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HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL

II

OTTO MARÍA CARPEAUX

HISTORIA DA
LITERATURA
OCIDENTAL

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EDigOES O CRUZEIRO

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ÉsTE UV1IU KOI COMPOSTO E IMPRBS80 ÑAS OFICINAS
DA EMPRESA GRÁFICA O CRUZEIRO S. A... BM
AGOSTO DE 1 9 6 0 , PARA AS E D I C O E S O CRUZEIRO,
RÚA DO LivnAMBNTo, 189/203, R í o DB J A N E I R O .

Universidad* EsUduil dt Mtrtn|É


S.stema de Blbllot.eM • • «

0 CRUZEIRO

Oiretor
HERBERTO SALES

DlREITOS AUTORAIS ADQUIRIDOS PBLA EMPRESA


GRÁFICA O CRUZEIRO S. A., QUB SB RBSBRVA
A PROPRIEDADE UTERÁHIA DA PRESENTE BDICÁO.

PARTE V

BARROCO E CLASSICISMO

'4k
CAPÍTULO I

O PROBLEMA DA LITERATURA BARROCA

século X V I I , que se estende, mais ou menos, de 1580


O a 1680, é o mais rico de todos na historia da literatura
universal; e para justificar o superlativo basta citar alguns
nomes, escolhidos ao acaso e classificados conforme os
anos de nascimento: Tasso, Cervantes, Góngora, Lope de
Vega, Shakespeare, Tirso de Molina, Ben Jonson, Donne,
J o h n Webster, Quevedo, Ruiz de Alarcón, Vondel, Come-
nius, Calderón, Gracián, Corneille, Milton, La Rochefou-
cauld, La Fontaine, Marvell, Moliere, Pascal, Mme de
Sévigné, Bossuet, Bunyan, Pepys, Mme de La Fayette,
Boileau, Racine, La B r u y e r e . Os pintores de solenes qua-
dros históricos, no século XIX, costumavam agrupar em
torno de um rei todas as figuras ilustres da sua época, e
nao haveria companhia mais ilustre para um quadro do
que aqueles poetas e escritores, se fósse possivel encontrar
um centro para éles. Mas um centro assim nao existe no
século X V I I . A riqueza é abundante demais, e os caracte-
res nacionais das literaturas — da italiana, espanhola, fran-
cesa, inglesa, holandesa — já estáo de tal modo marcados
que é impossivel encontrar um centro comum de gravi-
tacao. A historiografia literaria antiga, incapaz de de-
finir o caráter universal da literatura do Béculo X V I I . es-
colheu como centro, arbitrariamente, a corte do rei Luís
X I V da Franca; e, em conseqüéncia, a literatura nao fran-
cesa da época se perdeu de vista ou entáo se fragmentou,
em pedacos sem .relacio de uns com os outros. Aos crí-
ticos classicistas do século X V I I I pareceu que só a Franca
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 685
tinha produzido, no século X V I I , urna grande literatura;
Shakespeare e Calderón foram condenados como genios gares-comuns fúteis ou sentimentos insinceros — teria con-
"incultos" de literaturas "bárbaras". quistado a Europa inteira, de Portugal á Suécia. A seme-
O senso histórico dos críticos románticos nao se podia Ihanca entre aqueles estilos é inegável; todos éles derivam
conformar com o absolutismo daquele dogma estético. direta ou indiretamente da "lingua culta" das élites aris-
Admitiram-se no seio das grandes épocas literarias o tea- tocráticas da Renascenca. Mas a análise mais exata das
tro elisabetiano-jacobeu de Shakespeare e o teatro espa- origens históricas daqueles estilos já nao permite confun-
nhol de Lope de Vega e Calderón. Mas o criterio da di-los. Pelo contrario, impóem-se distingoes nítidas.
admissao era arbitrario: "isso também é grande literatura,
O primeiro erro fundamental foi a justaposigáo do eu-
<• admirável." Nao era um criterio estilístico, capaz de
fuísmo, fenómeno literario do século X V I , ao marinismo
opor-se ao criterio classicista. A literatura francesa do
e gongorismo, do século X V I I . Por motivos lingüísticos e
século X V I I continuava como grupo estilístico bem defi-
sociais, a Renascenca chegou á Inglaterra mais tarde do
nido, de Corneille e Pascal até Racine e La B r u y é r e ; o
que as outras grandes nacóes européias. Spenser é poste-
teatro inglés e o teatro espanhol foram considerados como
rior a Garcilaso e Ronsard. Mas no estilo marinista a In-
excecoes admiráveis ácima do resto das suas literaturas,
glaterra teria precedido os outros? Na Inglaterra teria
que ficou ignorado e desprezado. Só assim se explica o
acontecido o paradoxo de o estilo barroco preceder a Re-
equívoco de que Lope de Vega e Shakespeare tivessem sido
nascenga? Lyly, o representante do eufuísmo, influiu no
considerados como poetas renascentistas; os poetas seus
estilo das comedias de Shakespeare; Shakespeare, no en-
contemporáneos, os Góngoras e Donnes, que nao era possí-
tanto, é considerado como poeta máximo da Renascenca
vel, nem com a maior boa vontade, considerar como repre-
inglesa, com a conseqüéncia de que os seus contemporá-
sentantes da Renascenca, continuavam condenados. Ainda
neos aparecem num manual divulgadíssimo da literatura
existem manuais da literatura espanhola e inglesa nos
inglesa como "Decline of the Renaissance" — um Ben
quais o estilo de Góngora é explicado por urna doenca
Jonson e um Donne como decadentes! O verdadeiro equi-
mental do poeta e o nome de Donne nem sequer figura.
valente do gongorismo-marinismo na literatura inglesa nao
Fora da Franja, o século X V I I parecia — e parece a muitos
é o eufuísmo, e sim o grupo dos "metaphysical poets" do
até hoje — dominado pelo "mau gósto" do marinismo na
século X V I I I , Donne, Herbert, Crashaw, Vaughan, Marvell,
Italia, do gongorismo na Espanha, do eufuísmo na Ingla-
e em alguns entre éles há realmente influencia do mari-
terra; a éles, a crítica associava os "précieux" franceses
nismo italiano, especialmente em Crashaw. Mas sobre ésses
que deviam desaparecer, enfim, para dar lugar á arte pura
poetas pairava a sentenca condenatoria do grande crítico
do estilo Luís X I V . O dogma classicista de Boileau, rene-
classicista Samuel Johnson. O desprézo era táo profundo
gado com os labios, continuava ou continua em vigor.
que produziu a ignorancia; nos comegos do século XIX,
um crítico tao grande como Hazlitt confessou ter lido
"Mau gósto" ou nao, naquela condenacáo geral do mari- pouca coisa de Donne e Marvell, e nos compendios de li-
nismo, gongorismo, eufuísmo e preciosismo manifesta-se teratura inglesa désse século XIX nem sequer aparece o
a primeira tentativa de definir um estilo comum do século nome de Donne. • A visáo da evolugáo histórica da lite-
X V I I . O marinismo — a maneira poética de falar em con- ratura inglesa ficou inteiramente desfigurada, porque o
ceitos espirituosos e metáforas atetadas para exprimir lu- dogma classicista impunha ignorar a literatura do Bar-
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roco inglés. Em compensagáo, considerava-se como "ma- qual Góngora se teria inspirado ( 3 ). O indicio é bastante
rinista" o eufuísmo, que é coisa diferente. fraco. O próprio Lucien-Paul Thomas, que aventurara a
A s fontes espanholas de Lyly já foram verificadas: hipótese, preferiu depois definir o gongorismo como rea-
encontram-se em Antonio Guevara, na Espanha da pri- gao antiitaliana contra a poesía renascentista, reagáo ins-
meira metade do século X V . Mas entre Guevara-Lyly e os pirada na poesía castelhana "flamboyante" do século XV
"metaphysical poets" nao existe relagao alguma. Estudos ( 4 ). O papel de Carrillo y Sotomayor fica reduzido ao de
recentes revelam outras fontes do eufuísmo, urnas italia- um intermediario e n t r e Góngora e Herrera ( 6 ), e o resul-
nas e outras mais remotas aínda: Lyly, que imitou o estilo tado dos estudos recentes é urna linha de evolugáo autó-
afetado das obras de mocidade de Boccaccio (Filocolo), noma, cspanhola, de Garcilaso de la Vega, através de Fer-
encontrou o hábito e até exemplos da metáfora rara no nando de Herrera, a Góngora (°).
livro Emblematus libellus (1522), do notável historiador O preciosismo francés sempre foi explicado por in-
lombardo Andrea Alciato; enfim, fontes latinas medie- fluencias espanholas e italianas. Alegaram-se as relagoes
vais ( ' ) . do famoso Antonio Pérez, secretario exilado do rei Filipe
O marinismo italiano tem outra origem. Caracteriza-se I I , com o grupo da Marquesa de Rambouillet e Voiture. O
menos, talvez, pelo estilo do que pela mentalidade, mistura fato de ter Pérez morrido em 1611, ano em que comegaram
de lascivia e melancolía cora religiosidade algo hipócrita as reunióes no salao da Marquesa (o Hotel de Rambouil-
e veleidades de poesía pastoril. Ésses elementos definem let, quartel-general dos "précieux", só se abriu em 1617),
a fonte em que Marino se inspirou: Tasso. Com efeito, nao basta para desmentir a hipótese. Mas as cartas de Pé-
Tasso é o grande poeta da Contra-Reforma e a comparagáo rez nao se parecem com as de Voiture; justamente o espa-
com Ariosto basta para excluir qualquer possibilidade de nhol Pérez nao representa o tipo do estilo barroco. Marino
tratá-lo como poeta da Renascenga ( 2 ). E essa interpreta- estéve em Paris de 1615 a 1623, e foi admiradíssimo ( 7 ) ; mas
gao de Tasso abre novas perspectivas á definigao do estilo nao foi urna admiragáo incondicional. O poeta foi prote-
literario barroco. gido pela corte barroca da rainha María de Médicis; mas
no Hotel de Rambouillet as maneiras pomposas, espanho-
As relagoes entre o marinismo e o gongorismo espa-
nhol sao das mais complicadas. O primeiro representante,
ou antes, precursor do gongorismo, Luis Carillo y Soto- 3) L.-P. Thomas: Le lyrisme et la préciosité cultistes en Espagne.
mayor, estéve na Italia; escreveu um tratado marinista, HaUe, 1909.
o Libro de la erudición poética (publicado em 1611), no 4) L.-P. Thomas: Góngora et le gongor\sme consideres dans leurs
rapports avec le marinisme. París, 1911. ^_
6) J. García Sorano: "Luis Carrillo y Sotomayor y los orígenes del
1) Com respeito as origens espanholas do eufuísmo, cf. "Renascenca culteranismo". (In: Boletín de la Academia Espaiíola, A H Í , 1926.)
Internacional", notas 93 e 94. Sobre as origens Italianas, cf. M.
Praz: Studi sul Cbncettismo. Firenze, 1934. Sobre as fontes me- C) Cf. a discussáo das opini6es discordantes em:
dlevals, cf. M. W. Croll: Introdu?áo da edigáo de Euphues por M. Arce Blanco: Garcilaso de la Vega. Madrid, 1930.
H. Clemon, London, 1916. 7) W. Cabeen: L'influence de Giovanni Battista Marino sur la litté-
2) Th. Spoerri: Renaissance und Barock bei Ariost und Tasso. Zue- rature /rancaise dans la premiére moitié du XVlIe. siécle. Ore-
rich, 1922. noble, 1904.
T. Chlappelli: "Tassos Stll Im Uebergang von Renaissance zu Ba- F. Picco: Salotti Jrancesi e poeti italiani nel Seicento. Torlno.
rock", <In: Trivium, 7, 1949.) 1905.
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OTTO M A R Í A CARPEAUX
tudo, há mais de 30 anos já é intenso o trabalho de retifi-
las, no napolitano, causaram estranheza. Na Franca, o ma- cacáo e reabilitacáo, tendo produzido vasta bibliografía
rinismo encontrou só um representante auténtico: Chape- sobre o assunto, especialmente na Alemanha ( l l ) . O ponto
lain, que escreveu o prefacio do Adone, de Marino, e o imi- de vista antigo foi típicamente francés. Na Franca, e só
tou. Com respeito ás origens do preciosismo, admite-se na Franga, o estilo barroco foi vencido e eliminado, cedo
hoje a possibilidade de urna evolucáo autónoma, francesa, e radicalmente, embora nao totalmente. A historiografía
teie já proposta em estudos menos recentes ( 8 ) : o verda- oficial da literatura francesa ignorava até tempos recentes
deiro iniciador do preciosismo teria sido Théophile de o termo "Barroco"; só admitía urna fase temporaria de
Viau, que aprendeu os "concetti" e "pointes" em Bertaut, "mau gósto" entre a Renascenga e os grandes clássicos.
por tras do qual surge a sombra de Ronsard. Urna linha Daí ter a historiografía da literatura francesa de tratar o
Ronsard — Bertaut — Théophile de Viau corresponde á século X V I I nao como século barroco, mas como um século
linha Garcilaso — Herrera — Góngora. Ronsard é pre- de classicismo. Senáo, a maior época da literatura francesa
cursor de certos hábitos poéticos barrocos ( 9 ). É análogo {icaria num isolamento completo entre as literaturas con-
o caso dos "metaphysical p o e t s " ; verificou-se que sua es- temporáneas das outras nacóes, como um caso especial sem
tranha arte metafórica descende, muito mais do que antes repercussao imediata. Ou entáo o classicismo francés de-
se supunha, da dos poetas elisabetanos ('"). A litera- via ser tratado como antecipacao do século X V I I I , em que
tura do século X V I I encontra hoje novamente grande as outras literaturas aceitaram realmente o grande estilo
apréco: Góngora e Calderón, Ben Jonson e Donne foram francés; mas iss.o é impossivel, porque a ortodoxia católica
reabilitados, considerados outra vez como poetas de cate- e o conformismo político do classicismo francés o sepa-
goría universal e valor permanente, porque a sensibilidade rain radicalmente do "siécle des lumiéres". É urna alter-
moderna se reconhece naqueles poetas como em precurso- nativa entre duas impossibilidades. Por isso, a crítica fran-
res. Parte considerável da nossa literatura atual é gongo- cesa — e todas as outras no mundo que estao com ela —
rista e "metaphysical". O porta-voz dessa revalorizagáo do continua a considerar o século X V I I como classicista; as
Barroco é a critica literaria que se senté responsável pelo correntes contrarias na Franga sao tratadas, nos manuais,
gósto da época. Nao assim a historiografía literaria: tiesta num capítulo tradicional, "Attardés et Égarés" (assim em
continua, em muitos setores, o desprézo pela literatura Lanson); quanto ao estrangeiro, lá reinava o "mau gósto",
barroca, em parte porque os historiadores estáo mais longe quer dizer, um estilo caracterizado pelo fato de nao ser um
da discussao literaria, em parte porque o dogma classicista estilo. Chegou-se a negar a existencia do Barroco em
de Boileau continua a exercer influencia subterránea. Con- literatura.

Onde a existencia do estilo barroco nao pode ser ne-


/ gada é ñas artes plásticas. É verdade que as comparagoes
8) K. Schirmacher: Théophile de Viau. sein Leben und seine Werke.
Leipzig, 1897. entre as artes plásticas e a literatura sao engañosas; quan-
0) B. Brock-Sulzer: "Klassik und Barock bel Ronsard". (In: Tri-
vium, m . 1943.) 11) R. Wellek: "The Concept of Baroque ln Llterary Scholarship."
M. Raymond: "Classique et Baroque dans la poésle de Ronsard". (In: Journal of Aesthetics & Art Criticism, V/2, dezembro de
(In: Conciunitas. Festschrijt fuer Heinrich Woelfflin. Basel, 1946.)
1844.) V. Cerny: "Les origines européenes des études baroquistes". (In:
Revue de Littérature Comparée, XXXV/I, Janeiro de 1960.)
10) R. Jure: Mizabethan and Metaphysical ¡magery. Chicago, 1948.

f.'Hi OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 691

do, por exemplo, aB definigóes da arte clássica e da arte a unidade superior que compreende em si essas antíteses
barroca dadas por Woelfflin forarn aplicadas a crítica li- tornou-se postulado urgente, quando Alois Riegl criou o
teraria, nasceram equívocos. Assim, nao foi possivel defi- conceito da "vontade estilística" ( i a ) . Desde tempos ime-
nir o Barroco. Mas nao se trata de definir o Barroco; é moráveis, o criterio principal da historiografía das artes
Impossivel definir em urna fórmula exata um fenómeno plásticas era a capacidade dos artistas, apreciada segundo
tío complexo como é um estilo. Só se trata da aproxima- certos cánones, por exemplo, do classicismo; distinguiram-
t í o , por meio da descrigoes sucessivas e cada vez mais exa- se épocas da infancia da arte ñas quais a capacidade aínda
tai, do elemento comum em toda atividade literaria do sé- está em formasáo, épocas maduras ñas quais os artistas pos-
culo X V I I ; e ésse elemento comum existe. Marinismo, suem a capacidade de realizar o que pretendem exprimir, e
gongorismo, preciosismo, "metaphysical poetry" nasceram épocas da decadencia ñas quais a capacidade enfraquece e
em relativa independencia; com fórga tanto maior impoe- urna técnica perfeita produz imitagoes pálidas ou exageros
ae a conclusao de que deve ter sido urna mentalidade co- monstruosos. Nessa teoría baseia-se a alta consideragáo de-
mum que produziu em toda a parte estilos táo parecidos. dicada aos classicistas de todas as artes e de todas as épo-
O século X V I I quis escrever désse modo; e ésse conceito cas, transformando-se a historia da arte em corrida estra-
da "vontade de fazer arte assim" é realmente um termo da nha de "precursores" e "sucessores", entre os quais apenas
historiografía das artes plásticas; do mesmo modo que o alguns eleitos, os "clássicos", acertam; pelos leigos essa
próprio termo "Barroco" é um termo das artes plásticas. teoría é aínda aceita como se fósse um dogma indiscutido.
O termo "Barroco" ( 12 ) é a expressáo usada pelos crí- A discussao désse dogma foi iniciada por Riegl, e é de
ticos das artes plásticas do século X V I I I para desacredi- valor incalculável para a compreensao de todas as expres-
tar as obras que nao obedeceram aos cánones ideáis da An- soes artísticas, literarias, filosóficas da Humanidade. A
tiguidade clássica e da alta Renascenga. Durante o século obra de arte, segundo Riegl, nao é mero produto da cola-
XIX, o termo comegou a perder o sentido pejorativo — b o r a d o entre a capacidade técnica do artista e as qualida-
aempre no setor das artes clássicas — admitindo-se a ri- des do seu material plástico, lingüístico ou acústico. É
queza fabulosa da época em valores arquitetónicos, plásti- mister perguntar: que pretendeu realizar o artista? qual
cos e pictóricos: Greco e Caravaggio, Rubens, Hals, Jor- a sua "vontade"? A capacidade, o material e a finalidade da
daens, Ribera, Guercino, Callot, Nicolás Poussin, Zurba- obra (imposta pelo meio social) sao meras condicoes da
rén, Bernini, Borromini, Velázquez, Van Dyck, Claude realizagao, fatóres, por assim dizer, negativos, que modifi-
Lorrain, Rembrandt, Murillo, Guarino Guarini, Fischer cam o projeto mental do artista sem o determinar comple-
Von Erlach, Magnasco. Das obras désses mestres é abs- tamente. "A capacidade é urna conseqüéncia secundaria da
/ traída a nossa ¡déia do que é barroco, urna idéia fortemente vontade." Quando o homem moderno se encontra em face
antitética: arquiteturas majestosas e martirios com porme- de urna estatua grega primitiva ou de urna igreja románica
nores sádicos, grande teatro aristocrático e ladroes em ta- ou de um quadro barroco, nao é lícito dizer: o artista ainda
vcrnas sujas, paisagens de academismo arcádico e orgias nao sabia esculpir urna estatua á maneira de Fídias, ou
frenéticas, ostentacáo vazia e visoes místicas. Explicar ainda nao sabia construir urna catedral gótica, ou já nao

V II) J. Mark: "The Uses of the Temí Baroque". (In: Modern Language 13) A. Riegl: Stilfragen. Grundlage sur einer Geschichte ier Orna-
Revltw. 23, 1938.) menta. Berlín, 1893.
OTTO MARÍA CARPEAUX
m HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 693

tabia pintar como Rafael. Isto é falso classicismo. É tores manifestam-se com evidencia maior numa pega dra-
preciso admitir que aqueles artistas pretendiam fazer coi- mática ou num romance do que num edificio ou quadro,
sas diferentes, porque a sua atitude em face da natureza porque o material d a literatura — a língua — é ao mesmo
e da vida era diferente. Nao há "épocas primitivas" nem tempo o instrumento de expressáo da política, da religiáo
"épocas decadentes"; só há épocas que compreendemos bem e das ciencias. Q u a n t o ao Barroco, a antítese entre o mís-
porque a nossa própria atitude é parecida, e outras que tico Greco e o naturalista Caravaggio, já muito acentuada,
compreendemos menos ou só com dificuldade porque di- torna-se mais marcante entre o teatro religioso de Calde-
ferem muito da nossa. E essas apreciagoes nao permane- rón e o romance picaresco, entre a poesia de Donne e a
cen! iguais para sempre e até o fim do mundo — como epopéia herói-cómica. Para chegar a conceitos mais exa-
acreditava o classicismo — mas mudam conosco. Só assim tos, é preciso deixar a regiáo das artes mudas. Tiram-se
se explica que o século XIX tivesse descoberto a beleza conclusoes mais precisas da análise das teorias estéticas
das catedrais góticas, quando até entáo a palavra "gótico" da época.
tinha sentido pejorativo. O termo "Barroco" percorreu a
mesma evolugao, ao passo que outras épocas da arte, ou- Na historiografía literaria, as teorias estéticas e "Ar-
trora celebérrimas, hoje nos agradam menos. A teoria de tes poéticas" de urna época estudam-se, em geral, para es-
Riegl, pouco conhecida durante a vida do autor, domina clarecer o gósto literario dos autores em questáo: a esté-
hoje em todos os setores. Baseia-se nela o aprégo total da tica da época fez tais e tais exigencias; estes autores con-
arte folclórica, da arte primitiva, da arte barroca. No setor seguirán! cumpri-las, aqueles nao o conseguiram, e mais
da literatura, a teoria foi menos aplicada; éste livro pro- outros, os genios, superaram as normas. Chura vez in-
cura empregá-la, apreciando da mesma maneira, conforme tervém o conceito da "capacidade". A aplicagao das fór-
a "vontade" dos artistas, a liturgia romana e o romance na- mulas de Riegl encararía as teorias estéticas de um ponto
turalista, as epopéias primitivas e a poesia hermética, o de vista diferente: sao obras da inteligencia discursiva,
teatro francés e o teatro espanhol. A literatura barroca é obras racionáis, tentativas de racionalizar a atitude e men-
a "pedra de toque" da teoria. Trata-se de reconstituir a talidade da época para formulá-las. Ñas próprías obras da
"atitude 4 '- barroca, a "mentalidade" barroca, para verificar imaginagáo literaria, embora também obras da inteligen-
a existencia de urna literatura barroca e compreender-lhe cia e embora também, em parte, tentativas de racionalizacao,
os valores. intervém com fór$a maior os elementos emotivos. Daí as
discrepancias entre teoria estética e prática literaria. Na
As obras de arte barroca forneceram certo número de própria época, essas discrepancias constituem o objeto de
antiteses que constituem os polos extremos da mentalidade discussoes literarias, mais ou menos apaixonadas. Mais
barroca: solenidade majestosa e naturalismo brutal, arti- tarde, as teorias se esquecem; as obras ficam; e aquelas
ficio sutil e vi sao mística. A comparacáo da literatura com teorias tornam-se incompreensiveis á posteridade. No co-
as artes plásticas nao pode ser levada além dessas datas. rnejo do Barroco havia urna dessas grandes discussoes, em
Ñas obras de literatura, o elemento intelectual e racional torno da Gerusalemme ¡iberata, de Tasso. O assunto do
entra com fór;a muito maior do que ñas obras de arqui- poema é meio heroico, meio religioso, e a sinceridade reli-
tetura ou pintura. O meio político, social, religioso, filo- giosa do poeta está fora de dúvida. Contudo, a critica li-
sófico, e as opinioes políticas, religiosas, filosóficas dos au- teraria contemporánea insistiu com tanta paixáo na imo-
.,'.1 Orro MAMA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL <,<>,

ralidade do poema, que enfim a s próprias autoridades ecle- ram como base filosófica urna filosofía platónica, franca-
siásticas intervieram. Essa discussáo é para leitores mo- mente anti-racionalista. Toda a filosofía renascentista se
dernos da epopéia perfectamente incompreensível, de modo caracteriza pelo "entusiasmo", que é por definicáo anti-
que a crítica hostil foi interpretada como conseqüéncia d i racionalista. Daí a hostilídade contra as deducoes racio-
Intervengao eclesiástica. Para reconstituir a discussáo é náis da escolástica aristotélica. Até o ceptícismo de Mon-
preciso analisar o conceito barroco de "imoralidade", dife- taigne é anti-racionalista, encontrando o ponto firme na
rente do nosso e relacionado com as teorías barrocas sobre naturalidade dos instintos sadios; e a filosofía de Gior-
a finalidade da literatura, isto é, sobre o que o escritor pre- dano Bruno, cume e fim da Renascenca, é a mais entusiás-
tende realizar. A discussáo em torno da Gerusalemme li- tica que se imaginou jamáis. O pendant literário-artis-
bcrata é a porta de entrada para o problema da literatura tíco do hedonismo é o "l'art pour l'art". O poeta mais re-
presentativo da Renascenca, Ariosto, dá "l'art pour l'art".
barroca.
E o "l'art pour l'art" excluí, por definicáo, quaisquer ten-
A discussáo em torno de Tasso foi conseqüéncia de tativas para justificar-lhe a existencia; é a sua própria fi-
modificacoes na situagáo social da literatura. A literatura nalidade em si mesmo.
da Renascenca foi escrita por humanistas eruditos a ser-
vico de urna aristocracia que, já excluida do papel decisivo A dominacáo espanhola e a Contra-Reforma do conci-
ñas evolucoes para o futuro, viveu em mundos irreais de lio de Trento sígnificam a dissolucao da alian$a entre aris-
galantaria espiritual, cavalaria romántica e idilio pastoril. tocracia e humanismo. Os aristócratas italianos, privados
A única finalidade dessa literatura era a criacao de beleza. da autodetermina$áo política, retiram-se para as suas vílas
A isso corresponde a teoría estética da Renascenca, o pla- nos campos ou para urna existencia burguesa nos palace-
tonismo, ou antes, o neoplatonismo cristianizado, de Ficino tes urbanos; as cortes perdem o aspecto intelectual e ado-
até Leone E b r e o : o belo terrestre é o reflexo (a "lembran- tam o cerimonial espanhol. Os humanistas poem-sc a s«r*
ca") do belo divino; o amor terrestre é o reflexo do amor vígo do último poder espiritual que resta na peninNiilai
divino. Se a palavra "platónico" é entendida no sentido em a Igreja. É o fim da Renascenca. A primeira grande
que se fala vulgarmente de "amor platónico", essa teoría literaria na qual se anuncia o espirito da nova ¿pool
nao é táo "platónica" como parece. É síntoma do contra- Gerusalemme liberata, de Tasso. É urna epopéia 1 •
rio o ardor sensual que já se reparou ñas entrelinhas de de cavalaria, como o Orlando Furioso, mas com m
Leone Ebreo e que, em toda a literatura renascentista, re- diferenca: os cavaleiros de Ariosto passam por I
benta de vez em quando, e as vézes em explosoes bem bru- batalhas sem finalidade determinada, ao pan
tais. A norma suprema da aristocracia literaria é o hedonis- zados de Tasso lutam por um fim definido
mo, o prazer das coisas belas, sejam obras de arte, sejam os de Jerusa'.ém e dos lugares santos do j^^M
produtos da natureza. O platonismo renascentista fornece Ésse fim religioso coloca também em luna
•o hedonismo urna brilhante superestrutura filosófica. Mas elemento erótico: em Ariosto, o an»>> • ••
n l o justifica a atitude da aristocracia literaria, porque nao e furias dos cavaleiros; em Tasso, o .muí
é possivel nem necessário. O hedonismo é urna teoría da ducáo mediante a qual os poderes o H
vida animal e vegetativa, da vida dos sentidos; nao se su- turbar o espirito bélico dos cruxmlim, • »
portavnm intervencoes do raciocinio, e por isso escolhe- de Armida, que teria em Arioii
(94 OTTO MARÍA CARPEATJX HJSTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 695

ralidade do poema, que enfim as próprias autoridades ecle- ram como base filosófica urna filosofia platónica, franca-
siásticas intervieram. Essa discussao é para leitores mo- mente anti-racionalista. Toda a filosofia renascentista se
dernos da epopéia perfeitamente incompreensível, de modo caracteriza pelo "entusiasmo", que é por definicao anti-
que a crítica hostil foi interpretada como conseqüéncia d¡» racionalista. Daí a hostilidade contra as deducoes racio-
náis da escolástica aristotélica. Até o cepticismo de Mon-
intervencao eclesiástica. Para reconstituir a discussao é
taigne é anti-racionalista, encontrando o ponto firme na
preciso analisar o conceito barroco de "imoralidade", dife-
naturalidade dos instintos sadios; e a filosofia de Gior-
rente do nosso e relacionado com as teorías barrocas sobre
dano Bruno, cume e fim da Renascenca, é a mais entusiás-
a finalidade da literatura, isto é, sobre o que o escritor pre-
tica que se imaginou jamáis. O pendant literário-artis-
tende realizar. A discussao em torno da Gerusalemme li-
tico do hedonismo é o "l'art pour l'art". O poeta mais re-
berata é a porta de entrada para o problema da literatura presentativo da Renascenca, Ariosto, dá "l'art pour l'art".
barroca. E o "l'art pour l'art" excluí, por definicao, quaisquer ten-
A discussao em torno de Tasso foi conseqüéncia de tativas para justificar-lhe a existencia; é a sua própria fi-
modificagoes na situacáo social da literatura. A literatura nalidade em si mesmo.
da Renascenca foi escrita por humanistas eruditos a ser-
vico de urna aristocracia que, já excluida do papel decisivo A dominacao espanhola e a Contra-Reforma do conci-
ñas evolucóes para o futuro, viveu em mundos irreais de lio de T r e n t o significam a dissolucáo da alianca entre aris-
galantaria espiritual, cavalaria romántica e idilio pastoril. tocracia e humanismo. Os aristócratas italianos, privados
A única finalidade dessa literatura era a criacao de beleza. da autodeterminacao política, retiram-se para as suas vilas
A isso corresponde a teoría estética da Renascenca, o pla- nos campos ou para urna existencia burguesa nos palace-
tonismo, ou antes, o neoplatonismo cristianizado, de Ficino tes urbanos; as cortes perdem o aspecto intelectual e ado-
até Leone Ebreo: o belo terrestre é o reflexo (a "lembran- tam o cerimonial espanhol. Os humanistas póem-se a ser-
ca") do belo divino; o amor terrestre é o reflexo do amor vico do último poder espiritual que resta na península:
divino. Se a palavra "platónico" é entendida no sentido em a Igreja. É o fim da Renascenca. A primeira grande obra
que se fala vulgarmente de "amor platónico", essa teoria literaria na qual se anuncia o espirito da nova época, é a
nao é tao "platónica" como parece. É sintoma do contra- Gerusalemme liberata, de Tasso. É urna epopéia romántica,
rio o ardor sensual que já se reparou ñas entrelinhas de de cavalaria, como o Orlando Furioso, mas com urna grande
Leone Ebreo e que, em toda a literatura renascentista, re- diferenca: os cavaleiros de Ariosto passam por inúmeras
benta de vez em quando, e ás vézes em explosoes bem bru- batalhas sem finalidade determinada, ao passo que os cru-
tais. A norma suprema da aristocracia literaria é o hedonis- zados de Tasso lutam por um fim definido: a libertacáo
mo, o prazer das coisas belas, sejam obras de arte, sejam os de Jerusalém e dos lugares santos do jugo dos infiéis.
produtos da natureza. O platonismo renascentista fornece Ésse fim religioso coloca também em lugar diferente o
ao hedonismo urna brilhante superestrutura filosófica. Mas elemento erótico: em Ariosto, o amor é o motivo das lutas
nlo justifica a atitude da aristocracia literaria, porque nao e furias dos cavaleiros; em Tasso, o amor é a grande se-
é possivel nem necessário. O hedonismo é urna teoria da ducáo mediante a qual os poderes diabólicos esperam per-
vida animal e vegetativa, da vida dos sentidos; nao se su- turbar o espirito bélico dos cruzados, e o jardim encantado
portavam intervencoes do raciocinio, e por isso escolhe- de Armida, que teria em Ariosto um paraíso terrestre, em
f.% OTTO MARÍA CARPEAUX H I S T O R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 697

Tasso é o lugar de tentacóes diabólicas se bem que des- Durante a época do predominio do platonismo, a Uni-
crito com a lascivia melancólica de quem tem de renun- versidade de P á d u a continuava como fortaleza isolada da
ciar. Quanto á sinceridade religiosa e moral de Tasso nao filosofía aristotélica, se bem que de um aristotelismo leigo,
pode haver dúvidas, e essa sinceridade justifica a grande algo suspeito ás autoridades eclesiásticas. Em Pádua, o
inovacáo: a s u b s t i t u i d o da "máquina mitológica" da epo- famoso crítico Sperone Speroni (1500-1588), censurando a
péia virgiliana, mantida ainda em Camoes, por urna espe- Soionisba, de Trissino, e elaborando urna nova teoria da
cie de "mitologia crista". Em vez dos deuses pagaos, in-
tragedia, chamou a atencáo para a poética de Aristóteles,
tervém na acao os diabos e o próprio Deus dos cristáos.
interpretando a "catarse" do fim das tragedias como puri-
Tudo, na Gerusalemme libeíata, revela o espirito religioso
ficagáo moral; Speroni exerceu, alias, profunda influen-
e moral da Contra-Reforma. Mas os representantes litera-
cia em Tasso. P o u c o depois, em outro crítico paduano,
rios da Contra-Reforma nao se deram por satisfeitos. Hou-
Vicenzo Maggi, o aristotelismo já tem feicao eclesiástica.
ve, em torno do poema, urna discussao apaixonada ( ' ' ) .
Intervieram os jesuítas, restabelecendo em toda a parte os
As censuras referíram-se ás regras da poesia épica, estudos aristotélico-escolásticos. Os jesuítas eram huma-
abstraídas da poética aristotélica; e nos outros, hoje, nao nistas á sua maneira; o seu manual pedagógico, a Rali o
compreendemos que urna obra de arte seja julgada assim. studiorum (1587), é perfeitamente humanista. Mas nao é
Atrás das fórmulas de urna estética dogmática havia, no o humanismo pagáo da Renascenca, nem o humanismo cris-
entanto, motivos razoáveis. Quando os contemporáneos
táo de Erasmo, nem sequer o suave humanismo cristáo de
censuraram a intervencáo de Deus e diabos como quebra
Sannazaro e Vida. É um humanismo eclesiástico, um clas-
das regras aristotélicas, nao fizeram, no fundo, outra coisa
senao protestar contra a confusao do assunto histórico com sicismo católico; em todas as questóes da filosofía profana
invencoes gratuitas de tentacóes e conversoes; e é isso que é Aristóteles, interpretado em sentido cristáo, reconhecido
hoje também nos aparece como um dos maiores defeitos da como autoridade dogmática. A aposicáo "interpretado em
Gerusalemme literata. Mas o que causa estranheza, na- sentido cristáo" é importante; porque a poética aristotélica
quelas discussoes e polémicas, é justamente o que a histo- colocou jesuítas e leigos em face de problemas dificeis. Se-
riografía literaria registrou, até há pouco, como se tivesse gundo Aristóteles, a poesia inventa "fábulas" e "imita"
sido sempre assim: o emprégo das fórmulas aristotélicas. caracteres e agües reais. Mas urna fábula inventada, por
Em realidade, nem sempre assim foi. A Renascenca co- definicáo nao é verdade; e os homens, nao sendo anjos,
nhecia mal a Poética de Aristóteles (a primeira edicáo saiu cometem muitas vézes atos imorais, "imitados" também nos
só em 1536 e o primeiro comentario só em 1548) e nao se enredos das epopéias e do teatro. .Ésses fatos literarios sao
preocupou muito com ela. De repente surge urna estética incompatíveis com o espirito da Contra-Reforma, que só
aristotélica; a sua historia é a historia das origens do Bar-
admite a verdade dogmática e a moral crista. Urna resposta
roco(").. a essas dúvidas encontrou-se na Poética (1561) do huma-
14) A. Solertl: "Polemiche lntorno alia Gerusalemme libérate". (In: nista Julius Caesar Scaliger: Aristóteles nao ensina a "imi-
Appendice alie opere in prosa di Torquato Tasso. Flrenze, 1892.) tare fabulam", mas "docere fabulam"; nao sao os atos ins-
V. Viv¡ildi: La piü grande polémica del Cinquecento. Catanzaro, tintivos dos homens que a arte imita, mas as suas reso-
1895.
18) O. Toffanln: La fine deü'umanesimo. Torteo, 1920. lucoes e decisoes moráis. Na "fábula", as personagens nao
O. Toíranln: 11 Cinquecento. Milano, 1936. agem impulsionadas pelos instintos, mas segundo a razáo.

