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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS

ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV


BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE


INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

SANTOS – 2008
ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV
BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE


INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como exigência parcial para
obtenção do grau de licenciatura de Letras
à Universidade Católica de Santos.

Orientadora: Profª. Ms. Elita Cezar Argemon

SANTOS – 2008
ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV
BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE


INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como exigência parcial para
obtenção do grau de licenciatura de Letras
à Universidade Católica de Santos.

Orientadora: Profª. Ms. Elita Cezar Argemon

Banca Examinadora

__________________________________________
Profª. Ms. Elita Cezar Argemon
Universidade Católica de Santos

__________________________________________
Profª. Drª. Sylvia Maria Corrêa Rocha Homem de Bittencourt
Universidade Católica de Santos

__________________________________________
Prof. Ms. Pedro Paulo Angrisani Gomes
Universidade Católica de Santos

Data da aprovação _____________________

SANTOS – 2008
DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho a Erico


Verissimo pedindo licença a Carlos
Drummond de Andrade para fazermos de
suas palavras as nossas:

“A falta de Érico Veríssimo”

Falta alguma coisa no Brasil


depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom


caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda – como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,


aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.


AGRADECIMENTOS

As nossas famílias, pelo amor e incentivo


incondicionais;
A Elita Argemon, pela sabedoria e
empenho na orientação deste trabalho;
A Sylvia Bittencourt, por aceitar fazer
parte deste projeto acadêmico e de vida;
A Pedro Paulo Gomes, pelo encontro
inesperado e descobertas inesquecíveis.
RESUMO

BICHIAROV, Andrezza Ribeiro e CAMPOS, Beatriz Badim de. Intersecções


entre realidade e ficção no romance Incidente em Antares, de Erico Verissimo.
Santos, 2008, 87p. (Trabalho de Conclusão de Curso) Universidade Católica de
Santos.

Este trabalho procura conceituar como os recursos literários - personagem,


dialogismo, polifonia, intertextualidade, intratexto, fantástico, ironia, contraponto
- são definidos na área literária, qual o papel por eles desempenhado nos
textos literários e, mais especificamente, como esses recursos podem viabilizar
as ideologias políticas contrastantes em um período repressivo de ditadura
militar (por meio do romance) no romance Incidente em Antares, de Erico
Verissimo. Por meio dos recursos literários, procuram-se revelar as relações
existentes entre o interno e o externo do texto, o que possibilita ao leitor
participar do diálogo entre texto literário e realidade factual. Para tanto, faz-se
uso de teóricos da área de Literatura, Política e Sociologia como
fundamentação para a análise do corpus deste trabalho. Na área de Teoria da
Literatura serão trabalhados os conceitos como dialogismo, polifonia,
intertextualidade e intratextualidade propostos por Mikhail Bakhtin e Julia
Kristeva; o fantástico, estudado por Tzvetan Todorov; o contraponto, criado por
Aldous Huxley; a questão da personagem discutida por Aristóteles e retomada
por Fernando Segolin e Beth Brait e a ironia tratada também por Brait. Hanna
Arendt, Elio Gaspari e Marcos Napolitano serão a base para o aprofundamento
das questões políticas e históricas brasileiras e mundiais. E na área da
Sociologia, tomar-se-á como principal norteador Lucien Goldmann e sua
Sociologia do Romance.

Palavras chaves: recursos literários, ditadura militar brasileira, Incidente em


Antares, Erico Verissimo.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO 1. SOCIOLOGIA E POLÍTICA NA LITERATURA 12

1.1 A presença da Sociologia na Literatura 14

1.2 Política e Arte 15

1.3 Recursos Literários 19

CAPÍTULO 2. O ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES 29

2.1 Os recursos literários na relação entre realidade e ficção em

Incidente em Antares 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS 80

REFERÊNCIAS 83
7

INTRODUÇÃO

- Já leu Jorge Amado?


- Por alto. É bandalho e comunista.
- E o nosso Erico Verissimo?
- Nosso? Pode ser seu, meu não é. Li um romance dele que fala
sobre o Rio Grande de antigamente. [...] por esse livro se via que o
autor não conhece direito a vida campeira, é “bicho de cidade”. Há
uns anos o Verissimo andou por aqui, a convite dos estudantes, e
fez uma conferência no teatro. [...] Quem vê a cara séria desse
homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele
bota nos livros dele.
- A senhora diria que ele também é comunista? [...]
- O Prof. Libindo costuma dizer que, em matéria de política, o Erico
Verissimo é um inocente útil.

Incidente em Antares, Erico Verissimo

O diálogo entre as personagens de Incidente em Antares traz à tona


dois nomes da nossa literatura: Jorge Amado e Erico Verissimo. O primeiro, um
exímio representante da literatura nordestina brasileira, do povo baiano e da
zona cacaueira, que ficou conhecida mundialmente por meio de sua obra. O
segundo, um “contador de histórias” gaúcho, que se via como uma
personagem de sua história e não como escritor dela. Isso fica evidente
quando, na epígrafe deste texto, ele aparece como personagem de sua própria
obra em um sentido contrário ao habitual em que o autor, munido de
criatividade e voz ativa, constrói suas personagens e as encaminha dentro da
narrativa. Erico Verissimo não encaminha as suas personagens, mas é
encaminhado por elas. Ele as escuta, respeita a personalidade de cada uma,
deixa que elas tomem as suas decisões, pois, para ele, literatura é liberdade e
as personagens não podem ficar presas nos limites do texto. Elas devem ir
além, devem provocar quem as conhece, não devem ser denúncia, mas
transformação, pois a literatura transcende à linguagem, a padrões estéticos e
formais, ela é o despertar do homem para o mundo.
Conversando sobre a escolha de autores e obras para serem
trabalhados no projeto desenvolvido pela Universidade Católica de Santos,
Leitura Viva: Ler por prazer, vários nomes foram sugeridos para serem
trabalhados em posteriores encontros do grupo de discussão literária, mas um
nos chamou a atenção por não ter sido citado: o do escritor Erico Verissimo.
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Tal fato despertou-nos interesse, pois percebemos que os autores sugeridos


para terem suas obras estudadas eram os “cânones” da Literatura Brasileira,
como Machado de Assis, José de Alencar, entre outros. Além destes que
denominamos “cânones”, autores como Clarice Lispector, Vinícius de Moraes,
Cecília Meirelles, Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo também foram
sugeridos. Uma pessoa do grupo questionou o porquê de Erico Verissimo, que
possui uma obra bastante rica, de renome internacional, não ter sido citado
enquanto o seu filho, Luis Fernando Verissimo, ter sido lembrado por vários
membros do grupo, apesar de sua obra não ter expressão literária tão
significativa quanto a do pai. Algumas pessoas acharam a questão
impertinente, outros tentaram respondê-la, mas a pergunta ficou sem resposta.
Tal situação remeteu-nos aos nossos tempos de escola, mais precisamente de
Ensino Médio, em que, nas aulas de Literatura Brasileira, Erico Verissimo não
passava de mero coadjuvante no cenário literário. Sua obra era apenas citada
pelos professores e algumas informações sobre sua biografia eram dadas de
forma bastante sucinta e totalmente descontextualizada.
Questionamo-nos, então, sobre o porquê de Erico Verissimo permanecer
à margem dos grupos de discussões e de aulas de Literatura Brasileira nas
escolas de Ensino Médio e, mais uma vez a questão ficou sem resposta. Este
foi o ponto de partida para pensarmos em um possível trabalho sobre a obra de
Erico Verissimo e darmos a nossa contribuição para a valorização desta.
Começamos, então, a “desbravar” o mundo verissiano e esse desbravamento
teve seu início pelo último romance do autor: Incidente em Antares.
A vida antarense foi-nos apresentada de forma tão envolvente e real que
nos sentimos parte daquela sociedade como se ela fosse a representação da
nossa própria cidade ou de qualquer outra situada em nosso país. Fomos
surpreendidas por uma curiosa indagação que foi o grande questionamento
que norteou nosso trabalho: será que, de fato, Antares não foi criada como
forma de refletir sobre as principais questões históricas, sociais e políticas do
Brasil? Erico Verissimo valeu-se das funções da literatura, com destaque para
a de expressar o caráter social e político de um povo, para criar sua identidade
e, principalmente, em Incidente em Antares, para expor uma realidade em que
os leitores viviam.
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Para encontrarmos uma resposta, precisávamos estudar a fundo a


história, sociedade e política brasileiras. E foi o que fizemos. Iniciamos nossas
investigações em Cultura Brasileira e, dois anos depois, em Teoria Política,
ambas as disciplinas do curso de graduação em Jornalismo e que cursamos
como enriquecimento curricular. A primeira mostrou-nos um panorama do país
por meio da produção cultural brasileira (cinema, teatro, música, televisão,
rádio, etc.) tendo como ponto de partida a década de 1950 até chegar
à de 1990. A disciplina estruturou-se partindo de uma descrição histórica do
Brasil, seguida pela política e como as duas foram determinantes para a
concepção da cultura brasileira. A segunda fez-nos conhecer e refletir sobre as
diferentes correntes de pensamento em relação às forças atuantes nas
sociedades internacionais e no Brasil, como: influência da sociedade civil na
política; influência desta na concepção das sociedades; como se organizam os
partidos políticos e qual a função dos mesmos; os tipos de regimes
governamentais existentes e quais as heranças que estes deixaram para a
sociedade atual. Com esses conhecimentos, iniciamos nossas pesquisas na
área política.
As aulas de Literatura Brasileira e Teoria Literária, disciplinas do curso
de Letras, deram-nos o alicerce necessário para que pudéssemos iniciar
nossos estudos na área da literatura. Entramos em contato com conceitos que
aprofundamos posteriormente em outras leituras, como o de intertextualidade
(diálogo entre textos), como denomina Julia Kristeva e de intratextualidade
(cruzamento de texto de um mesmo autor); o de polifonia e dialogismo
estudados por Mikhail Bakhtin, e que, segundo ele, referem-se respectivamente
aos vários textos, ou vozes presentes em um determinado texto e o processo
de interação que ocorre entre esses textos e o leitor; o de verossimilhança
(representação da realidade no texto); o de paródia (imitação de um texto
subvertendo o seu sentido original) e paráfrase (retomada de um texto sem
subverter o seu sentido original), estes últimos também estudados por Bakhtin.
Nesse processo, muitos outros livros de Erico Verissimo e sobre sua
obra foram lidos e verificamos que nossa indagação sobre o debate de
questões da sociedade brasileira por meio da literatura era pertinente, já que a
obra verissiana revelou-nos um escritor consciente e militante em favor de um
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pensamento político-liberal e contra qualquer forma de repressão e corrupção


como ele próprio enfatiza em um pronunciamento dado em 1962:

Não aceito nenhum sistema de governo que não se baseie no


respeito da dignidade da pessoa humana e dos direitos civis. Acho
que não pode haver literatura digna desse nome em um ambiente de
opressão e censura governamental ou de qualquer outra natureza.
(VERISSIMO apud FRESNOT, 1977, p.70)

No aprofundamento de nossas pesquisas, constatamos que as questões


sociais e históricas abordadas no romance eram conduzidas por uma mesma
linha de pensamento que compunha o livro todo: a política. Incidente em
Antares foi concebido em um período de ditadura militar em que a sociedade
era impossibilitada de expressar-se livremente, as normas de conduta tinham
de respeitar as ordens do governo e liberdade significava dizer “sim” ao que os
governantes ditavam, como fica explícito na fala do general Ernesto Geisel no
livro de Elio Gaspari, A Ditadura Derrotada: “A liberdade que precisa para se
viver, essa existe. Não há liberdade para a bagunça, a baderna, a ação contra
o governo.” (p.106)
Para tanto, utilizamos os conhecimentos adquiridos nas disciplinas
Cultura Brasileira e Teoria Política, os estudos feitos sobre a obra de Erico
Verissimo pelo Doutor em Letras e Literatura Brasileira pela Universidade de
São Paulo e grande amigo do autor, Flavio Loureiro Chaves. Ainda em relação
à obra verissiana, apoiamo-nos também nos trabalhos de mestrado de Daniel
Fresnot, O pensamento político de Erico Verissimo e de doutorado de Oswaldo
Antonio Furlan, intitulado Estética e Crítica Social em Incidente em Antares. O
embasamento político de nossas pesquisas deu-se também por meio de obras
de Marcos Napolitano que tratam dos períodos pré e pós ditadura militar, assim
como da obra O que é política?, de Hanna Arendt e A ditadura derrotada, de
Elio Gaspari.
Nossa fundamentação teórica norteou-se, principalmente, pelos
conceitos de polifonia, dialogismo, paródia e paráfrase de Mikhail Bakhtin e de
intertextualidade, na concepção de Julia Kristeva, como apresentamos
anteriormente. Além desses conceitos, estudos sobre literatura e sociedade
apresentados em livro homônimo de Antonio Cândido e sobre sociologia na
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literatura e no romance propostos por Lucien Goldmann também foram de


fundamental importância em nosso trabalho.

Não tivemos dúvida, portanto, em escolher o tema para o nosso trabalho


científico já que todo esse percurso de investigações, estudos e constatações
foi construído ao longo de nossa experiência acadêmica. A necessidade de
mostrarmos os recursos utilizados pelo autor de Incidente em Antares para
abordar as questões em voga nas décadas de 1960 e 1970, sob a óptica
política, levou-nos a pensar no presente trabalho a que demos o título
provisório de “A visão política na narrativa de Incidente em Antares, de Erico
Verissimo”. O título sofreu alteração por considerarmos que não só a visão
política deveria ser tratada neste trabalho uma vez que a política não pode ser
desvinculada da sociedade e nem da história. Portanto essa visão deveria ser
mais ampla para que a análise do romance de Erico Verissimo fosse uma
leitura de um momento político, social e histórico do Brasil por meio de
intersecções entre o texto literário e a realidade factual. Por esse motivo é que
optamos por intitular o presente trabalho “Intersecções entre realidade e ficção
no romance Incidente em Antares, de Erico Verissimo.”
Esperamos, enfim, que nosso trabalho sirva como ponto de partida para
novos desbravadores da obra verissiana e que estes, como nós, possam
mergulhar no mundo desse “contador de histórias” – título que foi dado a Erico
Verissimo por ele mesmo e forma pela qual gostava de ser chamado.
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CAPÍTULO 1. SOCIOLOGIA E POLÍTICA NA LITERATURA

... o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e


injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a
realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão,
propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a
lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma
lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último
caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não
desertamos nosso posto.
Erico Verissimo

Várias são as acepções do termo literatura, porém, essas acepções


convergem para uma única definição, que apesar de simples é bastante ampla:
literatura é arte. Assim como a pintura, a escultura, a música, a literatura
configura-se como arte a partir do momento em que utiliza artifícios para
transformar simples sobreposições de palavras em um calidoscópio de
sentidos e leituras diversas. A expressão lingüística está para a escritura assim
como o desenho para a pintura. Apurando e experimentando traços, cores,
texturas, sensações é que a arte se concretiza nas suas diversas
manifestações.
Segundo Jean-Paul Sartre, citado por José Verissimo em Que é
literatura? e outros escriptos (1907), a Literatura pode ser entendida quando
compreendem-se três questões fundamentais: O que é escrever?; Por quê
escrever?; Para quem escrever?
Sartre define o fazer literário, o escrever como um “desnudamento” que
revela o escritor para o mundo e este para o escritor. Há que se considerar que
o fazer literário é uma constante epifania do escritor para o mundo, do mundo
para o escritor, do escritor para os leitores e dos leitores para si mesmos como
homens em sua essência. É essa revelação proporcionada pela escritura que
será a principal razão pela qual o escritor se debruçará sobre seu ofício. Quem
escreve tem por finalidade revelar algo, criar significados para a realidade. A
realidade continuará existindo independente do trabalho do escritor, mas este a
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recria, deslocando muito da realidade factual para a realidade ficcional. Dessa


forma, escreve-se para que o outro (o leitor) possa compartilhar esse fazer
literário e que por meio da revelação da escritura, ele possa transformar o
mundo e sua própria realidade. Assim, a realidade criada na literatura tem
como objetivo ser exibida no mundo real como forma de transformar as
estruturas sociais e políticas da sociedade.
É, portanto, a literatura uma manifestação artística feita pelo homem e
para o homem e fonte reveladora capaz de transformar a sociedade; é por
meio dela que diversos temas que fazem parte da realidade factual são
discutidos. De acordo com Mikhail Bakhtin, citado por Márcia Viana de Lima e
Silva em A gênese em Incidente em Antares (2000):

...qualquer elaboração discursiva é, ao mesmo tempo, individual e


social. Para a criação literária, por exemplo, operam os mecanismos
pessoais e coletivos, com os quais o autor cria um discurso em que
aparecem a palavra do eu e a do outro, colocando a nu as relações
sociais através das marcas lingüísticas. (p.41)

Segundo Bakhtin, nenhum texto ou discurso é constituído isoladamente,


mas sim a partir de outros: é o individual e o social que se mesclam para a
construção do novo. É essa relação entre o escritor (eu) e o leitor (outro) que
possibilitarão o que Bakhtin chamará de “dialogismo” e “polifonia”, questões
fundamentais na gênese literária. O dialogismo é o ato de comunicação verbal
em si. Para que um diálogo aconteça, não é necessário que um locutor e um
interlocutor estejam frente a frente, ou que produzam comunicação verbal em
voz alta, mas o diálogo pode ocorrer por meio da palavra escrita, da literatura
(escritor/personagem/leitor). Essa troca entre autor e leitor é que constitui o
diálogo dentro da obra literária e é por meio dessa troca que a obra se
perpetua, pois o diálogo que cada leitor terá com uma mesma obra será
sempre diferente e particular:

... A seleção lingüística do autor manifesta sua consciência


individual, sua visão de mundo, seu posicionamento ideológico, mas
igualmente o dos outros membros do corpo social a que pertence, já
que toda palavra é carregada de intencionalidade relacional. (ibid, p.
43-44).
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Podemos considerar o leitor como um co-autor da obra literária a partir


do momento em que este estabelece um diálogo entre a obra e a sociedade
em que está inserido. É por meio dessa “consciência individual” do autor que o
leitor tem condições de articular as suas idéias com as do autor e, assim,
garantir a existência da literatura enquanto instrumento transformador da
sociedade. A literatura só se constrói quando existe essa cooperação entre
leitor e autor em um processo de produção, recepção (ou co-produção) e
disseminação do texto.
A polifonia, por sua vez, define-se como as vozes polêmicas que estão
inseridas dentro do discurso. O dialogismo mantém-se no nível da linguagem
enquanto a polifonia encontra-se no do discurso. Serão essas vozes as
responsáveis pela efetivação do diálogo entre escritor e obra, entre o individual
e o social, entre homem e literatura.
Esse processo de “desnudamento” do escritor e das relações sociais
que Sartre menciona e Bakhtin sugere serão fundamentos inprescindíveis na
gênese da literatura e na integração desta com o homem. Márcia Viana de
Lima e Silva aborda essa questão quando propõe que:

... A palavra possui ubiqüidade social, pois penetra literalmente em


todas as relações entre indivíduos. Ela é o material intermediário no
qual as pessoas interagem em sociedade e indica com maior grau de
sensibilidade as transformações sociais. (ibid, p. 42)

Portanto, a palavra não é apenas matéria concreta justaposta em


algumas páginas, mas é constituinte de identidade, é construtora de sentidos, é
instrumento de interação entre homem e sociedade. É por meio desse caráter
transformador da palavra que a literatura pode ser considerada veículo pelo
qual o homem dialoga com o meio em que vive. A partir do momento em que
ele dá vida e cria significados para aquilo que lê, estabelece a interação entre
texto e mundo, entre o particular e o coletivo, entre literatura e sociedade.

1.1 A presença da Sociologia na Literatura

Para que entendamos melhor a questão social da literatura, é pertinente


abordar algumas questões referentes à sociologia e verificar como esta se
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manifesta na literatura. A sociologia vem auxiliar-nos a explicar a vida social,


atendendo a uma necessidade que surgiu após o desenvolvimento das
ciências naturais e sociais. Podemos pontuar historicamente o seu
aparecimento no período de transição entre a decadência da sociedade feudal
e a consolidação da sociedade capitalista (século XVII). Nessa época,
começou a haver uma preocupação em discutir o novo momento econômico,
político e cultural pelo qual o mundo estava passando e que refletia na
sociedade. Com as revoluções industrial e francesa, que consolidaram de vez o
capitalismo, a classe proletária marcou território firmando o seu papel histórico
de classe atuante dentro da sociedade. Houve, então, a necessidade de
discutir as questões sociais em uma instância bastante significativa como forma
de resposta às novas condições que a sociedade apresentava, como a
situação social dos trabalhadores, sua condição de trabalho, o surgimento das
cidades industriais, divisão de classes, direitos políticos.
Buscando essas respostas é que a sociologia na literatura apresenta um
papel importante: verificar o caráter social transformador por entre as linhas. Há
que se ler mais do que está escrito, parafraseando Luis de Camões. É de
fundamental importância que entendamos a realidade econômica, política e
social em que vivemos para que possamos mais do que ler, dialogar com o
texto literário. É por meio desse diálogo que a literatura transforma-se em um
elemento de mudança e não apenas de denúncia. A denúncia é passiva a partir
do momento em que não se faz nada para que ela tenha potência e rompa os
limites da palavra, configurando-se em ações transformadoras na sociedade.
Discutimos, mesmo que brevemente, sobre a atuação assaz importante
da sociologia na literatura. A seguir, cabe-nos verificar qual o papel da política
(objeto de estudo de nosso trabalho) no fazer literário. Como a própria
Sociologia afirma, não é possível dissociar fatores da sociedade factual com os
da produção literária.

