10 domingo, 10 de Março de 2002

Desde já aviso que me recusarei a participar em quaisquer cerimónias oficiais dentro ou fora do país que tal governo (do PSD) venha
a patrocinar (José Saramago, Público, 8-03-2002)
In: Expresso, Frases da Semana, 020309
O Jornal das Boas Notícias
Não é habitual começar o Jornal das Boas Notícias com uma citação que pode ser interpretada como uma
ironia maledicente. Contudo, a intenção é outra. É evidente que uma tal afirmação representa um tal extremo
de sobranceria, de auto-afirmação e de descentramento que não precisa de ser comentada. Com diferenças de
vários graus, muitos de nós cometemos frequentemente este erro, de auto-afirmação e de egocentrismo.
A Quaresma, como nos lembra este número do Jornal tem a função de nos recentrarmos, de percebermos
quem somos, de nos identificarmos e de nos penitenciarmos do mal que há no bem que fazemos. A Boa Notí-
cia é que a Quaresma finda com a Páscoa da Ressurreição, memória viva do sacrifício e vitória d’Aquele que
venceu o mal que há em todos nós. A consciência do nosso limite, o realismo que a nossa fragilidade nos im-
põe, têm motivo de esperança na vida oferecida no alto da Cruz, que nos abre o caminho para uma eternidade
onde finalmente estará resolvido o enigma final da História.
Pedro Aguiar Pinto

O enigma final da História não é se o justo vencerá o corrupto, mas sim como ultrapassar o mal que há em todo o bem e
a perversidade dos justos
Niebuhr

A Sociedade e a Igreja em mudança......................................... 1 RTP cancela missa e censura programa ...............................15

Novidade: dar mais tempo ao tempo...................................... 6 A torneira......................................................................................16
A Paz que veio de Assis .............................................................. 6 Quando começa a vida? ............................................................16
Reconhecimento jurídico para o embrião humano ............. 8 Pesadelo dogmático ...................................................................17
Duas maternidades para Timor-Leste .................................... 8 A formalização do disparate....................................................18
Uma Vida Dedicada a Ajudar Toxicodependentes ............ 8 O ralo do tempo segundo o Papa Gregório XIII..............19
Pobreza Relativa em Portugal Está Abaixo dos 20 por Já não se pode defender a família?!........................................20
Cento........................................................................................... 9 O passeio aleatório.....................................................................21
Duas Propostas Modestas.......................................................... 9 Noticias de Deus ........................................................................22
Casos exemplares no Norte .....................................................10 Mães da Lombardia optam por ficar em casa.....................22
O Regresso do "Bem" e do "Mal"........................................11 Em defesa da ciência..................................................................22
Primos intratáveis .......................................................................13
Quaresma ou a graça deste tempo!.........................................13 _____________________________________________
uma revolução tanto no plano das ideias como no da
A Sociedade e a Igreja em mudança vida prática, cujos dados, aliás, estão intimamente
D. Manuel Clemente
In: Família Cristã, 020103
ligados”.
A revolução da ciência e da técnica, o modernismo e Especificava, com “a revolução da ciência e da téc-
o pos-modernismo, o Concílio Vaticano II e o últi- nica”, diminuindo o trabalho, aumentando o confor-
mo Sínodo dos Bispos são elementos fulcrais numa to e suprimindo distâncias; com “o progresso da
reflexão sobre a sociedade e a Igreja em mudança medicina”, que aumentara a população e o equilíbrio
Há quarenta anos, Daniel-Rops entrevia a obra do dos grupos. No campo das ideias, a Igreja confronta-
Concílio Vaticano II na relação imediata e futura ra-se entretanto com “uma rebelião luciferina da
com o Mundo, mudança por mudança. Enganava-se inteligência contra Deus e a fé”. O “liberalismo”
nalguns prognósticos, em especial no que dizia a levantara-se contra dogmas e hierarquias; com o
respeito da vida interna da Igreja, que se mostrou tempo, a Igreja deixara de o rejeitar em absoluto,
menos coesa do que ele pensava. Dez anos depois, reconhecendo na liberdade um atributo da pessoa e
dificilmente escreveria assim: “... nunca talvez, desde a base da sua responsabilidade. Por outro lado, con-
as suas origens, a Igreja Católica foi tão unida e soli- tinuava, juntaram-se o racionalismo de Kant, o posi-
dária com o seu chefe; nunca teve um clero, moral e tivismo de Comte, o materialismo dialéctico de Marx
intelectualmente tão bem formado, não havendo e o existencialismo de Sartre... Todos procederiam
qualquer perigo de heresia no seu pensamento, nem do “humanismo ateu”, na expressão de Lubac; todos
risco de ruptura no seu organismo. Não é uma crise precisariam da resposta do “humanismo integral”,
de Igreja que o Vaticano II terá de enfrentar”. identificado com o Cristianismo por Maritain.
Mas onde o historiador se mostrava muito lúcido e Factores de “crise” estes. De crise do mundo, não
quase profético era na análise da mutação externa, ainda da Igreja, sempre segundo Daniel-Rops. Im-
do mundo em geral. Com frases destas: “É um tru- pulsionados pelos “progressos da ciência”, pois,
ísmo dizer que o mundo mudou mais nestes últimos prosseguia, se já não se partilhavam as previsões de
cento e cinquenta anos do que durante os vinte ou Renan em O Futuro da Ciência, de que o progresso
vinte e cinco séculos precedentes. Está em curso científico nos levaria ao paraíso, campeava “um

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 10 certo cientismo” arredio à revelação e ao sobrenatu-
ral. Crítica, história, paleontologia e psicologia pos-
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tergariam a mensagem bíblica sobre as origens, as
O Jornal das Boas Notícias
bases da moral e a metafísica. Não se ficara por aí. A
ciência potenciara a técnica, com riscos imprevisí-
veis, levando Daniel-Rops a interrogar-se sobre
como poderia a Igreja relacionar a mensagem cristã
com as mesmas ciência e técnica, sem as rejeitar e
sem ignorar os seus perigos.
Outro tipo de interrogações fazia o autor à Igreja
quase em Concílio. A revolução industrial modificara
a situação relativa das classes sociais com efeitos
drásticos no conjunto: – Como se situaria a Igreja,
uma vez abalada a sociedade em que a Igreja se en-
raizara por tanto tempo? O sistema colonial esboro-
ava-se: - Como se relançaria a evangelização dos
povos? A população mundial aumentava, e aumenta-
ria cada vez mais em áreas pouco tocadas pelo cristi-
anismo: - Como afervorar cristãos e relançar a mis-
são? Ou, em palavras do próprio Daniel-Rops, tão
coincidentes com as que João Paulo II dedicou de-
pois à “nova evangelização” e ao movimento ecu-
ménico: “A Igreja de Cristo sabe que doravante está
em minoria no mundo. Daí a sua obrigação de rever
os seus métodos de apostolado entre os não-cristãos
e ao mesmo tempo entre os cristãos, que o são ape-
nas de nome. Daí também a necessidade, cada vez
mais urgente, de intensificar a união dos que, segun-
do diversas obediências, se fazem depositários da
mensagem de Cristo”.
Antecipando também João Paulo II – sobretudo a
encíclica Centesimus annus, de 1991 – requeria o
autor um esforço de inteligência cristã que contrapu-
sesse ao marxismo “uma solução cristã para o dificí-
limo problema de preservar a liberdade sem sacrifi-
car o homem e de preservar o homem sem sacrificar
a liberdade”. Por fim, em substância, o autor vê
nascer “uma civilização baseada na técnica, que há-
de vir a ser – segundo a expressão do Pe. Teilhard de
Chardin – uma civilização ‘planetarizada’” – globali-
zada, diríamos nós. E pergunta-se: “Cumpre saber
se, nessa nova civilização, o cristianismo poderá
continuar a ser o ‘fermento’ o ‘sal da terra’, papel
que lhe destinou a Palavra do Mestre”.
Realizou-se o Concílio e estes e outros “sinais” fo-
ram então reconhecidos como novos e a exigir res-
posta dos crentes. O que é, aliás, próprio e distintivo
do Concílio Vaticano II é exactamente a assunção da
historicidade como categoria do Mundo e da Igreja,
uma e outro em diálogo recíproco. Não porque a
Igreja entenda que o tempo lhe acrescenta algo de
essencial, mas por reconhecer que o devir da huma-
nidade a faz desenvolver mais e mais as virtualidades
do Evangelho que transporta. Ou, como diz o nú-
mero 4 da constituição pastoral Gaudium et Spes,
precisa, a Igreja, para levar a cabo a sua missão, de
“investigar a todo o momento os sinais dos tempos
e interpretá-los à luz do Evangelho”; é-lhe necessá-
rio “conhecer e compreender o mundo em que vi-
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vemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu ca-
rácter tantas vezes dramático”.
E quais seriam os sinais dos tempos e da mudança
dos tempos, em 1965? Enumera-os o Concílio, logo
a seguir: A humanidade atravessa uma fase nova da
sua história, com transformações que atingirão a
todos. Transformações qualitativas, com necessários
reflexos religiosos. E vêm os contrastes: muitas pos-
sibilidades e abundância num lado, fome, miséria e
ignorância noutros; vivo sentimento de liberdade
por um lado, novas formas de servidão social e psi-
cológica por outro; unidade, interdependência e
solidariedade pelo mundo além, mas não menos
conflitos de toda a ordem e riscos “duma guerra que
tudo subverta”; intercâmbio constante de ideias, mas
interpretações contraditórias das palavras que as
deviam veicular; grande cuidado no aperfeiçoamento
da ordem temporal, muito menos no progresso espi-
ritual...
O número 5 da Gaudium et Spes detém-se noutros
factores: a mentalidade científica, modeladora da
cultura; o domínio do tempo, quer pela historiogra-
fia quer pela planificação; a unificação e aceleração
da história que se vive, factor determinante de tudo
o mais. Vale a pena determo-nos um pouco neste
último parágrafo do número 5 da constituição pasto-
ral, certamente dos mais actuais, trinta e seis anos
depois. Reza assim: “O próprio movimento da histó-
ria torna-se tão rápido, que os indivíduos dificilmen-
te o podem seguir [...]. A humanidade passa, assim,
duma concepção predominantemente estática, da
ordem das coisas, para uma outra, preferentemente
dinâmica e evolutiva; daqui nasce uma nova e imensa
problemática, a qual está a exigir novas análises e
novas sínteses”. Continua a suscitá-las ainda hoje,
porque a mudança se transformou de intervalo em
continuidade.
Voltaremos certamente a este tópico, mas a sugestão
do número 5 da Gaudium et Spes podia levar-nos
não já a falar de “sintomas de mutação cultural” mas
de “sintomas da cultura da mudança”.
O documento conciliar acrescentou outros: a difusão
da sociedade industrial e urbana, o impacto dos mei-
os de comunicação social, o crescimento da emigra-
ção, a socialização quantitativa que nem sempre
significa verdadeira relação interpessoal, a aspiração
de desenvolvimento e liberdade por parte dos povos
mais pobres; dificuldades na transmissão intergeraci-
onal de valores e na adaptação de leis e instituições...
No respeitante à religião, considerava o último pará-
grafo do número 7: “Por um lado, um sentido crítico
mais apurado purifica-a duma concepção mágica do
mundo e de certas sobrevivências supersticiosas, e
exige cada dia mais uma adesão à fé pessoal e ope-
rante; desta maneira, muitos chegam a um mais vivo
sentido de Deus. Mas, por outro lado, grandes mas-
sas afastam-se praticamente da religião. Ao contrário
do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou
a religião, ou prescindir deles já não é um facto indi-
 10 vidual e insólito: hoje, com efeito, isso é muitas ve-
zes apresentado como exigência do progresso cientí-
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fico ou dum novo tempo de humanismo”.
O Jornal das Boas Notícias
A constituição pastoral aponta ainda, no número 8,
o desequilíbrio, ao nível pessoal, entre o(s) saber(es)
prático(s) e o saber teórico unificante; o desequilí-
brio entre a eficácia e a moralidade, ou entre as con-
dições de vida e a possibilidade de pensar e contem-
plar, ou entre a especialização da actividade e a visão
global da realidade. Os novos condicionalismos
demográficos, sociais e económicos, bem como as
dificuldades intergeracionais e a nova relação ho-
mem-mulher, repercutem-se na vida das famílias.
Mantêm-se e podem agravar-se discrepâncias entre
raças e grupos, países ricos e pobres, instituições
internacionais orientadas para a paz e egoísmos co-
lectivos, nacionais ou outros.
Finalmente, o número 9 da Gaudium et Spes reco-
nhece que “vai crescendo a convicção de que o gé-
nero humano não só pode e deve aumentar cada vez
mais o seu domínio sobre as coisas criadas, mas
também lhe compete estabelecer uma ordem políti-
ca, social e económica, que o sirva cada vez melhor e
ajude indivíduos e grupos a afirmar e desenvolver a
própria dignidade”. Daqui a reivindicação geral dos
bens de subsistência, participação e cultura, ou a
insistência das mulheres na paridade de direito e de
facto com os homens. Em suma, “subjacente a todas
estas exigências, esconde-se, porém, uma aspiração
mais profunda e universal: as pessoas e os grupos
anelam por uma vida plena e livre, digna do homem,
pondo ao próprio serviço tudo quanto o mundo de
hoje lhes pode proporcionar em tanta abundância. E
as nações fazem esforços cada dia maiores por che-
gar a uma certa comunidade universal”.
Quatro décadas não tiraram actualidade ao diagnós-
tico do Vaticano II sobre as mudanças na sociedade
e na cultura, lidas como “sinais dos tempos”, ou seja,
como interpelações ao Cristianismo de sempre,
mesmo que contraditoriamente vividas por pessoas,
grupos e a humanidade inteira. Não lhe tiraram actu-
alidade, dizia, mas puseram-lhe ou apagaram-lhe
tónicas. Creio que acentuaram o que sublinhei atrás,
ou seja, o ritmo da mudança, ao ponto de a trans-
formar de intervalo em continuidade. A mudança é
que é contínua, real ou imaginária, por demais con-
formada ou consentida. Aqui ainda não chegara o
Concílio. Aqui, se dum “aqui” se pode falar, estamos
indubitavelmente nós, socioculturalmente falando.
Mas creio, aliás, que as últimas décadas apagaram um
tanto a tónica esperançosa com que o Concílio acen-
tuou, aqui e ali, a sua análise, anunciando, apesar de
tudo, o advento duma sociedade obrigatoriamente
mais justa e fraterna. Hoje o optimismo é mais difí-
cil.
Assim como, em relação à vida interna da Igreja, a
realidade se manifestou bem mais complexa do que
Daniel-Rops a julgara; assim como a parte pós-
conciliar do pontificado de Paulo VI lhe exigiu uma
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têmpera espiritual invulgar, tais os embates de toda a
ordem que a Igreja e o mundo lhe causaram; assim
como a cena internacional dos anos setenta desmen-
tiu consecutivamente os melhores prognósticos da
década anterior, quer quanto ao desenvolvimento
global e equilibrado, quer quanto ao entendimento
internacional de nações e blocos, quer quanto à real
emancipação do “terceiro mundo”; assim se foi en-
trando, especialmente na Europa aquém Alemanha,
num desencantamento cultural que o pós-
modernismo desistiu de designar. É precisamente do
final dos anos setenta e dos primeiros oitenta o con-
junto de textos que Gilles Lipovetsky reuniu na obra
emblemática desta fase: A era do vazio, título que se
tornou em slogan.
Não é este o lugar para resumir a obra. Mas o autor
quase o faz, numa célebre página que convém lem-
brar pela força sugestiva e quase ambiental. É difícil
não nos encontrarmos em frases assim: “Sociedade
pós-moderna, é uma maneira de dizer a inflexão
histórica dos objectivos e modalidades da socializa-
ção, colocados hoje sob a égide de dispositivos aber-
tos e plurais; maneira de dizer que o individualismo
hedonista e personalizado se tornou legítimo e já
não depara com oposição; maneira de dizer que a era
da revolução, do escândalo, da esperança futurista,
inseparável do modernismo, terminou. A sociedade
pós-moderna é a sociedade em que reina a indiferen-
ça de massa, em que domina o sentimento de sacie-
dade e de estagnação, em que a autonomia privada é
óbvia, em que o novo é acolhido do mesmo modo
que o antigo, em que a inovação se banalizou, em
que o futuro deixou de ser assimilado a um progres-
so inelutável. A sociedade moderna era conquistado-
ra, crente no futuro, na ciência e na técnica; instituiu-
se em ruptura com as hierarquias de sangue e a sobe-
rania sacralizada, com as tradições e os particularis-
mos, em nome do universal, da razão, da revolução.
Esse tempo desfaz-se diante dos nossos olhos; é em
parte contra tais princípios futuristas que as nossas
sociedades se estabelecem, nessa medida pós-
modernas, ávidas de identidade, de diferença, de
conservação, de descontracção, de realização pessoal
imediata; a confiança e a fé no futuro dissolvem-se,
nos amanhãs radiosos da revolução e do progresso já
ninguém acredita, doravante o que se quer é viver já,
aqui e agora, ser-se jovem em vez de forjar o homem
novo. Sociedade pós-moderna significa, neste senti-
do, retracção do tempo social e individual precisa-
mente quando se impõe cada vez mais a necessidade
de prever e organizar o tempo colectivo, exaustão do
impulso modernista dirigido para o futuro, desen-
canto e monotonia do que é novo, esgotamento de
uma sociedade que conseguiu neutralizar na apatia
aquilo que a fundamenta: a mudança. Os grandes
eixos modernos, a revolução, as disciplinas, o laicis-
mo, a vanguarda, foram desafectados à força de
personalização hedonista; o optimismo tecnológico e
científico desmoronou-se, enquanto as inúmeras
 10 descobertas eram acompanhadas pelo envelhecimen-
to dos blocos, pela degradação do meio ambiente,
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pelo apagamento progressivo dos indivíduos; já
O Jornal das Boas Notícias
nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as
multidões, a sociedade pós-moderna já não tem
ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem
gloriosa de si própria ou projecto histórico mobili-
zador; doravante é o vazio que nos governa, um
vazio sem trágico nem apocalipse”.
