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SANTOS – 2008
ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV
BEATRIZ BADIM DE CAMPOS
SANTOS – 2008
ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV
BEATRIZ BADIM DE CAMPOS
Banca Examinadora
__________________________________________
Profª. Ms. Elita Cezar Argemon
Universidade Católica de Santos
__________________________________________
Profª. Drª. Sylvia Maria Corrêa Rocha Homem de Bittencourt
Universidade Católica de Santos
__________________________________________
Prof. Ms. Pedro Paulo Angrisani Gomes
Universidade Católica de Santos
SANTOS – 2008
DEDICATÓRIA
INTRODUÇÃO 7
Incidente em Antares 31
CONSIDERAÇÕES FINAIS 80
REFERÊNCIAS 83
7
INTRODUÇÃO
2004, p.57). A cantora Cynara Faria, integrante do grupo vocal Quarteto em Cy,
que participou ativamente da difusão da MPB nesse período, relatou-nos, em
entrevista exclusiva realizada em 23/04/2008, como a censura tolheu a
liberdade de expressão dos artistas da época:
Numa das vezes, fomos até Brasília para pedir pro Ministro da
Justiça (da época) Armando Falcão, que nos liberasse para fazer o
programa do Chacrinha, na Globo, pois fomos proibidas de atuar no
programa dele por sermos amigas do Chico [Buarque] e, na época,
estarmos com o sucesso Pedro Pedreiro [canção de autoria de Chico
Buarque] nas paradas. O tal do Ministro nos fez voltar pro Rio e fazer
uma carta pro Ministério nos explicando e dizendo que não éramos
subversivas [...] Só para lembrar também, a nossa gravação de
“Tamandaré”, do Chico [Buarque], no comecinho da carreira, em
1966, foi proibida e só em 1991, no CD Chico em Cy nós pudemos
resgatá-la.
Cynara ainda revela como os artistas faziam para expressar o seu desgosto em
relação à repressão militar não usando palavras, pois eram proibidos, mas
utilizando-se de outros artifícios:
Na literatura não foi diferente. Feliz Ano Novo (lançado em 1975), de Rubem
Fonseca, por exemplo, teve sua publicação e circulação proibidas pelo
Departamento da Polícia Federal, por ter sido considerado um livro que
continha cenas pornográficas e de violência.
Por esses exemplos que acabamos de apresentar, fica clara a presença
da política nas artes e na maneira de pensar de toda uma sociedade. É,
portanto, imprescindível considerar a política como parte integrante e
fundamental para a concepção da literatura. Política e sociologia, juntas,
funcionam como estruturas sólidas para a criação de uma realidade ficcional
comprometida com a factual.
Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de
um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e
observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um
osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção
para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples
osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos...
Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em
êxtase. [...] Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado
ao chão, e só continuou a andar quando a briga cessou inteiramente,
e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte.
(ASSIS, 1997, p.215)
Apesar dos termos serem bem próximos, dialogismo e polifonia são dois
conceitos distintos que não devem ser confundidos. Sendo o primeiro o
25
1
Isotopia é uma propriedade que têm os enunciados de serem substituídos por equivalentes no plano do
conteúdo, embora sejam diferentes no plano da expressão.
2
O que faz ou conserta vasilhas de aduela (barris, cubas, pipas, etc.).
3
A melhor espécie de trigo.
4
Planta gramínea que nasce entre o trigo e o danifica, no sentido figurado: coisa de má qualidade que
prejudica as que são boas.
27
A ironia é uma constante neste poema, pois critica a poesia parnasiana e o seu
fazer poético. A própria metáfora da figura dos sapos remete a um humor
irônico, denunciador e proposital. Manuel Bandeira chama de sapos os poetas
parnasianos que somente aceitavam a poesia rimada, formal, como os
sonetos. Bandeira ironiza as reclamações dos parnasianos comparando-as
com o coaxar dos sapos no rio. Todo o poema é uma crítica aos conceitos do
parnasianismo que vigorou nas décadas finais do século XIX e no início do XX.