1.2 Política e Arte

Com referência à política, esta mantém uma relação polêmica com a


literatura. Quando pensamos em política, logo nos vêm à mente organizações
partidárias específicas, ideologias com caráter massificante, idéia de persuadir
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o interlocutor a todo custo. De fato, levando em conta essa concepção de


política, nada mais natural pensar que, na literatura, ela se comporte como um
veneno que coloca o escritor em fôrmas específicas de acordo com os dogmas
que possa vir a ter como corretos e imutáveis.
Há, portanto, que tomar outra concepção de política para podermos
entendê-la na literatura. Segundo Hanna Arendt, “o sentido da política é a
liberdade” (1999, p.38), uma liberdade de ser do indivíduo que permite que este
expresse suas idéias, manifeste suas vontades e lute por seus ideais. Falamos
de política como engajamento, como condição inerente ao homem, já que
ninguém é totalmente apolítico, porque mesmo os que tomam essa posição
têm como princípio uma ideologia política para pensar dessa forma. O escritor
que se refugia em sua “torre de marfim” não está imune às transformações
políticas da sociedade, principalmente em situações de crise que o afetarão
direta ou indiretamente, já que a literatura é influenciada pela sociedade. O
escritor não consegue excluir totalmente de seu discurso traços que exponham
sua visão de mundo, retratando, mesmo que inconscientemente, a sociedade
na qual está inserido. Segundo Daniel Fresnot, em O Pensamento Político de
Érico Veríssimo, o escritor deve ser “um político para seres humanos, e não
para esquemas preestabelecidos.” (1977, p.84) É partindo dessa concepção e
de que o escritor não pode fugir de sua realidade que a literatura será veículo
de difusão política.
Se olharmos para a história política do Brasil, veremos que ela foi
determinante na produção artística do país. No final da década de 1930 e início
da de 1940, para estreitar os laços entre Brasil e Estados Unidos, com a
chamada “Política da Boa Vizinhança”, a cantora e atriz Carmen Miranda foi
usada como intrumento para unir as duas nações que faziam acordos políticos
para unificar as Américas enquanto a Europa enfrentava a segunda grande
guerra:

Carmen Miranda foi nossa primeira e única estrela a brilhar em


Hollywood [...] sua viagem aos EUA (no momento em que o prólogo
da II Guerra já estava destinado a colocar definitivamente o Brasil no
âmbito das influências sócio-econômicas dos EUA) deu início ao
ciclo das excursões de artistas brasileiros àquele país, numa
campanha de propaganda preparatória à ‘Política da Boa
Vizinhança’, do Presidente Roosevelt. A campanha predispunha o
espírito do povo norte-americano a aceitar e curtir as novidades do
Terceiro Mundo: terras desconhecidas e exóticas, com coqueirais,
17

bananeiras, abacaxis, balangandãs, pois o presidente desejava


adesão total dos latino-americanos, único mercado potencialmente
forte que a guerra deixou disponível ao país. (SAIA, 1984, p.7-8)

No final da década de 1950 e início da de 1960, a Bossa Nova surgiu em


consonância com o espírito de modernidade que Juscelino Kubitschek
pretendia imprimir ao país nessa época – “o sonho da modernidade brasileira
tinha encontrado a sua trilha sonora” (NAPOLITANO, 2004, p.32). “Bossa
Nova” tornou-se uma expressão popular que se relacionava a tudo o que fosse
novo e moderno: “havia automóvel bossa-nova, geladeira bossa-nova, moda
bossa-nova e até o presidente [...] passou a ser chamado de presidente bossa-
nova.” (ibid, 2004, p.30) O menestrel do Brasil, Juca Chaves, imbuído dessa
atmosfera bossa novista, compôs a canção Presidente Bossa Nova, que foi
grande sucesso nos anos 1960, cujo foco principal era satirizar o espírito de
modernidade do presidente Juscelino Kubitschek, que inebriou o país nessa
época. A canção traduz bem o clima do governo de JK como contraponto entre
os governos de Getúlio Vargas que culminou no seu suicídio, e de Jânio
Quadros que saiu do poder por meio de uma tresloucada renúncia:

Bossa Nova mesmo é ser presidente/ Desta terra descoberta por


Cabral./ Para tanto basta ser tão simplesmente/ Simpático, risonho,
original./ E depois desfrutar da maravilha/ De ser o presidente do
Brasil./ Voar da Velhacap pra Brasília,/ Ver a alvorada e voar de volta
ao Rio.// Voar, voar, voar/ Voar, voar pra bem distante/ Até
Versailles, onde duas mineirinhas,/ Valsinhas dançam como
debutantes/ Interessante.// Mandar parente a jato pro dentista
Almoçar com tenista campeã/ Também poder ser um bom artista,
Exclusivista,/ Tomando com o Dilermando/ Umas aulinhas de violão.
Isso é viver como se aprova/ É ser um presidente Bossa Nova,/
Bossa Nova, muito nova/ Nova mesmo, ultranova! (Disponível em:
<http://letras.terra.com.br/juca-chaves/370096/>)

A letra de Presidente Bossa Nova satiriza a maneira risonha e sempre


simpática com a qual Juscelino Kubitschek comportava-se. Juca Chaves critica
as viagens freqüentes do presidente, do Rio de Janeiro (capital do Brasil, na
época – a Velhacap) à futura capital, Brasília (Novacap), que foi construída em
um local totalmente desconhecido para a maioria dos brasileiros, elevando-a,
de um momento ao outro, à capital do país. A canção faz uma crítica bastante
evidente com relação ao uso de dinheiro público para suprir necessidades de
familiares do presidente – “mandar parente a jato pro dentista” – apesar de
toda a confiança que ele tentava transparecer por meio de sua simpatia e
18

carisma. O marketing que Juscelino Kubitschek fazia para mostrar-se


sintonizado com o Brasil que estava em processo de modernização acelerada
também é mostrado na canção quando Juca Chaves sugere o almoço do
presidente Juscelino com Maria Esther Bueno, tenista campeã do torneio de
Wimbledon, na Inglaterra, em 1959; com as aulas de violão que tinha, para
acompanhar a modernidade musical que chegava com a Bossa Nova, com o
violonista Dilermando Reis (também professor de sua filha, Maristela
Kubitschek) e que, em razão da amizade com o presidente, compôs a primeira
canção em homenagem à nova capital do Brasil, em parceria com José
Fortuna, intitulada Sob o Céu de Brasília.
Em 1964, com o Golpe Militar, “a cultura passou a ser supervalorizada,
até porque, bem ou mal, era um dos únicos espaços de atuação da esquerda
politicamente derrotada” (ibid, 2004, p.49). Com a tomada do poder pelos
militares, as manifestações artísticas como um todo uniram-se em prol da
liberdade de expressão, indo contra a censura artística imposta pelos militares.
O que fosse considerado subversivo às leis do governo era banido e sofria
conseqüências. Daí o surgimento de espetáculos como o Opinião, escrito por
Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, que teve como
protagonistas Nara Leão (substituída por Maria Bethânia, em 1965), Zé Keti e
João do Vale, que estreou em 11 de dezembro de 1964, e “...destacou-se por
ter assumido a necessidade de se colocar os problemas socioculturais do país
numa perspectiva mais popular que ‘nacional’ [...]” (ibid, 2004, p.52); Arena
conta Zumbi e Liberdade, liberdade, que seguiam a mesma proposta
contestadora. O grito de liberdade dos artistas manifestava-se por meio das
músicas nos espetáculos teatrais, como fica explícito no programa-manifesto
do espetáculo Opinião: “A música popular é tanto mais expressiva quando tem
uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e
valores necessários para a evolução social.” (ibid, 2004, p.50), como também
nos Festivais da Canção que ocorreram no final de década de 1960,
submetendo as canções concorrentes à fiscalização de uma equipe do governo
para analisar o conteúdo da letra e verificar se esta não continha nenhum
indício que fosse contra os princípios vigentes. Nessa época, “consagrou-se o
termo Música Popular Brasileira (MPB), sigla que se tornou sinônimo de música
comprometida com a realidade brasileira, crítica ao regime militar [...]” (ibid,
19

2004, p.57). A cantora Cynara Faria, integrante do grupo vocal Quarteto em Cy,
que participou ativamente da difusão da MPB nesse período, relatou-nos, em
entrevista exclusiva realizada em 23/04/2008, como a censura tolheu a
liberdade de expressão dos artistas da época:

Numa das vezes, fomos até Brasília para pedir pro Ministro da
Justiça (da época) Armando Falcão, que nos liberasse para fazer o
programa do Chacrinha, na Globo, pois fomos proibidas de atuar no
programa dele por sermos amigas do Chico [Buarque] e, na época,
estarmos com o sucesso Pedro Pedreiro [canção de autoria de Chico
Buarque] nas paradas. O tal do Ministro nos fez voltar pro Rio e fazer
uma carta pro Ministério nos explicando e dizendo que não éramos
subversivas [...] Só para lembrar também, a nossa gravação de
“Tamandaré”, do Chico [Buarque], no comecinho da carreira, em
1966, foi proibida e só em 1991, no CD Chico em Cy nós pudemos
resgatá-la.

Cynara ainda revela como os artistas faziam para expressar o seu desgosto em
relação à repressão militar não usando palavras, pois eram proibidos, mas
utilizando-se de outros artifícios:

Em outra ocasião, fomos proibidas de cantar “O Ronco da Cuíca” de


[João] Bosco e [Aldir] Blanc, no nosso show Resistindo, em 1976,
literalmente proibidas. Aí, na hora que tínhamos de cantar a música,
nós virávamos as costas pro público e cruzávamos os braços para
trás, como se estivéssemos algemadas. A banda tocava a música
sem a letra e o público veio abaixo de tanto aplaudir.

Na literatura não foi diferente. Feliz Ano Novo (lançado em 1975), de Rubem
Fonseca, por exemplo, teve sua publicação e circulação proibidas pelo
Departamento da Polícia Federal, por ter sido considerado um livro que
continha cenas pornográficas e de violência.
Por esses exemplos que acabamos de apresentar, fica clara a presença
da política nas artes e na maneira de pensar de toda uma sociedade. É,
portanto, imprescindível considerar a política como parte integrante e
fundamental para a concepção da literatura. Política e sociologia, juntas,
funcionam como estruturas sólidas para a criação de uma realidade ficcional
comprometida com a factual.

1.3 Recursos literários


20

Segundo Mikhail Bakhtin, citado por Maria Ivana de Lima e Silva em A


gênese de Incidente em Antares, toda a realidade vivenciada pelo autor revela-
se nas entrelinhas do seu próprio discurso, intencionalmente ou não: “... o
escritor se vale do contexto social e político em que está submerso e coloca,
dentro de seu texto, os discursos que o cercam, [...]” (BAKHTIN apud SILVA,
2000, p. 52-53).
A partir desse momento, podemos explicitar alguns recursos que os
escritores utilizam para a criação de uma realidade ficcional (suprarealidade),
tendo como ponto de partida a sua realidade factual.
O intertexto ou intertextualidade (conceito estabelecido por Julia Kristeva
nos anos 1960, baseado em estudos de Mikhail Bakhtin) é um desses
recursos. Como o próprio termo sugere, a intertextualidade refere-se à relação
entre textos - grande tecido de significações que unem o homem e o texto em
si. Podemos considerar que o intertexto é um aspecto inerente ao homem, já
que este (direta ou indiretamente) utiliza o que já foi criado para que possa
produzir a sua própria obra. O intertexto funciona como uma espécie de “troca
de olhares” entre texto e leitor a partir do momento em que a significação do
texto dar-se-á se o leitor perceber e compreender as pistas que o texto
apresenta para essa produção de sentidos. Reiteramos aqui a idéia discutida
anteriormente em relação ao leitor como sendo participante do texto literário,
como um co-autor. O leitor é participante ativo no processo de significação do
texto tanto quanto o autor. Kristeva, que divulgou os estudos de Bakhtin sobre
intertextualidade, propõe que o texto é um “mosaico de citações”, é um
enredado polifônico de vozes escondidas que devem ser desvendadas pelo
leitor.
Para exemplificar o conceito de intertextualidade, utilizaremos trechos da
primeira quintilha do poema pertencente à lírica camoniana Sôbolos Rios, que
dialoga com o salmo 136, Super flumina Babylonis identificados no texto
Sôbolos Rios: uma estética arquitectónica (sic) (1980), de Maria Vitalina Leal de
Matos: “Sôbolos Rios: ‘Sôbolos rios que vão/ por Babilónia, me achei,/ Onde
sentado chorei/ as lembranças de Sião/ e quanto nela passei.’ Super flumina
Babylonis: ‘Junto dos rios de Babilônia,/ ali nos assentamos a chorar,
/lembrando-nos de Sião.’” (MATOS, 1980, p.31) É evidente que Camões
utilizou o salmo 136 como glosa para seu poema, pois no salmo, os judeus que
21

saíram da Babilônia choram, à margem dos rios da Babilônia, por lembrar da


sua terra de origem enquanto que no poema camoniano, a voz poética chora, à
margem de um rio, pelo tempo passado e o seu mal presente.
A intertextualidade dá-se também por meio de paráfrases e paródias,
conceitos opostos que revelam as vozes intertextuais. O termo paródia,
segundo Affonso Romano de Sant’Anna em Paródia, Paráfrase & Cia (2003),
vem do grego para-ode que “significa uma ode que perverte o sentido de outra
ode” e “se define através de um jogo intertextual.” (p.12) Já a paráfrase, do
grego para-phrasis significa “continuidade ou repetição de um sentença.”
(p.17). Portanto, a paródia tem como objetivo dar novos sentidos a um sentido
já estabelecido, de forma que este primeiro corrompe o segundo. Para ficar
mais clara esta idéia, tomemos como texto original a primeira estrofe da
Canção do Exílio de Gonçalves Dias (1847): “Minha terra tem palmeiras/ Onde
canta o sabiá,/ As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá.” (DIAS,
1950, p.65). O sentido que Gonçalves Dias imprime em seus versos serão
pervertidos por Oswald de Andrade em Canto de regresso à pátria (escrito na
metade do século XX): “Minha terra tem palmares/ onde gorjeia o mar/ os
passarinhos daqui/ não cantam como os de lá.” (ANDRADE, 1966, p.130) O
deslocamento de sentidos é bastante evidente, já que no texto de Gonçalves
Dias existe a intencionalidade da exaltação da pátria da qual a voz poética
sente saudades por estar exilado. Já na paródia de Oswald de Andrade, o
sentido modifica-se adaptando-se às propostas modernistas de contrariar a
estética tradicional, por isso os “passarinhos daqui” (os modernistas) “não
cantam como os de lá” (românticos, como Gonçalves Dias).
Ainda tendo como texto original a Canção do Exílio, explicitaremos o
conceito de paráfrase. Carlos Drummond de Andrade escreve o poema
Europa, França e Bahia, do qual utilizaremos a primeira estrofe: “Meus olhos
brasileiros se fecham saudosos/ Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’./
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?/ Eu tão esquecido de minha terra.../ Ai
terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!” (ANDRADE, 2000, p.20) Como é
possível verificar, Drummond retoma os versos de Gonçalves Dias tal qual eles
são, sem dar novo sentido a eles, ao contrário de Oswald.
Outro conceito relativo à intertextualidade é a intratextualidade ou
“autotextualidade”, como nomeia Affonso Romano de Sant’Anna. A
22

intratextualidade acontece “quando o poeta se reescreve a si mesmo. Ele se


apropria de si mesmo, parafrasicamente.” (SANT’ANNA, 2003, p.62) Na
intratextualidade há um “cruzamento de textos” do mesmo autor como uma
espécie de recorte que ele próprio faz de suas obras com a finalidade de não
apenas estabelecer um diálogo entre elas, mas de inseri-las em um contexto
diverso. A intratextualidade pode ocorrer por meio da reescritura, de forma
parafrásica, de trecho de uma dada obra do mesmo autor e pode ocorrer
também por meio da retomada de personagens que são levadas a integrarem
uma outra realidade ficcional.
Para exemplificarmos a apropriação de si mesmo feita de forma
parafrásica pelo autor, aproximaremos dois poemas de Carlos Drummond de
Andrade. O primeiro, No meio do caminho, é retomado parafrasicamente pelo
segundo, Consideração do poema, como podemos verificar: “No meio do
caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma
pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.” (ANDRADE, 2000, p.34) e “Uma
pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não importa./ Estes poetas
são meus.” (ANDRADE, 2000, p.9) Fica evidente a retomada que Drummond
faz do poema No meio do caminho em Consideração do poema quando utiliza
o segundo verso “tinha uma pedra no meio do caminho” do primeiro poema no
início da segunda estrofe do segundo poema “uma pedra no meio do caminho”.
Não houve a intenção por parte do autor em alterar o sentido do verso, por isso
podemos considerar que ocorreu uma retomada parafrásica que constitui a
intratextualidade.
Outro caso de intratextualidade fica explícito ao aproximarmos dois
romances de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e
Quincas Borba (1891). A intratextualidade acontece por meio da personagem
Quincas Borba que, nos dois romances, aparece como um filósofo, criador da
teoria do Humanitismo, que ficou conhecida pela frase “ao vencedor as
batatas” – para que alguém sobreviva é preciso que haja sacrifício por parte de
outrem. O primeiro trecho que selecionamos é de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, em que o escritor póstumo, Brás Cubas, e Quincas Borba assistem a
uma briga de cães durante um passeio:
23

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de
um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e
observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um
osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção
para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples
osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos...
Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em
êxtase. [...] Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado
ao chão, e só continuou a andar quando a briga cessou inteiramente,
e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte.
(ASSIS, 1997, p.215)

O segundo trecho é de Quincas Borba, em que a personagem homônima


discorre sobre sua teoria humanitista em um outro contexto:

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas


apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire
forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há
batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividem em paz as
batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem
de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a
conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os
despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações,
recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.
Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a
dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que
lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma
pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido,
ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS, 1992, p.25-26)

Quincas Borba, portanto, é o elemento de intratextualidade entre os dois


romances já que Machado de Assis retoma a personagem sem modificar a sua
essência, de uma forma parafrásica.
É, portanto, esse diálogo entre os textos que acontece por meio da
intertextualidade que possibilita ao escritor dialogar consigo próprio e com o
leitor por meio da retomada de uma produção literária já estabelecida. É o
diálogo entre os textos que chama o leitor a imprimir também a sua voz dentro
do texto, fazendo assim que o leitor também tenha voz ativa para dialogar com
as demais vozes que aparecem dentro do texto.
Por outro lado, a verossimilhança pode ser definida, em linhas gerais,
como “aquilo que parece verdadeiro”, verossímil, estabelecendo uma relação
ambígua entre imagem e idéia. O conceito de verossimilhança foi estabelecido
por Aristóteles em seu livro Poética, que responsabiliza a verossimilhança pela
distinção entre a obra do poeta e do historiador. A verossimilhança não é o que
aconteceu, mas o que poderia acontecer, ou seja, o possível:
24

... Tanto na representação dos caracteres como no entrecho das


ações, importa procurar sempre a verossimilhança e a necessidade;
por isso, as palavras e os atos de uma personagem de certo caráter
devem justificar-se por sua verossimilhança e necessidade, tal como
nos mitos os sucessos de ação para ação. (ARISTÓTELES, p. 214).

Na literatura, a verossimilhança remete à idéia de que aquilo que está


sendo narrado assemelha-se à realidade, ou seja, a realidade ficcional aparece
tão bem retratada pelo autor da narrativa que, muitas vezes, confunde o leitor,
fazendo com que este se questione sobre o que está lendo. O texto torna-se
verossímil quando este questionamento vem à tona pelo leitor; a realidade
factual e ficcional misturam-se de tal forma que se torna quase impossível, em
uma leitura superficial, distingui-las na narrativa. A escolha das palavras para o
enriquecimento de um texto literário é primordial, mas o uso da verossimilhança
preenche as lacunas que estas palavras possam apresentar e fazem uma
referência do real no texto ficcional.
Seguindo os conceitos apresentados pela Teoria da Literatura, faremos
agora um avanço cronológico e iremos de Aristóteles a Mikhail Bakhtin para
abordarmos os conceitos de dialogismo e polifonia. Segundo Bakhtin, “o
diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das
formas, é verdade que uma das mais importantes, da interação verbal (...).”
(BAKHTIN, 1992, p. 123). O diálogo entre uma ou mais pessoas necessita da
interação verbal entre elas para que possa ocorrer. Este diálogo, interno ou
externo, escrito ou falado, acontece por meio do uso da linguagem. A ação que
ocorre entre os interlocutores apresenta-se sempre variável, independente do
local ou o tempo ocorrido, esse diálogo sempre apresentará variações de
contexto. Bakhtin define como dialogismo este processo de interação entre os
textos, já que o texto nunca é visto isoladamente, sempre há diálogos entre o
texto e o leitor e o texto e outros textos. Na visão bakhtiniana:

... a verdadeira substância da língua não é constituída por um


sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção,
mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações.(ibid, p. 123).