A citação fica um pouco longa. Mas é difícil dispen-
sar alguma das notas, tão concatenadas estão elas
para abrir uma atmosfera. Tenho trabalhado várias
vezes sobre este texto de Lipovetsky, com sucessivos
grupos de alunos e ouvintes, geralmente jovens. O
reconhecimento é geral, mesmo que não assumido.
Pedi a uma dúzia de jovens que desenvolvessem o
tema: “Sintomas de mutação cultural”. Durante mais
de uma hora fui preenchendo um quadro com o que
iam apontado. Pois bem: vinte anos depois do texto
de Lipovetsky, o acento era posto em sentimentos
imediatistas, consumistas e descomprometidos, ain-
da que não ficassem esquecidas realidades como a
nova procura espiritual e vários tipos de voluntaria-
do...
Luis Gonzalez-Carvajal, professor madrileno, tem
sido um analista atento da mudança sóciocultural,
em sucessivas obras dedicadas à temática das respec-
tivas relações com a religião em geral e o Cristianis-
mo em particular. Uma década depois dos ensaios de
Lipovetsky, fez-nos em Fátima um resumo das suas
conclusões.
Sigamo-lo rapidamente. Parte dum passo do Concí-
lio que já citámos – Gaudium et Spes 4 -, para lem-
brar e acrescentar: “Vivemos [...] num tempo ‘carac-
terizado por mudanças profundas e aceleradas’. Tra-
ta-se de um fenómeno de consequências graves para
a evangelização, porque está aparecendo uma nova
espécie: o ‘homo transitorius’”. Tudo é fugaz para
muita gente, da residência à ocupação profissional.
Quem vive numa cidade pode estabelecer mais con-
tactos numa semana do que um camponês medieval
durante toda a sua vida. “Generaliza-se – continua o
autor – a imagem alegre, insubstancial dos namora-
dos que ‘dentro de um mês ou dentro de um ano’
deixarão de amar-se e nem sequer compreenderão
que tenham podido fazê-lo”. Mais em geral, conside-
ra, “é igualmente vertiginosa a mudança de mentali-
dade; e o que ontem parecia verdade certíssima tor-
na-se-nos de repente ficção insustentável”.
Sobre este fundo – admitindo que tem densidade
para apoiar seja o que for –, Gonzalez-Carvajal deli-
neia a mentalidade actual. Seis características moder-
nas, em primeiro lugar: 1) A secularização, que defi-
ne como “progressiva perca de funções da religião
na sociedade”. Não a considera negativamente, antes
com a vantagem de salvaguardar a transcendência
divina, de respeitar a maioridade da sociedade civil e
de libertar a religião para ser o que deve; admite, isso
sim, o perigo do secularismo, quando a secularização
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vai longe de mais e quer expulsar a religião dos seus
campos específicos, como sejam a moralização dos
costumes e o sentido último da existência; tudo so-
mado, “se ontem a fé adquiriu significado pagando o
preço da sacralização total, hoje deve adquiri-lo en-
sinando a viver com autêntica profundidade o pro-
fano”. 2) A mentalidade científico-técnica, tão defi-
nitiva como passível de deformações tecnicistas, que
lhe perdem o sentido humanizador. 3) A vontade
emancipatória, que, apesar dos acidentes de percur-
so, acabará por concordar com a visão cristã da vida.
4) A fé no progresso, que se converteu numa “esca-
tologia secular”, onde “a esperança no futuro do
mundo foi substituindo insensivelmente a esperança
que as gerações anteriores tinham posto no mundo
futuro”. 5) A tolerância, que, se exclui absolutamente
a imposição da verdade pela força, não pode desistir
da mesma verdade, nem na sociedade política, pois
“a base para a existência de uma autêntica democra-
cia não é o relativismo – mais próprio, se a história
não mente, dos imperialismos decadentes -, mas a
tolerância”. 6) O espírito capitalista-burguês, que
pondo a tónica na iniciativa individual não há-de cair
no individualismo: “a individualidade foi a grande
conquista da burguesia e o individualismo o seu
grande pecado”.
Entremeados, porém, com estes factores modernos
da mudança sóciocultural, Gonzalez-Carvajal entrevê
outros seis pós-modernos: 1) Uma certa crise de
modernidade, algo idêntica à constatada por Lipove-
tsky; ainda que a sua própria (in)definição a relativi-
ze: “ ‘Pós-modernidade’ deve ser considerada tão
somente um termo ‘heurístico’, ou seja ‘de busca’.
Ter que recorrer a ele encerra uma não pequena
humilhação porque o prefixo ‘post’ revela que hoje
em dia, a modernidade continua a ser a autêntica
substantividade”. 2) A descrença no progresso e o
sentimento de fim da história, já que em muitos até
esta desapareceu como sentido colectivo. 3) A troca
da ética pela estética, pois, como o viajante sem bús-
sola, cada um vai para onde lhe apetece; quando não
se espera nada do futuro, é preferível desfrutar o
momento. 4) O crepúsculo da razão e a explosão do
sentimento. Resume assim: “Surge uma pergunta
obrigatória: Se nenhuma das cosmovisões filosóficas,
políticas ou religiosas, que mobilizaram os homens
modernos estão fundadas sobre terra firme, que são
então? Lyotard responde sem duvidar um momento:
somente ‘grandes relatos’; não podem reivindicar
nenhuma objectividade, são simples narrações e
além disso a experiência manifesta que essas grandes
narrações são perigosas, porque, antes ou depois,
apelam ao terror, a fim de se imporem. O cristianis-
mo recorreu à inquisição, o marxismo ao KGB e aos
Gulags, o nazismo aos campos de extermínio e a
civilização ocidental à bomba atómica. Assim é, pois,
muitíssimo mais higiénico renunciar aos discursos
omnicompreensivos e contentarmo-nos com um
‘pensamento débil’”. Consequente com o destrona-
 10 mento da razão – continua Gonzalez-Carvajal -,
seguiu-se o despertar da subjectividade e do senti-
domingo, 10 de Março de 2002
mento: “O pós-moderno não se apega a nada, não
O Jornal das Boas Notícias
tem certezas absolutas, nada o surpreende e as suas
opiniões são susceptíveis de modificações rápidas”.
5) O esoterismo, misturando sugestão, magia, procu-
ra da novidade e do anómalo, com autênticas inquie-
tações religiosas. Na ambiência pós-moderna, teria a
qualificação impossível que lhe deu Roszak de “psi-
co-místico-paracientífico-espiritual-terapêutico”. 6)
Um certo regresso a Deus, mas com três limitações,
sempre segundo Gonzalez-Carvajal: primeira, nunca
será “com todo o coração”, pois tal não permitem a
fragilidade e a errância das adesões pós-modernas;
segunda, nunca será unívoco, pois combinará cren-
ças díspares em sucessivos ‘coktails religiosos’; ter-
ceira, será pouco ou nada comunitário, porque o
pós-moderno desconfia de Igrejas e teme condicio-
namentos.
Terminando a sua análise, o pastoralista madrileno
conclui: “Claro que uma sociedade totalmente mo-
derna seria como um pesadelo de ficção científica. E
o mesmo poderíamos dizer da sociedade totalmente
pós-moderna. Mas, graças a Deus, trata-se somente
de tipos ideais. Em nenhum lugar do mundo existe
um homem cem por cento moderno, nem um ho-
mem cem por cento pós-moderno, mas uma mistura
de ambos com maior ou menor proporção dos dois
tipos ideais. A meu ver, uma sociedade onde após as
correspondentes oscilações do pêndulo se acabe
impondo uma síntese equilibrada de elementos mo-
dernos e pós-modernos seria uma sociedade muito
mais disposta ao Evangelho que as sociedades estri-
tamente modernas”.
A última análise que aqui trago é recentíssima. Che-
ga-nos na Mensagem da X Assembleia Geral Ordi-
nária do Sínodo dos Bispos, aprovada a 25 de Outu-
bro último. Tem a vantagem, para a coerência deste
discurso, de ecoar o tom e o método do Concílio e
da Gaudium et Spes, quarenta anos depois. Algo se
alterou, mas permanecem leituras e insistências.
Perguntemo-nos: - Como viram o mundo actual os
responsáveis católicos? As expectativas do Vaticano
II quanto à emancipação dos povos, o desenvolvi-
mento mundial e a harmonização da vida internacio-
nal realizaram-se?
Oiçamo-los, depois de aludirem ao 11 de Setembro e
ao terrorismo: “Durante o Sínodo, não pudemos
deixar de escutar o eco de muitos outros dramas
colectivos [...]. Segundo os observadores competen-
tes da economia mundial, 80% da população do
planeta vive com 20% dos seus recursos, e um bilião
e duzentos milhões de pessoas são obrigadas a ‘vi-
ver’ com menos de um dólar por dia! É urgente uma
mudança de ordem moral”. Ou seja, neste ponto, a
mutação não é constatada, mas urgida. Não se deu,
como era de esperar em meados do século passado;
é uma tarefa inadiável para o princípio deste.
Os bispos enumeram depois uma série de “contra-
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sinais” dos tempos: fome e pobreza extremas, ha-
vendo tantos meios para lhes acudir; multidões de
emigrantes, por razões de vária ordem, quase sempre
negativas; epidemias, analfabetismo, abandono de
crianças e jovens, exploração de mulheres, pornogra-
fia, intolerância, abuso da religião para a violência,
tráfico de drogas, comércio de armas... E, no entan-
to, “os humildes voltam a erguer a cabeça”, certa-
mente inspirados por Deus.
Os bispos insurgem-se sobremaneira contra “o des-
prezo pela vida, desde a concepção até ao seu ocaso,
e a desagregação da família”. Tem sido esta a grande
causa do actual pontificado e é, obviamente, a maior
questão cultural do momento, a base inabalável de
qualquer diálogo com futuro. Enuncia-a assim o
Sínodo: “O não da Igreja ao aborto e à eutanásia é
um sim à vida, um sim à bondade originária da cria-
ção, um sim que pode alcançar cada ser humano no
santuário da sua consciência, um sim à família, pri-
meira célula de esperança”. Como cultural é a dispo-
sição para a simplicidade de vida, que os bispos que-
rem para si e para todos como modo de vida e con-
vivência solidária. Assim como a radicalidade da
cultura da vida, traz prioridades absolutas aos com-
portamentos pessoais e cívicos, dando um critério de
juízo operativo às inestimáveis conquistas da mo-
dernidade na ciência, na política e na economia,
também a modéstia resistirá ao hedonismo pós-
moderno, redundando em essencialidade de vida e
disponibilidade para a partilha. A estas, enunciam-
nas assim os bispos: “Existe uma pobreza alienante e
é preciso lutar para libertar aqueles que são suas
vítimas; mas pode existir uma pobreza que liberta as
energias para o amor e para o serviço, e esta é a po-
breza evangélica que queremos pôr em prática”.
Na cultura da mudança, algo persiste no coração
humano, distinguindo-o exactamente como “huma-
no”. Essa é a convicção da Igreja – neste Sínodo
como no Concílio Vaticano II –, que a vê compro-
vada no grande “sinal” das vidas devotadas, hoje
como ontem, às causas perenes da justiça e da paz:
“Agradecemos de todo o coração aos sacerdotes,
religiosos e religiosas e de igual modo a todos os
missionários: impelidos pela esperança que provém
de Deus e que se revelou em Jesus de Nazaré, com-
prometem-se no serviço aos mais frágeis e aos doen-
tes, proclamando o Evangelho da vida. Admiramos a
generosidade de muitos homens e mulheres que se
sacrificam pelas causas humanitárias, assim como a
tenacidade dos animadores das instituições interna-
cionais; a coragem dos jornalistas que, também em
situações de perigo, desempenham uma obra de
verdade ao serviço da opinião pública; a actividade
dos homens de ciência, dos médicos e paramédicos,
a audácia de alguns empresários, na criação de pos-
tos de trabalho em regiões difíceis; a dedicação dos
pais, dos educadores e dos professores, assim como
a criatividade dos artistas e de muitos outros agentes
de paz que procuram salvar vidas, reconstruir famíli-
 10 as, promover a dignidade da mulher, defender as
crianças e preservar ou enriquecer o património da
domingo, 10 de Março de 2002
humanidade”. E os bispos, citando o número 22 da
O Jornal das Boas Notícias
Gaudium et Spes, não hesitam em reconhecer em
tudo isto a obra da graça divina.
Termino, com uma alusão que o Sínodo e o Concílio
também fazem, referente a um tempo crucial para a
sociedade e a cultura, como foi o período final do
Império Romano do Ocidente. Roma, mesmo a
Roma “cristã”, fora atingida pelas hordas bárbaras
em 410. Os pagãos acusavam os cristãos de tal des-
graça; muitos cristãos procuravam a resposta a dar
aos outros e a si próprios. Santo Agostinho deu-a n’
A Cidade de Deus: mudam impérios, mudam, diga-
mos, as sociedades e as culturas, por factores inter-
nos e externos, como os que carreámos atrás, para o
nosso tempo. Permanece, ou melhor, cresce, entre
tudo e apesar de tudo, o que, definindo o homem
como ser com os outros e para os outros, define
também a comunidade humano-divina que, tempo
após tempo, aumenta os seus concidadãos.
Digamo-lo com os bispos de há quarenta anos e de
há um mês, dirigindo-se em particular aos responsá-
veis da política e da economia: “Na sua mensagem
aos governantes, os Padres do Concílio Vaticano II
ousaram dizer: ‘Na vossa cidade terrestre e temporal,
Deus edifica a cidade eterna’. Precisamente por este
motivo, [...] ousamos por nossa vez dirigir a nossa
palavra aos responsáveis do mundo político e eco-
nómico. O bem comum das pessoas e dos povos
seja o motivo da vossa actividade”.
Esta motivação compartilhada pode ser também –
deve ser sobretudo – um sintoma positivo de muta-
ção cultural.
Novidade: dar mais tempo ao tempo
ANA DE SOUSA
In: DN 20020103
As pessoas que se queixam de falta de tempo para a
resolução de todos os cuidados do quotidiano não
têm mais motivos para lamentações. Chega a Portu-
gal o Banco do Tempo, um método eficaz para aju-
dar os atarefados nos trabalhos diários, proporcio-
nando-lhes, deste modo, o arrecadar de mais horas
para si próprios. Para isso, basta abrir uma conta
neste banco.
Esta instituição permite a transferência de tarefas
entre os membros inscritos, que podem prestar e
requisitar variados serviços, tendo como única moe-
da de troca as horas. Assim, qualquer investidor que
se disponibilize a dar uma hora do seu tempo para
prestar um conjunto de actividades, recebe em retri-
buição uma hora para utilizar em benefício próprio.
O objectivo primordial do Banco do Tempo é pos-
sibilitar o apoio à família e a conciliação entre a vida
profissional e familiar para homens e mulheres, ofe-
recendo a troca de uma série de serviços, que podem
ir desde o simples acompanhamento de crianças,
ajuda doméstica e companhia a actividades de secre-
tariado e burocracia e ensino. Troca-se tempo por
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tempo e todas as ocupações têm o mesmo valor,
sendo que uma hora despendida no acompanhamen-
to de um idoso ao médico vale exactamente o mes-
mo que uma hora empregue a dar explicações de
inglês.
Os membros do Banco do Tempo têm de manter
sempre os seus saldos positivos e os movimentos
regulares, o que não os obriga, no entanto, a respon-
der sempre que sim a todos as solicitações. O limite
máximo de diferença entre horas recebidas e ofere-
cidas é de 20 horas e todos os investidores têm de
pagar uma quota anual de quatro horas.
Numa sociedade em que impera o medo e a descon-
fiança, podem existir, para além das vantagens, al-
guns entraves a este sistema. Margarida Carvalho
Neto, gestora de projectos do Graal (Organização
Não Governamental que está a promover a abertura
do banco em Portugal), desdramatiza a situação.
"Esta é a questão mais delicada. Nós não nos res-
ponsabilizamos por qualquer dano. Apesar disso,
todas as pessoas que solicitem o Banco do Tempo
têm de ser devidamente identificadas, tal como têm
de dar o contacto de três pessoas que confirmem a
sua idoneidade". Afinal, os serviços prestados cor-
respondem a actividades não profissionais que, em
princípio, se realizam com gosto e entusiasmo. "A
permuta de tarefas assenta na boa vontade e na lógi-
ca das relações de boa vizinhança", conclui Margari-
da Carvalho Neto.
O Banco do Tempo, inspirado em experiências ita-
lianas, onde esta ideia nasceu há 11 anos, chega a
Portugal e instala-se, para já, em Pombal, Montijo,
Coimbra, Abrantes e Macedo de Cavaleiros. As cin-
co agências ficarão ligadas ao Banco Central, o
Graal, que fornecerá o suporte informático, garan-
tindo ainda a formação do pessoal e a divulgação do
serviço.
A Paz que veio de Assis
In: O Independente, 020201
Aura Miguei, em Assis jornalista da Rádio Renascença
Relato em directo do encontro histórico promovido
por João Paulo 11 na terra de S. Francisco, onde
líderes de todas as religiões proclamaram unidos um
compromisso comum pela Paz
Na gare ferroviária, o comboio intercidades come-
çou a encher-se logo pela manhã, bem cedo. Más
nenhum dos passageiros tinha bilhete. Os revisores
não tinham mãos a medir, só que desta vez - prova-
velmente a única das suas vidas - não picaram os
bilhetes, antes os entregaram gratuitamente aos cerca
de 300 convidados. Em cada poltrona deste com-
boio especial estava assinalado o nome do passagei-
ro. No lugar da janela n.º 71 da carruagem IV sen-
tou-se João Paulo II.