I
(.'•i; OTTO MARÍA C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 699

É urna poética racionalista; Scaliger tornar-se-á mais tarde O século X V I I é a grande época da poesia priapesca, es-
• primeira autoridade do classicismo francés. Na Italia crita as vézes por poetas devotos, como no caso de May-
de 1570, a sua solugáo, por mais interessante que seja, nao nard. É o triunfo d a hipocrisia dos poetas e escritores,
pode ser ¡mediatamente aceita: aos italianos a poética sempre ameagados pelo moralismo da Inquisicao. Por ou-
scaligeriana parecia norma de uma poesia didática, me- tro lado, a mesma hipocrisia justifica-se perante o tribu-
dieval, incompatível com os designios da literatura aris- nal, interpretando t u d o em sentido moralista. O próprio
tocrática. Ainda se disse com Horacio: "Aut prodesse vo- Petrarca, que d u r a n t e a Renascenga foi considerado como
lunt aut delectare poetae", e o público aristocrático prefe- poeta do amor platónico, é agora interpretado como poeta
riu o "delectare", o hedonismo poético. Quem deu a pri- de alegorías religiosas. Gelli, já em 1549, ñas suas aulas
meira solugao ao problema foi o esteticista mais importante florentinas sobre Petrarca, vé no romance amoroso de
da época: Alessandro Piccolomini, ñas suas Annotazioni Petrarca a alegoría das suas angustias religiosas; o tomis-
alia Poética d'Aristotele (1575). Substituiu o "aut-aut" da ta Benedetto Varchi, em aulas sobre o mesmo assunto, em
alternativa por um "et-et". Os poetas pretendem ensinar 1553, defende o mesmo ponto de vista; e Ludovico Dolce,
e agradar ao mesmo tempo, e para isso lhes servem as na Esposizione delle tre canzone di Messer Francesco Pe-
trarca, chiamate le tre sorel le (1561), nos ofrece uma ver-
fábulas inventadas com conclusoes moráis; em virtude des-
dadeira hermenéutica teológica do poeta "trecentista". Al-
sas conclusoes moráis, as fábulas tém a mesma razao de
guns espíritos mais serios, porém, nao se puderam confor-
ser que as historias verídicas, e ao lado da realidade verda-
mar com ingenuidades ou hipocrisias assim; pretenderam
deira existe outra realidade, artística, que nao é menos
cumprir sinceramente as exigencias impostas pelo mora-
real. A s invengóes poéticas justificam-se pela interpreta-
lismo da Contra-Reforma, viram sempre posta em dúvida
gao moral de que sao susceptíveis. Essa teoría serviu para a sua ortodoxia, e caíram em angustias, das quais a loucura
defender Dante, também acusado perante a Inquisigao, e de Tasso é o caso extremo.
serviu aos amigos de Tasso para defender-lhe as invengóes,
enquanto os adversarios pleitearam a causa da verdade his- A poética aristotélica do fim do século X V I é a ten-
tórica. Eis a luta e o compromisso entre racionalismo aris- tativa de exploragáo de uma estética racionalista para os
totélico e moralismo cristao, verdadeiro objeto das polé- fins de uma literatura pseudo-heroica e pseudo-religiosa,
micas em torno da Gerusalemme liberata. Finalmente a a servigo de um público aristocrático, que exigía díverti-
teoría serviu para justificar uma vez mais o hedonismo: mento e excitacao dos sentidos; a tentativa é feita por poe-
ñas Considerazioni in defesa di Dante (1583), de Belisario tas que sao hipócritas engenhosos ou melancólicos angus-
Bulgarini, a realidade autónoma das obras de arte é inter- tiados. Com esta definigáo estao de acordó mais alguns
pretada como se arte e literatura fóssem meros jogos da fatos da historia literaria do século X V I I . Combate-se a
imaginagao, em nada serios; entáo nao há perigo de sedu- melancolía angustiada por meio de uma atitude estoica;
glo dos sentidos pela arte, e até as invengóes lascivas sao já nao é o estoicismo sereno, quase alegre, de Lipsius e
inofensivas, enquanto o poeta nao pensar em excitar in- Montaigne mas o estoicismo melancólico de Quevedo,
tencionalmente a voluptuosidade. Agora, é possível defen- estoicismo de soldado que fita a morte e conserva a
der nao apenas o jardim de Armida, mas também o ero- compostura. Compostura aristocrática, "contenance", é o
tismo do Pastor iido, a "poesia do beijo", e coisas piores. ideal da época. Quando nao é possivel a realizagao sincera
7(1(1 OTTO MARÍA C A B P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 701

dcBse ideal, o século dá-se por satisfeito com as aparcn- XV. O cerimonial complicado da corte da Borgonha rea-
cias, com a representagáo teatral, o "cerimonial espanhol", parece como "cerimonial espanhol", partindo de Madri e
a "etiquette". Para vencer as desarmonias entre fachada conquistando todas as cortes da Europa. A obsessáo do
e conteúdo, mobilizam-se todos os engenhos da estética século XV pela imagem da morte, sua sensualidade brutal
racionalista; arte e literatura tém de esconder a realidade, e sádica, o gósto de alegorías complicadas e metáforas
envolvendo-a em metáforas e arabescos sempre novos, sem- herméticas — tudo isso volta. No século X V I I , existia na
pre inéditos. O talento literario é considerado como inte- Europa um só país em que a tradigáo do "gótico flam-
ligencia "engenhosa" — pela primeira vez, aparece o termo boyant" aínda estava viva: a Espanha. O Greco, nao com-
"genio" no sentido de capacidade de inventar — e o ita- preendido na Italia, encontra-se como em casa na Espa-
liano Emmanuele Tesauro, no seu famoso Cannocchiale nha, que reconhece no pintor bizantino certas caracterís-
Aristotélico (1654), apresenta mil receitas para esconder ticas de Roger van der W e y d e n e Luis Morales. É difícil
sentido secreto nos "concetti" e "acutezze" de legendas, explicar os motivos dessa sobrevivencia. Nao se admitem
inscrigoes, emblemas, pantomimas; a palavra "aristotélico" hipóteses precipitadas, como: a Renascenga espanhola te-
no título da obra é muito significativa ( 1 0 ) . Mas o su- ria sido apenas um fenómeno de superficie; ou entáo: a
premo esfórco de dominar de maneira racionalista a Renascenga espanhola teria sido esmagada táo completa-
lingua cristaliza-se na fundacáo de instituigóes auto- mente pela Contra-Reforma que apenas teria ficado viva
rizadas para baixar normas de racionalizagáo da lingua. a última tradigáo medieval. É muito mais convincente a
As academias parecem pouco borrócas, mais classicistas. hipótese de Hatzfeld: o Barroco constituí urna qualidade
Contudo, o plano da Académie Francaise foi ideado por permanente do caráter espanhol ( : 8 ) . O heroísmo exaltado
aquéle chefe dos "précieux" que era o marinista Cha- em face do destino (Numancia, de Cervantes, Góngora,
pelain ( 1 T ). Calderón) já se encontra na Farsáüa do espanhol Lucano;
o estoicismo barroco pode achar-se no espanhol Séneca, e,
Ésses elementos explicam os característicos, sempre cristianizado, no espanhol Prudencio; o precursor dos
antitéticos, da literatura barroca: heroísmo exaltado e es- grandes místicos é, no século IV, o herético espanhol
toicismo melancólico, religiosidade mística ou hipócrita e Priscillianus, "especie de D . Quixote espiritual". As-
sensualidade brutal ou dissimulada, representagáo solene e piragóes táo grandes exigiriam, segundo Hatzfeld, urna
crueldade sádica, linguagem extremamente figurativa e na- linguagem desmesurada, exigencia na qual reside o ger-
turalismo grosseiro. me do maneirísmo lingüístico: o espanhol San Isidoro
Tudo isso em conjunto parece urna caricatura gran- de Sevilla é criador de urna etimología fantástica, deseo-
diosa da mentalidade medieval, ou antes urna volta ao brindo relagoes secretas entre as palavras; e Raimundus
"Outono da Idade Media". Com efeito, negando e rene- I.iillus, em Los cent noms de Déu, já é um "gongorista".
gando a Renascenga, o Barroco retoma o caminho do século

16) B. Oroce: "II trattaüsti italianl del concettismo e Baltasar Gra- 18) H. H. Hatzfeld: "El predominio del espíritu español en la litera-
dan". (In: Problemi di estética e contributi alia storia dell'Este- tura europea del siglo XVII". (In: Revista de filología hispánica,
tica italiana. Bari, 1910.) m / 1 , 1941.)
17) A. Tabre: Chapelain et nos deux premieres académies. París. H. Gobllanl: 11 barrocchismo in Séneca e in Lucano. Messina,
1938.
1800.

/
T'i.' OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTÓHIA DA LITERATURA OCLDENTAL 703

O Barroco espanhol é urna reagáo nacional contra o hu- em autos sacramentales. Quando Tasso escolheu para
manismo internacional dos italianos e italianizantes. Tai- assunto do seu poema urna empresa comum das nacoes
vez se trate de urna evasáo em face da derrota politico- cristas em prol de um fím religioso, obedecen aos desig-
militar da Espanha, no fím do século X V I . Assim se ex- nios do imperialismo espanhol, que se julgava defensor da
plicaría a coincidencia da decadencia política e social com fé católica no mundo inteiro.
o apogeu da evolucáo literaria: o teatro do tipo de La vida
Imperialismo espanhol e propaganda jesuítica divul-
es sueño, a "novela de densengaño" do tipo do D. Quísote,
garam arte e literatura barrocas em todas as regí oes que
e, do outro lado da barricada, a sátira social do romance
a Contra-Reforma reconquistou. A Austria e a Alemanha
picaresco, sao síntomas daquele estado de espirito.
meridional, a Bélgica, a Polonia sao centros barrocos; ou-
O Barroco espanhol conquistou a Europa inteira. Na v^ tro centro é a América Latina ( 2 1 ). J á se afirmou que o
crítica moderna, a última oposicáo contra o conceito do Barroco é o estilo próprio da Contra-Reforma ( 2 2 ). Esta
Barroco como estilo literario veio da parte de Benedetto hipótese é bastante sedutora; mas nao é aceitável, porque
Croce, que acabou voltando á identificacao de "Barroco" ignora as influencias espanholas além das fronteiras da
com "mau gósto" ( 1 9 ). Mas Paul Hazard observou-lhe Contra-Reforma e a existencia de focos barrocos nos
( 10 - A ) muito bem que o Barroco internacional nao pode países protestantes.
ser julgado do ponto de vista da literatura italiana do
Existe um barroco protestante. A prioridad e dos es-
século X V I I , que está, em relacao aos séculos italianos an-
tudos sobre o assunto cabe, mais urna vez, ao precursor
teriores, em declínio, e, em relacao á literatura espanhola,
Alois Riegl, que demonstrou as origens barrocas da gran-
apenas um ramo secundario do Barroco internacional. A
de pintura holandesa do século X V I I ( 2 3 ) ; depois dos tra-
Italia barroca é urna colonia espanhola, governada espirí-
balhos de F. Schmidt-Degener, já se fala, sem embaraco,
tualmente por urna associacao espanhola, a Companhia de
do "estilo barroco de Rembrandt". O estilo barroco da li-
Jesús. A Agudeza y arte de ingenio (1648), de Baltazar
teratura holandesa da época nao pode ser ignorado. Hui-
Gracián, precede o Cannocchiale Aristotélico (1654), de
20 zinga caracteriza a civilizacao holandesa do século X V I I
Emmanuele Tesauro ( ). As tentativas de interpretacáo
como síntese e compromisso de urna civilizacao erasmiana,
de Petrarca em sentido religioso correspondem as tenta-
burguesa e democrática, com a corrente internacional, bar-
tivas mais numerosas dos espanhóis de "traduzir" as ex-
roca ( 2 4 ). Nao se podem desconhecer os elementos bar-
pressoes eróticas de poesías para linguagem religiosa, as
rocos em poetas religiosos como Revius e Luyken ( 2 6 ). Na
"versiones a lo divino"; Sebastián de Córdova Sazedo che-
gou a publicar Las obras de Boscán y Garcilaso trasladadas
en materias cristianas y religiosas (1575); Calderón trans- 21) Siten. Sitwell: Southern Baroque Art. London, 1924.
formou grande número das suas próprias pegas profanas 22) W. Welsbach: Der Barock ais Kxmts der Qegenre/ormation.
Berlín, 1921.
23) A. Riegl: "Das hollaendlsche Gruppenportraet". (In: Jahrbuch
der Kunstsammlugen des Kaiserhauses, XXIII, Wlen, 1902.)
10) B. Croce: Storia deWetá barocca in Italia. Barí. 1929.
IBA) P. Hazard: "Benedetto Croce, Storia dell'eta barroca in Italia". 24) J. Hulzlnga: Die hollaendische Kultur des 17. Jahrhunderts.
Jena, 1933.
(In: Revue de Littérature Comparée, XI/1, Janeiro de 1931.)
30) Cf. nota 16. 25) O. E. Van Es: Baroke lyriek van protestantsche dlchters. Haar-
tem, 1948.

/
704 OTTO M A R Í A C A R P E A U X
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 705
forneceu c enredo do Spanish Cúrate, de J o h n Fletcher,
Alemanha protestante existem obras barrocas em abundan-
que também utilizou varias novelas de Cervantes: em The
cia: a igreja de Bueckeburg e o edificio do conselho mu-
Chances, "El celoso extremeño"; em Rule a Wife and Have
nicipal, em Bremem, precedem cronológicamente as gran-
a Wife, o Casamiento Engañoso; na Queen of Corinth, a
des arquiteturas barrocas da Alemanha meridional, cató-
Fuerza de la Sangre; e em Love's Pilgrimage, as Dos Don-
lica. Ñas Universidades de Wittenberg e Helmstaedt, for-
celas. O sucesso das Novelas ejemplares f oi grande entre os
talezas do luteranismo acentuadamente ortodoxo, ensinou- dramaturgos ingleses: Massinger tirou A Very Wornan do
•e a filosofia do jesuíta espanhol Suárez, e Paul Althaus Amante Liberal, e conheceu até o teatro de Cervantes, uti-
encontrou na literatura de edificacio luterana vestigios lizando-se do Viejo Celoso em The Fatal Dowry, e dos
inconfundiveis da literatura jesuítica ( 2 e ). Baños de Argel em The Renegado. Mencionam-se, enfim, os
A Espanha barroca tem lugar contra dois adversa- ^ empréstimos de Shirley no Don Lope de Cardona, de Lope
rios que afinal a vencerlo: a Franga e a Inglaterra, e esta de Vega, para o Young Admira!, e no Castigo del penseque,
última é protestante. Existe, porém, um barroco inglés de Tirso de Molina, para The Opportunity. Eis o resul-
que é, em parte, de inspiracao espanhola. O fato de que tado, algo magro, a que chegou a "literatura comparada"
os poetas e escritores da rainha Isabel e do rei Jaime com os seus métodos mais ou menos antiquados de com-
I, em guerra permanente contra a Espanha católica, odiada paracáo de enredos. Podcr-se-ia objetar que Shakespeare
por toda a nacáo inglesa, tivessem estudado e traduzido só urna vez, em The Two Gentlemen of Verona, utilizou
assiduamente as obras da literatura espanhola, inspirándo- um enredo espanhol, um episodio da Diana Enamorada, de
se nelas, é surpreendente. Mas é um fato. Montemayor, enquanto Chapman e Ben Jonson nunca o
As relacoes literarias entre a Inglaterra e a Espanha fizeram. A conclusáo seria a seguinte: Shakespeare, Chap-
no século X V I I sao intimas; já foram, alias, muito bem man e Jonson, poetas renascentistas, preferem enredos ita-
estudadas ( 2 T ), e contudo nao se chegou ainda a compre- lianos; Fletcher, Massinger e Shirley, pertencendo á se-
ensao perfeita da natureza délas, de modo que é preciso gunda fase do teatro inglés, já recebem influencias espa-
reconsiderar o problema. Nota-se, antes de tudo, a utili- nholas, barrocas. Mas J o h n Webster e John Ford, mais "bar-
zacao freqüente de fontes espanholas no teatro elisabetano rocos" do que os mencionados, nao revelam influencia es-
e jacobeu ( 2 8 ). Middleton tira de "La Gitanilla", de Cervan- panhola, quer dizer, influencia manifesta em enredos em-
tes, a Spanish Gipsy; o seu Changeling, urna das obras ca- prestados, embora recebam outra, mais sutil e mais impor-
pitais do teatro ingles, inspira-se, em parte, na tradugáo que tante. A historia do grande teatro inglés, de Kyd a Shir-
Leonard Digges fizera de um romance espanhol, o Poema ley, é a historia da assimilacáo do modelo de todo o tea-
trágico del español Gerardo y Desengaño del amor lascivo, tro barroco: Séneca (-'•'). O furor retórico das tragedias
de Gonzalo de Céspedes y Meneses. O mesmo romance de vinganca do dramaturgo romano, aparecendo de maneira
bárbara em Spanish Tragedy e Titus Andronicus, sutiliza-
36) E. Lewalter: Spanlsch-jesuitische und deutsch-lutheranische
Metapht/sik des 17. Jahrhunderts. Hamburg, 1935.
37) J. Fltzmaurlce-Kelly: The Relations between Spanish and 29) R. Lebégue: "Le théatre de démesure et dliorreur en Europe
Snglish Ltíerature. Liverpool, 1910. occidental au XVle. et XVIIe. Slécles". (In: Forschungspro-
bleme der Vergleichenden Literaturgeschichte, ed. por K. Wals.
38) R. OroMman: Spanien und das eUsábethinische Drama. Ham- Tuebingen, 1951.)
burg, 1020.

y
706 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 707

•e cada vez mais em King Richard III, Julias Caesar, Ham- das quais a principal era urna refutacao: o Discours sur les
let, Macbeth, Revenger's Tragedy, para depois se transfor- moyens de bien gouverner, et maintenir en bonne paix un
mar em tragedia de desesperados sombríos, no ambiente de Royaume ou autre Príncipauté. Contre Nicholas Machia-
cortes criminosas — em Bussy d'Ambois, Triumph oí vel Florentin (1576), de Innocent Gentillet, traduzido para
Death, Changeling, Cardinal — vítimas de cortesaos intri- o inglés por Simón Paterycke, em 1602. Os ingleses nao
gantes e diplomatas diabólicos. A atmosfera dessas pegas conheciam Maquiavel; só conheciam a lenda odiosa dos
c a mesma das tragedias italianas do "Cinquecento" e das antimaquiavelistas. Essa lenda originou-se no odio dos hu-
francesas anteriores a 1630. A resistencia estoica dos he- guenotes franceses contra a rainha Catarina de Mediéis.
róis contra o destino, e a poesia melancólica do seu deses- , que consideravam discípula de Maquiavel; mas os gran-
pero, tudo isso também é típicamente barroco. Só pode ser des divulgadores do antímaquiavelismo foram os jesuítas
caracterizado como espanhol, se considerarmos, á maneira Antonio Possevino (De Machiavelli etc. quibusdam scri-
barroca, como espanhol o modelo imitado: Séneca. ptis, 1592) e Pedro de Ribadeneyra (De Religione et virtu-
Ésse mesmo Séneca está, alias, no centro de mais ou- tibus Principis Christiani Adversus Machiavellum, 1597).
tra tendencia importante da literatura barroca: o abandono Nestes panfletos latinos, lidos na Europa inteira, encon-
tra-se o grande "villain". Encarnou-o outro personagem,
definitivo do modelo ciceroniano na prosa, em favor de
odiado pelos jesuítas: Antonio Pérez, o foragido ex-se-
outros modelos: Séneca e Tácito ( s o ) . A prosa senequiana
cretário do rei Filipe II, célebre e temido, porque o j u l -
e tacitiana chega a ser característica do Barroco.
gavam capaz dé intrigas diabólicas.
Tácito também serve, na época da Contra-Reforma,
quando já nao se ousa citar Maquiavel, como fonte de axio- A linguagem gongóríca de Antonio Pérez, ou antes, do
mas políticos maquiavelísticos ( 3 1 ). E ésse fato nos lem- Antonio Pérez da lenda, falavam-na os "metaphysical
bra o estranho adversario dos heróis melancólico-estoicos poets"; aquéle, para esconder segredos importantes e reve-
no teatro inglés: o intrigante infernal, o "villain". A sua 3á-los pela metade em alusoes metafóricas; estes, para fazer
"política" os dramaturgos chamam "maquiavélica". Sao, a tentativa bem barroca de reunir sensualidade ardente e
porém, duvidosos os conhecimentos dos dramaturgos in- devocao angustiada. É o caso de Donne. A situacao es*
gleses com respeito a Maquiavel ( 3 2 ) . O Príncipe só foí clarece-se no caso de Crashaw, convertido ao catolicismo
traduzido em 1640, dois anos antes do fechamento dos tea- e celebrando S. Teresa, e no caso de Vaughan, anglo-
tros ingleses pelos puritanos. As idéias do secretario flo- católico "avant la lettre", que incluí no número dos seus
rentino só se conheceram através de fontes pouco seguras, livros de predilecto o Menosprecio.de la corte y alabanza
de ¡a aldea, de Antonio Guevara. Enfim, o barroco inglés
volta-se para as suas origens longínquas ( 3 S ). Contra os
30) M. W. Croll: "The Baroque Style in Prose". (In: Studies in En-
glish Philology, Miscellany for F. Klaeber. Minneapolis, 1929.) "metaphysical poets" apresenta-se-nos Milton como clas-
O. WÜüamson: The Senecan Amble. A Study in Prose Form ^sicista á maneira italiana, puritano, partidario da demo-
¡rom Bacon to Collier. Chicago, 1952.
31) O. Totfanin: Machiavelli e il tacitismo. Padova, 1921. 33) P. Melssner: Die geiteschichtlichen Grundlagen des englis-
32) K. Meyer: Machiavelli and the Elisabethan Drama. Weimar, 1891. chen Literaturbarock. Berlín, 1934.
M. Praz: Machiavelli e gli Inglesi dell' época elisabettiana. Fi- T.O. Beachcraft: "Crashaw and the Baroque Style". (In: Cri-
renze, 1930. terion, XIII, 1934).

s
708 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 709

e r a d a burguesa. Mas nao se dá muito bem com os seus maneira muito livre — no Marcos de Obregón, de Espinel;
companheiros de oposicao. Os puritanos nao gostam de em todo o caso, um drama heroico e um romance picaresco.
poesia renascentista, preferem os gritos inarticulados dos O "mal" vem, como em toda a parte, da Espanha. Mas
meetings religiosos ou a sátira antiaristocrática; o La- entre essas duas datas, a literatura francesa parece intei-
zarillo de Tormes, traduzido em 1586 por David Rowland, ramente francesa, inteiramente clássica, em acordó perfeito
com a arquitetura e os jardins de Versalhes. Estáo presen-
t o D. Qaixote, traduzido em 1612-1620 (quer dizer, logo
tes na memoria de todos as palavras de T a i n e : "ees par-
depois da publicarlo do original) por Thomas Shelton,
terres rectangulaires et ees promenades géométriques
tém sucesso muito grande. Do fundo das angustias e ple-
offrent des salons en plein air. L'architecture séche et
beidades da época, a figura de Milton sobressai como a
noble s'aligne avec la tenue, la gravité et la magnificence
de um aristócrata pomposo do Barroco num retrato "clair-
officielle d'un c o u r t i s a n . . . Voilá les alentours de Hacine".
obscur". Pelo menos certos críticos consideram Milton Hoje, o acordó nos parece menos exato. Em 1648, fundou-
como poeta barroco (?*); a diferenca entre ele e os "me- se a Acadómie de Peinture et de Sculpture, e em 1666, como
tafísicos" nao seria tao grande, ou entáo, seria menos deci- complemento, a Académie de France, em Roma. Mas a
siva ( 3 5 ). Milton seria um "barroco burgués", estranhamen- Roma de 1666 nao era a Roma clássica; era a capital da
te parecido, estilísticamente, com o classicismo francés. arte barroca ( ! T ). O maior artista do classicismo francés,
Após ter-se demonstrado e admitido o Barroco protes- Nicolás Poussin, formou-se na Italia; estudos acurados ve-
tante na Inglaterra, o isolamento da literatura classicista rificaram influencias marinistas nos seus temas ( 3B ). O as-
francesa entre as literaturas barrocas do século X V I I tor- pecto das grandes construcoes parisienses do século X V I I
na-se problema mais urgente do que antes. Para resolvé-lo nao é inequívocamente clássico; nos pormenores e na "in-
havia só urna última possibilidade, urna solugao violenta: tencáo", segundo o termo de Riegl, a igreja da Sorbonne,
afirmar a natureza essencialmente barroca do próprio clas- a igreja Val-de-Gráce e o Instituí de France estao menos
sicismo francés ( a e ). longe do Barroco romano do que se pensa ( 3 9 ). Das quali-
O fato de o classicismo constituir urna qualidade per- dades barrocas do maior escultor francés da época, Pierre
manente do espirito francés nao pode ser negado. Mas Puget, ninguém duvidou jamáis. Os olhos modernos, mais
isso nao excluí a possibilidade de "invasoes" barrocas. No acostumados as variedades do estilo barroco, sentem o ele-
comégo da época clássica está Le Cid (1636), de Corneille, mento de devocáo espanhola nos quadros da vida de S.
baseado em Las mocedades del Cid, de Guillen de Castro; Bruno, de Eustache Lesueur. Há qualquer coisa do Greco
no fim, o Gil Blas (1715) de Lesage, baseado — embora de no fundo escuro do quadro da Crücificacáo, de Philippe

34) W. Sypher: "The Metaphyslcals and the Baroque". (In: Partisan


Review, Winter, 1944.) 37) N. Pevsner: Acodemies of Art, Past and Present. Cambridge. 1940.
38) E. M. W. TUlyard: The Metaphpsicals and Milton. London, 1956. 38) H. Moschetti: "Dell' infiusso del Marino sulla formazione artísti-
38) H. Hatzfeld: "Die franzoslsche Klassik ln nener Licht. Klasslk ca di Nicolás Poussin". (In: Atas del Congresso Internacional de
ais Barock". In: Tijdschri/t wor Taal en Leteren, XXTH, 1935.) Roma, 1912.)
O. de Reynold: Le XVIle. Slécle. Le Classique et le Baroque. (Compte-rendu por H. Lemonnier, in: Journal des Savants, 1919.)
Montreal, 1944.
H. Hatzfeld: "A Clarlf¡catión of the Baroque Problem in the Ro- 39) A. K. Brlnckmann: Die Baukunst des 17. und 18. Jahrhunderts
mance Literatures". (In: Comparative Literature, 1/3 1949.) in den romanischen Laendern. 5.* ed. Frankfurt, 1927.
710 OTTO MARÍA CARPKAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 711

de Champagne, que era, alias, o retratista sombrío de "ees maram ( 4 1 ). As fronteiras desaparecem. A cronología li-
me»sieurs" de Port-Royal. Por o u t r o lado, o realismo cam- teraria do século X V I I francés nao é muito clara. É pre-
pestre dos irmaos Le Nain aproxima-se mais do realismo ciso proceder assim como os astrónomos que eliminam su-
doa holandeses do que do "vrai" de Boileau, e os efeitos cessivamente as influencias perturbadoras de corpos celes-
"clair-obscur" de Georges de La Tour nao deixam lugar tes vizinhos para calcular a curva "pura" que um planeta
para dúvidas. Finalmente, o artista mais fantástico, mais percorreria.
extravagante do século, é francés: Jacques Callot. O método indicado é fatigante, mas seguro: classif¡car
Désses fenómenos, muitos pertencem á época de Luis os dramaturgos franceses do século X V I I segundo os anos
X I I I , que é certamente barroca. É a época do preciosismo, de nascimento e verificar os seus empréstimos ao teatro
do Hotel de Rambouillet, de Voiture e Chapelain, quando espanhol ( 4 2 ). Para simplificar a enumeracáo, citam-se en-
a Franca é invadida pelos géneros da literatura barroca: tre parénteses as fontes espanholas das pecas francesas.
epopéia heroica ou sacra, epopéia herói-cómica, romance De Alexandre H a r d y (nascido em 1570) notam-se:
picaresco. O que causa estranheza, porém, é o fato de que Cornélie (Señora Cornelia, de Cervantes), La Forcé du
o coméco do classicismo é sempre datado da reforma da Sang (La Fuerza de la Sangre, de Cervantes), La Belle
poesía por Malherbe — "enfin Malherbe vint" — por volta Égyptíenne (La Gitanilla, de Cervantes). Cervantes (El
de 1600 a 1610, enquanto que o Hotel de Rambouillet, o Amante Liberal) é também explorado por Georges de
centro dos "précieux", se abriu depois daquela reforma, Scudéry (nascido em 1601), no Amant Liberal. Vem logo
em 1617. E o próprio Malherbe nem sempre foi táo seca- depois Pierre Corneille (nascido em 1606), com Le Cid (Las
mente clássico como se pensava ( 4 0 ). Por outro lado, o fim Mocedades del Cid, de Guillen de Castro), Le Menteur (La
do preciosismo e o comégo da "verdadeira época clássica" Verdad Sospechosa, de Ruiz de Alarcón), Suite du Menteur
é marcado pela fundacáo da Académie fran<¡aise, era 1634- (Amar sin saber a quién, de Lope de Vega). Jean Rotrou,
1635. Mas quem participou ativamente dessa realizacáo foi que nasceu em 1609, é um dos maiores exploradores da lite-
Chapelain, o chefe dos "précieux", que ideou também o ratura espanhol:'.: Les Deux Pucelles (Las Dos Doncellas,
Dictionnaire de 1'Académie. E o mesmo Chapelain escre- de Cervantes), L'Heureux Naufrage (Naufragio Prodigio-
veu em 1630 a Lettre sur l'art dramatique, introduzindo na so, de Lope de Vega), Bague d'Oubli (Sortija del Olvido,
Franca a regra pseudo-aristotélica das tres unidades dra- de Lope de Vega), Laure Persécutée (Laura Perseguida, de
máticas; pelo aristotelismo, Chapelain pertence ao Bar- Lope de Vega), Heureuse Constance (Poder Vencido, de
roco, e pelo academismo, a época clássica. O preciosismo Lope de Vega), Saint-Genest (El Verdadeiro Fingido, de
d a linguagem e o esfórco de criar urna língua académica Lope de Vega), Don Bernardo de la Cabrera (Adversa For-
para uso da élite literaria sao coisas diferentes, mas nao tuna de Don Bernardo de la Cabrera, de Mira de Amescua),
opostas. Entre preciosismo e classicismo nao existe a in-
compatibilidade absoluta que Boileau e Moliere procla-
41) J. B. Fidao-Justlnlani: L'esprit classique et la préciosité. París,
1914.
43) A. Morel Fatio: "L'Espagne en Franoe". (In: ttudes sur l'Espagne,
40) R. Lebégne: "Les "Larmes de Saint Plerre". de Malherbe, poéme 1 ere serie, 2." ed. París, 1895.)
baroque". (In: Revue des Sciences Humaines, julllet-décembre, E. Martlnenche: La comedie espagnole en France, de Hardy á
1949.) Racine. París, 1900.
/
712 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 713