Outro recurso aplicado à Teoria da Literatura refere-se a construção da
personagem. Esta, por sua vez, é de caráter fundamental em muitos textos,
porque é por meio dela que alguns autores chegam à essência de sua
narrativa. A proximidade entre os seres humanos e as personagens fictícias é
enorme fazendo com que estas tornem-se quase reais. Para Antonio Candido:
5
Multiplicam, germinam.
28
Erico Verissimo
então, todo esse cenário histórico, político e social de Antares, seus costumes,
crenças, mentiras e verdades que preparam o ambiente para o fatídico
episódio de 13 de dezembro de 1963.
A narrativa tem seu início na Era Pré-Histórica da região, com seus
gliptodontes 6 e megatérios 7 fossilizados. Mas para trazer à tona as origens da
formação social de Antares, a narrativa avança um milhão de anos, chegando
ao século XIX, especificamente a 1831. O leitor é convidado a conhecer as
duas famílias que detêm e disputam o poder político, social e econômico
antarense durante cerca de setenta anos: Vacarianos e Campolargos. Serão os
descendentes dessas duas oligarquias antarenses os protagonistas e
coadjuvantes do macabro incidente. A guerra entre estes dois clãs permeia
todo o romance e funciona como uma grande metáfora dos entraves entre os
partidos liberal e conservador que travaram grandes conflitos no Brasil,
principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Erico escreve sobre as oscilações
ocorridas no sistema político do país, sem perder o viés ficcional de seu texto:
6
“...animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de
tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa [...] afora o formidável rabo à feição de tacape riçado
de espigões pontiagudos.” (VERISSIMO, 1971, p.1)
7
Assemelham-se aos gliptodontes. São da família dos mamíferos, desdentados e de porte grande. Fósseis
encontrados nas Américas, principalmente na do Sul.
31
Foi com essa tinta nanquim que Erico Verissimo desenhou uma cidade,
até então desconhecida de seu público, que tem na etimologia de seu nome o
que podemos chamar de “destino traçado”:
[...]
37
[...] ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto
dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão
equivocada fama. (Incidente em Antares, p.38)
8
Nome próprio de um lugar. Do grego topos (lugar) + onyma (nome).
9
Nome próprio de pessoas. Do grego antrophos (homem/pessoa) + onyma (nome)
38
10
Erro ortográfico. Do grego kakós (mau) + graph (escrever).
39
Inocêncio Pigarço não escapa da ironia por trás de seu nome. Apesar da
personagem não ter como característica de personalidade a inocência, seu
nome é preenchido por esse significado. Podemos ver na imagem da
personagem o estereótipo dos delegados torturadores do período de ditadura
militar brasileira. Sem escrúpulos, matavam inocentes e não tinham nenhum
respeito em relação ao ser humano. Inocêncio Pigarço manda matar João Paz,
suspeito de participar de um grupo comunista antarense cuja existência era
desconhecida. Vê-se, nesse ponto, o quão subjetivo era o julgamento que se
fazia de possíveis transgressores das leis – as perseguições a determinadas
pessoas eram feitas, geralmente, mediante suspeita sem fundamento e sem
provas concretas de real envolvimento desses indivíduos em ações contra o
governo. Além de torturar João Paz, o delegado manda torturar a esposa do
rapaz, Rita Paz, que estava grávida, para tentar conseguir as informações que
desejava. Intensifica-se aí o caráter insano, como pontua Furlan, das torturas
40
caso da morte de João Paz. Ele foi o responsável por arquivar o processo de
investigação da morte do rapaz para que ninguém pudesse descobrir que foi a
tortura feita pelo delegado de Antares que o matara e não uma embolia
pulmonar, como foi atestado na causa mortis. Verificamos por meio dessa
personagem o diálogo entre a realidade ficcional e a factual, já que no período
da ditadura militar, muitos processos eram arquivados para que não se
pudessem concluir as investigações e viessem à tona as ilegalidades que os
representantes da lei encobriam.
Já o Dr. Mirabeau da Silva recebe o mesmo nome do Conde de
Mirabeau, jornalista, escritor, político e orador francês que recebeu a alcunha
de “O orador do povo” (L'orateur du peuple). O Promotor Mirabeau da Silva, no
trecho selecionado referente a sua descrição, é caracterizado fisicamente como
um anjo. Mas essa era a máscara social por ele usada, pois, na verdade, o
promotor infringiu as leis para falsificar documentos no caso João Paz.
