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ERA UMA VEZ UMA ALDEIA

Esta manhã fui às compras ao um Dafaso, o mercado mais popular em Nyala.


Mau dia para os pobres. O comboio de mercadorias e combustível que vem da capital
ainda não chegou. Está com três dias de atraso. Os preços são altíssimos e a gente
protesta. Ouço alguém perto de mim que diz: o exército dos rebeldes teve a boa ideia
de assaltar o comboio que vinha de Cartum e, assim, ganhar força contra os janjauid e
o governo; mas, deste modo, também acabam por nos matar à fome!
Chego à porta da missão e tenho, como de costume, o Ibrahim à minha frente.
Trinta e cinco anos de idade. Casado e quatro filhos. Com ele, qualquer um se sente
em casa. Quem entra no adro da igreja quase “tropeça” com este amigo de todos e
recebe uma boa palavra. A sua figura tornou-se familiar. Há vários anos que ocupa
este quadrado da rua. Trabalha aqui mesmo como guarda à porta da residência de
estrangeiros empregados pela Unicef. Somos vizinhos porta com porta.
Hoje não quero ter pressa. Aceito, à letra, o convite que ele, várias vezes, me
fizera.
- Não te disturbo, pois não? Vejo que acabaste agora mesmo a oração, pois já
estás a enrolar a “maslaia” (pequeno tapete usado pelos muçulmanos na oração). Vi-te
rezar também outras vezes. Deus te acompanhe sempre e te dê a paz.
- “Ámen, ámen” – disse o Ibrahim, enquanto um sorriso se desenhava
espontaneamente nos seus lábios. E acrescentou: “hoje a oração não me correu lá
muito bem. Pensava em Teguê.
- Teguê? Uma aldeia na direcção Norte, a caminho de El Fasher?
- Exactamente; é a minha terra – assentiu. Já passa de 5 anos que lá não vou.
- Isso é grave! O que são 30 kms para um sudanês? Ou será que a Unicef não
dá férias aos empregados?
Eu brincava com as palavras, mas o meu interlocutor falava de verdades
“sagradas” que não admitem brincadeiras nem ligeirezas. Teguê era e continua a ser a
terra do meu amigo Ibrahim. Mas a aldeia já não existe. Dos quase três mil e
quinhentos habitantes que eram, pouco mais de metade puderam chegar sãos(?) e
salvos ao acampamento de desalojados em Utach, aqui nos arredores de Nyala. Sei
que o assunto é muito delicado para o meu amigo e não quero ser eu a trazer-lhe à
mente recordações tão tristes. Mas a iniciativa veio dele próprio. Não é só mais uma
história de tantas que tenho ouvido contar. É que o caso Teguê está na lista das origens
da actividade dos janjauid.
As notícias sobre o conflito do Darfur começaram a ser conhecidas e
divulgadas fora do Sudão em 2003. Mas a verdade é que, já desde 1999 os habitantes
de Teguê conheciam o flagelo dos janjauid e eram vítimas das suas barbaridades. “A
maioria montados em camelos e outros em cavalos, iam à nossa terra só para nos
provocar e humilhar. Como que passeavam no meio das cultivações de amendoim e
sorgo (o nosso pão diário) pertencentes às muitas famílias da nossa aldeia. Eles,
naquele dia, eram mais de mil.” Não fosse eu duvidar dos seus cálculos, Ibrahim
repetiu, pausadamente: “mais de mil, uallahi” (juro por Deus). Ele não compreende
como alguém tem coragem de impedir outrem de colher e comer o pão semeado por
suas próprias mãos. E perguntava ainda: “se, de verdade, quisessem ir a algures e
tivessem que passar por Teguê, porque é que não abriam caminho, usando tanto
espaço livre e não cultivado de deserto e savana que havia ali em volta...?! Além
disso, mais tarde, começaram a fazer verdadeiras razias. Entravam nas nossas casas,
levavam o que bem lhes apetecia, violentavam mulheres e, quem oferecesse
resistência, era abatido no momento”.
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Notei que a expressão do meu amigo se tornou mais triste ao afirmar que ele e
a sua gente preferiam ser surdos às palavras venenosas que tantas vezes tiveram que
ouvir da boca daqueles inimigos do Darfur: “se quereis viver, ide embora para longe
de aqui”! Ibrahim deixou de me olhar e ouvi-o falar a sós: “ir embora? Deixar a nossa
terra? Se há uma terra que nos pertence é mesmo esta. Nós somos da tribo fur e
vivemos aqui no Darfur, a nossa casa, a nossa terra”. Fez um esforço para controlar a
emoção que se lhe via crescer no rosto. E concluiu: “abuna, destruindo-nos o pão que
crescia no campo... entende-se bem que estava tudo planeado para nos matarem à
fome”.
Enquanto Ibrahim me dava a conhecer a história da sua gente, eu ia ligando a
sua a outras histórias semelhantes que fui conhecendo quer indirectamente, quer pelas
palavras dos próprios. E acabei por não duvidar das muitas histórias de verdadeiros
massacres que acontecem neste tão grande e vasto Darfur. As pessoas falam e contam
mas, afinal, não são simples boatos ou contos de fadas. São vidas reais que
testemunham o sofrimento vivo e choram os seus queridos que não puderam resistir à
violência de quem se sente grande só porque tem uma arma na mão.
Este tipo de escaramuças, provocações e ataques sucediam-se com frequência.
Porém, em 2002 começou a haver razias de maiores consequências, cujo primeiro
grande ataque provocou a fuga, em massa, de todos os habitantes. Ajeitaram, como
refúgio, o primeiro pedaço de deserto que encontraram fora da aldeia. Mas nem todos
lá puderam chegar. Os camelos e os cavalos, comandados a preceito, encarregavam-se
de completar o que porventura ia falhando no ponto de mira da arma dos janjauid. O
massacre foi desastroso e subtraiu várias centenas à população de Teguê. Havia
tristeza, pranto e luto. Mas render-se e entregar-se ao inimigo não fazia parte dos seus
planos. Entre as vítimas, merece menção especial o seu querido e valoroso omda
