.
154
Disponível em: <http://www.estenopeica.com/Artistas/Joaqu%EDn%20Casado/pages/comic_a_jpg_jpg.htm>.
Acesso em: 12 dez. 2007.
155
Disponível em: <http://www.mexicanpictures.com/headingeast/2007/05/michael-wesley.html>. Acesso em 10
maio 2008.
219
IMAGEM 1
O primeiro aspecto que chama a atenção ao olhar para a fotografia de Joaquin Casado é
a anamorfose da imagem. A deformação da perspectiva, com a curvatura da linha do horizonte e a
torção dos prédios, provoca o estranhamento diante da imagem.
No primeiro plano, as faixas da rua e a própria rua estão curvadas, numa distorção
oposta àquela que normalmente se observa em decorrência, por exemplo, de um grande ângulo de
abertura da imagem (como as distorções provocadas por lentes super grande-angulares). Nos
prédios, a distorção segue a mesma lógica. Na perspectiva central da câmera fotográfica
convencional com lentes, os objetos diminuem de tamanho na medida em que se afastam da
câmera: numa fotografia com lentes feita de dois edifícios próximos e tomada a partir do ponto de
vista da rua, por exemplo, o que se teria, seria o afunilamento e a aproximação do topo dos
edifícios. Na imagem de Casado, ao invés de um afunilamento, o topo dos prédios se alarga; ao
invés de se aproximarem em direção a um ponto, os prédios se afastam. Nenhum sistema óptico
da fotografia tradicional com lentes, a que se está acostumado, consegue reproduzir esse tipo de
desvio da perspectiva.
Cada observador demora um tempo diferente para reconhecer os elementos da imagem.
Inicialmente os prédios, em seguida a rua e os demais elementos vão sendo reconhecidos. Não
221
fosse o fato de se saber que se trata de uma fotografia, se pensaria que a imagem é um desenho,
uma ilustração, propositadamente distorcida. Saber que se trata de uma fotografia, seja qual for a
técnica utilizada para obtê-la, faz com que se procure nela o reconhecimento do referente. Por se
tratar de uma fotografia, sabe-se que os prédios existem na realidade, porque a gênese fotográfica
indica que a imagem foi formada pela luz refletida pela cena. A partir do momento em que se
reconhece o referente da imagem, os sentidos e a memória estabelecem diretamente uma conexão
entre o que seriam os prédios reais e suas imagens, mesmo que distorcidas. No entanto, o que a
imagem apresenta não é um espelho do real: a ilusão de realidade garantida pelo modelo
perspectivo se destrói com a desconstrução da perspectiva e da estrutura dos edifícios. Se a
característica mimética de algumas imagens fotográficas poderia dar a impressão de se estar
olhando através de janelas, as distorções desta imagem não deixam dúvidas de que ela é apenas
uma representação dos dois prédios: uma imagem construída pelo fotógrafo e pela câmera. A
representação não se deu, de maneira alguma, de forma automática. Mesmo que se pense que se
trata de uma distorção obtida por meio de manipulação digital, a imagem não mais perpetua a
noção do “fotográfico” que está impregnada no senso comum. Fica evidente a presença de algum
tipo de intervenção no processo fotográfico.
Com relação ao tempo, o que se repara na imagem é que nenhum movimento foi
registrado, nem dos objetos, nem da câmera. A imagem não apresenta nenhum elemento
“borrado”, muito provavelmente por conta do longo tempo de exposição, que não permitiu que
qualquer objeto que se movimentasse fosse registrado. Aparecem apenas os objetos da cena que
estão completamente parados, como os edifícios e alguns veículos no canto inferior esquerdo da
imagem. Certamente, no momento de captação da imagem, circulavam veículos e pessoas pela
rua que aparece em primeiro plano. Mas, o deslocamento desses corpos não foi o suficientemente
lento para deixar marcado na imagem, qualquer registro de sua passagem. O tempo que se
percebe aqui é também diferente daquele da percepção humana. Como um olhar seletivo que se
fixa numa imagem, tentando escapar dos “ruídos” que se interpõem entre os olhos e a paisagem.
