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A economia

de dois
níveis
Double Layer Economy
Manuel Moniz

“ O ser humano não feito


para trabalhar,
foi feito para criar!”
Agostinho da Silva
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Autor: Manuel Moniz
http://manuelmoniz.blogspot.com
manuelmoniz@diariodosacores.pt

Título: A Economia de dois níveis


Double Layer Economy

Escrito em Abril de 2009


Ponta Delgada
Açores

Colecção: Temas de Política

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A economia
de dois
níveis
Double Layer Economy
POR: Manuel Moniz

“ O ser humano não criado para trabalhar,


foi feito para criar!”
Agostinho da Silva
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INTRODUÇÃO

Não é correndo atrás do dinheiro que a humanidade se pode salvar,


pois esse é um processo sem um fim em si, e por isso sem um final pro-
gramável. É um frisson ininterrupto, permanente.
Pelo contrário, a solução passa por desvalorizá-lo na medida dos
nossos interesses como civilização. É o que se pode chamar de “double
layer economy” - uma economia de dois níveis.
O conceito prático parte da constatação que a maior parte de nós tra-
balha por dois motivos: para assegurar uma sobreviência confortável e
para obter alguns luxos. Mas o que parece uma separação são evidente
no lado do trabalho é na realidade inexistente ao nível do sistema eco-
nómico: para ele, tudo é transacionável e não existem dois níveis. Quer
seja a compra de um Jaguar ou a aquisição de pão, elas são a mesma
coisa para o capitalismo, quando na realidade são dois níveis muito
diferentes de humanidade.
Logicamente o que há a fazer é estabelecer a separação entre estes
níveis quando concebemos as áreas onde o capitalismo puro deve ser
jogado. E subtrair essas áreas à sua influência, fortalecendo-o nas res-
tantes.
“Para onde vai o dinheiro que ganhamos” é uma pergunta que todos
se têm de fazer de tempos em tempos. Na realidade, se subtraíssemos às
nossas necessidades de financiamento mensal o preço de uma casa para
morar, da energia para nos aquecer, dos transportes para nos movimen-

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tarmos e da saúde para nos mantermos vivos, precisaríamos de muito
menos dinheiro para viver e seríamos mais felizes. É assim na teoria. A
questão é esta: consegue este sistema funcionar?
De algum modo, os seus princípios já estão em prática. Os diversos
sistemas de protecção dos cidadãos, que vive dos impostos, destina-se
exactamente a servir de almofada aos que caem em situações mais fra-
gilizadas. Mas o facto dos seus orçamentos dependerem directamente
do dinheiro que tem disponível, torna a sua gestão inter-dependente do
próprio sistema. Curiosamente, ou talvez não, são exactamente as áreas
“fundamentais” as que dão maiores lucros à iniciativa privada: quem
controlar a alimentação, a saúde, a habitação e a energia, controla a
economia!
Mas como o passado já provou, não se deve limitar a ambição pesso-
al, desde que ela seja positiva para todos, sendo assim normal que nos
movamos por sonhos. A esse nível a economia deve funcionar livre e
saudavelmente, focando nos seus aspectos mais positivos: a criativida-
de e a inventividade. Mas numa situação em que o dinheiro tenha um
valor muito inferior, as exigências por parte dos trabalhadores serão
igualmente muito inferiores. Com as necessidades básicas resolvidas,
o ser humano passará a concentrar-se nas suas aptidões de criador. Afi-
nal de contas, exactamente aquela para a qual foi criado em primeiro
lugar...
Esta reflexão pretende ser um contributo para a necessária alteração
do sistema económico vigente, facilitando um novo salto evolucionista
e proporcionando um modelo de salvação ambiental do planeta. Uma
resposta convencional à actual crise seria um passo de gigante para
uma crise muito mais profunda e eventualmente inultrapassável a muito
curto prazo.