Apesar dos termos serem bem próximos, dialogismo e polifonia são dois
conceitos distintos que não devem ser confundidos. Sendo o primeiro o
25

princípio do diálogo entre interlocutores, o termo polifonia caracteriza-se por


vozes polêmicas em um discurso, onde cada personagem com sua ‘voz’
apresenta sua visão de mundo dentro do texto, com suas opiniões e ideais a
serem defendidos. Para Bakhtin, o gênero romance é polifônico por natureza,
por apresentar diferentes vozes que se chocam entre si, manifestando suas
diferentes idéias e suas diferentes concepções sobre a realidade na qual estão
inseridas. O vocábulo polifonia vem do grego e significa “muitas vozes”,
reforçando o conceito proposto por Bakhtin. O texto apresenta-se como um
emaranhado de vozes; cada qual defende seus propósitos mostrando ao leitor
suas visões de mundo e tentando persuadi-lo.
O diálogo apresenta-se por trás de uma única voz que se faz
predominante no texto, que dissimula as outras vozes. Na polifonia isto não
ocorre; cada voz surge em um momento adequado para expor sua concepção
de mundo sobre um determinado objeto.
Os conceitos de dialogismo e polifonia remetem a um outro que teve sua
gênese no âmbito musical, mas que foi adaptado à literatura: o contraponto. Na
música, o contraponto significa os vários tipos de sons que são executados ao
mesmo tempo, contrariando as regras de harmonia musical; na verdade, uma
polifonia musical. Na literatura, este termo foi usado, pela primeira vez por
Aldous Huxley, escritor inglês, que, em 1928, escreveu o livro Point
Counterpoint (Contraponto). A técnica do contraponto que Huxley explora em
seu livro consiste em contar histórias que ocorrem paralelamente e que podem
ou não se cruzar, como define o escritor Philip Quarles, personagem de
Contraponto: “O que precisamos é de um número suficiente de personagens e
intrigas paralelas, contrapontísticas.” (HUXLEY, 1971, p.302). Em seu livro,
Huxley justapõe as situações vividas por personagens diferentes, fazendo com
que cada história aconteça simultaneamente. Em Contraponto, a técnica
homônima desenvolve-se por meio das sensações das personagens que
pertencem à classe aristocrática em relação à falência das instituições sociais –
casamento, família, religião, etc. – no período entre as duas grandes guerras.
Além disso, os conflitos existenciais agravam-se no romance, pois as
personagens vivem um momento de crescimento tecnológico e intelectual
excessivos, que passam a ser inúteis já que esse avanço inviabiliza as
relações interpessoais e deixa de lado os valores humanos nas sociedades.
26

Philip Quarles e Mark Hampion, personagens do livro de Huxley, mostram essa


preocupação em relação ao momento de transformação em que vivem,
evidenciando a técnica do contraponto, já que têm pensamentos parecidos,
mas vivem histórias diferentes:

... Philip acreditava realmente na selvageria nobre; convencia-se de


que o intelecto orgulhosamente consciente devia humilhar-se um
pouco e admitir as reivindicações do coração - sim, e das entranhas,
dos rins, dos ossos, da pele e dos músculos - a uma parte razoável
da vida. O coração de novo! (HUXLEY, 1971, p.201)

Rampion queixou-se a mim de que ambos os filhos tinham a paixão


das máquinas – autos, trens, aviões, rádios.
- É contagioso, como a varicela. O amor da morte anda no ar. Eles o
respiram, ficam contaminados. Tento persuadi-los a amar outra
coisa. Mas eles não querem ouvir nada. A mecânica é a única coisa
que os seduz. [...] Dir-se-ia que os moços estão absolutamente
determinados a levar o mundo para um fim – a mecanizá-lo primeiro
até a loucura e depois até o assassínio puro e simples. [...] é
terrivelmente humilhante que os seres humanos tenham dessa
maneira semeado a desorganização por toda a parte. (ibid, p.325)

Outro recurso muito empregado na literatura é a ironia, que de acordo


com Beth Brait contém:

... traços que reiteram a ambivalência de significação, a dupla


isotopia 1 , a confluência enunciativa, enfim a maneira de um discurso
lidar com outros para colocá-los em evidência. (BRAIT, 1996, p.
107).

Este conceito que basicamente consiste em dizer o contrário do que se pensa,


é uma ferramenta que trabalha por diferentes prismas, podendo denunciar,
satirizar, criticar ou censurar fatos, atitudes ou até mesmo pessoas. Um
exemplo de ironia fica evidente no poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira
onde o enunciado afirma um tipo de fazer poético e a enunciação nega:

... O sapo-tanoeiro 2 ,/Parnasiano aguado,/Diz: - "Meu cancioneiro/É


bem martelado./Vede como primo/Em comer os hiatos!/Que arte! E
nunca rimo/Os termos cognatos./O meu verso é bom/Frumento 3 sem
joio 4 ./Faço rimas com/Consoantes de apoio./Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:/Reduzi sem danos/As formas a forma./Clame

1
Isotopia é uma propriedade que têm os enunciados de serem substituídos por equivalentes no plano do
conteúdo, embora sejam diferentes no plano da expressão.
2
O que faz ou conserta vasilhas de aduela (barris, cubas, pipas, etc.).
3
A melhor espécie de trigo.
4
Planta gramínea que nasce entre o trigo e o danifica, no sentido figurado: coisa de má qualidade que
prejudica as que são boas.
27

a saparia/Em críticas céticas: /Não há mais poesia,/Mas há artes


poéticas...” (BANDEIRA, 1993, p. 80);

A ironia é uma constante neste poema, pois critica a poesia parnasiana e o seu
fazer poético. A própria metáfora da figura dos sapos remete a um humor
irônico, denunciador e proposital. Manuel Bandeira chama de sapos os poetas
parnasianos que somente aceitavam a poesia rimada, formal, como os
sonetos. Bandeira ironiza as reclamações dos parnasianos comparando-as
com o coaxar dos sapos no rio. Todo o poema é uma crítica aos conceitos do
parnasianismo que vigorou nas décadas finais do século XIX e no início do XX.
Outro recurso aplicado à Teoria da Literatura refere-se a construção da
personagem. Esta, por sua vez, é de caráter fundamental em muitos textos,
porque é por meio dela que alguns autores chegam à essência de sua
narrativa. A proximidade entre os seres humanos e as personagens fictícias é
enorme fazendo com que estas tornem-se quase reais. Para Antonio Candido:

A personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode


combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número
é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços
humanos que pululam 5 , a cada instante, no modo-de-ser das
pessoas. (CANDIDO, 1968, p.59-60).

Em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, pode-se notar esta perspicácia de


que fala Antonio Cândido. O cortiço é o protagonista da trama, é o lugar onde
vivem muitas personagens com suas histórias, retratando uma visão coletiva
da época. O autor traça um painel sobre a sordidez e os vícios humanos. São
as minúcias das personagens que fazem com que o leitor identifique o
momento e entenda suas ações.

... A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma


quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um
velho cego, residente em Juiz de Fora e amigada com um português
que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. (AZEVEDO,
1999, p. 13).

... Comprou-a um tal de Miranda, negociante português, estabelecido


na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida
uma limpeza geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família,
pois que a mulher, D. Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de

5
Multiplicam, germinam.
28

nobreza, já não podia suportar a residência no centro da cidade,


como também a sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e
precisava de largueza para enrijar e tomar corpo. (ibid, p. 16).

Antonio Candido ainda enfatiza a questão da proximidade com o ser


humano, causando no leitor uma ambivalência entre o factual e o ficcional:

... a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como


um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter
certas relações com a realidade do mundo, participando de um
universo de ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que
conhecemos na vida. (CANDIDO, 1968, p. 64-65).

Estes recursos apresentados são freqüentemente empregados por


muitos escritores da nossa literatura. Vamos nos ater, contudo, ao romance
Incidente em Antares, de Erico Verissimo, para verificar como podem
estabelecer intersecções entre a realidade e a ficção, estabelecendo maior
atenção à questão histórica e política da narrativa verissiana.
29

CAPÍTULO 2: O ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES

... alguém em sã razão acredita que sete defuntos podem erguer-se


de seus esquifes e descer para a praça principal de sua cidade e
instalar-se num coreto para dali discutir suas diferenças com os
vivos? Pois isso aconteceu na cidade de Antares. Na sexta-feira 13
de dezembro de 1963. Palavra de honra!

Erico Verissimo

Convidado a escrever a sinopse de Incidente em Antares para a primeira


publicação do livro pela Editora Globo, em 1971, Erico Verissimo jocosamente
rejeitou o convite dizendo que era melhor não fazê-lo a aceitar o desafio e
arruinar a publicação como fez um tradutor, segundo anedota popular, que ao
traduzir uma novela policial deu-lhe o título de “Misterioso Crime Cujo Culpado
Foi o Próprio Mordomo”.
Incidente em Antares pode ser visto como um dos livros mais diferentes
e por que não dizer “estranhos” de toda a sua obra. Considerado um romance
político, Incidente em Antares assume um papel crítico dentro do momento
histórico em que o Brasil atravessava: a ditadura militar. E agregada à ditadura,
a censura era determinante no seu trabalho de calar toda e qualquer
manifestação artística que fosse contra os dogmas do governo, como
verificamos no capítulo anterior. Não podemos deixar de registrar que depois
de dois meses do lançamento do livro, este foi censurado e recolhido das
livrarias. Mas como o próprio Erico disse quando Incidente em Antares foi
publicado “... abri a veia da sátira e deixei seu sangue escorrer livre e
abundantemente.”
A pequena e imaginária cidade gaúcha de Antares, localizada às
margens do Rio Uruguai e ao norte de São Borja – mais precisamente na
fronteira do Brasil com a Argentina - carrega o nome da estrela da constelação
de Escorpião, mas seus primeiros habitantes não sabiam se de fato a cidade
recebera esse nome por causa da estrela ou porque era o lugar onde existiam
muitas antas. A primeira parte do livro, denominada “Antares”, apresenta,
30

então, todo esse cenário histórico, político e social de Antares, seus costumes,
crenças, mentiras e verdades que preparam o ambiente para o fatídico
episódio de 13 de dezembro de 1963.
A narrativa tem seu início na Era Pré-Histórica da região, com seus
gliptodontes 6 e megatérios 7 fossilizados. Mas para trazer à tona as origens da
formação social de Antares, a narrativa avança um milhão de anos, chegando
ao século XIX, especificamente a 1831. O leitor é convidado a conhecer as
duas famílias que detêm e disputam o poder político, social e econômico
antarense durante cerca de setenta anos: Vacarianos e Campolargos. Serão os
descendentes dessas duas oligarquias antarenses os protagonistas e
coadjuvantes do macabro incidente. A guerra entre estes dois clãs permeia
todo o romance e funciona como uma grande metáfora dos entraves entre os
partidos liberal e conservador que travaram grandes conflitos no Brasil,
principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Erico escreve sobre as oscilações
ocorridas no sistema político do país, sem perder o viés ficcional de seu texto:

Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o


Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, até
então um tanto indiferente em matéria de política, tratasse de
organizar o Partido Liberal. Assim, Antares passou a ter dois
senhores igualmente poderosos. (Incidente em Antares, p.11)

Erico Verissimo utiliza em sua narrativa fatos reais e os entrelaça com a


ficção para dar veracidade ao seu texto. A narrativa lembra o gênero novela,
principalmente nesta primeira parte, já que há a narração de um século de
existência antes do trágico incidente e essa narração funciona como
valorização para um evento principal, no caso o incidente.
A segunda parte, intitulada “O Incidente”, que é menor
cronologicamente, mas maior em número de páginas, conta o que de fato
aconteceu no dia do “incidente” (e suas conseqüências) depois que os coveiros
da cidade, que estavam em greve, recusaram-se a sepultar sete mortos. A
partir deste acontecimento, os problemas de Antares são discutidos de forma

6
“...animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de
tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa [...] afora o formidável rabo à feição de tacape riçado
de espigões pontiagudos.” (VERISSIMO, 1971, p.1)
7
Assemelham-se aos gliptodontes. São da família dos mamíferos, desdentados e de porte grande. Fósseis
encontrados nas Américas, principalmente na do Sul.
31

direta e a verdadeira identidade de seus personagens é revelada como no fim


de um baile de máscaras. O “incidente” revela toda uma sociedade por trás do
que pode ser visto, ou seja, Erico Verissimo denuncia uma sociedade auxiliado
pelo recurso do fantástico. O toque sobrenatural dado à trama confere à
narrativa um tom particular e bastante perspicaz, já que é por meio dele que as
personagens ganham liberdade para criticar a sociedade hipócrita em que
vivem.
Incidente em Antares possui um caráter panorâmico que conta com uma
vasta vitrine de tipos simbólicos, inclusive a própria cidade de Antares.
Panorâmico porque por meio da dinâmica da cidade, de sua sociedade,
conceitos, valores e tradições, vemos uma espécie de maquete representativa
do Brasil. Vários assuntos, temas e problemas discutidos dentro do
microcosmo que Antares representa são os mesmos que o macrocosmo, no
caso o país, enfrentava na época em que o livro foi lançado, sendo difícil
distinguir, muitas vezes, se estamos diante de uma realidade ficcional ou
factual. Tanto é que Erico Verissimo, em nota que abre o livro, adverte:

Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem


disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os
lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos
seus nomes verdadeiros.

Dessa forma, Incidente em Antares é um convite à reflexão sobre o país


nas décadas de 1960-1970 e uma instigante provocação à sociedade
contemporânea que esconde sua verdadeira face por detrás da máscara das
convenções e conveniências. Basta o leitor aceitar o convite e despir-se por
completo de suas máscaras sociais diante das páginas reveladoras de Erico
Verissimo.

2.1 Os recursos literários na relação entre realidade e ficção em


Incidente em Antares

Observa Lygia Fagundes Telles em O Contador de Histórias (1978) que:

O bom romancista é ao mesmo tempo um anjo e um cavalão,


trabalha com as asas (as coisas mais finas, mais espirituais, mais
belas) e com as patas, isto é, o trabalho braçal, a resistência física e,
32

[...] a paciência cavalar. Mas confio acima de tudo no instinto. Que o


anjo trabalhe montado no cavalo. E que no fim desapareça de todo a
marca das patas e fique apenas a luz das asas. (p.21)

O romancista, em outras palavras, é como um artesão que, ao mesmo


tempo em que trabalha com a matéria bruta, lança mão de toda a sua
capacidade artística para imprimir em sua obra a delicadeza e poesia de seu
talento. Erico Verissimo pode ser considerado esse romancista-artesão, já que
por meio dos instrumentos que a literatura lhe apresentava pôde montar em
seu cavalo – como bom gaúcho – e construir seus textos.
Incidente em Antares foi concebido por um Erico Verissimo montado no
cavalo da tradição de seu povo, carregado de historicidade e de luta por
expressão em uma época em que esta era considerada ultraje diante das
políticas vigentes. Mas, mesmo assim, contrariando seu tempo e impulsionado
pelos ventos de seu compromisso literário, o escritor usou traços mais firmes
para questionar o momento em que vivia:

... em Incidente em Antares procurei fazer uma crítica à


nossa sociedade burguesa contemporânea. Em outros livros eu
tentara o mesmo, mas timidamente, usando o lápis em traços leves.
No romance que estamos comentando, recorri à tinta nanquim. Tive
por vezes de segurar o satirista que me habita, para que ele não
cometesse excessos que poderiam transformar o Incidente num
panfleto de caráter primário. Sim, trata-se, sem a menor dúvida, de
um livro de natureza política, econômica e social. Confesso que
escrevi esse livro ‘macabro’ com grande prazer. É um dos meus
romances prediletos. (FURLAN, 1977, p.56)

Foi com essa tinta nanquim que Erico Verissimo desenhou uma cidade,
até então desconhecida de seu público, que tem na etimologia de seu nome o
que podemos chamar de “destino traçado”:

... a palavra ‘Antares’ é de etimologia grega e compõe-se do prefixo


‘anti’, contra, e ‘Ares’, guerra, batalha, assassinato, destruição,
peste. ‘Ares’ é o nome mitológico que os gregos davam ao deus da
guerra, assim como os romanos lhe atribuíam o nome de ‘Marte’.”
(ibid, 1977, p.71)

Devemos atentar ao fato de que Antares é ao mesmo tempo cenário e


personagem já que será em sua praça principal que ocorrerá o incidente que
divulgará o seu nome para todo o mundo. O evento macabro que constitui o
33

incidente já está subentendido em parte do nome da cidade que significa peste,


destruição. Mas temos o prefixo anti-, negando essa carga de significação. Ou
seja, o nome da cidade gaúcha que Erico Verissimo criou, na verdade, tem
caráter pacificador a partir do momento em que Antares significa “anti-
guerra/batalha/destruição”. A narrativa, mesmo antes de iniciar-se, já mostra a
que veio, o que combate, o que critica. Para tal, o autor utiliza-se da ironia com
o intuito de denúncia, crítica e, em algumas partes, o próprio escárnio. A ironia
como recurso literário que está presente no nome da cidade faz-se presente a
partir do momento em que cumpre seu papel de “dizer [...] o contrário do que
se pensa ou do que se quer que se pense” (FONTANIER apud
MAINGUENEAU, 2001, p.94) Este recurso de caráter polifônico, que possibilita
ouvir outras vozes por trás de uma idéia, confere ao nome da cidade gaúcha a
possibilidade de evidenciarmos toda a ideologia por trás do romance. A
denúncia de um cenário de violência, da hipocrisia humana, das desigualdades
sociais, do falso moralismo são combatidos na trama sob o véu irônico que
cobre toda a narrativa. O ponto de partida para o desenvolvimento dessa ironia
dá-se justamente pelo nome da cidade e sua significação e, como veremos
mais à frente, por meio dos nomes das personagens e de suas falas.
Ainda sobre o nome “Antares”, fica registrado no romance que as
personagens não têm o conhecimento da etimologia do nome da cidade e,
portanto, desse “destino traçado” que o nome lhe confere. O Professor Martim
Francisco Terra, personagem de Incidente em Antares, docente ficcional da
Universidade do Rio Grande do Sul (U.R.G.S.) e autor do livro fictício sobre a
cidade de Antares Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira, escreve em seu
diário:

Antares. O nome me encanta e intriga. Como se explica que,


nesta região onde outrora foram as reduções jesuíticas, encontra-se
hoje uma cidade com nome de estrela e não de santo? Na opinião
do Pe. Gerôncio, o velho vigário da Matriz local, a denominação
deste lugar vem possivelmente de terem existido aqui antigamente
muitas antas, que vinham beber água no rio, e a semelhança entre o
nome deste lugar e o da estrela da constelação de Escorpião é pura
coincidência. A explicação não me convence. Acho que por aqui
passou ou aqui viveu há mais de cem anos alguém, talvez algum
estrangeiro, que tinha noções de astronomia.’ (Incidente em Antares,
p.149)
34

Dessa forma, as personagens desconhecem a verdadeira identidade da


cidade, como desconhecem também a verdadeira face dos habitantes de
Antares. Apesar de acharem que conhecem bem uns aos outros, os
antarenses não se conhecem a si próprios, já que não tiram as suas máscaras
sociais em nenhum momento. É preciso que um fato surpreendente (o
incidente) aconteça para que a verdadeira identidade da cidade e dos
antarenses seja revelada.
Antonio Cândido em Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história
literária (1985) comenta que para interpretar uma obra literária não se pode
permitir que haja a dissociação entre texto e contexto, entre fatores externos e
internos; deve existir a combinação entre esses elementos para que haja um
processo interpretativo pleno. Dessa forma, tendo como primeiro elemento
importante o significado do nome “Antares”, podemos verificar que o livro tem
caráter crítico a todo e qualquer tipo de violência. Logo no início de Incidente
em Antares, verificamos exatamente que uma das características principais do
gaúcho retratado na trama é o da violência e que esta passa de geração para
geração como um atributo hereditário:

... parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é


formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na
Argentina, aproveitando a confusão de tempos de desordens e lutas
intestinas no país vizinho. O guia me pediu discrição absoluta,
quanto a essas informações, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano é um
homem violento e vingativo. (Incidente em Antares, p.4)

O mesmo clima de violência que se apresenta em Incidente em Antares


mostra-se no momento em que o autor escreve o livro, final da década de 1960
e início da de 1970, em que o país passou por sucessivos regimes militares.
Ora, se a violência hereditária da população antarense, de certa forma, remete-
nos aos sucessivos regimes militares e seus esquemas de tortura, temos aí
uma voz dominante que aparece por meio do nome “Antares” combatendo
esse cenário. Erico aproveita este ambiente conflituoso e emprega, com mérito,
a ironia, partindo da escolha do nome da cidade “Antares”. Tendo o nome um
caráter ambíguo, Erico continua em seu trabalho selecionando os nomes de
suas personagens com o cunho de crítica social. Percebe-se, no decorrer do
romance, que os nomes escolhidos pelo autor não foram selecionados
35

aleatoriamente, todos apresentam uma explicação na sua etimologia ou até


mesmo na história e auxiliam na construção de suas características físicas,
psicológicas e sociais.
O texto, antes mesmo de seu início, simplesmente pelo título, já dialoga
com o leitor atento às minúcias que permearão toda a narrativa, como afirma
Wilson Martins no artigo Érico Veríssimo em Ciclos (1968) sobre a obra do
autor: “... uma obra cuja aparente simplicidade esconde maiores finuras [...]”. O
caráter dialógico do livro é intenso em toda a sua extensão. Vemos esse
recurso como a alavanca para que outros recursos literários possam
efetivamente manifestar-se.
Recorrendo à tinta nanquim, como confidenciou Erico Verissimo, o autor,
após esquematizar todo o cenário da cidade de Antares e dar ao leitor pistas
sobre os acontecimentos do povoado por meio da significação de seu nome,
prepara a caneta para construir as personagens da trama. As personagens de
Incidente em Antares, mais do que tipos humanos criados a partir de
estereótipos, são vozes distintas dentro de uma sociedade marcada pela
hipocrisia e convenções sociais. É por meio delas que o leitor pode dialogar
com o momento histórico em que estão inseridas e compreender melhor seus
papéis dentro da situação ficcional como uma forma de ligação entre texto e
contexto, entre o interno e o externo.
A construção das personagens de Incidente em Antares vai além do
conceito aristotélico de mimesis, por muitos traduzido como “imitação do real”:

...como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e


estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa
índole [...] necessariamente também sucederá que os poetas imitam
homens melhores, piores ou iguais a nós, como fazem os pintores.
(ARISTÓTELES, 1987, p.202)

Esta concepção de personagem que se baseava na mimesis foi


substituída por outro conceito que surgiu a partir da segunda metade do século
XVIII: “uma visão psicologizante que entende personagem como a
representação do universo psicológico de seu criador.” (BRAIT, 2002, p.37) A
isso, soma-se a nova forma de abordagem do romance que surgiu no mesmo
século: “...o romance entrega-se à análise das paixões e dos sentimentos
humanos, à sátira social e política e também a narrativas de intenções
36

filosóficas.” (ibid, p. 37) Assim sendo, a personagem passa de “imitação do


real” para recurso literário por meio do qual o escritor pode fazer uma análise e
uma crítica do momento em que vive. O século XX trouxe contribuições a essa
concepção de personagem do século XVIII, principalmente por György Lukács
e sua Teoria do Romance (1920), em que “... a personagem continua sujeita ao
modelo humano” (LUKÁCS apud BRAIT, 2002, p.39) e, dessa forma, está
sujeita também às influências das estruturas sociais.
É de fácil percepção o grande número de personagens nos romances de
Erico Verissimo, o mesmo ocorrendo em Incidente em Antares. Apesar de
muitas, vê-se que há uma primorosa construção em todas elas. Suas
características físicas e psicológicas, seus trajes e costumes e, principalmente
seus discursos são elaborados de tal forma que o leitor consegue visualizá-las.
Este trabalho de construção da personagem é fruto de uma literatura de
excelência.