Bélisaire (Exemplo Mayor de la Desdicha y Capitán Beli- Éste capitulo de literatura comparada — cansativo,
sirío, de Mira de Amescua), Venceslas (No hay ser Padre mas da maior importancia para se ter idéia do dominio
Siendo rey, de Francisco de Rojas). Ao passo que estes dra- universal da literatura espanhola naquela época — revela
maturgos preferem o assunto romanesco, outros cuidam duas fases de invasáo espanhola, por volta de 1635 e por
mais do aspecto cómico. Paul Scarron (nascido em 1610) im- volta de 1670. O resultado é confirmado pelos estudos de
porta da Espanha Le gardien de soi-méme {Alcaide de si Lanson sobre as traducoes de obras espanholas para o
Mismo, de Calderón), La Fausse Apparence (No Siempre lo francés ( 4 3 ). A primeira onda de traducoes vai de 1615 a
Peor es Cierto, de Calderón), Dom Japhet d'Armóme (En- 1645, com o cume em 1635. O Guzmán de Alfarache, de
tre Bobos Anda el Juego, de Francisco de Rojas), L'écolier Alemán, aparece traduzido em 1600, e outra vez em 1619/
de Salamanque (Obligados y Ofendidos, de Francisco de 1620. Novelas Ejemplares, em 1614, Don Quijote em 1614/
R o j a s ) ; o Jodelet duelliste, de Scarron, é composto de duas 1618, e Persiles y Segismunda duas vézes em 1618. O La-
comedias de Rojas: Traición Busca Castigo e No hay Ami- zarillo de Tormes, já traduzido em 1598, volta em 1615, se-
go para amigo. Finalmente, Antoine Montfleury (nascido guido do Marcos de Obregón, em 1618. O gósto pelo pas-
em 1611) traz da Espanha La Dame Médecin (El Amor Mé- toril produz, em 1624, nova traduqáo da Diana Enamorada
dico, de Tirso de Molina) e La filie capitaine (La dama ca- (já traduzida em 1578 e 1587), e no mesmo ano urna tra-
pitán, de Diego e José de Figueroa y Córdova). dugáo da Arcadia, de Lope de Vega. Obras de S. Te-
Depois da pausa de urna geragáo, aparece Thomas Cor- resa aparecem duas vézes, 1623/1630 e 1644. Em 1633 sai
neille (nascido em 1625), irmao do grande Corneille. Imi- a tradugio da Celestina, e no mesmo ano as do Buscón e
tando o exemplo de Rotrou, ésse rival de Racine tira dos Sueños, de Quevedo. As cartas de Antonio Pérez, em
o seu teatro inteiro de fontes espanholas: La Dame 1642, chegam um pouco tarde, porque em 1645 já aparece,
invisible (Dama Duende, de Calderón), Le feint astro- como representante de urna outra Espanha, a primeira tra-
logue (El Astrólogo Fingido, de Calderón), Les alus- dugáo de Gracián. A segunda fase é caracterizada por no-
tres Ennemis (Amar Después de la Muerte, de Calderón), vas edigoes de obras que pareciam esquecidas ou despre-
Le Geólier de Soi-meme (Alcaide de si Mismo, de Calde- zadas pela estética classicista {Lazarillo, 1653 e 1678, No
rón), Le Galant Doublé (Hombre Pobre todo es Trazos, de velas Ejemplares, 1665, Quevedo, 1667, Don Quijote, 1667) e,
Calderón), La Engagement du Hasard (Empeños de un de outro lado, pelas tradugoes de San J u a n de la Cruz, em
Acaso, de Calderón), Don Bertrand de Cigarral (Entre 1650 e 1694, acompanhadas de urna nova tradugáo de S.
Bobos anda el Juego, de Francisco de Rojas), Le char- Teresa, em 1670; pelo grande sucesso do Guia de pecado-
me de la voix (Lo que puede la aprehensión, de Moreto), Le res, de Fr. Luis de Granada, traduzido duas vézes (1646/
barón d'Albittrac (La tía y la sobrina, de Moreto), Comresse 1651, 1658/1673), e por urna verdadeira moda de Gracián
d'Orgueil (Señor de Buenas Noches, de Cubillo). Os em- (1684, 1696). No momento das grandes obras de Bossuet,
préstimos de Moliere nao tém importancia, e em Racine Moliere e Racine, o público francés pediu os místicos, pi-
nao existem influencias espanholas. Mas Philippe Quinault carescos e conceptistas da Espanha, e o maior sucesso tea-
(nascido em 1635) ainda explora a mina: Le docteur de
verre (Licenciado Vidriera, de Cervantes), Le fantóme
amoureux (El galán fantasma, de Calderón), L'amanf in- 43) O. Lanson: "Rftpports de la llttérature rrancalse et de la lltté-
rature espagnole". (In: Revue d'histoire Uttéraire de ¡a Frunce,
discret (El escondido y la tapada, de Calderón). 1896, 1897, 1901).
4
714 OTTO M A R Í A C A B P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 715

tr»l cabe, com 86 representacóes, ao Timocrate, do hispani- suas personagens; ás vézes a verdade psicológica se revela
zante Thomas Corneille. naquilo a que Spitzer chama "a linguagem noturna de Ra-
O gósto do público francés do século X V I I era bar- cine", exemplificando-a no verso "dérober au jour une
roco. A literatura clássica lutou galhardamente contra flamme si noire" ( 4 6 ). A tensio entre as paixoes recalcadas
¿ase inimigo, mas a repeticáo da voga de tradugoes e ver- e as normas rígidas de expressáo encontra sua solucao no
sóes do espanhol revela a precariedade dos triunfos aca- estoicismo melancólico de La Rochefoucauld, no ascetis-
démicos. A historia do classicismo francés é urna historia mo erótico de Madame de La Fayette e, pelo menos, na-
de recidivas; o inimigo estava dentro. Um ensaista espi- quelas formas de auto-observacáo e introspecgáo psicológica
rituoso comparou a geometría analítica de Descartes a urna ñas quais os moralistas franceses rivalizam com os místi-
teoría de exorcismo: o filósofo opós a "Cruz das coorde- cos espanhóis. A trilha da literatura inglesa do século
nadas" a confusáo da época, para exorcizá-la. O caráter car- X V I I estende-se do assunto de importagao espanhola até
tesiano do classicismo francés nao é indiscutido, ao con- a formagáo de personagens barrocos, como no caso do "vil-
t r a r i o ; mas o instrumentalismo é qualidade comum ao ra- lain". O caminho da literatura francesa da mesma época
cionalismo de Descartes e ao classicismo de Boileau. A vai dos enredos espanhóis até a formacáo de urna maneira
filosofía de Descartes é antes de tudo um método; chama- íntima de ver o mundo, que é barroca. É urna literatura
se Discours de la méthode a obra principal. O classicismo psicológica; e a psicología sempre ameaca destruir o equi-
francés também é um método; serve para disciplinar os librio. Nao se trata de um século classicista, interrompido
equívocos da linguagem, a confusáo das paixoes, a corru- por duas fases.de invasáo barroca; o classicismo constituí
gáo do gósto pelo pitoresco. Estética naturalista e racio- a interrupeáo antitética que atenúa o barroco, sem elimína-
nalista, gósto impessoal, conformismo político e religioso, lo de todo. O barroco atenuado do fim do século X V I I é
moralismo — essas qualidades essenciais do classicismo o rococó ( 4 7 ).
francés sao instrumentos de ascese antibarroca, e há quem
O estilo barroco é um estilo internacional. A Europa
o considere como essencialmente "anti", anti-renascen-
inteira o adotou. Os seus elementos vieram da Espanha;
tista, antiprotestante, antibarroco (**). O inimigo barroco
mas a Espanha já nao era capaz de impor um estilo. A Eu-
está dentro do classicismo, na sua própria alma. O clas-
ropa o aceitou em toda a parte, porque o Barroco é expres-
sicismo francés nao é realmente clássico; apenas pretende
sáo de urna situacáo espiritual e social, mais ou menos idén-
sé-lo. A linguagem culta, cheia de alusóes e reticencias,
tica em toda a parte ( H8 ). A aristocracia feudal perdeu de-
exige leitores táo versados como a poesía marinista. A
finitivamente a funcao política. A Igreja católica, refor-
Versalhes de Racine é menos clássica do que Taine pen-
mada pelo concilio de Trento, e ás Igrejas nacionais do
aava ( 4 5 ). E a linguagem mesurada de Racine mal oculta
os traeos de sensualidade furiosa e misticismo ardente ñas
•u;' L. Spitzer: "Die klassische Daempfung in Raciiie's Stil". (In:
Archivum Romanicum, XII, 1928, e XIII, 1929; resumido in:
Komenüsche Stil-und Literaturstudien. I. Marburg, 1931.)
44) V. Vedel: Deux classiques franjáis, vus par un critique étranger.
Pula, 1925. 47) F. Schuerr: Barock, Klassizismus und Rokoko in der franzoesis-
chen Literatur. Leipzig, 1928.
45) O. Rohlls: "Raclnes Mithrldate ais Belspiel hoefischer Barock-
dlchtung". (In: Archiv fuer das Studium der neneren Sprachen, 48) F. Borkenau: Der Uebergang vom feudalen zum buergerlichen
CLXVI, 1936.) Weltbild. París, 1934.
/
716 OTTO M A B I A C A R P E A Ü X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 717

protestantismo, investem o Estado de sanqoes divinas. Aos toridade produz separagio de classes. No século X V I I ,
poderes absolutos nao escapa a economía; o mercantilismo a oposigáo entre aristocracia e burguesía vai-se acentuando
pode ser definido como o método de política económica cada vez mais. O fenómeno reflete-se na literatura. A li-
para terminar a grande crise que comegara com as deseo- teratura barroca é mais uniforme do que se pensava na
bertas geográficas. A aristocracia, incapaz de adaptar-se Europa inteira, independentemente das fronteiras nacio-
as novas condigóes, foi subjugada; a burguesía aínda nao nais e religiosas; mas nao é homogénea na estrutura íntima,
é capaz de desempenhar fungió política; no intervalo, o porque é constituida por duas "classes literarias" opostas:
Estado absoluto dirige a economía. O único dos grandes a classe aristocrática e a classe burguesa intelectual ( 4 S ).
Estados europeus que nao conseguiu acompanhar essa evo- Essas "classes literarias", alias, nao sao inteiramente idén-
lugáo, foi justamente a Espanha. Na retrospectiva, a Es- ticas ás classes sociais, ás quais tomavam emprestados
panha do século X V I I parecía aos historiadores o Estado os nomes. Sio termos que se entendem cum grano salís.
mais absoluto de todos; na verdade, o poder real estava A literatura aristocrática vive de riquezas de urna clas-
bastante limitado pelas autonomías regionais com que se ociosa e parasitaria, que perdeu a fungáo social. Acen-
só os Bourbons acabarao no século X V I I I . Disso ressen- tua-se o fenómeno da "conspicuous consumption" (Ve-
te«se a economía. A Casa de Contratación, em Sevilha, é blen), da ostentagáo intencional, e isso em todos os seto-
urna solugáo imperfeita do problema; a vagabundagem "in- res em que predomina o modo de viver aristocrático. As
dividualista", que se reflete no romance picaresco, é um cerimónias eclesiásticas revestem-se de pompas nunca vis-
síntoma entre outros. A Inglaterra termina a crise com os tas. A arte é entendida, segundo as doutrinas aristotélicas
"Navigation Acts" de 1651 e 1660. Segue-se imediatamente do hedonismo inofensivo, como fiegáo gratuita, sem res-
a Franca, com as tarifas alfandegárias de Colbert, em ponsabilidade perante a realidade; precisa-se, para agra-
1664 e 1667; o mercantilismo é o maior servigo — se bem dar, de estímulos sempre novos, fornecidos pela lascivia ou
outorgado — prestado pelo Estado absoluto á burguesía. pela sutileza lingüística. O heroísmo aristocrático tor-
A revolugáo inglesa de 1688 parece mais radical, mas nao na-se tanto mais retórico quanto as espadas de cavaleiros
é mais burguesa do que a reforma administrativa de Luís se transformam em espadins de cortesáo. Até o idilio pas-
X I V . Saint-Simón tinha algo de razáo em chamar a Luís toril acompanha a evolucáo para a teatralidade: o romance
XIV "un grand roí bourgeois". pastoril é substituido pelo drama pastoril.

Contra todas as aparéncias, o Estado absoluto do sé- O teatro está no centro da civilizagáo barroca, da época
culo X V I I está a servigo da burguesía nascente. Para em- de Shakespeare, Calderón e Racine. Para o teatro con-
pregar um termo de Spengler, trata-se de urna pseudomor- vergerá todos os desejos de ostentagáo suntuosa, de trans-
fote: conteúdo burgués em formas aristocráticas. A aris- figuradlo da realidade em ilusao, de construcao de um
tocracia aínda pode aproveitar a situagao, vivendo parasi- mundo de arte, fora do mundo material. Os estudos mais
tariamente da realeza; ainda consegue impor o seu estilo pormenorizados do teatro barroco de que já dispomos mal
de viver. O século tem ar aristocrático. A autoridade real dáo idéia do ingente esfórco teatral da época: do intensís-
encontra-se ñas máos do Estado, ¡mensamente aumentada simo interésse popular pelas pegas de Lope de Vega e
pela sancáo eclesiástica e pelos poderes económicos. Se-
gundo urna experiencia sociológica, a consolidagao da au- 49) O. Zonta: Storla delta letteratura italiana. Vol. IV, cap. 2. To-
rino, 1932.

<
718 OTTO MARÍA C A R P E A O X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 719

Shakespeare, da paixáo teatral de "cour et ville" de Ver- toda a especie de efeitos técnicos, ao ponto de ésse teatro
salhes e París, do luxo das representagóes oficiáis de Ma- poder dispensar enfim a palavra, transformando-se em ópe-
dri, Viena e Munique. Todas a s artes — literatura, mú- ra, pantomima e bailado. No teatro clássico francés, menos
sica, pintura, escultura, arquitetura, e as "artes mecánicas" suntuoso, a língua culta e os bienséances no comporta-
do maqumismo teatral — servem para o fim de realizar o mentó dos atores produzem efeitos semelhantes. No tea-
mundo dramático. E, para ésse fim, a arte teatral passa tro inglés, enfim, que adotou a perspectiva ilusionística só
por urna revolugáo profunda ( 5 0 ) . O palco dos Misterios na segunda metade do século X V I I , a funcáo separadora
medievais ficava no meio das pracas da cidade; os especta- é desempenhada apenas por um instrumento de alto nivel
dores viam os acontecimentos de todos os lados, como se artístico, que até os dramaturgos mais populares nunca dis-
fóssem acontecimentos reais, e, de fato, os espectadores pensaran;: o verso.
medievais estavam envolvidos na agáo no palco, no drama
O teatro espanhol e dos jesuítas serve-se das suas má-
da redencao que a éles concernía de perto. No teatro da
quinas para estender as possibilidades da agáo até aos úl-
Renascenca representam-se as comedias de Plauto e Te-
timos limites da imaginacáo; o palco representa o Cosmo
réncio e de seus imitadores modernos; os espectadores já
inteiro, é "Gran teatro del mundo". A ideología que ins-
nao participam da acao, porém déla poderiam participar:
pira ésse teatro barroco é a filosofía religiosa da Contra-
personagens e atitudes, cá e lá, sao as mesmas. Por isso, pal-
Reforma: o mundo é ilusáo e engaño, a vida é um sonho.
co e platéia estao separados, mas quase no mesmo nivel de
É o pessimismo que se encontra também no fundo do tea-
altura, de modo que o espago dos atores e o espago dos
tro de Racíne e Shakespeare, revelando essas expressoes
espectadores é comum. Eis o aspecto do famoso Teatro
diferentes como expressoes barrocas. La vida es sueño,
Olímpico em Vicenza, que Andrea Palladio e Vincenzo
Phédre e Macbeth representam o mesmo mundo de ilusoes
Scamozzi construiram entre 1580 e 1584. Poucos decenios
trágicas. A separagáo désse mundo de ilusoes do mundo
depois o Teatro Farnese, em Parma, construido entre
real dos espectadores simboliza, ao mesmo tempo, outra
1619 e 1628, por Giovanni Battista Aleotti, apresenta as-
situacáo barroca: o mundo real é um teatro de acesso fe-
pecto diferente. O espirito aristocrático do Barroco nao
chado, um mundo aristocrático, em que as classes nao pri-
suporta aquela "identificacáo". Palco e platéia estao intei-
vilegiadas nao entram. Quando o burgués ou o camponés
ramente separados: aqui, o mundo real dos espectadores;
se atrevem a penetrar naquele mundo aristocrático, caem
ali, o mundo irreal da ilusáo teatral. A invencáo que torna
no ridículo; lembra-se-lhes o seu lugar na hierarquia so-
possível a separagáo completa é a perspectiva teatral. As
cial. Eis o motivo (''') do camponés embriagado ao qual
rúas e casas que constituíram o fundo do teatro de Palladio
fizeram crer que é gráo-senhor, para despertá-lo cruel-
ainda eram praticáveis; no teatro de Aleotti, já sao pinta-
mente, no dia seguinte, do seu sonho. Ésse motivo, pen-
das, e só pela perspectiva dao a ilusáo da materialidade. Pos-
dant cómico de La vida es sueño, é repetido por todos os
•ibilidades da perspectiva teatral sao as máquinas compli-
comediógrafos barrocos; é um motivo de predilegáo dos
cadas que no teatro espanhol e dos jesuítas produziram
dramaturgos jesuítas, aparece no preludio da Taming of
the Shrew, de Shakespeare; aparece, em variacáo d : férente,
60) W. Flemmlng: Das schleslsche Kunstdrama. Leipzig, 1930.
R. Alewyn: "Oelst des Barocktheaters". (In: Wetliteratur Fests-
chrift fuer Fritz Strich. Bern, 1952.) 61) W. Flemmlng: Die deutsche Barockkomoedie. Leipzig, 1931.

¿
720 OTTO MARÍA C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 721

no Georges Dandin, de Moliere. Até neste pormenor, a ci- gressismo" social. Existe urna relacao íntima, se bem q u e
vilizagáo barroca revela, apesar das diferengas de expres- muitas vézes secreta, entre classicismo e burguesía. O fato
sio, a sua unidade. de a racionalizagáo classicista do Barroco ter tido o maior
As expressóes da "classe burguesa-intelectual" ficam sucesso na Franga do "grand roi bourgeois" é significativo.
dentro dessa unidade; mas constituem o reverso das ex- O classicismo de oposicáo é urna tentativa de romper a
pressoes aristocráticas. A pompa das cerimónias eclesiás- pseudomorfose aristocrática que é o Barroco, e revelar
ticas corresponde a angustia religiosa; as ficgoes gratui- o sentido burgués da evolugao. A Inglaterra, depois da re-
tas corresponde o gósto pelas invengóes fantásticas da sá- volugáo burguesa ou semiburguesa de 1688, terá, no século
tira burlesca; ao falso heroísmo corresponde o realismo X V I I I , urna literatura classicista.
picaresco. Um apanágio particular do pensamento burgués As atividades daquelas duas "classes" em conjunto
e intelectual é o esfórgo de dominar as contradícoes anti- apresentam o panorama literario correspondente ao pano-
téticas do Barroco, racionalizando-as. O século dos místi- rama artístico entre os polos Greco e Caravaggio. Os mo-
eos também é o século dos grandes sistemas racionalistas: tivos principáis da literatura barroca sao (B2) a tensáo en-
Descartes, Malebranche, Spinosa, Leibniz. É o século dos tre vida e morte, tempo e eternidade; a tensáo entre o
grandes cientistas: Galiltu, Kleper, Newton. Com os gran- sensualismo do drama pastoril e a melancolía de urna vasta
des filólogos holandeses e ingleses, que pouco se parecem literatura funeraria; gósto de experiencias extáticas que
com os humanistas italianos da Renascenga, comega a cri- se aproximam da embriaguez, e gósto da mortificagao as-
tica histórica dos textos e documentos. A própria histo- cética; disciplina aristocrática do cortesáo e preferencia
riografia, porém, continua retórica; a historia resiste á pela caricatura burlesca; naturalismo cruel e retirada para
racionalizagáo dogmática. Descartes rejeita a historiogra- o sonho. Os géneros internacionais em que se exprimem
fía como pouco científica; ela fica sendo o reino dos po- ésses motivos sao a epopéia heroica ou sacra e a epopéia
lígrafos de erudigáo antiquária. herói-cómica, o romance de galantaria heroica e o romance
picaresco, os "guias de príncipes" que justificam a sangáo
O primeiro setor do pensamento barroco que foi ra-
eclesiástica do Estado, e a introspeegao, na autobiografía
cionalizado é a estética: com a racionalizagáo da poesia
e no romance psicológico; e, sobretudo, a projegao de to-
aristocrática pelo neo-aristotelismo dos intelectuais italia-
dos ésses motivos para fora: o teatro. , í £ 6 . : I • " "
nos comegou o Barroco. Durante o século X V I I renovam-
se sempre essas tentativas de racionalizagáo. Os críticos Com respeito as formas de expressao, o Barroco nao
literarios da época — que sao os intelectuais burgueses deixa de ser o herdeiro da Renascenga. Da poesia petrar-
— atacam incessantemente o estilo barroco de expressao, quesca provém outra poesia aristocrática, o marinismo e
zombando dos marinistas e gongoristas, e congratulando-se gongorismo; da tradigáo platónica da Renascenga provém
com os poetas classicistas que se exprimem, parece, no es- a mística; da literatura popular do século XVI provém o
tilo da Renascenga. Sao poetas da "reagáo literaria", em naturalismo barroco. Aparecem compromissos e misturas
número nao pequeño; formam urna contracorrente. Do de toda a especie entre essas formas "puras" de expressao:
ponto de vista literario, sao quase todos inferiores aos o gongorismo místico do teatro dos jesuítas, o gongorismo
barrocos. Mas históricamente estáo com a razáo: perten-
cer-lhes-á o futuro. O "reacionarismo" literario é "pro- 62) W. Benjamín: Ursprung des deutschen Trauerspiels. Berlín,
1928.
722 OTTO M A R Í A C A R P E A U X

naturalista da epopéia herói-cómica, a mística burguesa


do» jansenistas e protestantes, o gongorismo burgués dos
"mataphysical poets", o naturalismo místico da literatura
d t introspeccáo psicológica. Ésses tipos mistos dáo como
resultante o panorama multiforme da literatura barroca.
Mas as contradicóes nunca se resolveram, totalmente, em
slnteses por meio da palavra escrita. A arte pela qual o CAPITULO II
Barroco se superou a si mesmo é a arte de Benevoli e Vi-
valdi, de Bach, Haendel e, finalmente, de Gluck. Os pro- POESÍA E TEATRO DA CONTRA REFORMA
blemas literarios do Barroco encontrarlo, futuramente,
suas solucoes definitivas no estudo da música ( 5 3 ).
j | T E R M O "culteranismo" serve para designar em urna
^ - , palavra as correntes poéticas do marinismo, gongoris-
mo, preciosismo e semelhantes. Define, e sem simpatía, o as-
pecto exterior daquela poesía: uso de palavras raras ou até
esquisitas, sintaxe complicada, alusoes eruditas ou de qual-
quer maneira pouco compreensíveis, metáforas inéditas e
difíceis, usadas como se fóssem símbolos de urna lingua-
gem secreta que só os iniciados entendem; tudo, enfim, o
que é "culto" em sentido pejorativo, no sentido de urna
língua artificial que difere intencionalmente da língua dos
mortais comuns. Empregada assim, a palavra "culteranis-
mo" serviu, no século X V I I , aos inimigos daquela poesía
para fins polémicos. Afirmavam que marinismo e gongo-
rismo eram invencoes gratuitas de poetas que bem podiam
fazer coisa melhor — de Góngora existem realmente
poesías em estilo popular, simples — mas que quiseram
fingir-se "cultos", realizar qualquer coisa de inédito, só
acessível as élites requintadas. Os crkicos do século X V I I I
e os historiadores do século XIX aceitaram expressao e ex-
plicacáo; o adjetivo portugués "gongórico" significa, até
na boca de iletrados, um estilo pomposo, complicado e
absurdo.

Hoje, que a situacáo mudou — Góngora e Donne sao


63) M. Bukofzer: Music in tke Baroque-Era. New York, 10*7. incluidos entre os .maiores poetas de todos os tempos —
8. Clercx: Le Baroquc et la Musique. Bruxelles, 1948. a poesía culterana já nao pode ser explicada de maneira
R. Benz: Deutsches Barock. Stuttgart, 1949.
724 OTTO MARÍA CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 725

t i o mesquinha. Admite-se que o estilo barroca da poesía Contudo, naquelas explicagoes maliciosas do cultera-
é a conseqüéncia lógica da imitagáo formalística das lite- nismo há utn grao de verdade. Um Marino, um Góngora,
raturas antigás na Renascenca: as sutilidades lingüísticas
um Donne quiseram oferecer algo de novo e inédito, a
do estilo greco-romano eram muito mais elaboradas do que
todo custo, até ao prego de tornar-se afetados ou incom-
em qualquer língua moderna, a m e t r i f i c a d o e a prosa re-
preensíveis. Em parte, é conseqüéncia do cansago. No
gulavam-se por leis de cadencia musical, leis de simetría,
século X V I I I , o novo público burgués estava, enfim, can-
leis do uso das metáforas, coisas das quais os modernos
sado dos requintes do Rococó; surgíu, no pré-romantismo,
nao tém idéia, mas com o progresso da evolucao chegou-se
até na prosa a estilos bem "barrocos", como o de Séneca o culto da poesia popular. Também no século X V I I , al-
e Tácito ( ' ) . A imitagáo dos antigos já levara, em Pe- guns eruditos burgueses manifestam interésses folclóricos;
trarca e nos escritores do "gótico flamboyant", ao abuso de mas o espirito dominante da sociedade aristocrática, can-
metáforas, trocadilhos, antíteses, e a poesía aparentemente sada da "grande simplicidade do classicismo", impoe suti-
classicista do século XVI já contém os germes do estilo lezas cada vez mais profundas ou pseudoprofundas. Até
barroco, justamente porque era classicista e poesia de élite hoje, o viajante, após ter percorrido as salas dos grandes
( 2 ). O estilo de Marino é a conseqüéncia fatal do estilo de pintores italianos do "Csnquecento", nos Uffizi, de Fio-
Tasso ( 3 ). O gongorismo é a síntese e a condensacao in- renga, ou no Prado, de Madri, está táo cansado da beleza
tensificada da poesia lírica da Renascenca, partindo esta harmoniosa e monótona dos Rafaéis e Andreas del Sarto
da tradicáo poética greco-romana (*). O estilo dos "meta- que a primeira vista dos quadros violentos do Barroco, das
physical poets" do barroco inglés procede táo ¡mediata- visoes do Greco e das rudezas de Caravaggio produz efeito
mente do estilo da poesia inglesa renascentista, dos Sidneys de um alivio, embora seja arte de tensáo psicológica maior.
e Drumonds, que nem sempre é fácil distinguir as cor- Sente-se ¡mediatamente que aqueles classicistas deram
rentes ( 6 ) . Todo classicismo tem, segundo os conceitos de tudo o que tinham que dar, enquanto os barrocos revelam
Woelfflin, a tendencia de transformar-se dialéticamente parcialmente qualquer coisa que nao podem exprimir e
em seu antípoda barroco, e o "culteranismo" também é um ninguém pode exprimir de todo. Os poetas barrocos sao
produto, por assim dizer, lógico, da evolugao renascentista poetas do inefável, e a sua ansia de dizer algo de inédito
(°), se bem que de harmonía com urna lógica dialética. é ansia de dizer algo que nao sao capazes de dizer ou
nao devem dizer. Aquela tensáo é resultado do esfórgo
1) E. Norden: Die antike Kunstprosa vom 6. Jahrhundert vor de se aproximar cada vez mais do inacessivel, do qual a fra-
Christus bis in die Ze.it der Renaissance. 2.* ed. Leipzig, 1915. queza da "condition humaine" os afasta. O hermetismo e o
M. W. Croll: "Attic Prose In the Seventeenth Century". (In: Stu-
dies in Philology, XVHI. 1921.) caráter simbólico das metáforas sao conseqüéncias de ambi-
2) O. Scopa: Osservazioni critiche sulV origine del secentismo. Na- güidades íntimas. Foi Coleridge o primeiro que descobriu
poli, 1907. essa ambigüidade, a fonte da grande poesia; e críticos an-
3) F. Mango: Le fonti dell'Adone. Torlno, 1891. / glo-americanos modernos elaboraram urna nova teoria da
4) Diim. Alonso: "La lengua poética de Góngora". (In: Revista de poesia como sintese de afirmagóes racionáis e subenten-
Filología Española, Anejo XX, 1935.)
5) E. Oosae: The Jacobean Poets. London, 1894. didos emocionáis; as metáforas nao sao enfeites artificial-
R. Tuve: SlUeabethan and Metaphysical ¡magery. Chicago, 1948. mente apostos, mas tém fungáo na estrutura do poema, re-
6) O. Dlaz-Plaja: El espíritu del Barroco. Barcelona, 1940.
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 727
726 OTTO M A R Í A C A R P E A U X

velam as ambigüidades emocionáis ( 7 ). O que amigamente gora. Contudo, existem dentro da poesía metafórica dife-
rengas fundamentáis, que se revelam ñas próprias metáfo-
parecía artificio gratuito, parece hoje — ou, pelo menos,
ras. Poesía metafórica é, por definicao, perífrase das coisas
pode ser — expressáo da angustia.
reais para determinado fim emocional; Kenneth Burke defi-
Resta conhecer as fcntes dessa angustia. As obsce-
niu a metáfora como estratagema poético, e a poesía meta-
nidades mais ou menos veladas em Marino, Góngora e
fórica como estrategia poética, "agao simbólica" ( n ) . Os
Donne sugerem explicarlo psicanalítica. Com efeito,» a
símbolos dependem do ambiente espiritual que os fornece, e
origem psicológica da metáfora é urna especie de tabú:
do ambiente social que os determina. Seráo outros na Ingla-
a metáfora exprime veladamente coisas ou alude a coisas
terra da "via media", diferentes dos da Italia e Espanha
que nao é possível dizer francamente, ou que a "censura"
Í i Contra-Reforma; seráo outros na "metaphysical poe-
intima, na alma do poeta, nao permite revelar (*). Logo,
y", "agao simbólica" de poetas burgueses, diversos dos
estao fora de questao aquelas especies do culteranismo que
do marinismo e gongorismo de poetas em ambiente aris-
sao meras imitagoes do marinismo, sem necessidade intima
tocrático-católico. Sao distin§óes mais fundamentáis do
ou por motivos diferentes. É éste o caso do marinismo
que as analogías dos processos estilísticos.
na Alemanha, Holanda e Suécia ( 9 ), países protestantes
O "espirito da época" — e nao apenas a moda lite-
com estrutura mental diferente; só a poesía latina dos je-
raria — é responsável pela grande semelhanga das expres-
suítas, na Alemanha meridional e na Austria do século
sóes poéticas na Europa inteira do século X V I I ; a dife-
X V I I , estaría naquele mesmo caso, que se repetirá, no sé-
renciagáo das "classes literarias" é responsável pela inde-
culo XIX, na poesía do jesuíta inglés G. M. Hopkins. A In-
pendencia relativa do marinismo, gongorismo, preciosismo
glaterra barroca, por sua vez, nao é protestante nem católi-
e "metaphysical poetry". Antes de tudo é preciso limitar
ca; a ambigüidade de Donne baseia-se em parte na ambi-
o "culteranismo" própriamente dito as expressoes dos paí-
güidade da situacáo religiosa do seu país e do próprio poe-
ses da Contra-Reforma católica; a delimitacáo dará como
ta ( 1 0 ). Os protestantes ingleses, os puritanos, evitam o esti-
resultado secundario as diferengas fundamentáis entre os
lo barroco; os outros, os "mctaphysical poets", debatem-se
culteranismos italiano, espanhol e francés.
ñas dificuldades de um anglo-catolicísmo avant la lettre.
Os caracteres essenciais do Barroco poético sao ca-
Donne está entre misticismo e erotismo, e George Herbert
racteres permanentes da alma literaria da Espanha; mas a
encontra-se, estilísticamente, entre hinografia e naturalis-
conquista da Europa pelo Barroco espanhol realizou-se
mo. Estas situagoes parecem análogas as de Marino e Gón-
através da Italia: através do concilio de Trento, da italia-
nizagao da Companhia de Jesús, e da Contra-Reforma, cujo
7) J. A. Richards: Principies of Literary Criticism. 6.a ed. London, centro de agáo ficava em Roma. Daí a prioridade crono-
1938. lógica do marinismo italiano. O ambiente ainda era o da
W. Empson: The Seven Tupes of Ambiguity. London, 1931. Renascenga aristocrática; os portadores da nova poesía
8) H. Pongs: "L'image poétique et l'inconsdent". (In: Psychologie eram intelectuais, descendentes dos humanistas, quebrados
du Langage, ed. por H. Delacrolx e outros. París. 1933.)
9) 8. Fllipponl: II marinismo nella letteratura tedesca. Firenze. pela bancarrota do nacionalismo "romano" e do "idealismo"
1910.
11) Kenn. Burke: The Philosophy of Literary Form. Studies in
10) F. P. Wllson: "Notes on the Early Life of John Donne". (In: Symbolic Action. New Orleans, 1941.
Review of English studies, i n , 1927.)
*
728 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURAI OCDENTAL 729

«riimiano. O marinismo é o produto da ambigüidade, na tro é do povo, ao ponto de mal ter sido considerado
mente daqueles intelectuais, entre o hedonismo aristocrá- como parte da literautra. No teatro elisabetano-jacobeu
tico-lascivo e a angustia religiosa: é o caso de Tasso. nao existem aquelas ambigüidades, substituidas pela indi-
Com efeito, Tasso é o precursor imediato do marinis- ferenca religiosa que foi a conseqüéncia das indecisoes da
mo. Contudo, Tasso, embora fósse poeta barroco, nao é "vía media" entre anglo-catolicismo e puritanismo. N o
poeta marinista avant la lettre, e os poetas marinistas teatro inglés, Deus e a religiao nao existem como fatóres
revelam pouca coisa das angustias tremendas que levaram determinantes. Shakespeare e Ben Jonson, considerados
o precursor ao manicomio. Tasso é o tipo intelectual da do ponto de vista da técnica dramatúrgica, parecem ateís-
época; os marinistas desistem, advertidos pelo exemplo, tas. O teatro popular correspondente na Espanha é — mu-
das pretensóes do poeta da Gerusalemme liberata. Ren- tatis mutandis — o de Lope de Vega; e é significativa a
dem-se ao hedonismo aristocrático. De Tasso provém o luta incessante de Lope contra o gongorismo, a "metaphy-
estilo marinista, no sentido mais superficial da palavra, sical poetry" espanhola- Mas Lope nao é "ateísta"; já é
como arte de ornamentos verbais, como música verbal. Fi- dramaturgo da Contra-Reforma. O teatro da Contra-Re-
nalmente, a poesia italiana do "Seicento" transformar-se-á forma está imbuido de tendencias moralistas, pedagógicas;
em música, e o drama, a grande aspira$ao frustrada de chega a ser, nos autos sacramentáis, teatro de catequese re-
Tasso, acabará em ópera. ligiosa. Antes dos espanhóis, os jesuítas já tinham cora-
Por todos ésses motivos, nao convém considerar e es- preendido as possibilidades pedagógicas do palco; o tea-
tudar a poesia de Tasso dentro da corrente marinista ( 1 2 ) : tro jesuítico, prolongamento dramático da Ratio studio-
o seu lirismo exprimiu-se menos na poesia lírica do que rum, constituí o preludio do teatro espanhol. Mas entre
na epopéia, e o seu drama pastoril, aristocrático e hedo- todos os países da Contra-Reforma, a Espanha é o único
nistico, nada tem que ver com o teatro popular e mora- em que o teatro jesuítico nao alcancou grande importancia:
lista da Contra-Reforma. Milito mais perto que dos poe- porque o teatro nacional já estava desempenhando a fun-
tas marinistas se acha Tasso dos "metaphysical poets" in- gió. O motivo dessa identificacao é a correspondencia
gleses que, desde Donne e Herbert, exprimem ambigüida- exata entre o Barroco e os caracteres permanentes da lite-
des e contlitos pemelhantes. Apenas, o teatro pastoril de ratura espanhola. Os espanhóis chegaram a identificar a
Tasso nao apresenta analogía alguma com o teatro inten- Espanha com o catolicismo romano; conceitos da tradisao
samente popular da época elisabetana-jacobéia. Nisso tam- nacional, como o conceito da honra, foram considerados
bém Tasso é um "metaphysical poet". Donne estéve es- como se fóssem dogmas do credo. A aparéncia é da petri-
quecido durante mais de dois séculos, a "metaphysical poe- f i c a d o ideológica dessa literatura; na verdade, a litera-
t r y " inteira foi desprezada, enquanto se admirava devida- tura nacional e religiosa do culteranismo espanhol — re-
mente o teatro de Shakespeare e dos seus contemporáneos; presentada no teatro por Calderón — tinha efeitos psico-
parecía possível compreendé-lo, ignorando aquela poesia. lógicos de compensacáo da decadencia política e social da
Sao como dois setores inteiramente separados da literatura Espanha. A arte de Calderón é considerada gloria na-
inglesa do século X V I I : a poesia é dos intelectuais, e o tea-
cional por um aristócrata e militar como o Duque de Ve-
ragua, Capitán general del reino de Valencia.
12) Sobre Tasso, cí. "Pastarais, Epopélas e Picaros", notas 2 e 11.
730 OTTO M A R Í A C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 731

A oposigáo anticulteranista dos Lopes, na Espanha, e cutiram os fatóres que o separam da corrente marinista.
dos Tassonis, na Italia, acabara sem resultado. Havia outra O pré-Barroco italiano, em pleno "Cinquecento", está re-
oposigáo, mais forte a dos classicistas. Em toda a parte presentado com evidencia pela figura menor, mas nao in-
o culteranismo é acompanhado de correntes classicistas — significante, de Luigi Tansillo ( " ) . Pelos seus poemas
de Chiabrera a Villegas; sao tentativas de fuga, evasoes didáticos e pelo idilio Clorida, belas descrigoes do golfo
para um equilibrio ilusorio, nostalgias da Renascenga, na de Ñapóles, ainda pertence ao mundo dos Pontanos e San-
qual os conflitos barrocos nao existiram. Na Italia do sé- nazaros, Rotas e Rucellais. O poema obsceno 11 Vendemmia-
culo X V I I I , Chiabrera será exaltado como precursor do tore coloca-o na tradicáo dos humanistas lascivos. Quando,
neoclassicismo de Monti e Foseólo, assim como Villegas em 15S9, as suas obras foram postas, pela Igreja, no Index
será celebrado na Espanha como precursor de Meléndez dos livros proibidos, pretendeu Tansillo reabilitar-se, pu-
Valdés. De Sanctis, com a sua sensibilidade aguda, ousou blicando o poema religioso Le lagrime di San Pietro, re-
opor-se a cssa valorizarlo de Chiabrera; é certo que foi in- tratagáo fraca e hipócrita que lhe estragou a fama. Tan-
justo com o poeta, mas tinha razáo quando o distinguía sillo pareceu á posteridade um Aretino arrependido. Na
nítidamente dos outros classicistas mencionados. O clas- verdade, foi notável poeta lírico, e a melancolía ro-
sicismo da época barroca é mesmo um classicismo "impu- mántica dos seus sonetos nao encontra analogias em toda
ro", um classicismo-barroco, pendant do classicismo bar- a poesía renascentista:
roco que venceu na Franja o preciosismo culterano.