Manuel Moniz
Abril de 2009

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Do ponto de visa dos objectivos e do próprio conceito de Estado, o
que constitui a verdadeira riqueza não é a quantidade de dinheiro que
circula mas a capacidade produtiva instalada, pois é ela que garante real-
mente o advir da população.
É óbvio que este conceito não se enquadra no ambiente económico
actual, onde o ser humano parece ter perdido a sua componente de “ci-
dadão” para se cingir apenas à de “consumidor”. E quando se fala de
economia de mercado, parece que se está a falar de humanidade – quando
uma e outra são diferentes partes da equação.
A economia de mercado é um instrumento que a humanidade utiliza
para se satisfazer – e a verdade é que de algum modo ela tem cumprido
o seu papel. Mas alguém imagina que dentro de 50 anos o ser humano
estará a funcionar nos mesmos moldes que actualmente? Não creio, por-
que não faz sentido. Se a nossa evolução vai no sentido de melhorarmos a
nossa qualidade de vida, claramente que o modelo actual não se manterá
por muito mais tempo.
Tem a ver com a sua própria génese: a economia de mercado nasce
como resposta a um período específico da humanidade, não como a res-
posta final. E manter uma resposta que já começa a ficar desadequada,
sem se desenvolver conceptualmente novas respostas, é um erro crasso
que urge remediar. Na realidade, a defesa da economia nos moldes con-
vencionais já se enquadra no âmbito do conservadorismo puro, não da
modernidade.
Olhando para o passado, facilmente se percebe que a humanidade tem
vindo a ganhar direitos que simplesmente não devem ser perdidos apenas
porque um sistema económico está a falhar. É sobre esses direitos – ou a
sua reformulação – que a solução para a actual crise deverá encontrada,
ao mesmo tempo que se dará mais um passo em frente na evolução da
humanidade.
Há um pressuposto fundamental no desenvolvimento de qualquer teo-
ria económica e social: ela deve garantir qualidade de vida básica a toda
a população, sem lhe retirar o seu sentido empreendedorismo que a faz
evoluir. É na conjugação destas duas vertentes que o ser humano poderá
encontrar a sua felicidade.
O que vemos, no entanto, e que comprova como o sistema já não
está a dar uma resposta adequada, é que os direitos estão a recuar a uma
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grande velocidade, na proporção exacta do aumento das dificuldades que
o modelo económico enfrenta. Quando o que é necessário é que a livre
iniciativa capitalista consiga viver sobre um substrato de direitos básicos
fortemente arreigados.
Há condições de base que cada Estado deve conseguir garantir com
vista à felicidade dos seus cidadãos: alimentação, vestuário, habitação,
educação, saúde, energia e transportes. E na prossecução do objectivo de
garantir essas necessidades básicas, o Estado deve agir como se se tratas-
se de uma verdadeira empresa, mas, para que seja realmente eficaz, uma
série de conceitos terão de ser alterados.
Desde logo, a ideia de que tudo na vida deve cair no âmbito do capi-
talismo. Na verdade, a não ser que algumas áreas sejam subtraídas a este
modelo, a tendência será de piorar a qualidade de vidas das pessoas. A
única solução possível e desejável vai no sentido de existir uma econo-
mia dupla: uma área cujo objectivo é a garantia da subsistência da popu-
lação, e outra permitindo o desenvolvimento das iniciativas pessoais com
vista ao lucro. Diga-se de passagem que esta solução aparece-nos como
igualmente transitória no plano da evolução humana, mas este é que o
nosso tempo e é para ele que devemos encontrar soluções concretas.
Um dos erros actuais passa por considerar que é no emprego que está
a solução da crise. Da Esquerda à Direita, ouvimos os políticos defende-
rem o “direito ao emprego” como se fosse a panaceia de todos os males.
E seria, se o capitalismo tivesse capacidade para crescer indefenidamen-
te, algo que claramente não tem.
Os empregos, no actual sistema, estão condicionados ao lucro das em-