As duas horas de viagem que ligam o Vaticano a
Assis ajudaram a reforçar o clima de diálogo descon-
traído daquela extraordinária diversidade religiosa.
Ortodoxos e muçulmanos liam o jornal e comenta-
vam as principais notícias, hindus e cristãos conver-
 10 savam animadamente com budistas e sikhs, enquan-
to um ou outro aproveitou um momento de pausa
domingo, 10 de Março de 2002
do Papa para o saudar pessoalmente.
O Jornal das Boas Notícias
Multi-religioso. A lista oficial com os nomes dos
participantes viria a ser publicada apenas na antevés-
pera do encontro porque à ultima hora Moscovo
mudou de atitude. Ao contrário do que chegou a ser
anunciado, o patriarca Alexis II substituiu a figura
secundária de um bispo, que acompanha a diáspora
ortodoxa em Paris, por uma delegação de três mem-
bros da hierarquia de Moscovo, chefiados por um
nome de relevo, o metropolita Pitirim. Assim, quan-
do João Paulo II deu início ao encontro, tinha sen-
tados a seu lado nove patriarcas ortodoxos, dez ra-
binos, cinco delegações budistas, 5 1 representantes
de 21 confissões cristãs e 31 líderes muçulmanos,
entre muitos outros responsáveis das 12 principais
religiões do mundo.
João Paulo II, na saudação inicial de boas-vindas,
agradeceu a todos a disponibilidade da sua presença
em Assis: Nos momentos de intensa apreensão pelos
destinos do mundo damo-nos conta com maior
vivacidade do dever de nos empenharmos pessoal-
mente lia defesa e lia promoção do bem fundamental
da paz." Os fiéis que encheram a praça de São Fran-
cisco reforçaram os aplausos quando o Papa, ao
saudar cordialmente os representantes do Islão,
enunciou a sua proveniência: Albânia, Arábia Saudi-
ta, Bósnia, Bulgária, Egipto, Jerusalém, Jordânia,
Irão, Iraque, Líbano, Líbia, Marrocos, Senegal, EUA,
Sudão e Turquia.
A introdução da jornada coube ao cardeal vietnamita
NguyênVanThuan: «I Estamos aqui reunidos para
testemunhar diante dos homens e mulheres de boa
vontade que a religião nunca deve tomar-se pretexto
para conflitos, ódios e violências, como aqueles a
que voltamos a assistir nos nossos dias. Neste mo-
mento histórico, a humanidade precisa de ver gestos
de paz e de ouvir palavras de esperança."
Discursos pela Paz. Seguiram-se 11 testemunhos
de paz. O primeiro foi do patriarca ecuménico de
Constantinopla, Bartolomeu I. Cada um deles, numa
incrível diversidade, falou de paz. Um dos últimos,
antes do Papa, foi o rabino Israel Singer, provenien-
te dos EUA. Quando o representante do judaísmo
subiu ao palanque virou-se, num impulso, para o
velho pontífice e improvisou: "Só Vossa Santidade
poderia ter feito semelhante coisa!" Igual estupefac-
ção tinha também demonstrado aos jornalistas o
grande rabino de Paris, Samuel-René Sirat: "É emo-
cionante ver aqui os líderes das religiões ao mais alto
nível empenharem o seu tempo para virem a Assis
gritar a sua esperança de paz."
João Paulo II ouvia tudo serenamente. Naquele dia a
sua voz era forte e o olhar ainda mais penetrante.
"Queremos trazer o nosso contributo para afastar as
nuvens do terrorismo, do ódio, dos conflitos arma-
dos, nuvens que nos últimos meses se acumularam
particularm ente no horizonte da humanidade. Por
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isso queremos ouvirnos uns aos outros: e já isto é
um sinal de paz. Esta é já uma resposta às inquietan-
tes interrogações que nos preocupam. Isto serve já
para dissipar as nuvens da desconfiança e da incom-
preensão."
Com efeito, se o encontro de Assis tivesse termina-
do naquele instante, já tinha valido a pena, pelo claro
gesto de paz lançado ao mundo e pela reafirmação
de que violência e religião são incompatíveis, pois
usar o nome de Deus para ofender o homem é sem-
pre uma blasfémia.
Mas isto, de certo modo, João Paulo II já tinha con-
seguido no encontro de Assis de 1986. E assim,
desta vez, foi mais longe. "Queremos mostrar ao
mundo que o impulso sincero da oração não nos
leva ao confronto, e muito menos ao desprezo do
outro, antes a um diálogo construtivo." Todos os
presentes foram pois convidados a rezar, segundo as
suas formas e tradições religiosas, porque .1 rezar
não significa evadir-se da história e dos seus proble-
mas. Pelo contrário, é optar por enfrentar a realidade
não sozinhos, mas com a força que vem do Alto, a
força da verdade e do amor cuja última fonte está
em Deus."
João Paulo II já tinha terminado o seu discurso.
Agora era tempo de dispersar, cada um para a sua
sala de oração. Mas com o microfone ainda na mão,
o Papa, aludindo aos fortes ventos que assobiavam
naquela fria manhã, tem um rasgo profético: "0 ven-
to é sinal do espírito e o espírito sopra onde quer!"
Passo histórico. Ao início da tarde, todos os líderes
religiosos voltaram a reunir-se para proclamar um
compromisso comum pela paz. Foi a primeira vez
na história das religiões que aconteceu semelhante
fenómeno. Os dez pontos fundamentais do com-
promisso foram lidos solenemente por diferentes
chefes religiosos.
O resultado teve um efeito inesperado. Parecia im-
possível o que ali se passava, tal a força dos contras-
tes: um sikh (do Punjab) compromete-se a educar as
pessoas no respeito mútuo e a favor de uma convi-
vência pacífica entre etnias, culturas e religiões dife-
rentes; o enviado do patriarca de Moscovo, o me-
tropolita Pitirim, compromete-se a promover a cul-
tura do diálogo e da confiança recíprocas entre os
povos; um líder muçulmano do Irão declara que não
se resigna à violência e ao mal; outro xeque de Jeru-
salém reconhece que as diferenças não são muros
intransponíveis e que o confronto com a diversidade
aumenta a compreensão mútua... Isto enquanto o
grande rabino de Paris se compromete a pedir aos
responsáveis das nações que edifiquem um mundo
de solidariedade e de paz sobre o fundamento da
Justiça. No final, para selar o solene compromisso,
João Paulo II sintetiza, tudo em poucas palavras:
"Nunca mais a violência! Nunca mais a guerra! Nun-
ca mais o terrorismo! Em nome de Deus, cada religi-
ão traga à Terra Justiça e Paz, Perdão e Vida, Amor!"
De regresso a casa, no final do encontro, alguém
 10 recordava as recentes polémicas sobre o documento
"Dominus Jesus", cuja afirmação de Cristo como
domingo, 10 de Março de 2002
único salvador seria um grave retrocesso no diálogo
O Jornal das Boas Notícias
interreligioso. Na sua edição de 23 de Outubro, o
"Herald Tribune" (diário realizado pelo "The New
York Times" e pelo "The Washington Post" para a
Europa) publicou uma forte condenação do docu-
mento, que "usa uma linguagem ofensiva para os
crentes de outras religiões" e considerando que "o
dogma da Igreja prejudica a busca de uma paz glo-
bal". Críticas que, em Assis, caíram por terra.
A força desta jornada de paz partiu do protagonismo
inequívoco de João Paulo, II, que, em nenhum mo-
mento, abdicou da sua pertença a Cristo. Olhamos
para o Papa e, misteriosamente, damo? nos conta de
que quanto mais ele adere a Cristo mais fecundo se
toma, até para com as outras religiões. A prova está
no rol das imensas declarações positivas que a im-
prensa internacional reproduziu após a jornada de
Assis. Elio Toaff, o rabino emérito de Roma, reco-
nheceu que "agora todas as religiões devem olhar
para diante e deixar para trás as diatribes e terem
presentes diante dos olhos as reais exigências do
mundo, dos povos e das pessoas. A jornada de Assis
dá a todos uma visão de paz. Devemos cuidá-la e
vivê-la no dia-a-dia".
Não menos impressionante é o comentário de Mar-
co Politi, "republicano e laico", famoso no modo
como habitualmente critica o Papa. A síntese do
jornalista italiano é, desta vez, um retrato fiel do que
se viveu em Assis: "Massacraram-se, insultaram-se,
difamaram-se e perseguiram-se durante séculos.
ímpios, hereges, idólatras, cães infiéis. Assim se
ofendiam uns aos outros. E eis que se encontram
reunidos à volta de um velho pontífice com cara de
santo, que reza gritando: 'Nunca mais a violência,
nunca mais a guerra, nunca mais o terrorismo! Em
nome de Deus, cada religião traga à Terra justiça e
Paz, Perdão e Vida. Amor!"'
Reconhecimento jurídico para o embrião
humano
Filipe R. Lucena
In: Ecclesia, 020205
Papa na oração do Angelus
Reconhecimento jurídico para o embrião humano
O embrião humano deve ser reconhecido juridica-
mente – este foi o pedido feito, dia 3 de Fevereiro,
por João Paulo II, antes de rezar a oração mariana
do “Angelus”. A par deste reconhecimento, o Papa
pediu também o respeito pelos direitos de toda a
pessoa que não seja capaz de se defender, destacan-
do “os que estão por nascer, doentes psíquicos e
doentes terminais ou com grande gravidade”.
João Paulo II recordou que “a ciência já demonstrou
que o embrião é um indivíduo que possui, desde a
concepção, uma identidade própria”. “É lógico por-
tanto – esclareceu o Santo Padre – exigir que esta
identidade seja juridicamente reconhecida, antes de
tudo no seu direito à vida”.
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No dia em que os católicos em Itália assinalavam a
Jornada para a Vida, que teve como tema “Reconhe-
cer a Vida”, João Paulo II acrescentou ainda que
“ninguém é dono da vida, ninguém tem o direito de
manipular, oprimir ou tirar a vida, de a de outros,
nem a própria”. Uma situação ainda mais insustentá-
vel quando “em nome de Deus, que ´eo único Se-
nhor e o mais sincero amante da vida”.
[05-02-2002 13:55:39] [Internacional] [1136 caracteres] [Grátis] [ Filipe R. Lucena ]
Duas maternidades para Timor-Leste
In: RR, 2002-02-05 - 22:02
D. José Policarpo apelou aos cristãos da diocese para
que no período da Quaresma, façam doações para a
construção de duas maternidades em Timor-Leste.
No Jubileu do ano 2000, o Patriarcado de Lisboa
tinha decidido oferecer a Timor-Leste uma Materni-
dade-Escola, pelo que foi criada a "Fundação Mater
Timor" que está a preparar a execução do projecto
no terreno em colaboração com os Bispos de Timor
D. Ximenes Belo e D. Basílio do Nascimento.
A acção social para Timor-Leste surgiu como um
contributo para ajudar a mulher timorense, reduzir a
"gravíssima taxa de mortalidade infantil" no territó-
rio, e "afirmar o direito à vida num país crucificado
por muitas mortes em 25 anos de ocupação e guerri-
lha", sustenta o Patriarcado.
Até agora, o Patriarcado arrecadou um total de 300
mil euros (60 mil contos), para o qual o Papa João
Paulo II fez um donativo pessoal, segundo a diocese.
No entanto, o estudo económico realizado prevê
custos de 1.150 mil euros (230 mil contos) em cada
unidade.
Este ano, a renúncia Quaresmal no Patriarcado de
Lisboa vai portanto no sentido de recolher donati-
vos para que o projecto prossiga, com o apoio da
Conferência Episcopal Portuguesa, a Santa Sé e a
Federação Internacional das Associações dos Médi-
cos Católicos.
Uma Vida Dedicada a Ajudar Toxicode-
pendentes
Por RUI TIBÉRIO
In: Público, Segunda-feira, 11 de Fevereiro de 2002
Um homem dedica
muito do seu tempo a
ajudar toxicodepen-
dentes e até já pensa
criar uma associação
para "institucionalizar"
esse modo de vida
Chama-se Joaquim Sá,
tem 39 anos e há 19 que
ajuda os toxicodepen-
dentes das Caldas da
Rainha. Todos os dias,
cerca das 11 da noite,
carrega até junto da
estação dos comboios
um saco com sandes e garrafões com café e leite,
que angaria junto de cafés da cidade, além de dar
 10 parte do seu ordenado numa taberna que colabora
com ele nesta cruzada, e lá os adictos podem, gratui-
domingo, 10 de Março de 2002
tamente, comer uma refeição quente - para muitos a
O Jornal das Boas Notícias
única.
Os seus dias dividem-se entre o trabalho como auxi-
liar de acção educativa numa escola das Caldas, a
recolha de alimentos para dar os toxicodependentes
e a preparação e entrega das sandes e refeições.
Além disso, em sua casa ainda lava a roupa de alguns
que vivem na rua.
O "Quim" (nome por que é conhecido entre os
adictos) não bebe, não fuma, não toma drogas nem
sai à noite, e diz que a sua maior preocupação é con-
seguir um local que sirva de abrigo para os toxicode-
pendentes que fazem das ruas das Caldas a sua casa.
"Tenho ido a muitos sítios mas ainda não consegui
arranjar nada, e penso nisso 24 horas por dia", con-
fessa.
Tudo começou há 19 anos na Praça da Fruta, um
dois locais do centro histórico da cidade, quando
passava e via "um grupo de pessoas com um sem-
blante triste solicitando ajuda às pessoas. Comecei
por lhes dar cartas que escrevia, com mensagens de
esperança. Ao princípio não era muito bem recebi-
do, mas a pouco e pouco fui ganhando a confiança
deles", recorda. Depois, alguns toxicodependentes
começaram por lhe pedir uma sandes, um bolo ou
roupa. Joaquim cedia e muitas vezes acabava por
acompanhá-los ao restaurante pagando-lhes uma
refeição quente.
Este gesto foi-se tonando um hábito, até que come-
çou, regularmente, a levar sandes, leite e batatas com
ovos cozidos para junto da estação dos comboios.
Rotas diárias e semanais
Os dias de Joaquim Sá estão programados "ao minu-
to". Começa a trabalhar às 9h00 e às 12h30 sai para
almoçar, chegando a casa dez minutos depois. "A
seguir vou à taberna levar o pão que consegui no dia
anterior e às 13h30 vou a uma fábrica buscar os
bolos, à praça buscar fruta e volto à taberna para
entregar tudo", conta.
Volta ao emprego às 14h00 e quando larga o serviço,
às 17h30, o frenesim recomeça. Vai à taberna buscar
a comida já confeccionada, leva-a serve-a em pratos
no parque da cidade, cerca das 18h30 e às 20h00
volta a uma pastelaria buscar os bolos que não foram
vendidos. A seguir vai jantar a casa, aquece três litros
de leite e dois de café, prepara as sandes e à noite
carrega tudo o até junto da estação, para dar aos
toxicodependentes. "Às vezes antes de me deitar
ainda lavo umas roupas deles".
Sempre que pode, Joaquim Sá tenta encaminhar os
viciados em drogas para a recuperação."Já consegui
que largas dezenas se tratassem e deixassem a dro-
ga", diz, com orgulho.
Mas o que levou um jovem (na altura que tudo co-
meçou tinha 20 anos) a dedicar a sua vida a ajudar os
toxicodependentes? "Sinto-me bem ao ajudá-los e
também sinto que me estou a ajudar a mim". Apesar
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de se confessar católico, as suas iniciativas não con-
têm mensagens religiosas, apenas palavras de confor-
to e apoio.
A sua atitude causa alguma estranheza, mas garante
que não o preocupa, apesar de ter sido tomado,
várias vezes, por toxicodependente. "O importante é
o que eu penso de mim e não o que os outros pen-
sam".
Joaquim afirma que se pudesse não mudava nada da
sua vida, porque se sente realizado. Pensa, inclusi-
vamente, em criar uma associação, para "institucio-
nalizar" o seu modo de vida. Já se reuniu com a
autarquia local, mas o único apoio vem da paróquia
e de uma ordem religiosa estabelecida na cidade.
Pensa que a toxicodependência é uma doença e que
as pessoas "já nascem com pré-disposição para ela,
além de que muitos factores como a educação e o
meio social contribuem para se enveredar por esse
caminho".
Pobreza Relativa em Portugal Está Abaixo
dos 20 por Cento
Por LEONETE BOTELHO
In: Público, Quinta-feira, 14 de Fevereiro de 2002
Relatório da Comissão Europeia revela redução
significativa de portugueses a viver com menos de
60 por cento do rendimento médio nacional
Portugal já não está na cauda da Europa em matéria
de exclusão social. O relatório da Comissão Euro-
peia sobre a concretização dos objectivos da Estra-
tégia de Lisboa, elaborada durante a presidência
portuguesa e que aponta para uma maior coesão
social na UE, revela que, comparativamente com os
outros 14 países da UE, deixamos o último lugar
para passarmos à frente da Grécia, do Reino Unido e
da Itália. Para cima, Portugal fica a uma distância de
um ponto percentual da Espanha e dois da França, o
que é bastante significativo.
Os quadros referentes ao risco de pobreza relativa
(aquela em que se encontram as pessoas que vivem
com recursos inferiores a 60 por cento do rendimen-
to mediano nacional) revelam que as transferências
sociais concretizadas no nosso país entre 1997 e
1998 fizeram diminuir o risco de pobreza em quatro
pontos percentuais, de 24 por cento em 1997 para
20 por cento no ano seguinte. E mostra ainda ter
havido uma evolução positiva na capacidade de aufe-
rir rendimentos próprios pelos portugueses em risco
de pobreza relativa. ... ... ...
