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Notei que a expressão do meu amigo se tornou mais triste ao afirmar que ele e
a sua gente preferiam ser surdos às palavras venenosas que tantas vezes tiveram que
ouvir da boca daqueles inimigos do Darfur: “se quereis viver, ide embora para longe
de aqui”! Ibrahim deixou de me olhar e ouvi-o falar a sós: “ir embora? Deixar a nossa
terra? Se há uma terra que nos pertence é mesmo esta. Nós somos da tribo fur e
vivemos aqui no Darfur, a nossa casa, a nossa terra”. Fez um esforço para controlar a
emoção que se lhe via crescer no rosto. E concluiu: “abuna, destruindo-nos o pão que
crescia no campo... entende-se bem que estava tudo planeado para nos matarem à
fome”.
Enquanto Ibrahim me dava a conhecer a história da sua gente, eu ia ligando a
sua a outras histórias semelhantes que fui conhecendo quer indirectamente, quer pelas
palavras dos próprios. E acabei por não duvidar das muitas histórias de verdadeiros
massacres que acontecem neste tão grande e vasto Darfur. As pessoas falam e contam
mas, afinal, não são simples boatos ou contos de fadas. São vidas reais que
testemunham o sofrimento vivo e choram os seus queridos que não puderam resistir à
violência de quem se sente grande só porque tem uma arma na mão.
Este tipo de escaramuças, provocações e ataques sucediam-se com frequência.
Porém, em 2002 começou a haver razias de maiores consequências, cujo primeiro
grande ataque provocou a fuga, em massa, de todos os habitantes. Ajeitaram, como
refúgio, o primeiro pedaço de deserto que encontraram fora da aldeia. Mas nem todos
lá puderam chegar. Os camelos e os cavalos, comandados a preceito, encarregavam-se
de completar o que porventura ia falhando no ponto de mira da arma dos janjauid. O
massacre foi desastroso e subtraiu várias centenas à população de Teguê. Havia
tristeza, pranto e luto. Mas render-se e entregar-se ao inimigo não fazia parte dos seus
planos. Entre as vítimas, merece menção especial o seu querido e valoroso omda
(chefe do clan) da aldeia, Khalil Ahmad, 65 anos. Se foi chefe de nome e de honras,
muito mais o foi no desempenho da sua função como tal.
“Sofremos imenso pela maneira como torturaram o nosso respeitável Khalil
por tudo aquilo que ele representa para nós” – lamenta o Ibrahim. Forçaram-no a
entregar a espingarda “clachinkof” que lhe tinha sido legal e devidamente conferida
pelo governador do distrito de Nyala. Foi minuciosamente procurado, perseguido,
torturado. A um certo momento, como que juntou as forças que lhe restavam e
perguntou: “em nome de quem actuais”? E a resposta foi uma bala no peito que o
deixou morto, banhado no seu proprio sangue.
Uma aldeia inteira estava em fuga! Correram... Caminharam… Quem se
cansava, recebia ânimo e coragem para não ficar para trás; seria o seu fim. Em pouco
mais de duas horas estavam debaixo do grande embondeiro por eles bem conhecido.
Mas, vítimas dos disparos, nem todos compareceram. Os mortos foram várias
centenas. Os vivos, esses aceitaram o refúgio que se lhes proporcionou naquele
momento e naquele lugar, a céu aberto. Agradeceram a companhia amiga dos
gigantescos embondeiros e a sombra fresca dos nims e outras árvores que, à noite,
cediam o turno à lua e às estrelas. Oganizaram turnos de sentinelas. Dois dias depois,
tendo-se assegurado de que os bandidos tinham partido, os representantes das familias
voltaram à aldeia para trazer à comunidade o que podiam de abastecimento: sorgo,
tâmaras, feijão...
Mantiveram este ritmo de sobrevivência durante 4 meses. Mas a primeira de
todas as tarefas tinha sido a de enterrar os mortos. Alguns corpos não foram
encontrados, outros não foram reconhecidos. Obra de cães e lobos que, por quanto
triste, ninguém pode condenar diante do Criador.
