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SÓ DEUS O SAIBA

De passo ligeiro, caminhava em direcção a Kereri, um dos centros católicos, a 4


Kms Este da igreja de Nyala. Ia encontrar-me com os pais e padrinhos das quarenta e
uma crianças, reunidos com o catequista Samuel Kur para a preparação do baptismo.
Seja dito de passagem que, em reuniões como esta, a presença dos homens fica
diminuida até mais de metade, devido às operações militares nas várias frontes de
guerra no Darfur.
A meio caminho andado, ao pisar o grande areal da mesquita de Abuja, uma
carrinha de caixa aberta parou a pouca distância de alguns jovens que ali se
entretinham a jogar a bola. “Vou juntar-me àqueles rapazotes e sairá, num instante, do
atoleiro da areia” – pensei. Mas tal não foi necessário. A causa da imobilidade do Toyota
teria sido outra. Acabei de atravessar o enorme recinto aberto sem me ter,
necessariamente, cruzado com o veículo. Senti, no entanto, que não passei
despercebido. Dois olhos atentos seguiam os meus passos
Já estava a meio da próxima rua quando vejo o mesmo carro que avança ao
meu encontro, até que parou ao meu lado. A saudação autoritária daquela figura de cor
branca solene – jalabia, turbante e chale (1) – deu-me claramente a entender que
estava em presença dum agente da segurança do governo ou da polícia secreta. A
seguir, num tom rude e provocador, perguntou:
- Libanês ou egípcio?
“Europeu” – respondi secamente e sem vontade de alimentar conversa.
- Para onde vais?
- Kereri.
- É lá a tua residência?
- Não, mas tenho gente que me espera no centro cristão que se situa nesse
bairro.
- Qual a NGO em que trabalhas? Quem te paga para estares aqui no Sudão?
- Não trabalho em NGO alguma. Pertenço à igreja católica. Não tenho um
salário garantido nem estipulado. Mas não hei-de morrer de fome, in chá
Allah.
- Qual é o teu trabalho específico?
- Sou padre católico.
“Melhor será identificar-me de uma vez” – pensei. Meti a mão na sacola, à
procura do justo documento. Gesto que ficou a meio, pois o tom sereno da
pergunta seguinte inspirou-me confiança:
- Padre daquela igreja situada no el Suq el Kabir de Nyala?
- Sim, essa é a igreja católica.
Vi o conductor mudar de semblante. Nos seus lábios apareceu um sorriso que
não era de fingimento. Desceu do veículo e a sua mão apertou a minha num gesto
prenhe de amizade e afecto.
- “Mabruk, parabéns! Tenhas um dia feliz ” – concluiu.
Aquele homem terá sido testemunha – como não? – da consolação e alegria
que invadiu o meu estado de espírito. Já o automóvel começava a mover-se quando os
meus lábios soltaram palavras de rotina, mas verdadeiras: “Obrigado! O mesmo te
desejo a ti!”
O encontro com aquela figura do governo absorveu o resto do meu caminho que
senti mais leve e menos longo. Cheguei ao destinado local e, enquanto o número do
pessoal da assembleia se completava, ia-se conversando à vontade. Uma ideia, porém,
tomou corpo e o catequista Samuel assentia com os presentes: “penso que o padre
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Feliz não porá objecção ao vosso desejo. Vamos propor-lhe que a celebração baptismal
se faça aqui no nosso centro de Kereri, em vez de na igreja matriz, em Nyala.
- Proposta aceite – respondi – enquanto devolvia o copo de alumínio que uma
das mães me tinha oferecido com água que tirou do zir, a grande bilha de barro poroso.
No início da reunião, contei-lhes a história daquela desconhecida autoridade que me
obrigou a responder a um interrogatório ameaçador para, no fim, me dar o prazer de um
desfecho feliz.
A proposta da comunidade ali reunida não era simplesmente banal nem tão
pouco uma questão de mera comodidade. O Espírito Santo tinha sugerido neles um
desejo que os levaria mais além na vivência da sua fé. Eles mesmos quiseram colocar a
circunstância do acontecimento no centro do encontro daquela tarde. Estava em
questão o significado da igreja-comunidade e o lugar que, nela, cada cristão é chamado