Entre marinismo italiano, gongorismo espanhol e pre- "Strane rupi, aspri monti, alte tremanti
ciosismo francés há muitíssimas semelhangas e analogias. Ruine, e sassi al ciel nudi e s c o p e r t i . . . " —
O que é diferente é o destino final désses estilos: a disso- essa poesía das ruinas e de paisagens sombrías é barroca.
lucáo em música, na Italia; a fcieño nacional, na Espanha; O Vendemmiatore é obsceno, mas nao á maneira elegante
a transformacao em classicismo, na Franja. dos humanistas, e sim á maneira naturalista. Le lagrime di
O "seicentismo" — os italianos chamam assim ao cul- San Pietro já foram comecadas dois decenios antes da cen-
teranismo italiano — foi sempre considerado como a época sura eclesiástica. Nao se trata de um grande poema re-
da maior humilhacao das letras italianas sob o dominio es- ligioso, porque Tansillo nao tinha vocagáo para isso; o
panhol, como fase de decadencia estética e moral. Só re- seu S. Pedro é um santo muito choroso, e só raramente
centemente o "seicentismo" encontrou defensores em Toffa- urnas expressoes de verdadeira angustia de penitente apa-
nin, Belloni e outros: a subserviéncia de muitos seiscentis- recem no meio de lugares-comuns mais ou menos hipócri-
tas em face da Franga é interpretada como fraca tentativa tas. Mas justamente por isso foi táo grande o éxito das
de oposigáo contra os espanhóis; explica-se o estilo "sei-
centista" pelo confuto entre as exigencias da sociedade aris-
13) Luigi Tansillo, 1510-1568.
tocrática e o moralismo da Contra-Reforma; e cita-se como II Vendemmiatore (1532/1534); Clorida (1547); La Balia (1552);
primeiro exemplo e primeira vítima do confuto o próprio 11 Podere (1560); Le lagrime di San Pietro (publ. 1586).
Tasso, de modo -jue o "seicentismo" ganha um grande poeta Edícáo das poesias líricas por F. Florentino. Napoll, 1882.
Edlcao da Clorida e dos poemas (com introdugáo) por F. Flaminl,
e urna árvore genealógica. Quanto ao caráter barroco da Napoli. 1892.
poesía de Tasso, já nao subsistem dúvidas; mas já se dis- F. Flamini: L'egloga e i poemetti di Luigi Tansillo. Napoll, 1893.
V. Laurenzia: 11 Canzoniere del Tansillo. La Valetta, 1908.
I

732 Orro MABIA CABPEAUX


HlSTÓBIA DA LlTEBATUHA OC1DENTAL 733

Lagrime di San Pietro, i m i t a d a s p o r M a l h e r b e , na F r a n c a , d o s t e m p o s m o d e r n o s q u e s e i n t e r e s s a pelas a r t e s p l á s t i -


e S o u t h w e l l , na I n g l a t e r r a . T a n s i l l o foi u m p o e t a d o " C i n - cas, i n i c i a n d o a s s i m urna t r a d i c a o francesa e p a r i s i e n s e .
q u e c e n t o " , q u e só o " S e i c e n t o " s o u b e a p r e c i a r : é o p r e c u r - A sua Gallería é urna colegao d e p e c a s d e m u s e u , q u a s e
d e a r t e p a r n a s i a n a . E se M a r i n o nao é, d e m o d o a l g u m ,
s o r d o B a r r o c o , isto é : d e M a r i n o .
u m g r a n d e p o e t a , é p e l o m e n o s um g r a n d e a r t i s t a . A s u a
O " c a v a l i e r " G i a m b a t t i s t a M a r i n o ( 1 4 ) , talv^z o p o e t a
habilidade em m i s t u r a r cores, em descrever os reflexos da
m a i s famoso d o seu t e m p o , p e r c o r r e u o c a m i n h o d e T a n -
luz na a g u a c o m o e m c r i s t a i s , é e s p a n t o s a ; m a s só lhe s e r v e
Billo em s e n t i d o c o n t r a r i o : comeg.ou com urna e p o p é i a b í - p a r a c o m p a r a r a é s s e s r e f l e x o s os e n c a n t o s da pele d a s
b l i c a , a Strage degli Innocenti, e t e r m i n o u com a.s l a s c i v i a s s u a s ninfas. M a r i n o a c e r t a em p e q u e ñ a s p o e s i a s e r ó t i c a s ;
d o Adone. Sao os m e i o s q u e l h e j u s t i f i c a m o fim, e o s mas torna-se insuportável no tamanho épico do Adone.
m e i o s sao o s m e s m o s n a poesia s a c r a e n a poesía e r ó t i c a : Entáo, o artista revela a sua incapacidade poética. T e m vi-
s o e s plásticas, m a s n a o t e m visao. S u b m e t i d o a j u l g a m e n t o
" É del p o e t a il f i n la m e r a v i g l i a : estético, M a r i n o n a o p o d e ser reabilitado, assim como fo-
C h i n o n sa far s t u p i r , v a d a a l i a s t r i g l i a . " ram reabilitados Góngora e Donne. Mas o j u l g a m e n t o his-
tórico tem de obedecer a outros criterios, reconhecendo a
P a r a a s s u n t o d o p o e m a s a c r o e s c o l h e u as c e n a s s á d i c a s da
poesia d e M a r i n o e j u s t a m e n t e o Adone c o m o e x p r e s s o e s
chacina das crianzas inocentes em Belém, e para assunto
válidas e insubstituíveis d e u m determinado momento his-
d o poema mitológico o amor em "pleín air", d e Venus e
t ó r i c o . S ó p a r a o l e i t o r m o d e r n o essas p o e s i a s sao pegas
A d o n i s . É poesia s e m e m o c á o n e m a s á o ; é a p e n a s urna
d e museu (14"A).
seqüéncia de ¡números quadros descritivos, s e m p r e com o
fim de comunicar o "piacere f a n t á s t i c o " ; a arte poética A s p o e s í a s d e M a r i n o s a o pegas d e m u s e u t a m b é m
d e Marino é bem contemporánea da arte dos pintores bar- n o u t r o s e n t i d o : s a o colecóes, h á b i l m e n t e r e u n i d a s , d e a m o s -
r o c o s d o s e u t e m p o , d o s q u a d r o s p o m p o s o s <los i r m á o s t r a s da a r t e p o é t i c a d e t o d o s o s t e m p o s . M a r i n o era g r a n d e
Carracci, Reñí e D o m e n i c h i n o , dos " a m o r e t t i " meio inge- leitor, conhecedor culto e até erudito de T e ó c r i t o e Vir-
nuos, meio obscenos de Albani. Marino é o primeiro poeta gilio, Catulo e Ovidio, Ronsard e Tasso, Montemayor e
L o p e de Vega. Afirmam que anotou, em cadernos volumo-
14) Giambattista Marino. 1569-1625. (Cf. "Pastorais, Epopélas e Pi- sos, os belos versos e frases e expressoes que encontrou
caros", nota 14.) naqueles poetas, compondo entáo os seus poemas como mo-
La Lira (1602/1614); La Strage degli Innocenti (1610); Dicerie s a i c o s d e citacoes. N e s t e s e n t i d o , fala-se d o o p o r t u n i s m o
sacre (1614); Epithalami (1616); La Sampogna (1620); VAdone artístico de Marino, reunindo tudo o que podía agradar ao
(1626); La Gallería (1635).
" g u s t o del m o n d o " . O g ó s t o d o s e u m u n d o a r i s t o c r á t i c o
Edicáo das poesias por B. Croce, Bari, 1912.
Edicáo do Adone por O. Balsamo-Crivelll, Torino. 1922. era u m g ó s t o o v i d i a n o ; e n t á o , M a r i n o r e s s u s c i t o u e i n t e n -
Edicáo de Obras Escolhidas (com introducá©) por O. Getto, Torino, sificou, por meio de metáforas inéditas, a composigáo bem
1954. o v i d i a n a d e lascivias p i c a n t e s e m e l a n c o l í a s e l e g i a c a s . É
M. Menghinl: Lo vita e le opere di Giambattista Marino. Roma, O v i d i o , v i s t o p e l o s olhos d e T a s s o . M a r i n o é virtuose da
1888.
E. Canevari: Lo stile del Marino. Pavía, 1901.
A BorzelU: Istoria della vita e delle opere di Giambattista Ma- 14A) C. Calcaterre: 11 Parnaso ¿n rivolta. Barocco e antibarocco
rino. Napoli, 1927. nclla poesia italiana. Milano, 1940.
F. Picco: 11 cavalier Marino. Roma, 1927.
734 OTTO MARÍA CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 735

imitagáo ovidiana nos famosos "baci", variagoes intermi- riedade pela arte de inventar as metáforas mais audaciosas
náveis da poesía do beijo; é napolitano melancólico e sin- para bajular a corte francesa; só por vézes se revela a sua
cero no impressionismo dos "sonetti marittimi" e na poesía capacidade de empregar metáforas daquela especie em sen-
idilica da Sampogna: ai se encontra a mais bela das suas tido satírico, rabelaisiano. Em Achillini perdeu-se, talvez,
poesías, a écloga "Bruna Pastorella", já poesía anacreóntica, um grande poeta humoristico. Girolamo Preti ( l 7 ) , poeta
no estilo Rococó dos Bouches ou Fragnards. Até na poe- famosissimo pelo idilio '"Salmace", teria sido, em outros
sía religiosa das Dicerie sacre, para a qual nao parece ter tempos, um elegiaco notável; e Antonio Bruni ( 1 8 ), poeta
vocagao alguma, Marino é bem servido pelo fino gósto ar- de enormes falsidades heroicas, teria sido um erótico sutil,
tístico: sao poesías de urna sonoridade maravilhosa, pro- um petrarquista dos melhores. A impressao geral é menos
fundamente musical, como as cantatas dos compositores na- de poesía falsa do que de poetas engañados, de arte con-
politanos, dos Alessandros Scarlatti e Durantes. Pela des- sumada mas absurda. Lembra as melodias bonitas das ópe-
proporgao entre a capacidade artística e a incapacidade ras italianas, acompanhando palavras sem sentido; e, com
poética, Marino é, no fundo, menos um virtuose vitorioso efeito, o último resultado da virtuosidade lingüística dos
do que um poeta malogrado. A sua literatura é expressáo marinistas será o "dramma per música", o "libretto".
exata do homem Marino: por fora, um "cavalier" vaidoso, A reacáo contra o marinismo nao é fatalmente classi-
ávido de glorias mundanas; por dentro, um melancólico cista. Também poderia ser oposicáo do bom senso burgués,
confuso, genio malogrado. como o demonstra o caso de Tassoni, crítico acerbo da poe-
O caso Marino nao se repete; para falar com proprie- sía petrarquista e inimigo corajoso da dominagáo espa-
dade, existe só um poeta marinista: Marino. Nos outros, nhola; mas Tassoni pertence á outra "classe literaria", á
nos seus discípulos, o virtuosismo degenera em acrobacia, burgués-intelectual. Em geral, poder-se afirmar que a opo-
a metáfora engenhosa em trocadilho monstruoso. A civi- sigao contra o marinismo foi urna reagao antipoética, jus-
Iizagao italiana da Contra-Reforma póe tudo á disposigao tificando indiretamente a poesía do "cavaliere" ( , 8 " A ). Aos
dos poetas, tudo, menos o sentido humano. Sao justamente humanistas, formados no ideal aristocrático, só resta a
os marinistas italianos, e quase só éles, que justificam a volta aos cánones da Renascenga; o seu patriotismo anti-
má fama postuma do culteranismo. Após terem sido ído- espanhol tem qualquer coisa de académico e cosmopolita,
los admirados da época, caíram em desprézo tao completo no sentido do ideal da Europa crista. Déste modo, Ga-
que hoje é difícil encontrar-lhes as obras ( , s ) . Contudo, •
havia entre élcs alguns talentos notáveis, embora cor- 17) Girolamo Preti, 1582-1626.
L. Patané-Finocchiaro: Appunti su Qirolamo Preti. Milano,
rompidos. Claudio Achillini ( , 0 ) alcancou gloria e noto- 1898.
18) Antonio Bruni, 1593-1635.
Selva di Parnaso (1616) ¡ Epistole eroiche (1626); Le tre Grazte
15) Edlcao: Lirlcl Marinisti, por B. Croce, Bari, 1910. (1630).
16) Claudio Achillini, 1574-1640. M. R. Fllieri: Antonio Bruni, poeta marinista Leccese. Lecce,
Rime e Prose (1680). 1919.
B. Malatesta: Claudio Achillini. Modena. 1884. ) Of. nota 14-A.
736 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 737

briello Chiabrera ( , 9 ) é mais passadista, "reacionário", do homem envolvido nos negocios diplomáticos; dedica a sua
que os discípulos de Marino; ñas odes pretende revivifi- ode mais famosa "AlP Altezza del Duca di Savoia", esperan-
car a arte solene — aristocrática, mas nao culterana — de do do poder futuro do entáo pequeño Estado piemontés a
P í n d a r o ; e todos os classicistas do século X V I I sentem o líbertacáo da península. A poesía significa para ele, como
mesmo amor infeliz ao mais inimitável dos poetas da Anti- para os nobres romanos, um "gaudium severum", á maneira
guidade. Quando Chiabrera está cansado de celebrar heróis de Horacio. Gosta da arte, sem possuir a arte de um Ma-
que nao sao heróis e santos que nao sao santos, comeca a rino. Confundindo causa e efeito, Leopardi dizia as pa-
lavras que sao, no entanto, julgamento justo e a maior
brincar, mas sempre em estilo antigo: inventa a poesía ana-
honra da memoria de Fulvio T e s t i : "In etá meno barbara...
creóntica, outra fonte perene de disparates poéticos. De
sarebbe stato il nostro Orazio". Na época da Contra-Re-
Sanctis, talando como crítico, negou á poesía de Chiabre-
forma italiana, arte perfeita e sentimento sincero excluem-
ra todo o valor. Carducci, falando como historiador, sa-
se reciprocamente. Marino é só artista; Testi é só sincero.
lientou a importancia histórica da poesía de Chiabrera:
A incompatibílidade revela-se em Filicaia ( 2 1 ), poeta frió
num periodo de escurecimento dos ideáis clássicos, genui- e ás vézes imbécil, celebrando vitórias francesas e austría-
namente italianos, Chiabrera permaneceu fiel a ésses ideáis, cas como se fóssem triunfos do cristianismo. Contudo, Fi-
e o seu dominio dos metros greco-romanos servirá de mo- licaia é o único poeta italiano do século X V I I que con-
delo a Monti e Foseólo, os poetas da renascenga nacional segue um ou outro verso forte, bem construido e ao mesmo
do fim do século X V I I I . Chiabrera ainda será modelo das tempo bem sentido, como a famosa apostrofe á Italia:
Odi barbare, do próprio Carducci.
É, em todo o caso, um valor puramente formal. Em
"Deh! fossi tu men bella, o almen piü f o r t e . . . "
Fulvio Testi ( 20 ) reconhece-se, porém, urna auténtica alma
romana. O seu patriotismo antiespanhol é concreto, de um O resto é apenas exercicio estilístico. A Arcadia, á qual
Filicaia já pertence, restabelecerá as formas da tradicao
19) Gabriello Chiabrera, 1552-1637. (Cí. "Pastorals, Epopélas e Pi-
clássica italiana, mas só as formas, como se fóssem arias
caros", nota 21.)
Poesie (1585/1588); epopélas: Gotiade (1582); Erminla (1605); sobre textos modernos. Metastasio também pertencerá á
Firenze (1615); Amedeo (publ. 1654); comedia pastoral: Al- Arcadia. A literatura de Petrarca e Políziano acaba em
cippo (1604). palavras cheias de música, e afinal em música sem pala-
Edl?6es daS poesías por F. L. Mannuccl, Torlno, 1926, e por F. vras, em solfejos. É a vitória postuma do marinismo.
Negri. Torteo, 1952.
Q. Carducci: Dello svolgimento dell'ode in Italia. Bologna, 1902. Se a tradicao italiana é classicieta, o caráter perma-
F. Nerl: Gabriello Chiabrera e la Pleiade tráncese. Torlno, 1920. nente da poesía espanhola é barroco. O marinismo italiano
F. L. Mannuccl: La lírica di Gabriello Chiabrera: Storia e ca- é artificio; o gongorismo espanhol ( 22 ) é conseqüéncia ló-
ratteri. Napoli, 1925.
E. N. Glrardl: Esperienza e poesie di Gabriello Chiabrera. Mi- 21) Vlncenzo di Filicaia, 1642-1707.
lano, 1950. Poesie toscane (Flrenze, 1707).
30) Fulvio Testl, 1593-1646. G. Caponl: Vincenzo di Filicaia e le sue opere. Prato, 1901.
Rime (1627). 1'.'.i L.-P. Thomas: Le lyrisme et la préciosité cultistes en Espagne.
Edicfto: Opere scelte. Modena, 1817. Halle, 1909.
E. Massano: La vita di Fulvio Testi, Flrenze, 1900. A. Reyes: Cuestiones gongorinas. Madrid, 1927.
O. Caprera: Fulvio Testi, poeta. Noto, 1922. Cl. "A Renascenca Internacional", nota 93.
A. Zambón!: Fulvio Testi. Torlno, 1939.
738 OTTO MAMA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDEINTAL 739

gica da evolugáo que comesou com Garcilaso de la Vega déme yo caliente, y ríase la gente" — as únicas poesías de
e continuou com Fernando de Herrera. Poeta ainda classi- Góngora que o gósto classicista admitiu. Em 1609, o autor
cista, horaciano, é Francisco d e Medrano ( 2 2 " A ). Mas já é daqueles lieds passou por urna grave crise mental. Entao
muito mais elaborado, evidentemente pré-barroco. Pode escreveu a ode "De la forma de Larache", na qual apareceu
ser, pela crítica moderna, apreciado como precursor de um outro Góngora, artificial, afetado, sutil, hermético, e
Góngora. Mas os contemporáneos logo o esqueceram. éste segundo Góngora tornou-se o alvo das hostilidades de
A Carrillo y Sotomayor (23) atribuiu-se a honra de quase tres séculos. Distinguiram o primeiro Góngora,
ter servido de modelo estilístico a Góngora; mas é um "ángel de luz", do segundo, "ángel de tinieblas", e expli-
poeta renascentista; só a sua écloga "Fábula de Atis y Ga- caram a mudanga por urna doenga mental, senáo pelo gósto
latea" é obra de transigáo, imediatamente seguida pelo novo da mistificacao e até da mentira poética^] Eis o ponto de
estilo do mestre. vista dos classicistas dos séculos X V I I I e X I X ; depois,
De Luis de Góngora y Argote ( 24 ) figuram ñas anto- concordou com éles a estética romántica, admitindo como
logías mais divulgadas, como na de Menéndez y Pelayo, poesia só expressóes imedíatas da emocao, banindo da poe-
só romances e letrilhas de tom popular, frescos, despreo- sía a inteligencia construtora, como se isto fósse sempre
cupados, de naturalidade perfeita: "Lloraba la n i ñ a . . . " , artificio. Com efeito, Góngora é o contrario de todo ro-
"la más bella niña de nuestro l u g a r . . . " , "Hermana Ma- mantismo. Seria classicista, se aceitasse a lingua conven-
rica, mañana que es f i e s t a . . . " , "Frescos a i r e c i l l o s . . . " , "Án- cional da Renascenga; em vez disso, resolveu criar nova
convengáo e nova lingua, o que o expós aos anatemas dos
22A) Francisco de Medrano. c. 1570-1607. tradicionalistas. Mas a sua tradicáo é a da Renascenga, que
Edlcao em Biblioteca de Autores Españoles, vol. XXXII. já exigiu a expressáo das emogóes em formas elaboradas
Dám. Alonso: Vida y obra de Medrano. Madrid, 1948. para o gósto de Ieitores cultos, capazes de entender alusoes
23) Luis Carrillo y Sotomayor. 1583-1610. eruditas e querendo ouvir coisas novas, inéditas, aprecian-
Obras (1611).
Edlcao (com Jntroducáo) por Dám. Alonso. Madrid, 1936. do-as com compreensao técnica. Góngora é um grande
J. García Soriano: "Don Luis Carrillo y Sotomayor y los orígenes técnico da poesia, um virtuose que sabe fazer t u d o : poesia
del culteranismo". (In: Boletín de la Academia Española, 1926.) popular e poesia hermética. Se a poesia "gongórica" de
24) Luis de Góngora y Argote. 1561-1627. Góngora é loucura, entáo há muíto método nesta loucura,
Obras poéticas (edit. por Juan López de Vicuña. 1627). método renascentista e até classicista. A sintaxe compli-
Edicóes por R. Foulché-Delbosc, 3 vols., New York, 1921, e por
J. e 3. Millo Jiménez, Madrid, s. d. cada, formada segundo modelos latinos, serve para inten-
Edlcao das Soledades por Dám. Alonso, 2.» ed., Madrid, 1935. sificar a sonorídade do verso e dar acento, as vézes novo
M. Artigas: Biografía y estudio crítico de Don Luis de Góngora y Bentido, as palavras empregadas. Também os neologismos
Argote. Madrid, 1925. de Góngora estao formados segundo as leis da lingüística
A. Reyes: Cuestiones gongorinas. Madrid, 1927. greco-latina; em todo o caso, a escolha das palavras obe-
D. Alonso: "Alusión y eluslón en la poesía de Góngora". (In:
Ensayos sobre poesía española, 2.* ed. Buenos Aires, 1946.) dece á lei de nao empregar jamáis expressóes vulgares ou
E. J. Gates: The Metaphers o/ Luis de Oóngora. Phlladelphla, lugares-comuns inadmissíveis ao lado de expressóes aris-
1934. tocráticas e eruditas. A elaboragáo de metáforas inéditas
D. Alonso: "La lengua poética de Góngora". (In: Revista de Fi- •erve mesmo para o fim da "elusión" das coisas ignóbeis
logia Española, Anejo XX, 1935.)
A. Crece: "La poesía di Góngora". (In: Critica, XLII/5-7, 1944.)
Dám, Alonso: Poesía española. Madrid, 1950.
740 OTTO MARÍA CAHPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 741

déste mundo, substituindo-lhe os nomes por perífrases me- de Córdova, que gostava tanto da música e do jógo de
tafóricas do mesmo valor semántico. Ao mundo baixo a cartas, nao fez esfórco algum para evitar obscenidades
poesía se refere só por alusao. "Alusión y elusión" é, se- grosseiras, e o cume do seu naturalismo folclórico é atin-
gundo Dámaso Alonso, a fórmula da poesia de Góngora. gido por certas poesías religiosas, quase blasfemas, como
Déste modo, Góngora constrói com os elementos da lín- a cancáo "En la Fiesta del Santísimo Sacramento", na qual
gua espanhola urna nova língua particular, para seu uso expressoes eucarísticas como "vuelta soberana" e "mudan-
e o dos seus leitores, e tudo, nessa nova língua, obedece za divina" rimam com a música dos sinos:
táo rigorosamente as suas leis intrínsecas que seria possí-
vel escrever urna gramática e sintaxe da língua de Gón- "A la dina daña dina, la dina daña,
gora. Dámaso Alonso, na sua edicao das Soledades, deu vuelta soberana.
urna versáo marginal do texto poético em prosa espanhola, A la dina daña dina, la daña dina,
á maneira como que se traduz de urna língua para outra. mudanza divina."
Góngora é um arquiteto de línguas.
Também é um arquiteto de estrofes e versos. Os seus Numerosas dessas poesías religiosas estao na linguagem
deturpada que os escravos prétos, na Espanha, emprega-
sonetos s l o maravühas de construcao, constituindo cada
vam, e Góngora domina essa língua tao soberanamente
um déles um mundo poético completo. Um soneto como
como a sua própria língua hermética. Em Góngora — a
aquéle em honra da sua cidade de "Córdoba" —
observacáo é de Vossler — há um grande humorista.
"Oh excelso muro, oh torres c o r o n a d a s . . . " — Mas os humoristas sao, em geral, pessimistas, e Gón-
gora é, como todos os grandes poetas espanhóis, um grande
condensa urna visao da Espanha; e aquéle outro sobre a poeta da morte. "Descaminado, enfermo, p e r e g r i n o . . . " ,
"Capilla de Nuestra Señora del Sagrario em Toledo", com assim ele se pinta a si mesmo num soneto; a sua imagi-
o verso final — nacáo está povoada de "infames turbas de nocturnas aves"
e de "urnas plebeyas, túmulos r e a l e s . . . " ; corre-Ihe a vida
" . . . en campo azul estrellas pisan de oro." — entre

condensa — segundo a observagáo feliz de Díaz Plaja — "las horas que limando están los días,
urna visio completa da arte barroca do seu século. Gón- los días que royendo están los años."
gora empregou essa arte para fins superiores na fábula O fim "natural" do naturalismo é a decomposicao.
de "Polifemo y Galatea": para exprimir, de maneira mais
Góngora continua enigmático. Na sua época, os admi-
impressionante, o contraste entre a fórca brutal do gigante
radores do poeta responderam as acusacoes de doenca men-
e a beleza sutil da ninfa. É o confuto entre naturalismo e
tal ou mentira deliberada com grandes comentarios expli-
esteticismo, na sua alma e na sua poesia.
cativos, como as Lecciones solemnes (1630), de José Pellí-
O naturalismo em Góngora é um fato. As suas poe- cer de Salas, e com a edícáo anotada das Soledades (1638-
sías populares nao sao brincadeiras. Trata-se de emprégo 1648), por García de Salcedo Coronel, demonstrando que
consciente de material folclórico ("Trepan los gitanos..."), aquela poesia "abstrusa" do mestre tinha o mesmo sen-
quase como em García Lorca. O pió cónego da catedral tido que a da Renascenca. Em nossa época, Dámaso Alón-
, .

742 O T T O MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 743

so escolheu outro caminho de reabilitasao, demonstrando Vico, culminando numa utopia platónica. O poema pode-
a perfeita unidade estilística entre as "letrillas" e roman- ria ser interpretado como idilio evasionista da Renascenca;
ces populares de um lado, e por outro lado, os sonetos, mas é um poema barroco, tentativa quase heroica de fun-
Polifemo e Soledades. A obra de Góngora constitui, por- damentar a última civilizacáo aristocrática por meio de um
tante, um bloco homogéneo — "el gongorismo es la sín- ricorso bárbaro, idéia estranha e anacrónica. Assim, os
tesis y la condensación intensificada de la lírica del Re- contemporáneos foram capazes de gostar da sua poesia,
nacimiento; es decir, la síntesis española de la tradición mas incapazes de compreendé-lo. E a conseqUéncia foi que
poética greco-latina". Éste resultado está em harmonía a literatura espanhola inteira adotou o estilo de Góngora.
perfeita com as afirmasoes dos comentadores do século atacando-o ao mesmo tempo, negando-lhe a razáo de ser.
X V I I . Apenas, desapareceu o público de "conhecedores" Na solidáo altiva e remota de urna poesia singular ador-
de entáo; e já nao se compreende porque Góngora es- meceu o "novo mundo" das Soledades, do qual D. Luis de
condeu entre "alusión y elusión" — os polos da sua arte Góngora y Argote é o Colombo.
metafórica — um pensamento nem sempre profundo e urna
A historia da poesia espanhola do século X V I I é a
filosofía que nao chega a ser filosofía. J á se fala em
historia do antigongorismo. Com excecáo de poucos dis-
mera "alquimia verbal", alquimia de palavras preciosas,
cípulos fiéis, todos hostilizavam o mestre ou a sua me-
t r a n s f i g u r a d o do mundo barroco das grosserias natura-
moria; e todos acabaram gongoristas, rendendo-se á ex-
listas e pessimismos fúnebres por meio de novas e fabu-
pressao mais completa do elemento barroco da alma espa-
losas estruturas lingüisticas. A obra-prima da arte de Gón-
nhola. Um désses gongoristas antigongoristas é Juan de
gora seria a fábula de "Polifemo y Galatea", transcricao
Jauregui ( 2 6 ) : a sua traducáo do Aminta, de Tasso, e a sua
metafórica de um mito renascentista.
Fábula de Orfeo, bastam para desmentir-lhe o antigongo-
Mas a obra-prima de Góngora sao as Soledades. O rismo teórico. Gongorista pessoal, á sua maneira, é Jau-
nome do poema lembra urna grande tradisao da literatura regui na poderosa traducáo da Farsália, de Lucano, a
espanhola: a poesía de solidáo noturna, seja de resigna- maior traducáo em língua castelhana, perfeita expressao
cao estoica, na "vida retirada", seja de escurecimento dos barroca do estoicismo, que é, desde Lucano e Séneca, outro
sentidos, no abismo da noite mística. O poema de Gón- elemento essencial da alma espanhola.
gora é muito diferente: as suas "soledades" sao as flores- Os gongoristas menores cultivaram aspectos parciais
tas e prados de um país desconhecido em que os náufra- da poesia do mestre: Bocángel (--'B), igualmente engenhoso
gos encontram urna estranha civilizacáo, meio de selvagens
bárbaros, meio de pastores gregos. O leitor moderno per- 25) Juan de Jauregui. 1583-1641.
de-se nesta floresta abundante de poesía barroca como em Edicao das poesías em Biblioteca de Autores Españoles, vol. XVCL
Edigao da tradugfto da Pharsalía (primelra publ. em 1684),
labirintos inextricáveis, embora fascinantes. Mas Góngora Madrid. 1888.
nao era confuso. O plano das Soledades — o poeta só dei- J. Jordán de TJrries: Biografía y estudio critico de Juan de
Jauregui. Madrid, 1899.
xou dois livros dos quatro projetados — compreendia urna
"historia ideal" da humanidade, através de varias fases: 26) Gabriel Bocángel y TJnzueta, c. 1608 — c. 1668.
idade dos pastores, idade dos pescadores, idade da caca, Rimas (1627); Lira de las musas de humanas y sacras voces
idade "política". Em suma, urna antecipacáo de idéias de (1635).
Edigao por B. Benitez Claros. 2 vols., Madrid, 1946.
R. Benitez Claros: Vida y poesía de Bocángel. Madrid, 1950.
744 OTTO MAHIA CARPEAUX HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 745

e m "conceitos" e r ó t i c o s e religiosos; Soto de Rojas ( 2 7 ) , r o c o . O c u l t o d e S . J o s é faz p a r t e da m í s t i c a d o E s t a d o ,


brilhante ñas descrigoes gongóricas de florestas e jardins sancionado pela política contra-reformista; e a epopéia de
F a n t á s t i c o s ; e m T r i l l o y F i g u e r o a (*"), e m q u e m r e b e n t a m V a l d i v i e l s o é o p r o d u t o m a i s n o t á v e l d é s s e c u l t o específi-
as ambigüidades íntimas á e Góngora, ora em erotismos de- camente barroco.
licados ora em obscenidades brutais, no idilio da " F á b u l a E n t r e todos os gongoristas, o único que tem algo de
d e L e a n d r o " e na p o m p a b a r r o c a d o s s o n e t o s ; P o l o d e M e - g e n i o d o m e s t r e é urna p o e t i s a : a r e l i g i o s a m e x i c a n a J u a n a
d i n a (-"), g r a n d e c o l o r i s t a que C o s s i o r e d e s c o b r i u sob a I n é s de la C r u z ( 3 I ) . E l a t a m b é m s e t o r n o u v i t i m a d o e q u í -
fama d e p o e t a s a t i r i c o . v o c o : c e l c b r a r a m - s e , q u a n d o m u i t o , as s u a s p o e s i a s e p i g r a -
A v e i a p o p u l a r d e G ó n g o r a r e a p a r e c e em V a l d i v i e l s o m á t i c a m e n t e e s p i r i t u o s a s , b r i n c a d e i r a s d a monja, q u e só
( 8 0 ) , f r a d e m o d e s t o , d e urna r e l i g i o s i d a d e a l e g r e e c o m o - a s s i m podia a l u d i r a o a m o r . N a v e r d a d e , ésse a m o r e r a s e n -
v i d a , q u e já foi c o m p a r a d a á d e M u r i l l o . O p r o c e s s o p o é - sual e a p a i x o n a d o , e e m o u t r o s t e m p o s t e r i a l e v a d o a r e l i g i o -
t i c o de V a l d i v i e l s o é o d a s t r a d u g ó e s " a l o d i v i n o " ; m a s , sa a um t e r r í v e l c o n f l i t o s e n t i m e n t a l . A s o b r a s d r a m á t i c a s
e m vez d e i n t r o d u z i r s e n t i d o r e l i g i o s o e m e x p r e s s o e s p r o - d e I n é s d e l a ' C r u z — o a u t o s a c r a m e n t a l El cetro de San
fanas, dá aos s e n t i m e n t o s r e l i g i o s o s o sabor da c a n c a o p o - José, o a u t o m i t o l ó g i c o El divino Narciso que lembra as
pular. E m h o m e n a g e m ao Sacramento do Altar, Valdi- p a i s a g e n s das Soledades, a c o m e d i a Los empeños de una
v i e l s o fez, e m vez d e o d e s ou s o n e t o s , u m r o m a n c e i r o . O casa — e n c o b r e m o c o n f l i t o em c o n s t r u g o e s c a l d e r o n i a n a s .
processo nao deixa de ser barroco; e Valdivielso, autor de O g o n g o r i s m o d e I n é s d e la C r u z s e r v i u - l h e p a r a e x p r i m i r ,
"autos sacramentales" ao gósto popular, concentrou as suas c o n t r a t o d a s a s i n i b i g o e s , " l o s e f e c t o s i r r a c i o n a l e s del
f ó r c a s n u m a g r a n d e e p o p é i a r e l i g i o s a , c e l e b r a n d o S. J o s é , a m o r " , c o n s i d e r a d o c o m o " c o n f u s o e r r o r " ; foi V o s s l e r q u e m
o patrono dos príncipes absolutistas e patriarcais do Bar- salientou essas expressoes da poetisa, descobrindo-lhe a
a m b i g ü i d a d e , q u e é a f o n t e da s u a p o e s í a .
21) Pedro Soto de Rojas, c. 1585-1658.
Edicóes das poesias em Biblioteca de Autores Españoles, vól. Jaureguí, o antigongorista em linguagem gongórica, é
XLII, e por A. Gallego Moren, Madrid, 1950. e x e m p l o d a s c o n f u s o e s q u e c e r c a r a m , d e s d e o comégo, o
A. Gallego Morell: Pedro Soto de Rojas. Madrid. 1948. culteranismo. O u t r o exemplo é o fato de Quevedo, anti-
28) Francisco de Trillo y Figueroa, f c. 1665.
Poesías «artas, heroicas, satíricas y amorosas (1652). g o n g o r i s t a a p a i x o n a d o , h a v e r e d i t a d o , e m 1631, c o m o a n t i -
Edtg&o por A. Gallego Morell, Madrid, 1951. doto contra o culteranismo, as poesias renascentistas de
A. Gallego Morell: Francisco y Juan de Trillo y Figueroa. Gra- F r a n c i s c o d e L a T o r r e , d e c l a r a n d o essa p o e s í a i t a l i a n i z a n t e
nada, 1951. como " g e n u i n a m e n t e e s p a n h o l a " . A reagáo c l a s s i c i s t a con-
28) Salvador Jacinto Polo de Medina, c. 1607 — c. 1640. tra o g o n g o r i s m o é urna m i s t u r a e s t r a n h a d e e r u d i t i s m o
Edtcéo por J. M. Cossío, Madrid, 1931. (A lntroducáo também
fol publicada em: J. M. Cossio: Siglo XVII. Buenos Aires, 31) Sor Juana Inés de la Cruz [Juana Inés de Asbajel, 1651-1695.
1939.) Inundación Castálida de la única poetisa, musa décima (1689/
A. J. González: Jacinto Polo de Medina. Madrid, 1895. 1700).
30) Fray José de Valdivielso, 1560-1638. Obras escogidas, edit. por M. Toussaint, México, 1916.
Vida, excelencias y muerte del gloriosísimo Patriarca San José Poesias, edlt. por E. Abreu Gómez, México, 1940.
(1604?); .Romancero espiritual del Santísimo Sacramento (1612); A. Ñervo: Juana de Ásbaje. Madrid, 1910.
Doce actos sacramentales (1622). K. Vossler: Die Zehnte Muse von México, Sor Juana Inés de ¡a
Romancero, edlt. por M. Mir, Madrid, 1880. Cruz. Muenchen, 1934.
San José, edlt. em Biblioteca de Autores Españoles, vol. XXIX. E, Abreu Gómez: Sor Juana Inés de la Cruz. México, 1934.
716 OTTO MARÍA C A R P E A U X H I S T O R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 747

humanístico e gósto popular, e mesmo no gósto popular há dos pelas antologías, sao horacianos, no estilo e no pen-
um elemento erudito, se bem que típicamente espanhol: samento; poesía de lugares-comuns nobres: Menéndez y
o estoicismo. Góngora é místico da Natureza e das coisas, Pelayo colocou os Argensolas num lugar honroso na evo-
andaluz dionisíaco. Quevedo é estoico sombrío; e Jau- lucao da poesía horaciana na Espanha. Reparou-se, porém,
reguí traduziu a Farsália do estoico Lucano. Francisco na condensacáo escura, já quase gongorista, das expressoes,
de Rioja ( 3 2 ), ao qual os séculos atribuíram, por engaño a em Lupercio; por outro lado, Azorín chamou a atencao
canelo A las Ruinas de Itálica e A Epístola Moral a Fabio, para a serenidade virgiliana da Epistola a Eraso, de Barto-
é poeta menor. Nos sonetos moráis e eróticos apenas se lomé. Enfim, chegou-se a urna diferenciacao mais exata
apresenta como um classicista erudito, hábil imitador de das poesías dos irmaos, sempre confundidos, e dos moti-
Horacio; as mais famosas das suas poesías, as Silvas, re- vos diferentes do seu clasicismo. Lupercio, mais culte-
velam mais sentimento da Natureza do que as éclogas re- rano que o outro, é um estoico pessimista, gongórico na
nascentistas, quase a ternura anacreóntica do Rococó. Mas expressao e antigongórico no pensamento. Bartolomé, hu-
urna expresólo como "vivir el tiempo escuro y breve" abre manista cristao de expressao claríssima, situa-se na com-
a perspectiva da melancolía estoica no fundo das distra- panhía de Francisco de la Torre, a quem faz lembrar nos
en es poéticas do erudito. seus versos
O reconhecimento das tendencias estoicas no classi- "Silencio y soledad, ministros puros
cismo espanhol permite a compreensao da alta poesía dos De alta c o n t e m p l a c i ó n . . . "
irmaos Lupercio Leonardo de Argensola e Bartolomé Leo- É poeta de outras "soledades", antigongórico na forma, rnas
nardo de Argensola ( S;| ). Os sonetos dos irmaos, divulga- também anticlassicista no pensamento: é romántico. Ro-
mantismo melancólico em formas renascentistas, as vézes
32) Francisco de Rioja. 1683-1659. pomposas. É semelhante á sua a poesía ocasional do erudito
Poesías inéditas (1797). Rodrigo Caro ( 3 *), que sobrevive ñas antologías pela grave
Edlcáo: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XXXII.
M. Cañete: "Paralelo de Garcilaso, Luis de León y Rioja". (In: retórica da sua "Canción a las ruinas de Itálica": motivo de
Boletín de la Academia Española, 1858.) Du Bellay, colocado na paisagem arcádica de Poussin e
A. Fernández Guerra y Orbe: La canción a las ruinas de Itálica expresso com a pompa barroca de um cortejo de "mil som-
no es de Francisco de Rioja. (Memorias de la Academia Española,
I, 1870). bras nobles de su gran ruina". Nao há figura mais bar-
A. de Castro: La Epistola moral o Fabio no es de Rioja. Cádiz, roca do que a do erudito confuso e vaidoso que foi Esteban
1875. Manuel de Villegas ( 3 B ), tradutor de Horacio, Tibulo e
33) Lupercio Leonardo de Argensola, 1559-1613.
Bartolomé Leonardo de Argensola, 1562-1631. 34) Rodrigo Caro, 1573-1647.
Edi?áo: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XLH, e por J. M. A. Sánchez y Castañer: Rodrigo Caro, estudio biográfico y cri-
Blecua, 2 vols., Saragossa, 1950/1951. tico. Sevilla. 1914.
M. Menéndez y Pelayo: Horacio en España. Madrid, 1885. Mlg. Ant. Caro: Rodrigo Caro. Bogotá, 1947.
O. H. Green: The Li/e and Works of Lupercio Leonardo de Ar- 35) Esteban Manuel de Villegas, 1589-1669.
gensola. Philadelphia, 1927. Poesías (1617).
J. Aznar Molina: Lupercio y Bartolomé Leonardo de Argensola. Edic&o por N. A. Cortés (Clásslcos Castellanos, vol. XXI), Madrid,
1913.
Madrid, 1939. Azorin: "D. Esteban Manuel de Villegas". (In: Los valores litera-
J. M. Castro y Calvo: "Para una valoración diferencial de los rios. Madrid, 1913.)
Argensola". (In: Ensayos y Estudios, n , 1/2.) N. A. Cortes: Introducá© da edlcáo citada.
748 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 749