Interessante perceber que o sobrenome “Silva” é, dentro da cultura brasileira,
muito comum. Apesar de ter um nome de origem francesa, portanto
aristocrática e elitista, tinha suas raízes fincadas em solo popular, sem pompa,
sem rodeios.
Dr. Lázaro Bertioga tem o mesmo nome de Lázaro, a personagem
bíblica, que fica curado de uma enfermidade por um milagre divino. Sendo
médico, esse nome o definiria muito bem, principalmente por ele ser conhecido
na cidade como um médico zeloso e que fazia caridade, tratando de pacientes
pobres. Porém, sua reputação é maculada a partir do momento em que atesta
que João Paz não morreu por causa das agressões sofridas a mando do
delegado, mas sim de embolia pulmonar.
O nome de seu hospital também é bastante significativo e irônico, já que
se chama “Salvator Mundi”, significando “Salvador do Mundo”. Na verdade, o
nome do hospital do Dr. Bertioga não está de acordo com as ações de médico
da personagem. Além de falsificar a causa mortis do atestado de óbito de João
Paz, o médico também foi envolvido no caso da morte da prostituta Erotildes,
que, por ser pobre, foi esquecida no leito para indigentes de seu hospital.
Poderia ser salva caso o doutor trouxesse antibiótico contra a tísica, doença
que levou a óbito a prostituta. Assim, nem o médico e nem seu hospital
assumem o compromisso de “salvar o mundo” e sim de levar seus pacientes a
42
- Seja como for, o Inocêncio Pigarço não teve outra alternativa senão
recorrer aos seus “métodos especiais”.
- Por que não diz a palavra exata: tortura?
- Ora, como advogado, cultivo quando me convém o hábito do
11
eufemismo . (Incidente em Antares, p.247)
11
Figura de estilo que tem por finalidade empregar termos mais “agradáveis” para suavizar uma
expressão. Ex.: “Diabo: Ao porto de Lúcifer.
Parvo: Hã?
Diabo: Ao inferno! [...]” (GIL VICENTE, 2002, p.30, grifo nosso)
43
JOÃO PAZ:
- E dizer-se que lhe corre nas veias o sangue dos Terras de Santa
Fé! [...] Um dia esse moço me visitou e eu lhe mostrei a árvore
genealógica dos Terras Cambarás, fundadores de Santa Fé. O Prof.
Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra [...]
(Incidente em Antares, p.141)
12
A segunda fase das Reduções Jesuíticas (conflitos entre missionários jesuítas e colonos), a
partir de 1862, era denominada de Sete Povos. Essa segunda fase foi marcada por conflitos
entre missionários Jesuítas e Guaranis cuja finalidade era deter o avanço português em
direção ao litoral sul. Para tal, o governo espanhol determinou a fundação de povoados a partir
do Uruguai, ocupando as terras com estâncias e lavouras.
13
“...o professor de Sociologia Martim Francisco Terra da U.R.G.S.” (Incidente em Antares,
p.125). Oswaldo Antônio Furlan emprega a sigla U.F.R.S. para denominar a mesma instituição.
Consideraremos como certa a sigla que aparece no livro de Erico Verissimo.
45
PADRE PEDRO-PAULO:
ele apóia a greve dos trabalhadores e luta pelos pobres. Mais uma vez
verificamos o julgamento subjetivo por parte da elite de uma sociedade a
pessoas que, de certa forma, transgridem as regras impostas. Mais um indício
de que existe o diálogo entre texto e condições de produção do autor.
Outras personagens também possuem antropônimos significativos,
porém Oswaldo Antônio Furlan, em seu livro, dá destaque a essas, pois são as
mais relevantes no romance de Erico Verissimo, mas vale lembrar algumas
outras personagens, tamanha importância por seus antropônimos dentro da
trama.
D. Quitéria Campolargo, matriarca da tradicional família gaúcha dos
Campolargos, traz no nome a sua missão de vida e de morte: quitar as
diferenças entre as classes sociais, entre vivos e mortos, entre aparência e
essência. Em Erico Verissimo: Provinciano e Universal (2006), organizado pelo
escritor José Edil de Lima Alves, a sua luta em vida e a sua importância à
frente da família são evidenciadas indo de encontro a sociedade machista de
Antares:
14
Estojo, guarda-jóias.
