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de Nelson Rodrigues
A
ntigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem
mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identifi-
cava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o pri-
meiro a identificar-se como tal era o próprio idiota.
Não sei se me entendem. No passa-
do, o marido era o último a saber.
Sabiam os vizinhos, os credores, os
Logo se improvi-
familiares, os conhecidos e os des-
conhecidos. Só ele, marido, era ob- sou uma multidão.
tusamente cego para o óbvio ululan- O orador teve a
te.
solidariedade ful-
minante dos ou-
Sim, o traído ia para as esquinas, tros idiotas. A
botecos e retretas gabar a infiel: — multidão crescia
"Uma santa! Uma santa!". Mas o
tempo passou. Hoje, dá-se o inver- como num pesade-
so. O primeiro a saber é o marido. lo. Em quinze mi-
Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis
nutos, mugia, ali,
a verdade, sabe. Lembro-me de um
que sabia endereço, hora, dia etc. uma massa de
etc. meio milhão.
[19/8/1968]
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