No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida


pelo escritor que, delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a
aventura sem fim, que é, na vida, do outro [...] que pode consistir
numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos
marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso
diminuir a impressão de complexidade e riqueza. (CANDIDO, 1981,
p. 58).

As personagens de Incidente em Antares são minuciosamente


construídas tendo-se uma preocupação voltada à verossimilhança. As
características das personagens funcionam como uma prévia do
comportamento das mesmas, antecipando ao leitor, suas personalidades e
suas ideologias. A figura do padre, por exemplo, espelha uma luta do bem
contra o mal; a do coronel, uma autoridade sem limites e assim
sucessivamente em todas as personagens no decorrer da narrativa.

Pouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e


impondo-se ao respeito e à estima de boa parte da população
antarense. [...] Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã
dos Vacariano era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral
soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porém,
sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas
emoções e modular o tom da voz de acordo com a sua conveniência
e os seus propósitos. (Incidente em Antares, p. 11).

[...]
37

Aos quarenta e dois anos, era Tibério Vacariano um homem alto e


corpulento, de cabeça leonina, cara larga dum moreno claro, olhos
meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres,
denúncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela
basta cabeleira negra e lisa. (ibid, p. 48).

Partindo desses conceitos é que as personagens centrais do romance


de Erico Verissimo são construídas. Assim como o topônimo 8 de Antares, os
antropônimos 9 das personagens mais expressivas da trama são significativos,
pois mesmo antes de o leitor conhecê-las por meio de suas ações elas lhe dão
indícios de como será seu comportamento por meio de seus nomes. O estudo
dos antropônimos feito por Oswaldo Antônio Furlan em Estética e crítica social
de Incidente em Antares (1977) servirá como uma das fontes para verificarmos
que, de fato, os nomes das personagens antarenses são decisivos para
caracterizá-las dentro da trama. A significação dos antropônimos das
personagens centrais do romance será ratificada por trechos do romance em si
para que a compreensão da ideologia dos nomes seja plena:

 CORONEL TIBÉRIO VACARIANO:

...alguém que, à semelhança de Tibério, imperador do vasto império


romano, detém, em Antares, vasto poder econômico (é latifundiário)
e que, através desse poder, exerce grande influência social e política
[...] (FURLAN, 1977, p.66)

[...] ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto
dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão
equivocada fama. (Incidente em Antares, p.38)

A rica figura do chefão do vasto clã dos Vacarianos, fundadores da


cidade, e que se chama Tibério. (Seu pai não devia conhecer muito
bem a biografia dos imperadores de Roma) (ibid, p.150)

Agora acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso


Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de
matar e até de arriscar-se a morrer para defender suas propriedades,
aumentando-as à custa da propriedade alheia. [...] (ibid, p.355)

O Coronel Tibério Vacariano carrega em seu nome heranças da


ancestralidade de sua família, marcada pelo sobrenome “Vacariano”, motivo de

8
Nome próprio de um lugar. Do grego topos (lugar) + onyma (nome).
9
Nome próprio de pessoas. Do grego antrophos (homem/pessoa) + onyma (nome)
38

orgulho e tradição, mas em contrapartida, leva o nome de “Tibério”, segundo


imperador romano da dinastia Julio-Claudiana, conhecido por ter uma vida
pessoal de comportamentos duvidosos. Segundo o escritor latino Gaius
Suetonius Tranquillus, o imperador Tibério era pedófilo e recrutava crianças
para cerimônias obscuras. O Coronel Tibério Vacariano, por sua vez, mantém
um comportamento duvidoso que chega ao conhecimento de todos por meio
das acusações feitas pelos sete defuntos no dia do incidente, mas este
comportamento refere-se aos seus casos amorosos com mulheres do
prostíbulo da cidade e negociatas ilegais. Verificamos, por meio do nome e das
ações do Coronel Tibério Vacariano, uma crítica à burguesia recalcada no
moralismo social, mas que cultiva intimamente a hipocrisia humana.

 MAJOR VIVALDINO BRAZÃO:

O nome do Prefeito, ‘Vivaldino’, exprime o que ele realmente é:


velhaco, trapaceiro, astuto. O próprio narrador parece insinuar tal
sentido ao atentar para o seu ‘par de olhos vivos’ (p.153) [...]
‘Brazão’, provável cacografia 10 de ‘Brasão’, caracteriza-o como
nobre, pois ‘brasão’ significa escudo heráldico; insígnia de fidalguia;
título de nobreza e glória. (FURLAN, 1977, p.66-67)

...Vivaldino acabou eleito deputado estadual pelo P.S.D. de Antares,


sob a proteção do Cel. Tibério Vacariano – “e hoje, o amigo vê,
tenho a minha casa, a minha posição e, afinal de contas, modéstia à
parte, ser prefeito de Antares não é tão pouca coisa...”. (Incidente em
Antares, p.155)

Sabe usar com oportunidade – já notei – o que eu chamaria de “a


sua risada de galpão” – uma risada de garganta, em hê aspirado,
franca, cascateante, espécie de chocalho folgazão, com um certo
quê de debochado [...] (ibid, p.155)

O prefeito de Antares, como o seu próprio nome faz-nos evidenciar, é


um homem “vivo” no sentido de esperto, alerta para todas as situações que o
circundam. No primeiro trecho selecionado de Incidente em Antares, é possível
perceber essa característica de sua personalidade já que ele consegue entrar
para a política sob “proteção” do Coronel Tibério Vacariano. Ou seja, os seus
méritos, a sua nobreza, o seu “brasão” são de fachada. Essa nobreza de
fachada está explícita em seu sobrenome “Brazão” que, como sugere Furlan, é
uma cacografia de “brasão”. O equívoco ortográfico proposital confere à

10
Erro ortográfico. Do grego kakós (mau) + graph (escrever).
39

personagem um tom irônico que prenuncia as suas atitudes dentro do


romance. Apesar de ser a autoridade máxima da cidade, sua glória só foi
conseguida por meio de eleição forjada, “protegida”. É por meio da trapaça que
consegue o seu brasão. É interessante verificar que a classe política sofre
crítica por meio de Vivaldino Brazão: político trapaceiro que se apaixona pela
política pelo que ela lhe pode dar em troca, pelo título e não como uma
ferramenta de auxílio à população. Intensifica-se, portanto, a crítica se
levarmos em conta como eram feitas as escolhas políticas no período da
ditadura. Nomes eram indicados e escolhidos de acordo com a conveniência
dos militares, era uma escolha sob “proteção”.

 DELEGADO INOCÊNCIO PIGARÇO:

...ele é o responsável pela morte do inocente João Paz e pelas


torturas [...] o que lhe acarreta a acusação de ‘assassino perverso’.
Essa contradição flagrante entre o nome e os atos permite afirmar
que o narrador se valeu da denominação para tornar mais sensível a
insânia das torturas políticas por ele perpetradas. (FURLAN, 1977,
p.67)

...o delegado de Antares, Inocêncio Pigarço, que é um homem cruel,


um torturador de prisioneiros políticos, costuma dizer que o Jango e
o Brizola estão cutucando o dragão com vara curta. (Incidente em
Antares, p.186)

Inocêncio Pigarço não escapa da ironia por trás de seu nome. Apesar da
personagem não ter como característica de personalidade a inocência, seu
nome é preenchido por esse significado. Podemos ver na imagem da
personagem o estereótipo dos delegados torturadores do período de ditadura
militar brasileira. Sem escrúpulos, matavam inocentes e não tinham nenhum
respeito em relação ao ser humano. Inocêncio Pigarço manda matar João Paz,
suspeito de participar de um grupo comunista antarense cuja existência era
desconhecida. Vê-se, nesse ponto, o quão subjetivo era o julgamento que se
fazia de possíveis transgressores das leis – as perseguições a determinadas
pessoas eram feitas, geralmente, mediante suspeita sem fundamento e sem
provas concretas de real envolvimento desses indivíduos em ações contra o
governo. Além de torturar João Paz, o delegado manda torturar a esposa do
rapaz, Rita Paz, que estava grávida, para tentar conseguir as informações que
desejava. Intensifica-se aí o caráter insano, como pontua Furlan, das torturas
40

políticas e a “não-inocência” de Inocêncio Pigarço em relação a esses atos,


uma vez que ele comandava as sessões de tortura dentro de sua própria
delegacia. Verificamos o externo dialogando com o interno da trama no
momento em que o cenário de tortura política do período de ditadura militar no
Brasil assemelhava-se a essa realidade ficcional.

 QUINTILIANO DO VALE, MIRABEAU DA SILVA E DR. LÁZARO


BERTIOGA:

O narrador vale-se do nome do famoso reitor latino, espírito clássico


e judicioso, autor de Institutiones Oratoriae, ‘Quintiliano’, para
identificar o Juiz QUINTILIANO DO VALE. O Promotor de Justiça é
designado pelo nome de MIRABEAU DA SILVA, que lembra o do
sábio e orador francês, partidário da monarquia constitucional [...] O
médico é chamado pelo nome bíblico de ‘Lázaro’, LÁZARO
BERTIOGA [...] Os três são acusados de terem sido cúmplices do
falseamento da causa mortis do torturado João Paz [...] bem como
de serem hipócritas e farsantes [...] (FURLAN, 1977, p.67, grifo do
autor)

O Dr. Quintiliano [...] não se entregou: “Pois se a coisa é assim [...]


bastaria então que o lema dos Legionários da Cruz se falasse
apenas em Deus, pois a idéia de Deus, na sua universalidade
incomensurável, abrange tudo: Ele próprio, as suas leis, a sua ordem
cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade.” (Incidente em
Antares, p.180)

Dr. Mirabeau da Silva, promotor público – um moço de cabelos


louros e crespos, rosto carnudo e rosado, lembrando um anjo [...]
que tivesse atingido desastrosamente a idade adulta. (ibid, p.307)

...o Dr. Lázaro, um homenzinho baixo, calvo, com cabelos grisalhos.


[...] Um sujeito amável, desses de quem se costuma dizer que são
“serviçais” [...] Ele próprio parece carregar com um certo orgulho
satisfeito esse halo de santidade. É proprietário do maior hospital da
cidade, o Salvator Mundi [...] (ibid, p.152)

Essas três personagens, que aparentemente são “acima de qualquer


suspeita”, são acusados, no dia do incidente, de serem responsáveis por forjar
documentos, a pedido do Delegado Inocêncio Pigarço, mentindo sobre a morte
de João Paz.
Dr. Quintiliano do Vale faz jus ao seu nome, já que era afeito a grandes
discursos e discussões inflamadas, como o professor de retórica, advogado,
escritor e conhecido orador latino Marcus Fabius Quintilianus. O Juiz de Direito
Quintiliano do Vale usava da retórica para driblar situações embaraçosas e
para não ser inquirido por alguns atos obscuros de que era acusado, como no
41

caso da morte de João Paz. Ele foi o responsável por arquivar o processo de
investigação da morte do rapaz para que ninguém pudesse descobrir que foi a
tortura feita pelo delegado de Antares que o matara e não uma embolia
pulmonar, como foi atestado na causa mortis. Verificamos por meio dessa
personagem o diálogo entre a realidade ficcional e a factual, já que no período
da ditadura militar, muitos processos eram arquivados para que não se
pudessem concluir as investigações e viessem à tona as ilegalidades que os
representantes da lei encobriam.
Já o Dr. Mirabeau da Silva recebe o mesmo nome do Conde de
Mirabeau, jornalista, escritor, político e orador francês que recebeu a alcunha
de “O orador do povo” (L'orateur du peuple). O Promotor Mirabeau da Silva, no
trecho selecionado referente a sua descrição, é caracterizado fisicamente como
um anjo. Mas essa era a máscara social por ele usada, pois, na verdade, o
promotor infringiu as leis para falsificar documentos no caso João Paz.
Interessante perceber que o sobrenome “Silva” é, dentro da cultura brasileira,
muito comum. Apesar de ter um nome de origem francesa, portanto
aristocrática e elitista, tinha suas raízes fincadas em solo popular, sem pompa,
sem rodeios.
Dr. Lázaro Bertioga tem o mesmo nome de Lázaro, a personagem
bíblica, que fica curado de uma enfermidade por um milagre divino. Sendo
médico, esse nome o definiria muito bem, principalmente por ele ser conhecido
na cidade como um médico zeloso e que fazia caridade, tratando de pacientes
pobres. Porém, sua reputação é maculada a partir do momento em que atesta
que João Paz não morreu por causa das agressões sofridas a mando do
delegado, mas sim de embolia pulmonar.
O nome de seu hospital também é bastante significativo e irônico, já que
se chama “Salvator Mundi”, significando “Salvador do Mundo”. Na verdade, o
nome do hospital do Dr. Bertioga não está de acordo com as ações de médico
da personagem. Além de falsificar a causa mortis do atestado de óbito de João
Paz, o médico também foi envolvido no caso da morte da prostituta Erotildes,
que, por ser pobre, foi esquecida no leito para indigentes de seu hospital.
Poderia ser salva caso o doutor trouxesse antibiótico contra a tísica, doença
que levou a óbito a prostituta. Assim, nem o médico e nem seu hospital
assumem o compromisso de “salvar o mundo” e sim de levar seus pacientes a
42

óbito. As ações do médico em vez de curar acabam por matar, invertendo


assim o papel social do médico na personagem em questão, cuja preocupação
é manter o seu bom convívio com os próceres de Antares – atendendo aos
seus pedidos ilegais - no lugar de desempenhar honestamente seu ofício. A
aura de “santo” do médico, de “salvador do mundo" era, na verdade, a máscara
social que ele usava perante a sociedade para que a sua verdadeira identidade
não fosse descoberta.

 DR. CÍCERO SOEIRO BRANCO:

Seu nome, homônimo do mais famoso advogado e orador romano


chamado Cícero, está a qualificá-lo como o exímio orador e
causídico que é. Se a cor branca é símbolo universal da pureza,
então o sobrenome ‘Branco’ traz a conotação da pureza moral e da
santidade que não podem faltar em quem exerce uma função
semelhante à do Supremo Juiz. (FURLAN, 1977, p.69)

- Seja como for, o Inocêncio Pigarço não teve outra alternativa senão
recorrer aos seus “métodos especiais”.
- Por que não diz a palavra exata: tortura?
- Ora, como advogado, cultivo quando me convém o hábito do
11
eufemismo . (Incidente em Antares, p.247)

O advogado Cícero Branco, conhecido por sua oratória bem articulada,


carrega essa característica em seu primeiro nome, que alude ao orador romano
Marcus Tullius Cicero. Ao poder da oratória é somado o último sobrenome do
advogado, “Branco”. Como Furlan demonstra, a cor branca simboliza a pureza
e a paz. Dessa forma, podemos verificar o caráter irônico do nome do
advogado, já que são qualidades de que ele é totalmente desprovido. Além do
envolvimento com o caso João Paz, o próprio Cícero Branco confessa, depois
de morto, que participou de um esquema ilegal de falsificação de notas fiscais
em que o Coronel Tibério Vacariano e o Prefeito Vivaldino Brazão também
estavam envolvidos. Assim, a pureza da personagem concentra-se apenas no
nome e de forma bastante irônica já que mesmo depois de morrer Cícero
continua a fraudar documentos, agora em benefício dos defuntos. Uma das
primeiras providências que toma, depois de sair de seu esquife no fatídico dia

11
Figura de estilo que tem por finalidade empregar termos mais “agradáveis” para suavizar uma
expressão. Ex.: “Diabo: Ao porto de Lúcifer.
Parvo: Hã?
Diabo: Ao inferno! [...]” (GIL VICENTE, 2002, p.30, grifo nosso)
43

do incidente em Antares, é ir ao cartório e pedir ao tabelião, Aristarco


Belaguarda, que altere um documento, modificando a data e reconhecendo a
firma, para que ele pudesse denunciar o esquema de que fazia parte quando
vivo. A morte não consegue apagar, ou trazer a “pureza” à vida de Cícero
Branco. Ele continua defendendo de forma ilegal o que lhe convém e imune a
qualquer tipo de julgamento, já que não é regido mais pelas leis humanas: “... a
morte me confere todas as imunidades. Estou completamente fora do alcance
da lei dos homens.” (Incidente em Antares, p.347). O advogado possui uma
face dupla, pois apesar de ser um profissional eficiente “... está sempre agindo
em defesa das in-justiças sociais.” (ALVES, 2006, p.208).

 JOÃO PAZ:

‘João’ significa, em hebraico, ‘cheio de graça, Javé é misericordioso’.


Pode lembrar o nome de João Batista, que, segundo informações
evangélicas, também foi preso e morto pela polícia de Herodes. O
leitor também poderia associá-lo com o nome de João Evangelista,
apóstolo da paz e do amor. (FURLAN, 1977, p.68-69)

- Este é o João Paz, jovem inteligente e idealista. Levou muito a


sério o sobrenome e tornou-se um pacifista ardoroso. Organizou em
Antares um comício contra a participação dos Estados Unidos na
tentativa de invasão de Cuba. A polícia dissolveu-o a pauladas.
Joãozinho foi preso, passou uma semana na cadeia, foi solto...
tornou a ser preso. Bom, é uma estória muito comprida. (Incidente
em Antares, p.237-238)

- Fui torturado e assassinado na cadeia municipal pelos carrascos do


delegado Inocêncio Pigarço. (ibid, p.238)

João Paz foi vítima da tortura – ação comum no período de ditadura


militar. Depois de ser acusado de participar de um grupo comunista que, na
verdade, não existia, foi preso e na cadeia foi obrigado a confessar a
participação nesse “grupo”. Como não deu nenhuma informação relevante ao
delegado, foi espancado até a morte. O assassinato foi camuflado por um
atestado de óbito falso que acusava a causa mortis como embolia pulmonar.
Com a ajuda do Dr. Lázaro Bertioga, do juiz Quintiliano do Vale, do promotor
Mirabeau da Silva e do advogado Dr. Cícero Branco, a verdadeira causa da
morte de João Paz foi abafada. O nome da personagem evidencia a sua
missão na trama: lutar pela paz. Mas, lutar pela paz significava ir contra alguns
dogmas estabelecidos na cidade, ou seja, a personagem era considerada
44

comunista. É a repressão ditatorial que se faz presente novamente dentro da


obra. João Paz, portanto, possui a voz dos oprimidos pelo regime militar, dos
inocentes e idealistas:

...talvez [...] represente todas as pessoas que morrem em busca de


seus ideais, ou mais especificamente, todos aqueles que morreram
na época da ditadura militar no Brasil, ou ainda, todas as que lutam
pela paz e pelas nobres causas do ser humano na terra. (ALVES,
2006, p.208-209).

Já Cícero Branco é seu oposto - a voz do abuso de poder, da corrupção, das


mentiras que como advogado encoberta.