Anacreonte. A poesia anacreóntica desse latinista per- talentosos; mas, enfim, venceu o bom gósto — "enfin Ma-
tence, pela forma e pelo espirito, á Arcadia italiana. Ville- lherbe vint", mas n a o foi Malherbe, e sim Boileau.
gas, desprezado na sua época, será o ídolo dos árcades es- A fraqueza dessa exposicao é evidente. Vem a reforma
panhóis do século X V I I I , sem perceberem sua melancolía de Malherbe, festejada como data histórica, e nao resolve
estoica, heranga do Barroco, que continua o estilo nacio- nada; apenas alguns discípulos lhe seguem o exemplo. A
nal da Espanha. A tenacidade désse elemento nacional re- primeira metade do século X V I I parece, segundo aquela
velou-se em Solis ( 3 e ) : ñas suas comedias de costumes é apresentagáo, o período mais confuso da historia literaria
tao antibarroco que se aproxima da maneira de Moliere. francesa, cheio de poetastros insignificantes ou talentos
Também a sua famosa Historia de la conquista de México engañados, e os efeitos da reforma classicista só se fazem
é um monumento de classicismo pomposo; mas Cossío de- sentir trinta anos depois da morte do reformador, em obras
monstrou bem, na disposigáo poética do material e ñas par- totalmente diferentes das suas. A conseqüéncia daquela
ticularidades do estilo, o gongorismo secreto. exposicao errada é q u e um grande poeta, Maynard, quase
desaparece na sombra ds Malherbe, ao passo que outros
"Enfin Malherbe vint", reza o famoso verso de Boi-
poetas notáveis, Brébeuf, Du Bois Hus, foram inteira-
leau, congratulando-se com a derrota do barroquismo fran-
mente esquecidos. T u d o isso do ponto de vista da his-
cés pelo classicismo severo. O nome de Malherbe encerra
toriografía oficial francesa, que, negando á literatura bar-
convenientemente um capitulo sobre a poesia culterana.
roca a existencia, tem de diminuir e como que esconder
Assim o entenderam, acompanhando Boileau, os historia-
o Barroco francés.
dores da literatura francesa, apresentando um quadro his-
tórico mais ou menos da maneira seguinte: Malherbe, em- A cronología daquela exposicao está certa; as rela-
bora nao grande genio poético, teria iniciado a época do coes entre os fatos literarios, eis o que está tao embru-
classicismo; infelizmente, só alguns discípulos lhe segui- lhado que a apreciagao dos próprios fatos se torna inexata.
ram o exemplo, dos quais Maynard é o mais importante: Malherbe nao esqueceu nunca os comegos meio barrocos
contra a ditadura de Malherbe ter-se-ia revoltado o talento da sua carreira literaria, e no fim da vida chegou a admi-
independente de Théophile de Viau; e os "précieux" do rar Marino; Maynard, elogiado por Paguet como epigra-
Hotel de Rambouillet, marinistas impenitentes, nao cuida- matista espirituoso, e por Sainte-Beuve como artista bri-
ram de maneira alguma das normas malherbianas; até u m lhante de lugares-comuns horacianos, é um grande poeta
realista burlesco, como Saint-Amant, pode fazer gracejos religioso; Théophile de Viau e Saint-Amant constituem
verdadeiros "casos" de ambigüidade entre o sentimento
trágico da vida e o burlesco, entre a melancolía e a obs-
36) Antonio Solis y Ravadeneyra. 1610-1686. (Cf. nota 75.)
Comedias: El doctor Carlino; El amor al uso; Un bobo hace cien- cenidade. Enfim, nao se pensa em reabilitar os preciosos;
to. — Historia de la conquista de México (1685). mas éles ocupam o lugar honroso dos últimos poetas lí-
Edlcáo das comedias: Biblioteca de Autores Españoles, vola. ricos da Franca antes do diluvio de prosa do classicismo.
xrv, xxm.
Edlcao da Historia: Biblioteca de Autores Españoles, vol. Como toda a poesia culterana, a francesa também pro-
cede da Renascenga; no caso, da Pléiade. É possível dis-
xxvm. tinguir tres diregoes diferentes da evolucao. Malherbe
D. E. Martell: The Dramas o/ Don Antonio Solis. Phlladelphia,
1913.
J. M. Cossio: "Un caso de prosa culterana". (In: Siglo XVII.
Buenos Aires, 1939.)
750 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 751

reagiu contra Ronsard, em particular contra o que havia porém, foram diferentes. As Larmes de Saint-Pierre imi-
néle de "dionisiaco", de "flamboyant"; a imitagao de Tan- tam as Lagrime di San Pietro, de Tansillo, e a versáo é
sillo, com a qual principiou, revela-lhe o gósto italiano, a superior ao original, mais direta e mais sincera; chega a
pompa barroca disciplinada pelas formas clássicas. Do exprimir, de maneira barroca, pressentimentos fúnebres —
hermetismo ocasional de Jodelle e da imaginacao agitada
de Desportes provém as particularidades de Maynard e o " . . . L a nuit dé j a prochaine á ta c o u h e j ó u r n é e . . . "
impressionismo poético de Du Bois Hus. Os "concetti"
A disciplina lingüística e métrica de Malherbe é um ins-
de Bertaut sao a fonte de preciosismo de Théophile de
trumento de arte barroca ñas máos de um ronsardiano atra-
Viau, com as conseqüéncias marinistas de Saint-Amant e
sado e arrependido, q u e se revela só em raros momentos
do Hotel de Rambouillet.
de erotismo ou de poesia noturna. As suas grandes odes
Malherbe ( 3T ) sobrevive como teórico da poesia classi- políticas sao pegas oficiáis, comparáveis aos quadros que
cista e como autor de algumas poucas odes, apresentadas Rubens dedicou á historia contemporánea da familia real
ñas antologías como amostras da nova arte. As Stances á da Franca. A poesia de Malherbe nao está no estoicismo
Du Périer sur la mort de sa filie marcam época na historia religioso sem relevo, das Stances —
da poesia francesa, mas nao época muito feliz; se essa poe-
sia de lugares-comuns, versificados com cuidados de pro- "Vouloir ce que Dieu veut est la seule science
fessor de gramática fósse realmente um modelo, nao ha- Qu¡ nous met en repos." —
veria poesia francesa; e realmente, enquanto a autoridade
de Malherbe foi reconhecida, nao houve poesia francesa. e sim em certas expressóes simbólicas, bem ronsardianas:
Os criterios de Malherbe nao sao poéticos, e sim estilísti-
cos: clareza, sobriedade, pureza da língua, "dificuldades " . . . Aussi le temps a beau courir,
vencidas"; sao nogóes da retórica. Um teórico da poesia, J e la ferai toujours fleurir
iniciando um século da prosa. Os comegos de Malherbe, Au rang des choses éternelles."

37) Francote de Malherbe, 1655-1628. A poesia de Malherbe — sem personalidade própria nem
Les larmes de Salnt-Pierre (1587); Ode au rot Henri le Grand conseqüéncias — nao tem a categoría de estilo pessoal; é
sur la prtse de Marseille (1600); Ode a Mane de Médicis sur sa apenas reacao contra o Barroco dominante. Malherbe é o
bienvenue en France (1600); Stances a Du Périer sur la mort
de sa filie (1601); Priére pour le rol Henri le Grand allant au Chiabrera francés.
Limousin (1605); Ode o la reine, Mere du rol (1610); etc. As poesías mais pessoais de Malherbe sao as parafrasea
Edlcáo por L. Lalanne, 5 vols., París. 1862.
Q. Aliáis: Malherbe et la poésie /rancaise a la fin du XVle de salmos bíblicos. Basta comparar um verso de D'Au-
siécle. París, 1891. bigné, como
M. Sourlau: La versification de Malherbe. París, 1912.
B. Faguet: Histoire de ¡a poésie ¡rancaise. Vol. I: Au teinps de " . . . voulant chanter je ne rends que s a n g l o t s . . . "
Malherbe. París. 1923. com
R. Fromilhagne: Malherbe. Technique et création poétique.
París. 1954.
R. Fromilhagne: La vie de Malherbe. París. 1954. " . . . cette majesté si pompeuse et si fiére,
R.Wlnegarten: French Lyric Poetry in the Age of Malherbe. Dont l'éclat orgueilleux étonna l ' u n i v e r s . . . " —
Manchester, 1955.
752 O T T O MARÍA CARPEAUX HISTORIA D A LITERATURA OCIDENTAL 753

para situar Malherbe. A sua poesia é a antitese da do poetB", hoje t í o valorizados na Inglaterra, ao passo que a
seu grande contemporáneo D'Aubigné, mais disciplinada, historiografía literaria francesa prefere as reticencias.
mas pouco menos barroca;_ apenas é um outro Barroco o Maynard é o mais completo poeta barroco da literatura
seu, o da disciplina da Contra-Reforma. A vitória incom- francesa. Desenvolveu com genio superior os germes bar-
pleta da arte poética de Malherbe no seu tempo coincide
rocos na poesia de Jodelle e Desportes; adotou a disci-
com a vitória incompleta da Contra-Reforma, na Franja
plina métrica e lingüística de Malherbe apenas naquele
de Henrique I V ; os decretos do concilio de Trento nao fo-
ram reconhecidos, e os huguenotes ficaram. A disciplina de sentido em que Góngora permaneceu fiel á tradicáo gteco-
Malherbe chegou apenas a disciplinar a poesia católica do romana: para cristalizar as suas visoes. Assim, conseguiu
"humanismo devoto", dos poetas da Contra-Reforma de condensar os pressentimentos do seu último dia em versos
S. Francisco de Sales e do Oratoire. Discípulo autén- como
tico de Malherbe será Brébeuf. Mas ésse papel histórico
de Malherbe nao pode ser reconhecido antes de Brémond " . . . E t l'on verra bientót naitre du fond de l'onde
redescubrir essa poesia religiosa esquecida. La premiére ciarte de mon dernier soleil."
O grande poeta que Malherbe julgava ser, foi-o real-
Esta arte de Maynard nao encontrou compreenslo nem su-
mente Maynard ( 3 8 ) : fato obscuro na historia literaria, por-
que a posteridade só viu a adocao da disciplina malherbia- cessores, a nao ser aquéle obscuro poeta provinciano Du
na pelo pretenso "discípulo", sem perguntar porque adotava Bois Hus ( 3 9 ), simbolista avant ¡a lettre, perdido no meio
aquela disciplina. Sainte-Beuve elogiou-lhe a grandiosa de "décorateurs". Acabou assim a possíbilidade de um
visáo, quase hugoana, do Universo que "tombera quelque Góngora francés.
jour", no fim dos lugares-comuns h o r á d a n o s da "Ode á Dos "concetti" e "pointes" de Bertaut provém o poeta
Alcippe"; cutros descobriram a grave sabedoria política dos
que tinha a fibra de um Marino francés: Théophile de
conselhos de paz no "Sonnet á Séguier"; outros, ainda, a me-
Viau ( 4 0 ). Chamam-lhe poeta da natureza, quase romántico,
lancolía dos "Regrets d'une grande dame"; e houve quem
descobrisse a mística teresiana das suas poesías fúnebres:
39) Pierre Du Bols Hus.
"Dans le désert sous l'ombre de la Croix." La Nuit des Nuits, le Jour des Jours, le Miroir du Destín (1641).
Poesías ln: St. J. Halgan, O. de Gourcuff, R. Kervller: Antho-
Mas ésse mesmo Maynard é o poeta do erotismo brutal das logie des poetes bretons du XVIIe siécle, París, 1884.
Poésies priapées, ñas quais até as sombras copulam — nao Ch. Oulmont: "Un poete coloriste et symbollste au XVIIe. siécle".
<In: La Phalange, XH.)
há nada mais parecido com a poesia priápica dos Maynards
e Viaus do que a poesia de Carew e Suckling, dos "cavalier 40) Théophile de Vlau, 1590-1626.
Edlgfio por 11. de Gourmont, París, 1907.
38) Frangote Maynard, 1582-1646. K. Schirmacher: Théophile de Viau, sein Leben und seine Werke.
Edlcóes por C. Garrisson, 3 vols., París, 1885/1888, e por F. Oohln, Leipzig, 1897.
C. Garrisson: Théophile et Paul de Viau, étude historique et
París, 1927. Itttéraire. París, 1Í&9.
Edlgáo das poesías priapéias por P. Blanchematn, Genéve, 1864. A. Adam: Théophile de Viau et la libre-pensée frangaise en 1620.
Ch. Drouhet: Frangois Maynard, étude critique d'histoire litté- París, 1936.
raire. París, 1909.
754 Orro MARÍA CARPEAUX H I S T O R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 755

porque cantou Le Matin e La Solitude. Mas o Matin é um voto", e. por quase dois séculos, toda a possibilidade de urna
idilio, digno de estar na Sampogna, e a Solitude, Viau só poesía lírica em língua francesa. Mas o fato nao foi olvi-
a procura para um encontró erótico da maior brutalidade. dado: durante urna geracáo, o preciosismo dominara. Teria
O elemento da poesía de Viau, que pareceu grosseiro á sido um periodo inteiramente vazio da literatura francesa?
posteridade, é, na verdade, o marinismo, o mesmo estilo Surgiu recentemente urna tentativa de reabílitacáo dos
que, na sua tragedia Pyrame et Thisbe (1617), encantou os "précieux" ( 4 2 ), que nao eram grandes poetas e prosadores, *
espectadores do Hotel de Rambouillet: a mistura de pai- mas tampouco eram imbecis sem talento algum. Voiture
xáo erótica e linguagem estilizada. O outro aspecto do ( " ) . o verdadeiro "chefe" do Hotel de Rambouillet, tor-
marinismo, o burlesco, representa-o Saint-Amant ( 4 l ) ; por nou-se famoso pelas suas cartas, que sao epístolas litera-
isso o classificaram entre os "realistas". Mas as suas poe- rias, cuidadosamente elaboradas; criou um género em que
sías sobre o queijo, o meláo e outras coisas de solenidade brilhará urna Sévigné, ela também nao inteiramente livre de
duvidosa, estáo na tradicao de Berni, e aproximam-no de preciosismos (a famosa carta de 15 de dezembro de 1670,
Achillini. O "romantismo" das suas poesías da Natu- sobre o casamento de Lauzun, é "preciosissima"). Voiture,
reza e o humorismo das suas epopéias herói-cómicas tém por sua vez, é ás vézes espirituoso como Voltaíre ou Ana-
a mesma fonte: a "fantasía" caprichosa e o oportunismo tole France; e o género epistolar terá a sua importancia
do "gusto del mondo", como em Marino. especial na evolucao do romance psicológico. Outra con-
t r i b u i d o á futura arte psicológica dos romancistas e mo-
Aquela tragedia, Pyrame et Thisbe, de Téophile de
ralistas franceses é o romance heróico-galante dos Gom-
Viau, marca urna época: foi representada no mesmo ano
berville, La Calprenede, Georges e Madeleine de Scudéry,
de 1617 em que se abriu o Hotel de Rambouillet. Já des-
que é a forma particularmente francesa da epopéia heroica
de 1611, Cathérine de Vivonne, Marquesa de Rambouillet,
barroca. Quando os poetas e pseudopoetas do século
costumava reunir no seu saláo os literatos marinistas e as
X V I I I cultivavam a poesía anacreóntica, já nao se lembra-
suas inspiradoras e leitoras, os "précieux" e as "précieu-
vam que o melhor poeta anacreóntico entre a Pléiade e
ses". Essa tentativa de manter na Franca o estilo do he-
Chénier fóra o Duque de Montausier, genro da Marquesa
donismo aristocrático terminou junto com a independen-
de Rambouillet, marido da segunda dama do "Hotel", Julie
cia dos aristócratas, quando se estabeleceu o poder abso-
d'Angennes. Outro "précieux" que ficou em ostracismo
luto da monarquía; o preciosismo foi vencido por Riche-
algo injusto é Gombauld ( " ) ; sabía fazer sonetos, arran-
lieu e Mazarin. A crítica de Boileau e o riso de Moliere
cando ao hostilíssimo Boileau o verso:
nao passam de epílogos literarios, nem sempre justos. J u n t o
com um grupo de poetastros ridiculos enterraram-se a poe-
sía de Maynard, a memoria dos poetas do "humanismo de- 42) O. Mongrédien: Les précieux et les précieuses. París, 1939.
R. Bray: La preciosité et les précieux. París. 1948.
43) Vlncent de Voiture, 1598-1648.
41) Marc-Antolne de Gérard, sleur de Salnt-Amant, 1594-1661. Edicáo por M. Ubicini, 2 vols., Paris, 1855.
Les Visions (1628); Le passage de Gibraltar (1640); Rome rldi- E, Magne: Voiture et VHotel de Rambouillet. 2.* ed. 2 vols.
cule (1643); Albion (1644); Vers (1646); Moyse sauvé (1653). Paris, 1929/1931.
Edicáo por Ch. — L. Llvet, 2 vols., Paris, 1855. 44) Jean Ogler de Gombauld, 1570-1666.
A. Durand-Lapie: Saint-Amant. Montauban, 1896. Amaranthe (1631)'; Poésies (1646).
R. Audibert et R. Bouvler: Saint-Amant, capitaine du Parnasse. L. Morel: Jean Ogler de Gombauld, se vie, son oeuvre. Neuchá-
París, 1946. tel, 1910.
.

756 O T T O MARÍA CARPBAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 757

"Un sonnet sans défaut vaut seul un long poéme" — p o ; coisa irnpossível, se a historiografía oficial tivesse ra-
zao. O autor de La Pucelle d'Orléans escreveu, em 1630, a
e depois déle ninguém mais, na Franca, até Nerval, saberá Lettre sur I'art dramatique, com a qual comeca o dominio
fazer sonetos. Enfim o maior desmentido a crítica de Boi- das regras artistotélicas no teatro francés. E em 1638 foi
leau é o caso de Benserade ( 4 5 ) . E n t r e 1651 e 1681, em Chapelain quem exprimiu Les sentiments de l'Académie
pleno reinado de Corneille, Boileau, Moliere e Racine, es- francaise sur le Cid. O "précieux" Chapelain como porta-
creveu Benserade os versos que acompanharam os bailados voz da "Académie franqaise", isto nao é mero acaso: foi
da corte, versos espirituosos, brilhantes e, em certo sen- um daqueles que idearam a instituicáo; estéve, em 1634, entre
tido, admiráveis, de modo que até Lanson, o discípulo do os primeiros membros déla; foi ele quem sugeriu aos cornpa-
tradicionalista Brunetiérc, os admirará. E os seus rondós nheiros o projeto do Dictionnaire. Chapelain é precursor de
mantinham urna tradicao bem francesa, villonesca, de Boileau. Mas isso nao quer dizer que Chapelain fósse clas-
sicista; quer dizer que elementos "preciosos", barrocos, se
poesía.
perpetuaram na crítica de Boileau e na arte de Racine e
O poeta mais famoso entre os "précieux" foi Chape-
La Fontaine.
lain ("•)• Gloria pouco durável: a sua obra mais preten-
siosa, a epopéia La Pucelle d'Orléans, sucumbiu ao escar- Entre as fórcas que perpetuaram o espirito barroco,
nio de Boileau. Contudo, entre as numerosas epopéias he- encontram-se os jesuítas: Descartes, Corneille, Moliere,
roicas do Barroco francés é esta a mais seria, urna das ex- Bossuet formaram-se nos colegios da Companhia, assim
pressoes, senao felizes pelo menos características, do pa- como inúmeros outros, que constituirán: o ambiente lite-
triotismo monárquico e religioso que constituiu o funda- rario. O mesmo aconteceu na Italia, Espanha, Bélgica,
Austria, Alemanha meridional, em todos os paises da Con-
mento espiritual do classicismo francés. Justamente em
tra-Reforma. Afirma-se que um espirito formado pelos
Chapelain se revela o parentesco entre a suntuosidade bar-
jesuítas continua marcado por éles para sempre; pelo me-
roca e a pompa da corte de Luís X I I I e Luís XIV. Com nos, a pedagogía jesuítica dispoe de instrumentos espiri-
efeito, Chapelain é "précieux" e classicista ao mesmo tem- tuaís muito fortes para conseguir ésse fim, dos Exercitia
até os estudos latinos. Naquela época juntaram aos meios
45) Isaac Benserade, 1612-1691. comuns da didática a fórga sugestiva de rjepresentasoes
Ballets: Cassandre; Triomphe de l'Amour; Ballet des Saissons; teatrais; e estas, por sua vez, apenas constituem parte da
Ballet Royal des Arts; Ballet des Plaisirs, etc. copiosa literatura jesuítica, verdadeíra literatura interna-
Oeuvres (1697).
Edicao por O. Uzanne, París. 1875. cional do Barroco, e — por mais completo que tenha sido
V. Forunel: Les contemporains de Moliere. Vol. H.. Paris, 1874. o esquecimento em que caiu desde o século X V I I I — urna
E. Faguet: Histoire de la poésie frangalse. Vol. III. Paris, 1927. literatura de grande importancia histórica e estética.
C. Silin: Benserade and his Ballets de Cour. London, 1940.
4«) Jean Chapelain, 1595-1674. Há muito que os historiadores das artes plásticas já
La Pucelle d'Orléans (1656/1657). r.ao admitem a expressao "estilo jesuítico"; o que se chama
Edicao por A. Herluison, Orléans, 1882. assim, é o Barroco que nao foi criado nem sustentado ape-
A. Kabre: Chapelain et nos deux premieres académies. Paris, nas pelos jesuítas; os padres da Companhia preferiam,
1890.
muitas vézes, as formas mais sobrias do Barroco. O que
O. Collas: Jean Chapelain. Paris, 1912.
758 O T T O MARÍA CARPEAÜX HISTORIA DA LITERATURA OCÍDENTAL 759

importava aos jesuítas era a propaganda de certas idéias tituindo parte de uma literatura inteira que a Companhia
religiosas, filosóficas, sociais e políticas: arte e estibo criou. O espirito teatral — a arte de compor os materiais
eram meios, justificados por aquéle fim. Daí o oportu- em grupos cénicos, o desejo de produzir efeitos — encon-
nismo literario e artístico dos jesuítas, o mesmo oportu- tra-se até ñas obras de historiografía, das quais a mais "me-
nismo que se supunha em Góngora, e que existia realmente ravigliosa" é a historia da própria Companhia, escrita pelo
jesuíta italiano Daniello Bartoli ( 1 0 ). Bartoli é antes um
eiri Marino. Daí o emprégo do estilo barroco, do estilo clas-
hagiógrafo, sem nenhuma crítica histórica, e os milagros,
sicista ou até do estilo realista, conforme o ambiente.
assim como as "maravilhas", acham-se táo acumulados que o
Quanto as r e p r e s e n t a r e s teatrais, os jesuítas franceses
leitor moderno perde, enfim, a paciencia. Mas a leitura
obedecem ás regras clássicas; os alemaes e italianos criam
de alguns capítulos ¡solados revela em Bartoli uma ca-
o mais poderoso dos teatros específicamente barrocos. A
pacidade extraordinaria de agrupar os fatos para conseguir
inten$ao é sempre doutrinária. O teórico do teatro je- efeitos teatrais; a historia do primeiro século da Compa-
suítico, o jesuíta tcheco Jacobus Pontanus ( 4 7 ), é natural- nhia, que parece assunto de epopéia, decompoe-se em cenas
mente aristotélico, pretende dar interpreta$áo moral á ca- dramáticas inesquecíveis, apresentadas num estilo que um
tarse, justificar assim o hedonismo aristocrático; é aristo- crítico t í o severamente classicista como Pietro Giordani
télico, mas também é marinista. Pontanus está envolvido considerou "altamente sugestivo e maravilhoso". Bartoli
ñas discussoes dos Speronis, Alessandros Piccolomini, Bul- ainda hoje tem seus admiradores.
garinis, em torno da Gerusalemme liberata e do Pasíor fido,
ñas conf usoes geradas pela interpretadlo aristotélica do ver- A literatura jesuítica em língua latina compreende to-
so horaciano "Aut prodesse volunt aut delectare poetae". dos os géneros, refletindo as atividades múltiplas da Com-
panhia. Jacobus Balde ( 6 0 ), jesuíta alemao e educador dos
Os jesuítas tomaram partido pelo "delectare" para o
príncipes bávaros, escreve idilios bíblicos (Judith) e come-
fim de "prodesse"; a conseqüéncia foi o "é del poeta il
dias populares (Jocus serius), tragedias (Jephtias) e sáti-
fin la meraviglia", de Marino, e neste sentido a literatura
dos jesuítas é barroca, seja qual fór o estilo empre- 49) Daniello Bartoli, 1608-1685.
gado. O teatro jesuítico é, alias, realmente urna "meravi- Storia della compagnla di Gesk (1650/1660). (Nova edi;ao por
glia"; quase nao somos capazes, hoje, de imaginar os seus Marietta, Torino, 1825).
efeitos poderosos. Era um instrumento fantástico de rea- G. Boero: Commentari della vita e delle opere del P. Daniello
gao psicológica para dissolver as tensoes na alma do homem Bartoli. Bologna, 1865.
A. Avetta: "Dialcunl giudizi letterarisue p. Daniello Bartllo".
barroco. (In: Rivista d'Italia. marzo-apríle 1903.)
O que já se disse sobre o teatro barroco — a pers- A. Bellonl: Daniello Bartoli. Roma,-1931.
50) Jacobus Balde, 1604-1668.
pectiva, a c o l a b o r a d o de todas as artes, o mundo de ilusao Lyrica; Silvae; Batrachomyomachia; Solacium podagricum; Me-
e sonho — e sobre a índole teatral da civilizagao barroca dicinae gloria; Jephtias (1637); Jocus serius (1629); Judith; Ele
( < 8 ), aplica-se particularmente ao teatro dos jesuítas, cons- giae; Urania victrix; De vanitate mundi; Drama georgicum
(1649); Castrum ignorantiae expugnatum.
47) Jacobus Pontanus S. J., 1542-1626. G. Westermayer: Jakob Balde, sein Leben und seine Werke.
Muenchen, 1868.
Poeticarum institutionum libri III eiusdem Tyrocinium poeticum J. Bach: Jakob -Balde. Freiburg, 1904.
(1594). A. Henrich: Dle lyrischen Dichtungen Jakob Balde. Strasbourg,
48) Cf. "Problema e Formas da Literatura Barroca", notas 60 e 52. 1915.
760 O T T O MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 761

ras contra os médicos (Medicine gloria), urna Danca Ma- testantes pelo Jephta (1554). Até os protestantes alemaes
cabra em estilo barroco (De vanitate mundi) e urna epo- descobriram a utilidade do teatro escolar para fins de pro-
péia herói-cómica (Batrachomyomachia), e, finalmente, paganda religiosa: Thomas Naogeorgus deu, no Mercator
urna historia da literatura neolatina em forma alegórica (1540), um panorama vivíssimo das discussoes religiosas
(Castrum ignoiantiae expugnatum); o cume da versa- da época, e apresentou, no Pammachius (1538), o Papa
tilidade é um poema (Drama georgicum) sobre a paz como An ti cristo. O objetivo satírico ou pedagógico do
vestfálica, escrito, nao em latim, mas no dialeto do povo "drama escolar" — que foi nos séculos X V I e X V I I cul-
itálico dos Óseos, extinto desde milenios e conserva- tivado em todos os países europeus — nao deixa muito
do apenas em inscricoes fragmentarias. E com tudo lugar para o desenvolvimento de qualidades dramáticas.
isso é Balde um grande poeta lírico, manejando o latim Urna flor solitaria é, porém, o Avarento, do vigário dina-
como urna lingua viva, e superando, pela originalidade bar- marqués Ranch ( M ~ A ) : a punicáo do mísero tem sabor pi-
roca, os próprioB romanos. O jesuíta polonés Sarbievius randelliano; porque ninguérn o quer conhecer, comeca a
( 5 1 ), que redigiu a forma atual dos hinos do breviario, é duvidar da sua identidade pessoal.
poeta ainda maior, imitando Horacio, mas enchendo os me-
O fim do teatro jesuítico é de ordem pedagógica: pro-
tros latinos de sentido até lhe saírem versos herméticos;
paganda da fé. Os misterios da Idade Media tínham, no
Herder e Goethe o admiraram, Gourmont considerou-o
fundo, o mesmo fim: apresentar aos espectadores, em for-
"merveilleux", e vanguardas poéticas do futuro o redes-
ma visível e quase palpável, os misterios do credo. Mas
cobriráo.
os assuntos nao sao os mesmos; até certo ponto os jesuítas
Os jesuítas nao foram os primeiros que escreveram pe- respeitam a opiniáo protestante que nao admite a repre-
cas para representacáo ñas escolas. Para melhor exercicio sentacáo de Deus e dos seus santos por criaturas humanas.
no uso da lingua latina os humanistas já deram á mocidade Preferem-se, para a adaptacáo cénica, as historias do Velho
pegas de Plauto e Teréncio para representar; mas na época Testamento, ñas quais há mais paixáo humana e conflito
da Reforma e Contra-Reforma já nao se toleravam as aven- dramático, e as lendas medievais, com as suas peripecias
turas amorosas do teatro romano: era preciso fazer outra milagrosas. O tempo já nao é o da fé medieval, unánime;
coisa, de conteúdo religioso ou pelo menos moral. O ho- é preciso combater os heréticos e demonstrar a vitória da
landés Georgius Macropedius (f 1558) dramatizou Adam, Igreja. Segundo a doutrina política dos jesuítas, essa
Josephus e Lazarus, e deu no Hecastus urna versáo latina vitória se consegue pela alianca com as monarquías abso-
do Everyman. O Acolastus de filio prodigo (1529), do ho- lutas. O público das representagóes sao os alunos. filhos
da aristocracia, e os país dos alunos. O teatro eclesiástico
landés Gulielmus Gnaphaeus, foi representado na Europa
medieval era da burguesía urbana; o teatro jesuítico pre-
inteira. O escocés Georgius Buchanan (1506-1582), pro-
tende induzir a classe dirigente, a aristocracia barroca,
fessor em Coimbra, tornou-se famoso entre católicos e pro-
a aliar-se á Igreja: é teatro político. Por isso, gosta
51) Matthaeus Kasimir Sarbievskl (Sarbievius), 1595-1640. de assuntos históricos, até da historia contemporánea,
Odae (1625).
F. M. Mueller: De Mathia Casimiro Sarbievio Polono S. J. Ho-
ratii itnitatore. Muenchen, 1917. 61A) Hieronymus Justesen Ranch, 1539-1607.
J. Oto: Maciej Kazimierz Sarblevski, poeta sacro. Warszawa, Karring Nidding.
1923 (em lingua polonesa). Edlcáo por 8. Birket Smith, KJoebenhavn, 1876.
762 OTTO M A R Í A C A R P E A Ü X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 763

oferecendo oportunidade de acompanhar os sofrimen- palacio real, escadas q u e se perdem no infinito, florestas
tos, a luta e a vitória da Igreja. No teatro dos jesuítas e lagos no palco. A imaginagáo espacial de Ferdinando,
aparecem, ao lado de Herodes, de Ester, de J u d i t e e dos Ma- Giuseppe e outros membros da familia Galli-Bibbiena qua-
cabeus, Joana d'Arc e Egmont, D . Carlos e o falso De- se zomba das possibilidades da realizacáo ( 5 -). Fogos de
metrio, María Stuart e Wallenstein. A verdade do assunto artificio e bailados comegam a preponderar, sufocando a
histórico ajuda a verossimilhanca dos conflitos psicoló- palavra e só admitindo o acompanhamento pela música. O
gicos representados no palco. A t é entao, o teatro euro- texto latino, compreensível a urna parte cada vez menor
peu dramatizou, segundo o modelo dos antigos, o mito, ou, dos espectadores, é sucessivamente suplantado por arias e
quando muito, assuntos da historia da Antiguidade que já coros. Quando, no cometo do século X V I I I , a propaganda
tinham valor de mitos. A introducto do assunto histórico da fé é vencida pela indiferenga religiosa, está pronta a
moderno é um passo decisivo: significa a transforma$ao ópera.
da tragedia mítica em tragedia moderna. Os jesuítas tive-
ram de dar ésse passo, porque o mito nao permite inter- O teatro latino dos jesuítas é urna arte internacional,
p r e t a d o moralista; e todo teatro barroco — o espanhol, de todos os países católicos; sómente na própria Espanha
o inglés, o francés, o holandés — acompanhou-os nisso. A o teatro jesuítico quase desaparece ao lado do teatro na-
conclusao também é idéntica, no Belisar e Cenodoxus dos cional, enquanto que em Portugal o Padre Luís da Cruz
jesuítas, assim como em Vida es sueño, Macbeth, Cinna e (1558-1604) se tornará famoso como autor de Sedecias, Ma-
PoJyeucte: a vaidade déste mundo, o pessimismo em face nasses e outras tragedias bíblicas. A prioridade cronoló-
da vida e das suas ilusoes. É urna conclusao barroca. O gica cabe ao Collegium Romanum dos padres da Compa-
mundo inteiro é apenas um teatro, El gran teatro del nhia, em Roma ( s s ) : teatro dos Bernardinos Stefonio, Ales-
mundo, e palco dos jesuítas é um enorme símbolo em que sandros Donati, Vicenzos Guinicci. Mas é dramaturgo mais
estao representados Céu, Terra, e Inferno, lutando pela importante que ésses padres italianos um discípulo déles,
alma do homem. É um teatro cósmico. Federico della Valle (•***). Caiu, mais tarde, em esqueci-
mento completo, sendo redescoberto, só tres séculos depois,
O palco dos Misterios medievais era também um tea- por Benedetto Croce. Nao é um Shakespeare do "Seicento".
tro cósmico, apresentando o "Triregno" de Dante. Mas Mas sua Judith nao está longe de ser urna obra-prima.
os jesuítas substituem a simultaneidade da cena pela pers-
Há teatro jesuítico em toda a parte, entre os tchecos
pectiva, que permite realizar qualquer ilusáo óptica. O tea-
(Frantisek Bohomolec e Karel Kolczawa) e poloneses
tro dos jesuítas apresenta ilusáo e é ilusáo, ao mesmo tem-
p e Na Platica di fabbricar scene e machine nei teatri
(1637), de Niccoló Sabbatini, ensina-se o uso de máquinas 52) J. Gregor: Wiener szenische Kunst. Wlen, 1924.
para erguer personagens as nuvens e devorar decoragóes A. Nlcoll: The Development of the Theatre. London, 1B37.
pelo fogo, e mil outros segredos teatrais, dos quais alguns 53) Q. Qnerghi: II teatro gesuitico ne'suoi primordl a Roma. Roma,
1807.
se perderam e hoje já nao podem ser empregados. O luxo
da arquitetura cénica é incrível. Ludovico Ottavio Bur- 53A) Federico della Valle, 1565-1628.
Judith; Esther; La Reine di Scozía.
nacini (1636-1707) desenhou, para as representa§5es da Edigfto por C. Filosa. Barí, 1939.
Companhia, salas táo imensas que nao caberiam em nenhum B. Croce: "Le tragedle di Federico della Valle". (In: Nuovi saggi
tulla letteratura italiana del seicento. Bari. 1931.)
764 O T T O MABIA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 765