presas que os criam. Sem lucro as empresas não têm capacidade para os
manter, e o facto é que o lucro depende em muito da própria redução do
número de postos de trabalho por relação com a produção final. Hoje
em dia a produtividade é muito superior ao que foi no passado – cada
trabalhador representa uma produção muito maior, em inúmeros casos o
dobro e triplo do que era há apenas 50 anos atrás. E mesmo nas chamadas
economias emergentes, a tendência inevitável é essa, sendo a capacidade
competitiva baseada no baixo custo do trabalho uma mera fase transitó-
ria.
Os empregos dependem, por isso, da capacidade de aquisição dos
produtos que os mercados têm. Mas quando os mercados demonstram
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incapacidade para adquirir esses produtos, a única forma que as empresas
têm de manterem a sua solvabilidade é reduzindo a sua mão de obra. Tão
simples como dois e dois serem quatro.
Porque engloba tudo, o capitalismo está a ficar cada vez mais aperta-
do. Exige-se cada vez maior produtividade aos empregados sob pena de
falência directa e a importância da tecnologia avança rapidamente. Não
seria em si um mal, pois todo o trabalho que puder ser retirado à huma-
nidade deixa-lhe mais tempo para as coisas realmente interessantes. Só
que o capitalismo não tem pretensões de organizar a humanidade nem a
encara como tal: para capitalismo, a humanidade é sobretudo um merca-
do de consumidores; e mesmo as facilidades que ele aparentemente lhes
concede, destinam-se sobretudo a garantir a sua própria sobrevivência
como sistema.
Então como reorganizar a economia? Subtrair ao capitalismo “nor-
mal” uma série de áreas é a única forma de nos protegermos dos seus
aspectos negativos. Por exemplo, é aceitável que as famílias percam as
suas casas de habitação porque o desemprego aumenta e deixa de ser
possível pagar os empréstimos? Isso, simplesmente, não é nem justo nem
desejável, nem inteligente do ponto de vista da salvaguarda da nossa pró-
pria humanidade.
As soluções actuais prevêem que essas dificuldades possam ser su-
pridas através de apoios do Estado em dinheiro – mas quando o dinheiro
começa a rarear, é inevitável que os estados tenham cada vez mais difi-
culdades em assegurar essa missão e, num caso extremo, mas claramente
provável, poderá ficar impossibilitado de o fazer, o que criará uma crise
social sem precedentes.
A solução passa por separar o que são as componentes de bem essen-
cial e das de luxo dispensável – ao nível da habitação, mas tamém noutras
áreas. Uma casa de tipologia média, com um quarto por cada filho, é um
bem essencial; um palácio é um luxo dispensável. O bem essencial tem
de estar salvaguardado do sistema capitalista e não pode ser encarado
como um bem transaccionável meramente de cariz económico; o segun-
do, pela sua própria natureza, é um bem comercial passível de sofrer as
valorizações ou desvalorizações que estão sempre ligadas ao modelo de
economia de mercado.
Hoje em dia, existem muito mais casas do que o número de famílias
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existente, o que configura já um desequilíbrio importante que tenderá a
acentuar-se. No passado, cada crise era uma oportunidade de bons negó-
cios, e é por isso que se diz que “o dinheiro corre para o dinheiro”. Na
realidade, o que aconteceu foi que quem tinha capacidade económica
fortalecia-se ainda mais com cada crise. No entanto, mesmo esses mo-
vimentos têm limites e que neste momento é possível que já tenhamos
atingido uma certa saturação natural e qualquer aumento do desequilíbrio
entre os que têm e os que nada têm poderá já ser incomportável do ponto
de vista social.
Inevitavelmente, a solução passa por uma desvalorização radical da
componente de bem essencial dos imóveis e de uma clara redução do
ritmo das novas construções. O caminho não deve ser o de relançar a
economia através do aumento da construção civil – mas sim garantir que
as famílias tenham menos encargos e por essa via fiquem menos depen-
dentes da capacidade de gerar lucros das empresas.