49
Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era
uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e
até de uma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte
do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor
garbo, o cetro de patriarca, D. Quita [...] passar a ser [...] “o poder por
trás do trono”. (Incidente em Antares, p.38-39)
15
No romance de Erico Verissimo, a palavra tísica (tuberculose pulmonar) é usada em lugar de
tuberculose - empregada no trecho selecionado do livro organizado por José Edil de Lima Alves - para
determinar a causa mortis da personagem Erotildes: “- De que foi que essa mulher morreu?
- Tísica.” (Incidente em Antares, p.237)
16
Termo relativo à psicanálise. Usado por Freud para agrupar aquilo a que chamou o instinto de morte e o
instinto de destruição.
51
seja quase nula, pois ele não possui nada na vida, sequer um nome que o
individualize:
- Santo Deus! – exclama D. Quitéria – Que é “isso”!?
- O maior beberrão de Antares – diz o advogado – o nosso famoso
Pudim de Cachaça. (Incidente em Antares, p.238)
[...]
[...]
- [...] Sempre fui uma peste. Pobre da Natalina! Tomara que não
botem ela na cadeia. (Incidente em Antares, p.238-239)
o responsável por dar a idéia de não sepultar os mortos até que os pedidos dos
grevistas fossem atendidos:
17
Pessoa que tende à mitomania; à mentira.
53
recital no Teatro São Pedro, de Porto Alegre, foi um grande desastre, pois o
“maestro” fracassa ao executar Appassionata, obra de Ludwig van Beethoven:
Esse episódio fica marcado em sua vida de tal forma que ele não consegue
mais reerguer-se na profissão. Torna-se professor de piano e morre sem antes
conseguir tocar com êxito Appassionata. Nesta personagem está contida a voz
de “...pessoas que, pelos mesmos motivos, nunca conseguem chegar aos seus
objetivos na vida.” (ALVES, 2006, p.211). São as fraquezas humanas postas
em xeque de forma a mostrar a face defeituosa e não a aparência envernizada
do ser humano.
Por meio da análise etimológica dos antropônimos das personagens
mais significativas de Incidente em Antares, constatamos que as personagens
são recursos importantíssimos que possibilitam ao escritor inserir críticas e
dialogar com o externo do texto. O escritor, ao criar as personagens de sua
narrativa, comporta-se como uma espécie de “bruxo que vai dosando poções
que se misturam num mágico caldeirão” (BRAIT, 2002, p.52). Suas
personagens podem ser “tiradas de sua vivência real ou imaginária, [...] ou das
mesquinharias do cotidiano” e “a materialidade desses seres só pode ser
atingida por meio de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e
sensíveis os seus movimentos.” (BRAIT, 2002, p.52) A linguagem, portanto, é
determinante para que as personagens cumpram seus papéis dentro da
narrativa e é por meio dessa linguagem que o leitor decifra os códigos para
penetrar na essência de cada uma delas.
A personagem, em Incidente em Antares, é o recurso literário mais
importante e expressivo do romance, já que é por meio dele que os outros
recursos literários se manifestarão. Como vimos, a ironia está presente não só
nos nomes das personagens, mas também na fala delas, na sua maneira de
agir e lidar com as mais variadas situações na trama. O diálogo que existe
entre o interno e o externo do romance também é estabelecido por meio das
personagens, nas classes sociais a que representam e por meio de sua
54
[...]
[...]
- Vamos dar nome aos bois. Não caia nas garras do P.T.B. Não se
mete com os socialistas, com essa cambada de esquerda.
Jânio sorriu enigmaticamente.
- Meu caro Cel. Vacariano, o senhor ouviu o meu discurso. Se eleito,
pretendo cumprir à risca tudo quanto tenho prometido ao povo
durante esta campanha memorável.
- Pois é, mas as pessoas quando chegam “lá em cima” em geral
mudam, esquecem as promessas feitas nos discursos e nas
entrevistas. Noutras palavras, tenho medo de que o senhor atire a
sua vassoura para um canto e não varra a casa.
