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Dennis McShade

Suponho que estamos na época da transformação a todos os níveis. As mortas e estimá-


veis receitas são isso mesmo: mortas e estimáveis. No caso da literatura policial, podemos agra-
decer tudo o que foi delineado, de Conan Doyle a Ellery Queen, mas a transformação
operou-se. Chandler e Hammett transformaram sobre o que estava feito, e há que tentar trans-
formar sobre Chandler e Hammett. E o género policial, que se bastava com uma só face da rea-
lidade, quantas vezes apenas aparente, tende a desdobrar-se em vários planos, procurando
pistas de vida em todas as direcções que a vida tem.
Suponho também que o romance policial começa a experimentar o gosto de encontrar
matéria-prima em tudo o que se choca (e que se choca porque se atrai): novas noções de so-
ciologia e de vivência; Freud e as histórias aos quadradinhos; a cultura e a violência; a ingenui-
dade e a ironia; o amor e o mercenarismo; a acção individual e a pressão de grupo; o
fundamental e o insignificante; o comportamento interior e o exterior; a palavra arduamente
procurada e a linguagem desprevenida, espontânea; o tédio das situações convencionais e o
culto sistemático do absurdo; as linhas determinadas da construção dramática e a força corro-
siva do humor. E o leitor pode imaginar um país das maravilhas, onde esteja além de Alice, o
Padre Brown, madame Curie e Al Capone. O que transforma logo Alice. O que transforma
tudo, incluindo o país das maravilhas e o leitor.
O género policial pede uma nova fonte: a grande realidade geral que nada recusa, nem
mesmo a fábula. Podemos adiantar: uma realidade que precisa da fábula para ser mais ela.
É importante experimentar isto, mesmo falhando. Valer como experiência já é valer.

nota do editor: Texto de Dinis Machado, então editor da colecção onde este livro
teve a primeira edição, acerca do seu pseudónimo Dennis McShade (n.º 83 da colecção Rififi,
Editorial Íbis, 1968).
MULHER E ARMA
C O M G U I TA R R A E S P A N H O L A
DENNIS McSHADE

MULHER E ARMA
C O M G U I TA R R A
E S PA N H O L A

A S S Í R I O & A LV I M
© ASSÍRIO & ALVIM
RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA
© HERDEIROS DE DINIS MACHADO

EDIÇÃO 1303, FEVEREIRO 2009


ISBN: 978-972-37-1400-5
Branca de Neve perdeu-se no bosque
mas os animais ferozes não lhe fizeram
mal porque era muito boa.
Grimm
UM

A porta do escritório já estava aberta. De resto, as portas


abriam-se à medida que eu avançava na casa.
— Que se passa, Ricco? — perguntei da soleira da porta do
escritório. — Estou na Caverna do Senhor Olho Electrónico?
Havia naquele escritório qualquer coisa de sala de repouso
de sultão, talvez porque as almofadas de seda, espalhadas pelo
soalho, eram tantas que deixavam de ser adorno para se torna-
rem num luxo ostensivo. A dependência ligava com outra, no
andar de cima, através de uma escada circular. E havia música
no andar de cima, talvez a voz de Sinatra num gira-discos.
— Não fica aí à porta, pois não? — perguntou ele, segun-
dos depois. Tinha a voz clara de sempre, uma daquelas vozes
em que parecia ser eternamente meio-dia.
Steve Ricco vestia um roupão creme e tinha um lenço de
seda grená em volta do pescoço. Entrei, aproximei-me da se-
cretária, olhando para ele, de pé, do lado de lá, e vi-o abrir a
mão direita à altura da cintura, mexendo a cara. O monóculo
caiu-lhe na mão aberta. Ele continuava a fazer aquilo como há
vinte anos. Como se dissesse: «serei Steve Ricco enquanto o
monóculo me cair certeiramente na mão aberta». Oferecia
sempre a sensação de querer demonstrar algo de importante.
Tanto a ele como aos outros.
— Ouvi dizer que o monóculo qualquer dia cai — observei.