(Gregorius Knapski) ( 5 4 ), e ñas colonias americanas. O jesuítas: Jacobus Bidermann ( S T ). O seu assunto perma-
"oportunismo barroco" dos jesuítas revela-se na Franga, nente é aristotélico: a vitória da razao, informada pela fé,
no Collége La Fleche, no Collfege Clermont (depois Louis sobre as paixoes do homem. A historia é o tribunal de
le Grand), em Paris, no colegio de Ruáo, onde Cor- Deus; anjos e demonios intervém, fantasmas aparecem, fi-
neille estudou ( w ) . Após os cornejos em estilo "romano" guras da mitología e do Velho Testamento apresentam-se
cora as pecas do teólogo Dionysius Petavius e o famoso como alegorías, céu e inferno se abrem, e todo ésse apa-
Hermenegildus, de Nicolás Caussin (1583-1651), os padres relho ¡menso para demonstrar que
franceses acomodaram-se ao gósto classicista, adotando até
a língua francesa. Antoine Du Cerceau, na comedia La "Vita enim hominum
délaite da solécisme, poe processos molierianos a servico Nil est nisi somnium."
do ensino gramatical, e Charles Porée (1675-1738), em pe-
cas como Brutus, Agapitus, Regulus, compete com Cor- Assim canta o "coro dos mortos" na maior tragedia do
neille; o Padre Porée, alias, foi, no Collége Louis le teatro jesuítico, o Cenodoxus, de Bidermann, historia de
Grand, o professor de Voltaire. um doutor da Universidade de París, famosíssimo pela eru-
dicao teológica, que in extremis se revela como malvado
O teatro jesuítico celebrou os seus maiores triunfos perverso. Na térra, o agonizante é absolvido pelo clero,
na Alemanha meridional e na Austria (•*), na patria da mas nos ares os demonios vencem, e a alma do morto
heresia luterana e no centro do Imperio católico dos Habs- sabe que está condenada. A impressao que essa tragedia
burgos. Em Viena, a cena era no próprio palacio imperial; produziu nao foi mais profunda que a de Josephus, repre-
em Munique, o colegio dos jesuítas era o maior edificio do sentada em Munique, "flcntibus principibus nostris ómni-
continente europeu, maior do que o Escorial. E havia os bus", e do Belisar. tragedia da desgraca política. A con-
inúmeros colegios das provincias austríaca e bávara, cida- fusao intencional e terrificante entre ilusáo e realidade
dezinhas transformadas em centros da mais espléndida arte repete-se no Philemon Martyr, historia do ator romano que
teatral, em Leoben e Steyr, Ingolstadt e Donauwoerth e desempenhou no circo o papel do cristáo e se converteu du-
tantas outras. rante a representacao, caindo logo como mártir: Massinger
Depois do teórico Jacobus Pontanus e do padre muni- e Rotrou trataram o mesmo assunto. A pega mais estranha
quense Jacobus Gretser (1562-1625), que impressionou com de Bidermann e do teatro jesuítico inteiro é a Cosmarchia,
urna Hester e um Hudo, aparece o maior dos dramaturgos pega política, passando-se num país exótico em que todo
o ano é destronado um rei. A ímpressSo que causou o
64) E. Stender: Das Jesuitendrama bel den Slawen. Praha, 1931. Johannes Calybita, glorificacao do estoicismo barroco de
55) E. Boysse: Le thédtre des Jésuites. París, 1880.
P. O. de Rochemonteix: Un collége des Jésuites au XVHe et
XVIUe siécle. Le collége Henri IV de La Fleche. Le Mans, 1889.
57) Jacobus Bidermann, 1578-1639.
Cenodoxus (1602); Belisar (1607); Josephus. Aegyptl Prorex
56) Rica colegao de materias dessa arte teatral, durante multo tempo (1615): Jacobus Calybita (1618); Jacobus Vsurarius; Cosmarchia;
esqueclda, em: B. Duhr S. J.: Geschichte der Jesuiten in den Philemon Martyr.
Laendern deutscher Zunge. 6 vols. Frelburg, 1907/1928. Opera (Muenchen, 1666).
W. Flemming: Geschichte des Jesuitentheaters in den Laendern W. Flemming: Das Ordensdrama. Leipzig, 1930.
deutscher Zunge. Berlín, 1923. J. Ruetsch: "Dle Bedentung Bldermanns". (In: Trtvium, V, 1947.)
E. Haller: Das oesterreichische Jesuitendrama. Weimar, 1931. D. G. Dyer: Jacobus Bidermann. Cambridge, 1950.
766 O T T O MARÍA CARPEAUX HISTORIA D A LITERATURA OCIDENTAL 767

mártires, quando um público d e crentes viu a pega 30 dia reconhecimento da estrutura ideológica do seu teatro. Res-
da Ressurreigio, n a cidade de Munique, assediada pelos he- ta acrescentar que L o p e de Vega e Calderón foram alunos
réticos, nunca mais poderá ser imaginada. dos jesuítas, e que o terceiro dos tres maiores dramatur-
Bidermann gostava de incluir ñas tragedias cenas de gos, Tirso de Molina, deu a urna colegáo de obras suas
humor popular. Mas a funcáo da comedia jesuítica nao é um título que revela toda a teoría aristotélico-jesuítica do
o mero contraste; tem também sentido político. Jacobus teatro: Deleitar aprovechando. A historia do teatro es-
Masen (1606-1681) tratou no Rusticas imperans (1664) o ve- panhol é a historia da transformagáo de um teatro popular
lho tema do camponés bébedo e adormecido ao qual fazem e nacional em teatro ideológico e jesuítico, terminando em
crer que é rei, para despertá-lo cruelmente no dia seguinte; ópera.
Shakespeare apresentou ésse motivo preferido do Barroco,
O teatro espanhol (:,<l) gozava de urna liberdade que
no preludio da Taming oi the Shrew. É, mais urna vez,
ñera o teatro inglés contemporáneo conheceu: Biblia, vidas
urna pega da ilusao do mundo, demonstrando ao mesmo
de santos, mitología, historia greco-romana, medieval e
tempo a inviolabilidade da hierarquia social. No século
contemporánea, espanhola e estrangeira, novelas eróticas,
X V I I I , a mesma historia aparecerá no Jeppe pa bjerget,
historias de espectros, contos árabes — tudo serve, tratado
de Holberg, mas entao já com sentido pré-revolucionário.
com a maior liberdade cénica, sem consideragao de tempo
Ao cúmulo do ilusionismo chegam os "ludi caesarei" ou espago, condensando-se historias seculares de imperios
da corte de Viena, nos quais Avancinus ( 58 ) celebrou com em poucas "jornadas", representando-se entre tres paredes
luxo enorme de arquiteturas, máquinas, bailados e música, de madeira países e continentes inteiros, com o céu em
a vitória da alianca entre Igreja e Monarquía. Mas isto cima e os demonios embaixo. O teatro espanhol parece o
já é quase ópera; e, com efeito, varios textos de Avan- menos convencional de todos. Na verdade, observa rigo-
cinus serviram de libretos aos compositores italianos da rosamente duas convengoes: o anacronismo e a tipología.
corte dos Habsburgos. Aqueles assuntos variadíssimos nao sao tirados das fontes,
O teatro dos jesuítas espanhóis é de importancia muito da Biblia, da literatura antiga, das obras de historiografía,
menor. Preferiram apoderar-se do teatro nacional, e nao mas de livros edificantes, de "romances" populares, de con-
é acaso que as pegas espanholas deram a muitos críticos es- tos — principalmente daquele depósito inesgotável de en-
trangeiros, de Holland a Meredith, a impressao de óperas redos que sao as colegoes de contos da Renascenga ita-
faladas. Aos próprios espanhóis do racionalismo o teatro liana. T u d o é interpretado, anacrónicamente, do ponto de
nacional parecía absurdo; os románticos entusiasmaram- vista do narrador popular; tudo se passa como se fóssem
se pelo lado fantástico das velhas pegas. Depois, desco-
briu-se o fundo popular do teatro espanhol: revelou-se a 59) A. von Schack: GescMchte der dramatiachen Literatur und
grandeza de Lope de Vega. Calderón, o mais fantástico Kunst in Spanien. 2.» ed. 4 vols. Frankíurt, 1874. (Traducao es-
e mais musical, caiu em descrédito. Foi reabilitado pelo panhola por E. Mier. Madrid, 1885.)
N. Dláz de Escobar e A. Lasso de la Vega: Historia del teatro
español. Barcelona, 1924.
58) Nlcolaus Avancinus, 1612-1686. L. Pfandl: Geschichte der spanischen Nationalliteratur in íhrer
Theodosius Magnus (1654); Constantinus Magnus (1659); Cyrus Bluetezeit. Frelburg, 1929.
A. Valbuena Prat: Literatura dramática española. Barcelona,
(1673); etc. 1930.
N. Scheid: Avancinus ais Dramatiker. Wlen, 1913.

766 O T T O MARÍA CABPEAUX HISTORIA D A LITERATURA OCIDENTAL 767

mártires, quando um público d e crentes viu a peca 30 dia reconhecimento da estrutura ideológica do seu teatro. Res-
da Ressurreicao, n a cidade de Munique, assediada pelos he- ta acrescentar que Lope de Vega e Calderón foram alunos
réticos, nunca mais poderá ser imaginada. dos jesuítas, e que o terceiro dos tres maiores dramatur-
Bidermann gostava de incluir ñas tragedias cenas de gos, Tirso de Molina, deu a urna colecao de obras suas
humor popular. Mas a funcao da comedia jesuítica nao é um título que revela toda a teoría aristotélico-jesuítíca do
o mero contraste; tem também sentido político. Jacobus teatro: Deleitar aprovechando. A historia do teatro es-
Masen (1606-1681) tratou no Rustíais imperans (1664) o ve- panhol é a historia da transformagáo de um teatro popular
lho tema do camponés bébedo e adormecido ao qual fazem e nacional em teatro ideológico e jesuítico, terminando em
crer que é rei, para despertá-lo cruelmente no dia seguinte; ópera.
Shakespeare apresentou ésse motivo preferido do Barroco,
O teatro espanhol ( B0 ) gozava de urna liberdade que
no preludio da Taming oí the Shrew. É, mais urna vez,
nem o teatro inglés contemporáneo conheceu: Biblia, vidas
urna pega da ilusao do mundo, demonstrando ao mesmo
de santos, mitología, historia greco-romana, medieval e
tempo a inviolabilidade da hierarquia social. No século
contemporánea, espanhola e estrangeira, novelas eróticas,
X V I I I , a mesma historia aparecerá no Jeppe pa bjerget,
historias de espectros, contos árabes — tudo serve, tratado
de Holberg, mas e n t i o já com sentido pré-revolucionário.
com a maior liberdade cénica, sem consideracao de tempo
Ao cúmulo do ilusionismo chegam os "ludi caesarei" ou espago, condensando-se historias seculares de imperios
da corte de Viena, nos quais Avancinus ( 58 ) celebrou com em poucas "jornadas", representando-se entre tres paredes
luxo enorme de arquiteturas, máquinas, bailados e música, de madeira países e continentes inteiros, com o céu em
a vitória da alianca entre Igreja e Monarquía. Mas isto cima e os demonios embaixo. O teatro espanhol parece o
já é quase ópera; e, com efeito, varios textos de Avan- menos convencional de todos. Na verdade, observa rigo-
cinus serviram de libretos aos compositores italianos da rosamente duas convengoes: o anacronismo e a tipología.
corte dos Habsburgos. Aqueles assuntos variadissimos nao sao tirados das fontes,
O teatro dos jesuítas espanhóis é de importancia milito da Biblia, da literatura antiga, das obras de historiografía,
menor. Preferiram apoderar-se do teatro nacional, e nao mas de livros edificantes, de "romances" populares, de con-
é acaso que as pecas espanholas deram a muitos críticos es- tos — principalmente daquele depósito inesgotável de en-
trangeiros, de Holland a Meredith, a impressáo de óperas redos que sao as colegoes de contos da Renascenga ita-
faladas. Aos próprios espanhóis do racionalismo o teatro liana. T u d o é interpretado, anacrónicamente, do ponto de
nacional parecia absurdo; os románticos entusiasmaram- vista do narrador popular; tudo se passa como se fóssem
se pelo lado fantástico das velhas pegas. Depois, desco-
briu-se o fundo popular do teatro espanhol: revelou-se a 50) A. von Schack: Geschichte der dramatischen Literatur und
grandeza de Lope de Vega. Calderón, o mais fantástico Kunst in Spanien. 2.a ed. 4 vols. Frankfurt, 1874. (Traduc&o es-
e mais musical, caiu em descrédito. Foi reabilitado pelo panhola por E. Mler. Madrid, 1885.)
N. Dláz de Escobar e A. Lasso de la Vega: Historia del teatro
español. Barcelona, 1924.
58) Nlcolaus Avancinus, 1612-1686. L. Pfandl: Geschichte der spanischen Nationalliteratur in ihrer
Theodosius Magnus (1654); Constantinus Magnus (1659); Cyrus Bluetezeit. Frelburg, 1929.
A. Valbuena Prat: Literatura dramática española. Barcelona.
(1673); etc. 1930.
N. Scheid: Avancinus ais Dramatiker. Wien, 1913.
.

768 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA OA LITERATURA OCIDENTAL 769

acontecimentos ñas rúas de Madri e Sevilha. É teatro po- nhola: expressoes do Barroco; por isso, os motivos popu-
pular, cheio de ingenuidade, da estirpe do de Gil Vicente; lares sao capazes de se transformar em alegorias e símbo-
apenas, a cena é o mundo inteiro de entao, Espanha, Por- los do Gran teatro del mundo do Barroco. Nao é possível
tugal e Italia, Franca, Flandres, Alemanha, Austria, In- tratá-los satisfatóriamente senáo á maneira do teatro je-
glaterra, as Américas, lembrando-nos que a monarquía es- suítico; os conflitos, n o palco, entre a "ideología nacional"
panhola compreendia dois continentes e que soldados es- e a realidade, sao resolvidos segundo a "causuística teatral"
panhóis lutavam em todos os países. O teatro espanhol dos jesuítas.
é teatro popular, aproveitando-se, através da novelística Déste modo, o teatro espanhol é a síntese de um teatro
italiana, da amplitude do mundo da Renascenga. Daí os popular e de um teatro ideológico; os seus polos sao Lope
anacronismos grosseiros e o sabor popular. Daí a liberdade de Vega e Calderón, polos entre os quais a historia do
cónica, própria de um teatro novelístico, dramatizando no- teatro espanhol oscila, sem apresentar evolucáo p r o p i a -
velas e romances sem se preocupar com as leis da con- mente dita. As diferengas entre os autores sao puramente
densagao dramática. Daí a variedade. Mas, apesar da va- individuáis, e a "heresia" dramatúrgica do isolado Ruiz
riedade, o teatro espanhol é monótono. Sempre os mesmos de Alarcón passou sem conseqüéncias. Evolugio, na his-
reís e fidalgos, sempre os mesmos sedutores e damas, os toria do teatro espanhol, já significa decadencia: a con-
mesmos palhagos, e — o que é pior — sempre os mesmos suncáo dos motivos populares pelos conceitos ideológicos
motivos de agáo: fanatismo católico, patriotismo monár- e a consungáo dos conceitos ideológicos pela realidade
quico, paixáo sexual desenfreada e um conceito fetichista antibarroca e, por conseqüéncia, antiespanhola, esvaziaram
da honra pessoal. Nos milhares de pegas que o teatro es- os símbolos e transformaran! o teatro espanhol em movi-
panhol nos legou, é sempre a mesma coisa. Daí aquela im- mento sem finalidade, em bailado mitológico e, afinal, em
pressáo de um movimento frenético e absurdo sem fina- ópera.
lidade; a Meredith lembrou um bailado.
O criador daquela síntese entre teatro popular e teatro
Com efeito, o teatro espanhol é todo movimento; com ideológico, aristocrático-católico, é Lope de V e g a ( a o ) ; o
isto, cumpie, alias, a suprema lei da arte teatral. O teatro
espanhol nao pretendía fazer outra coisa senao por em 80) Lope Félix de Vega Carpió. 1562-1635.
movimento, representar em imagens vivas o que todo o Teatro, segundo a classificac&o de M. Menéndez y Pelayo:
espanhol s>abia e sentía. Por isso, todas as personagens, Autos: La siega; De los cantares; La locura por la honra; Las
aventuras del Hombre; Del Nacimiento; El viaje del Alma, del
mesmo de tempos ou países longínquos, sao espanhóis au-
Pan y del Palo; Hijo prodigo; etc.
ténticos, e todos os motivos da agio s l o conceitos espa- Comedias de santos: La buena guarda; La fianza satisfecha;
nhóis: Igreja e rei, hedonismo aristocrático e naturalismo Barlaam y Josafat; Hermosa Ester; Lo fingido verdadero; La
popular, sensualidade ardente e penitencia contrita, en- creación del mundo; El animal profeta; El serafín humano; S.
tusiasmo religioso e estoicismo fatalista, ilusoes loucas e Isidro labrador; etc.
Comedias pastorls: El verdadero amante; Belardo el furioso; etc.
desilusáo pessimista — de onde resulta a popularidade Comedias mitológicas: Adonis y Venus; El marido más firme;
imensa désse teatro nacional. Ésses conceitos, representa- Perseo; Felisarda; Laberinto de Creta; etc.
Historia antiga e estrangeira: Contra valor no hay desdicha;
dos nos palcos de Madri e Sevilha do século X V I I , sao Esclavo de Roma' Roma abrasada; Imperial de Otón; El rey
expressoes atuais do caráter permanente da alma espa- sin reino; Gran duque de Moscovia; Duque de Viseu; Reina
Juana de Ñapóles; El cuerdo loco; etc.
I

770 Orro MAMA CABJPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 771

criador, portanto, do teatro espanhol nacional, seus desabafar os s e u s c a s o s s e n t i m e n t a i s , q u e nao e r a m p o u -


a p e l i d o s , " F é n i x d e la E s p a ñ a " e " M o n s t r u o d e la n a t u r a l e - c o s ; a vida do " m o n s t r u o d e la n a t u r a l e z a " t a m b é m é m o n s -
za", r e f e r e m - s e á s u a f e r t i l i d a d e l i t e r a r i a fabulosa. N a o é truosa. Estudos no colegio dos jesuítas, aventuras amo-
possível v e r i f i c a r e x a t a m e n t e o n ú m e r o d a s s u a s p e g a s ; a rosas, raptos e fugas, vida de estudante em Alcalá; novas
v e r d a d e p a r e c e e s t a r e n t r e 1200 e 1500. E h á a i n d a v a r i o s aventuras eróticas, urna das quais, com Elena Osorio, é
v o l u m e s d e poesía l í r i c a e a l g u m a s e p o p é i a s e r o m a n c e s . m e n o s honrosa e t e m conseqüéncias g r a v e s ; servigo mi-
L o p e é o a u t o r m a i s fértil d a l i t e r a t u r a u n i v e r s a l . A t i v i - l i t a r na A r m a d a q u e s o f r e u a g r a n d e d e r r o t a pelos i n g l e -
d a d e t á o e s p a n t o s a nao se i m a g i n a á m a n e i r a d e F l a u b e r t ses; casamento com Isabel, vida com a concubina A n t o n i a
ou M a l l a r m é ; L o p e d e V e g a é u m i m p r o v i s a d o r g e n i a l , es- Trillo, segundas nupcias com a atriz Micaela; depois, Lope
crevendo rápidamente para o consumo dos teatros ou para e s t u d a teología, r e c e b e n d o o r d e n s s a g r a d a s , c o n t i n u a n d o
os a m o r e s , q u e a l t e r n a c o m t e r r í v e i s e x e r c í c i o s a s c é t i c o s ,
Historia (e lenda) espanhola: Amistad pagada; Comedia de até á morte edificante. O dinamismo dessa vida manifes-
Bamba; Las famosas Asturianas; El último godo; Los prados de t a r e em t o d a a p a r t e da s u a o b r a : urna o b r a e x u b e r a n t e ,
León; Mocedades de Bernardo del Carpió; Casamiento en la
muerte; Conde Fernán-González; Bastardo Mudarra; El mejor
alcalde el rey; La desdichada Estefanía; Las paces de los reyes Edic&o da Jerusalén conquistada por J. Entrambasaguas y Peña,
y Judia de Toledo; La estrella de Sevilla; Lo cierto por lo duvi- Barcelona, 1936.
Epopéla herói-cómlca: La Gatomaguia (1634). (Edlcao moder-
doso; El rey D. Pedro en Madrid; Audiencias del rey D. Pedro; La na, Col. Universal, Madrid. 1902.)
niña de Plata; Los Ramírez de Arellano; Porfiar hasta morir; Pastorais sacros: San Isidro (1599); Los pastores de Belén (1612).
Los novios de Hornachuélos; Períbanez; El caballero de Olmedo; Pastorais: Areadia (1598).
Fuente Ovejuna; Los comentadores de Córdoba; Remedio en la Romances: El peregrino en su patria (1604); La Dorotea (1632).
desdicha; El mejor mozo de España; Le santa Liga; La serrana Edic&o da Dorotea por Am. Castro, Madrid, 1913.
de la Vera; Alcalde de Zalamea; El aldeguela; Marqués de las Arte nuevo de hacer comedias (1609).
Navas; El nuevo mundo descubierto por Cristóbal Colón; etc. Obras selectas (Garnier) 4 vols. (I-IH. Teatro, IV Obras sueltas).
Dramas: El villano en su rincón; El castigo sin venganza; etc. París, 1886.
Comedias: El acero de Madrid; El anzuelo de Fenisa; Amar sin F. Grlllparzer: Studlen zum spanischen Theater. 8tuttgart.
saber a guien; Noche toledana; Las flores de D. Juan; La quinta 1874.
de Florencia; La dama boba; Melindres de Belisa; Los milagros M. Menéndez y Pelayo: Prólogos da edic&o citada. Vols. n-IV,
del desprecio; El mayor imposible; Margues de Mantua; Los Madrid, 1890/1913. (Novamente publicadas em: Estudios sobre el
tres diamantes; El piadoso veneciano; El remedio en la desdicha; teatro de Lope de Vega. 2 vols. Madrid, 1919.)
El rufián Castrucho; Hermosa fea; El perro del hortelano; El va- J. Fltzmaurice Kelly: Lope de Vega and the Spanish Drama.
guero de Morana; Si no vieran tos mujeres; etc. Glasgow, 1902.
Teatro: 25 vols. (1604/1647) (cí. nota 71). R. SchevlU: The Dramatic Art of Lope de Vega. Berkeley (Callí.),
1918.
Edlcao por J. E. Hartzenbusch (Biblioteca de Autores Españoles, H. A. Rennert e Am. Castro: Vida de Lope de Vega. Madrid, 1919.
vols. XXIV. XXXIV, XLI, LU.) (112 pecas.) M. Carayon: Lope de Vega. París, 1929.
Edic&o da Academia Española, por M. Meriende/ y Pelayo, 15 vols. K. Vossler: Lope de Vega und sein Zeítalter. Muenchen, 1933.
Madrid, 1890/1913; Suplemento, edit. por E. Cotarelo y Mir, 13 J. Jiménez Rueda: Lope de Vega, ensayo de interpretación. Mé-
vols., Madrid, 1916/1928. xico, 1935.
Outras obras: Obras sueltas, edlt. por L. Sancha, 21 vols. Madrid, J. Entrambasaguas y Peña: Vida de Lope de Vega. Barcelona,
1936.
1776/1779. S. Grlswold Morley: The Chronology of Lope de Vegas Comedias.
Poesías líricas: Rimas (1609); Rimas sacras (1614); Romancero New York, 1940.
espiritual (1624); Laurel de Apolo (1630). R. de Arco y Garay: La sociedad española en las obras dramá-
Edlcao por F. J. Montesinos, 2 vols. Madrid, 1926/1927. ticas de Lope de Vega. Madrid, 1942.
Epopéias: La Dragontea (1598); La hermosura de Angélica J. Entrambasaguas y Peña: Estudios sobre Lope de Vega. Ma-
(1602); Jerusalén conquistada (1609); La corona trágica (1627). drid, 1946.
HISTORIA DA LITERATURA OCIDKNTAL 773
772 OTTO MARÍA CARPEATJX
sua índole, e justamente no interessantíssimo romance au-
estrondosa, variadissima, cotn todas as retumbáncias do tobiográfico La Dorotea, onde confessa com a maíor sin-
Barroco. Mas é um Barroco sem ideología rígida nem ra- ceridade o capítulo mais escuro da sua vida, a aventura
cionalismo erudito, sem angustia mística nem naturalismo com Elena Osorio, é que sao mais freqüentes também
cruel: um Barroco imperfeito. Por isso, Lope de Vega as confissoes literarias e polémicas contra Góngora.
foi, no seu tempo, o dramaturgo preferido de Quevedo e O que causa estranheza, porém, é o estilo conceituoso
de todos os que se opunham ao gongorismo, enquanto, no da sua prosa e a freqüéncia de versos auténtica-
século XIX, os románticos, embriagados com a descoberta mente gongóricos na sua obra inteira. Como teórico,
da literatura barroca na Espanha, ficaram perplexos em Lope detestava o gongorismo; como poeta, nao foi capaz
face de Lope de Vega. de aplicá-lo; como improvisador, sucumbiu á moda litera-
Os románticos alemaes, ingleses, franceses, do coméco ria da sua época, incapaz de evitar o gongorismo. Lope
do século XIX, estavam cheios de entusiasmo por Calde- nao é, como Gil Vicente, poeta renascentista; perpetua as
rón; Lope parecia-lhes um precursor bastante imperfeito. tradicoes rnedievais do gótico "flamboyant", pré-barroco;
Só o poeta austríaco Pranz Gillparzer, mais perto da Es- pertence, apesar de tudo, ao Barroco, se bem que de ma-
panha pela tradicáo barroca do teatro popular de sua ci- neira imperfeita. Como escritor popular e meio medieval,
dade natal, Viena, reagiu contra o culto exagerado de Cal- conserva o espirito democrático dos tempos do Cid e dos
derón, exaltando a arte espontánea e o espirito popular em feudais, gosta da independencia do camponés em sua casa
Lope de Vega. Ésse ponto de vista venceu pela autoridade (El villano en su rincón); mas ésse espirito de indepen-
de Menéndez y Pelayo; e hoje Lope de Vega é geralmente dencia transforma-se-lhe em conceito barroco da Honra.
considerado como a expressáo mais completa da alma es- É Lope, e nao Calderón, quem criou o fetiche "Honra",
panhola, fonte inesgotável de i n s p i r a r e s populares. táo típico do teatro espanhol. Como escritor popular, Lope
de Vega nao se cansa de representar costumes regionais e
Lope de Vega é o herdeiro de Gil Vicente. Creduli-
das diferentes classes da sociedade; mas o espirito aristo-
dade infantil, crítica irreverente, religiosidade comovida
crático — todos os espanhóis livres sao hidalgos — im-
sem fanatismo, alegría ingenua, ignorancia fabulosa quanto
poe-lhe um código uniforme de comportamento do qual o
as coisas estrangeiras e conhecimento estupendo quanto
resultado é a "comedia de capa y espada", já barroca. O
as tradicóos e costumes populares: eis o lado medieval,
palhaco popular das suas pecas, o "gracioso", revela cada
pré-barroco, de Lope de Vega. Encarna e representa a
vez mais o humorismo burlesco do Barroco; os variadíssi-
nacao inteira, nao apenas a élite culta; por isso, Lope de
mos aspectos pitorescos da sua obra tornam-se decorati-
Vega é hostil á poesia dessa élite, ao gongorismo. Em
vos; a sua credulidade em milagres e maravilhas de toda
sua obra sao numerosíssimas as passagens polémicas e
a especie, a leviandade com a qual acumula as inverossimi-
satíricas contra Góngora e os seus discípulos. Na verdade,
lllancas nos enredos novelísticos, tudo isso acaba dando a
Lope de Vega como improvisador espontáneo teria sido
impressáo de um mundo completamente irreal, ilusorio.
incapaz de elaborar, com arte e erudicao, poesías como as
É um mundo barroco.
de Góngora. Lope de Vega é um grande poeta lírico, mas
de outra estirpe: é grande na emocao simples e comovida
da sua religiosidade sincera, das suas paixóes eróticas, da É um Barroco imperfeito, porque o motivo íntimo da
maledicencia contra inimigos. Tinha plena consciéncia da atividade literaria de Lope de Vega é o lirismo popular.
774 OTTO M A R Í A C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 775
i
Lope, com a sua religiosidade alegre, está todo nos versos rado da Biblia e da hagiografía, da historia da Antiguidade
que a Virgem canta ao menino divino, nos Pastores de e lendas medievais, da multidáo dos contos italianos, das
Belén: lembrangas francesas e flamengas, dos boatos da América,
da india. Um panorama imenso, visto pelo "homem da rúa"
"Pues andáis en las palmas, de Madri, no palco calidoscópico do bacharel-militar-pa-
ángeles santos, dre-dramaturgo Lope de Vega, improvisador-feiticeiro de
que se duerme mi niño,
1500 comedias.
tened los r a m o s . . . "
Lope de Vega é menos original nos seus autos, que ain-
E Lope está também inteiro no refrío melancólico sobre da estáo perto da tradigao medieval, e menos feliz ñas co-
o qual compós a maior das suas tragedias, El caballero de medias de santos, cheias de credulidade quase infantil. As
Olmedo: pegas tiradas da historia estrangeira e antiga s i o de um
anacronismo espantoso, reduzindo tudo ao alcance dos po-
"Puesto ya el pie en el estribo, pulares de Madri e Sevilha; contudo, ele sabe acertar a
con las ansias de la muerte, monstruosidade de Ñero na Roma abrasada e as particula-
señora, aquesta te e s c r i b o . . . " ridades da historia portuguesa no Duque de Viseu. Mas
Por mais pessoais que sejam estas expressoes, Lope de sente-se mais seguro quando trata assuntos de c a s i : na
Vega é o porta-voz da sua raga e da sua época. A raga é mistura shakespeariana de tragedia e humorismo da Come-
a espanhola, altiva, intolerante, apaixonada, democrática. dia de Bamba; verificando o espirito da epopéia castelhana
Lope de Vega criou-lhe o símbolo imperecível, na resposta ñas Mocedades de Bernardo del Carpió e Casamiento en
dos habitantes da aldeia Fuente Ovejuna, na pesa désse ¡a muerte; representando a antiga monarquía democrática
título, que se revoltaram contra o comendador violento e em El mejor alcalde el Rey, e a antiga aristocracia em La
infame e o mataram; todos sao interrogados e torturados, estrela de Sevilla; vi vendo as lutas contra os mouros e a
para se lhes arrancar o nome do assassino, e todos tém independencia dos feudais em Las paces de los reyes y
a mesma resposta: Judía de Toledo; tragando o caráter espanhol, indomável,
em Fuente Ovejuna, e o espanto diante das descobertas e o
"¿Quién mató al Comendador? — júbilo da propaganda da fé em El nuevo mundo descubierto
— Fuente Ovejuna, Señor." por Cristóbal Colón. Lope de Vega domina com mestria
igual o tom do drama de conflitos trágicos (El castigo sin
A época é a do imperialismo espanhol. A Europa inteira venganza, El caballero de Olmedo), da pega de conteúdo
é a espanhola, e a Américs também. Soldados espanhóis lu- ideológico (El villano en su rincón), da comedia da fina
tam nos campos de batalha de Franga e Flandres, Italia e sociedade (La dama boba, Los milagres del desprecio. El
Chile; hacharéis e padres espanhóis trabalham em Portugal
mayor imposible); e nao ignora as carnadas baixas (Noche
e na Irlanda, Austria, México e Perú. Todas as tradigoes —
toledana), o mundo dos malandros (El rufián Castrucbo),
a greco-romana, a medieval, a germánica, a islamítica — con-
a gente dos campos (El vaquero de Morana). Em Lope de
f luem na Espanha. O assunto de Lope de Vega — trata-se de
Vega há de tudo.
urna enorme epopéia em mil fragmentos dramáticos — é ti-
776 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 777

Entre todas essas numerosíssimas pegas nao existe ne- de Vega, sabia concentrar-se; daí a sua superioridade na
nhuma em que nao se encontrem personagens interessan- composigao, só comparável, no teatro espanhol, á de Cal-
tes ou expressoes felizes ou urna cena extraordinaria ou, derón. Foi dramaturgo consciente da sua arte, capaz de
talvez, um ato bem conduzido. Mas quase nao se nos depa- dar o passo decisivo para a barroquizagáo completa do
ram caracteres desenvolvidos, sao muito raras as pegas teatro nacional. Na Espanha, o Barroco é o estilo nacional:
bem construidas do comégo ao fim. Em toda a parte o lei- e Tirso de Molina, em vez de cair nos anacronismos inge-
tor ou espectador é surpreendido por detalhes maravilho- nuos de Lope de Vega, espanholiza os seus assuntos pela
sos e ofendido por impossibilidades absurdas e fins abrup- raiz. O drama bíblico La venganza de Turnar é urna tra-
tos. Lope de Vega escreve ao acaso; quando a obra lhe sai gedia espanhola de honra, e o S. Bruno de El mayor de-
bem, é grandiosa; quando nao, é urna miseria. É a própria sengaño, um místico castelhano. Conforme a observagáo
natureza, completa. feliz de Valbuena, a comedía Tanto es lo de más como lo de
Artista consciente, Lope de Vega foi-o ñas suas obras menos é, sob o pretexto de dramatizar a parábola evangé-
nao dramáticas. É grande e abundante poeta lírico, sacro e lica do filho pródigo, um panorama táo completo da vida
profano; escreveu aquéle admirável romance dialogado La espanhola do século X V I I como o sao, em conjunto, os
Dorotea. As outras obras sao secundarias. Só as belezas
liricas salvam o pastoril religioso Los pastores de Belén. Tamar; La mejor espigadera; Santa Juana; El caballero de
Gracia; Santo y sastre; Vida de Herodes; etc.
A epopéia herói-cómica La gatomaquia exibe muito espi- Pecas históricas ou leudarías: El burlador de Sevilla y Convida-
rito num género falso. La hermosura de Angélica e La do de piedra; La prudencia en la mujer; Trilogia de loa Bizarro?;
Las quinas de Portugal; La elección por la virtud; etc.
Jerusalén conquistada sao imitagoes de Ariosto e de Tasso. Comedias: El vergonzoso en el palacio; Amar por razón de Es-
imitagoes supérfluas apesar de muitos versos felizes. La tado; El melancólico; El celoso prudente; Marta la piadosa: La
Dragontea só é notável pelo furioso patriotismo antiin- gallega Mari-Hernández; El amor y la amistad; Don Qil de las
calzas verdes; La villana de Vallecas; Por el sótano y el torno;
glés. La corona trágica, a obra-prima do poeta épico Lope Amar por señas; Tanto es lo de más como lo de menos; etc,
de Vega, reúne todas as suas capacidades artísticas, como Colec&es (de pegas, novelas, etc.): Los cigarrales de Toledo (1621);
num grande painel em torno da infeliz rainha María Deleitar aprovechando (1635).
Stuart, mártir da fé católica e coroada no céu. Ai está o Edlcóes (Incompletas) do teatro, por J. E. Hartzenbuích, 12 vols.
Madrid, 1839/1842, e por E. Cotarelo y Mir (Nueva Biblioteca de
Lope de Vega barroco. A sua obra nao é inteiramente bar- Autores Españoles, vols. IV, I X ) .
roca; mas a sua personalidade, sempre. Edlgao de Los Cigarrales por V. Sald Armesto, Madrid, 1913.
V. Sald Armesto: La leyenda de Don Juan. Madrid, 1908.
Tirso de Molina ( 6 1 ), algo menos genial do que Lope Blanca de los Ríos: Del siglo de oro. Madrid, 1910. (O estudo
mais importante.)
61) Gabriel Téllez (Tirso de Molina), c. 1584-1648. M. Menéndez y Pelayo: Estudios de critica literaria. 2.* serie,
Comedias (5 vols. 1627/1636). (O volume XI, de 1635, saido depoís 2." ed. Madrid, 1912.
do volume III, contém 12 comedias, das quais 4 seriam de Tirso Blanca de los Ríos: £2 enigma biográfico de Tirso de Molina.
e 8 de outros dramaturgos, mas sem se dizer quais sao as 4 de Madrid, 1928.
Tirso: déste modo, íica em dúvida a autoria de algumas pegas M. A. Peyton: "Some Baroque Aspects of Tirso de Molina". (In:
importantes, entre elas El condenado por desconfiado.) Romanic Review, abril, 1944.)
Autos: El laberinto de Creta; La madrina del cielo; El colmenero L. M. Clelland: Tirso de Molina. Studies in Dramatic Realism.
divino; etc. Liverpool, 1949. .
Comedias de santos: El mayor desengaño: El condenado por Ensayos sobre Tirso de Molina, edit. por la revista Estudios.
desconfiado; La mujer que manda en casa; La venganza de Madrid, 1949.
778 O T T O MARÍA C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 779
/
contos da sua colegio Los cigarrales de Toledo. Tirso de dizer: é outra alegría e outra profundidade, a do Barroco.
Molina sabe tudo da Espanha e dos espanhóis, fala os dia- É a única versao do assunto na qual — como o título já
letos de todas as regióes — as suas comedias sao conside- indica — a estatua do governador assassinado desempenha
radas como um dos maiores repositorios do idioma — sabe papel tao importante como o grande sedutor. Essa dialé-
rir com a Gallega Mari-Hernández e chorar com Santa tica nao é, na obra de Tirso de Molina, um acaso; mo-
Juana, conhece os segredos políticos em La prudencia en vimenta a sua ideología e a do teatro espanhol, encontran-
la mujer e as intimidades do clero em La elección por ¡a do a expressao completa em El condenado por desconfiado,
virtud. Como padre e filho do povo, como poeta barroco de que nao é possível, infelizmente, afirmar com certeza ser
e dramaturgo popular, Tirso é humorista, irónico, mora- Tirso o autor. Seria sua obra-prima. Nessa tragedia
lista, embrulha as intrigas mais complicadas e resolve-as teológica, a alma do ladráo penitente Eurico é levada pe-
em "desengaños" amargos. Como poeta barroco, Tirso é los anjos do patíbulo ao céu, enquanto e eremita Paulo,
naturalista, de um erotismo muito mais brutal do que Lope; desconfiado da sua redencao, vai para o inferno. NSo é
mas também é mais sereno do que éste, conhecedor das do comportamento moral que o desfecho depende, nem da
almas e inimigo céptico das ilusoes — alegam-se os seus predestinacao pela profissao sagrada, mas da "gratis effi-
quarenta anos de prática no confessionário. cax", segundo a doutrina do jesuíta Molina, á qual adere o
dramaturgo, acostumado a absolver pecadores. Com essa
Antes de tudo, é Tirso de Molina um grande comedió- tragedia poderosa, T i r s o de Molina está em pleno Barroco:
grafo, transformando em artes de playwright as artes os problemas de predestinacao e graca seráo os de Calde-
de maquinista cénico dos jesuítas. Comedias como Don Gil rón e dos jansenistas.
de las calzas verdes e El vergonzoso en el palacio sao obras-
primas de complicagao engenhosa, comicidade irresistível O outro elemento calderoniano — a cultura clissica —
das confusoes, inteligencia vigorosa do desfecho; e é pre- é representado, sempre dentro da forma popular do teatro
ciso muita atencao para perceber, atrás dos bastidores, a de Lope de Vega, por Guillen de Castro ("-). Nos poetas
mao do titereiro e o sorriso superior do poeta que zomba elegiacos romanos parece ter aprendido licoes de psicolo-
dos seus próprios personagens. Isso também é arte típi- gía, sem se preocupar com as intencoes moráis de Tirso de
camente barroca, tentativa de resolver o confuto entre o Molina. As pegas psicológicas de Guillen de Castro —
livre-arbítrio, dogma do catolicismo e da arte dramática, La tragedia por los celos, Los mal casados de Valencia —
e o fatalismo, dogma do estoicismo barroco e conclusáo
da sua psicología de caracteres imutáveis. Tirso de Mo- 02) Guillen de Castro y Bellvis, 1569-1631.
lina, que já em El melancólico demonstrara a arte, nova Comedias (1618, 1625.) (Of. nota 71.»
Los mal casados de Valencia; El conde Alarcos; Las mocedades
depois de Lope, de criar caracteres bem definidos, conse- del Cid; La tragedia por los celos; Progne y Filomena; La fuerza
guiu enfim o que só pouquíssimos poetas da literatura uni- de la sangre; etc.
versal conseguiram: criar um tipo eterno da Humanidade. Edicao por E. Julia, 3 vols., Madrid, 1925/1927.
Em El burlador de Sevilla, y convidado de piedra criou o J. D. Segoll: Corneille and the Spanish Drama. New York, 1902.
O. Huszar: Corneille et le thé&tre espagnol. París, 1930.
personagem "Don Juan". Do ponto de vista da dramatur- R. Monner Sans: Don Quülén de Castro. Buenos Aires, 1913.
gia, a comedia é menos alegre do que a de Moliere e menos H. Mérünée: Ltart dramatique á Valencia, depuis les origines
profunda que a ópera de Mozart. Mas será mais exato jusqu'au commencements du XVIIe siécle. Toulouse, 1913.
E. Julia: Prólogos da edlc&o citada.
780 OTTO MARÍA GABPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 781

sao a s m a i s " m o d e r n a s " do t e a t r o e s p a n h o l . G u i l l e n d e parte alegremente obscenas, em parte elegantemente aris-