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Cavar fossas comuns onde sepultavam mais de 30 corpos de cada vez foi,
certamente, um trabalho pesado para os músculos debilitados daqueles homens. Mas a
prova mais dura terá sido, sem duvida alguma, o sofrimento interior e emocional, que
não se apagará com o passar dos anos.
A solidariedade e união entre os habitantes de Teguê fortalecia a coragem e o
desejo de viver. O fim de uma etapa é sempre o princípio de outra. Mas agora que o
omda lhes faltava, era tudo muito mais dificil. As autoridades do distrito arranjavam
sempre desculpas para evitar o encontro com os delegados da aldeia, que pediam
justiça e pão.
O tempo passava e, para a maioria dos conterrâneos do Ibrahim tornou-se
imperioso voltar à aldeia para semear os seus campos e assim poder sobreviver. Claro,
estariam sempre alerta para alguma eventual e má surpresa. O que realmente se
registou 4 meses depois tendo, de facto, sofrido um novo ataque dos janjauid. E as
operações repetiram-se: roubos, mortes e violações. Voltaram a ser hóspedes dos
embondeiros, da lua e das estrelas. E, contrariamente ao que se poderia pensar
sentiram, na sua fé de crentes muçulmanos, que Deus não lhes faltou.
Durante os 5 meses seguintes não houve sinais de janjauid. Quem sabe se,
desde agora, tudo voltaria ao normal?! Entretanto, no coração dos habitantes de Teguê
ficou uma ferida aberta: “ide embora de aqui, se quereis viver”. O desejo de vingança,
fosse ele realizado neste mundo ou no outro, era visivel em não poucos habitantes de
Teguê. Alguns diziam sem escrúpulo: “no dia da ressurreição – o juízo final para os
muçulmanos – terei o gosto de ver aqueles bandidos, frente a frente, e Maomé será
nossa testemunha contra eles”.
Ao romper da aurora de um dia aprarentemente normal, cada um preparava-se
para começar a sua jornada. Gente que rezava na mesquita, gente que trazia água, as
mães ocupadas com os pequenos, os idosos sem pressa no seu angarebe (cama feita
de cordas).
De repente, alguem deu o alarme: “fogo! incêndio!” Uma mulher gritou do
lado oposto: “socorro! a minha casa está a arder!” De ai a pouco ouviu-se um grito
colectivo que ficou no ar: “Al janjauid! Al janjauid!”
Tinha chegado a hora de constatar a veracidade daquelas malditas palavras que
tão profundamente tinham atingido o coração: “ide embora de aqui, se quereis viver”.
A verdade é que os janjauid continuavam a “ter a faca e o queijo na mão”, cortando à
vontade sem que alguém lhes pedisse contas. Atacaram mais uma vez. De novo a
fuga, em massa, até que se encontraram juntos no mesmo lugar dos embondeiros.
Entretanto, mudaram para a vila mais próxima, Merechin, onde foram socorridos
pelas organizações humanitárias internacionais. Em Teguê só ficou o silêncio dos
mortos que cobriam o chão. Assim o testemunham aqueles homens que, no dia
seguinte, voltaram àquele sinistro lugar. Chamou-os a consciência e o dever sagrado
de sepultar os mortos. Corpos cravejados de balas, corpos carbonizados e alguns deles
irreconheciveis. Era uma vez uma aldeia…!
A história dos habitantes de Teguê continua a repetir-se hoje em tantas outras
aldeias deste martirizado Noroeste do Sudão. As ameaças não param. O odioso refrão
continua a ferir-lhes a alma: “Ide embora se quereis viver”...! A contagem dos mortos
já vai em mais de 200.000 Actualmente, são quase 2 milhões e meio os darfurianos
que tentam sobreviver nos campos de desalojados.
Ibrahim acaba de me dizer que, se espero mais um pouco, terei a oportunidade
de conhecer a sua mulher. Ela, hoje, saiu da sua comunidade de Utach, onde habitam
66 mil pessoas (um acampamento considerado pequeno) que para ali foram
deslocadas das suas aldeias. Deixou os filhos na vizinha e veio à cidade, à procura de
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Padre Feliz
Missionário Comboniano em Nyala, Darfur