- Pois, coronel, se o senhor pensa assim vai ter uma surpresa.
Pretendo usar a vassoura, e com muito vigor. (Incidente em Antares,
p.110-111)
torturados e não lhes era garantido nenhum direito de defesa (a tortura sofrida
por João Paz tendo como mandante o Delegado Inocêncio Pigarço, no
romance) e a centralização do poder era crucial para efetivar essas medidas
(as oligarquias dos Vacarianos e Campolargos, que mandavam e
desmandavam em Antares). Podemos ainda atentar, em uma possível leitura,
chegando às minúcias do texto de Erico Verissimo, que a abreviatura de Ato
Institucional, AI, é a mesma de Incidente em Antares, IA, só que invertida.
Consideramos que esse detalhe que se revela nas filigranas do texto é mais
um fator que representa a recriação do factual por meio do ficcional do texto
literário. O fato de haver essa inversão na ordem das abreviaturas dá
credibilidade à denúncia contra a repressão no romance de Erico Verissimo
uma vez que é como se o autor imprimisse em seu texto a vontade da
coletividade de ir contra, de inverter a situação do período repressivo de
ditadura militar. Assim, evidenciamos que o texto literário necessita do factual
para a construção dos elementos ficcionais da trama para que o texto possa
dialogar com o leitor e este, por sua vez, possa aguçar o seu olhar crítico para
o mundo que o cerca.
A intertextualidade é outro recurso recorrente no romance de Erico
Verissimo e que também é viabilizado pelas personagens antarenses. Vimos
que o diálogo existente entre externo e interno do texto é bastante forte em
Incidente em Antares para a construção da atmosfera política do livro.
Veremos, agora, como o diálogo entre textos também contribui para essa
construção. Vale ressaltar que abordaremos os casos de intertextualidade mais
expressivos no romance para essa construção da atmosfera política do texto.
Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade
significa a relação entre textos, ou ainda um diálogo entre os textos. De acordo
com Julia Kristeva, “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo
texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Para tanto, é de fácil entendimento quando tratamos do romance de Erico
Verissimo, que trabalha muito bem este conceito, principalmente em suas
personagens.
Já no início do romance, percebe-se um intertexto com a própria história
do país, intertexto este que permeia todo o romance. Incidente em Antares
63
18
Simões Lopes Neto foi escritor regionalista do Rio Grande do Sul.
19
Salamanca do Jarau é uma lenda gaúcha originária da tradição oral.
20
De acordo com a lenda gaúcha, teiniaguá é uma princesa moura transformada em lagartixa pelo Diabo
Vermelho.
64
Em seu romance, Erico retoma esta lenda gaúcha, mas com um tom irônico
que faz de Tibério o sacristão da lenda e de Cléo, a teiniaguá.
... o Pe. Pedro registra, em seu diário, como ele, qual José
conduzindo Maria e o Menino para o Egito, ‘contrabandeou’ Rita para
a Argentina e como, no meio do Uruguai, lhe veio à mente o episódio
bíblico: ‘Ocorreu-me um símile que o Pe. Gerôncio acharia profano: a
21
Furna encantada; provém a denominação da cidade de Salamanca, na Espanha, onde existia, de acordo
com lendas espanholas, uma escola de magia, no tempo dos Mouros.
22
Blau é o nome da personagem da lenda da Salamanca do Jarau que salvou o casal de seu cruel destino.
65
Neste episódio em que o Padre Pedro-Paulo ajuda Rita Paz a fugir para a
Argentina para que ela não fosse morta pelos torturadores que mataram seu
marido, João Paz, existe uma denúncia contra a repressão que levava muitas
pessoas a fugirem do Brasil e a viverem uma vida clandestina em outro e,
ainda mesmo, àquelas que foram exiladas em outros países pelo regime
militar. Veremos, então, como essa intertextualidade com o texto bíblico
acontece:
Deus confia a Moisés a missão de libertar João confia a Rita a missão de salvar o
do cativeiro do Egito os israelitas e de filho, mediante a fuga para a Argentina,
conduzi-los para a Palestina, dizendo: ‘Eu dizendo: ‘Sou eu, teu marido e
sou aquele que é.’ companheiro, quem te delega essa
missão.'