Castro é o E u r í p i d e s do teatro espanhol, dramaturgo-hu- tocráticas.
m a n i s t a d e c a r a c t e r e s livres. A s s i m c o m o E u r í p i d e s r e - A t r a n s í o r m a g a o d o f a t a l i s m o p o p u l a r em f a t a l i s m o t r á -
novou o mito, assim Guillen de Castro p r e t e n d e u renovar gico constituí a grandeza solitaria de Vélez de Guevara
a lenda espanhola, a do Conde Alarcos e a de Las moceda- ( 8 4 ) . A s u a o b r a e m p r o s a — El diablo cojuelo, q u e L e s a g e
des del Cid, p e g a q u e i m o r t a l i z o u nao a G u i l l e n d e C a s t r o , a f r a n c e s a r á c o m o Le diable boiteux — revela a fórga b a r r o -
m a s ao a u t o r d a v e r s a o f r a n c e s a , C o r n e i l l e . A t r a g e d i a ca d e desenliar c o n t r a s t e s i m p r e s s i o n a n t e s , e m c l a r o - e s c u r o
f r a n c e s a p e r t e n c e , a p e s a r dos e m p r é s t i m o s a b u n d a n t e s d o i n f e r n a l . E s s a m e s m a fórga, o d r a m a t u r g o e m p r e g o u - a
modelo espanhol, a um outro estilo, de modo que a compa- para aprofundar o tema lopista do confuto entre corte e
ragáo das d u a s t r a g e d i a s , t e m a p r e d i l e t o d a " l i t e r a t u r a com- a l d e i a , rei e c a m p ó n o s , em La luna de la sierra e La serrana
parada", nao tem muito sentido. Como d r a m a "estilizado", de la Vera. E na sua obra-prima, Reinar después de morir,
Le Cid f r a n c é s é d e s u p e r i o r i d a d e e v i d e n t e ; a s v a n t a g e n s a historia de Inés de Castro, que para os espanhóis de entáo
d o e s p a n h o l r e s i d e m na p s i c o l o g í a n a t u r a l i s t a e n o l i r i s m o . fóra l e n d a f a n t á s t i c a , t r a n s f o r m o u - s e e m t r a g e d i a h u m a n a
D e n t r o d o e s q u e m a lopista, a t r a g e d i a clássica, a s s i m d e c o n f u t o e n t r e a leí d o E s t a d o e a leí da p e r s o n a l i d a d e ,
como Guillen de Castro a p r e t e n d e u talvez criar, nao era t r a g e d i a q u a s e s o f o c l i a n a . V é l e z d e G u e v e r a foi, talvez,
possível, senáo t o m a n d o como f u n d a m e n t o o fatalismo e n t r e os g r a n d e s d r a m a t u r g o s e s p a n h ó i s , o ú n i c o a p a r e c e r -
i n a t o d a r a s a . B a s e a n d o ésse f a t a l i s m o n o e s t o i c i s m o p o - s e c o m u m J o h n W e b s t e r , p e l a fórga t r á g i c a , s o m b r í a e
p u l a r e s p a n h o l , c r i o u P é r e z d e M o n t a l b á n ("•') a s u a obra- algo indisciplinada; com algo mais de capacidade constru-
p r i m a , urna d a s p e g a s m a i s p o p u l a r e s d o s á c u l o : a Comedia tiva t e r i a sido c a p a z d e e s c r e v e r t r a g e d i a s c a l d e r o n i a n a s
famosa del Gran Séneca de España, Felipe II. O espanhol c o m o El mayor monstruo, los celos. J á o tentara aquéle
do século X V I I nao teria reconhecido em Filipe I I o o u t r o d r a m a t u r g o , q u e e n t r e t o d o s os d i s c í p u l o s d e L o p e
t i r a n o clerical dos historiadores liberáis do século X I X ; o está m a i s p e r t o d e C a l d e r ó n : M i r a d e A m e s c u a ( 8 B ) . S e
r e i , n a v e r d a d e , era d é s p o t a s ó p o r h á b i t o s d e b u r ó c r a t a ,
s a c r i f i c a n d o - s e e s a c r i f i c a n d o a s u a v i d a p a r t i c u l a r a de- 64) Luis Vélez de Guevara, 1579-1644.
v e r e s s u p e r i o r e s da p a t r i a e d a fé e a a l g u n s d e v e r e s ima- Reinar después de morir; La luna de la sierra; La serrana de la
ginarios. Identificar essa atitude de m á r t i r político com o Vera; La Baltasara; Más pesa el rey que la sangre; El espejo
del mundo; etc. (Cf. nota 71.)
i d e a l e s p a n h o l d o e s t o i c o foi i d é i a g e n i a l d o t a l e n t o s o d r a - Edicáo do teatro: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XLV.
m a t u r g o P é r e z d e M o n t a l b á n , c r i a n d o a i m a g e m na q u a l El diablo cojuelo. (1641). Edicáo por F. Rodríguez Marín. Madrid.
1922.
F i l i p e I I s o b r e v i v e na m e m o r i a d a nagao. N o r e s t o , é E. Cotarelo y Mir: "Luis Vélez de Guevara y sus obras dramáti-
P é r e z d e M o n t a l b á n p r i n c i p a l m e n t e a u t o r d e c o m e d i a s em cas". (In: Boletín de la Real Academia Española. 1916-1917.)
F. E. Spencer e R. Schevill: The Dramatic Works of Vélez de
Guevara. Los Angeles, 1937.
65) Antonio Mira de Amescua, 1574 ou 1577-1644.
63) Juan Pérez de Montalbán, 1602-1638. El esclavo del demonio; El ejemplo mayor de la desdicha y Ca-
Comedia famosa del gran Séneca de España Felipe 11; No hay pitán Belisario; El conde Alarcos; La Fénix de Salamanca; Los
amantes de Teruel; etc. (Cf. nota 71.)
vida como la honra; La ganancia por la mano; La toquera viz- Edicáo por A. Valbuena Prat (Clásicos Castellanos. Vols. LXX,
caína; etc., etc. (Of. nota 71.) LXXn.)
Edigáo: "Biblioteca de Autores Españoles, vol. XLV. O. E. Aníbal: Mira de Amescua. Columbus (Oh.), 1925.
G. W. Bacon: "The Life and Works of Pérez de Montalbán". (In: E. Cotarelo y Mlr: "Mira de Amescua y su teatro". (In: Boletín de

I
Revue Hispantque. 1912.) la Real Academia Española, 1930.)
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 783
782 OTTO MARÍA CARPEATJX
crevem dezenas e centenas de pecas, ele só produz pouco
ele nao é — como alguns críticos acreditara — o autor do mais que urna dúzia. O s outros escrevem para a massa popu-
Condenado por desconfiado, criou pelo menos outra pega, lar; ele, para os conhecedores. E quando nao tem sucesso,
semelhante, na qual retorna o problema da tentagáo demo- acusa Lope de Vega como iniciador de um caminho errado.
níaca e do livre-arbítrio: El esclavo del demonio. A pega Mas o seu próprio caminho nao é o gósto da élite, que seria
está claramente entre a tirsiana ou pseudotirsiana e o aristocrático-gongórico, e sim a stmplificagao do esquema
Mágico prodigioso, de Calderón; falta-lhe profundidade novelístico da dramaturgia espanhola, a ponto de se apro-
ideológica; assím como o Capitán Belisario, de Mira de ximar do classicismo francés, do qual por sua vez se distin-
Amescua nao passa de esbógo das tragedias políticas de Cal- gue pelo inconformismo de moralista independente. Ruiz
derón, e assim como a Fénix de Salamanca nao é mais que de Alarcón é um caso singular.
a antecipacáo da forma madura da "comedia de capa y es-
As explicacoes do "caso" chegam todas ao mesmo re-
pada". Mira de Amescua é um escritor riquissimo, mas nao
sultado: ressentimento. Os contemporáneos zombaram do
um grande dramaturgo. Criou as formas ñas quais o seu
aleijado — Ruiz de Alarcón era corcunda — e quase es-
admirador e discípulo Calderón insuflará o espirito que
trangeiro — o poeta era natural do México. Os románticos
vivifica. do século XIX lamentaram em Ruiz de Alarcón um genio
Nao é muito fácil distinguir entre as obras menores incompreendido á maneira do Chatterton, de Vigny. Os
dos autores menores do teatro espanhol: caem todos na psicólogos modernos reúnem todos ésses motivos, falando
rotina das complicagoes absurdas e desfechos precipitados, ás claras em ressentimento; e do ressentimento nasce,
dos discursos retóricos e digressoes líricas, do fatalismo segundo Nietzsche, o moralismo. Mas essas explicacoes
heroico e fanatismo religioso, nem sempre sinceros. O tea- nao estáo bem fundadas. Nao conhecemos bastante a per-
tro espanhol, que encantara os críticos estrangeiros no sé- sonalidade de Ruiz de Alarcón para podermos falar em
culo XIX, como expressao da Espanha "romántica" e "pi- complexos de inferioridade. Nao se descobriram na sua
toresca", caiu na própria Espanha, depois de 1898, em des- obra tragos particulares da sua nacionalidade mexicana. A
prézo, do qual Azorín se fez porta-voz; desprezo, porque o
teatro "nacional" foi considerado como expressao da Es- Parte segunda de las comedias (1634): La verdad sospechosa; El
tejedor de Segovia; Sanar amigos; Los pechos privilegiados;
panha imperialista e inquisitorial, da Espanha de um es- La crueldad por el honor; El examen de maridos; El Anticristo);
fórco enorme a servigo de um ideal absurdo e "reacioná- "No hay mal que por bien no venga". (In: Laurel de comedias de
rio", movimento frenético, acabando em apatía. Mas deu- varios autores, 1635.)
se atengáo especial a Ruiz de Alarcón, o dramaturgo dife- Edlgóes: a Biblioteca de Autores Españoles, vol. XX, e por Alf.
Reyes, 2. eil.. Madrid. 1923 (incompleta); No hay mal que por
rente que pretenderá conferir novo sentido ao movimento bien no venga, edit. por A. Bonilla y San Martin, Madrid, 1016.
P. Henriquez Urefta: Juan Ruiz de Alarcón. Habana, 1915.
dramático. J. Jiménez Rueda: Juan Ruiz de Alarcón. México, 1934.
Juan Ruiz de Alarcón ( 60 ) é diferente em todos os M. Sackheün: Díe Lebensphiloso/ie des Dichters D. Juan Ruiz
sentidos. Enquanto os outros dramaturgos espanhóis es- de Alarcón. Berlín, 1936.
A. Valbuena Prat: "El teatro de Juan Ruiz de Alarcón". (In:
Historia de la literatura española. Vol. II. Barcelona, 1937.)
66) Juan Ruiz de Alarcón. c. 1581-1639. A. Reyes: "Tres"siluetas de Ruiz de Alarcón". (In: Capítulos de
Parte primera de las comedias (1628): (Los favores del mundo; literatura española. México, 1939.)
tas paredes oyen; Industria y suerte; La cueva de Salamanca; S. Denls: La langue de Juan Ruiz de Alarcón. París, 1943.
Mudarse por mejorarse);
.

HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 785


784 O T T O MARÍA C A R P E A U X

interpretacao romántica nao está bem de acordó com o Tejedor de Segovia, torna-se bandido para reabilitar a sua
feitio meio classicista da sua dramaturgia, e o famoso rao- honra, mas a sua verdadeira reabilitacao reside na gran-
ralismo de Ruiz de Alarcón revela-se antes como amora- deza do estoicismo com que suporta as suspeitas injus-
lismo, indiferente ou hostil ás convencoes estabelecidas. tas. Na tragedia e na comedia, Ruiz de Alarcón é sempre
o mesmo: o seu único criterio é o valor humano da per-
Ruiz de Alarcón é o único dramaturgo espanhol em
sonalidade. Nao é um clássico, mas um grande humanista,
que se sentem influencias da comedia latina, sobretudo de
cuja obra é obumbrada por um claro-escuro rembrand-
Teréncio. Assim como o romano que criou o lema do hu-
tiano: um humanista barroco.
manismo moral — "Nihil humani a me alienum p u t o " —
Ruiz de Alarcón evita o ruido alegre da comedia popu- O caso singular de Ruiz de Alarcón nao serve e real-
lar, preferindo o tom e os conflitos da sociedade culta, sem mente nao serviu aos criticos de 98 para "salvar" o teatro
grande vis cómica, mas com mais urbanidade. Rejeita espanhol. Mas o próprio Azorín voltou enfim a elogiar Cal-
as convencoes do teatro espanhol, a composicao novelís- derón, opondo-se ao lopismo entusiasmado da crítica meio
tica, a liberdade desenfreada das decisoes, substituindo-as romántica de Menéndez y Pelayo. Em Calderón, o teatro es-
pela lógica implacável das conseqüéncias, pelo determi- panhol, considerado como "absurdo", revelou o seu sen-
nismo dos caracteres. D . García, na Verdad sospechosa, tido, voltando aos conceitos e preceitos do Barroco je-
torna-se presa das suas próprias mentiras, e quanto mais suítico. Calderón também foi discípulo dos padres da
se esforca por fugir da rede das conseqüéncias, tanto mais Companhia.
se embrulha, ao ponto de, enfim, a sua única verdade, o A historia literaria postuma de Calderón ( ÍT ) percor-
seu amor, ser considerada como mentira pelos que admiti- reu as mesmas fases que a de Lope de Vega; apenas, em
ram as suas mentiras como verdade. Nisso nao há nada de
moralismo convencional. O melhor comentario dessa fa- 67) Pedro Calderón de la Barca, 1600-1681.
mosa comedia é a versáo francesa de Corneille, Le menteur, Autos sacramentales (edicao de 1677); La vida es sueño; El divi-
no Or/eo; La cena de Baltasar; El gran teatro del mundo; La
obra de sentido estritamente moralista, ao passo que o es- devoción de la misa; Los misterios de la misa; El divino Jasan;
panhol condena menos o mentiroso do que as circunstan- El santo rey D. Fernando; La viña del Señor; Los órdenes
cias que o levam a mentir; Valbuena apóia essa interpre- militares: Sibila del Oriente; etc.
tacao ideológica pela análise da outra grande comedia de Comedias (4 vols., 1636/1672, e 6 vols., 1682/1691): La devoción
de ¡a Cruz; La exaltación de la Cruz; El principe constante; El
Ruiz de Alarcón: No hay mal que por bien no venga, na mágico prodigioso; La aurora en Copacabaña; Los dos amantes
qual D. Domingo de D. Blas se revolta de maneira auda- del cielo; El purgatorio de S. Patricio; Los cabellos de Ábsalón;
Sueños hay que verdad son; El puente de Mantible; El castillo de
ciosa contra as convencoes da sociedade espanhola. Ruiz Lindabridis; En esta vida todo es verdad y todo es mentira; El
de Alarcón nao é moralista; ao contrario, as suas come- mayor encanto el amor; La vida es sueño; El cisma de Inglaterra;
dias pretendem evitar a condenacáo das falhas moráis, La hija del aire; La gran Cenobio; A secreto agravio secreta ven-
ganza; El mayor monstruo, los celos; Tres justicias en una;
transformando-as em inabilidade cómica; seria interessante El alcalde de Zalamea; El médico de su honra; El pintor de su
interpretar-lhe as comedias segundo os conceitos de Le deshonra; La niña de Gómez Arias; La estatua de Prometeo; Eco
rire, de Bergson. A tentativa de fugir ao fatalismo dra- y Narciso; Dama Duende; El secreto a voces; Casa con dos puer-
tas; Antes que todo es mi dama; El escondido y la tapada; Banda
mático do teatro espanhol levou ao fatalismo moral e so- y /lor; Peor está que estaba; Mejor está que estaba; Astrólogo fin-
cial, tanto ñas comedias como ñas tragedias: Fernando, o gido; Manos blancas no ofenden; Hombre pobre todo es trazas;
Saber del mal y bien; etc., etc.
786 OTTO MARÍA C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 787

sentido contrario. Abstraindo-se da última fase, poder-se- Algumas pegas de Calderón, como El Alcalde de
ia dizer que a apreciagao justa de Calderón só foi possivel Zalamea, a poderosa tragedia da reabilitagáo da honra
quando Lope de Vega foi desprezado, e vice-versa. Os do simples cidadáo perante o rei, sao refundieses de
románticos que compararam Calderón a Dante e Shakes- pegas de Lope de Vega. Nessas pegas, Calderón reve-
peare, nao quiseram saber nada de Lope de Vega. Menén- la logo grande superioiidade na construgáo dramatúr-
dez y Pelayo, que iniciou a compreensáo moderna de Lope gica, táo sólida que os personagens parecem prisionei-
de Vega, desprezava Calderón como construtor esquemá- ros da lógica dos aconlecimentos, mas num outro sen-
tico e espirito seco; quase o odiava. Hoje, distinguem-se tido, diverso do que observamos em Ruiz de Alarcón:
melhor os dois dramaturgos: Lope, o representante do nao sao prisioneiros dos seus próprios atos, e sim das
Barroco popular; Calderón, o representante do Barroco convengóes e conceitos, religiosos ou sociais, que o am-
literario. Nao era possivel julgar Calderón com justica biente lhes impoe. Neste grupo — cume do teatro espa-
antes de se descobrir ou redescobrir o Barroco. Só resta nhol da "rotina" — encontram-se muitas das pegas mais
fazer a tentativa de explicar o teatro de Calderón como famosas de Calderón, correspondentes a motivos de Lope
conseqüéncia lógica do teatro lopista. de Vega ou de outros dramaturgos anteriores. Pegas de
historia antiga ou estrangeira, perfeitamente espanholiza-
Edlcao: Comedias: por I. C. Hartzenbusch (Biblioteca de Au- das, como La gran Cenobia ou El cisma de Inglaterra, tra-
tores Españoles, vols. VII, IX, XII, XIV), e por L. Astrana Ma-
rín, Madrid, 1941. tando o mesmo enredo de King Henry VIII, de Shakes-
Autos: por J. Pedroso (Biblioteca de Autores Españoles, vol. peare; pegas bíblicas, como Los cabellos de Absalón; pegas
LVHI) e por A. Valbuena Prat (Clásicos Castellanos, vols. LXIX
e LXXTV). do ciclo da cavalaria, como El puente de Mantible; pegas de
F. W. V. Schmidt: Die Schauspiele Calderons. dargestellt und exaltagáo religiosa, como La aurora en Copacabaña ou
erlaeutert. Elberfeld, 1857. La devoción de la Cruz, na qual o tema do Condenado por
W. Trench: On the Life and Genius o/ Calderón. 2.» ed. London, desconfiado aparece de maneira positiva: a absolvigáo ce-
1880. leste do criminoso que se conservou devoto. Enfim as "pe-
M. Menéndez y Pelayo: Calderón y su teatro. Madrid, 1881. (2.* gas de honra", que o Alcalde de Zalamea encabega: La niña
ed. 1910.) de Gómez Arias, Las tres justicias en una, A secreto agravio
A. Rubio y Lluch: El sentimiento del honor en el teatro de Calde-
rón. Barcelona, 1882. secreta venganza, El médico de su honra, tragedias de hor-
Blanca de los Ríos: De Calderón y su obra. Madrid, 1915. ror que causaram tanta repugnancia a muitos críticos es-
A. Farinelli: La vita é un sogno. 2 vols. Torino, 1916. trangeiros e que sao, no entanto, (Je efeito irresistível no
E. Cotarelo y Mír: Ensayo sobre la vida y obras de D. Pedro palco. O conceito fetichista de "honra" nao é invengao de
Calderón de la Barca. Madrid, 1924.
L.-P. Thomas: "Le Jeu de scene et l'archltecture des idees dans le Calderón; é antes invengao de Lope de Vega. De Cal-
théátre allégorique de Calderón". (In: Homenaje a Menéndez derón é a lógica implacável da aplicagáo. O rigor da com-
Pidal. Madrid, 1924.) posigáo dramatúrgica corresponde ao rigor das convengóes,
W. Michels: "Barockstil bel Shakespeare und Celderón". (In: segundo o lema da arte de Calderón: "hacer más repre-
Revue híspanique, 1929.)
A. Valbuena Prat: "El pensamiento y el estilo barroco de Calde- sentable el concepto". A linguagem ricamente metafóri-
rón. La comedia de Calderón". (In: Historia de la literatura es- cas, os fortes contrastes, a atmosfera sombría, a abundan-
pañola. Barcelona, 1937.) cia de decoragáo cénica, todos ésses elementos barrocos
A. A. Parker: The Allegorical Drama o/ Calderón. An Introduc-
tion to the Autos Sacramentales. Oxford, 1843.
C. Frutos Cortés: Calderón de la Barca. Madrid, 1949.
788 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 789

servem para encobrir e revelar o tema principal de Calde- Todos ésses motivos reúnem-se na obra capital de Cal-
rón e do teatro espanhol: a liberdade de agao das persona- derón: La vida es sueño. O rei Basilio mandou educar
gens é diminuida, limitada pelas intervengoes da Graga seu filho Sigismundo numa torre, no meio das florestas,
divina, do Demonio, das convencoes sociais. Aquela mes- afastado do mundo, receando as profecías dos astrólogos
ma limitagao da liberdade de agáo rege as famosas "co- de que o filho se tornaría tirano, chegando a depor o pró-
medias de capa y espada": Dama Duende, Casa con dos prio pai. Mas nao é possivel fugir ao Destino: no primeiro
puertas, No siempre lo pioi es cierto, Antes que todo es contato com o mundo que se lhe permite, Sigismundo re-
mi dama, Banda y flor. Guárdate del agua mansa, El es- vela o seu caráter táo terrivelmente tiránico que é preciso
condido y ¡a tapada, Peor está que estaba, Mejor está que encarcerá-lo de novo, acalmando-o pela sugestao de que
estaba. Apesar do riquíssimo talento cómico de Calderón, aqueles momentos de liberdade eram apenas sonho. É urna
nao chegamos á alegría despreocupada em face dessas com- ligao ideológica; e quando a revolugao liberta o principe
e o pai derrotado se encontra aos seus pés, Sigismundo se
plicacóes engenhosas, até engenhosas demais. O fundo
vence a si mesmo, lembrando-se
filosófico, mesmo ñas comedias, é o fatalismo. A "liber-
dade" desenfreada do teatro lopista cboca-se, em Calde- " . . . que toda la vida es sueño,
rón, com o estoicismo barroco; o dogma católico, com o fa- y los sueños sueños son."
talismo dramático. Ésse idealismo filosófico enforma as maiores tragedias de
Evidentemente, trata-se do fatalismo de um católico Calderón: El príncipe constante, a tragedia do mártir da
bem ortodoxo. O hornera sofre do pecado original: " E l fé, e El mayor monstruo, los celos, transformacao da his-
delito mayor del hombre es haber nascido." Dai o pessi- toria do tirano Herodes em tragedia de mártir dos seus
mismo trágico de Calderón: a vida Ihe parece sonho con- erros. Nessas pegas, a honra do príncipe cristao e a do
fuso, ou ilusao demoníaca, ou entáo comedia meramente marido que se acredita engañado é a fórca de resistencia
alegórica (El Gran Teatro del Mundo). Mas o dogma cató- dos estoicos. O que éles aborrecerá, como tentacao demo-
lico nao admite a perversao total da natureza humana: níaca, é o saber, a ciencia; doutrina da qual El mágico pro-
deixa sempre aberta a porta a Graca e á conversáo, guarda digioso é a tragedia.
sempre o livre-arbitrio. Para conciliar ésses dois concei-
Calderón admite só urna ciencia: a teología, a ciencia
tos, Calderón serve-se de um aparelho ideológico mais com-
que liberta do Fado. A suprema vitória da sua arte de
plicado do que se pensava antigamente, quando o seu tea-
"hacer más representabas los conceptos" da teología ma-
tro era considerado apenas como r e p r e s e n t a d o dramática
nifesta-se ñas alegorías dos autos, sacramentáis. Por isso,
do dogma católico para a catequese pública; entram con-
o único tema, sempre repetido, dos autos, é a redengao,
ceitos da neo-escolástica de Suarez para defender o livre-
feita "representable" na Eucaristía. La cena de Baltasar
arbitrio contra o Fado dramático, conceitos do estoicismo
ou El divino Orfeo, El gran teatro del mundo ou La viña
de Séneca para explicar psicológicamente a resistencia á
del Señor, no fundo sempre se trata do mesmo tema do
conversáo; e até urna teoría epistemológica, algo parecida
maior dos "autoc": Misterios de la Misa. As alegorías, que
com a de Descartes, para explicar o caráter ilusorio da
tornam os autos leitura fría, vivificam-se de maneira mais
vida e do mundo (* 8 ).
surpreendente quando representadas. Entao senté o espec-
68) Cf. A Valbuena Prat: Literatura dramática española, Barcelona, tador que, segundo a doutrina da Encarnacáo, todo o mun-
1930, e o capítulo de A. Valbuena Prat, citado em nota 67.
790 OTTO MAKIA CARPEAUX- HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 791

do visível está inteiramente santificado; assuntos bíblicos, ron realista; realista no sentido da filosofía escolástica,
históricos e romanescos, e até d a mitología paga, servem que ele aprenderá com os jesuítas. Ñas suas pegas profa-
para "representar" o inefável, a "latens Deitas". Nos au- nas, o mundo se decompoe em sonho e ilusáo, porque nao é
tos, o problema do livre-arbítrio deixa de existir, porque realmente real; nos autos, tudo no mundo é real em funcao
o homem redimido já nao precisa disso. Ñas suas últimas das suas relagSes com a divindade; ñas últimas pegas m i -
pe^as, Calderón prefere com o b s t i n a d o o mundo da mito- tológicas, só é real o que nao pode ser dito, o inefável. Daí
logia paga: paganismo alegórico, mitología puramente de- a renuncia á palavra, e o fim, como no teatro jesuítico, em
corativa. O homem, ilustrado pela ciencia divina (La es- música, em ópera.
tatua de Prometeo), está além das tentagoes, como demons- Um "além Calderón" nao existe. Assim como entre os
tra a dramatízagáo das aventuras de Ulisses em El mayor discípulos de Lope de Vega existem calderonianos avant
encanto el amor; vive num reino ácima da realidade, como la lettre, como Mira de Amescua, assim entre os discípulos
nos jardins de Semíramis (La hija del aire), num mundo de Calderón existem lopistas, que dentro da nova dis-
encantado que já nao é possivel "hacer representable" por ciplina dramática conservara a fórca elementar do gósto
palavras; antes por decoracoes fantásticas, por urna arte popular. Daí a frescura poética, aliando-se ao poder dra-
incrível de cenografia, como no teatro jesuítico, bailados, mático, de Francisco de Rojas ( 7 0 ). Don García del Cas-
fogos de artificio e muita música. tañar, mais conhecido pelo título Abajo del rey ninguno,
Nao há nada que esteja mais longe da Antiguidade é um dos dramas mais fortes do teatro espanhol: o confuto
clássica do que essas pegas de assunto clássico. Os román- do herói que suspeita de amores entre sua esposa e o reí,
ticos sentiam, talvez por isso, Calderón como poeta román- e contudo nao pode vingar-se da pessoa sagrada do mo-
t i c o ; a sua ideología teria sido o catolicismo dogmático narca, parece convencional; mas é realmente trágico, por-
dos autos, e nada mais; e protestantes modernos nao po- que D. García nao se senté capaz, contra todas as con-
diam deixar de ver romantismo fantástico em urna fé táo vengoes teatrais da época, de escolher a outra alternativa
estranha para éles. Para Calderón, porém, o dogma repre- e matar a mulher. Essa inovagao original faz parte, em
sentava a suprema realidade. Nao há nada de subjetivo, Francisco de Rojas, de um sistema de originalidades dra-
sentimental ou arbitrario em Calderón, nada de roman- máticas, surpreendentes: independencia moral da mulher,
tismo; é antes o defeito principal da sua arte a substituicáo sentímento de honra sem fetichismo, superioridade das
do simbolismo pelo realismo intelectualista das alegorías.
Tampouco é fantástico o seu estilo, que assim parecía an- 70) Francisco de Rojas Zorrilla, 1607-1648.
Comedias (1640, 1645: cf. nota 71): D. Garctía del Castañar,
tes de ser bem conhecido e definido o estilo barroco. Con- (Abajo del Rey ninguno); Casarse por vengarse; La traición bus-
tudo, Calderón nao é gongorista. Segundo um apergu ca el castigo; El Caín de Cataluña; No hay ser padre siendo
de José Maria de Cossio ( 0 9 ), cumpriria distinguir tres rey; La viña de Nabot; Donde hay agravios no hay celos; En-
tre bobos anda el juego; Abre el ojo; Lo que son mujeres; etc.
formas da poesía culterana: a de Góngora, a de Jaureguí, Edicáo: Biblioteca de Autores Españoles, vol. IJV.
e a de Calderón. Interpretando-se ideológicamente essa Duas comedias (Cada qual lo que le toca e Viña de Nabot) edit.
distincao, é Góngora naturalista, Jaureguí estoico, Calde- por Am, Castro, Madrid, 1917.
J. Bravo Carbonell: El Toledano Rojas. Toledo, 1908.
E. Cotarelo y Mir: Don Francisco de Rojas Zorrilla. Madrid,
1911.
69) Cí. nota 29. Am. Castro: Prólogo da edicáo citada.
-