As características formais da imagem são resultado da intervenção do fotógrafo na
configuração da câmera. O fotógrafo se propôs a colocar o material sensível de forma irregular,
porque conhece o processo de formação da imagem no interior da câmera, e, mais do que isso,
sabe que quando a imagem se forma, apenas por um orifício, ela não mais depende de um “plano
222
focal”. Ou seja, ela se forma com um “foco” relativo em todo o interior da câmera. A escolha da
configuração estrutural da câmera e do material sensível depende do conhecimento do processo.
Casado precisou “branquear” a caixa preta da câmera estenopeica para construir sua imagem.
Obtendo um resultado estético que, a princípio, pode parecer apenas um acidente, ou um acaso,
ou ainda, efeito da manipulação digital. Sem dúvida, a construção da imagem dependeu de uma
série de escolhas, dentre as inúmeras possibilidades que a fotografia estenopeica permite, inclusive
incluindo a indeterminação e o acaso como ingredientes.
223
IMAGEM 2
IMAGEM 3
Como terceira e última imagem, foi escolhida uma fotografia de Thomas Bachler do
projeto Travel Memories. Como comentado anteriormente, neste projeto, Bachler utilizou
pacotes de correio transformados em câmeras estenopeicas para registrar o trajeto de uma cidade a
outra.
O estranhamento que esta imagem provoca está justamente em não ser reconhecida
como uma fotografia tradicional. O resultado plástico/estético a aproxima da pintura e das
experiências com fotografia sem câmera das vanguardas históricas – fotogramas e luminogramas.
Neste, como em outros trabalhos de Bachler, o resultado, a princípio, não é o mais importante.
Muito provavelmente, esta imagem seria mais aceita como pintura do que como fotografia. Ela
não possui nenhuma das características encontradas numa imagem “fotográfica”, no senso
comum do termo. Trata-se de uma imagem abstrata, na qual não se percebe qualquer elemento
que indique uma representação espacial “fotográfica”, que procura reproduzir no espaço
bidimensional, as três dimensões da realidade. Na verdade, ela não representa nenhum objeto, é
226
impossível encontrar nela, o referente. Se o apego for pelo resultado estético, e não por uma
representação do real, a imagem pode ser considerada expressiva e agradável plasticamente. Por
outro lado, se o apego for por uma descrição simplificada do processo, ela pode ser entendida
como uma fotografia tradicional, já que ela é resultado da gênese fotográfica, por meio da
utilização de uma câmera.
Assim como buscaram as vanguardas, num processo de desconstrução e ao mesmo
tempo de construção da imagem, Bachler subverte a lógica da práxis fotográfica. O mais
importante, neste trabalho, é a maneira como a imagem é construída, ultrapassando a questão do
resultado para tocar numa outra, do conceito. O resultado estético é uma conseqüência.
Neste caso, o ato fotográfico não se limita ao “clique” ou à escolha de uma cena por
parte do fotógrafo. O ato fotográfico é quase performático. Sem ampliar a discussão para outros
processos artísticos, limitando apenas ao fotográfico, pode-se dizer que esse trabalho envolve
outros elementos, como a autoria coletiva e a independência do processo, que o distanciam da
práxis tradicional da fotografia.
Ao mesmo tempo que a imagem não apresenta qualquer característica formal que remeta
a uma representação fotográfica de espaço, também não se percebe, ao menos visualmente,
nenhuma indicação da passagem do tempo. No entanto, o tempo é um elemento fundamental na
construção do resultado da imagem. Se o tempo de exposição se aproximasse do “instantâneo”,
provavelmente, o resultado não teria as características formais de abstração que a imagem
apresenta. A sobreposição de imagens, decorrente do longo tempo de exposição, associada à
movimentação da câmera, provoca o não reconhecimento de qualquer relação figurativa na
imagem. Se a câmera se movimenta, o assunto, além de se movimentar, se alterna. Na fotografia
da praça Potsdamer Platz de Michael Wesely, a câmera assume uma postura passiva, aguardando
os acontecimentos e a transformação do espaço. Nesta imagem de Bachler, tanto a câmera quanto
a cena são inconstantes. Tudo é imprevisível. As condições de formação da imagem são tão
abstratas quanto o seu resultado estético.