 PROFESSOR MARTIM FRANCISCO TERRA:

...o cunho espanhol do nome ‘Martim Francisco’ lembra ao leitor a


imagem dos primitivos colonizadores espanhóis do planalto dos Sete
Povos das Missões 12 . O sobrenome ‘Terra’ identifica o mais jovem
descendente de Ana e Pedro Terra, pioneiros do sangue e da saga
rio-grandenses, segundo O Tempo e o Vento. [...] Ele encarna a
figura do gaúcho autêntico, nobre, culto, virtuoso, que chegou a
tornar-se professor da U.F.R.S 13 ., e que é portador de uma ideologia
humanitária, liberal e socializante. (FURLAN, 1977, p.68, grifo do
autor)

- E dizer-se que lhe corre nas veias o sangue dos Terras de Santa
Fé! [...] Um dia esse moço me visitou e eu lhe mostrei a árvore
genealógica dos Terras Cambarás, fundadores de Santa Fé. O Prof.
Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra [...]
(Incidente em Antares, p.141)

Por meio da personagem Professor Martim Francisco Terra, as obras de


Erico Verissimo O Tempo e o Vento e Incidente em Antares dialogam entre si.
O intratexto, retomada de um texto por outro do mesmo autor, faz-se presente
por meio dessa personagem que segue o rumo de sua família, já que é o
responsável por defender e inserir no cenário nacional as cidades interioranas
do Rio Grande do Sul. Ele é o responsável por escrever o livro fictício Anatomia

12
A segunda fase das Reduções Jesuíticas (conflitos entre missionários jesuítas e colonos), a
partir de 1862, era denominada de Sete Povos. Essa segunda fase foi marcada por conflitos
entre missionários Jesuítas e Guaranis cuja finalidade era deter o avanço português em
direção ao litoral sul. Para tal, o governo espanhol determinou a fundação de povoados a partir
do Uruguai, ocupando as terras com estâncias e lavouras.
13
“...o professor de Sociologia Martim Francisco Terra da U.R.G.S.” (Incidente em Antares,
p.125). Oswaldo Antônio Furlan emprega a sigla U.F.R.S. para denominar a mesma instituição.
Consideraremos como certa a sigla que aparece no livro de Erico Verissimo.
45

duma cidade gaúcha de fronteira, em que ao mesmo tempo em que mapeia a


parte física de uma cidade de fronteira do Rio Grande do Sul, no caso Antares,
levanta várias questões sociais para reflexão das próprias personagens do
romance quanto do leitor. O Professor Terra, além de representante da
tradicional família gaúcha Terra-Cambará, dentro do âmbito político é grande
ativista. Ele representa o novo em oposição ao velho, ou seja, ele não luta pela
conquista de terras do Rio Grande do Sul, mas pelo povo dessas terras, que
vive à margem da sociedade. É por meio dele que as injustiças sociais são
evidenciadas, já que toma conhecimento da comunidade pobre de Antares –
Babilônia -, apresentada a ele pelo Padre Pedro-Paulo, e traz à tona assuntos
que até hoje assolam o país, como a miséria, falta de saneamento básico,
condições subumanas de vida, fome, as favelas. Essa personagem é a voz da
consciência, do despertar para a verdade, para o mundo sem máscaras. Ele
mostra o avesso do que os políticos (tanto no romance quanto na sociedade
factual) tentam vender com seus discursos estrategicamente elaborados.
Vemos nele a voz de combate contra as imposições e hipocrisias do regime
militar que não tinha políticas públicas que beneficiassem as regiões mais
pobres do país. Tanto que quem se preocupava com essas questões era
considerado comunista, como veremos por meio da personagem do Padre
Pedro-Paulo, a seguir.

 PADRE PEDRO-PAULO:

O jovem padre, promotor social dos favelados e oprimidos, defensor


da justiça social, leva o nome dos dois apóstolos mais famosos de
Cristo: Pedro e Paulo. (FURLAN, 1977, p.68)

O importante é ser cristão. Mas dum cristianismo militante e não


apenas teórico, “simpatizante”. Sempre digo ao vigário da Matriz de
Antares: “Padre, continue rezando pelos seus mortos que eu
continuarei lutando pelos nossos vivos. Nossa Igreja é também deste
mundo.” (Incidente em Antares, p.188)

Interessante verificarmos que o nome do padre é a junção dos nomes


dos dois apóstolos de Cristo, Pedro e Paulo. Os nomes unem-se por um hífen,
fazendo com que dois nomes transformem-se em um único. A personagem
bíblica de Pedro vivenciou a famosa passagem da pesca milagrosa em que
46

depois de muitas horas de pescaria, Pedro e seus companheiros não


conseguiram pescar nenhum peixe. Cristo apareceu para os pescadores às
margens do lago em que estavam e operou um milagre. Ao lançarem a rede no
lago, pescaram tantos peixes que quase não cabiam em sua embarcação.
Depois desse episódio, Pedro torna-se um dos apóstolos mais devotos de
Cristo. Já o apóstolo Paulo, em sua juventude, era perseguidor dos cristãos em
Jerusalém. Na verdade, podemos dizer que ele tinha um ímpeto missionário às
avessas. Depois de ter uma visão de Deus e Este dar-lhe a missão de pregar
aos gentios, Paulo converteu-se, por volta dos 33 anos.
O Padre Pedro-Paulo, portanto, possui em seu nome tanto o amor de
Pedro pelo Cristianismo como o ódio inicial de Paulo pela religião. Interessante
essa dicotomia já que o Padre vê-se muitas vezes em dúvida sobre a sua
missão como missionário da Igreja Católica, uma vez que ele apaixona-se pela
esposa do Juiz Quintiliano do Vale, Valentina do Vale. O Padre entra em
conflitos internos sobre se prossegue ou não em sua vida religiosa. Porém, as
questões políticas e sociais falam mais alto. Podemos relacionar a militância da
personagem com a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação, que
discutem a relação da Igreja Católica com os assuntos sociais e políticos. A
Doutrina Social da Igreja tem como principais lutas a defesa da verdade,
liberdade e justiça, valores fundamentais que devem presidir a vida social.
Segundo essa doutrina, o homem deve trabalhar pelo bem comum, já que para
isso ele foi criado. A Teologia da Libertação, por sua vez, que foi gestada na
América Latina durante os regimes militares da década de 1970 e que no Brasil
foi difundida pelo teólogo Leonardo Boff, acreditava que com o método Ver –
Julgar – Agir conseguir-se-ia chegar à compreensão crítica da realidade e
impulsionar uma ação social transformadora. Foi o engajamento dos grupos
cristãos na política socialista que deu origem a essa Teologia. O conflito pelo
qual o Padre Pedro-Paulo passa simboliza o conflito gerado dentro da Igreja
Católica Latina no período militar.
O Padre sabe que se desistir da vida religiosa, a Vila Operária de
Antares, que compreende a favela da Babilônia, será esquecida pelos políticos
antarenses. Dessa forma, ele prefere seguir em frente com sua militância social
e política para defender a região. Os políticos e pessoas importantes de
Antares vêem o trabalho do Padre como uma manifestação comunista, já que
47

ele apóia a greve dos trabalhadores e luta pelos pobres. Mais uma vez
verificamos o julgamento subjetivo por parte da elite de uma sociedade a
pessoas que, de certa forma, transgridem as regras impostas. Mais um indício
de que existe o diálogo entre texto e condições de produção do autor.
Outras personagens também possuem antropônimos significativos,
porém Oswaldo Antônio Furlan, em seu livro, dá destaque a essas, pois são as
mais relevantes no romance de Erico Verissimo, mas vale lembrar algumas
outras personagens, tamanha importância por seus antropônimos dentro da
trama.
D. Quitéria Campolargo, matriarca da tradicional família gaúcha dos
Campolargos, traz no nome a sua missão de vida e de morte: quitar as
diferenças entre as classes sociais, entre vivos e mortos, entre aparência e
essência. Em Erico Verissimo: Provinciano e Universal (2006), organizado pelo
escritor José Edil de Lima Alves, a sua luta em vida e a sua importância à
frente da família são evidenciadas indo de encontro a sociedade machista de
Antares:

...dona Quitéria, a mulher gaúcha, que conserva a força de Ana


Terra, ocupa o lugar destinado ao homem (coronel), porém esse
homem gaúcho é desmistificado: o fraco e doente Zózimo cede lugar
à esposa cuja personalidade predomina na luta contra os
trabalhadores, contra grevistas e contra a política democrática e
socialista. (ALVES, 2006, p.206).

Segundo o dicionário de nomes próprios, o nome da matriarca dos Campolargo


origina-se de uma mártir e virgem espanhola que defendia os pobres e em
grego tem o significado de uma Santa da Igreja Católica que lutava pelos
fracos e oprimidos. Novamente é vista uma ideologia por trás dos nomes na
construção das personagens de Erico Verissimo. Nota-se isso nas atitudes e
no próprio discurso de Dona Quitéria:

A conselho de Tibério Vacariano, o candidato foi à mansão dos


Campolargo apresentar seus respeitos a D. Quitéria, que estava de
luto fechado, e manifestar seu pesar por não lhe ter conhecido o
marido, de quem todos diziam tão belas coisas. Referindo-se ao
símbolo da campanha de Jânio Quadros, a viúva disse:
- Doutor, o que este país precisa mesmo é de ser varrido de toda a
sua sujeira. Use a sua vassoura sem piedade. Nós estaremos aqui
na retranca, apoiando o seu governo. (Incidente em Antares, p. 108).
48

A personagem, depois de morta, continua com sua militância a favor da justiça


social e da igualdade de classes. Quando o advogado Cícero Branco alerta-a
de que os outros defuntos não pertencem à mesma classe social que ela, D.
Quitéria responde: “- Bobagem! Morto não tem classe.” (p.234) Ela, tanto em
vida quanto em morte, tenta “quitar” as dívidas que sua família tradicional
gaúcha tem com o povo. Verificamos um papel social importante dentro da
trama por meio dessa personagem. Não é porque ela é de uma casta de
pessoas tradicionais que pré-julga as outras pessoas ou que se mantém inerte
às situações político-sociais. D. Quitéria é mulher militante em favor das causas
sociais, indo contra os estereótipos da burguesia. Até mesmo a morte de D.
Quitéria encobre a ideologia na construção da personagem, pois “sofre um
‘ataque do coração’, por não suportar a ‘anarquia’ e desmando das idéias
trabalhistas [...]” (ALVES, 2006, p. 207). Após sua morte, D. Quitéria volta à sua
casa e presencia a briga de seus familiares por suas jóias e, ficando indignada
com o ocorrido, joga sua fortuna nas águas do Rio Uruguai.

– O mau cheiro – diz a velha Quita – é muito do meu cadáver, mas é


mais dos pensamentos de vocês, seus trapaceiros ordinários! Pedi
para ser enterrada com estas jóias e vocês não cumpriram a minha
ordem. (Incidente em Antares, p. 268).

A defunta aproxima-se da mesa e vai pondo as jóias uma a uma


dentro do escrínio 14 , depois põe a caixa debaixo do braço, dirige-se
para o lavabo social, despeja todo o seu conteúdo no vaso sanitário,
puxa a corrente da descarga, longamente, muitas vezes, depois volta
para a sala e exclama:
- Pronto! A divisão está feita. O Rio Uruguai herdou minhas jóias.
(ibid, p. 268).

A crítica social contra os paradigmas da família em uma sociedade


conservadora aparece nesta cena do romance. Os familiares não se
preocupam com a morte de D. Quitéria e sim com a divisão de seus bens,
denunciando a transformação que ocorria em algumas famílias conservadoras
da época.
Mesmo depois de sua morte, D. Quitéria continua exercendo o seu papel
de “quitar” as diferenças entre as classes, já que convive, de forma amistosa,
com personagens marginalizados, em vida, como uma prostituta ou um
bêbado. D. Quitéria descobre valores e princípios a que em vida não dava

14
Estojo, guarda-jóias.
49

atenção, como aceitar as idéias contrárias às suas, aceitar amistosamente a


convivência entre classes sociais diferentes, por exemplo.
O nome do marido de D. Quitéria, Zózimo, apresenta uma possível
leitura com caráter irônico, já que Zósimo (grafado com “s”), de acordo com
dicionário de significação de nomes, é aquele cheio de vida, oposto à
personagem que aparece na maior parte da narrativa como um ser humano
adoentado, que precisa de alguém para ajudá-lo sempre. Para tal, seria ele a
personagem que deveria liderar o clã dos Campolargo, por ser o primogênito
de Benjamim Campolargo, mas cede apenas o nome, porque quem lidera
política e socialmente a família é sua esposa, D. Quitéria Campolargo:

Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era
uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e
até de uma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte
do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor
garbo, o cetro de patriarca, D. Quita [...] passar a ser [...] “o poder por
trás do trono”. (Incidente em Antares, p.38-39)

Foi neste ponto da conversação que o Cel. Vacariano percebeu a


palidez e o desânimo de Zózimo, que estava de pé ao lado da
cadeira da esposa, sempre na sua atitude de príncipe consorte. (ibid,
p.93).

Fez-se um silêncio. De cabeça caída sobre o peito, Zózimo agora


cochilava, e de sua boca entreaberta saía um leve ronco rascante.
Tibério olhou para o amigo e pensou: “Aposto como esse não vai
longe... (ibid, p.95).

Na concepção de José Edil de Lima Alves (2006):

Os nomes são signos que remetem à ideologia social, quando


interpretados, apontam o tipo que “fala” a sua voz representada,
onde se lê a recusa do autor à ordem estabelecida, pela sátira. (p.
205).

Os nomes dentro do romance de Erico Verissimo confirmam essa tese, porque


configuram-se em um código que ao ser decifrado explicita as personalidades
ou as escolhas das personagens.
Erotildes da Conceição, que quando jovem trabalhava como prostituta
no bordel da cafetina Venusta (antropônimo significativo também, já que
designa “muito formosa” ou “graciosa” e confere certa delicadeza à
personagem que atua em uma profissão marginalizada), morre vítima de tísica,
50

pois não recebeu o tratamento adequado para curar a doença no hospital do


Dr. Lázaro Bertioga, já que era muito pobre. Erico Verissimo: Provinciano e
Universal (2006) atenta para a etimologia do nome da personagem: “Erotildes,
cujo nome se origina de Eros – amor, sexo, vida – é a prostituta, velha e feia,
que morrera de tuberculose 15 .” (p.207). Eros, deus da mitologia grega, filho de
Vênus (deusa da beleza), é conhecido como deus do amor. Apesar da
etimologia de seu nome, Erotildes não lida com o amor, mas apenas com as
relações carnais, é seu trabalho, ela ganha dinheiro por dar um “amor falso”
aos outros. Essa característica é apontada em Erico Verissimo: Provinciano e
Universal (2006): “Na personagem, não existe, portanto, o sentido de ‘Eros’
como Amor sensual. Possui o sentido de ‘Tanatos 16 ’, pois que lembra a morte
de tudo que passa na existência humana.” (p.207). Devemos levar em conta
também outro detalhe interessante. Quando a personagem estava na fase
jovem, requisitada por muitos homens, era ela conhecida como Erotildes da
Conceição. A presença do segundo nome conferia-lhe uma importância maior,
já que marcava as suas origens como pessoa; ela possuía uma história familiar
ao levar o nome de família “da Conceição”. Depois que essa fase de êxitos da
personagem passa e ela “... caiu tanto de categoria que aos quarenta anos
andava pelas ruas caçando homens, vendendo o corpo a qualquer preço...”
(Incidente em Antares, p.237) a personagem é chamada na cidade por
“Erotildes de Tal”. A tradição familiar é esquecida, por causa da supressão do
sobrenome da personagem, portanto sua história pessoal também; ela
transforma-se em uma indigente e é dessa forma que é tratada até o fim de sua
vida.
Outro representante da classe mais baixa da sociedade é a personagem
Pudim de Cachaça. Seu nome é ignorado pelas outras personagens e pelo
leitor, que só conhecem o apelido “Pudim de Cachaça” como seu nome. Ele
restringe-se a um ser comum, uma vez que é conhecido por uma expressão
popular e não por um nome próprio, fazendo com que a sua importância social

15
No romance de Erico Verissimo, a palavra tísica (tuberculose pulmonar) é usada em lugar de
tuberculose - empregada no trecho selecionado do livro organizado por José Edil de Lima Alves - para
determinar a causa mortis da personagem Erotildes: “- De que foi que essa mulher morreu?
- Tísica.” (Incidente em Antares, p.237)
16
Termo relativo à psicanálise. Usado por Freud para agrupar aquilo a que chamou o instinto de morte e o
instinto de destruição.
51

seja quase nula, pois ele não possui nada na vida, sequer um nome que o
individualize:
- Santo Deus! – exclama D. Quitéria – Que é “isso”!?
- O maior beberrão de Antares – diz o advogado – o nosso famoso
Pudim de Cachaça. (Incidente em Antares, p.238)

Em Erico Verissimo: Provinciano e Universal (2006), seu nome é destacado por


ser ele a imagem do bêbado que “representa a fraqueza dos que não
conseguem controlar os próprios vícios e se culpam por não consegui-lo.”
(p.207-208). A própria personagem corrobora essa idéia, já que, mesmo depois
de saber que a esposa o tinha envenenado, ele a perdoa e justifica o ato da
mulher, dizendo que era “uma peste” e que não merecia consideração, como
fica claro no diálogo em que o advogado Cícero Branco esclarece o motivo que
levou Pudim de Cachaça à morte:

- [...] Quem foi que me matou?


- A tua mulher.
- A Natalina? Não acredito. O senhor está brincado comigo, doutor.
Minha mulher não é capaz de matar nem uma mosca.
- Talvez, mas botou na tua comida uma dose de veneno que dava
para liquidar um cavalo.

[...]

- Declarou ao delegado que estava cansada de te agüentar [...] além


de trabalhar como uma escrava pra te sustentar, tu às vezes
chegavas em casa alta da madrugada, embriagado, e batias nela.

[...]

- [...] Sempre fui uma peste. Pobre da Natalina! Tomara que não
botem ela na cadeia. (Incidente em Antares, p.238-239)

Dessa forma, Pudim de Cachaça representa uma classe social e não um


indivíduo – por isso ele não possui um nome próprio. É a voz dos
marginalizados pela sociedade que são ouvidos no romance por meio dessa
personagem.
Outra personagem que merece citação é José Ruiz, mais conhecido por
Barcelona: “é um sapateiro de origem espanhola, o qual possui ideologia
comunista [...] Seu discurso demonstra a pura ideologia de esquerda radical
[...].” (ALVES, 2006, p.208). Com um papel político e social bem marcado
dentro do romance, o sapateiro luta contra todo tipo de injustiça, tanto que ele é
52

o responsável por dar a idéia de não sepultar os mortos até que os pedidos dos
grevistas fossem atendidos:

- Na véspera da minha morte, tomei parte na assembléia geral dos


industriários (com direito de voz e não de voto) e discutimos todos os
meios de pressionar os patrões e as autoridades para conseguirmos
os objetivos dos grevistas. Pedi a palavra e sugeri que metessem os
coveiros na greve geral e que não permitissem nenhum
sepultamento no cemitério enquanto os patrões não dessem ganho
de causa aos operários. (Incidente em Antares, p.240)

Nesse ínterim, Barcelona morre e é vítima de sua própria manifestação. É por


meio dele que a voz dos que lutavam contra a repressão de idéias e a censura
do período militar ganha espaço na trama.
A ironia permeia também o nome do Professor Libindo Olivares, diretor
do Ginásio Nacional de Antares, que é um charlatão, pois mente dizendo que
conhece escritores franceses famosos e outras personalidades e tem com eles
uma relação de amizade bastante sólida:

...se trata dum mitômano 17 cujas mentiras tendem sempre a um


auto-engrandecimento social e principalmente cultural. Gosta que os
outros acreditem que é íntimo de celebridades mundiais. Afirma ter
correspondência com Jean-Paul Sartre de quem – faz questão de
afirmar – diverge política e filosoficamente [...] (Incidente em Antares,
p.172)

Mas a gênese de seu nome sugere a verdadeira identidade da personagem:


“... tem como radical do nome, o mesmo que o da palavra ‘libido’. Só durante o
‘incidente’ é que a cidade fica sabendo que o professor é homossexual.”
(ALVES, 2006, p.212). Essa personagem é a voz daqueles que, por vários
motivos, escondem suas características consideradas pela sociedade como
fora do comum e alvo de preconceitos. O professor gaba-se por seu vasto
conhecimento e esse conhecimento serve como um escudo de proteção para
que ninguém adentre a sua intimidade e o descubra tal como é.
Outra personagem representativa de uma classe específica é o
Professor Menandro Olinda – professor de piano e pianista frustrado, chamado
pela população de Antares de “maestro”. A história dessa personagem é
marcada por uma grande frustração quando jovem. Seu primeiro significativo

17
Pessoa que tende à mitomania; à mentira.
53

recital no Teatro São Pedro, de Porto Alegre, foi um grande desastre, pois o
“maestro” fracassa ao executar Appassionata, obra de Ludwig van Beethoven:

Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que suas mãos


estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu
cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a
correr do palco e no camarim põe-se a chorar, a soluçar e a dizer
incoerências. (Incidente em Antares, p.165)