Duas Propostas Modestas
Por ANTÓNIO BARRETO
In: Público, Domingo, 10 de Fevereiro de 2002
Mês de campanha, mês de promessas, mês de pro-
postas. É natural que assim seja. Cada partido esfor-
ça-se por ter pelo menos uma proposta nova por dia,
geralmente anunciada poucos minutos antes das
notícias das oito. Já tivemos vários exemplos, sendo
uns adequados, outros inconvenientes e outros dis-
paratados. A privatização da Caixa Geral de Depósi-
 10 tos, proposta por Durão Barroso, ficou famosa,
sobretudo porque ninguém a queria, nem os econo-
domingo, 10 de Março de 2002
mistas do PSD, nem os dirigentes da Caixa, nem os
O Jornal das Boas Notícias
capitalistas eventualmente interessados. Muito me-
nos os depositantes. Também para a história fica a
sugestão, da autoria do mesmo Barroso, de reduzir o
IRS, ao mesmo tempo que pretende diminuir o défi-
ce, ideia prontamente contrariada por economistas
de todos os bordos, inclusive do partido proponen-
te. Surpresa ainda, finalmente, as propostas de Ferro
Rodrigues e dos dirigentes do PS, relativamente às
farmácias sociais e aos genéricos: tiveram sobretudo
o efeito de recordar um dos maiores falhanços de
seis anos de governo, o da saúde.
Aproveitando a maré, quero, modestamente, dar o
meu contributo. Neste caso, com duas ou três pro-
postas simples para a educação. Há, neste sector, mil
e uma coisas a fazer. Políticas, medidas, orientações,
investimentos, reformas e leis, o catálogo é imenso.
De tal modo que é medonha a tentação de preparar
reformas globais e integradas, termos que detesto
acima de tudo e que sucessivamente implicam ou
impotência ou demagogia. Apesar de saber que na
área educativa, a que pertencem vários partidos,
germinarem já novas ideias de reforma global, consi-
dero que tais esforços serão inúteis e enganosos.
Mais vale preparar reformas e programas concretos,
a pôr em prática gradualmente, evitando assim as
enxurradas que destroçam mais do que constroem.
O sistema educativo português sofre, entre outros,
de um defeito terrível: é excessivamente uniforme,
integrado e centralizado. Por isso é impossível de
gerir e administrar. Fechado ao escrutínio exterior e
público, torna-se muito difícil de reformar. O siste-
ma parece desenhado deliberadamente para impedir
que a excelência se revele. É destruidor de toda a
diversidade. E inimigo da responsabilidade dos cida-
dãos, dos pais e até dos professores. Provavelmente
a principal fonte desperdício nacional, penaliza o
mérito e recompensa a mediocridade. Se lhe retirar-
mos, parcial ou totalmente, aqueles três atributos,
não se eliminarão, de repente, todos estes defeitos,
mas criar-se-ão condições e estímulos para que estes
sejam eficazmente combatidos. Por outras palavras,
se for diverso e descentralizado, o sistema educativo
será mais bem administrado e susceptível de melho-
ramento.
A minha primeira proposta consiste na entrega, às
autarquias locais, de todo o sistema educativo pré-
escolar, básico e secundário. E digo bem todo: or-
çamentos, edifícios, gestão, professores, funcionári-
os, obras e equipamentos. E até uma parte do currí-
culo. Com a preparação e o gradualismo adequados,
as escolas passariam a pertencer totalmente às câma-
ras municipais (e em certos casos às freguesias), que
teriam, em conjunto com os munícipes, os pais e os
professores, toda a responsabilidade política, eco-
nómica, administrativa e pedagógica. As competên-
cias ficariam claramente determinadas. O envolvi-
Página 10 de 24
mento da sociedade seria possível e desejável. O
controlo social reforçado. Ao governo sobrariam
funções, residuais na dimensão, mas essenciais na
competência: avaliação, inspecção e fiscalização,
além de acompanhamento do currículo nacional. E
da política social.
O mesmo espírito ditaria uma nova organização do
ensino superior, sobretudo da universidade. Com a
revogação de grande parte das leis de orientação
actuais, seria decretada a real autonomia dos estabe-
lecimentos de ensino superior e investigação. As
universidades e as faculdades passariam a ser res-
ponsáveis pelo essencial da sua actividade, de que
não se eximiriam de prestar contas. Teriam liberdade
de recrutamento de professores, investigadores,
estudantes e técnicos. Administrariam os seus orça-
mentos com total liberdade e inteira responsabilida-
de. Definiriam os seus próprios modelos de governo
e gestão, que poderiam, aliás, ser diferentes uns dos
outros. Ser-lhes-ia possível, por exemplo, contratar
reitores, administradores profissionais e directores.
Recrutariam, a prazo ou definitivamente, cientistas e
docentes, a quem pagariam de acordo com o traba-
lho, o mérito e as competências. Estariam livres de
se associar intimamente à sociedade, designadamente
ao mundo cultural, artístico e empresarial, assim
como às autarquias, associações profissionais, socie-
dades científicas e outras instituições. Cumpririam
regras gerais e abstractas, aplicando-as concreta e
diversamente. Por exemplo, a lei geral diria apenas
que cada estabelecimento deverá tornar públicas as
suas regras de prescrição e sucesso académico anual.
Mas cada faculdade fixaria as suas condições. Uma
mais exigente entenderá que seis anos são suficientes
para terminar uma licenciatura, enquanto outra ficará
satisfeita com doze. O problema é delas. Mas o pú-
blico saberá distinguir.
Será preciso acrescentar que todas as escolas, bási-
cas, secundárias ou superiores teriam evidentemente
de respeitar a lei geral sobre matérias como os direi-
tos fundamentais, os castigos físicos, a segregação
racial, a discriminação social, o favoritismo político e
a liberdade de expressão? Por cima de tudo, para o
básico, o secundário e o superior, ao ministério da
educação, assim reduzido ao que é nobre e impor-
tante, competiria zelar pelas condições de livre circu-
lação de professores e estudantes e de apoio social,
assim como da liberdade de ensino e de investigação.
Para o que teria de se desempenhar rigorosamente
das suas funções de inspecção, fiscalização e avalia-
ção. Com estas receitas, iria finalmente este mons-
truoso ministério ocupar-se do essencial. Talvez
assim deixasse de ser um dos principais obstáculos
ao progresso da educação, da cultura e da ciência no
nosso país.
Casos exemplares no Norte
ELSA COSTA E SILVA
In: DN, 020215
As listas de espera são um problema recorrente no
 10 sistema de saúde nacional, que registam, contudo,
algumas experiências de sucesso. Em duas unidades
domingo, 10 de Março de 2002
distritais, de dimensão média, como os de Braga e
O Jornal das Boas Notícias
Santa Maria da Feira, as direcções desenvolveram
experiências que conseguiram alterar o rumo da
situação. Consultas e cirurgias tornaram-se mais
fáceis, respectivamente, nos hospitais de S. Marcos e
S. Sebastião.
Os médicos de Santa Maria da Feira têm uma média
muito mais elevada de cirurgias que os outros clíni-
cos da mesma especialidade. Em 2000, enquanto a
média das unidades de igual dimensão e influência
era de 200 operações por médico, esse valor subiu
para 310 no Hospital de S. Sebastião. Em 2001, o
número de cirurgias nessa unidade de saúde subiu 20
por cento, tendo-se realizado quase 11 180 opera-
ções.
Nas doenças neoplásicas (casos de cancro), não há,
garante Hugo Meireles, director do hospital de Santa
Maria da Feira, qualquer tipo de espera, assim como
em outras cirurgias urgentes. Actualmente, entre o
momento da decisão e a entrada no hospital para ser
operado, o doente espera em média apenas três me-
ses. As maiores listas estão em especialidades como
varizes ou oftalmologia, onde normalmente não há
perigo para a vida ou grandes ameaças à funcionali-
dade do paciente.
Hugo Meireles refere que a gravidade da doença é
tida em consideração no agendamento das cirurgias,
assim como a urgência social das operações. Por
exemplo, uma prótese de anca é mais rapidamente
colocada numa pessoa jovem que dela necessita para
ter uma vida activa do que num idoso que dela pre-
cisa para ter mais conforto. A ortopedia é uma das
especialidades onde a lista de espera para cirurgia era
muito grande e onde actualmente praticamente não
há períodos grandes entre o momento da decisão e a
sala de operações.
O facto de o Hospital de São Sebastião ser uma
unidade com gestão de tipo empresarial é apontado
por Hugo Meireles como um dos factores que per-
mitiu ultrapassar a situação das listas de espera. "Os
nossos métodos de gestão permitiram adequar me-
lhor a resposta, embora seja também possível resol-
ver problemas deste tipo em hospitais de gestão
pública", salienta.
Em Braga, o problema das consultas de especialida-
de no Hospital de S. Marcos resolveu-se há cerca de
quatro anos quando a direcção da instituição cele-
brou acordos com as várias unidades de saúde locais
da sua área de influência. Na questão das listas de
espera para cirurgia, o problema tem vindo a ser
resolvido com recurso ao programa "Acesso" do
Ministério da Saúde, rentabilizando as salas de ope-
rações nos tempos em que normalmente estavam
desocupados.
Actualmente, salienta Carlos Valério, director do
hospital, estão a proceder-se à limpeza das listas,
contactando os pacientes para saber se a operação já
Página 11 de 24
ser realizou noutra instituição. Estimando que "cerca
de 30 a 40 por cento das pessoas que constam das
listas já foram operadas", o director aponta ainda
que "as situações urgentes são resolvidas em pouco
tempo". O serviço com listas maior é o de otorrino.
"Quando não há perigo para a vida, o tempo de
espera é maior", explica ainda Carlos Valério.
No entanto, o hospital debate-se com falta de anes-
tesistas, o que complica a realização de um maior
número de cirurgias. "Temos 11 profissionais, mas
precisaríamos de 25", aponta. Mas, de acordo com a
monitorização diária a que o hospital está sujeito,
estão actualmente operados cerca de 62 por cento
dos doentes que necessitam de intervenção cirúrgica.
Onde o hospital tem desenvolvido uma experiência
inovadora é no campo das marcações de consulta
em todas as especialidades. Foram celebrados 30
protocolos com todas as unidades de saúde locais e
"há quase quatro anos que ninguém vem ao hospital
marcar consultas".
O contacto é feito directamente entre o médico de
família e o serviço de especialidade do hospital, pelo
que "a marcação não é administrativa. Não é por
quem chega cá primeiro, mas pela urgência da situa-
ção". O director aponta ainda que hospital e centros
de saúde têm vindo a desenvolver "um trabalho
excelente e quase único a nível nacional".
O Regresso do "Bem" e do "Mal"
Por MICHAEL NOVAK*
In: Público , Sábado, 16 de Fevereiro de 2002
O "puzzle" é o seguinte. Após ter proferido a frase
inflamatória "o eixo do mal", o Presidente dos Esta-
dos Unidos, George W. Bush, não tem recebido
muitas críticas pela expressão "mal", e só um pouco
mais pelo termo "eixo".
Mal? Não é a América um país que supostamente
não emite juízos de valor, numa época em que se
espera não sejam emitidos? Então?
Há cerca de 20 anos, o Presidente Reagan provocou
uma tempestade (uma das muitas) quando disse que
a União Soviética era um "império do mal". "Mani-
queísmo", resfolegaram os americanos expatriados
em Paris e Londres, distanciando-se de um Presiden-
te inculto. "Incendiário!", preocuparam-se os diplo-
matas. Tony Dolan, que escrevia na altura os discur-
sos da Casa Branca, revelou que todos os departa-
mentos que reviram o discurso de Reagan antes de
ele o fazer - Departamento do Estado, Conselho de
Segurança Nacional, etc. - riscaram a frase ofensiva;
mas o Presidente voltou a escrevê-la. O Presidente
sabia precisamente aquilo que estava a fazer. Nin-
guém mais parecia saber. A lógica que Ronald Rea-
gan usava parece funcionar actualmente para George
W. Bush. Mas ao contrário.
O Presidente Reagan conheceu por dentro o comu-
nismo nos seus dias de sindicalismo de Hollywood,
sabia que para os comunistas não há bem ou mal,
excepto o triunfo do povo (leia-se, do partido). Não
existe certo ou errado, só História. Ou se é a favor
 10 ou contra.
Reagan viu nisso uma oportunidade. Ele lançaria
domingo, 10 de Março de 2002
uma nova retórica chocante. Chamaria à União Sovi-
O Jornal das Boas Notícias
ética um império em vez de uma união, um império
imposto pela força. E referir-se-lhe-ia não como
inevitável, mas como "mal". Uma palavra antiga,
respeitável, que todas as crianças conhecem e ado-
ram.
"É verdade?"
É claro que Gorbatchov negaria, quando a imprensa
o interrogasse: "É verdade que a União Soviética é
um império do mal?" Mas, numa segunda fase, al-
guém perguntaria: e as purgas de Estaline? Diria que
eram obra do mal? E os seus julgamentos-
espectáculo?
Apenas mudando as condições do debate moral,
Reagan criou uma cilada. Uma vez respondida a
pergunta, teria de se começar a fazer distinções. Os
soviéticos teriam colocado um pé na ratoeira e nun-
ca mais conseguiriam de lá sair.
De facto, passados alguns anos, os negociadores de
armas dos EUA, lembrando os velhos tempos com
os seus ex-homólogos soviéticos, num alegre jantar,
foram interrompidos com um murro na mesa. "Sa-
bem o que provocou a queda da União Soviética?
Sabem o que foi?", questionou um general, com uns
copos de vodka a mais. Alguns encheram o cérebro
com hipóteses sobre defesa antimíssil ou a penúria
generalizada. O general deu então outro murro na
mesa. "Foi aquele maldito discurso do império do
mal!" E, levantando-se, perante os olhares inquirido-
res, acrescentou: "É que era realmente o império do
mal."
Hoje é difícil recordar o choque provocado pela
terminologia de Reagan, onde as palavras eram tudo:
bem e mal.
Após anos e anos de linguagem terapêutica e diplo-
mática, os americanos parecem ansiar de novo pela
clareza do bom velho "mal". E ao olharem para o
buraco onde se erguia o World Trade Center, vêem
"o mal".
Há muito tempo, existiam verdadeiros niilistas, que
eram pessoas sérias. Um deles, Albert Camus, ficou
muito preocupado quando um seu amigo alemão
(que, como ele, reflectia sobre o absurdo) se tornou
nazi. Se a vida é absurda, dizia ele, porque é que o
nazismo é mau? Ao menos, o nazismo é acção...
Para conseguir sair do niilismo, Camus colocou a
seguinte questão: a lógica do niilismo não será a
mesma do suicídio? Se a vida não tem sentido, a
resposta não será, então, escolher morrer? Foi assim,
devagar, passo a passo, que conseguiu sair do niilis-
mo e chegar à resistência. Era um homem sério.
Outro exemplo. Recentemente, um amigo meu de-
batia num "talk-show", com alguém que se autodes-
crevia como "ex-freira lésbica activista pró-aborto"
(não estou a brincar), os padrões morais em que
acreditava. A ex-freira não tinha nenhuns. O anfitri-
ão perguntou então ao meu amigo se ele acreditava
Página 12 de 24
em absolutos, mas antes de ele conseguir responder,
a ex-freira interrompeu-o: "Diga um." O meu amigo
não teve tempo para pensar, mas, como por inspira-
ção, ripostou imediatamente: "Não violarás." No ar
ficaram então três deliciosos segundos de silêncio.
Os terroristas do século XIX pretendiam um mundo
melhor, queriam a igualdade, liberdade de consciên-
cia, uma vida decente para todos, a irmandade na
terra. Os do 11 de Setembro queriam destruir tanto
monumentos budistas, como monumentos da Amé-
rica e, segundo planos encontrados mais tarde, a
Torre Eiffel e a Basílica de São Pedro. Queriam
destruir, não construir.
Daí o desafio do Presidente Bush a todos os que se
dizem relativistas e não emitem juízos: digam-me
como é que estes tipos não são maus, digam-me que
eles apenas precisam de "terapia". As suas palavras
ainda pairam no ar como um desafio. Ninguém pe-
gou nelas. Mas podem apostar que alguém pegará. A
estrutura moral do debate mudou.
Não nos tentem
Existe mal no mundo. Os nossos antepassados sabi-
am disso. Reinhold Niebuhr ensinou à geração de 40
que o problema da História é o persistente poder do
mal sobre o bem, mesmo através da corrupção do
bem. Os fundadores da América, ensinados pelo
rígido Santo Agostinho, que viu em todos os siste-
mas do mundo os conflitos internos da injustiça,
nunca esperaram o triunfo total do bem. Foi por isso
que eles conceberam um sistema cujos complexos
balanços internos foram criados com base em pesos
e contrapesos.
Uma vez que toda a gente peca pelo menos uma vez
na vida, a partir de uma reflexão sobre a História,
concluíram que não se deveria confiar em ninguém
que não tivesse um poder limitado, controlado. Di-
vidiram os poderes. Dividiram os interesses. Visto
que o mal começa em mim e em ti, não nos tentem a
resistirmos para além do nosso poder - controlem-
nos, coloquem-nos uma câmara de vigia, um travão,
um monitor.
A Constituição norte-americana não faz qualquer
sentido a não ser pensando que há sempre um mal
que espreita dentro do melhor de nós. Os "Federa-
list Papers" são tão implacavelmente agostinianos
nas suas meditações sobre a história da humanidade
que os seus autores até questionam, no número 77,
se as suas páginas não seriam demasiado frias; se a
sua "opinião sobre a venalidade universal na nature-
za humana" não estaria ultrapassada. Mas não. Os
fundadores estavam até bastante cientes do seu ter-
rível compromisso com a escravatura. Para chega-
rem à União, muitos deles tiveram de engoli-la. Para
alguns, foi bastante difícil.