Mesmo de modo inconsciente e involuntário, existe uma condição de co-autoria na
construção dessa imagem. Todos aqueles que se interpuseram no trajeto da câmera – desde o
balconista que recebeu a carta, os funcionários internos do correio e até o carteiro – de alguma
maneira, participaram de sua construção.
227
Por mais impreciso ou sem controle que isso pareça, é justamente essa a opção do
fotógrafo. Sua opção se manifesta em todo processo, desde a construção da câmera, até a forma de
captação da imagem. A câmera estenopeica, mais do que qualquer outra, tem condições de se
travestir em pacote postal e viajar de uma cidade a outra registrando a imagem. Ela não traz
nenhum traço que a identifique como uma câmera fotográfica, podendo assim passar
despercebida. Na verdade, pode-se dizer que é um pacote postal transformado em câmera. Ou
seria o contrário?
Como pode ser observado neste e em outros trabalhos mostrados no decorrer da
dissertação, a postura assumida por Bachler com relação à fotografia, longe de ser convencional, se
identifica com as práticas artísticas interventoras, desconstruindo física e conceitualmente a caixa
preta na concepção de Flusser. A maneira como ele utiliza a câmera estenopeica não apenas
questiona, mas rompe com os conceitos e convenções fotográficas. Como na caixa que ele
transforma em câmera atirando nela, ou quando coloca um pedaço de filme fotográfico na boca e
faz seu auto-retrato no espelho, utilizando os lábios como obturador.
A observação dessas imagens permite afirmar que, além da postura experimental desses
artistas/fotógrafos, o que se quer mostrar é que a fotografia estenopeica possibilita, facilita, e
provoca essas atitudes. Mesmo quando mantém a gênese de uma fotografia feita com uma câmera
convencional com lentes, ela pode trazer resultados muito diferenciados daquela. E, mais do que
trazer resultados diferenciados, ela desestabiliza os conceitos que se têm com relação à fotografia
tradicional, pautados pela homologia, e reforça a consciência crítica que o artista deve ter com
relação ao meio fotográfico e ao processo de produção de imagens.
228
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas vezes, quando alguns fotógrafos (profissionais) se encontram, não numa reunião
entre amigos, mas por acaso, durante um trabalho, por exemplo, surgem certas atitudes, no
mínimo, curiosas. Talvez, numa tentativa de auto-afirmação, alguns fotógrafos começam a fazer
comentários a respeito de seu equipamento, e a especular sobre o equipamento dos colegas.
Nessas ocasiões, ao menos uma pergunta é recorrente:
— Que “equipo” você usa?
Um equipamento mais sofisticado, com mais recursos (ou, simplesmente, mais caro) se
transforma em símbolo de “status”, como se a “qualidade” do fotógrafo e da fotografia fosse
determinada pela sofisticação do equipamento. Atitude curiosa e, ao mesmo tempo, contraditória,
já que, no senso comum, se tem a idéia de que a imagem fotográfica é fruto do gênio criativo do
fotógrafo, ou seja, uma boa imagem é mérito exclusivo do fotógrafo, independente do “equipo”
que ele estiver usando.
Por outro lado, é também comum o comentário:
— Nossa! Que “bela” foto!
Seguida de um outro:
— Também, com aquela “super” câmera!
Aqui, o discurso se inverte, e a boa foto volta a ser determinada pela “qualidade” do
equipamento.