A BANCA - o exemplo do carro


O argumento mais ouvido vai no sentido da necessidade de se capi-
talizar os bancos, pois só assim eles poderão de novo emprestar e como
consequência a economia voltaria a andar. Essa tese permite, no entanto,
mais do que perceber uma verdadeira solução, compreender a gravidade
do problema. Aparentemente, o actual sistema está dependente de um
modelo que vive não de dinheiro real, mas de dinheiro provável, futuro,
que depende de um crescimento económico constante. E se esse sistema
funcionou durante algum tempo, o facto é que ele cria um ritmo de de-
pendência que se está a aproximar de um extremo.
A lógica do sistema era compreensível. Em vez de se esperar 10 anos
para comprar um carro através de poupanças, o banco adiantava o dinhei-
ro, permitindo ter já o carro e ressarcindo-se com algum lucro durante um
período de tempo que teria de ser inferior à sua vida útil. Entretanto, a
melhoria que a existência desse carro originaria, iria permitir ao seu pro-
prietário aumentar o seu nível de vida, provavelmente criando até uma
nova capacidade de gerar mais rendimentos – tanto que o peso dessa
prestação mensal gradualmente seria reduzido também por essa via, o
que também facilitaria o seu próprio pagamento. A própria inflação con-
tribuiria para relativizar esse investimento e os próprios juros envolvidos
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no processo – e no fim, o próprio carro ainda geraria um pequeno valor
através da sua venda, esperando-se que vivesse pelo menos outro tanto
tempo quanto aquele que levara a ser pago.
O modelo funcionou bem nas primeiras fases de expansão da econo-
mia quando estes pressupostos podiam ser cumpridos. Apesar de algumas
crises de crescimento, não havia dúvidas que o modelo era bem sucedi-
do. As preocupações ambientais não existiam, as matérias primas man-
tinham-se baratas, e o gradual fortalecimento de economias emergentes
criava novos consumidores com capacidade para adquirir a multitude de
produtos que as nações industrializadas produziam. A globalização pare-
cia ser uma solução perfeita para a continuação de um capitalismo que
alargava as suas fronteiras a cada ano que passava – e de certo modo
apareceu mesmo como a solução para retirar da pobreza muitos milhões
de pessoas dos países mais pobres. Os números, no entanto, contam uma
outra história: apesar de algum benefício para as populações, foram algu-
mas elites as principais beneficiárias desse aumento de riqueza, criando
fossos ainda maiores entre a população.
A globalização assentava num pressuposto bem conhecido de qual-
quer teoria económica: primeiro era preciso investir, o que neste caso
representou vários défices no balanço das importações e exportações. O
caso das relações comerciais entre os Estados Unidos e a China é bem
representativo disso: na realidade, foi a capacidade de absorver os produ-
tos chineses que criou o capitalismo chinês, mas quando os consumido-
res ocidentais começaram a sentir os primeiros efeitos dessa situação, a
retracção foi inevitável.
Não é por acaso que o grande “inimigo” que os políticos internacio-
nais dizem querer combater neste momento seja o que definem como
“tentação de proteccionismo”. É uma lógica coerente com o modelo que
foi sendo desenvolvido nas últimas décadas, mas será exequível?
Por um lado, é óbvio que a “tentação” é evidente, como o efeito das
deslocalizações de fábricas tão bem demonstraram nos últimos anos: nin-
guém gosta de ver o desemprego a subir ou os rendimentos a descerem
devido às deslocalizações, especialmente numa sociedade tão dependen-
te destes dois aspectos. Mas na realidade o proteccionismo já não será,
só por si, solução para nada, porque o capitalismo de hoje já não depende
tanto dos mercados internos, mas sobretudo dos externos. E se não se
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comprar nada a outros países, também eles não nos poderão comprar
nada, porque afinal de contas trata-se apenas da deslocalização do dinhei-
ro. Como no resto, o capitalismo obriga à existência de pobres – e é isso
que já não é tolerável e em última análise irá obrigar ao aparecimento de
uma nova teoria económica que encaixe melhor no tipo de cidadãos que
temos hoje.
Houve um tempo em que se conseguiu assimilar esses produtos mais
baratos, que o eram principalmente devido à diferença de nível de vida
noutros países – ordenados bastante mais baixos, condições de trabalho
menos exigentes que as nossas e custo social quase inexistente deram a
alguns países grande capacidade competitiva. De novo, a ideia não era
má em si: à medida que esses trabalhadores mal pagos fossem benefi-
ciando cada vez mais dos confortos do capitalismo, acabariam por sair
eles próprios da sua pobreza cíclica, o que contribuiria para um certo
enriquecimento global. Só que a dependência das exportações tem em si
mesma essa fragilidade: basta que o mercado receptor falhe para a crise
se generalizar.