Bush, tal como Reagan, regressou à estrutura moral
do bem e do mal, com que os fundadores america-
nos iniciaram todo o pensamento. Existe mal no
mundo, que tende a concentrar-se, a juntar forças e
que, se rebenta com os seus limites, põe toda a gente
 10 em perigo. "Eixo do mal?" Sim, é possível que exis-
tam coisas como essa. Hoje, como sempre. Como é
domingo, 10 de Março de 2002
que é o produto de dois primos. Toda a gente pode
codificar a sua mensagem, mas só quem conheça a
que pudemos duvidar disso? Em que sonho vivía- factorização do número nos primos que são seus
O Jornal das Boas Notícias
mos, em que espécie de névoa, de nevoeiro? factores, é que poderá descodificá-la. A tarefa pode
Mas ainda há um perigo a que o Presidente Bush mal parecer fácil, mas é extraordinariamente difícil para
se referiu. É verdade que nos aconselha a ser humil- números grandes e não é possível levá-la a cabo em
des, a falar calmamente. Mas a palavra "mal", quan- tempo útil. Por essa razão, os sistemas de transmis-
do usada apenas em relação aos outros, pode intoxi- são de dados pela Internet são extraordinariamente
car o utilizador antes que ele se aperceba. Eu previ- seguros.
no-o, a ele e a todos nós, sobre o importante aviso Se a decomposição de números grandes nos seus
de Niebuhr: factores primos é muito difícil, igualmente trabalho-
"O enigma final da História não é se o justo vencerá sa é a descoberta de primos grandes. É um dos mis-
o corrupto, mas sim como ultrapassar o mal que há térios da Teoria dos Números, o ramo da Matemáti-
em todo o bem e a perversidade dos justos." ca que estuda as propriedades dos inteiros. Sabe-se,
*Director no American Enterprise Institute, autor de "A Ética Católica e o Espírito do Capita-
lismo" desde Euclides (século III a.C.), que há um número
Exclusivo PÚBLICO/"The Wall Street Journal"
infinito de primos. O número agora encontrado não
é pois o maior primo, nem há um primo maior que
Primos intratáveis todos os outros. Há uma infinidade à espera de ser
Nuno Crato
In: Expresso, Vidas, 020216 descoberta e não se conhece nenhum método práti-
Recentemente, o jovem canadiano Michael Cameron co de determinar números primos com rapidez. Um
encontrou o maior número primo até hoje conheci- dos métodos mais usados, mas que nem sempre
do. Para o feito, foi necessário empregar vários resulta, consiste em tentar encontrar os chamados
computadores em paralelo, onde correram progra- primos de Mersenne, números da forma do agora
mas matemáticos muito complexos durante muitos descoberto pelo jovem canadiano.
milhares de horas. O número é tão grande que é O primeiro a estudar este tipo de primos - os que se
difícil escrevê-lo. É 2 levantado a 13.466.917 subtra- podem escrever como dois levantado a um primo
ído depois de uma unidade. E é mesmo melhor dizê- mais pequeno subtraindo depois a unidade - foi o
lo assim. padre francês Marin Mersenne (1588-1648), um
Se o quiséssemos apresentar por extenso, na base amigo de Pascal, Fermat e Gassendi, que manteve
decimal em que é hábito escrever os números, ne- uma intensa correspondência com muitos sábios da
cessitaríamos de 4.053.946 dígitos. É um número época. Mersenne pretendia encontrar uma fórmula
muito grande. Tão grande que ocuparia mil destas para representar todos os números primos, mas o
crónicas. Muito mais do que este caderno Vidas. seu intento falhou: nem todos os primos são repre-
Nem mesmo esta edição completa do EXPRESSO sentáveis na forma de Mersenne e nem todos os
lhe chegaria, a não ser que usássemos algarismos ditos números de Mersenne são primos. Até hoje,
muito pequeninos. ninguém descobriu tal fórmula, nem se pensa que
Os números primos são aqueles apenas divisíveis seja possível construir um processo simples de en-
por eles próprios e pela unidade. Por exemplo, 2, 3, contrar primos. É um mistério. Em Matemática,
5, 7, 11 e 13 são primos, ao contrário de 4, 6, 8, 9, 10 como noutros ramos da actividade humana, os mis-
e 12. A importância dos primos está em que eles térios maiores são os mais básicos.
constituem as pedras base de construção e manipu-
lação dos inteiros, já que todos os números se po- Quaresma ou a graça deste tempo!
dem decompor de forma única no produto de pri- Pe. Amaro Gonçalo
In: Ecclesia, 020207
mos. 0 número 12, por exemplo, é 2x2x3, e não há Quaresma: palavra antiga e cada vez mais «velha», na
outra forma de o escrever como produto de primos - linguagem dos mais novos, que lhe desconhecem
excepto, é claro, permutando a ordem dos factores, quase todo o significado. Longe vão os tempos em
o que é irrelevante. Este resultado chama-se Teore- que se calavam, nos campos, as canções, e se proibi-
ma Fundamental da Aritmética. E é tão básico que am as festas e os bailes e os foguetes. A par da auste-
toda a gente o conhece e aplica, mesmo que não lhe ridade do silêncio, da meditação, vinham doses lar-
conheça o nome. gas de pregação, longas penitências e duras via-
Falando em nomes, percebe-se agora porque é que sacras. Parece que a própria natureza se associava ao
os primos são assim chamados. Nada tem a ver com parto da Quaresma para a Páscoa, com o sol reco-
parentescos, mas apenas com o facto de serem blo- lhido a lembrar o «tempo santo», como lhe chama-
cos primordiais dos números, característica que tem vam os mais antigos. E é claro, a «esmola, a oração e
um grande interesse prático. Sobretudo na era dos o jejum» constituíam a tríade sagrada deste tempo.
computadores, sobretudo na era da Internet. Mas tudo parece ter mudado. Já nem os rádios ou as
Os sistemas de comunicação modernos baseiam-se televisões, lá em casa, vêem alterado o volume do
num sistema dito de chave pública, em que os dados som, nem sequer as sextas-feiras parecem dizer seja
são codificados através de um número muito grande, o que for a quem quer que seja. Mas é Quaresma
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 10 mesmo assim. Vamos, pois, ao encontro deste tem-
po e descobrir-lhe as motivações mais profundas. E
domingo, 10 de Março de 2002
valia a pena voltar à pergunta: Que é isso de «Qua-
O Jornal das Boas Notícias
resma»?
Quarenta dias, que é bem preciso!
“Quaresma” é uma palavra que vem do latim «qua-
dragesima dies», o quadragésimo dia antes de Páscoa.
É o tempo de preparação: «Por ele que se sobe ao
monte santo da Páscoa», (Cerimonial dos Bispos,
249). Começa na Quarta-feira de Cinzas e acaba na
Quinta-feira Santa pela tarde, antes da Missa Vesper-
tina da Ceia do Senhor.
Na hora de dar sentido a este período de iniciação e
caminho para a Páscoa, influenciou certamente o
simbolismo bíblico do número quarenta: os episódi-
os dos quarenta dias do dilúvio antes da aliança com
Noé, de Moisés e dos seus quarenta dias no monte,
do Povo de Israel e seus quarenta anos do deserto,
de Elias caminhando quarenta dias até ao monte do
encontro com Deus, e sobretudo dos quarenta dias
de Jesus no deserto, antes de começar a sua missão
messiânica, têm de comum que este espaço de tem-
po serve de prova, purificação e preparação de um
acontecimento importante e salvador. «A Igreja une-
se todos os anos, durante os Quarenta dias de Qua-
resma, no mistério de Jesus no deserto» (Catecismo
da Igreja Católica, 540).
Um tempo com História...
A Quaresma organizou-se a partir do séc. IV. A sua
história anterior não está muito clara. Parece que a
causa original foi o jejum pascal de dois dias, a Sexta
e Sábado antes do Domingo da Ressurreição, espaço
que, pouco a pouco, se alargou para uma semana,
depois a três, e segundo as diversas regiões, sobretu-
do as do Oriente, como o Egipto, até às seis sema-
nas ou quarenta dias. Em Roma já estava constituída
a Quaresma entre o anos de 350 e 380.
A sua história longa e desigual no tempo e no espa-
ço, denuncia duas vertentes muito claras:
1. Para os candidatos aos sacramentos da iniciação
cristã (Baptismo, Confirmação e Eucaristia), a cele-
brar na noite de Páscoa, este era o tempo de retiro,
de purificação, de «escrutínio», de avaliação, de ora-
ção, de indagação e esconjuro, em ordem à celebra-
ção. Neste contexto a Quaresma é a última etapa do
catecumenado.
2. Para os já baptizados, a Quaresma era um tempo
de «voltar à vida nova do Baptismo» pela Penitência,
pela conversão de Vida ao Evangelho. O grupo dos
«penitentes» aparecia diante da comunidade, sinali-
zado, coberto de «cinza», disposto a mudar de vida e
a cumprir a «penitência» para depois ser reintegrado
na vida da comunidade. Aqui se percebe bem a Peni-
tência, como um “segundo Baptismo”. O cristão,
uma vez purificado nas águas do Baptismo, tendo
pecado, deve purificar-se agora, nas lágrimas da
penitência (conversão, esforço, mudança).
Restaurada no Concílio Vaticano II, a Quaresma
actual movimenta-se em três direcções:
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1. A preparação para o Baptismo ou a redescoberta
da vida baptismal. Daí, os evangelhos alusivos à
simbologia baptismal, com predominância da água
(Samaritana), da luz (cego) , da Vida (Lázaro)... Esta
é a perspectiva dominante do Ano A, que é precisa-
mente a deste ciclo nesta Quaresma de 2002.
2. A conversão de vida, pela prática da penitência.
Eis, porque se destacam, nos evangelhos, as temáti-
cas da conversão, do perdão e da reconciliação, nas
parábolas da figueira, do filho pródigo e da mulher
adúltera (Ano C);
3. O aprofundamento do mistério pascal de Cristo.
Tema desenvolvido nos evangelhos que referem o
Templo destruído e reedificado; a morte de Cristo
como elevação, e o grão de trigo lançado à terra para
frutificar (Ano B).
Um tempo, que é uma graça
Creio que não devíamos desviar-nos, desta tríplice
dimensão da quaresma: baptismal, penitencial e cris-
tológica ou pascal. Parecem coisas diferentes, mas
não. Concretizemos:
Significa, antes de mais, viver a Quaresma, como
uma espécie de regresso ao Baptismo. De certo
modo, a Quaresma devia fazer-nos redescobrir as
energias do Baptismo, sufocadas pela rotina, pelo
cansaço, pela desistência, pela lógica dos mínimos.
Seria assim uma espécie de despoluição interior, de
modo a reviver a frescura da água do Baptismo, a
recobrar a transparência da luz pascal, a provocar a
ressuscitação da nossa vida, «escondida com Cristo
em Deus». Não se trataria, portanto, de um tempo
de “mortificação”, mas de vivificação. Não seria um
tempo de «desobriga» mas de necessidade de voltar
ao princípio, de regressar à fonte, de ir ao deserto, à
procura da água, do primeiro amor...
Encontros com Cristo, no caminho para a Páscoa
E isto não é um exercício «teórico». Concretiza-se
no acolhimento da Palavra de Deus. Depois do
evangelho das Tentações (no princípio do combate»)
e da Transfiguração (a antecipar a vitória) temos,
neste ciclo litúrgico (Ano A), três encontros com
Cristo, no caminho para a Páscoa. Podem bem ser-
vir-nos de guias, para este encontro, a Samaritana, o
cego e Lázaro, amigo de Jesus.
1. Água viva em águas passadas!
- Na pele da Samaritana, darmo-nos conta da rotina
da nossa existência e da monotonia da nossa vida,
enquanto, nestas idas e vindas, progressos e retro-
cessos, não «quebrarmos a asa do cântaro” desse
pobre coração desabitado, onde mergulham os nos-
sos desejos perdidos e confusos de amor e de salva-
ção. É altura de cavar na amargura existencial da
nossa vida, essa «fonte de água viva». Cristo vem ao
nosso encontro. Purifica as águas turvas da nossa
História e Ele mesmo se torna, em nós, «água viva».
Este seria o primeiro «escrutínio» da Quaresma: dar
de caras com Cristo, deixarmo-nos converter pelo
seu olhar misericordioso, na certeza de que «águas
passadas não movem moinhos»! Para encontrar o fio
 10 de água baptismal, cavar mais fundo no poço das
nossas misérias. E não atulhar com o supérfluo das
domingo, 10 de Março de 2002
nossas vidas. Nesse sentido, o próprio jejum, ao
O Jornal das Boas Notícias
despojar do excesso e ao provocar a necessidade,
bem pode ser uma medida de higiene interior, que
prepara o espírito e lava a alma.
2. Onde abunda o pecado, superabunda a graça!
- Na história do cego, vem ao de cima a dimensão
colectiva do pecado: da família, dos vizinhos, do
pecado do mundo, dessa cegueira, que nos torna
incapazes de descortinar os sinais de Deus e de per-
ceber a abundância da graça, nas desgraças desta
vida. Só o encontro com Cristo oferece a chave de
leitura das nossas vidas incompreendidas e incom-
pletas. É altura de contemplar a vida na Luz da Pala-
vra, de ver e rever a nossa História na luz do Evan-
gelho, de radiografar o coração na luz imensa de
Cristo. Que útil nos será a Lectio Divina, a leitura
orante da Palavra! É aí que Cristo se faz Luz e a
nossa vida se projecta na sua exacta dimensão. Este
seria o segundo escrutínio: deixar penetrar as obscu-
ridades de todas as cavidades do coração e da vida
de cada um, com a força do olhar de Cristo e a graça
da sua Palavra: Eu sou a Luz do Mundo. Nesse sen-
tido a Reconciliação já nem seria a «desobriga», mas
esse momento de Luz, e de verdade, em que toda a
minha história é vista e revista, sob a luz da graça e
da misericórdia de Deus.
3. Do túmulo para a Vida!
- Entre a figura de Lázaro, o homem condenado à
morte, e a de Marta, que a protesta, está Cristo que
chora, partilhando a ânsia de Vida imortal, que se
aloja no coração do Homem, há tanto tempo à pro-
cura uma saída. Aqui Cristo revela-se como Ressur-
reição e Vida, mas uma vida, ainda assim e sempre,
nascida da morte, fruto amadurecido de semente
lançada à terra. Temos a certeza de que a nossa vida
vale e não é enterrada numa qualquer vala comum.
Pelo Baptismo, esta força pascal atingiu-nos certeira
e «vitalmente». Enxertados em Cristo, fomos sepul-
tados com Ele na morte, para ressuscitar para uma
vida nova. É esse o dinamismo de conversão per-
manente no nosso caminho. É este o terceiro escru-
tínio: Encontrar-se com Cristo, assumindo a condi-
ção mortal, frente à sua condição gloriosa do ressus-
citado. E pedir a graça de sair do túmulo para a Vida.
Creio que assim podemos realizar o anseio da Igreja
para este tempo, bem expresso na Oração colecta do
primeiro domingo da Quaresma: «Concedei-nos,
Deus omnipotente, que, pela observância quaresmal,
alcancemos maior compreensão do mistério de Cris-
to e a nossa vida seja um digno testemunho».
Pe. Amaro Gonçalo
RTP cancela missa e censura programa
Na mesma semana, dois ataques à Igreja
In: Ecclesia, 020208
Na mesma semana, a Igreja em Portugal sofreu dois
ataques por parte da empresa pública de televisão: o
programa «Fé dos Homens», emitido sob o acordo
Página 15 de 24
de serviço público prestado por aquela empresa, foi
cortado, substituido pela transmissão de uma prova
de basquetebol, sem que nenhuma explicação tivesse
sido avançada, e a Missa transmitida pela RTP Inter-
nacional para as comunidades emigrantes foi abolida
com um simples telefonema, e sem oportunidade de
mais diálogo.
Para D. João Alves, Bispo Emérito de Coimbra e
Presidente da Comissão Episcopal das Comunica-
ções Sociais, é uma decisão «reprovável» a que a
RTP tomou quando, unilateralmente, não emitiu o
programa «Fé dos Homens»”. Ao tomar conheci-
mento de tal decisão, reagiu com palavras de «espan-
to e com indignação», pois não houve qualquer ten-
tativa de «diálogo com o grupo das confissões religi-
osas em ordem a descobrir a melhor solução». D.
João Alves afirmou ainda que surpreende que «o Dr.
Emídio Rangel tenha agido deste modo, uma vez
que este programa religioso está coberto por uma
decisão parlamentar e por um protocolo entre a RTP
e o referido grupo das confissões religiosas, que
inclui a Igreja Católica». Para o mesmo responsável,
«esta é uma atitude estranha, desrespeitadora dos
direitos de cada um e das exigências da verdadeira
democracia. Acrescente-se ainda que o referido pro-
grama «Fé dos Homens», desse dia, na parte da res-
ponsabilidade da Igreja Católica, se referia todo ele
ao encontro de Assis, presidido pelos Papa». Para D.
João Alves, «atitudes destas só merecem da parte da
Comissão Episcopal das Comunicações Sociais e do
seu Secretariado Nacional a mais veemente reprova-
ção».
Também a Eucaristia dominical foi simplesmente
abolida sem nenhuma espécie de diálogo, tendo sido
a última celebrada no passado dia 27. A decisão da
RTP foi comunicada, no dia 18 de Janeiro, por tele-
fone, à Obra Católica Portuguesa das Migrações
(OCPM), a entidade responsável por aquelas trans-
missões. Segundo o Director do Secretariado da
OCPM, Pe. Rui Pedro, o telefonema comunicou o
conteúdo de um fax da Direcção do Departamento
de Programas Institucionais e Religiosos, invocando
argumentos económicos e a não necessidade de uma
equipa de sacerdotes missionários ou «especializa-
dos» no trabalho com emigrantes para presidir àque-
las eucaristias, transmitidas às 12h30m. O Pe. Rui
Pedro recorda que «a criação desta equipa em 1994
foi uma solicitação da própria RTP», não compreen-
dendo ainda «que peso possa ter esta transmissão no
total da despesa da estação televisiva».
