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Do Espiritual na Arte de  

Wassily Kandinsky (1866­1944)1 

Para muitos apreciadores de arte, nem sempre é fácil compreender a


pintura moderna. Um quadro renascentista, como a Mona Lisa de Leonardo da
Vinci, pode ser mais fácil de ser admirado do que uma obra abstrata manchada
em explosão de cores e aparentemente caótica na sua expressão gestual.
Ouvi, certa vez, o comentário de estudantes ao observar um quadro
abstrato que “se aquilo era arte, então eles eram artistas também”, “isso eu
também faço”, como se a arte devesse sempre estar associada a um grau de
dificuldade no fazer, algo que somente os artistas são capazes de conseguir, o que
elevaria o artista sempre a ser alguém abençoado por um dom divino. Dom esse
que foi desenvolvido a custa de muitas tentativas e trabalho contínuo. Aqueles
estudantes não estavam preparados para entender a forma expressiva presente
numa obra não figurativa.
Durante muito tempo a habilidade de copiar a realidade foi grandemente
admirada e associada a “grande arte”. Mesmo hoje esta capacidade de mimese é
admirada, assim como é admirável qualquer virtuosismo seja na música, na
dança, na ginástica ou em qualquer das atividades humanas.
A arte rompeu com vários conceitos numa busca muitas vezes
profundamente espiritual, onde a forma representacional, pode não dizer muito.
Pode-se dizer que, em certo sentido, foi o que se deu nas buscas de Kandinsky.
A busca de expressão artística foi evoluindo com a história da humanidade.
Se pegarmos desde o Renascimento até o século XX, diversos movimentos de arte
apareceram, uns se sobrepondo aos outros com idéias novas.

1 Artigo publicado originalmente por: MIKOSZ, J. E. Wassily Kandinsky. AMORC


Cultural, Curitiba - Paraná, v. 15, p. 16 - 23, 01 out. 2002.
Uma das grandes quebras quanto à forma de expressão foi quando não
mais interessava ao artista copiar a natureza, nem deformá-la e sim, representar
uma necessidade interior que era independente das formas representacionais.
Não se pode afirmar que Kandinsky tenha iniciado a arte não figurativa,
mas ele teve a mais inteligente previsão das possibilidades desta arte. Ele, mais
do que qualquer outro pintor, indicou as linhas prováveis do futuro
desenvolvimento que esta forma de arte teria. Kandinsky perseguia a abstração
pura como a única possibilidade de repouso, em meio à confusão e obscuridade
do quadro mundial (por volta de 1908), e a partir de si mesmo, como uma
necessidade instintiva, cria a abstração geométrica, a única forma de arte abstrata
não influenciada pelo cubismo.
As pinturas vinham perdendo seu caráter representacional, deixavam de
ser uma janela ilusória para o mundo e se tornavam elas em si mesmas, um
objeto de arte independente. Os artistas, a fim de agitar a sensibilidade humana,
podiam avançar da percepção para a representação, ou preferir avançar da
percepção para a imaginação, decompondo as imagens perceptuais a fim de
recombiná-las numa estrutura não-representacional (racional ou conceitual).
Antes de ser pintor, Kandinsky queria ser músico. Mas aos 20 anos entrou
para a Universidade de Moscou para estudar direito e economia. Foi nessa época
que entrou em contato com a antiga arte da Rússia, ficando muito impressionado
pelos ícones medievais daquele país. Em 1899 estuda os velhos mestres em
Moscou e S. Petersburgo, e fez a sua primeira visita a Paris. Em 1893 formou-se
em direito. Em 1895 viu uma exposição dos impressionistas franceses e essa
experiência foi decisiva. Abandonou a carreira jurídica e foi para Munique
estudar pintura. Em 1900 recebeu seu diploma da Academia Real em Munique.
Depois de viver em diversas cidades européias, em 1908, regressou a Munique,
onde se instalou para os decisivos seis anos seguintes.
Aos 34 anos Kandinsky após passar por vários estilos, desde o
academismo, passando por vários graus de ecletismo (arte popular,
impressionismo, pós-impressionismo), sentia que havia chegado o momento de
consolidar as suas experiências e formular as suas intuições das possibilidades
oferecidas pela arte de pintar. Para compreender a teoria da arte de Kandinsky é
essencial entender primeiro a sua concepção da obra de arte. Num artigo
publicado no Der Sturm em 1913 ele explica:

Uma obra de arte consiste em dois elementos, o interior e o exterior. O


interior é a emoção na alma do artista; essa emoção tem a capacidade de
evocar uma emoção semelhante no observador.
Estando ligada ao corpo, a alma é afetada através dos sentidos – o
sensório. As emoções são despertadas pelo que é sentido. Assim, o
sensório é a ponte, ou seja, a relação física entre o imaterial (que é a
emoção do artista) e o material, o que resulta numa obra de arte. E, por
outro lado, o que é sentido é a ponte do material (o artista e sua obra) para
o imaterial (a emoção na alma do observador).
A seqüência é: emoção (no artista) – o sensório – a obra de arte – o
sensório – a emoção (no observador).
As duas emoções serão semelhantes e equivalentes na medida em que a
obra de arte é bem sucedida. Nesse aspecto, a pintura não é diferente de
uma canção: ambas constituem uma comunicação. [...]
O elemento interno, isto é, a emoção, deve existir; caso contrário, a obra
de arte é uma impostura. O elemento interno determina a forma da obra
de arte.

Em seu livro “Do Espiritual na Arte” Kandinsky faz numerosas referências


a música, incluindo os compositores modernos de então, Schönberg e Debussy
(compositor ligado a Ordem Rosacruz) se referindo a eles como “quase os únicos
a abandonarem a beleza convencional e a sancionarem todos os meios de
expressão”.
Kandinsky afirma que a cor e a forma são elementos suficientes de uma
linguagem adequada para expressar emoção. Da mesma forma que o som
musical, estes elementos atuam diretamente na alma humana. Kandinsky
termina seu tratado com uma distinção entre três diferentes fontes de inspiração:

1 – Uma impressão direta da natureza exterior. A isso chamo de


Impressão.
2 – Uma expressão predominante inconsciente e espontânea de caráter
íntimo e de natureza não-material (isto é, espiritual). A isso chamo de
Improvisação.
3 – Uma expressão de um sentimento interior lentamente formado,
repetida e quase formalisticamente elaborado. A isso chamo
Composição. Nesta, a razão, a consciência e o propósito desempenham
papel preponderante. Do cálculo, porém, nada aparece, só a emoção.
Da primeira destas fontes fluiu a obra do próprio Kandinsky até 1910 – as
suas telas fovistas.
Da segunda dessas fontes fluíram as abstrações expressionistas de 1910-21.
Da terceira dessas fontes fluíram as abstrações construtivas de 1921 em
diante.
Em 1918 o Colégio de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou uniu-se
com a Escola de Arte Aplicada Stroganov, formando os Ateliês Superiores
Técnico-Artísticos, conhecidos por Vkhutemas. Entre os que tinham ateliês
figurava Malevich, Tatlin, Kandinsky e Antoine Pevsner. O instituto de Cultura
Artística (Inkhuk) encarregou a organização de um programa de ensino para
Kandinsky. O programa foi entregue em 1920 e era, na verdade, a sua teoria de
arte. Propôs que os estudos se fizessem em duas partes, a “Teoria de ramos da
arte separados” e a “Combinação das artes separadas para criar uma arte
monumental”. A visão de Kandinsky era de uma nova e profunda relação entre a
arte e a sociedade, mas a relação era essencialmente religiosa. Kandinsky, assim
como o pintor construtivista Mondrian, era envolvido com os estudos da teosofia
de Madame Blavatsky. Kandinsky achava que o artista era um homem com uma
visão espiritual mais sublime do que os outros homens; e a arte abstrata era o
meio mais puro de comunicar esta visão. O objetivo do ensino artístico era
fornecer um Dicionário Artístico de linha e forma conscientes para cada arte. Por
exemplo, as cores deviam ser estudadas individualmente e em combinação, e
“estes estudos devem ser coordenados com conhecimentos médicos, fisiológicos e
ocultos”. Com este conhecimento, o artista poderia avançar para a segunda parte
do programa, o trabalho da arte monumental que produziria reações muito
específicas e controladas (“êxtase”) na audiência. O programa de Kandinsky foi
rejeitado pelo Inkhuk.
Em 1922 Kandinsky deixou a Rússia para nunca mais voltar. Kandinsky
aceitou um lugar para trabalhar na Bauhaus, a escola de design fundada pelo
arquiteto Walter Gropius em Weimar em 1919. Em muitos aspectos a Bauhaus se
parecia a Vkhutemas de Moscou, onde a inutilidade das Belas Artes tradicionais e
o mero utilitarismo dos objetos produzidos pelas máquinas, deviam ser
transcendidos por um bom design funcional. De suas experiências pedagógicas
Kandinsky publicou um segundo livro “Do ponto e da linha para o plano” em
1925. Neste livro os pontos e as linhas são elevados à categoria de essências
autônomas e expressivas, com as cores tinham sido antes.
As pinturas de Kandinsky a partir de 1925 ilustram a fase final de sua obra,
na qual a sua linguagem simbólica se tornou totalmente concreta ou objetiva e, ao
mesmo tempo, transcendente. Deixou deliberadamente de ser uma continuidade
orgânica entre emoção e o símbolo que “a representa”; o que existe é, antes, uma
correspondência, uma correlação. Kandinsky insistia na distinção que existe
entre a emoção a ser expressa no artista, a qual é pessoal, e os valores simbólicos
da linha, do ponto e da cor, que são impessoais. Na pintura usa-se uma
linguagem universal tão precisa como a matemática, a fim de expressar, com o
máximo de habilidade técnica de que o artista for capaz, sentimentos que devem
ser libertados do que é pessoal e impreciso. É neste sentido que as obras de arte
seriam “concretas” no futuro.
Quando a Bauhaus foi fechada pelo governo nazista em 1933 (não em 1932
como Herbert Read cita em seu livro História da Pintura Moderna), Kandinsky
mudou-se para Paris e aí permaneceu o resto de sua vida. Encontrou ali
simpatizantes como Alberto Magnelli, Miró, Delaunay, Arp e Antoine Pevsner.
Sua influência a partir daí começou a ter vasta penetração. Uma arte tão
transcendente quanto à de Kandinsky, tão “calculada” e objetiva, não é facilmente
assimilada. Quem são os discípulos de Kandinsky? São aqueles artistas, hoje
inúmeros, que acreditam na existência de uma realidade psíquica ou espiritual
que só pode ser apreendida através de uma linguagem visual, cujos elementos são
símbolos plásticos não-figurativos.
Naturalmente a arte não parou. Hoje, além de todas as manifestações do
passado e da arte moderna, temos a ciência e a tecnologia estreitando relações
com a arte. O vídeo, a holografia, a computação gráfica, a web-art, a realidade
virtual, robótica, engenharia genética entre tantos outros avanços e descobertas
da humanidade, estão associadas à criação artística. As inovações continuarão
sempre onde houver este impulso criativo no coração da humanidade. Uma
inovação não destrói o que foi considerado arte no passado, nem significa que
seja melhor. Enfim, na expressão de um grande teórico e historiador da arte E. H.
Gombrich: “Uma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de
Arte. Existem somente artistas”.

GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. Martins Fontes. São Paulo, 1995.


NASH, J. M. Cubismo, Futurismo e Construtivismo. Editorial Labor do
Brasil. Barcelona, 1976.
READ, Herbert. História da Pintura Moderna. Zahar Editores. Rio de
Janeiro, 1980.

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