Na verdade, todo o movimento da indústria fotográfica se direciona ao aperfeiçoamento
técnico do aparato fotográfico, fazendo com que, cada vez mais, os equipamentos sejam capazes
229
de produzir “boas fotos”, independente da ação do fotógrafo. Chegando ao ponto de uma câmera
fotográfica, recém lançada comercialmente, garantir que é capaz de selecionar o momento exato
do sorriso, para registrar o retrato. O fabricante garante, ainda, que “a tecnologia de ‘Obturação
por Sorriso’” tem três níveis de sensibilidade, do sorriso mais discreto até a mais sonora
gargalhada. Ou seja, agora, o fotógrafo não precisa nem mesmo se preocupar com o “momento
decisivo”.
Começar as considerações finais de uma dissertação contando um “causo” pode parecer
estranho. No entanto, esse pequeno comentário, sobre algumas atitudes comuns no meio
fotográfico, tanto entre fotógrafos, quanto por parte da indústria fotográfica, traz um elemento
fundamental para a abordagem que se procurou estabelecer com relação à fotografia, à tecnologia
e, mais especificamente, com relação à fotografia estenopeica: a necessidade, antes de tudo, de
ultrapassar as limitações conceituais e técnicas enraizadas, convencionalmente, na fotografia, na
imagem fotográfica e no aparato fotográfico.
A determinação do aparelho sobre a ação do fotógrafo, ditando os resultados estéticos da
imagem e confinando o ato criativo às opções disponíveis no aparato fotográfico, restringem as
possibilidades de intervenção no processo de construção das imagens. Se, a cada dia, os
“funcionários” da fotografia contam com mais uma opção: um novo botão que garante os
“melhores” resultados para suas imagens, os artistas/fotógrafos experimentais, como bem pontuou
Flusser (2002), ao contrário, subvertem essas funções previamente programadas ao construir sua
própria câmera e quebrar a cadeia de consumo, questionando conceitual e formalmente seus
meios. Dessa forma, esses artistas caminham na direção oposta ao determinismo tecnológico
contido na concepção do aparato fotográfico, buscando, conscientemente, alternativas para
produzir imagens que não estão em seu programa. A simplicidade da fotografia estenopeica e a
possibilidade de construção da própria câmera fazem com que o usuário se aproxime e desvende o
aparato e o processo de formação da imagem fotográfica.
Por meio de uma infinidade de resultados formais, capazes de provocar o estranhamento
e evidenciar o seu processo de construção, as inúmeras imagens estenopeicas apresentadas no
corpo deste trabalho demonstram que a fotografia estenopeica permite desconstruir conceitos e
questionar “convenções” e “padrões” impostos à fotografia tradicional. Ela desestabiliza,
principalmente, a noção de fotografia como uma imagem análoga do “real”, como uma
230
representação homológica. É fácil confirmar essas afirmações, bastando, para isso, observar os
inúmeros exemplos de imagens anamórficas, como as obtidas, por exemplo: pelos fotógrafos
Cleber Falieri e Eric Renner, através, apenas, da alteração do padrão convencional que se
estabelece com relação ao formato e a disposição do material sensível; na utilização de múltiplos
orifícios das imagens de Ana Angélica, Jochen Dietrich e Jürgen Lechner; ou das imagens de
Joaquin Casado, que dispõe irregularmente o papel fotográfico; ou ainda nas distorções obtidas
pelo sistema de double slits de Casado e de Claudia Rojas. Essas imagens subvertem a construção
perspectiva, o que as distancia da idéia de janela transparente, comumente associada à imagem
fotográfica.
Nesse contexto, observar a diversidade da produção imagética de artistas
contemporâneos, que se utilizam da fotografia estenopeica no desenvolvimento de seus trabalhos,
permitiu confirmar que, por meio desta técnica, é possível estabelecer um intenso questionamento
acerca dos conceitos e dos pré-conceitos, cristalizados, no senso comum, sobre a fotografia como
reprodução fiel da realidade e, ao mesmo tempo, da tecnologia como sinônimo de progresso
técnico. Observar as atitudes do usuário ao transgredir a lógica do aparato fotográfico, por meio
da utilização de uma câmera rudimentar, como a câmera estenopeica, confirma, também, a
dimensão relacional da tecnologia, já que essas atitudes demonstram que, não é apenas o artefato
que determina o processo, mas a postura do usuário e todo o complexo conjunto de relações e
conceitos que convencionaram sua construção e utilização.