(chefe do clan) da aldeia, Khalil Ahmad, 65 anos. Se foi chefe de nome e de honras,
muito mais o foi no desempenho da sua função como tal.
“Sofremos imenso pela maneira como torturaram o nosso respeitável Khalil
por tudo aquilo que ele representa para nós” – lamenta o Ibrahim. Forçaram-no a
entregar a espingarda “clachinkof” que lhe tinha sido legal e devidamente conferida
pelo governador do distrito de Nyala. Foi minuciosamente procurado, perseguido,
torturado. A um certo momento, como que juntou as forças que lhe restavam e
perguntou: “em nome de quem actuais”? E a resposta foi uma bala no peito que o
deixou morto, banhado no seu proprio sangue.
Uma aldeia inteira estava em fuga! Correram... Caminharam… Quem se
cansava, recebia ânimo e coragem para não ficar para trás; seria o seu fim. Em pouco
mais de duas horas estavam debaixo do grande embondeiro por eles bem conhecido.
Mas, vítimas dos disparos, nem todos compareceram. Os mortos foram várias
centenas. Os vivos, esses aceitaram o refúgio que se lhes proporcionou naquele
momento e naquele lugar, a céu aberto. Agradeceram a companhia amiga dos
gigantescos embondeiros e a sombra fresca dos nims e outras árvores que, à noite,
cediam o turno à lua e às estrelas. Oganizaram turnos de sentinelas. Dois dias depois,
tendo-se assegurado de que os bandidos tinham partido, os representantes das familias
voltaram à aldeia para trazer à comunidade o que podiam de abastecimento: sorgo,
tâmaras, feijão...
Mantiveram este ritmo de sobrevivência durante 4 meses. Mas a primeira de
todas as tarefas tinha sido a de enterrar os mortos. Alguns corpos não foram
encontrados, outros não foram reconhecidos. Obra de cães e lobos que, por quanto
triste, ninguém pode condenar diante do Criador.
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Cavar fossas comuns onde sepultavam mais de 30 corpos de cada vez foi,
certamente, um trabalho pesado para os músculos debilitados daqueles homens. Mas a
prova mais dura terá sido, sem duvida alguma, o sofrimento interior e emocional, que
não se apagará com o passar dos anos.
A solidariedade e união entre os habitantes de Teguê fortalecia a coragem e o
desejo de viver. O fim de uma etapa é sempre o princípio de outra. Mas agora que o
omda lhes faltava, era tudo muito mais dificil. As autoridades do distrito arranjavam
sempre desculpas para evitar o encontro com os delegados da aldeia, que pediam
justiça e pão.
O tempo passava e, para a maioria dos conterrâneos do Ibrahim tornou-se
imperioso voltar à aldeia para semear os seus campos e assim poder sobreviver. Claro,
estariam sempre alerta para alguma eventual e má surpresa. O que realmente se
registou 4 meses depois tendo, de facto, sofrido um novo ataque dos janjauid. E as
operações repetiram-se: roubos, mortes e violações. Voltaram a ser hóspedes dos
embondeiros, da lua e das estrelas. E, contrariamente ao que se poderia pensar
sentiram, na sua fé de crentes muçulmanos, que Deus não lhes faltou.
Durante os 5 meses seguintes não houve sinais de janjauid. Quem sabe se,
desde agora, tudo voltaria ao normal?! Entretanto, no coração dos habitantes de Teguê
ficou uma ferida aberta: “ide embora de aqui, se quereis viver”. O desejo de vingança,
fosse ele realizado neste mundo ou no outro, era visivel em não poucos habitantes de
Teguê. Alguns diziam sem escrúpulo: “no dia da ressurreição – o juízo final para os
muçulmanos – terei o gosto de ver aqueles bandidos, frente a frente, e Maomé será
nossa testemunha contra eles”.
Ao romper da aurora de um dia aprarentemente normal, cada um preparava-se
para começar a sua jornada. Gente que rezava na mesquita, gente que trazia água, as
mães ocupadas com os pequenos, os idosos sem pressa no seu angarebe (cama feita
de cordas).
De repente, alguem deu o alarme: “fogo! incêndio!” Uma mulher gritou do
lado oposto: “socorro! a minha casa está a arder!” De ai a pouco ouviu-se um grito
colectivo que ficou no ar: “Al janjauid! Al janjauid!”
Tinha chegado a hora de constatar a veracidade daquelas malditas palavras que
tão profundamente tinham atingido o coração: “ide embora de aqui, se quereis viver”.
A verdade é que os janjauid continuavam a “ter a faca e o queijo na mão”, cortando à
vontade sem que alguém lhes pedisse contas. Atacaram mais uma vez. De novo a
fuga, em massa, até que se encontraram juntos no mesmo lugar dos embondeiros.
Entretanto, mudaram para a vila mais próxima, Merechin, onde foram socorridos
pelas organizações humanitárias internacionais. Em Teguê só ficou o silêncio dos
mortos que cobriam o chão. Assim o testemunham aqueles homens que, no dia
seguinte, voltaram àquele sinistro lugar. Chamou-os a consciência e o dever sagrado
de sepultar os mortos. Corpos cravejados de balas, corpos carbonizados e alguns deles
irreconheciveis. Era uma vez uma aldeia…!
A história dos habitantes de Teguê continua a repetir-se hoje em tantas outras
aldeias deste martirizado Noroeste do Sudão. As ameaças não param. O odioso refrão
continua a ferir-lhes a alma: “Ide embora se quereis viver”...! A contagem dos mortos
já vai em mais de 200.000 Actualmente, são quase 2 milhões e meio os darfurianos
que tentam sobreviver nos campos de desalojados.
Ibrahim acaba de me dizer que, se espero mais um pouco, terei a oportunidade
de conhecer a sua mulher. Ela, hoje, saiu da sua comunidade de Utach, onde habitam
66 mil pessoas (um acampamento considerado pequeno) que para ali foram
deslocadas das suas aldeias. Deixou os filhos na vizinha e veio à cidade, à procura de
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trabalho. Mas, somados ao Utach, há outros 96 acampamentos com nome e rosto,