No telefonema em questão, a OCPM reformulou o
pedido para uma reunião com a RTP (uma carta
datada de 17 de Janeiro, quando esta situação era
ainda insuspeita, fazia já esse pedido) e «até agora
nada», assegurou o Pe. Rui Pedro, acrescentando que
continua à espera do fax, cujo conteúdo apenas co-
nheceu por telefone. Para ele, esta foi uma forma
«tosca e desajustada de se cortar com um serviço»,
interpretando-a como «andando toda a gente enver-
 10 gonhada, ninguém aparecendo e dando a cara». A
eucaristia da RTP2 passa a ser transmitida também
domingo, 10 de Março de 2002
pela RTP Internacional, às 10h30m, «perdendo-se
O Jornal das Boas Notícias
assim muita audiência, em especial nos Estados Uni-
dos, onde a essa hora está tudo a dormir», salientou
o Pe. Rui Pedro.
A torneira
Diogo Pires Aurélio
In: DN, 20020207
Chegou, enfim, o remédio para a universidade por-
tuguesa. Depois de anos e anos de crise aparente-
mente inultrapassável, durante os quais se multiplica-
ram reformas, queimaram ministros e esbanjaram
milhões, os jornais celebraram agora com entusias-
mo e foguetes aquilo que seria a poção mágica já
experimentada na Madeira: há mercado, abrem-se
cursos; não há mercado, fecham-se cursos.
A eficácia de uma tal solução dir-se-ia inquestioná-
vel. Desde há muito, os empresários e as respectivas
associações vêm clamando por um ensino superior
adaptado às necessidades do mercado e exigindo à
universidade cursos talhados à medida do tecido
empresarial português. Não deve, aliás, haver nin-
guém que não se tenha já perguntado por que moti-
vo insistem os sucessivos governos e as escolas su-
periores em produzir anualmente milhares e milhares
de licenciados que, a par do título mais ou menos
exótico que passaram a usar, não trazem mais nada
que saibam fazer e que possam referir nas entrevistas
com possíveis empregadores. Será que é tão difícil
pôr a funcionar este sistema de torneira que abre ou
fecha licenciaturas conforme as solicitações dos
agentes económicos, de modo a evitar o alegado
desperdício de dinheiros públicos em "cursos de
treta" e as consequentes frustrações dos presumíveis
desempregados e respectivas famílias?
Difícil, evidentemente, não é. Mas tem os seus ris-
cos, o menor dos quais não será, com certeza, o
desnorte que, por esta via, se introduz nas universi-
dades. Pressionadas por associações patronais e
sindicatos, rendidas a uma cultura da eficiência ime-
diata e ao argumento de que, se gastam dinheiro,
tem de ser visível a toda a gente a sua utilidade, as
escolas superiores arriscam-se a ficar submersas pelo
modelo que a tradição reservou exclusivamente ao
ensino do direito e da medicina e que, mais recente-
mente, se estendeu também às engenharias. O públi-
co exige-lhes serviço e elas, apressadas pela concor-
rência que felizmente já se instalou no sistema, que-
rem a todo o custo mostrar que são úteis. Poderiam
fazê-lo explicando qual é, realmente, a sua utilidade.
Mas isso não seria facilmente entendido no ambiente
social que as rodeia, onde se generalizou a ideia de
que elas só servem para se aprender um ofício e que,
por conseguinte, quem de lá sai com o canudo deve
ter em qualquer parte, seja numa fábrica ou num
escritório, um lugar para que vem, obviamente, pre-
parado.
É claro que a universidade também serve para res-
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ponder às exigências da sociedade onde se insere.
Receio, porém, que ela imagine que pode ser apenas
isso, transformando-se em universidade "à la carte",
uma universidade onde se generalize o modelo su-
permercado e se mudem de ano para ano os cursos,
se é que não mudam apenas os nomes dos cursos,
em função das listas de emprego. Lembro-me do
tempo em que em Portugal não havia sociologia
porque o poder político da altura a considerava um
saber, mais do que desnecessário, verdadeiramente
perigoso. Não sei se estará muito longe o risco de
ver outros poderes a imporem aberrações semelhan-
tes. Basta, para tanto, que a universidade esqueça
que também tem uma palavra a dizer sobre a sua
própria função na sociedade.
Porque é disto, efectivamente, que se trata. Com
tanta coisa que se pede à escola, em particular às
universidades, a pretexto de que estamos na socie-
dade do conhecimento, corre-se o risco de estrangu-
lar e proibir tudo quanto nelas seja produção e
transmissão de conhecimentos. Houve tempo em
que havia escolas vocacionadas para ensinar um
ofício. Em alguns países, entre eles Portugal, acabou-
se com essas escolas e transformou-se o ensino se-
cundário num corredor para a universidade. Como
era de prever, já se está a pensar universidade como
se ela fosse escola de ofícios.
Quando começa a vida?
João Paulo Barbosa de Melo*
In: Expresso, 020209
QUANDO é que um óvulo fecundado passa a ser
vida humana? Será na altura em que o feto adquire a
capacidade de ser «autónomo»? Se assim fosse seria
legítimo matar crianças até aos dois ou três anos de
idade... Será quando sai, pelos seus meios, do ventre
da mãe? Se assim fosse poderíamos trinchá-lo dentro
da barriga e aspirá-lo na véspera do previsto nasci-
mento... Será quando já é muito parecido com um
«verdadeiro» bebé (pelos quatro meses de gestação)?
Será quando o coração começa a bater e quando se
estrutura o sistema nervoso (pelas seis semanas)?
Será quando atinge um certo número de células?
Será...?
Não há nem pode haver resposta segura a esta per-
gunta. A atitude razoável deve passar, portanto, por
perceber que, de certo, só sabemos que no momento
da fecundação se inicia um projecto de vida humana
que, em circunstâncias normais, acabará por produ-
zir um ser humano irrepetível e único. O resto é,
cientificamente, treta! Que fazer, então?
Comecemos por notar que não é só nesta área do
conhecimento que surgem problemas de indetermi-
nação como este. Olhemos, por exemplo, para o
campo da ecologia: a argumentação «ecológica» é
que quando não temos a certeza de quais são os
verdadeiros efeitos (sobre o ambiente) de uma de-
terminada acção, então, à cautela, devemos partir do
pressuposto de que se verificará o pior cenário con-
cebível. Chama-se a isto o «princípio da precaução».
 10 Aplicando este princípio à questão de saber quando
começa a vida humana, é claro que a única resposta
domingo, 10 de Março de 2002
razoável da nossa inteligência será: como não é pos-
O Jornal das Boas Notícias
sível determiná-lo com certeza de outra forma, de-
vemos situar esse começo no momento em que o
processo se inicia, ou seja, quando da fecundação. Se
calhar até nos enganamos e a «verdadeira» vida hu-
mana não começa antes das três ou às doze ou às 36
ou 40 semanas. Mas como nunca será possível de-
terminá-lo com precisão, optemos pela única solu-
ção intelectualmente séria!
É claro que, numa sociedade civilizada, ninguém
concorda que seja lícito — por motivos económicos,
de conveniência ou de vergonha social — tirar a vida
a um seu semelhante. A não repreensibilidade ética
(ou legal) da provocação de um aborto assenta, por-
tanto, na ideia de que não é uma vida humana o que
se está a sacrificar mas uma «coisa» que faz parte do
corpo de uma mulher. Se soubéssemos que essa
«coisa» seria uma «vida humana», não haveria dúvi-
das éticas de condenar veementemente a possibilida-
de. A questão vai, portanto, dar sempre ao mesmo:
quando começa a vida humana? E se dermos a única
resposta científica e logicamente razoável seremos
obrigados a ver aquele pequeno conjunto de células
na barriga da mãe como uma vida humana. Aliás, à
medida que melhora o conhecimento sobre aquilo
que antes não víamos e sobre mecanismos que antes
não compreendíamos, cada vez se torna mais irrazo-
ável defender o contrário.
Agora é claro que isso não dá jeito nenhum! Não dá
jeito a gente entusiasmar-se e, num repente, virar pai
ou mãe; não dá jeito falhar a pílula ou o preservativo;
não dá jeito pensar em gravidezes quando queremos
apenas passar um bom bocado; não dá jeito ser as-
sombrado pelo fruto de uma relação ocasional; não
dá jeito ter de mudar inesperadamente o rumo na
vida que tínhamos previsto. Não dá jeito mesmo
nenhum...
Se pudéssemos voltar atrás, se ainda fosse possível
corrigir a coisa... É nesta interrogação que nasce a
justificação do aborto. Se é apenas um pequeno
conjunto de células... bem, então ainda não é verda-
deiramente gente e podemos deitá-lo ao lixo; e ainda
que seja maiorzinho, que diabo!, ainda não fala nem
respira e temos dúvidas de que pense ou sofra... Ai!,
dava tanto jeito... E assim, como dá jeito, arranjamos
todas as desculpas do mundo.
Por muito que isso custe — às mulheres e sobretudo
aos homens, habituados há milénios a despachar o
assunto e a responsabilidade para cima delas —, ao
recusarmos a possibilidade de provocar o aborto
para desfazer o que foi feito estamos a admitir que,
em qualquer relação sexual que junte óvulos com
espermatozóides, há sempre uma hipótese de gerar-
mos um novo ser: uma hipótese remota, no tempo
dos anticoncepcionais, mas uma hipótese não nula.
De algum modo, portanto, a recusa da licitude do
aborto provocado acaba por limitar a liberdade no
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campo sexual: por mais que se faça, nunca se pode
garantir a 100 por cento que não vai dali sair uma
criança! Se, no entanto, em todos os outros aspectos
da vida relacional encontramos limites à nossa liber-
dade, porque só no campo sexual havíamos de tentar
fazer de conta que eles não existem?! E isto tanto
vale para as mulheres como para os homens. A soci-
edade e a lei do tempo do teste do ADN (que não
deixa dúvidas quanto à paternidade) não pode conti-
nuar a discriminar os progenitores: aquele filho tanto
é daquele pai como daquela mãe — e se é apenas a
mãe, por razões biológicas inultrapassáveis, a trazê-
lo no ventre, isso em nada diminui as obrigações
(materiais, de tempo, afectivas) do pai. É tempo de
mudarmos, finalmente, algumas concepções machis-
tas e desresponsabilizantes das nossas sociedades,
que estão na base da ideia da licitude do aborto.
Numa sociedade em que se prega — e bem — que
os homens e as mulheres devem partilhar todos os
aspectos da vida, numa sociedade culta em que não
conhecemos apenas o que vemos mas também o que
concebemos e pensamos, numa sociedade que culti-
va a responsabilidade, numa sociedade rica que tem
meios para assegurar muito mais do que os mínimos
para todas as crianças que sejam concebidas e em
que tantos buscam filhos que não podem ter, numa
sociedade que sublima a compaixão e se horroriza
com os assassínios em massa — nesta sociedade não
pode haver qualquer razão aceitável para justificar o
aniquilamento de frágeis conjuntos de células e em-
briões que a nossa razão sabe serem vidas humanas.
Mesmo que dê jeito!
Fosse a vida mais fácil...
* Economista; assistente da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra
Pesadelo dogmático
João Carlos Espada
In: Expresso, 020209
NA PRIMEIRA página do EXPRESSO da semana
passada, sob o título «Professores sofrem», podia ler-
se que «em cada semana, três professores são hoje
vítimas de agressões físicas por parte de alunos ou
de pais de alunos, quando, em 1999, a média era de
apenas um».
Em seguida, éramos informados de que, para fazer
face a esta situação, o Conselho Nacional de Educa-
ção recomendava que «os agressores - hoje pratica-
mente impunes - (passassem) a incorrer em penas
até cinco anos de prisão».
Infelizmente, não fui surpreendido por estas notíci-
as.
Em primeiro lugar, porque a chamada «cultura jo-
vem» - hoje disseminada por adultos semi-educados,
sobretudo na televisão - é um permanente convite à
turbulência. Sob o dogma relativista da igualdade,
desapareceu a distinção entre hierarquias de compor-
tamento e de autoridade. Se tudo é igual ao seu con-
trário, por que não agredir um professor?
Em segundo lugar, este dogmatismo igualitário foi
 10 introduzido nas escolas pelo próprio Ministério da
Educação. O dogma da igualdade foi levado tão
domingo, 10 de Março de 2002
longe que na prática deixou de haver reprovações; a
O Jornal das Boas Notícias
autoridade do professor na sala de aula - hoje consi-
derado apenas como «um amigo dos alunos» - foi
expropriada da tradicional escala gradual de meca-
nismos dissuasores da indisciplina; e agora até temos
«provas de aferição» em que os alunos não têm no-
tas.
Em terceiro lugar, o dogmatismo igualitário foi im-
posto às escolas de forma totalmente autoritária e
uniformizadora. Os sucessivos regulamentos «inova-
dores» foram impostos uniformemente a todas as
escolas estatais, e até, em boa parte, às escolas inde-
pendentes. A possibilidade de adopção de diferentes
projectos e estilos educativos foi drasticamente re-
duzida. E, como se sabe, a escolha das famílias entre
as escolas estatais é proibida, sendo a alocação dos
alunos feita na base da residência. As escolas inde-
pendentes podem ainda ser escolhidas - ainda nos
autorizam essa escolha - mas os pais pagam aí a
dobrar: pagam as propinas dos seus filhos e pagam
nos impostos as propinas dos filhos dos outros.
Por outras palavras: a partir de cima, o dogmatismo
igualitário destruiu a liberdade das escolas, sobretudo
estatais, para adoptarem diferentes estilos educativos
e das famílias para escolherem entre eles. Fazendo
uso de uma autoridade central sem freios nem con-
trapesos, a burocracia central destruiu os mecanis-
mos espontâneos e descentralizados que poderiam
ter permitido repor gradualmente a autoridade nas
escolas: a concorrência entre escolas, as boas e as
más, as ordeiras e as desordeiras, as pacíficas e as
violentas. Este controlo dogmático central foi mes-
mo ao ponto de, até Agosto do ano passado, o Mi-
nistério da Educação ter mantido secretos os resul-
tados das escolas nos exames nacionais.
Compreende-se agora porquê: o dogmatismo iguali-
tário e autoritário receava ser posto à prova através
dos resultados que realmente produz - e não da de-
magogia sobre igualdade, «auto expressão» e «auto
estima».
Mas a notícia do EXPRESSO interrompeu o pesa-
delo dogmático e permitiu que a realidade nua e crua
voltasse ao de cima: as escolas estão a ficar ingover-
náveis. Seria talvez boa altura para romper com o
dogmatismo e devolver às escolas e às famílias a
liberdade de escolherem fugir aos dogmas das teorias
da educação.
A formalização do disparate
João César das Neves
In: DN, 020218
Acaba de ser publicado entre nós um volume insóli-
to. Trata-se de um livro sobre outro livro, uma vasta
denúncia cultural, uma polémica violenta sobre te-
mas científicos. Todas estas coisas são raras num
país de brandos costumes e interesses românticos.
Por isso, a edição de O discurso pós-moderno con-
tra a Ciência - Obscurantismo e irresponsabilidade
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(Gradiva, Lisboa, 2002), do professor António Ma-
nuel Baptista, merece muita atenção.
Para todos os que se deliciaram durante anos com os
seus excelentes programas de divulgação científica
na televisão, é difícil imaginar a indignação do tran-
quilo professor António Baptista. Mas a sua zanga
ressoa bem alto, ao longo das páginas do pequeno
livro, com um colorido e interesse bem patentes. O
alvo da sua cólera é um outro livro, de um outro
académico, também ele muito mediático, Um discur-
so sobre as Ciências (Afrontamento, Porto, 12.ª; ed.,
2001), do professor Boaventura Sousa Santos.
O trabalho original de Sousa Santos (S), obra de
1987, repetidamente republicada, constitui uma refe-
rência fundamental da Sociologia da Ciência, em
Portugal. Trata-se de uma lição impressionantemen-
te erudita, carregada de referências académicas, ci-
tando textos de Física, Biologia, Filosofia, Epistemo-
logia e outras áreas, num turbilhão avassalador. É
este volume que o professor Baptista vem agora
atacar de forma violentíssima, escrevendo um livro
(B) que curiosamente tem exactamente o dobro das
páginas do texto que comenta.
O problema explica-se em poucas palavras. Segundo
a escola pós-moderna e o seu representante portu-
guês, Sousa Santos, depois da revolução de Einstein,
Planck, Gödel e outros, no século XX, dá-se "a crise
do paradigma dominante" (S, p. 23; cf. B, p. 61), na
ciência moderna, pondo em causa os velhos concei-
tos de rigor, medição, simultaneidade e causalidade
em que se baseava toda a ciência. Nasce uma atitude
nova. "Em vez da eternidade, a história; em vez do
determinismo, a imprevisibilidade; em vez do meca-
nicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a
auto-organização; em vez da reversibilidade, a irre-
versibilidade e a evolução; em vez da ordem, a de-
sordem; em vez da necessidade, a criatividade e o
acidente." (S, 28; B, 63).
Perdem-se, assim, segundo a visão pós-moderna, as
características de solidez e confiança que a ciência
garantia. A teoria da relatividade, a mecânica quânti-
ca, a incerteza de Heisenberg levam os pós-
modernos a relativizar todas as coisas. Já não há
rigor, certeza: tudo é contingente, inseguro, discutí-
vel. Assim, as ciências exactas passam a ser incertas e
fluidas e há uma aproximação das várias disciplinas,
num todo holístico. "À medida que as ciências natu-
rais se aproximam das ciências sociais, estas aproxi-
mam-se das humanidades." (S, 43) É por isso que os
pós-modernos falam de coisas como "teatro molecu-
lar" (S, 45), "democracia nuclear" (S, 41), "natureza
política da matemática" (B, 44) e "perversões ma-
chistas" na ciência (B, 30).