Essas posturas críticas diante do aparato fotográfico, suscitadas pela prática da fotografia
estenopeica, e que podem ser verificadas nos trabalhos desses artistas, evidenciam o processo de
construção da imagem por parte do usuário, e a importância de questionar os determinismos –
estético, conceitual, simbólico, econômico, tecnológico, etc. – que estão por trás da concepção
dos artefatos. A retomada desse aparato, aparentemente primitivo, que é a fotografia estenopeica,
muito distante das “novas” tecnologias, traz a tona a questão da fotografia como uma construção
simbólica que resulta de uma elaboração cultural e intelectual humana, sem, no entanto,
desconsiderar os avanços que se incorporam à técnica fotográfica.
No decorrer da dissertação, demonstrou-se, também, que algumas características
próprias ao processo da fotografia estenopeica - como a ausência do fenômeno óptico da refração,
os longos tempos de exposição, a multiplicidade de opções de construção da câmera e a
231
pimentões de Ilan Wolff. O que esses artistas buscam não é apenas o resultado plástico final. Suas
posturas de experimentação questionam o meio e transformam a práxis da fotográfica. A questão
da representação “fotográfica”, seja ela fiel ou não à realidade, fica em segundo plano. O que esses
artistas mostram com esses trabalhos é uma completa desconstrução do conceito de aparato
fotográfico, rompendo profundamente com o processo convencional de constituição da imagem
fotográfica, e com convenções limitadoras, impostas ao aparato fotográfico por questões
simbólicas, históricas, econômicas, tecnológicas, culturais e estéticas.
Por todos esses exemplos, acredita-se ter atingido o objetivo deste trabalho, que foi
evidenciar as dimensões sócio-culturais da tecnologia, através da desconstrução e do rompimento
da homologia no processo da fotografia tradicional, por meio do uso da câmera estenopeica no
contexto da produção fotográfica artística contemporânea.
Antes de finalizar, algumas considerações devem ser feitas sobre possíveis
encaminhamentos a esse estudo, que não foram contemplados neste trabalho, obedecendo a um
recorte, inicialmente proposto, e necessário, devido às limitações de tempo do mestrado e,
principalmente, porque significariam um demasiado alargamento do objeto de estudo.
No decorrer da pesquisa, sentiu-se a necessidade de aprofundar um olhar específico
sobre a produção estenopeica artística contemporânea brasileira. Talvez pela possibilidade de troca
de informações e de experiências, facilitada pela língua e pela geografia. Talvez pela curiosidade de
comparar a postura desses artistas “brasileiros” e especular as necessidades e inquietações que os
movem, diferentemente das que movem outros artistas, de outras culturas. Contraditoriamente,
no decorrer da pesquisa, constatou-se uma maior facilidade em conhecer a produção estenopeica
artística estrangeira, do que a brasileira. Provavelmente pela possibilidade de difusão da técnica e
da troca de experiências entre usuários do mundo todo por meio da internet. Ou porque se tenha
mais informações sobre o perfil da produção estenopeica brasileira voltado para a inclusão social e
a arte-educação. De qualquer maneira, esse aprofundamento se mostra como uma rica
possibilidade para trabalhos futuros.
Outro caminho, certamente interessante, seria buscar localizar, no universo de expressão
artística, referências de posturas conceituais e experiências estéticas, que se aproximem daquelas
observadas na produção estenopeica enfocada neste estudo. Atitudes de rompimento e de
234
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GLOSSÁRIO
Bromóleo
Procedimento fotográfico histórico que consiste basicamente no branqueamento das
zonas sombrias de uma cópia em papel de brometo e seu posterior revestimento com um
pigmento oleoso. O processo resulta em imagens com uma textura semelhante ao da
pintura a óleo.