Mas com um aumento da produção tão acentuado, houve outro aspec-


to que contribuiu para o falhanço: os bens adquiridos passaram a sofrer
uma desvalorização muito mais veloz. Um carro hoje com 5 anos já tem
muito pouco valor e passou a ser mais aconselhável comprar novo do
que de segunda mão, mesmo para os sectores populacionais mais pobres.
Dificilmente hoje se pode imaginar um carro a durar 20 anos, mas não
é porque não consiga: numa sociedade viciada no que é novo, entrou-se
num ciclo de gosto pelo efémero que simplesmente não é sustentável.
Um bem comprado é um bem ultrapassado, e depois de se concretizar um
sonho há já outro por realizar. De algum modo sempre foi assim – mas
não com a velocidade actual.
Essa velocidade foi induzida pelo próprio sistema – talvez seja mesmo
uma necessidade do sistema, que se não vender morre. Tal como um meio
de produção será tanto mais valioso para o seu proprietário quanto mais
horas trabalhar, qualquer sector económico cumprirá melhor o seu papel
se se renovar mais rapidamente. O consumismo que fez brilhar as nossas
sociedades nos últimos anos foi induzido pelos arquitectos do modelo,
que viviam pela máxima que “tempo é dinheiro”. Mas bastaria pensar um
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pouco para se perceber que isto não ia durar toda a eternidade.
É evidente que chega uma altura em que todos têm tudo. Veja-se o
exemplo do carro: quando já se tem um, para quê trabalhar por outro que
não é necessário? Ou então, quantos carros poderíamos todos nós ter num
determinado momento, sabendo-se que existem custos inevitáveis pela
simples posse do bem (impostos, manutenção, garagem)? É evidente que
existe um limite de consumismo, mas mesmo que ele não existisse há a
questão da lógica: fará sentido manter um ritmo de trabalho exagerado
para se adquirir permanentemente pequenos luxos materiais que substi-
tuem outros de igual valor. O facto é que os modelos baseados no exibi-
cionismo social primário, na realidade não dão felicidade verdadeira nem
garantem qualquer tipo de reconhecimento de tipo mais cultural. Alguns
estudos que ligam o aumento dos rendimentos à infelicidade começam a
emergir e comprovam o que há muito a sabedoria popular dizia: o dinhei-
ro não traz (obrigatoriamente) felicidade.
Na realidade, hoje em dia já há muitas pessoas a trabalhar como formi-
gas para adquirirem bens de que simplesmente não necessitam nem terão
grande longevidade – o que diga-se de passagem, é quase um nonsense.
A questão cada vez mais é: estaremos disponíveis para termos um pouco
menos de coisas materiais, em troco de mais coisas imateriais – como
por exemplo, tempo para estarmos com os nossos filhos ou para ler um
livro?
A resposta, que começa a ser evidente para cada vez mais pessoas,
e também vem resolver outro velho problema: o capitalismo necessita
de se alimentar de pobres e de ricos, e o lugar do pobre provavelmente
cabe-nos a nós.
O facto é que sem compradores não há sistema económico, mas sem
trabalhadores os bens nem chegam a ser produzidos. Durante uma altura
o sistema conseguiu dar resposta através de um enriquecimento gradu-
al para toda a população, com um aumento gradual do que se chama
“classe média”. Durante algum tempo chegou mesmo a pensar-se que o
capitalismo seria a resposta final para o desenvolvimento social – mas na
realidade ele tinha as suas próprias limitações.
Hoje já não faz sentido falar das lutas de classes de Karl Marx. Aliás,
o capitalismo já resolveu parcialmente essa questão, quando inventou a
Bolsa e a disseminação de parte do capital das empresas por uma multi-
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tude de pequenos accionistas, que de algum modo se sentiram “grandes”
capitalistas por deterem uma parte infinitesimal das empresas através das