espalhados em todo o Darfur. São mais de 14 mil as pessoas que, pertencentes a
agências da ONU e outras organizações humanitárias, se encontram no terreno para
aliviar o sofrimento deste povo. Fazem muito, mas outro tanto fica por fazer. Se ao
menos tivessem a liberdade de actuar...
De repente... Que está a acontecer? Levámos as mãos à cabeça, tentando tapar
os ouvidos. Um ruído tão potente que tudo fez estremecer! Ainda não recuperados
totalmente do choque, fomos levantando a cabeça. O mig estava a desaparecer no
horizonte. Sem palavras, os nossos olhares cruzararam-se. Ouviu-se um choro estérico
que vinha do adro da igreja. Num instante, encontrámo-nos entre as pessoas que
tinham corrido na direcção da mesma voz aflita. Vimos a pequena ainda agarrada ao
vestido da mãe que procurava sossegá-la: “pronto, Bakhita, não foi nada, o avião já
passou; ninguém te quer fazer mal”. A pobre menina tinha entrado em pânico.
Crescerá para uma vida feliz? O trauma da guerra já é uma palavra por demais
conhecida no Sudão.
- “À velocidade que ia, já estará quase a chegar a Catila, onde os ataques
começaram ontem à tarde”, - disse o Ibrahim, parecendo bem informado. E abanando
a cabeça, continuou: “em Teguê não usaram migs nem helicópteros e a catástrofe não
deixou de ser enorme. Mas, desde que decidiram usar a força aérea, o relógio do
Darfur corre a uma velocidade louca e cada vez mais dificil de controlar”. Deu alguns
passos em direcção ao seu local de trabalho. Voltou-se ainda quando o interpelei:
“sabes que a ONU vem ai… Estão para chegar 26 mil capacetes azuis, os soldados da
paz. Vêm acertar o relógio...”! Olhou para o céu e disse, expressando um desejo forte:
“in chá Allah”! E eu juntei também a minha prece: sim, que venham, mas que não
esqueçam de pôr Deus na bagagem. Mesmo que não acreditem n’Ele com os lábios,
Ele está com os constructores da PAZ!

Padre Feliz
Missionário Comboniano em Nyala, Darfur

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