Câmera reflex
Numa câmera reflex, o fotógrafo tem condições de enxergar o enquadramento exato da
imagem que vai ser registrada no filme. Um espelho e um prisma localizados no interior
da máquina fazem com que a imagem que atingirá o filme seja refletida várias vezes até
poder ser visualizada no visor.
Cianótipo
Procedimento fotográfico histórico que tem sido retomado intensamente por fotógrafos
e artistas contemporâneos. Uma emulsão líquida é preparada com sais de ferro e em
seguida espalhada sobre papel ou outro tipo de suporte. A impressão é feita por contato e
o material deve ser exposto a uma luz muito intensa, normalmente se usa a luz do sol.
Depois da exposição à luz, a imagem deve ser lavada em água corrente para fixar a
imagem. O resultado são imagens em tons de azul profundo.
Círculo de confusão
Termo que designa o diâmetro do maior círculo que pode ser observado como um
ponto a uma determinada distância (TRIGO, 1998)
Coordenadas Cartesianas
Descartes, matemático e filósofo francês, desenvolveu um sistema de representação
geométrica em eixos chamado Sistema de Coordenadas Cartesianas ou espaço cartesiano
que permitia localizar e especificar num plano bidimensional, pontos num determinado
"espaço" com n dimensões.
Equinócio
O equinócio é definido como um dos dois momentos em que o Sol, em sua órbita
aparente (como vista da Terra), cruza o plano do equador celeste (a linha do equador
terrestre projetada na esfera celeste. A palavra equinócio vem do Latim e significa "noites
iguais". No hemisfério norte o equinócio da primavera ocorre no dia 20 de março, e o
equinócio do outono ocorre no dia 23 de setembro. Estas datas marcam o início das
respectivas estações do ano neste hemisfério. No hemisfério sul é o contrário, o
246
Fotograma
Fotograma é um processo pelo qual se obtém imagens fotográficas sem a utilização de
câmera. A imagem se forma pela incidência direta da luz sobre um material sensível
sobre o qual são colocados diferentes objetos, transparentes ou opacos. Os objetos
opacos barram toda a luz registrando na imagem apenas sua silhueta; objetos
transparentes deixam passar parte da luz e gravam na imagem as diferentes nuances de
acordo com sua opacidade. Depois de exposto à luz, o material sensível é processado
quimicamente para fixar a imagem. O processo recebeu vários nomes no decorrer da
história: foi chamado de “perfis agenciados pela luz” por Wedgwood; “desenhos
fotogênicos” por Fox Talbot, “heliografia” por Nicéphore Niépce; e mais recentemente
ficou conhecido como “rayograma”, numa derivação do nome do fotógrafo Man Ray,
que utilizou amplamente a técnica (MONFORTE, 1997).
Fotogravura
Procedimento fotográfico histórico, a fotogravura, ou etchings, é um processo bastante
complexo, que envolve procedimentos de gravação e impressão semelhante ao das
gravuras em metal por corrosão ácida. A particularidade do processo é que a imagem é
feita através da transferência de uma emulsão de gelatina a base de dicromato de
potássio, que foi preparada sobre um papel, exposta à luz e depois umedecida e
pressionada contra a chapa metálica já preparada com breu. Depois de corroída, a chapa
é “entintada” e impressa como uma gravura em metal tradicional. A técnica permite
registrar sobre a chapa os meios-tons e os detalhes mais finos da imagem original, mas
com uma textura diferenciada. (MONFORTE, 1997)
Fotômetro
Fotômetro é um instrumento que mede, por meio de uma célula fotoelétrica, a
quantidade de luz que incide ou é refletida por um objeto. Os fotômetros embutidos nas
câmeras medem apenas a luz refletida pelos objetos. Os fotômetros de mão podem ler a
luz refletida e/ou a luz que incide nos objetos.