O professor António Baptista, no seu volume de
crítica, limita-se a afirmar o óbvio: o rei vai nu. Estas
elucubrações pós-modernas do professor Sousa
Santos e colegas são um disparate pegado, sem qual-
quer sentido científico, filosófico ou sequer lógico. A
escola não compreende os teoremas que cita e dis-
 10 torce os modelos que comenta. Einstein não diz o
que se lhe atribuiu e a Física Quântica não significa
domingo, 10 de Março de 2002
nada do que dizem dela. O apregoado novo para-
O Jornal das Boas Notícias
digma é um tecido de confusões, extrapolações,
dislates e lugares-comuns, criando uma monstruosi-
dade de "obscurantismo e irresponsabilidade", com
o único fim de minar a confiança na ciência.
O elemento central que subjaz a toda a questão é um
supino desrespeito pela realidade. O pós-
modernismo possui uma ideologia e impõe-na, inde-
pendentemente da verdade dos factos. Se as coisas
não são como lhe agrada, distorce-as, para as colar à
doutrina. Esta é a atitude do relativismo contempo-
râneo, em todos os campos, aqui em aplicação ao
elemento mais rigoroso e formal, a ciência. Como
sempre, o resultado é estéril e tonto. O próprio pro-
fessor Sousa Santos refere a inanidade e vacuidade
das suas elucubrações: "Nenhum de nós pode visua-
lizar projectos concretos de investigação que corres-
pondam inteiramente ao paradigma emergente que
aqui delineei." (S, 58; B, 84).
Mas há um outro elemento, muito mais sinistro, em
tudo isto. Como aponta o professor Baptista (B, 50),
esta atitude pós-moderna é dominante no ensino, e,
sobretudo, na formação de professores.
Os nossos filhos são educados por pessoas a quem
tentaram ensinar estes disparates, como verdades
indiscutíveis. Existe, aqui, um fenómeno semelhante
à mecânica quântica. Quando o observador atento
olha para as teorias pós-modernas, elas colapsam no
disparate; mas, enquanto não observadas, vivem
num estatuto difuso, absorvidas como verdade abso-
luta, em muitos meios. Esta é uma das principais
razões do desastre educativo nacional.
naohaalmocosgratis@vizzavi.pt
O ralo do tempo segundo o Papa Gregório
XIII
In: Lusa 22 Fev-09:00
A rotina imposta pelo calendário raramente é questi-
onada, mas a data de hoje é a que se sabe porque o
papa Gregório XIII instituiu há 420 anos uma nova
forma de contar o tempo.
A 24 de Fevereiro de 1582, o papa estabeleceu uma
reforma crucial com a sua Bula Inter Gravissimas,
através da qual tentava corrigir o erro existente entre
o ano solar (intervalo de tempo que a Terra leva para
transladar em redor do Sol) e o calendário juliano
(em vigor na altura).
O calendário vigente hoje no mundo ocidental é
ainda o proveniente dessa reforma, que faz coincidir
o início da contagem do tempo, o ano 1, com o
nascimento de Jesus Cristo.
Antes da criação do calendário gregoriano vigorava
o calendário juliano, instituído pelo imperador Júlio
César (100-44 aC), que adoptava a época da funda-
ção de Roma (753 aC) para o início da contagem do
tempo.
O calendário juliano, assim como o actual calendá-
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rio, baseia- se no aparente movimento anual do sol
relativamente à Terra. A duração do ano deveria
coincidir com o tempo que o Sol demora a dar uma
volta completa à esfera celeste, isto é, retornar ao
mesmo ponto no céu em relação às constelações do
Zodíaco.
Assim, o ano padrão era formado por 365 dias, dis-
postos em 12 meses. Como a trajectória do Sol é
completada em um pouco mais que 365 dias foi
introduzido a cada quatro anos o ano bissexto, com-
posto por 366 dias.
Seriam bissextos os anos diviseis por 4, com o dia
extra a ser colocado após o dia 23 de Fevereiro.
No entanto, os cálculos sobre a duração do ano não
estavam completamente correctos, já que indicavam
um ano de 365,25 dias (365 dias e 6 horas), diferindo
do ano trópico (solar) em mais 11 minutos e 14 se-
gundos.
A diferença representa um excesso de 3 dias em 400
anos, por isso, no século XVI, este pequeno erro
tinha-se já acumulado em 11 dias, estando o calendá-
rio demasiado adiantado relativamente ao ano solar.
Por exemplo, o equinócio da Primavera de 1582, que
deveria acontecer a 21 de Março, ocorreu a 11 de
Março, um desfasamento temporal com consequên-
cias nas práticas religiosas cristãs, uma vez que este
equinócio fixava a data da Páscoa.
Para resolver este problema, o Papa Gregório XIII
decretou em 1582 uma bula que estabelecia a modi-
ficação do calendário, seguindo a orientação de vári-
os astrónomos católicos, entre os quais Luigi Giglio.
A bula atribuía ao ano uma duração mais exacta de
365,2425 dias (365 dias, 5 horas, 49 minutos e 12
segundos), excedendo a realidade em cerca de 3 dias
por cada 10.000 anos (o ano solar tem 365 dias, 5
horas, 48 minutos e 46 segundos).
O calendário adopta igualmente uma regra para fixar
a Páscoa, de modo a que ela nunca caia depois de 25
de Abril.
Assim, a festividade (a base para o cálculo de todas
as outras festas móveis religiosas do calendário cris-
tão) comemora-se no primeiro domingo de Lua
cheia do Outono, no Hemisfério Sul.
Para corrigir novamente os problemas das fracções,
as regras ditavam que os anos passariam a ser bissex-
tos apenas quando diviseis por quatro, mas não por
100, no entanto se fossem diviseis por 400 voltariam
a ser bissextos (1996 e 2000 foram bissextos, mas
1900 não).
Outra das reformas impostas passou pela alteração
da contagem dos dias do mês, que passou a ser ca-
racterizada por números cardinais (1,2,3) e não pela
ordenação romana de kalendae, nonas e idus.
Os 11 dias acumulados foram suprimidos, tendo-se
considerado o dia seguinte a 04 de Outubro de 1582
como a data de 15 de Outubro de 1582, para que o
início de cada estação do ano ocorresse na época
certa.
A aprovação da reforma foi imediata (04 de Outubro
 10 de 1582) em Portugal, Espanha e Roma. França e
Holanda adoptaram o novo calendário em Dezem-
domingo, 10 de Março de 2002
bro de 1582, a Áustria em 1583, os Estados Católi-
O Jornal das Boas Notícias
cos da Alemanha e Suíça em 1584 e na Polónia em
1586.
No entanto, por motivos históricos, religiosos ou
culturais, a passagem para o novo calendário não foi
tão célere noutras regiões do mundo.
Na Grécia, por exemplo, o calendário gregoriano só
foi aprovado em 1923, o mesmo acontecendo na
Turquia.
Aliás, ainda hoje, apesar do calendário gregoriano ser
o adoptado em quase todo o mundo, coexistem com
ele outras formas de contar o tempo, como o calen-
dário muçulmano, o judeu, ou o iraniano.
SCS
Já não se pode defender a família?!
Cristina Líbano Monteiro
(Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
Coimbra, Janeiro de 2002
A polémica levantada à volta do apelo de João Paulo
II a que os advogados pusessem de lado as causas de
divórcio teve na origem o último parágrafo do dis-
curso que o chefe do Estado vaticano proferiu na
inauguração do ano judicial. Uma alocução de quatro
páginas, proferida em contexto semelhante àquele
em que o Presidente da República portuguesa se
dirigiu aos profissionais do nosso foro. Jorge Sam-
paio falou das suas preocupações em relação ao
estado da justiça em Portugal: escolheu os pontos
que entendeu convenientes. João Paulo II falou das
suas preocupações quanto à situação dos tribunais
canónicos que se ocupam da verificação da validade
ou nulidade dos vínculos matrimoniais que as partes
lhes apresentam: elegeu um ponto que, em seu en-
tender, merece ser ponderado, dada a importância de
que se reveste para os casais, os filhos destes e o
bom andamento de todas as comunidades nacionais
— afinal, os cidadãos a cargo do Bispo de Roma
encontram-se espalhados pelos cinco continentes.
O ponto escolhido pelo Papa no seu discurso de
abertura do ano judicial foi o da necessidade de fa-
vorecer a estabilidade do vínculo matrimonial. Trata-
se de uma apologia das vantagens de uma cultura
que recolha esse valor, tendo como contraponto os
problemas que a mentalidade divorcista traz consigo.
Considera Karol Wojtyla que vale a pena contrariar a
onda dos casamentos precários, ainda que pareça
tarefa hercúlea ou impossível. Não obriga ninguém a
fazê-lo: o casamento é um acto de suprema liberda-
de. Mas chama a atenção dos que reparam na pro-
fundidade e na beleza do compromisso adquirido
para a necessidade de não desanimar, quando vêem
o seu ideal contrariado pela esmagadora maioria das
ordens jurídicas e considerado como peça de ar-
queologia pela opinião pública dominante. Vale a
pena — nisto consiste o desafio de João Paulo II —
continuar a lutar por um casamento de amor exclu-
sivo e forte, capaz de resistir às inevitáveis inclemên-
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cias do percurso existencial de cada um, leal e res-
ponsável perante a própria consciência, o outro e os
filhos de ambos.
Já quase a terminar a sua intervenção, o Papa inter-
pela os profissionais do foro, pedindo-lhes que tudo
façam para ajudar os cônjuges que atravessam mo-
mentos de dificuldade no seu casamento.
Fala primeiro aos juízes e exorta-os a aproveitar o
ensejo do caso concreto que têm de resolver para
auxiliar o casal a dirimir o conflito que o levou à
barra do tribunal. Se o não conseguem, a missão de
que estão investidos — administrar a justiça segundo
as leis do Estado — não lhes permitirá invocar a
objecção de consciência. Devem, portanto, preen-
chidos os requisitos legais, declarar o divórcio dos
interessados.
No último parágrafo do discurso, João Paulo II diri-
ge-se aos advogados, orientando-os sobre os seu
papel nesta reconquista da estabilidade matrimonial.
Se reconhecem o divórcio como um mal, ainda que
banalizado, hão-de procurar evitá-lo. Como profissi-
onais liberais, não precisam de invocar o direito à
objecção de consciência para seguir sempre e só os
casos que entenderem dever tomar para si. O Papa
não lhes diz que pendurem na porta do seu escritó-
rio uma tabuleta com a inscrição: "Não atendo cau-
sas de divórcio". Espera deles uma actuação positiva
de pacificação das pessoas que atravessam crises
matrimoniais, o que obviamente implica atenderem-
nas com a maior solicitude, avisando-as porém que
não esperem deles uma simples ajuda técnica e neu-
tra para a rápida obtenção de uma ruptura civil do
vínculo que as une. Hão-de desempenhar, se as par-
tes interessadas anuirem, um papel de advogados da
estabilidade matrimonial. Tantos lho agradecem
depois. Caso não exista abertura para essa tentativa
de salvaguarda da família já formada, o advogado —
afirma o Papa — deverá informar com lealdade que
não se presta a colaborar num fim que considera
contrário, não aos seus próprios interesses, mas ao
modo como vê os interesses desses seus potenciais
clientes, dos filhos de ambos (se os houver) e da
comunidade a que todos pertencem.
Não desconhece o Papa os casos excepcionais em
que o divórcio é o único modo — perante a lei civil
de determinado Estado — de obter efeitos jurídicos
legítimos e necessários (assegurar certos direitos, o
cuidado dos filhos ou a defesa do património, com
palavras do nº 2383 do Catecismo da Igreja Católi-
ca); será, por exemplo, o caso dos ordenamentos que
não conhecem a figura da separação de pessoas e
bens, que faz cessar a comunhão de vida sem atingir
o vínculo matrimonial. E refere essas hipóteses,
excluindo-as da orientação anteriormente dada.
Perpassa por toda a alocução uma ideia que vale a
pena sublinhar. Porventura não chega a ser formula-
da, mas pode exprimir-se nestes termos: a atitude de
rejeição legítima e fundamentada de uma lei por
parte de alguns membros de uma comunidade jurídi-
 10 ca (o caso mais notório é o da objecção de consciên-
cia) não pode entender-se como um refúgio para
domingo, 10 de Março de 2002
algumas consciências atribuladas, que desse modo se
O Jornal das Boas Notícias
desembaraçam de um problema incómodo; numa
sociedade atenta, esse gesto reveste-se de uma pode-
rosa carga objectiva, leva os outros a interrogarem-se
sobre as leis que têm.
Concluindo: está-se, ao fim e ao cabo e tão-só, pe-
rante um problema de coerência. Do Papa, com o
depósito doutrinal a que deve fidelidade. Do Papa,
com a sua missão de alertar a comunidade dos ho-
mens para o que considera a progressiva perda do
genuíno sentido da família, com todas as consequên-
cias que daí derivam. Dos advogados, com o seu
papel de defensores do que é justo, que passa, quan-
do for caso disso, pela recusa de se tornarem meros
técnicos ao serviço de qualquer interesse.
Que esta coerência deixe desamparadas as pessoas
que pretendem divorciar-se, custa a crer. A julgar
pela onda de solidariedade que se gerou à sua volta
(na qual curiosamente não apareceu nenhum candi-
dato ao divórcio a protestar contra a injustiça a que
o Papa pretendia condená-lo), o problema não che-
gará a colocar-se.
Afinal, a questão não é a que parece, mas sim outra:
a da dificuldade que algumas pessoas têm em respei-
tar quem se rege por valores diferentes dos seus (e
que não atentam contra os autênticos direitos de
ninguém) e tem a ousadia de os defender. Ou, talvez
melhor, a da inquietação muda — disfarçada de
ruidosa indignação exterior — que teima em subsis-
tir no espírito dos mais sensíveis: não haverá algo de
autêntico e de profundamente atractivo naquele ideal
de amor mais forte do que a morte, capaz de renas-
cer das próprias cinzas, que João Paulo II se empe-
nha em não deixar desaparecer?
Coimbra, Janeiro de 2002
O passeio aleatório
Nuno Crato
In: Expresso, 020302
De onde vem o misterioso sinal @, a que os portu-
gueses chamam «arroba», os norte-americanos e
ingleses «at», os italianos «chichiola» (caracol) e os
franceses «arobase»? Porque razão foi ele escolhido
para os endereços de correio electrónico? Na verda-
de, não conhecemos ao certo a origem deste miste-
rioso símbolo. Nem estávamos preocupados com o
problema, até que ele começou a entrar no nosso
dia-a-dia e foi preciso arranjar-lhe uma designação.
A princípio, os portugueses chamavam-lhe «caracol»,
«macaco» ou outro nome claramente inventado.
Depois, houve quem reparasse que a Grande Enci-
clopédia Portuguesa e Brasileira dizia tratar-se do
símbolo de arroba, pelo que esse nome pegou.
Que terá a arroba a ver com esse sinal? Não se sabe
ao certo, mas há pouco mais de um ano, o investiga-
dor italiano Giorgio Stabile descobriu um documen-
to veneziano datado de 1536 onde esse símbolo
aparecia. Estava aí a representar ânforas, utilizadas
Página 21 de 24
como unidades de peso e volume. Posteriormente,
num vocabulário Latim-Espanhol de 1492, Stabile
encontrou o termo «arroba» como tradução caste-
lhana do latim «amphora». A ânfora e a arroba, con-
cluiu o investigador italiano, estariam na origem da
estranha letra retorcida.
O encadeamento dos factos é fascinante, mas há
pontos obscuros. A palavra «arroba» não tem qual-
quer relação com «ânfora», pois vem do árabe «ar-
ruba'a», designando «um quarto» ou «a quarta parte»,
como se aprende no Dicionário Etimológico de José
Pedro Machado. Trata-se de uma unidade de peso
que equivale a 14,788 quilogramas e que habitual-
mente se arredonda para 15kg. Podia ser que uma
ânfora cheia de vinho tivesse esse peso, mas a seme-
lhança fica por aí.
No século XVII o mesmo símbolo reapareceu, mas
com outro significado. Utilizava-se para abreviar a
preposição latina «ad», que significa «para», «em»,
«a», e que se usava para introduzir os destinatários
das missivas. Condensava-se o «a» e o «d», num úni-
co carácter. É a chamada ligatura. O Dicionário da
Academia não inclui esse termo (mas também ignora
palavras comuns como «robalo»). Socorre-nos o
nosso amigo brasileiro Aurélio, que diz que ligatura é
a «reunião, num só tipo, de duas ou mais letras liga-
das entre si, por constituírem encontro frequente
numa língua». Nesse mesmo dicionário da língua
portuguesa confirma-se o símbolo @ como abrevia-
tura de arroba.
O misterioso @ continuou a ser utilizado até ao
século XIX, altura em que aparecia nos documentos
comerciais. Em inglês lia-se e lê-se «at», significando
«em» ou «a». Quem percorra as bancas de fruta ou os
mercados de rua norte-americanos vê-o frequente-
mente. Os vendedores escreviam e continuam a
escrever «@ $2» para significar que as azeitonas se
vendem a dois dólares (cada libra, subentenda-se).
Para eles não se trata de nenhuma moda: sempre
viram aquele símbolo como a contracção das letras
de «at».
Na máquina de escrever Underwood de 1885 já
aparecia o @, que sobreviveu nos países anglo-
saxónicos durante todo o século XX. O mesmo não
se passou nos outros países. No teclado português
HCESAR, por exemplo, que foi aprovado pelo De-
creto-lei 27:868 de 1937, não existe lugar para o @.