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Era o Sinatra, realmente, que estava a cantar lá em cima.
Por detrás dos vidros do escritório, havia arvoredo e sol, e a
mancha esverdeada da piscina.
— Este monóculo não cai — disse ele. — É uma questão
de princípio.
Ricco era um dos maiores malandros que conhecera em
toda a minha vida, um homem de uma baixeza quase integral.
Fazia tudo por dinheiro, porque precisava de dinheiro para sus-
tentar as suas fraquezas. Tinha anéis de ouro em muitos dedos,
relógio e pulseira de ouro, e também diziam que tinha um fio
de ouro com um crucifixo em volta do pescoço. E tinha is-
queiros de ouro, cigarreira de ouro, quatro dentes de ouro.
— Vi-o chegar, daqui da minha secretária — explicou ele.
— Fui abrindo as portas uma a uma, carregando nestes botões.
Sobre a secretária, havia uma placa com botões dispostos
em fila, ligados à parede por pequenos fios. Dei um pequeno
pontapé numa almofada.
— Sente-se no maple — disse ele.
Não respondi e sentei-me na cadeira. Olhei para o rosto de
Ricco, o nariz pequeno, as bochechas rosadas, a testa estreita, o
abundante cabelo encaracolado, os olhos de bailarina espanho-
la. Sorri.
— Você continua pestanudo como uma gazela de Walt
Disney — disse-lhe.
O meio da malandragem chamava-lhe Steve dos Olhos
Bonitos e dizia-se que ele usava pestanas postiças, para bater
com elas quando olhava para as garotas.
— Os botões pretos — disse ele, no seu jeito de desconver-
sar — que você vê na fila direita, são para orientação interna.

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É por eles que chamo a minha gente, do secretário ao jardinei-
ro. A casa é enorme, mas estejam onde estiverem, recebem a mi-
nha chamada. Estes botões coloridos são os das portas. Estou
muitas vezes aqui no escritório, preciso constantemente de coi-
sas e gosto disto. Acho piada, surpreender as pessoas.
Ao contrário do que seria de supor, disse esta última frase
num tom muito sério. Desviei os olhos do rosto dele e passei-os
pela secretária, cheia de papéis. Seria que ele andava atarefado,
ou quereria apenas dar a impressão disso?
— Você está a pensar nos filmes de James Bond — disse
ele, vendo-me fixar a placa de botões.
A voz de Sinatra calou-se por alguns segundos. E regressou
noutra canção.
— Qual é o botão com que você controla a voz de Sinatra
lá em cima? — perguntei.
— É Nora — disse ele. — Gosta de Sinatra.
— E o Sinatra gosta dela?
— Gosta de Sinatra, como eu gosto de coisas boas, como
você gosta de música clássica.
— E de azul, Ricco.
— Isso. Você gosta de azul. Lembro-me que uma vez, num
bar, você foi para a cama com uma mulher que parecia um pei-
xe. Mas você foi mesmo porque ela estava vestida de azul.
— E gosto de poetas, dos transfiguradores da palavra, dos
que escrevem palavras azuis.
— E Romeu gostava de Julieta.
— E vice-versa.
A razão por que eu estava em frente de Steve Ricco era
porque ele me tinha pedido para o visitar. A conversa era im-

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portante, dissera ele, mas dois homens como nós (dissera tam-
bém ele) podiam transformar isso numa troca de impressões
agradável, além de útil.
— Há quanto tempo não o via, Maynard? — perguntou
ele, de repente.
— Há dois ou três anos.
— Talvez há quatro anos — disse ele, devagar. — O tem-
po passa.
— Pois.
Ele voltou a colocar o monóculo, assentou o cotovelo na
secretária e ficou a pensar, olhando para fora, para o arvoredo.
Estava a representar, como quase sempre.
— O tempo passa — monologou — e só os fortes resistem.
— Os fortes também vão. Olá, se vão.
— Mas vão mais tarde — disse ele, olhando para mim.
— Já sei que você é dos fortes, seu pestanudo.
Era verdade o que eu estava a dizer. Para além da sua vulne-
rabilidade ao luxo, o seu ar espalhafatoso, a franqueza com que
denunciava a sua falta de escrúpulos e a sua faculdade de se
apaixonar mensalmente por uma mulher diferente, Steve Ricco
era dos fortes. Um certo fatalismo que havia nele, e que me pa-
recia literário, dostoiewskeano, de modo algum conspurcava as
realidades da vida prática. Ricco era pusilânime nas pequenas
coisas e verdadeiramente espartano nas coisas graves. Coexis-
tiam nele a criança e o homem sensato, e o facto de ele gostar de
ser criança quando falava comigo era a homenagem que me fa-
zia, a um nível que ele considerava superior. Tínhamos criado o
hábito de tratar os chamados assuntos do mundo dos homens
duros num tom particularmente secreto, de seita de iniciados