O Anjo do Senhor disse a José: ‘Toma o
menino e sua mãe e foge para o Egito.’ João disse à esposa: ‘Irás em exílio para a
Argentina.’
Deus disse a Eva: ‘Darás à luz com dor os
teus filhos.’ João disse a Rita: ‘E lá terás o nosso filho.’
Deus disse a Adão: ‘Comerás o teu pão João disse à esposa: ‘E depois o criarás
com o suor do teu rosto.’ com o suor do teu rosto.’
A multidão dos Anjos dizia: ‘Paz na terra João disse a Rita: ‘Farás dele um homem
aos homens de boa vontade!’ para que ele um dia possa ajudar as
criaturas de boa vontade a criar um mundo
melhor.’ (FURLAN, 1977, p.127-128)
Assim, comprova-se que o texto bíblico dialoga com Incidente em Antares por
meio da personagem do Padre Pedro-Paulo. O Padre simboliza a salvação não
por meio da religião, mas de suas ações em benefício da sociedade. Neste
ponto a questão religiosa é discutida uma vez que a prática religiosa acontece
quando existe a preocupação com o próximo e quando existe a tentativa de
ajuda a esse próximo e não uma aparente prática religiosa que se restringe
apenas a ida à igreja, como em um evento social sem conteúdo espiritual.
O intratexto (retomada de um texto por outro texto sendo esses dois do
mesmo autor) assim como a intertextualidade, também é recurso importante no
romance. O nome Campolargo aparece pela primeira vez dentro da obra
verissiana em Os devaneios do General, conto de Erico Verissimo e que depois
é retomado em Incidente em Antares. Este conto narra a história de um general
66
23
Poção calmante para suavizar as dores do estômago e intestino.
68
Em boa parte de seu texto, Erico Verissimo deixa traços com tom de ironia
como uma estratégia de iludir o leitor ou até mesmo de convencê-lo para
determinado fato. Muitas vezes, a ironia é utilizada para uma denúncia, para
um desabafo do autor na voz de algum personagem ou até mesmo para efeito
cômico.
[...]
[...]
Após o incidente, o leitor continua incerto sobre o que é real, titubeia em sua
interpretação sobre o acontecido, porém aceita o fato e continua a leitura. Isso
ocorre porque segundo Maria da Glória Bordini há “um esforço sistemático para
a acentuação do caráter realístico dos fatos que estão sendo narrados”. Esta é
24
Extraordinário, desacostumado, desusado, incrível.
25
Pálido, lívido.
26
Muito triste, medonho, fúnebre, ameaçador.
27
Funesto, nefasto, de mau agouro, que traz desgraça.
72
28
De boca para baixo; de bruços com a face para baixo.
74
- Essa é a Erotildes, que entre 1925 e 1945, por sua graça e beleza,
foi uma das prostitutas mais famosas de Antares. Era a fêmea mais
procurada do bordel da Venusta, a carne mais cara daquele
perfumado açougue humano. Erotildes virou a cabeça de muita
gente na nossa cidade, até de homens casados, senhores
considerados virtuosos. D. Quita, seu amigo Tibério Vacariano teve
Erotildes como amante exclusiva durante quatro anos [...] (Incidente
em Antares, p.236-237).
pelo autor para tornar a narrativa verossímil e fazer com que o leitor permaneça
envolvido na trama, identificando-se com ela, já que o narrador do diário é uma
personagem e ao mesmo tempo, uma figura que representa a Igreja, unidade
que concebe crédito da maioria dos leitores:
Como prometi a João Paz, levei hoje Rita para o outro lado do rio.
Geminiano emprestou-me o seu jipe para a primeira parte dessa
operação de ‘contrabando’. [...] Quando muito moço, eu me sentia
uma personagem que tinha entrado por engano numa peça a cujo
elenco não pertencia. [...] Um dia, mais velho, decidi olhar a morte
cara a cara ou, melhor, cara a caveira, e daí por diante passei a me
sentir uma pessoa, um indivíduo real, concreto, pertinente e até
cheguei a pensar com saudável petulância: se a morte é a única
coisa absoluta na vida, por que não hei de fazer da minha existência
também um fato absoluto? (Incidente em Antares, p.435-437).