Esse episódio fica marcado em sua vida de tal forma que ele não consegue
mais reerguer-se na profissão. Torna-se professor de piano e morre sem antes
conseguir tocar com êxito Appassionata. Nesta personagem está contida a voz
de “...pessoas que, pelos mesmos motivos, nunca conseguem chegar aos seus
objetivos na vida.” (ALVES, 2006, p.211). São as fraquezas humanas postas
em xeque de forma a mostrar a face defeituosa e não a aparência envernizada
do ser humano.
Por meio da análise etimológica dos antropônimos das personagens
mais significativas de Incidente em Antares, constatamos que as personagens
são recursos importantíssimos que possibilitam ao escritor inserir críticas e
dialogar com o externo do texto. O escritor, ao criar as personagens de sua
narrativa, comporta-se como uma espécie de “bruxo que vai dosando poções
que se misturam num mágico caldeirão” (BRAIT, 2002, p.52). Suas
personagens podem ser “tiradas de sua vivência real ou imaginária, [...] ou das
mesquinharias do cotidiano” e “a materialidade desses seres só pode ser
atingida por meio de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e
sensíveis os seus movimentos.” (BRAIT, 2002, p.52) A linguagem, portanto, é
determinante para que as personagens cumpram seus papéis dentro da
narrativa e é por meio dessa linguagem que o leitor decifra os códigos para
penetrar na essência de cada uma delas.
A personagem, em Incidente em Antares, é o recurso literário mais
importante e expressivo do romance, já que é por meio dele que os outros
recursos literários se manifestarão. Como vimos, a ironia está presente não só
nos nomes das personagens, mas também na fala delas, na sua maneira de
agir e lidar com as mais variadas situações na trama. O diálogo que existe
entre o interno e o externo do romance também é estabelecido por meio das
personagens, nas classes sociais a que representam e por meio de sua
54

posição política e ideológica. Não é a toa que Incidente em Antares possui um


carrossel de tipos sociais vasto que em números ultrapassa a marca de cem
personagens de grande importância no romance.
Além das personagens fictícias do livro, Erico Verissimo deu espaço
para que personagens factuais recriadas ficcionalmente, a maioria conhecida
dos leitores, tivessem voz em seu romance. Getúlio Vargas, Borges de
Medeiros, Júlio de Castilhos, Jânio Quadros, João Goulart e Juscelino
Kubitschek configuram essas personagens, estabelecendo assim o diálogo
existente entre o interno e o externo do texto. O pensamento político das
personagens ficcionais da trama é construído graças à herança política que
essas personagens factuais deixaram ao povo de Antares. Durante toda a
narrativa, o leitor acompanha a trajetória política totalitarista de Júlio de
Castilhos e Borges de Madeiros, passando pelas conseqüências trazidas à
região pela Segunda Guerra Mundial, além do crescimento político de Getúlio
Vargas e João Goulart ao longo dos anos, da construção de Brasília por
Juscelino e da campanha para varrer toda a corrupção com a vassoura da
justiça e honestidade de Jânio Quadros.
Essas personagens factuais são, na verdade, o elo entre texto e leitor,
uma vez que a história política brasileira está em diálogo estreito com a história
de Antares, pois esta se configura como um microcosmo representativo do
macrocosmo brasileiro. Essas figuras políticas dialogam com as personagens
fictícias da trama, tornando-se, assim, pertencentes ao interno e ao externo do
texto simultaneamente. Benjamim Campolargo, por exemplo, mantinha
ficcionalmente um laço de amizade com Júlio de Castilhos e conheceu Borges
de Medeiros, como verificamos a seguir:

Castilhos faleceu em 1903, durante a operação de garganta a que


fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de
seus filhos, embarcou às pressas para Porto Alegre, a fim de assistir
às exéquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a
oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda não
conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal, mas digno. Ouviu, de
várias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao caráter
do presidente. (Incidente em Antares, p.27, grifo nosso)

Borges de Medeiros, depois do falecimento de Júlio de Castilhos,


assume o cargo de Presidente do Estado do Rio Grande do Sul e, além disso,
55

era chefe do Partido Republicano Gaúcho. Os fatos externos à trama afetam a


narrativa de forma direta já que as personagens ficcionais não se restringem
apenas aos limites do texto, elas ultrapassam esses limites, o que possibilita,
por exemplo, a amizade entre Benjamim Campolargo e Júlio de Castilhos.
A interferência dessas personagens factuais na trama, muitas vezes,
atingiu proporções tão grandes que foram decisivas para que ações muito
difíceis de acontecer pudessem de fato realizar-se. Getúlio Vargas, por
exemplo, foi o responsável por unir dois dos maiores inimigos de Antares,
dando assim, um rumo inesperado à narrativa:

Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto


Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum,
homem apolítico e geralmente benquisto na cidade.

[...]

Olhavam para Getúlio Vargas com uma expressão de censura em


que se mesclavam surpresa e zanga.

[...]

- Perdoem-me pela “traição” – disse ele. – Quando os fins são bons,


às vezes temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a
única maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois
antigos adversários pessoais e políticos. (Incidente em Antares,
p.34-35)

Ao mesmo tempo que Getúlio Vargas é personagem atuante do romance, ele


não deixa de ser o personagem político factual, alvo de críticas pelo povo
brasileiro, que é representado pela população antarense. Essa voz dominante
e representativa ecoa ao longo de toda a narrativa, fazendo com que o
dialogismo proposto por Bakhtin faça-se presente e seja um dos recursos
literários viabilizados por outro recurso literário – a personagem. Lendo mais
atentamente a última fala de Getúlio Vargas, verificamos outro recurso literário
viabilizado pela fala da personagem: o intertexto. A célebre frase “os fins
justificam os meios” de O Príncipe, de Maquiavel, é retomada pela fala do
presidente Vargas de forma deturpada. Maquiavel, na verdade, não chegou a
escrever a frase tal e qual conhecemos. Ela foi uma síntese feita pela censura
jesuítica que serviu como uma síntese do pensamento maquiavélico tornando-
se uma de suas máximas mais conhecidas. Maquiavel demonstra que os
56

objetivos de conservar e manter seguro o poder do Estado justificam todas as


ações do príncipe mesmo que para isso seja necessário transgredir as leis da
moral. Porém, Maquiavel determina que isso só é válido quando existe o
comprometimento de defesa do povo e da nação já que o príncipe é um
servidor do Estado. Em O Príncipe esse princípio pode ser entendido pelo
trecho a seguir:
Francisco [Sforza], pelos meios devidos e com grande virtude, de
privado tornou-se Duque de Milão; e aquilo que com mil esforços
tinha conquistado, com pouco trabalho manteve. Por outro lado,
César Bórgia, pelo povo chamado Duque Valentino, adquiriu o
Estado com a fortuna do pai e, juntamente com aquela, o perdeu [...]
(MAQUIAVEL, 1985, p.40)

Interessante relacionar esse trecho à nota do tradutor Roberto Grassi para


deixar mais claro o princípio maquiavélico:

Machiavelli quer significar aqui grandes esforços, valor pessoal para


superar as dificuldades, meios próprios. A expressão “meios
devidos” não exprime apreciação moral ou aprovação dos atos
praticados por César Bórgia, mas sim, apenas, o emprego de meios
adequados à consecução do fim colimado. (ibid, 1985, p.45)

Existe, portanto, o diálogo entre o texto de Maquiavel e o de Erico Verissimo,


porém a leitura feita da frase de Maquiavel por Getúlio Vargas em Incidente em
Antares, acontece em um tom paródico, uma vez que o sentido original da
frase é modificado. Para Getúlio Vargas, como é retratado no romance de Erico
Verissimo, assim como para os próceres antarenses, os interesses pessoais do
grupo de governantes de Antares era mais importante do que os interesses da
coletividade, subvertendo, portanto a máxima de Maquiavel.
O diálogo existente entre o factual e o ficcional pode ser verificado,
ainda, por meio da fala do Coronel Tibério Vacariano sobre a carta-testamento
de Getúlio Vargas e da sucessão presidencial de João Goulart (Jango) que se
acercava:

– Estão vendo? – disse. – O Getúlio com essa carta varre a sua


testada, salva-se como homem e como estadista, encontra uma
saída honrosa para uma situação pessoal difícil, apresenta-se como
mártir do povo, candidata-se à História, vinga-se dos inimigos
atirando nos ombros e na consciência deles o seu próprio cadáver, e
ao mesmo tempo (prestem bem atenção ao que estou dizendo!), ao
mesmo tempo entrega ao João Goulart e ao P.T.B. um programa
político e uma bandeira de guerra. E como têm força essas bandeira
ensangüentadas! Já pensaram como o Jango vai explorar daqui por
57

diante, em seu proveito, esse testamento? Porque podem dizer o


que quiserem do herdeiro político do velho Getúlio, mas burro ele
não é. É um zorro que aprendeu as artimanhas políticas de seu
mestre e protetor. (Incidente em Antares, p.91)

É perceptível o chamado que a personagem faz ao leitor quando diz “prestem


bem atenção ao que estou dizendo!”, como se ficcionalmente chamasse o leitor
para a realidade factual. É bastante interessante a forma como Erico Verissimo
trabalha a questão do dialogismo, uma vez que ele amarra ficção, realidade e
reflexão sobre o momento político da época por meio desse recurso, fazendo
com que o leitor reflita e tire também as suas próprias conclusões sobre o
assunto.
Assim como as personagens factuais interferem no rumo da narrativa do
romance, o inverso também acontece. As personagens ficcionais também
tentam interferir nas ações e decisões das personagens factuais. Verificamos
essa questão por meio do diálogo entre o Coronel Tibério Vacariano e o
Presidente Jânio Quadros:

- Vamos dar nome aos bois. Não caia nas garras do P.T.B. Não se
mete com os socialistas, com essa cambada de esquerda.
Jânio sorriu enigmaticamente.
- Meu caro Cel. Vacariano, o senhor ouviu o meu discurso. Se eleito,
pretendo cumprir à risca tudo quanto tenho prometido ao povo
durante esta campanha memorável.
- Pois é, mas as pessoas quando chegam “lá em cima” em geral
mudam, esquecem as promessas feitas nos discursos e nas
entrevistas. Noutras palavras, tenho medo de que o senhor atire a
sua vassoura para um canto e não varra a casa.
- Pois, coronel, se o senhor pensa assim vai ter uma surpresa.
Pretendo usar a vassoura, e com muito vigor. (Incidente em Antares,
p.110-111)

A relação entre as personagens ficcionais e factuais é tão intensa que


são possíveis algumas descrições com detalhes de situações que remetem ao
externo do texto. Podemos ratificar essa questão por meio da fala do Coronel
Tibério Vacariano em conversa com D. Quitéria Campolargo e Zózimo
Campolargo sobre a visita que fez a Getúlio Vargas a respeito de um
determinado requerimento. Antes de encontrar o presidente, de fato, cruzou
com Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas:

Entrei no palácio, me meti por uns corredores meus velhos


conhecidos e de repente, sem saber como, me vi na sala onde o
Gregório costuma dar as suas audiências... E que vejo? Lá estava o
58

crioulo como um potentado africano, sentado numa cadeira, com


uma tolha amarrada ao pescoço, um barbeiro escanhoando o rosto
dele, uma manicura ao lado polindo as suas unhas... [...] Quando me
viu entrar, nem se dignou a me dar bom dia. Também fingi que não
tinha visto ele e fiz meia volta. [...] antes de sair, ouvi o Gregório
dizer em voz alta, com um ar de superioridade: “O Jango é um
premário!” (Incidente em Antares, p.75)

Verificamos novamente que o externo e o interno mesclam-se no tecido


narrativo da trama. Enquanto o Coronel Tibério Vacariano narra um episódio
vivido por ele ficcionalmente, este mesmo episódio tem como protagonista
Gregório Fortunato. Interessante a cena narrada por Tibério em que Gregório
Fortunato aparece fazendo a barba e as unhas, pois era o próprio Gregório que
cortava os cabelos e fazia a barba de Getúlio Vargas por motivos de
segurança. Tanto é que ele era conhecido como “o anjo negro de Getúlio”.
Essa relação entre as personagens ficcionais e factuais que discutimos,
em muitos momentos da narrativa, perpassa por diferenças de ideologias
políticas entre as personagens e por reflexões sobre a honestidade de
determinados políticos, como, por exemplo, Juscelino Kubitschek. Para o
conservador Tibério Vacariano, a plataforma de governo de Juscelino era
alarmante, assim como a moderna construção de Brasília:

Quando, porém, Juscelino Kubitschek começou a pôr em prática o


slogan – plataforma de sua campanha eleitoral – “Cinqüenta anos de
desenvolvimento em cinco” – Tibério, arraigado conservador, ficou
alarmado.
Passou o resto daquele qüinqüênio a criticar o Presidente. [...] Falar
mal de Juscelino Kubitschek e dos seus ministros e colaboradores
passou a ser para o velho político antarense uma espécie de pão
nosso de cada dia [...] (Incidente em Antares, p.96)

- [...] Sou contra Brasília. Essa “inauguração” foi fraudulenta como


quase tudo quanto o Juscelino tem feito. A cidade não está e nem
nunca ficará pronta. [...] Nenhum Presidente poderá governar o país
daquele cafundó... (ibid., p.101)

Assim, podemos verificar não só os conflitos existentes entre a ideologia do


Coronel Tibério Vacariano em relação ao governo de Juscelino Kubitschek,
mas a voz dominante de uma classe conservadora diante da modernidade do
governo de J.K. A reação do Cel. Vacariano traduz a reação de muitos
brasileiros diante de tão inovadora plataforma política que, de fato, foi alvo de
muitas críticas e desconfianças na época.
59

Vemos que a política assume um papel fundamental em textos literários,


pois direta (como é o caso de Incidente em Antares) como indiretamente, far-
se-á presente e será material primário para muitos outros temas. Por isso
podemos afirmar que um discurso nunca é totalmente desvinculado de
ideologia política, pois o ser humano não possui a capacidade de isolar-se por
completo da sociedade em que vive e fechar-se para os assuntos que o
cercam. E sendo a literatura uma ferramenta de comunicação que é feita pelo
homem e para o homem, cuja finalidade é transmitir os conhecimentos e
cultura de determinado povo em determinado período, esta não pode dissociar-
se da política. Por isso a relação entre personagens ficcionais e factuais ser
verossímil em Incidente em Antares.
Verificamos que no romance de Erico Verissimo o dialogismo exerce um
papel importante, já que é por meio dessa voz dominante que o pensamento do
povo brasileiro ganha espaço e voz dentro de um regime de ditadura militar e
repressão. Tratamos, até agora, de alguns momentos dialógicos no texto, mas
existe uma voz única e dominante em Incidente em Antares, que revela o
anseio latente nesse período de opressão: a liberdade. Daniel Fresnot, em O
pensamento político de Érico Veríssimo (1977) defende essa questão:

... o autor usou do microscópio para descobrir e estudar as


personagens, instituições, mentalidades, leis gerais existentes e
aplicáveis a todo o seu país. E aqui reside o impacto político do livro,
pois o que parte de Antares é um estupendo anseio de liberdade.
(FRESNOT, 1977, p.62)

Esse anseio de liberdade de que Fresnot fala é o anseio de liberdade vivido


pelas personagens do romance, protótipo do povo brasileiro. A liberdade de
expressão e de pensamento foram o combustível para as lutas entre povo e
governo militar e que Erico Verissimo traduz em situações ficcionais de seu
texto. A cena final de Incidente em Antares pode-se dizer que é um resumo do
livro enquanto ideologia social e política:

...às vezes vultos furtivos andam escrevendo nos seus muros e


paredes palavras e frases politicamente subversivas, quando não
pornográficas.
[...]

Numa dessas últimas madrugadas, abriram fogo contra um


estudante que, com broxa e piche, tinha começado a pintar um
60

palavrão num muro da Rua Voluntários da Pátria. Na calçada, no


lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga mancha de sangue
enegrecido na qual a imaginação popular [...] julgou ver a
configuração do Brasil.
[...]

Aconteceu passar por ali nessa hora um modesto funcionário público


que levava para a escola, pela mão, o seu filho de sete anos. O
menino parou, olhou para o muro e perguntou:
- Que é que está escrito, pai?
-Nada. [...]
O pequeno [...] que já sabia ler, olhou para a palavra de piche e
começou a soletrá-la em voz muito alta: “Li-ber...”.
- Cala a boca, bobalhão! – exclamou o pai, quase em pânico.
(Incidente em Antares, p.484-485)

A palavra “liberdade” era considerada subversiva e como um palavrão


na época da repressão política, como é mostrado pelo trecho do romance de
Erico Verissimo. O sangue do pichador que escorre pelo chão desenhando o
mapa do Brasil é bastante sugestivo. Esse pichador ficcional traduz em palavra
a aspiração maior das personagens do romance (que só tiveram o seu
momento de liberdade de expressão ao ser inserido na obra um elemento
fantástico sobre o qual trataremos posteriormente) e de todo o povo brasileiro.
Esse mapa do Brasil esboçado a sangue alude a todos que morreram lutando
pela liberdade de expressão e pensamento. Interessante atentarmos ao fato de
que o que na verdade era reprimido era a simbologia da palavra liberdade e
não a palavra em si, ou seja, a ideologia por trás da palavra é que era
censurada, como foi censurado o romance Incidente em Antares pela ideologia
que ele trazia e não por causa da história propriamente dita.
Somente uma criança que ainda não tem consciência de ideologia não
possui a censura para ler, em voz alta, a palavra escrita no muro. Para ela era
apenas uma palavra escrita em um muro o que para os adultos era uma
bandeira política. Por isso a criança foi censurada pelo pai e nesta censura
existia a censura embutida do regime militar, ou seja, podemos afirmar que o
pai representava, de certa forma, a voz desse regime. Para o menino, ler
aquela palavra não passava de pura decodificação de letras e uma satisfação
pessoal de conseguir perceber que elas constituíam uma palavra.
Assim, essa voz dominante que anseia por liberdade fica evidente em
Incidente em Antares e mais do que traduzir as aspirações de um povo, ela
traduz a voz de um momento histórico, político e social brasileiro.
61

Essa questão da denúncia em relação à repressão que exercia o regime


militar na sociedade ganha maior representatividade em Incidente em Antares
se atentarmos ao fato de que existe uma similitude entre a data em que
acontece o incidente com os mortos em Antares e a instauração do Ato
Institucional nº 5 (AI-5) no Brasil. O AI-5, que entrou em vigor em 13 de
dezembro de 1968 (em uma sexta-feira) durante o governo do General Costa e
Silva e vigorou até 1978, estabeleceu medidas repressivas, a saber:

Além da cassação generalizada de parlamentares e cidadãos, o AI-5


suspendia o habeas-corpus de presos políticos, reforçava a
centralização do poder no Executivo federal (diminuindo a força
política dos governadores), permitia a decretação de estado de sítio,
sem prévia autorização do Congresso. Em 1969, o governo
regulamentou a censura prévia sobre os meios de comunicação e
sobre os produtos culturais como um todo. (NAPOLITANO, 1998,
p.33)

Se considerarmos que o incidente aconteceu em uma sexta-feira, 13 de


dezembro de 1963, perceberemos que existe um claro diálogo entre o evento
ocorrido em Antares e o decreto do AI-5. A marca da sexta-feira 13, na cultura
popular, como sendo uma data de mau agouro e má sorte, também confere
uma carga de significado muito importante aos dois fatos, já que eles
aconteceram nessa data e foram eventos que trouxeram um impacto negativo
muito forte para as sociedades factual e ficcional, mudando as suas rotinas. O
incidente com os mortos em Antares é a ruptura, o grito de liberdade possível
na literatura, mas repreendido pela realidade factual da sociedade brasileira por
meio do desmascaramento da sociedade hipócrita de Antares. Erico Verissimo,
como respondendo a esse momento político do Brasil, coloca na voz dos
defuntos, que já não eram mais pertencentes ao mundo dos vivos e por isso
não podiam ser repreendidos, todos os anseios do povo neste período de
silêncio do país. Importante ressaltar que Erico Verissimo, apesar de localizar o
incidente no ano de 1963, escreveu Incidente em Antares no período em que o
AI-5 foi instaurado, já que a publicação do romance deu-se em 1971. Dessa
forma foi possível fazer a crítica a esse momento da política nacional.
Como uma grande denúncia a esse momento do Brasil, em tom
paródico, Incidente em Antares evidencia os reflexos do AI-5 na sociedade
brasileira. Além da liberdade de expressão tolhida, os presos políticos eram
62

torturados e não lhes era garantido nenhum direito de defesa (a tortura sofrida
por João Paz tendo como mandante o Delegado Inocêncio Pigarço, no
romance) e a centralização do poder era crucial para efetivar essas medidas
(as oligarquias dos Vacarianos e Campolargos, que mandavam e
desmandavam em Antares). Podemos ainda atentar, em uma possível leitura,
chegando às minúcias do texto de Erico Verissimo, que a abreviatura de Ato
Institucional, AI, é a mesma de Incidente em Antares, IA, só que invertida.
Consideramos que esse detalhe que se revela nas filigranas do texto é mais
um fator que representa a recriação do factual por meio do ficcional do texto
literário. O fato de haver essa inversão na ordem das abreviaturas dá
credibilidade à denúncia contra a repressão no romance de Erico Verissimo
uma vez que é como se o autor imprimisse em seu texto a vontade da
coletividade de ir contra, de inverter a situação do período repressivo de
ditadura militar. Assim, evidenciamos que o texto literário necessita do factual
para a construção dos elementos ficcionais da trama para que o texto possa
dialogar com o leitor e este, por sua vez, possa aguçar o seu olhar crítico para
o mundo que o cerca.
A intertextualidade é outro recurso recorrente no romance de Erico
Verissimo e que também é viabilizado pelas personagens antarenses. Vimos
que o diálogo existente entre externo e interno do texto é bastante forte em
Incidente em Antares para a construção da atmosfera política do livro.
Veremos, agora, como o diálogo entre textos também contribui para essa
construção. Vale ressaltar que abordaremos os casos de intertextualidade mais
expressivos no romance para essa construção da atmosfera política do texto.
Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade
significa a relação entre textos, ou ainda um diálogo entre os textos. De acordo
com Julia Kristeva, “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo
texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Para tanto, é de fácil entendimento quando tratamos do romance de Erico
Verissimo, que trabalha muito bem este conceito, principalmente em suas
personagens.
Já no início do romance, percebe-se um intertexto com a própria história
do país, intertexto este que permeia todo o romance. Incidente em Antares
63

reconta a História do Brasil e do Rio Grande do Sul e o autor recorre a fatos


reais para criar o clima verossímil da narrativa.

Quando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e


Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, à sombra da
bandeira do Império, lutaram juntos contra a ‘indiada de Solano
Lopes’. (Incidente em Antares, p.12).

Esse modo de reler o discurso histórico é marca do escritor gaúcho.