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ou coisa que o valha. E era como se andássemos de carrossel.
A sua capacidade para encontrar na ambiguidade dos diálogos
o equivalente das questões práticas era verdadeiramente prodi-
giosa. Era autodidacta e auto-suficiente. Mas comigo, era mui-
to mais do que isso. Era um actor agradecido à plateia.
— Tenho sentido a sua falta, Maynard. Este mundo está
cada vez mais embrutecido pelos vapores da bomba atómica.
Ando muito desgostoso.
Era mentira. Não era desgostoso que ele estava. Estava
apreensivo, isso sim. Havia qualquer coisa realmente impor-
tante, qualquer coisa que ele ladeava, sabendo que eu observa-
va os seus rodeios. Tudo isto era muito Steve Ricco, mas Steve
Ricco na zona de Maynard. Não o Steve dos Olhos Bonitos.
— Quem é Nora? — perguntei por associação de ideias.
— A mulher com quem vivo.
— Há quanto tempo?
— Há quase dois anos. Ela é o meu alimento e a minha
morte diária.
— Pois.
Se a coisa durava há dois anos, isto queria dizer que Steve
Ricco estava em crise.
— Isso é mau, Ricco.
— Você não conhece Nora — disse ele. E o meio-dia pa-
recia fugir da sua voz.
— É mau conhecer Nora?
— Deve ser como a cocaína. Ou melhor. Ou pior. Não sei,
nunca tomei cocaína.
— Pois. Não toma, só vende. Não é, seu pestanudo?
— Maynard, tenha maneiras. — E deixou cair o monócu-
lo na mão.

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— Pois.
Levantou-se, começou a passear o seu metro e oitenta e
cinco com noventa e cinco quilos e, repentinamente, ficou a
olhar para mim de soslaio. Um pequeno sorriso desenhou-se
na sua boca pequena e fina.
— Sempre admirei em mim próprio a capacidade para ul-
trapassar obstáculos e sair deles mais forte — observou. — Nis-
so, somos iguais, Maynard. Somos de uma lucidez que atravessa
os corpos opacos.
— Você lá sabe onde quer chegar.
— Ando triste. Que é feito do profissionalismo do nosso
mundo? Que será feito de nós, os marginais, se não tivermos a
honra dos aristocratas para nossa própria defesa? Será que nós
somos os últimos, Maynard? Os últimos gigantes?
Disse-lhe:
— Bebia um copo de água. Estou cheio de sede.
Ele carregou num botão preto. Sentou-se de novo à secre-
tária e disse-me:
— Você talvez queira uísque. Mas lembro-me disso da úlcera.
— Pois.
— Quer uísque?
— Não. Quero um copo de água.
— E a úlcera?
— Vai e vem. Como os barcos.
Ele ficou a olhar para mim alguns segundos.
— Você é estupendo, Maynard. Tenho tido saudades suas.
Sinatra já estava calado há muito tempo. Olhei para o tec-
to e perguntei:
— É Nora que o preocupa?

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— Não — disse ele, mexendo as bochechas. — Água —
gritou para trás de mim.
Um minuto depois, entrou um homem que parecia um
boneco de pau: seco, curtido e rígido. Vinha vestido de mor-
domo, com luvas brancas. Deixou-me uma bandeja com jarro
e copo em cima da secretária e foi-se embora rapidamente.
— Onde arranjou você este exemplar?
— É inglês. Os melhores criados são ingleses. Veio do Sul,
onde serviu durante dez anos uma família importante.
— Comprou-o num leilão?
Sorriu.
— Você está cheio de curiosidade, Maynard, não me diga
que não.
— E você, Ricco? Está cheio de medo?
— Quase — disse ele. Levantou-se. — Vamos passear um
bocadinho no meio do arvoredo. Está uma tarde bonita.
Fomos passear no meio do arvoredo.

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