A voz do Padre Pedro-Paulo pode ser entendida como a voz do próprio leitor
que deve tirar suas conclusões sobre o elemento fantástico da narrativa para
dar significação a ele.
O recurso fantástico possibilita a denúncia à conduta hipócrita da
sociedade antarense como representação da hipocrisia que assolava a
sociedade que vivia um regime militar pautado na repressão. Como os seres
que morrem não têm mais compromisso com a sociedade, pois não fazem
mais parte dela, eles podem expressar suas idéias livremente sem que sejam
repreendidos por isso, o que confirma a fala de Cícero Branco:
[...]
29
Aquele que é dado a chicanas (tramóias) forenses.
30
Aquele que comete algum tipo de desfalque.
76
Não existe, nas leis humanas, repreensão para seres que já morreram,
portanto eles funcionam como a voz abafada das pessoas que viram a sua
liberdade de expressão ser roubada pelo regime militar. Tanto é que depois da
prestação de contas entre mortos e vivos na praça de Antares e posteriormente
ao devido sepultamento dos defuntos, os próceres antarenses tentam criar uma
forma de apagar o fato macabro que trouxe a público a verdade por trás das
máscaras sociais. Foi criada pelo Professor Libindo Olivares, então, a
Operação Borracha cuja finalidade era apagar todo e qualquer resquício do
evento da sexta-feira, 13 de dezembro de 1963:
...a greve descrita em Incidente tem por fonte uma foto que o autor
encontra numa revista norte-americana. [...] A imagem mostrava 10
ou 12 féretros a jazer diante de um cemitério por causa de uma
greve de coveiros. Ampliando a imagem para uma greve geral de
operários de um pólo industrial de uma cidade interiorana, o autor
passa a inquietar-se com o tema fantástico e com a concentração
parodística que fará da história do Rio Grande do Sul e do Brasil [...]
(BORDINI, 1974, p.13)
Por essa fala de Bordini, podemos ratificar, mais uma vez, que é imprescindível
o diálogo entre o interno e o externo do texto para que a literatura possa
estabelecer uma verdadeira relação entre leitor e texto. Dessa forma, o leitor
não será passivo diante do texto, mas um co-autor do mesmo, pois terá como
inferir por meio do diálogo que pode estabelecer com ele.
Outro recurso literário, o contraponto pode ser entendido como uma
composição em polifonia, de acordo com Aldous Huxley que, fazendo uma
transposição do contraponto musical, criou analogamente o contraponto
literário. Este recurso foi largamente usado por Erico Verissimo em toda a sua
obra, com maior ou menor intensidade, já que foi ele o responsável pela
tradução do livro Point Counter Point de Huxley para o Português. Como define
Rodrigo Celente em Erico e o vento intertextual da história (2005), para o
Jornal Zero Hora de Porto Alegre: “A técnica criada por Huxley consiste em
contar histórias paralelas, com idas e vindas temporais (recuos e avanços) que
ora se tocam, se entrecruzam até chegar num núcleo comum.” Em Incidente
em Antares o contraponto é um recurso sutil que dá à narrativa uma dinâmica
bastante interessante. Incidente em Antares constitui-se de duas partes
distintas: a primeira, que fornece dados históricos sobre o povo antarense e a
constituição de sua sociedade e a segunda, que narra o incidente com os
defuntos insepultos. Na segunda parte, existem momentos de recuo temporal,
que acontecem por meio das lembranças das personagens, para a retomada
de fatos que explicam a conduta das personagens envolvidas no incidente. No
momento da prestação de contas entre mortos e vivos, as histórias das
personagens, que até então não tinham relação entre si, revelam uma ligação
forte por meio da fala dos mortos:
ser copeira ou cozinheira nem pedir esmola, caí na vida. Fui pra
cama com o primeiro homem que me prometeu dinheiro...
- E você se lembra de quem foi esse homem?
- ‘Naturalmentes’.
- [...] Você o enxerga aqui do coreto?
Erotildes aponta numa direção.
[...]
[...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Erico Verissimo
REFERÊNCIAS
Bibliográficas e Telemáticas:
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