Erico reescreve os fatos históricos, descreve características físicas e
psicológicas de presidentes e governadores, imprimindo, assim, a
verossimilhança ao seu romance. Tudo isso sem perder o viés irônico da
narrativa:
Em Incidente em Antares, [...] a visão do escritor dessacraliza a
História, porque o humor contamina e desconstrói o discurso sério,
pela sátira aos homens que detêm o poder no Rio Grande do Sul.
[...] O compromisso político do discurso emerge para condenar
posições conservadoras, a repressão e a falta de moral. (ALVES,
2006, p. 199).

Um dos traços da personalidade do Coronel Tibério Vacariano é


construído por meio de um intertexto: a releitura da lenda gaúcha registrada por
Simões Lopes Neto 18 , “a Salamanca do Jarau 19 ”:

Era a teiniaguá 20 , de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela


já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum
encontradiço que quase cegou de teimar em agarrá-la. [...] De olhos
apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de cegueira,
assentei no chão a guampa e preparando o bote, num repente, entre
susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela!
(LOPES NETO, 1996, p. 44).

No trecho acima, o conto de tradição oral conta a história de um sacristão que


se viu tentado por uma linda princesa moura que por fugir de seu reduto foi
transformada pelo demônio dos índios em uma salamandra, a Teiniaguá. Por
seu pecado, o sacristão foi condenado à morte, porém a princesa salva-o do
terrível destino, mas os dois ficam confinados em uma caverna no Cerro do
Jarau e só poderiam de lá sair se aparecesse alguém que quebrasse o
encantamento.

18
Simões Lopes Neto foi escritor regionalista do Rio Grande do Sul.
19
Salamanca do Jarau é uma lenda gaúcha originária da tradição oral.
20
De acordo com a lenda gaúcha, teiniaguá é uma princesa moura transformada em lagartixa pelo Diabo
Vermelho.
64

Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e


tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a
alma é um peso entre o mandar e o ser mandado... Nunca mais
dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso [...] O
encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os
homens de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a
sorte nesta salamanca 21 que eu tornei famosa, do Jarau. (LOPES
NETO, 1996, p.54-55).

Em seu romance, Erico retoma esta lenda gaúcha, mas com um tom irônico
que faz de Tibério o sacristão da lenda e de Cléo, a teiniaguá.

- Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?


- Nunca.
- Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau 22 Nunes. Tinha
aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna
do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos
bichos e assombrações mais horríveis...
- E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes –
penetram no capão e encontram a boca da furna. ‘Ai!’ – suspira ela.
– ‘Ai!’. Blau Nunes está alucinado. [...] (Incidente em Antares, p. 69).

Percebe-se o tom malicioso e humorístico do diálogo entre Tibério e sua


amante Cléo, recontando a lenda gaúcha. A tradição oral gaúcha na narrativa é
o palco para traçar a parte promíscua da personalidade do coronel Vacariano.
A lenda regional, criada pelo povo do Rio Grande do Sul, que narra a
superstição de um povo, é empregada como um jogo de sedução. Segundo
José Edil de Lima Alves, “[...] No discurso satírico, durante o ‘incidente’, o
coronel seria chamado de ‘corno’ em praça pública.” (2006, p.201).
A intertextualidade ainda é encontrada por meio do diálogo do romance
de Erico Verissimo com o texto bíblico. Esse diálogo é muito importante, pois
retoma a questão do compromisso com o bem comum e com a integridade
social contra as injustiças do regime militar que enfrenta o Padre Pedro-Paulo.
Oswaldo Antonio Furlan demonstra essa relação em seu estudo Estética e
crítica social em Incidente em Antares (1977):

... o Pe. Pedro registra, em seu diário, como ele, qual José
conduzindo Maria e o Menino para o Egito, ‘contrabandeou’ Rita para
a Argentina e como, no meio do Uruguai, lhe veio à mente o episódio
bíblico: ‘Ocorreu-me um símile que o Pe. Gerôncio acharia profano: a

21
Furna encantada; provém a denominação da cidade de Salamanca, na Espanha, onde existia, de acordo
com lendas espanholas, uma escola de magia, no tempo dos Mouros.
22
Blau é o nome da personagem da lenda da Salamanca do Jarau que salvou o casal de seu cruel destino.
65

fuga da Virgem Maria com o Menino para o Egito’ (p.435) (FURLAN,


1977, p.127)

Neste episódio em que o Padre Pedro-Paulo ajuda Rita Paz a fugir para a
Argentina para que ela não fosse morta pelos torturadores que mataram seu
marido, João Paz, existe uma denúncia contra a repressão que levava muitas
pessoas a fugirem do Brasil e a viverem uma vida clandestina em outro e,
ainda mesmo, àquelas que foram exiladas em outros países pelo regime
militar. Veremos, então, como essa intertextualidade com o texto bíblico
acontece:

Texto Bíblico Texto do Incidente

Deus confia a Moisés a missão de libertar João confia a Rita a missão de salvar o
do cativeiro do Egito os israelitas e de filho, mediante a fuga para a Argentina,
conduzi-los para a Palestina, dizendo: ‘Eu dizendo: ‘Sou eu, teu marido e
sou aquele que é.’ companheiro, quem te delega essa
missão.'
O Anjo do Senhor disse a José: ‘Toma o
menino e sua mãe e foge para o Egito.’ João disse à esposa: ‘Irás em exílio para a
Argentina.’
Deus disse a Eva: ‘Darás à luz com dor os
teus filhos.’ João disse a Rita: ‘E lá terás o nosso filho.’

Deus disse a Adão: ‘Comerás o teu pão João disse à esposa: ‘E depois o criarás
com o suor do teu rosto.’ com o suor do teu rosto.’

A multidão dos Anjos dizia: ‘Paz na terra João disse a Rita: ‘Farás dele um homem
aos homens de boa vontade!’ para que ele um dia possa ajudar as
criaturas de boa vontade a criar um mundo
melhor.’ (FURLAN, 1977, p.127-128)

Assim, comprova-se que o texto bíblico dialoga com Incidente em Antares por
meio da personagem do Padre Pedro-Paulo. O Padre simboliza a salvação não
por meio da religião, mas de suas ações em benefício da sociedade. Neste
ponto a questão religiosa é discutida uma vez que a prática religiosa acontece
quando existe a preocupação com o próximo e quando existe a tentativa de
ajuda a esse próximo e não uma aparente prática religiosa que se restringe
apenas a ida à igreja, como em um evento social sem conteúdo espiritual.
O intratexto (retomada de um texto por outro texto sendo esses dois do
mesmo autor) assim como a intertextualidade, também é recurso importante no
romance. O nome Campolargo aparece pela primeira vez dentro da obra
verissiana em Os devaneios do General, conto de Erico Verissimo e que depois
é retomado em Incidente em Antares. Este conto narra a história de um general
66

aposentado, Chicuta Campolargo, que vive na casa da neta à espera da morte.


O General Campolargo orgulha-se por ter participado das grandes revoluções
em Jacarecanga, sua cidade natal, e de ser respeitado por seu poder social e
político, já que era intendente municipal e chefe político:

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isso já lhe


pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os
seus candidatos: derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua
conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar
uma sova num promotor público que não lhe obedeceu a ordem de
ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um
juiz que tece o caradurismo de assumir ares de integridade e de opor
resistência a uma ordem sua. (VERISSIMO, 1991, p.30)

O intratexto retoma não só o clã dos Campolargo, enquanto nome familiar,


como também seu comportamento simbólico por meio de suas ideologias.
Chicuta Campolargo participa da Revolta Federalista (1893-1895), que levou a
combate republicanos e federalistas. Essa Revolta envolveu as principais
facções políticas do Rio Grande do Sul, sendo os republicanos a favor do
governo centralizador de Júlio de Castilhos e os federalistas contra esse
governo. Dessa forma, podemos verificar que a linhagem dos Campolargo
tendia ao totalitarismo, a uma visão política mais conservadora. Essa ideologia
política se manterá em Incidente em Antares, já que os Campolargo, na figura
de Anacleto Campolargo, serão os fundadores do Partido Conservador em
Antares, enquanto os Vacarianos, fundadores do Partido Liberal. O intratexto,
portanto, não retoma apenas uma família por meio do nome dela, mas uma
ideologia política conservadora que contribui para o entendimento da
construção da visão política das personagens no romance de Erico Verissimo.
Além de o intratexto retomar a herança ideológica contida no nome da
família Campolargo, a cidade em que reside o Coronel Chicuta Campolargo é
outro intratexto bastante significativo. Jacarecanga, pequena cidade do interior
do Rio Grande do Sul, foi cenário de outro romance de Erico Verissimo, Um
lugar ao sol (1936). Como afirma Flávio Loureiro Chaves em O Realismo Social
de Erico Verissimo (1974): “torna-se evidente que, em romances como [...] Um
lugar ao sol, forma-se uma crítica explícita à sociedade rio-grandense e à
tradição patriarcal sacramentada na história oficial da província.” (CHAVES,
1974, p.8). Jacarecanga é palco dessa crítica assim como Antares. E esse
símbolo da tradição patriarcal, alvo de crítica em Um lugar ao sol é feita pela
67

figura de um coronel proveniente da família dos Campolargo, o Coronel


Campolargo. O tecido narrativo de Incidente em Antares é trabalhado nas
filigranas da obra de Erico Verissimo. Este diálogo entre os textos verissianos é
tão profundo que nas páginas iniciais de Um lugar ao sol já existe o mote no
qual Incidente em Antares se construirá, como afirma Chaves (1974):

Essa crítica à má tradição da violência caudilhesca está sintetizada


na caricatura impiedosa do Coronel Campolargo, antigo ditador de
Jacarecanga, cuja decadência física coincide com o momento
histórico da decadência social de sua classe: “... era agora uma peça
de museu. Uns falavam nele ainda com vago orgulho; outros, com
vago temor. E todos sabiam que o velho se finava aos poucos, em
meio, decerto, de visões pavorosas. Ou talvez não conhecesse o
remorso. Os poucos amigos que o visitavam contavam que ele
parecia um leão velho e pesteado, em que todos os burros agora
davam coices. Narravam minúcias de seu sofrimento, da sua lenta
dissolução. O bandido não morria – afirmavam – apodrecia em vida.”
Esse texto colocado em 1936 na páginas iniciais de Um lugar ao sol,
terá sido uma passagem premonitória da farsa macabra em que se
envolvem os mortos-vivos do Incidente em Antares em 1971, onde
significativamente ressurge o nome Campolargo? (CHAVES, 1974,
p.8)

Constatamos que Incidente em Antares encontra suas raízes em outros livros


de Erico Verissimo uma vez que este é seu último romance, uma espécie de
retomada de sua obra completa. Ao intratexto com Um lugar ao sol podemos
somar o intratexto existente com O Tempo e o Vento. O fator natural que
intitula este romance, o vento, está presente também em Incidente em Antares,
com o mesmo sentido em que aparece em O Tempo e o Vento, sempre
prenunciando uma situação fúnebre, de mau agouro.

... E em certas noites, sentada junto do fogo ou da mesa, após o


jantar, Ana Terra lembrava-se de coisas de sua vida passada. E
quando um novo inverno chegou e o minuano começou a soprar, ela
o recebeu como a um velho amigo resmungão que gemendo cruzava
por seu rancho sem parar e seguia campo fora. Ana Terra estava de
tal maneira habituada ao vento que até parecia entender o que ele
dizia. E nas noites de ventania ela pensava principalmente em
sepulturas e naqueles que tinham ido para o outro mundo. [...] Era
por isso que muito mais tarde, sendo já mulher feita, Bibiana ouvia a
avó dizer quando ventava: “Noite de vento noite dos mortos ...”. (O
Tempo e o Vento: o continente, 1974, p.151-152).

Naquele exato instante um freguês entrou na farmácia e pediu um


23
vidro de elixir paregórico . O sino da Matriz começou a dobrar

23
Poção calmante para suavizar as dores do estômago e intestino.
68

finados. Quem teria morrido? [...] E continuaram a discutir o destino


de Getúlio Vargas. E quando de novo se fez silêncio, ouviu-se o uivo
triste e agourento do vento de agosto. (Incidente em Antares, p. 81).

Temos em Incidente em Antares indícios de que existe o diálogo entre esses


textos verissianos. O Professor Martim Francisco Terra, personagem do
Incidente, é descendente, apesar de não saber, de Ana Terra, segunda
geração da família Terra de O Tempo e o Vento. Quem atenta a esse fato é o
Pe. Gerôncio que deixa claro em sua fala essa questão:

O Prof. Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra, que


em fins do século XVIII afastou-se do tronco da família, estabeleceu-
se em Rio Pardo, casou-se com uma moça da vila e lá formou um
forte e frutuoso ramo das árvores dos Terras. Contei tudo isso ao
professor e ele não me pareceu muito entusiasmado. Nunca ouviu
falar na velha Ana Terra, que até hoje é venerada em Santa Fé, a
cidade que ela ajudou a fundar. Era pioneira na acepção exata do
termo, mulher corajosa, de virtudes altíssimas. (Incidente em
Antares, p.141)

Apesar de termos abordado superficialmente a questão do intratexto


entre o Prof. Martim Francisco Terra e a linhagem dos Terra, de O Tempo e o
Vento, quando abordamos a questão da origem do nome do Professor, vale
ressaltar aqui a ideologia por trás desse nome e a carga de significação do
Professor na narrativa de Incidente em Antares. Apesar de ser um descendente
distante da família Terra, de Santa Fé, o Professor Terra não dá importância a
esse fato diferentemente do que acontece com o clã dos Campolargo. Para os
Campolargo, assim como para os Vacarianos, o nome de família representa
um bem material muito importante; é como se fosse uma propriedade que
ficaria de herança para as gerações posteriores. Para os Terra, o nome é
motivo de orgulho na essência do termo, já que apesar de serem uma família
sem grandes posses materiais, eram possuidores de uma coragem e de uma
força muito grandes para lutar por seu povo. Por isso, o Professor Terra não se
importa com o nome que leva, porque o importante para ele é denunciar as
injustiças que as classes mais baixas da sociedade sofrem. Tanto que o fato de
ele não dar importância a seu nome familiar causa espanto ao Pe. Gerôncio,
representante da Igreja Católica em Antares, símbolo do conservadorismo e da
valorização do nome como propriedade familiar.
69

O Tempo e o Vento ainda é retomado por meio de uma cena que se dá


no final do Incidente, quando a cidade é invadida por ratos devido à podridão
dos defuntos insepultos. Rodrigo Celente em artigo para o Jornal Zero Hora de
Porto Alegre, intitulado Erico e o vento intertextual da história (2005), afirma
que:
Em uma passagem de O Tempo e o Vento, a filha de Licurgo e Alice,
Aurora, nasce morta e é enterrada no porão. Alice teme os ratos. A
mesma imagem Erico Verissimo irá colocar em Incidente em Antares
(a cidade cheia de ratos após o tão esperado enterro de seus
mortos) e que, por certo, também se pode buscar em outra narrativa
de outro autor gaúcho, Os Ratos, de Dyonélio Machado. (CELENTE,
2005)

A questão dos ratos em Incidente em Antares retoma, portanto, O tempo e o


Vento em uma relação intratextual entre seus textos. Mas, a simbologia dos
ratos, com significado de doença, contaminação, sujeira é aparente no referido
texto de Dyonélio Machado. O protagonista de Os Ratos, de Dyonélio
Machado, Naziazeno Barbosa, depois de conseguir o dinheiro necessário para
pagar uma dívida, sonha que os ratos estão roendo seu dinheiro e que, assim,
ele não consegue saldar a dívida. O mesmo acontece com Aurora, de O
Tempo e o Vento. Em um momento de descontrole emocional, depois da morte
da filha recém-nascida, ela sonha que os ratos estão comendo o cadáver da
menina e desespera-se de tal forma que fica doente. Em Incidente em Antares
acontece o mesmo. Os ratos invadem a cidade por causa dos cadáveres que
estão no coreto da praça à espera de seus sepultamentos. Com a Operação
Borracha, medida criada pelos próceres de Antares para que o incidente com
os mortos fosse esquecido pela população, a questão dos mortos é colocada
em dúvida se de fato houve ou não houve a volta à vida de sete defuntos.
Portanto todas as conseqüências desse fato também são colocadas em dúvida,
inclusive a invasão dos ratos na cidade. Logo que aparecem os ratos em
Antares, cria-se uma atmosfera de desespero entre o povo que se fecha em
casa. A partir do momento em que é oferecida uma retribuição àquelas
pessoas que conseguissem matar um maior número de ratos, elas começam a
sair de seus lares. Os ratos, portanto, tanto no texto de Dyonélio Machado
quanto nos textos verissianos, estão relacionados à insanidade humana, ao
desespero exacerbado de perda material. Em O Tempo e o Vento, a perda está
relacionada à materialidade do ser humano, à aniquilação do homem. Em Os
70

Ratos e em Incidente em Antares, esta perda relaciona-se mais à questão do


dinheiro, da verdadeira contaminação humana não por meio das doenças que
os ratos podem transmitir, mas da doença que o consumismo, que a ganância
gera.
Assim, comprovamos que o intratexto é recurso literário importantíssimo
na construção da atmosfera política de Incidente em Antares, já que por meio
desse recurso a ideologia política das personagens antarenses pode ser
compreendida evidenciando assim que a obra literária de um autor é um
organismo cujos elementos nutrem-se na relação existente entre eles. Quando
isso acontece, estamos diante de um projeto literário com verdadeiro
compromisso com a literatura.
A ironia é uma forte característica em Incidente em Antares, visto que
esta narrativa tem um caráter de literatura engajada, por denunciar
acontecimentos da época da ditadura militar no Brasil e que segundo Beth
Brait:

... para haver ironia há necessariamente a opacificação do discurso,


ou seja, um enunciador produz um enunciado de tal forma a chamar
a atenção não apenas para o que está dito, mas para a forma de
dizer e para as contradições existentes entre as duas dimensões.
(BRAIT, 1996, p. 106).

Em boa parte de seu texto, Erico Verissimo deixa traços com tom de ironia
como uma estratégia de iludir o leitor ou até mesmo de convencê-lo para
determinado fato. Muitas vezes, a ironia é utilizada para uma denúncia, para
um desabafo do autor na voz de algum personagem ou até mesmo para efeito
cômico.

Em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para


ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo íntimo, formado
em Direito, Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e
começara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias:
influência. (Incidente em Antares, p. 47).

[...]

- Queres que te fale com franqueza? As coisas estão de tal modo


confusas que já não sei mais a quantas andamos. Depois que li nos
jornais que o governo dos Estados Unidos permitiu que as tropas
russas chegassem a Berlim primeiro que as deles, e depois que vi
numa fotografia soldados soviéticos e americanos confraternizando...
bom, não duvido de mais nada. Se me disserem que Deus Nosso
71

Senhor deu uma guinada para a esquerda, eu acredito ... (ibid, p.


53).

[...]

De súbito, mudando o tom de voz, Tibério Vacariano disse:


- O Pe. Gerôncio me disse que a Matriz anda precisando duns
consertos e duma pinturinha.
- O Brasil também, Tibé, o Brasil também. (ibid, p. 57).

Outro recurso muito utilizado por Erico Verissimo em seu romance é o


fantástico. Neste discurso, com que destrói a narrativa tradicional e incorpora o
pensamento de crise do ser humano contemporâneo, Erico levanta um
questionamento sobre a conduta social do regime militar brasileiro. Segundo
Todorov, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece
as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”
(TODOROV, 1992, p.31). Esta hesitação inicia-se a partir do começo do
incidente, visto que o próprio nome do capítulo gera uma dúvida misturada a
uma ansiedade do leitor em saber o que acontecerá, o que gera “a suscitação
da curiosidade do leitor para um incidente estranho”, como afirma Maria da
Glória Bordini em Incidente em Antares: a falência do maravilhoso (1974).
Porém desde a primeira parte do romance, o autor deixa indícios de que o
incidente é permeado por um elemento sobrenatural, diferente, estranho:

Tão insólitos 24 , lúridos 25 e tétricos 26 – e estes adjetivos foram


catados no artigo alusivo àquele dia aziago 27 , escrito pelo jornalista
Lucas Faia para o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por
motivos que oportunamente serão revelados – tão fantásticos foram
esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar,
dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final.
(Incidente em Antares, p.2).

Após o incidente, o leitor continua incerto sobre o que é real, titubeia em sua
interpretação sobre o acontecido, porém aceita o fato e continua a leitura. Isso
ocorre porque segundo Maria da Glória Bordini há “um esforço sistemático para
a acentuação do caráter realístico dos fatos que estão sendo narrados”. Esta é

24
Extraordinário, desacostumado, desusado, incrível.
25
Pálido, lívido.
26
Muito triste, medonho, fúnebre, ameaçador.
27
Funesto, nefasto, de mau agouro, que traz desgraça.
72

outra característica do gênero fantástico, definida por Tzvetan Todorov, em


Introdução à literatura fantástica (1992):

O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitação:


hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o
que percebem depende ou não da “realidade”, tal qual existe na
opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a
personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra
solução, saindo desse modo do fantástico. (TODOROV, 1992, p.48).

O leitor de Incidente em Antares diante do elemento fantástico aguça a sua


curiosidade para compreender o evento, mas depara-se com o fato de não
saber o que pensar, no exato momento em que os mortos levantam de seus
esquifes e postam-se no coreto da praça de Antares à espera de seus
sepultamentos. Naquele momento, nem a população de Antares, nem os
próprios defuntos entendem o que está ocorrendo, o porquê de eles terem
voltado à vida, se realmente estavam mortos ou não, reforçando o conceito de
Todorov. Após este fato, a narrativa evolui, como se não fosse encontrada
qualquer explicação ou como se simplesmente o leitor aguardasse o desfecho
para tentar entender o fato macabro:

Numa relutância supersticiosa focou o rosto do cadáver da dama e


estremeceu. Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram
a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras,
nítidas: “Senhor, em vossas mãos entrego a minha alma”. O ladrão,
soltou um grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna
acesa e o pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos
desertos [...] (Incidente em Antares, p.229-230).