Fótons
Partículas quânticas da luz. Pela teoria quântica, os fótons são definidos como as
partículas elementares transmissoras de força eletromagnética. Como todas as partículas,
os fótons exibem uma natureza dualística: onda e partícula, ou seja, em alguns
fenômenos exibem mais claramente a natureza ondulatória e em outros se torna mais
evidente a natureza de partículas.
Fotossensibilidade
Fotossensibilidade quer dizer literalmente “sensibilidade à luz”. É a propriedade que
alguns compostos químicos possuem de se modificar quando expostos à luz. Exemplos
bastante conhecidos são: o bronzeamento da pele quando exposta ao sol; o
enegrecimento da prata; o esmaecimento das cores de um pintura ou de um tecido
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depois de longo tempo de exposição à luz do sol. Nestes casos houve o escurecimento ou
esmaecimento das cores. Os materiais fotográficos, de maneira geral, são constituídos
por um composto fotossensível - que enegrece quando exposto à luz - à base de sais
compostos de prata. Esses sais, associados a uma gelatina animal, formam o que se
conhece por emulsão fotográfica.
Geometria euclidiana
A geometria euclidiana é a geometria sobre planos ou em três dimensões. Foi
desenvolvida por Euclides, considerado o pai da geometria, três séculos antes de Cristo,
em um conjunto de livros chamados Elementos. Neles, Euclides formaliza as
proposições fundamentais que dominaram a geometria durante milênios.
Goma-arábica
Procedimento fotográfico histórico cuja emulsão é preparada com uma mistura de
goma-arábica, bicromato de potássio ou de amônia e um pigmento. A emulsão é
espalhada sobre papel ou outro tipo de suporte. Em seguida, se faz a impressão por
contato e o material deve ser exposto a uma luz muito intensa, normalmente se usa a luz
do sol. Depois da exposição à luz, a imagem deve ser lavada em água corrente para fixar a
imagem. O processo possibilita várias camadas sucessivas, podendo resultar numa
imagem monocromática, ou policromada, dependendo do número de impressões e de
pigmentos empregados.
Heliografia
A impressão heliográfica é feita por contato do original com o suporte e a revelação, por
meio de vapores de amônia. O cheiro muito acentuado desses vapores constitui uma das
desvantagens do processo, outra é a instabilidade de permanência da imagem, ainda que
preservada em local sombrio. O baixo custo do papel heliográfico pode ser fator
estimulante para a prática de fotogramas. As imagens, normalmente, são nas cores azul,
violeta, laranja e vermelho.
Luminograma
Processo de impressão no qual não se utiliza câmera para formar a imagem. No
luminograma, utilizam-se diferentes feixes de luz, como de uma lanterna, diretamente
sobre o material sensível que é em seguida processado quimicamente.
Platinótipo
O platinótipo, ou platinum, é um procedimento fotográfico histórico que utiliza cloreto
de platina na solução fotossensível. A imagem deve ser impressa por contato, sob luz
intensa. A revelação envolve vários químicos, e o resultado são imagens muito estáveis e
com grande definição de detalhes.
Profundidade de campo
Região de uma cena (com diferentes planos) que se estende à frente e atrás do plano
focalizado que aparece na imagem com focalização nítida. Ou seja, os diferentes planos
da cena (que formam a imagem em diferentes planos de foco no interior da câmera) são
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vistos com a mesma nitidez. Isto se deve ao poder de resolução do olho, que não é capaz
de diferenciar uma imagem puntiforme de um círculo desfocado de diâmetro menor do
que o círculo de confusão.