Por isso, quando o símbolo reapareceu nos compu-
tadores, ele tinha já um lugar cativo nos teclados
norte-americanos, por ser aí de uso frequente. Nos
nosso teclados foi acrescentado à pressa e de forma
pouco natural: é preciso pressionar simultaneamente
Ctrl+Alt+2 para o fazer aparecer.
Quando o correio electrónico foi inventado, o enge-
nheiro Ray Tomlinson, o primeiro a enviar uma
mensagem entre utilizadores de computadores dife-
rentes, precisou de encontrar um símbolo que sepa-
rasse o nome do utilizador do da máquina em que
este tinha a sua caixa de correio. Não queria utilizar
 10 uma letra que pudesse fazer parte de um nome pró-
prio, pois isso seria muito confuso. Conforme expli-
domingo, 10 de Março de 2002
cou posteriormente, «hesitei apenas durante uns 30
O Jornal das Boas Notícias
ou 40 segundos... o sinal @ fazia todo o sentido».
Estava-se em 1971 e esses 30 ou 40 segundos fize-
ram história, mas criaram um problema para os paí-
ses não anglo-saxónicos. Não foi só nos teclados, foi
também na língua.
Em inglês, «charles@aol.us» entende-se como
«Charles em aol.us», ou seja, o utilizador Charles que
tem uma conta no fornecedor AOL, situado nos
Estados Unidos. Mas em português não soa bem ler
«fulano@expresso» dizendo fulano-arroba-expresso.
Nem tem muito sentido. Mas qual será a alternativa?
Uma solução seria seguir o inglês e dizer «at». Outra
ainda seria dizer «a-comercial», como nos princípios
do século XX se chamava a esse símbolo no nosso
país. Talvez o melhor fosse utilizar «em». Mas haverá
soluções mais imaginativas. Quem quiser gastar o
seu latim pode proclamar «ad», rivalizando em erudi-
ção com o mais sábio dos literatos. Ou surpreender
toda a gente, anunciando uma «amphora» no seu
endereço.
ncrato@mail.expresso.pt
Noticias de Deus
Luís Pedro de Sousa
In: Ecclesia, 020306
A televisão checa passou a ter um programa dedica-
do à informação religiosa. “Noticias de Deus”, é o
nome do programa, que todos os dias ocupa cerca
de 10 minutos do segundo canal da televisão checa.
“Noticias de Deus”, é um projecto cristão, que pas-
sou a levar até aos ouvintes várias temas, entre os
quais um comentário sobre a actualidade. Aos Do-
mingos e dias de festas religiosas a televisão transmi-
te uma missa em directo.
A iniciativa deste projecto foi entregue a uma agên-
cia muito activa nos meios de comunicação daquele
país, a “CORONA”. A edição do programa conta
com o apoio de frades dominicanos, que fazem a
supervisão dos conteúdos dos programas.
Mães da Lombardia optam por ficar em
casa
MANUELA PAIXÃO (na Lombardia)
In: Diário de Notícias - 8 de Março
Não querem mais flores, desfiles pelas ruas, ramos
de giesta amarela, como homenagem ao Dia da Mu-
lher, nem sequer confraternizações só entre mulhe-
res, para celebrarem o 8 de Março: no Norte indus-
trializado de Itália, sobretudo em Milão, capital fi-
nanceira do país, o que elas querem é acompanhar as
famílias.
Perante o dilema de dar tempo aos filhos, à casa e ao
marido ou conseguir conciliar esta faceta com a
profissão, muitas mulheres têm preferido, nos últi-
mos anos, ficar em casa. São quase seis mil as novas
mães da região da Lombardia que, em 2001, se des-
pediram dos empregos, depois de uma primeira
maternidade, o que traduz um aumento de 800%
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relativamente ao ano anterior.
"Espero que ninguém me ofereça flores, em particu-
lar a mimosa, neste 8 de Março. Nos anos 90 falou-
se muito, mas, de facto, as mulheres não deram pas-
sos em frente no que diz respeito à política ou situa-
ções de poder, nem sequer na facilidade de conciliar
família e trabalho. Cada ano que passa, pergunto-me:
"mas quem me obriga?"", diz Gianna Martinengo,
empresária e membro da direcção da Assolombardo,
a mais importante associação italiana de empresários.
A lei "8 de Março", sobre a conciliação entre o
trabalho e a família, estabelece regras que dão o
direito à mãe de ficar em casa durante cinco meses
pagos e outros seis facultativos e a possibilidade da
escolha do pai para ausência no trabalho, durante
cinco meses. Mas na Lombardia, em 2000, apenas
182 pais pediram a licença de paternidade. Para além
na terra de Umberto Bossi, são pouquíssimas as
disso,
empresas que adoptaram medidas para conciliar o
trabalho e as exigências familiares.
Mas há excepções, como Gregório Grasso, guarda
municipal, de 40 anos, pai de dois filhos e que, após
o nascimento do último, decidiu ser ele a ficar em
casa, tomando conta do recém-nascido e ocupando-
se das tarefas domésticas. "Todas as minhas amigas
invejam-me, porque o meu marido ajuda em casa,
toma conta das crianças, faz tudo e até melhor do
que eu", explica a mulher de Grasso, Maria Luiza, de
37 anos, empregada numa loja de roupa.
"Esta situação não tem nada de especial. Afastei-me
do trabalho só por um tempo, o necessário para
ajudar em casa a seguir ao nascimento do mais pe-
queno. Tem-se revelado uma experiência muito
positiva. Descobri que ser pai é óptimo, gosto mes-
mo muito. Os trabalhos caseiros não são um pro-
blema e os pais estabelecem uma relação muito es-
pecial com os filhos. Antes, só queriam a mãe. Ago-
ra, também já sabem que é o mesmo ser a mãe ou
eu", adianta, todo contente, Gregório Grasso. E
acrescenta:
"No trabalho, houve muitos que faziam troça e que
me perguntavam, quando me viam, quem é que
realmente usava calças em minha casa. Outros dizi-
am que era um expediente para não trabalhar, mas
posso garantir, agora, quem casa se trabalha mes-
mo."
Em defesa da ciência
ANTÓNIO BAPTISTA
Autor de uma nova obra de crítica à filosofia de Boaventura de Sousa
Santos, explica a razão pela qual leva tão a sério o combate ao pós-
modernismo.
Entrevista de Nuno Crato
In: Expresso Revista, 020309
António Manuel
Baptista é um físico
português muito
conhecido.Professor
universitário, autor
de programas de
televisão e de rádio,
 10 escreveu vários livros sobre Ciência. O seu último
trabalho é uma crítica a «Um Discurso Sobre as
domingo, 10 de Março de 2002
Ciências», um livro do sociólogo Boaventura de
O Jornal das Boas Notícias
Sousa Santos que se encontra muito divulgado no
meio universitário. O novo livro do físico português,
acabado de sair a lume sob a chancela da Gradiva, é
uma crítica directa e muitas vezes violenta às teses
do sociólogo. Intitula-se, significativamente, «O
Discurso Pós-Moderno Contra a Ciência: Obscuran-
tismo e Irresponsabilidade». Sendo, entre nós, as
polémicas puramente ideológicas mais raras do que
se desejaria, é de registar com interesse a saída de um
livro crítico sobre um tema tão importante como o
significado e o papel da ciência na vida moderna.
Por que razão escreveu este livro?
Deixe-me expor a moral antes de contar o conto.
Não se trata de uma discussão das que se dizem
«académicas», onde se chocam apenas diferentes
visões do mundo. Preocupam-me os efeitos do ape-
lo romântico que alguns escritos pós-modernos
podem exercer no sistema educativo e na atitude do
público face ao progresso, nomeadamente o pro-
gresso científico. Agora, para o princípio de uma
resposta. Há tempos, perguntaram-me o que pensa-
va do que o prof. Boaventura de Sousa Santos dizia
sobre o Princípio da Incerteza de Heisenberg no seu
livro «Um Discurso sobre as Ciências». Não conhe-
cia o livro e verifiquei, com surpresa, que ele era um
êxito editorial no nosso país (consegui um exemplar
da 12ª edição publicada em 2001). Fiquei estupefacto
com o que li, particularmente quando verifiquei que
era incorrecta a citação de um livro de Heisenberg
que, por acaso, possuía. Traduzia-se incerteza por
erro e, ainda por cima, falava-se de erros de medi-
ções, o que para além de ser uma expressão incorrec-
ta (mal menor), atraiçoa por completo o significado
científico do Princípio. Havia interesse do autor em
falar de «erros» e depois (isto sim, é que era grave)
introduzir por qualquer forma a influência do cha-
mado «observador» e a sua consciência no íntimo
das chamadas leis da natureza.
As confusões a propósito do Princípio da Incer-
teza são muito comuns...
É verdade, mas soou-me logo um sinal de alarme e
fui procurar no livro referências ao princípio da
relatividade de Einstein, pois ele também atrai per-
versamente alguns filósofos e sociólogos. E lá esta-
vam... A certa altura, dizia Boaventura de Sousa
Santos, e vou ler: «Einstein constitui o primeiro
rombo (sic) no paradigma da ciência moderna, aliás
mais importante do que o que Einstein foi subjecti-
vamente capaz de admitir». O Einstein como rombo
é metáfora curiosa, mas ainda se acrescenta que
Einstein não foi capaz de o «admitir subjectivamen-
te» (sic!)... Os sinais de alarme aumentaram, pois
Boaventura de Sousa Santos mostra a seguir que não
compreendeu o problema da simultaneidade em
relatividade restrita, uma ignorância manifesta, só
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comensurável com a sua evidente autoconfiança
intelectual. Enfim, nada que ele não pudesse ter
corrigido facilmente, consultando colegas do Depar-
tamento de Física da Universidade de Coimbra. Mas
melhor seria ter-se lembrado de um conselho filosó-
fico de Wittgenstein, e ficar calado.
Considera essas incorrecções em Física tão im-
portantes que o levassem a escrever um livro tão
polémico?
Não foi fundamentalmente isso. Depois de ler todo
o livro com mais atenção - e devo dizer que foi uma
experiência nada agradável, entre irritação e perple-
xidade - comecei por pensar no efeito que as enor-
midades que iam desfilando página a página poderi-
am ter entre nós, com a nossa frágil cultura e tradi-
ção científicas. Daqui nasceu o propósito de, publi-
camente, me manifestar contra o que considero uma
atitude obscurantista e irresponsável perante o que é
a ciência. Para mais vinda de um pessoa bastante
visível no nosso universo cultural, com influência
nos seus alunos e na sociedade portuguesa em geral.
Era necessário denunciar o que me pareciam ser
graves perversões culturais com consequências gra-
ves.
Perversões culturais com consequências gra-
ves!?
Repare: entre as forças culturais modeladoras da
sociedade actual, a ciência é uma das principais se-
não mesmo a principal. As tecnologias derivadas dos
conhecimentos científicos condicionam o nosso
viver e sobrevivência. Para o nosso país, em particu-
lar, o problema do desenvolvimento científico e
tecnológico vai condicionar o que poderemos ser na
comunidade europeia, e temos de começar por ven-
cer condicionalismos culturais que herdámos há
séculos. Assim, é muito importante criar uma atmos-
fera apropriada para o desenvolvimento científico e
tecnológico, que vai desde o sistema de ensino até às
instituições científicas e tecnológicas. O que se diz
no livro não contribui em nada para isso. Pelo con-
trário.
Trata portanto de rebater as afirmações e con-
clusões do livro?
A natureza das afirmações de Boaventura Sousa
Santos são tais e tão chocantes que custa-me com-
preender o fenómeno. Pareceu-me que - aparte as
incorrecções de física onde pretende alicerçar o seu
discurso -, simplesmente trazer à luz as afirmações
do livro deveria ter o efeito que acontece a alguns
vírus quando expostos ao ar e à luz do dia: inacti-
vam-se. Este o principal motivo do livro. Mas é
muito difícil uma argumentação racional quando o
autor se limita a projectar descuidadamente e sem
hesitação as suas mensagens como crenças, dispen-
sando qualquer apoio racional ou casuístico. Assim,
porque é que «todo o conhecimento científico-
natural é científico social»? Por que é que «todo o
conhecimento é local e total»? Por que é que «todo o
conhecimento é autoconhecimento»? E por aí adian-
 10 te, e só para lhe dar uns poucos exemplos do que se
fala no livro. São conclusões lançadas sem apoio
domingo, 10 de Março de 2002
argumentativo, sem alicerces intelectuais coerente-
O Jornal das Boas Notícias
mente apresentados. Parece que está a tirar ilações
de conhecimentos por todos partilhados, a todos
evidentes, ou então que acredita arrogantemente na
sua autoridade indiscutível, pois que não avança
argumentos precisos em seu apoio. Diz-nos, por
exemplo, que continuamos a fazer as perguntas de
Rousseau sobre a ciência (para este uma actividade
nefasta, claro!) sobre a virtude e a felicidade, etc., e,
quando diz que todas estas perguntas são ainda actu-
ais, está a aceitar que a ciência tem algo que ver di-
rectamente com a conquista da virtude ou da felici-
dade, assuntos que, por definição, não podem ser
tratados pela ciência.
No seu livro, critica também Boaventura de
Sousa Santos por este achar que a unificação do
conhecimento se faz sob a égide das ciências
sociais. Pensa, pelo contrário, que ele se deve
fazer sob a égide das ciências naturais?
Creio que nessa pergunta reside um foco de um mal-
estar que até este livro de Boaventura de Sousa San-
tos reflecte. Creio que estão numa minoria significa-
tiva os cientistas que aderem ao cientismo, ou seja, a
doutrina de que todo o conhecimento ou é científico
ou não existe. Poderíamos mesmo dizer que o mais
importante para o homem não pertence à ciência,
pois esta não pode dar respostas às questões morais.
Pensa então que a ciência tem um estatuto dife-
rente...
A ciência, a que chamam ciência natural (como se
houvesse outra), nada tem a ver, por definição, com
a sociologia e com outras disciplinas que se englo-
bam nas chamadas ciências culturais. Os seus resul-
tados poderão ter consequências sociais assim como
os temas de que se ocupa (mas não os resultados em
si mesmos, entenda-se). Claro que o que se estuda
depende de muitos factores sociais condicionantes,
mas não, repito, os conhecimentos a que se chega.
Mas a ciência também pode errar...
Claro! E a ciência coabita confortavelmente com o
erro. Mais, o erro é uma das forças mais importantes
para o progresso da ciência, pois a ciência pode inte-
riorizar os erros que os cientistas cometem sem se
destruir. Pelo contrário, reanima-se cada vez que se
corrige. Gostaria de pôr os «erros» da ciência entre
aspas, pois que é um espécie diferente dos erros que
se podem cometer nas disciplinas não científicas. É
um «erro» neutralmente qualificado, não dependente
daquilo que somos como homens circunstanciais
que todos somos, (tal como o conhecimento cientí-
fico, os pós-modernos, aliás). Pode ser detectado
demonstravelmente tal como as verdades científicas.
Os mesmos métodos e técnicas que servem para
detectar as verdades servem para denunciar os erros.
Os cientistas erram, de maneira mais evidente, mas
também diferentemente, se quiser, do que os outros.
O discurso de Boaventura Sousa Santos é um
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discurso que se diz pós-moderno. O que é o
pós-modernismo?
Não há uma definição oficial. Um dicionário de
filosofia dizia, ironicamente espero, que «este termo
não tem significado oficial, use-o tanto quanto pos-
sível». Julgo que o termo pós-moderno foi introdu-
zido em 1939 pelo historiador britânico Arnold
Toynbee, que considerava que o período moderno
da história terminara entre 1850-1875. Outros inici-
am a era moderna no Renascimento ou no Ilumi-
nismo e terminam-na diversamente, por exemplo no
derrube do muro de Berlim. Outros ainda, como
Derrida e Aaron Gare, fogem da questão temporal e
dizem que o que caracteriza o pós-modernismo é
uma descrença geral no progresso. É um termo que
aparece mais visível a partir de 1980 numa grande
variedade de disciplinas, incluindo arte, arquitectura,
música, cinema, sociologia, comunicações, moda,
ciência, tecnologia, etc. Por vezes tem uma conota-
ção política, parece que iniciada com Frederic Jame-
son, que associa o modernismo e pós-modernismo a
estádios do capitalismo. Só me interessa o que os
filósofos e sociólogos que se declaram pós-
modernos escrevem sobre ciência (e desconhecia a
«contribuição» portuguesa para o debate). Não há,
que eu saiba, o que se poderia considerar uma dou-
trina oficial. E, depois, acontece muitas vezes, quan-
do se denunciam certas opiniões mais clamorosa-
mente disparatadas, logo aparecem pessoas a dizer
que se consideram pós-modernos mas que de ne-
nhuma forma aceitam essas opiniões.
Se este debate é tão importante como refere, por
que razão é que o livro do prof. Boaventura de
Sousa Santos só agora foi directamente critica-
do?
Estou-me a recordar que uma vez pediram ao gran-
de físico Wolfgang Pauli um parecer sobre um traba-
lho de um colega. Ele, depois de o ler, recusou um
comentário dizendo: «O trabalho nem sequer está
errado.» Para lá dos erros que aponto no meu livro,
poderia dizer-se que o livro de Sousa Santos «nem
sequer está errado». Está para lá de qualquer correc-
ção possível. Mas pode ser que existam outras razões
a que os sociólogos melhor poderiam responder,
além da distracção de que me penitencio. A indife-
rença poderá justificar também esse silêncio. Haverá
ainda outras explicações ligadas à nossa cultura par-
ticular: prestígio do autor, receio de consequências
profissionais nos casos académicos ou, simplesmen-
te, o sentimento de não valer a pena enfrentar uma
figura pública, com poder académico (não sei se
político). Um problema, afinal, de custo e eficácia,
intelectual e moralmente qualificados. Mas é pena
este silêncio cúmplice, pantanoso, pois se há pro-
blemas importantes no nosso tempo, o discurso
sobre a ciência é um deles.