a viver. O baptismo dos filhos recorda e evoca o baptismo dos pais com o seu
testemunho e compromisso de todos os dias.
O grande copo de alumínio foi circulando pela assembleia que não tinha pressa
em levantar a sessão. Antes de finalizar com uma oração espontânea da parte de
alguém da assembleia, foi ainda a minha vez de recordar os pontos essenciais do
encontro:
- A igreja mãe está situada no el Suq el Kabir, na cidade de Nyala, mas estende-
se até onde quer que exista uma comunidade cristã. Em Kereri ou qualquer outro lugar,
não importando de que material seja construida: tijolos, palha, canas de milho/sorgo ou
bambu. Ou simplesmente debaixo da frondosa ramagem de uma nima, ou mesmo à
sombra diminuida de uma lalobe (árvore espinhosa). A qualidade de uma igreja mede-
se pela actividade dos seus membros. A Kanissa – a igreja – palavra árabe que
pronunciamos a cada momento, tem a ver, de facto, com um grupo de pessoas que se
juntam em assembleia. Quem faz deles kanissa, igreja, é a pessoa de Jesus Cristo que
a ela preside.
E continuei:
- Um estranho e desconhecido brindou-me com os parabéns. Eu recebi-os em
nome da igreja-comunidade cristã da qual todos nós fazemos parte. Foi em vosso nome
que o fiz. A responsabilidade e o testemunho do padre ou outro responsável da igreja
do el Suq el Kabir estende-se a cada um de vós e, a seu tempo, aos vossos filhos ou
afilhados que apresentais para o baptismo. Somos todos responsáveis directos no
testemunho da fé, neste ambiente de minoria cristã e, muitas vezes, hostil e de
perseguição contra os cristãos. Um testemunho que não espera agradecimento, muito
embora este não esteja sempre ausente no coração das pessoas, como foi o caso do
funcionário do governo que hoje me apareceu no caminho. Dele recebi palavras de
encorajamento para a vivência da nossa fé. Vivamo-la a tempo e a destempo (como
disse S. Paulo), em casa e fora de casa, em tempo de paz e em tempo de guerra e
perseguição, com os amigos e com os inimigos (como disse Jesus Cristo).
A Angelina, ali pertinho de mim, estava com ares de querer falar. Encorajei-a a
levantar a voz. Ouvimo-la rezar:
- Senhor Jesus, não entendo bem o que significa ser tua testemunha. Faço
poucas boas acções fora do pátio de minha casa porque os filhos – o mais
velho é doente cardíaco – ocupam-me quase todo o tempo. O meu marido
não encontrou outro modo de sustentar a família senão na vida militar. Já há
mais de dois meses que não tenho notícias dele (tê-lo-ão matado?) e não
recebemos nada do seu salário. Até há umas semanas atrás, passávamos
necessidade. Mas, agora, eu e os meus filhos passamos fome. Agradeço-te,
Senhor, pela ajuda que nos tem chegado a casa por mão de alguém que, por
vezes, só Tu conheces. Peço-te que guardes o meu marido e outros que,
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como ele, foram forçados a alistar-se no exército para que a família pudesse
viver. Que voltem sãos e salvos. Não haja mais guerra no Darfur, in chá
Allah!
Fez uma pausa, que todos respeitámos como silêncio sagrado. Olhou em volta,
como que a pedir licença para continuar. E acrescentou:
- Acredito que os parabéns com que o tal Senhor congratulou o Pe. Feliz sejam
verdadeiramente merecidos. Mas o que aquele homem tinha em mente quando
pronunciou aquela palavra, só Deus o sabe. A Ele pedimos sabedoria e coragem
para viver o amor-caridade com todos, cristãos e não cristãos, sobretudo nas
zuruf (circunstâncias) mais dificeis e arriscadas para a nossa fé.
A Mary, que conhecia bem de perto o testemunho de vida desta sua amiga e
vizinha, afirmou: “parabéns, Angelina”.
- Eu?! porquê? – perguntou, pondo a descoberto a sua humildade.
- A Mary estava bem certa da sua afirmação. Só teve receio de ficar àquem da
medida exacta. Voltou-se de novo para a Angelina e disse, pausadamente:
- Deixa que só Deus o saiba…
As vozes confirmativas ouviram-se por toda a assembleia: “Amen”!

Padre Feliz
Fevereiro 2009
Nyala

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