Até o fato do “incidente”, a narrativa é bastante verossímil e possui um


grande teor de realismo. Erico utiliza o fantástico sem perder o viés realista, já
que as personagens comentam sobre a podridão, o cheiro nauseante que
exalam, sobre as moscas que voam ao redor delas e até pelas formigas que
percorrem seus corpos. Ou seja, mesmo mortos, os sete defuntos ainda
possuíam consciência das leis humanas. As pessoas vivas também se
manifestam frente a esse acontecimento reforçando o caráter realista da
narrativa. Algumas se assustam, desmaiam, sentem o cheiro de podridão que
exala dos defuntos, percebem que os mortos não têm sombra e um chega a
tentar matá-los com tiros, sem que os corpos sejam atingidos pelos projéteis,
73

pois apesar de os defuntos terem consciência, a sua matéria está em processo


de decomposição. É como se o leitor estivesse presente à cena, impactado
pela estranha e descabida visão dos defuntos atuando como se estivessem
vivos:

Ao reconhecer naquelas faces cadavéricas as fisionomias de sua


freguesa Quitéria Campolargo e do Dr. Cícero Branco [...] santo
Deus! – D. Clementina abre a boca, solta um vagido, sente que o
mundo se vai aos poucos apagando, deixa cair o vaso, que se parte
em cacos contra o soalho, suas pernas se vergam e ela tomba,
primeiro de joelhos e depois de borco 28 . (Incidente em Antares, p.
256).

... o auto sobe na calçada e esbarra com violência e estrondo contra


a parede dum prédio. O padeiro solta um urro, a respiração
bruscamente cortada, duas costelas quebradas, e ali encurvado
sobre o guidão, resfolgando forte, salivando sangue, o pavor nos
olhos, enquanto pelas suas narinas entra um cheiro adocicado de
carne humana decomposta. (Ibid, p.257).

Os sete defuntos representam as diferentes classes sociais da


sociedade antarense em representação da sociedade brasileira e cada um
pode ser analisado como um símbolo representando uma voz dentro da
narrativa. Por estarem insepultos, podem acusar os vivos e denunciar as
mazelas da sociedade sem temer as conseqüências, já que não fazem mais
parte do mundo dos vivos e, portanto, não têm compromisso com a moral, com
a aparência, com o fingimento dos seres humanos.
Em uma interpretação de ângulo sociológico, prevalece a condição
social de cada defunto insepulto. No topo está D. Quitéria Campolargo,
representando a elite latifundiária e logo abaixo dela a classe do executivo que
opera esquemas ilícitos, Dr. Cícero Branco. Erico Verissimo representa nas
personagens de Barcelona e do professor de música Menandro Olinda os
setores médios da sociedade por meio das profissões de sapateiro e professor.
E para fechar esta “hierarquia”, o autor simboliza em João Paz, Pudim de
Cachaça e Erotildes o grupo dos injustiçados econômicos e políticos. Esta
ordem entre os mortos descreve-se desde o momento em que estes levantam
de seus esquifes até o cortejo rumo à cidade:

28
De boca para baixo; de bruços com a face para baixo.
74

- Avante! – comanda o advogado. Oferece o braço à matriarca dos


Campolargo, que o recusa, altiva, pondo-se a caminhar lentamente,
lançando o pânico entre as formigas, cujas fileiras disciplinadas ela
varre com a fímbria do vestido. Cícero Branco marcha um passo
atrás dela. Joãozinho e Barcelona ladeiam o maestro, como um
guarda de honra. Erotildes e Pudim de Cachaça deixam-se ficar
naturalmente para trás, fechando a marcha. (Incidente em Antares,
p.255).

A decomposição de seus corpos é comparada à podridão da vida na


cidade de Antares e reforça o efeito do fantástico na narrativa, causando horror
ou curiosidade ao leitor. O autor gera um suspense na narrativa permeado por
um clima de denúncia, visto que os mortos direcionam-se ao coreto da praça
para denunciar a podridão da moral da população antarense. Como dissemos
anteriormente, D. Quitéria Campolargo é a matriarca e líder política de Antares,
mas existe outra mulher de muita importância no romance, Erotildes, a
prostituta mais conhecida da cidade, que teve seus tempos de glória, porém
está velha e doente e acaba por ser abandonada no hospital como indigente e
enterrada como tal, morrendo de uma doença já erradicada na época,
simplesmente por descaso médico:

- Essa é a Erotildes, que entre 1925 e 1945, por sua graça e beleza,
foi uma das prostitutas mais famosas de Antares. Era a fêmea mais
procurada do bordel da Venusta, a carne mais cara daquele
perfumado açougue humano. Erotildes virou a cabeça de muita
gente na nossa cidade, até de homens casados, senhores
considerados virtuosos. D. Quita, seu amigo Tibério Vacariano teve
Erotildes como amante exclusiva durante quatro anos [...] (Incidente
em Antares, p.236-237).

Na fala de Cícero Branco, evidencia-se uma crítica à prostituição das mulheres


e, ao mesmo tempo, o quanto a sociedade marginaliza esta classe,
desrespeitando e tratando-a como se não tivessem um papel social importante.
Erotildes está no núcleo das personagens que são abandonadas e esquecidas
por uma sociedade que devia ampará-las. Unem-se a ela o bêbado Pudim de
Cachaça e o jovem João Paz, representantes de classes menosprezadas pelo
governo de Antares.
O narrador, ora o jornalista Lucas Faia, ora o Padre Pedro-Paulo, ora o
Professor Martim Francisco Terra corroboram o conceito sobre o elemento
fantástico, que precisa da confiança do leitor para que os acontecimentos
sobrenaturais na narrativa não sejam contestados, mas causem um
estranhamento. O uso do diário do Padre Pedro-Paulo é um recurso utilizado
75

pelo autor para tornar a narrativa verossímil e fazer com que o leitor permaneça
envolvido na trama, identificando-se com ela, já que o narrador do diário é uma
personagem e ao mesmo tempo, uma figura que representa a Igreja, unidade
que concebe crédito da maioria dos leitores:

... os acontecimentos inexplicáveis serem contados por alguém que


é ao mesmo tempo um dos heróis da história e o narrador: trata-se
de um homem como os outros, sua palavra é duplamente digna de
confiança; em outros termos, os acontecimentos são sobrenaturais,
o narrador é natural: excelentes condições para que o fantástico
apareça. (TODOROV, 1992, p.92).

... não duvidamos do testemunho do narrador; antes procuramos,


com ele, uma explicação racional para estes fatos bizarros. (Ibid, p.
93).

Como prometi a João Paz, levei hoje Rita para o outro lado do rio.
Geminiano emprestou-me o seu jipe para a primeira parte dessa
operação de ‘contrabando’. [...] Quando muito moço, eu me sentia
uma personagem que tinha entrado por engano numa peça a cujo
elenco não pertencia. [...] Um dia, mais velho, decidi olhar a morte
cara a cara ou, melhor, cara a caveira, e daí por diante passei a me
sentir uma pessoa, um indivíduo real, concreto, pertinente e até
cheguei a pensar com saudável petulância: se a morte é a única
coisa absoluta na vida, por que não hei de fazer da minha existência
também um fato absoluto? (Incidente em Antares, p.435-437).

A voz do Padre Pedro-Paulo pode ser entendida como a voz do próprio leitor
que deve tirar suas conclusões sobre o elemento fantástico da narrativa para
dar significação a ele.
O recurso fantástico possibilita a denúncia à conduta hipócrita da
sociedade antarense como representação da hipocrisia que assolava a
sociedade que vivia um regime militar pautado na repressão. Como os seres
que morrem não têm mais compromisso com a sociedade, pois não fazem
mais parte dela, eles podem expressar suas idéias livremente sem que sejam
repreendidos por isso, o que confirma a fala de Cícero Branco:

- Pergunteis com razão como é que conheço tão bem as patifarias


desses dois próceres da nossa comuna, e eu responderei que é
porque, quando vivo, pertenci à quadrilha! Sim, também fui um
chicanista 29 , um peculatário 30 , em suma, um ladrão!

[...]

29
Aquele que é dado a chicanas (tramóias) forenses.
30
Aquele que comete algum tipo de desfalque.
76

- O senhor está se incriminando a si mesmo em público!


- Ora, ora, meu caro magistrado, a morte me confere todas as
imunidades. Estou completamente fora do alcance da lei dos
homens. (Incidente em Antares, p.347)

Não existe, nas leis humanas, repreensão para seres que já morreram,
portanto eles funcionam como a voz abafada das pessoas que viram a sua
liberdade de expressão ser roubada pelo regime militar. Tanto é que depois da
prestação de contas entre mortos e vivos na praça de Antares e posteriormente
ao devido sepultamento dos defuntos, os próceres antarenses tentam criar uma
forma de apagar o fato macabro que trouxe a público a verdade por trás das
máscaras sociais. Foi criada pelo Professor Libindo Olivares, então, a
Operação Borracha cuja finalidade era apagar todo e qualquer resquício do
evento da sexta-feira, 13 de dezembro de 1963:

- Eis o que proponho [...] Organizar uma campanha muito hábil,


sutilíssima, no sentido de apagar esse fato não só dos anais de
Antares como também da memória de seus habitantes. Sugiro (aqui
entre nós) um nome para esse movimento: Operação Borracha.
(Incidente em Antares, p.461)

Assim, o elemento fantástico chega ao fim não só pelo sepultamento dos


mortos, mas pelo sepultamento das lembranças do evento. Mais do que um
problema de ordem material, o que se queria enterrar eram os problemas de
ordem social. Maria da Glória Bordini (1974) comenta que o elemento
fantástico tem fim na trama por meio dos próprios mortos “que se reconhecem
incapazes de fazer frente a hostilidade de seus concidadãos.” (p.13) Esse fato
configura o comportamento simbólico do período militar brasileiro, uma vez que
a liberdade de expressão era controlada por governantes que se diziam
defensores da moral e bons costumes, mas que eram os mesmos
responsáveis por torturarem e, em alguns casos, levarem inocentes à morte.
Esses momentos de tortura passaram, com o decorrer do tempo, por uma
“Operação Borracha” moral, já que se tornaram apenas cicatrizes de um dado
momento político brasileiro.
A título de curiosidade e possível gênese da escolha de sete defuntos
por Erico Verissimo para representarem o recurso fantástico no romance, Maria
da Glória Bordini comenta:
77

...a greve descrita em Incidente tem por fonte uma foto que o autor
encontra numa revista norte-americana. [...] A imagem mostrava 10
ou 12 féretros a jazer diante de um cemitério por causa de uma
greve de coveiros. Ampliando a imagem para uma greve geral de
operários de um pólo industrial de uma cidade interiorana, o autor
passa a inquietar-se com o tema fantástico e com a concentração
parodística que fará da história do Rio Grande do Sul e do Brasil [...]
(BORDINI, 1974, p.13)

Por essa fala de Bordini, podemos ratificar, mais uma vez, que é imprescindível
o diálogo entre o interno e o externo do texto para que a literatura possa
estabelecer uma verdadeira relação entre leitor e texto. Dessa forma, o leitor
não será passivo diante do texto, mas um co-autor do mesmo, pois terá como
inferir por meio do diálogo que pode estabelecer com ele.
Outro recurso literário, o contraponto pode ser entendido como uma
composição em polifonia, de acordo com Aldous Huxley que, fazendo uma
transposição do contraponto musical, criou analogamente o contraponto
literário. Este recurso foi largamente usado por Erico Verissimo em toda a sua
obra, com maior ou menor intensidade, já que foi ele o responsável pela
tradução do livro Point Counter Point de Huxley para o Português. Como define
Rodrigo Celente em Erico e o vento intertextual da história (2005), para o
Jornal Zero Hora de Porto Alegre: “A técnica criada por Huxley consiste em
contar histórias paralelas, com idas e vindas temporais (recuos e avanços) que
ora se tocam, se entrecruzam até chegar num núcleo comum.” Em Incidente
em Antares o contraponto é um recurso sutil que dá à narrativa uma dinâmica
bastante interessante. Incidente em Antares constitui-se de duas partes
distintas: a primeira, que fornece dados históricos sobre o povo antarense e a
constituição de sua sociedade e a segunda, que narra o incidente com os
defuntos insepultos. Na segunda parte, existem momentos de recuo temporal,
que acontecem por meio das lembranças das personagens, para a retomada
de fatos que explicam a conduta das personagens envolvidas no incidente. No
momento da prestação de contas entre mortos e vivos, as histórias das
personagens, que até então não tinham relação entre si, revelam uma ligação
forte por meio da fala dos mortos:

- [...] Tinha quinze anos quando o meu padrasto se passou comigo.


Não houve nada, mas minha mãe, muito ciumenta, me botou pra fora
de casa e então eu vim pra cidade. Como não sabia ler e não queria
78

ser copeira ou cozinheira nem pedir esmola, caí na vida. Fui pra
cama com o primeiro homem que me prometeu dinheiro...
- E você se lembra de quem foi esse homem?
- ‘Naturalmentes’.
- [...] Você o enxerga aqui do coreto?
Erotildes aponta numa direção.

[...]

- Foi aquele ali... o homem da ‘estauta’ – diz.

[...]

- O Com. Leoverildo! [...]


- Esse mesmo. Me levou pra casa dele. [...] Por sinal foi numa sexta-
feira santa. O ano? Deixem ver... 1926?... 1927? Por aí...
Na placa de bronze , embutida na coluna que sustenta o busto lê-se
em caracteres salientes: Ao humanitário Comendador Leoverildo
Grave, digníssimo chefe de família, cidadão benemérito, exemplo
para os pósteros – a cidade agradecida.” (Incidente em Antares,
p.363-364)

A história até então desconhecida da prostituta Erotildes cruza-se com a


história do Comendador Leoverildo Grave, que ganhou um busto de bronze na
praça principal de Antares por sua integridade moral e coragem na defesa na
cidade e do povo antarense. Verificamos que a técnica do contraponto é
importante na narrativa para dar significação às histórias das personagens e
com isso desmascarar a conduta hipócrita de outras. Por meio desse recurso,
as verdadeiras identidades são reveladas e a questão da aparência versus
verdade que assola as sociedades em geral é discutida. Consideramos esse
recurso bastante pertinente para a denúncia de condutas dentro de um regime
militar em que de um lado havia a defesa da moral por parte dos militares, mas
por outro eles eram os mandantes de torturas cruéis a suspeitos de
envolvimento em ações contra o regime militar.
Consideramos, assim, que os recursos literários são ferramentas que
possibilitam ao autor um diálogo com um dado momento histórico, político e
social e conseqüentemente, por meio disso, um diálogo com o seu leitor, uma
vez que este pode refletir sobre esse momento de produção do escritor.
Verificamos que o regime militar brasileiro foi determinante para uma literatura
engajada e comprometida com as questões sociais e políticas, uma ferramenta
de luta contra as injustiças deste período. Em Incidente em Antares, ficou
retratado que a verdade não era conveniente para os próceres de Antares que
79

preferiram continuar atuando no baile de máscaras sociais e lacrar os caixões,


enterrando a verdade com os sete mortos.
80

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os homens estão cada vez mais incrédulos e prosaicos. Já não


crêem em milagres, aparições ou sortilégios. Demarcam
arbitrariamente os domínios do verossímil, esquecendo as lições que
a vida a todo o instante lhes está dando.

Erico Verissimo

Buscaremos apresentar neste capítulo os resultados obtidos ao longo de


nosso estudo sobre a questão da literatura estar em constante diálogo com o
factual, proporcionando ao leitor, assim, uma possibilidade de reflexão sobre
essa realidade em que está inserido.
No primeiro capítulo, verificamos que os aspectos sociais e políticos são
deveras importantes para a construção da obra literária, já que é impossível
desvincular da literatura questões como as condições de produção do autor, a
sociedade em que ele está inserido, os momentos social, histórico e político
que influenciarão sua produção literária. Por esse motivo é que Bakhtin propõe
que o discurso é ao mesmo tempo individual e social, uma vez que o escritor
em um ato individual de escrita, consciente ou inconscientemente, deixa
marcas da coletividade impregnadas em seu texto, já que ele é um elemento
constituinte do organismo social a que pertence. Assim, o escritor cria
significados para a realidade de acordo com a sua experiência social,
revelando, dessa maneira, o caráter dialógico da literatura. Por ter esse caráter
dialógico é que a literatura perpetua-se, pois admite inúmeras leituras de
acordo com as vivências de seu leitor.
Verificamos, também, que política e arte caminham lado a lado já que
ambos manifestam-se por meio das ideologias que representam. De acordo
com nossa pesquisa, nos regimes políticos ditatorias, a presença de uma arte
contestadora, cuja palavra de ordem fosse a liberdade, era muito forte. A
criação artística, para manifestar essa ideologia, teve de criar meios para que
pudesse de fato expressar-se dentro de um regime em que não havia liberdade
de expressão. E quando essa arte subvertia os dogmas políticos, era
brutalmente repreendida. Na literatura, observamos que os recursos literários
utilizados pelo escritor possibilitam a criação de uma realidade ficcional em que
81

se pode refletir sobre questões da realidade factual. Ou seja, a arte é uma


poderosa ferramenta de luta e voz social.
No segundo capítulo, voltado para a literatura, verificamos como, de fato,
os recursos literários dão ao texto possibilidades de diálogos com o factual de
uma forma sutil, mas eficaz. Por meio do romance Incidente em Antares, de
Erico Verissimo, que foi concebido durante um período de repressão militar e
censurado logo após o seu lançamento, ratificamos que os recursos literários
mais expressivos na narrativa foram determinantes para que as questões
sociais, históricas e principalmente políticas fossem discutidas e criticadas.
Longe de ser partidarista de uma ou outra ideologia, o romance de Erico
Verissimo recria a história do país e do Rio Grande do Sul por meio da
produção literária, dando ênfase a fatos de conhecimento nacional, como por
exemplo, a dinâmica da sucessão presidencial em um período de ditadura
militar e como o povo se manifestava em relação a essa sucessão; bem como
a fatos regionais como o comportamento simbólico do povo gaúcho. Assim,
Erico Verissimo cria situações ficcionais de tal forma consoantes com a
realidade factual que é possível estabelecer relações entre o interno e o
externo do texto.
O recontar da História nacional e gaúcha por meio de uma narrativa
ficcional não só é consonante com o pensamento do povo do Rio Grande do
Sul, mas com o pensamento de todos os brasileiros, já que o macrocosmo de
Incidente em Antares é o Brasil, tendo como foco os problemas sociais,
históricos e principalmente políticos que assolaram o país em momentos
pontuais de sua História. Erico Verissimo cumpre seu papel como exímio
romancista já que ele reconstrói a realidade factual em seu texto literário de tal
forma que possibilita ao leitor debater questões e tentar encontrar soluções
para a sociedade a que pertence.
Surge, nesse segundo capítulo, uma conclusão de fundamental
importância: o interno de um texto literário sempre dialoga com o externo dele e
os dois mantêm entre si uma relação dialógica. É esse dialogismo que instigará
o leitor a formar o seu olhar crítico sobre a realidade em que está inserido e
questionar-se sobre seu papel social, histórico e político dentro dessa
realidade. Consideramos, então, que a Literatura cumpre o seu caráter
transformador quando compreendida dessa forma.
82

A obra literária de um autor de fato está comprometida com o caráter


transformador da Literatura quando percebemos que este autor assume a
responsabilidade de fazer de sua obra um verdadeiro instrumento de ação
social por meio da observação crítica que ela possibilita. O escritor fornece ao
seu leitor, por meio da Literatura, as armas mais eficazes para que este possa
desempenhar seu papel de cidadão atuante na sociedade. Dessa forma, cria-
se um vínculo de cumplicidade entre autor e leitor já que este último
transforma-se em co-autor do projeto literário do primeiro. Baseadas nisso,
podemos afirmar que o texto não se encerra nas páginas amarelecidas dos
livros, pois o texto literário não possui fronteiras uma vez que está em
constante diálogo com o leitor que, por sua vez, multiplicará os múltiplos
sentidos desse texto quando por meio dele apurar o seu olhar crítico sobre o
mundo.
Acreditamos, assim, terem sido alcançadas nossas proposições iniciais.
O nosso desejo em relação aos leitores é que tenhamos mostrado a eles as
ferramentas que o texto literário coloca em nossas mãos para podermos
alcançar o prazer da descoberta deste mundo sem limites. Ao leitor de Erico
Verissimo, deixamos uma pequena, mas sincera leitura de um de seus
romances, que poderá contribuir para expandir os horizontes de novas leituras.
E, dando por findo este nosso estudo, a Erico Verissimo nossa
admiração maior:

Erico revive em nossos pensamentos.


Guia os nossos passos às bibliotecas repletas de suas obras,
Certamente deseja que sejamos persistentes.
Que os obstáculos sejam removidos,
E ninguém melhor do que ele para comandar a luta,
Uma luta de pensamentos escritos e vigílias filosóficas,
Uma andança fugidia entre o Tempo e o Vento.
O Tempo passando acelerado pelas veredas do calendário.
O Vento soprando impiedoso sobre as coxilhas da vida.
E em memória de Erico, ergue-se uma cruz.
Uma cruz gigante entre gigantes ciprestes. [...]
Uma Cruz Alta. (ALFONSIN, 1975)
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