Quimigrama
Processo fotográfico no qual não se utiliza câmera para formar a imagem. No
quimigrama, ou pintura química, os químicos utilizados no processo de revelação,
fixação ou tonalização são usados para “desenhar sobre o papel”, durante o
processamento químico. O procedimento é feito sob luz ambiente e o material sensível
reage imediatamente. Pode-se “desenhar” com o revelador: após a fixação, os locais que
entraram em contato com o revelador ficam pretos e o restante do papel permanece
branco. Se for utilizado o fixador, ele é aplicado ao material sensível antes da passagem
pelo revelador e em seguida é processado normalmente (interruptor e fixador). As áreas
cobertas pelo fixador aparecem brancas sob um fundo preto.
Satori
Nos dizeres de Suzuki, autor de Introdução ao Zen Budismo: O Satori é uma espécie de
percepção interior - não naturalmente a percepção de um objeto específico, mas, por
assim dizer, a faculdade de sentir a verdadeira realidade. É uma percepção de ordem mais
elevada.
Solarização
Conhecido também como “efeito Sabattier”, a solarização consiste na inversão dos
valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica, que pode ser obtido através da
rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento.
Solstício
Em astronomia, solstício é o momento em que o Sol, durante seu movimento aparente
na esfera celeste, atinge o seu maior afastamento em latitude, da linha do equador. Os
solstícios ocorrem duas vezes por ano: em 21 de dezembro e em 21 de junho. No
hemisfério norte o solstício de verão ocorre no dia 21 de junho, e o solstício de inverno
ocorre no dia 21 de dezembro. Estas datas marcam o início das respectivas estações do
ano neste hemisfério. No hemisfério sul é o contrário. O solstício de verão ocorre no dia
21 de dezembro, e o solstício de inverno ocorre no dia 21 de junho.
Van Dyck
Processo fotográfico histórico também conhecido como Marron Van Dyck ou Kalitipo,
O processo é semelhante ao do cianótipo. A emulsão é preparada com ácido tartárico e
nitrato de prata e espalhada sobre o suporte. A impressão é feita por contato e o material
deve ser exposto a luz intensa. Em seguida a imagem é lavada em água corrente. O
resultado final é uma imagem de tons de marrom-escuro. O emprego de nitrato de prata
na fórmula sensibilizadora torna o processo pouco econômico. (MONFORTE, 1997)
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Vidros ópticos
Os vidros ópticos representam o principal material utilizado para a fabricação de lentes.
Pequenas alterações nas proporções entre os elementos químicos de sua composição
(óxidos de silício, alumínio, cálcio, potássio, chumbo e sódio) permitem obter diferentes
vidros, modificando suas características e permitindo uma grande variedade de vidros
ópticos que são combinados na produção das objetivas. Materiais plásticos também
podem ser utilizados para a produção de lentes, no entanto, sua pequena resistência à
abrasão faz com que sejam normalmente usados em associação com o vidro. Algumas
objetivas modernas são mistas, ou seja, o primeiro elemento é vidro, e os elementos
internos são moldados em material plástico (TRIGO, 1998, p. 52)
Vodu
No texto, o termo vodu está sendo utilizado como referência a bonecos utilizados em
cerimônias da religião vodu, ou vodum. O Vodu é uma manifestação religiosa de
tradição afro-americana. O culto religioso popular de caráter sincrético incorpora
aspectos do ritual católico-romano. O termo deriva de vodun, "deus" ou "espírito" na
língua dos fons. O culto tornou-se espécie de religião oficial da comunidade camponesa
do Haiti. O vodu possui uma imensa galeria de deuses aos quais denomina-se
genericamente de loas. Muitos adeptos urbanos acreditam que os loas podem ser
benévolos, os loas Rada, ou mesmo malévolos, os loas Petro. Cada grupo de praticantes
tem seu local para realizar as cerimônias, que envolvem cantos, toque de tambores,
danças, preces, preparo de alimentos e o sacrifício ritual de animais. Existem também os
paket, que são bonecos feitos em madeira ou cera, representando as pessoas que se quer
fazer mal, ou até mesmo em certos casos, eliminar. A esses bonecos, costuma-se atear
fogo ou então espetar alfinetes enferrujados em regiões do corpo consideradas vitais,
como por exemplo, na área relacionada ao coração.