suas acções. Mera ilusão, obviamente, que no fim se paga caro.
A luta hoje em dia passa pelo que se pode chamar de luta civilizacio-
nal: se queremos seguir num modelo tendencialmente injusto e estéril,
com pesadíssimas consequências ambientais e sociais – ou se estamos
preparados para começarmos a discutir as novas vias que se colocam à
humanidade e que a podem transportar até ao 3º Milénio.
Se há alguma coisa que possa ser retirada da actual crise, ela é a des-
coberta da fraqueza dos nossos líderes: eles sabem conduzir a sociedade
nos períodos de crescimento económico, aparentando até algum domínio
da ciência económica – que, como se percebe cada vez melhor, não é
nem ciência nem arte. Mas simplesmente não têm qualquer capacidade
de sobreviver nos períodos de travagem económica, como é o actual. A
sua única solução: lançar dinheiro no mercado, o que poderá passar até
pelo seu fabrico, puro e simples.
É especialmente flagrante a posição dos partidos que se dizem de
“esquerda” e que apelam à necessidade do aumento do consumo como
sendo a única solução possível. Na prática, reconhecem que não são ver-
dadeiras alternativas, mas simples peças de um jogo entre “exploradores
e explorados” - um paradigma já velho e que não faz qualquer sentido
quando se aborda a nova realidade.
Evidentemente que seria o aumento do consumo que reporia o capita-
lismo no seu curso natural. Mas ele não é desejável em termos da defesa
do ser humano a longo prazo: a cada novo crescimento do consumo cor-
responderá uma redução da qualidade natural do nosso planeta, pelo que
essas soluções estão claramente desfasadas da nossa realidade actual.
Aparentemente não abundam as soluções para os períodos de trava-
gem económica, mas como qualquer pessoa facilmente compreenderá
essa lacuna é uma falha medonha no modelo económico e político actual.
Alguém em seu perfeito juízo entenderia um carro sem travões? É óbvio
que não. Aliás, os nossos carros, para além dos travões de pés, até têm
travão de mão, demonstrando bem a importância que esse instrumento
tem na segurança das viaturas. Por uma razão simples: apesar de um
carro ser feito para andar, as viagens nunca são feitas a um ritmo único,
antes pelo contrário, são compostas de arranques e paragens.
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O nosso sistema foi feito sem travões, o que demonstra a sua inapti-
dão. Na realidade, nenhum político actual parece pensar nestes moldes,
como que imaginando que a evolução humana nunca teria paragens ou
sobressaltos. E a verdade é que ninguém consegue responder a esta ques-
tão: como sobreviverá o mundo ocidental se a crise se mantiver durante
dois ou 3 anos?
Na realidade, para garantirmos um novo passo na evolução humana e
ao mesmo tempo começarmos a resolver o nosso problema ambiental, o
que necessitamos neste momento é de dominarmos a arte de uma retrac-
ção económica voluntária e duradoura.
Os analistas convencionais estão reféns de soluções passadas que fa-
zem depender a sobrevivência do crescimento económico – e em relação
ao presente apresentam-se como os mais soturnos dos pessimistas, sem
respostas e sem soluções. Quando o que precisamos neste momento de
perceber é como poderemos viver e manter a nossa qualidade de vida
sem crescimento económico – aliás, até com “crescimento negativo”,
como alguns economistas pomposamente gostam de se referir ao assun-
to. Porque é isso que temos pela frente, não apenas como inevitabilidade
económica mas como necessidade de sobrevivência da espécie.
O que é necessário neste momento é que iniciemos um processo de
crescimento negativo – em termos da produção e consumo – e de cresci-
mento positivo em termos de um novo paradigma humanista.

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