792 OTTO MARÍA CAHPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 793

relagÓes f a m i l i a r e s s o b r e as s o c i a i s — é uro h u m a n i s m o cual urna das m a i s f o r t e s t r a g e d i a s d e h o n r a d o t e a t r o e s p a -


diferente do de Ruiz de Alarcón, mas que tampouco deixa n h o l , f o n t e d o Zapatero y rey, d e Z o r r i l l o . O m e s m o p o e t a
d e s e r m a i s h u m a n o d o que t o d a a d r a m a t u r g i a e s p a n h o l a . r o m á n t i c o do s é c u l o X I X t i r o u o e n r e d o da sua pega Trai-
A m é r i c o C a s t r o fala de e r a s m i s m o p o s t u m o , o q u e só dor, inconfeso y mártir, a h i s t o r i a d e u m falso D. S e b a s t i á o
t e m o valor d e urna a p r o x i m a c á o . N a v e r d a d e , n e s s e d i s c í - d e P o r t u g a l , d o Pastelero de madrigal, d e C u é l l a r ( 7 8 ) , m a i s
p u l o d e C a l d e r ó n vivem os i n s t i n t o s p o p u l a r e s e d e m o - urna t r a g e d i a p o d e r o s a : a c o m p a r a c á o da pega c o m d u a s
cráticos de L o p e de Vega, revelando-se também no p o p u - o u t r a s d e e n r e d o p a r e c i d o , o Perkin Warbeck, d o elisa-
l a r i s m o d e pegas b í b l i c a s c o m o La viña de Nabot, n a v i v i - b e t a n o J o h n F o r d , e o Demetrius, do classicista alemao
ficacáo t r á g i c a d a l e n d a c o m o e m Caín de Cataluña, no Schiller, p o d e r i a i l u s t r a r d a m a n e i r a m a i s e x a t a o s i s t e m a
h u m o r i s m o a b u n d a n t e d e c o m e d i a s c o m o Abre el ojo e Lo e a s c o n v e n g o e s d o t e a t r o e s p a n h o l . Urna c o m p a r a g á o
que son mujeres, na verve d e urna c o m e d i a c o m o a fa- assim, p a r t i n d o p o r é m d e p o n t o s d e v i s t a a r i s t o t é l i c o s ,
m o s a Donde hay agravios, no hay celos; mas sempre c o m hoje a b a n d o n a d o s , j á a fez L e s s i n g , n o s é c u l o X V I I I , c o m -
o poder de construcáo calderoniano. Vivendo alguns anos p a r a n d o o Conde de Essex, d e A n t o n i o C o e l l o ( 7 4 ) c o m o
mais, Francisco de Rojas t e n a sido u m d o s maiores dra- Essex f r a n c é s , d e T h o m a s C o r n e i l l e , e o Essex i n g l é s , d e
m a t u r g o s d a l i t e r a t u r a u n i v e r s a l e a s u a o b r a a s i n t e s e de- J o h n B a n k s ; e a tragedia solene, retórica e bem construida
finitiva dos elementos do teatro espanhol. do c a l d e r o n i a n o e s p a n h o l l e v o u v a r i a s v a n t a g e n s sobre a s
o u t r a s , r e a l m e n t e m e d i o c r e s . O u t r a pega d e Coello, Los
Na dramaturgia calderoniana existe u m elemento es-
empeños de seis horas, é t a o p e r f e i t a m e n t e c a l d e r o n i a n a
quemático que é possível a p r e n d e r ; e muitos o aprende-
q u e já foi a t r i b u i d a a o m e s t r e . A o t e r m i n a r o s é c u l o X V I I ,
rán!. É e n o r m e o n ú m e r o d e p e c a s s u p o r t á v e í s o u a p r e c i á -
o teatro espanhol tem aspecto uniforme. O s efeitos ce-
veis d e a u t o r e s s e c u n d a r i o s , d e c o l a b o r a g a o d e v a r i o s " i n g e -
rneos, s e m p r e r e p e t i d o s , e i s t o j á s e m a s i n t e n g ó e s i d e o -
n i o s " ou d e a n ó n i m o s , p e r d i d a s ñ a s g r a n d e s colecóes d a
lógicas de Calderón, d i o aquela mesma impressao que Me-
é p o c a ( " ) . A p e n a s a l g u n s n o m e s s o b r e v i v e m m e l h o r de-
r e d i t h r e c e b e u d o t e a t r o e s p a n h o l i n t e i r o , e q u e A z o r í n ci-
f i n i d o s . H o z y M o t a ( " ) c r i o u e m El montañés Juan Pas-
t o u : " l o p r e c i s o d e l o s c o n t o r n o s c o m o si f u e r a n d e
e s q u e l e t o ; lo r á p i d o d e l o s m o v i m i e n t o s , c o m o si f u e r a n
71) As obras dos dramaturgos espanhóls do sáculo XVII foram edi-
de títere. L a comedia española p u e d e ser representada
tadas com descuido incrível. Na edicao das obras de Lope de
Vega encontram-se numerosas pecas de outros autores; lembra-
se também o caso do volume II das obras teatrals de Tirso de
Molina. Multas pecas de Lope de Vega, Guillen de Castro, Pé- 73) Jerónimo de Cuéllar, f c. 1666.
rez de Montalban, Vélez de Guevara, Mira de Amescua, Fran- El pastelero de Madrigal; Cada cual a su negocio y hacer cada
cisco de Rojas, encontram-se publicadas na colesSo Comedias uno lo que debe.
nuevas escogidas de los mejores ingenios de España, 58 vols., Edicao: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XLVII.
Madrid, 1652/1704. tete grande repositorio é a íonte principal 74) Antonio Coello, 1611-1682.
para o conhecimento dos dramaturgos menores: Coello. Hoz El conde de Essex, o dar la vida por su dama; Los empeños de
y Mota, Cuéllar, Cubillo, etc. seis horas; El celoso extremeño; varias pecas em colaboracfio com
72) Juan de la Hoz y Mota, 1622-1714. outros dramaturgos, p ex., com Calderón: Yerros de naturaleza y
El montañés Juan Pascual, y Primer asistente de Sevilla; El aciertos de la Fortuna.
Abraham castellano y blasón de los Gusmanes; El castigo de ¡a Cl. Biblioteca de Autores Españoles, vols. XIV, XLV LTV.
miseria. E. Cotarelo y Mir: "Don Antonio Coello". (In: Boletín de la
Edicao em: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XLIX. Real Academia Española, 1918/1919.)
794 OTTO MABIA CARPEATJX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 795

por un cuerpo de baile; y el recuerdo que deja su lectura do seu diálogo, ofereceu menores dificuldades de compre-
se define con algo así como el agitado arrastar de muchos ensáo. A sua comedia El desdén con el desdén, finíssima e
pies". Essa crítica acerta apenas no que diz respeito á algo preciosa, poderia ser comparada as comedias de Ma-
última fase da evolucao. Entao já nao era possivel esca- ri vaux; foi traduzida para todas as línguas (as vézes com
par á transformacao da comedia em bailado e ópera. A o título Dona Diana); é urna das poucas comedias espanho-
tentativa de Solís ( 75 ) de aproximar-se da comedia mora- las que conquistaram lugar no repertorio internacional.
lista á maneira francesa nao encontrou sucessores. Só fi- Hoje agrada menos, e a descoberta de que a maior parte
cou a possibilidade de submeter-se conscientemente ao das pegas de Moreto é refundicáo de pegas de Lope de
trend, no sentido de criar comedias intencionalmente Vega e cutres predecessores diminuiu-lhe nao pouco a
irreais, fantásticas. gloria. É algo injusto isso, porque as refundicoes sao quase
Um precursor désse último estilo teatral espanhol é sempre superiores aos origináis, pela elegancia do diálogo
Cubillo ( , e ) . Valbuena Prat, que o redescobriu, compara-o e a musicalidade do ritmo cénico, e porque a obra dramá-
ao diretor de um teatro de bonecos representando num jar- tica de Moreto apresenta varios outros aspectos interes-
dim do Rococó; mas salienta-lhe as qualidades de poeta santes, além da comedia de alta sociedade. El valiente jus-
menor, de gósto requintado. Nao é justo, porém, ver em ticiero é urna tragedia impressionante; La adúltera peni-
Moreto (**) apenas um dos representantes do mesmo estilo tente, urna das melhores comedias de santos do teatro es-
dramático. Quando, no coméco do século XIX, os román- panhol ; Trampa adelante e El lindo Don Diego sao come-
ticos descobriram o teatro espanhol, ainda incapazes de dias de irresistivel efeito cómico. Apenas, Moreto nao dá
distinguir bem personalidades e correntes, entusiasmaram- as suas pecas rcalidade dramática. T u d o é jógo de imagi-
se por Moreto, talvez porque o estilo urbano, meio clássico, nacáo, se bem que nao fantástico e sim regulado pelas nor-
mas estritamente lógicas da dramaturgia calderoniana.
75) Antonio Solis y Rivadeneyra, 1610-1686.
CI. nota 36. O salto para a pura fantasía foi dado por Bances Can-
damo ( 7 8 ), outra descoberta de Valbuena P r a t : t um dos
78) Alvaro Cubillo, c. 1596-1661.
Las muñecas de Marcela (1636); El Señor de Noches Buenas últimos poetas gongóricos e, ao mesmo tempo, um dra-
(1654);. etc. maturgo que reúne a música verbal de Góngora e a ceno-
Edlc'ao por A. Valbuena Prat (Clasicos olvidados, vol. JH). Ma- grafia fantástica das pegas mitológicas de Calderón. Hoje,
drid, 1928. a sua arte esquisita é capaz de impressionar críticos exi-
E. Cotarelo: "Alvaro Cubillo". (In: Boletín de la Real Academia gentes. Na época, outra arte, mais suntuosa e mais fan-
Española, V, 1918.)
77) Agustín Moreto y Cavana, 1618-1669. tástica, venceu no palco a palavra: foi a ópera ( TB ). Nos pri-
Trampa adelante; El lindo Don Diego; El licenciado Vidriera;
El valiente justiciero; La vida de San Alejo; La adúltera peni- 78) Francisco Antonio de Bances Candamo, 1662-1704.
tente; Los siete durmientes; El desdén con el desdén; La con- Poemas: El César Africano; Canción del Tajo.
tusión de un jardín; Caer para levantar; Primero es la honra; Pecas: La piedra filoso/al; El esclavo en grillos de oro; El
La ocasión hace al ladrón; etc. rapto de Elias.
Edlcao: Biblioteca de Autores Españoles, vol. 3QE3EDC F. Cuervo Arango: D. Francisco Antonio de Bances Candamo,
A. Gassier: Le théátre espagnol. San Gil de Portugal de Moreto. estudio biográfico y critico. Madrid, 1916.
2.» ed. París, 1898.
R. Pérez de Ayala: Las máscaras. Vol. XX. Madrid, 1919. 7B) E. Cotarelo y Mir: Orígenes y desenvolvlmento de la ópera en
R. Lee Kennedy: The Dramatic Art oj Moreto. Philadelphia, 1932. España hasta 1800. Madrid, 1917.
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796 O T T O MARÍA CARPEAUX

meiros anos do reinado da casa de Bourbon, o soberano do


teatro espanhol foi o castrado italiano Cario Farinelli. Com
ele e depois vieram os compositores italianos, os Caldaras,
Contis, Domenicos Scarlatti, Galluppis; e quando se preci-
sou de palavras, encomendaram-nas a Metastasio. O mes-
mo fenómeno — a vitória da ópera italiana — foi menos
sentido na própria Italia e em Portugal, porque estes paí- CAPITULO III
ses nao possuíam teatros nacionais. Mas "a destruiglo do
teatro nacional pela influencia nefasta da ópera italiana" PASTURÁIS, EPOPÉJAS, EPOPÉIA HERÓI-CÓMICA
nao passa de um lugar-comum da historiografía literaria, E ROMANCE PICARESCO
romántica, antes da redescoberta do Barroco. A própria
índole da literatura barroca é dramática, ou melhor:
ópera italiana constitui a última fase do teatro barroco,
conseqüéncia lógica e fatal das premissas do teatro da Con- A teatral. No centro da civilizagáo barroca está o teatro.
É síntoma dísso a transformagao, que comega por volta de
tra-Reforma; o teatro jesuítico também acabou na ópera,
fim que ao teatro espanhol estava predestinado desde a 1580, do romance pastoril em drama pastoril: Arcadia e
transformagao do teatro popular pela sintese de Lope de Diana sao substituidas por Aminta e Pastor fido e as suaa
Vega. Foi a conseqüéncia lógica de urna aspiragao j u s t a : numerosas imitagóes. O drama pastoril, sem grande im-
o teatro da Contra-Reforma é a "representagao", o "hacer portancia na Renascenga, é urna das expressoes mais tí-
representable" da poesia culterana, que aspirava a trans- picas do Barroco: o emprégo da forma dramática, t í o
formar a língua em música verbal e enfim em música. impropria para exprimir o desejo do idilio, da evasáo,
é produto das mesmas tendencias de "representagao viva"
que se impuseram ao teatro católico dos jesuítas e es-
panhóis; mas a forma dramática serve aos poetas aristo-
cráticos do drama pastoril para exprimir o hedonismo,
recalcado pelas exigencias moralizadoras da Contra-Re-
forma. O drama pastoril é um hiño, por assim dizer,
clandestino, ao amor livre na idade áurea dos pastores e
ninfas.
O romance poético nao desaparece por isso. Ao con-
trario, Tasso, o criador do drama pastoril, sacrificara a
vida á criagao da grande epopéia; e todo o século X V I I
Ihe acompanha o esfórgo, acumulando inúmeras epopéias
heroicas e sacras; o valor literario dessas produgoes é qua-
se nulo. Do cruzamento entre romance pastoril e epopéia
heroica nascerá, enfim, outro género, aínda pior: o ro-
mance heróico-galante. Mas éste já prepara o romance
psicológico.
I

798 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 799

As tendencias antitéticas dentro do Barroco produzem, A pré-história da "favola pastorale" ( ' ) percorfeu va-
ao mesmo tempo, o drama pastoril e novas formas do ro- rias fases curiosas. Cenas pastoris aparecem primeiro nos
mance. E entre essas novas formas encontram-se duas que Misterios medievais relativos ao Natal; sao famosos os
parecem até "oposicionistas" — a epopéia herói-cómica e dois Shepherds' Plays do "Towneley cycle"; e cenas seme-
o romance picaresco — porque pouco compatíveis com o Ihantes encontram-se ñas "Rappresentazioni sacre" italia-
aristocratismo da época. A epopéia herói-cómica zomba nas. Os pastores da noite de Natal foram substituidos por
das pretensoes aristocráticas, pseudo-heróicas, invocando o pastores pagaos na Progne, de Gregorio Correr, dramati-
bom senso burgués; o romance picaresco revela a miseria zacáo de urna metamorfose de Ovidio. Aínda por muito
popular na base da sociedade aristocrática; e o romance tempo, Ovidio continuava fonte de enredos da poesía pas-
picaresco será, através de Cervantes e Defoe, o precursor toril, fato relacionado com o erotismo do género. O Sa-
crificio (1557), de Agostino Beccari, é a primeira das va-
do romance moderno, em cuja árvore geneológica também
rias tentativas esquisitas de ressuscitar, por meio da "fa-
aparece — lembra-se o caso de Fielding — a epopéia herói-
vola pastorale", a tragedia grega, no sentido aristotélico
cómica. Pelo racionalismo subversivo da crítica, pelo ma-
em que foi entáo interpretada: confuto e complicacáo por
terial utilizado e pelas conseqüéncias, os dois géneros pa-
equívocos, reconhecimento de urna personagem que se jul-
recem antibarrocos, expressoes de urna oposisáo, burguesa
gava perdida, catarse e solucao. Pela "favola pastorale"
ou popular, que já anuncia o século X V I I I e até a Revo- os críticos contemporáneos acreditavam restaurada a tra-
lucáo. Mas isso é mera aparéncia. Varias vézes os autores gedia de Sófocles. Mas, na verdade, o moralismo da so-
de epopéias herói-cómicas também escreveram epopéias se- lucao final servíu bem para justificar o erotismo livre da
rias — assim Lope de Vega, Brébeuf, Saint-Amant — e vida na "natureza", e isso era importante para os teóricos
muitos sao literatos a servico de cortes; o Hudibras, de aristotélicos do "hedonismo inocente". A mais famosa e
Samuel Butler, é até sátira contra a burguesia puritana, mais discutida tragedia "aristotélica", a Canace, de Spe-
em nome da Restaurasao vitoriosa dos Stuarts. O racio- roni, foi o modelo imediato do suave Aminta, do seu amigo,
nalismo da epopéia herói-cómica nao ataca o ideal heroico, Tasso.
mas o abuso que déle fizeram representantes lamentáveis e
ridiculos; é racionalismo barroco, nao racionalismo da Ilus- O Aminta, de Tasso ( 2 ), é hoje lido sómente para fins
tracáo. Enfim, o romance picaresco dá a impressao de crítica eruditos e em trechos seletos, ñas escolas. O descrédito da
subversiva, porque a miseria popular e as injusticas sociais obra, outrora famosíssima na Europa inteira — só em lín-
lhe fornecem o assunto. No fundo, porém, um Mateo Ale- gua francesa havia 20 traducóes — nao é j u s t o ; mas a sen-
mán, acusando a sociedade, nao se revolta; profunda demais tenga da historia parece inapelável. O Aminta pode ter
é no picaro a conviccáo da corrugáo irremediável de todas valor; mas o género é falso e morto. O enredo — Aminta,
as instituicoes humanas, de modo que só lhe resta a re-
1) P. de Bouchaud: La pastorale italienne. París, 1920.
signacáo estoica, elemento caracteristico da mentalidade
2) Sobre Torquato Tasso, cf. nota 11.
barroca. Drama pastoril, epopéia heroica, epopéia herói- Aminta (1573).
cómica e romance picaresco sao tentativas independen- Edisoes por A. Solerti, Torlno, 1901, e por O. Lipparini, Milano,
1925.
tes, mas paralelas, de resolver conflitos barrocos com
G. Caduccl: SulVAminta del Tasso saggi tre. Firenze, 1896. (Ope-
meios de expressao barrocos. re, vol. XV.)
800 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 801

apaixonado pela pastora Silvia, que nao quer saber nada do porque naquela época fabulosa nao existia
amor, conquista-a por urna serie de intrigas — é da maior
banalidade. A "filosofia" do idilio é um lugar-comum ho- " quel vano
raciano, o "Carpe diem!", enfeitado corn descricóes román- Nome senza soggetto,
ticas da natureza e alusoes meio lascivas. A falsidade da Quell' Ídolo d'errori, idol d'inganno:
vida e dos diálogos de cortesáos, disfarcados em pastores, Quel che da '1 volgo insano
é evidente. Apesar de tudo isso, é o Aminta urna obra de Onor poscia fu detto,
arte requintadíssima, ou antes, urna verdadeira maravilha Che di nostra natura il feo t i r a n n o . . . "
de arte, se bem que nao de ordem dramática e sim de or-
dem lírica. As numerosas reminiscencias de literatura an- E se nao fósse essa Honra, o "tirano do vulgo", e n t i o re-
tiga sao transfiguradas por urna música verbal que nao se vigoraria a
encontra nos origináis, transformando-se, por exemplo, o
" legge áurea e felice,
"Deus nobis haec otia fecit", de Virgilio, em
Che Natura scolpl i S'ei piace, ei lvce."

" O Dafne, a me quest' ozio ha fatto Dio". Evidentemente, é a revolta de um espirito anárquico con-
tra a ordem aristocrática, encarnada no conceito "Honra",
A música verbal chega á culmináncia nos coros, tais como e a revolta do amor livre contra o moralismo da Contra-
o famoso "O bella etá de T o r o . . . " , mas justamente éste Reforma, mas consciente de que
coro revela que nao se trata de mera música verbal. O li-
rismo de Aminta é resultado de conflitos numa alma sensi- " il mondo invecchia,
tiva e angustiada. Aquéle coro parece, mais urna vez, adver- E invecchiando intristisce."
tir da brevidade da vida humana e aconselhar o amor como
Nessa melancolía decadentista do idilio sensual reside o
ele foi na idade áurea:
encanto lírico do Aminta.
O sucesso gerou as imitacoes, e entre elas há outra
"Amiam; che '1 sol si muore e poi rinasce;
grande obra de arte, injustamente caluniada: o Pastor íido,
A noi sua breve luce
de Guarini ( 3 ). É realmente urna imitagáo: a pastora Ama-
S'asconde, e '1 sonno eterna notte adduce."
rillis, infeliz porque Mirtillo nao quer ouvir falar de amor,
é uro Aminta feminino; as reminiscencias tassianas s i o nu-
A essa imagem noturna, o poeta opoe a recordasao "pla-
merosas e evidentes; o mesmo petrar"quismo pseudoplató-
tónica" da
nico, mal escondendo a lascivia que vai, no Pastor íido, até
" bela etá de l'oro!
Non giá perché di latte 3) Giambattlsta Guarini, 1638-1612.
II Pastor /ido (1690); Rime (1598).
Se *n corsé il fiume, e stilló melé il bosco; Edisáo por G. Brognoligo, Bari, 1914.
Non perché i frutti loro V. Rossi: Giambattista Guarini e il Pastor Fido. 2.» ed. Tori-
Dier, da l'aratro intatte, no, 1926.
M. Marcazzan: "Guarini e la tragicomedia". (In: Critica e
Le t e r r e . . . " ; Storicismo. Bergamo, 1945.)
802 OTTO M A R Í A CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 803

a alusoes obscenas. A falsidade pastoril é a mesma; o es-


marittime", Scipione Di Manzano (Aci, 1600) e Francesco
tilo, porém, diferente: o lirismo musical substituido por Bracciolini (Ero e Leandro, 1630). O tipo comum foi cul-
urna "música de concetti" gongoresca. Os pastores de Gua- tivado por Chiabrera (Alcippo, 1604) e Giulio Malmignati
rini já falam como poetas culteranos. Em compensacáo, (Ciorindo, 1604). A arríere-pensée escondida no género
tém mais que dizer do que os pastores de Tasso: Guarini é manifesta-se pela última vez nos Filli di Sciro, de Bona-
um psicólogo requintado do amor. O enredo da sua "fa- relli ( 5 ) : o amor simultáneo de urna moca a dois pastores
vola" é complicado pela intervencao de oráculos e do Fado, foi motivo de censuras e de entusiasmos. Enfim, as possi-
discutindo-se de maneira quase calderoniana o livre-arbí- bilidades "rústicas" do género salvam, de certa maneira, a
trio, e pela intervencao do amor vicioso da meretriz urbana Rosa, de Córtese ("). que nao atravessou as fronteiras da
Corisea, contraste eficiente com o erotismo indecente, mas península porque estava escrita em dialeto napolitano.
inocente, dos pastores. Essas c o m p l i c a r e s dáo a Guarini Nisso, e na observacao dos costumes dos camponeses da
oportunidade de realizar qualquer coisa como urna trage- regiáo de Ñapóles — assim como no atraente poema dia-
dia fatalista, e de salvar, solenemente, o conceito cristáo letal de Córtese, a Vajasseide — reside a originalidade re-
do matrimonio. As aparéncias religiosas justifican! o na- lativa de Rosa.
turalismo erótico, e os contemporáneos falavam em novo
O drama pastoril conquistou a Europa inteira. Na Ee-
Sófocles ou Séneca. Leitores modernos, enquanto o Pastor panha, escreveu Lope de Vega o Verdadero amante, e fez
fido fór capaz de encontrá-los, chamar-lhe-iam antes "ópera" Jaureguí urna traducao magistral do Aminta. Na Franca
sem música. Mas Guarini é superior a todos os libretistas ( 7 ), foram famosas a Silvie (1621), de Jean de Mairet, as
na arte de conduzir o fio dramático. Nao é, como De Sanctis Bergeries (1618), do malherbiano Honorat de Racan, a
o acusou, o precursor da musicalidade vazia de Metastasio; Amaranthe (1631), do "précíeux" Gombauld; Alexandre
é o primeiro e maior dramaturgo barroco da Italia. Um crí- Hardy, considerado como precursor de Corneille, deixou
tico tao severo e de tao pouca compreensáo do Barroco como ainda um Alcée.
August Wilhelm Schlegel chamou ao Pastor fido "pro- Os ingleses, como sempre, souberam assimilar de ma-
ducao inimitável", grande pelas qualidades cénicas. O neira mais perfeita o género estrangeiro ( s ) . Mais urna vez,
Aminta fóra um poema lírico dialogado. O Pastor fido
ensinou á Europa inteira a arte barroca de resolver, por 5) Guidobaldo Bonarelli della Rovere, 1563-1608.
Filli di Sciro (1607).
meio de efeitos teatrais, problemas que já era desaconse-
G. Campoll: Commentario della vita e delle opere di Ouldobaldo
lhável discutir. Bonarelli. Modena, 1875. .
B. Ottone: La Filli di Guidobaldo Bonarelli e la poética del
A "favola pastorale" italiana (*) esgotou-se na imita- dramma pastorale. Ferrara. 1931.
cao dessas duas obras-primas. Lembrando-se das églogas 6) Glullo Cesare Córtese. 1571-1627.
piscatorias, Antonio Ongaro transformou, no Alceo (1581), Rosa (1621); poema rustico Vajasseide (1621).
A. Ferolla:
XVII. Napoll,Giulio
1907. Cesare Córtese, poeta napoletano del secólo
os pastores em pescadores; escreveram semelhantes "favole
7) J. Marsan: La pastorale dramatique en France á la fin du XVle
4) A. Mazzolenl: La poesía drammatica pastorale in Italia. Ber- siécle et au commencement du XVIIe siécle. París, 1905.
gamo, 1888. I) W. W. Greg: Pastoral Poetry and Pastoral Drama. London,
E. Carrara: La poesía pastorale. Milano, 1909. 1906.
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804 OTTO MARÍA CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 805

Lyly aparece como precursor das formas barrocas: a sua terconfessional a literatura do sáculo X V I I ; a causa do
Gallathea é de 1584. O estilo italiano ainda prevalece na fenómeno é a uniformidade do espirito aristocrático em
Queen's Arcadia (1605), de Samuel Daniel. Mas nao é cos- todas as sociedades barrocas. O drama pastoril exprime
tume lembrar As You Like Jt e Wintefs Tale, de Sha- urna das n e c e s i d a d e s imperiosas dessa aristocracia, já pri-
kespeare, entre a descendencia do Aminta, porque nessas vada do poder político: a evasao para o idilio. A outra
comedias deliciosas o género já está perfectamente angli- forma de fuga, para o heroísmo ilusorio, é a epopéia bar-
cizado. Em The Sad Shepherd or a Tale of Robín Hood roca. Nao foi por acaso, evidentemente, que o mesmo poeta
(publ. 1641), Ben Jonson transforma a Arcadia em paisa- Tasso, criou os modelos de ambos os géneros, o Aminta e
gera inglesa e os pastores estilizados em camponeses da a Gerusalemme iiberata.
fronteira da Escocia. As mais belas pastorais inglesas,
Torquato Tasso ( " ) é dos poetas mais famosos da lite-
além das de Shakespeare, sao The Faithful Shepherdess
ratura universal. Os séculos passados compararam-no a Ho-
(1609), de J o h n Fletcher, e o Amynthas (1633), de Tho-
mero, Virgilio e Dante; e havia quem gostasse de colóca-
mas Randolph ( 9 ), éste em estilo italiano, brilhante. O
lo ácima déstes; foi o último grande poeta da literatura
fim dessa evolucáo assimiladora é o Comus (1634), de Mil-
italiana que exerceu influencia na Europa inteira. Foi
t o n : o classicismo de Guarini, em magníficos versos in-
considerado como "o último grande clássico". Também n3o
gleses, a servido da moral puritana.
foi por acaso que Goethe o celebrou na tragedia Torquato
O drama pastoril, que exige artificios sutis de estilo
11) Torquato Tasso, 1544-1595. (Cf. nota 2.)
e metrificagao, prestou a varias literaturas européias o Rinaldo (1562); Aminta (1573); Gerusalemme Iiberata (escr. até
grande servigo de polir-lhes a lingua. A literatura holan- 1575. publ. 1581); Rime (1582); Torrismondo (1587); II mondo
desa passou, com duas obras-primas do pastoril dramático, creato (1592); Dialoghi (1580/1592); Gerusalemme conqulstata
(1592); Rime (1592/1593); Intrighi d'amore (1604).
da Renascenca ao Barroco: da Cranida (1605), de Hooft, Edlcóes: Gerusalemme Iiberata por A. Solerti, 2 vola., Flrenze,
aos Leeuwendalers (1648), de Vondel. A tradúcelo do Pastor 1895/1896, e por L. Bonflgll, Barí. 1930.
{ido (1678) por Hofmannswaldau marca época na historia Gerusalemme conquistata por L. Bonflgll, 2 vols. Barí, 1830.
da lingua poética alema. ( 1 0 ). A traducao do Pastor íido Rime por A. Solerti. 2 vols., Bolognft. 1898/1902.
Teatro por G. Caduccl. Bologna, 1895.
(1695) por Dalhstierna é urna data da literatura sueca. Dialoghi por C. Ouastl. 2 vols.. Firenze, 1858/1859.
Déste modo, o drama pastoril, forma do Barroco con- F. D'Ovldlo: Saggi critici. Kapoll, 18TO.
G. Carducci: cí. nota 2.
tra-reformista que chegou a integrar-se no Barroco pro- A. Solerti: Vita di Torquato Tasso. 3 vols. Torlno, 1898.
testante, é urna das fórgas que tornaram internacional e in- A. Salnatl: La Úrica di Torquato Tasso. 2 vols. Pisa, 1912/1915.
G. Bonanni: Saggio sullo spirito lírico'del Tasso. Flrenze, 1913.
A. Marenduzzo: La vita e le opere di Torquato Tasso. Llvorno,
9) Thomas Randolph. 1605-1635. 1916.
Poema and Amyntas (1638). G. B. Cervellinl: Torquato Tasso. 2 vols. Messlna, 1918/1920.
Edlcao por W. C. Hazlitt, 2 vols.. London, 1875. E. Donadonl: Torquato Tasso. 2 vols. Flrenze, 1921.
K. Kottas: Thomas Randolph, sein Leben und ieine Werke. w. p. Ker: Tasso. London, 1925.
Wlen, 1909. L. Tonelli: Torquato Tasso. Torlno. 1935.
O. C. Moore Smlth: "Thomas Randolph". (In: Proceedings of the C. Prevltera: La poesia e Varte di Tasso. Messlna. 1936.
British Academy, 1827.) G. Natal!: Torquato Tasso. Roma, 1943.
10) h. Olschkl: Giambattista Guarinl's Pastor íido in Deutschland. G. Getto: lnterpretazione del Tasso. Napoll. 1951.
Leipzig, 1908. B. T. 0 M S : Studi sul Tasso. Pisa, 1954.
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l
Tasso. A sua gloria sobreviveu ao classicismo pela roman- o heroísmo convencional, as intervengoes supranaturais, a
tizagao da sua vida: os anos de cortesao na brilhante corte retórica retumbante. Na Gerusalemme Iiberata, tudo isso
renascentista de Ferrara, o amor á princesa Eleonora, a é mais fastidioso que em outra qualquer grande epopéia,
loucura e a prisao, as perseguigoes da Inqüisigáo, o crepús- porque a "máquina" é tomada muito a serio: Tasso esco-
culo melancólico, á sombra dos carvalhos seculares do con- lheu como assunto urna facanha de cavalaria com objetivo
vento de S. Onofre em Roma — que assunto para trage- religioso — a conquista de Jerusalém pelos cruzados —
dias e novelas románticas, das quais existe número consi- desejando que a sua epopéia fósse considerada como ver-
derável! As pesquisas biográficas nao confirmaram todos dade histórica e profissáo de fé; mas a sua obra nao é nem
os tópicos da biografía romanceada, e é muito significativo urna nem outra coisa, e as censuras dos críticos seus con-
o fato de Tasso nao se haver tornado vítima de nenhum dos temporáneos e as da Inqüisigáo nao eram de todo infun-
modernos biógrafos profissionais. Aquéle romantismo já dadas. Tasso, assim como falseou o espirito dos cruzados,
nos deixa frios. O nome de Tasso continua famosissimo; transformando-os em "cortegiani" renascentistas, assim
mas já no tricentenario da sua morte, em 1895, o crítico também substituiu as expressóes da fé medieval pela poeti-
italiano Enrico Thovez protestou contra "o culto de Tasso zagao requintada da mentalidade contra-reformista, nao
ñas escolas"; e hoje nao se sabe bem se Tasso continua a sem falhas quanto ao moralismo imposto. Nao é possível
ser lido em qualquer outro lugar fora das escolas. E m duvidar da sinceridade religiosa de Tasso; o seu poema II
parte é isso urna reagáo saudável: Tasso estava supervalo- mondo creato, imitagáo da Semaine, de Du Bartas, com ver-
rizado, de maneira pouco justificável; mas contra a injus- sos polémicos contra o ateísmo epicureu e a indiferenga
tiga nao adianta outra injustiga. religiosa dos humanistas, é urna obra pouco feliz, mas sin-
cera. Resta, pois, sómente a solugáo de que Tasso estava
As epopéias nao estáo na ordem do dia, já há muito engañado a respeito de si mesmo. Considerava como de-
tempo, e ninguém lera, sem obrigagáo ou imposigáo, a Ge- vogao e penitencia o que era apenas angustia e melancolía.
rusalemme Iiberata de ponta a ponta. Mas certos episodios, Tasso era, por natureza, melancólico e algo místico: na sua
lidos separadamente, surpreenderáo sempre pelo lirismo obra encontram-se versos bem románticos como nao ocor-
intenso; estío neste caso os episodios de Olindo e Sofro- rem em nenhum outro poeta da época —
nia, Rinaldo no jardim encantado de Armida, Erminia en-
tre os pastores, Tancredo e Clorinda. No poema sao nu-
merosos os versos de extraordinaria beleza, e a literatura " come usci la notte e sotto l'ale
universal tornar-se-ia lamentávelmente pobre se renun- Meno il silenzio e i brevi sogni errante..." — ;
ciássemos a tudo isso e a tudo mais que nao está em
e já se observou que Tasso é um poeta da noite; noturnas
"moda". Ao grande crítico italiano Attilio Momigliano,
•fio as grandes cenas da epopéia. Resulta urna interpre-
duramente perseguido e humilhado durante os últimos
tagáo romántica da poesía de Tasso, correspondente á in-
anos do regime fascista, serviu como suprema consolagáo a
terpretagáo romántica da sua vida: até 1575, na época do
literatura de Dante e de Tasso. Urna releitura atenta inspi-
Aminta, Tasso teria sido poeta de idilios melancólicos, nos-
rará a qualquer espirito sem preconceitos nova admiracáo.
tálgicos, da Renascenga; depois, as experiencias eróticas e
O que pouco nos agrada na Gerusalemme Iiberata é,
•ociáis e o rr.édo á Inquisigáo te-lo-iam precipitado na me-
como em todas as epopéias classicistas, a "máquina" épica,
lancolía dos escrúpulos teológicos e moráis, até surgir a
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loucura. Por fim, Tasso comegou a duvidar do valor da mió ("In aspro esilio e'n dura Povertá"). Tasso tem so-
sua poesía e da razáo de ser da poesía em geral. Déste netos dos melhores em língua italiana. É grande poeta
modo, o caso de Tasso é síntoma do fim do mundo de be- quando nao é sutil ou retórico, cedendo ao gósto do tro-
leza da Renascen$a, sucumbindo á reagáo eclesiástica, e, cadilho espirituoso. A tragedia Torrismondo, transposi-
por isso, é Tasso o último grande poeta "clássico". gao da historia de Édipo para urna Escandinávia fantástica,
Realmente, Tasso é um grande poeta da melancolía. é urna tragedia de horrores, mais próxima de Calderón do
Mas o sentimento de decadencia encontra as suas expres- que das aspiragoes sofoclianas dos contemporáneos. A co-
soes mais perfeítas justamente no Aminta. Ali, o poeta la- media Intrighi d'amoie, de autoría algo incerta, mas que
menta a sua época, porque já passou a Idade Áurea do foi pelo menos esbozada por Tasso, nao tem semelhanca
amor livre e do anarquismo moral ("S* ei piace, ei lice") nenhuma com as comedias plautinas da Renascenga; antea
( i a ) . Eis a verdade psicológica de Tasso: a sua melancolía se parece com Tirso de Molina. A Gerusalemme conquis-
é o reverso de dése jos libidinosos, recalcados. A contradi- tata, segunda versáo da "liberata", distingue-se, nao com
gao íntima entre a sua natureza e o ambiente moral da Con- vantagem, pela observacáo ortodoxíssima das pretensas re-
tra-Reforma desvirtuou-lhe as expressoes religiosas, fez gras aristotélicas. Os Dialoghi, discussoes agudas em es-
das foreas divinas e demoniacas, na Gerusalemme liberata, tilo magnífico sem vestigios de haverem sido escritas no
urna "máquina" t í o pouco seria como os deuses olímpicos manicomio, sao tratados neo-escolásticos em forma de diá-
ñas epopéias renascentistas. A Gerusalemme liberata, como logos platónicos. Toda a obra de Tasso é um imenso ar-
conjunto, pode ser falha; subsistem, como valores estéti- tificio do seu virtuosismo técnico, pecando contra a sua
cos, porém, a sensualidade pouco velada do episodio do natureza poética. A forma clássica da epopéia era para
jardim de Armida, o erotismo melancólico de varios outros Tasso vaso de urna teología escolástica, sem a fé profunda
episodios, e o caráter do herói Tancredo, personagem quase de Dante, e de um lirismo fantástico sem a harmonía de
shakespeariano, auto-retrato do poeta. O que parecía aos crí- Ariosto. Esta síntese de teología e fantasía é bem caracte-
ticos contradicao entre sentimento romántico e forma clás- rística da atmosfera da Contra-Reforma. A melancolía de
síca é na verdade o espirito antitético do Barroco. Tasso é a de urna fase de transicáo, mas nao da transigao
da Renascenga para a Contra-Reforma, e sim da Contra-
A esséncia barroca da arte de Tasso revela-se bem cla-
Reforma para o Barroco. A poesía de Tasso nao é um mun-
ramente pela comparadlo estilística com Ariosto (**), Onde
do completo; é um mundo episódico, urna "selva incantata"
Tasso chega a libertar-se das regras classicistas que se im-
como a da Armida. Nesta floresta encantada há muitas
puseram á poesía épica, nao volta ás formas renascentistas,
imagens lascivas e muitos suspiros melancólicos — "lán-
mas revela-se marinista avant la lettre. Quanto á sua
guido" e "dolci lamenti" sao palavras preferidas por Tasso.
poesía lírica, nao é justo 1er apenas as pegas anacreónticas
Naquela "selva incantata" há toda a especie de poesía, me-
que estáo em todas as antologías — " T u parti, o rondinela"
nos urna: a heroica que Tasso pretendeu escrever. Há na
e "Vago angellin, che chiuso" — ou só as odes emo-
Gerusalemme liberata um trecho revelador: as armas de
cionantes que escreveu na miseria da prisao e do manicó-
Rinaldo estáo suspensas nos ramos de urna árvore, mas o
vento que as toca produz, em vez de fanfarras guerreiras,
12) Cí. nota 2.
urna doce música. O mundo poético de Tasso é o mundo
13) Th. Spoerrl: Renaissance und Barock bei Ariost una Tasto.
Zuerich, 1922.
•^

HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 811


8 1 0 OTTO MARÍA CARPEAUX

musical do Barroco. Em nenhum tempo e em nenhuma ram a pulular onde o processo político-social se iniciara :
parte a poesia de Tasso foi tao bem compreendida como na Italia; responde-lhes, do ponto de vista do bom senso
na época em que, conforme urna lenda nao verificada, os burgués, a epopéia herói-cómica, que sómente na Italia con-
gondoleiros de Veneza lhe recitavam e cantavam as cañ- seguiu algumas producoes de valor superior, porque só na
ones; quem afirmava té-Ios ouvido assim, foram, no coméco Italia o cepticismo popular contra os heroísmos espeta-
do século XIX, os poetas románticos. culares já contava com urna tradicáo de séculos, tendo en-
contrado a sua expressáo mais antiga na Entrée d'Espagne,
O elemento lírico-musical, essencialmente antiépico,
e a mais perfeita já em Pulci. Quando a aristocracia fran-
é o que distingue a Gerusalemme liberata das inúmeras
cesa se aproxima do mesmo destino que a italiana — nao
epopéias do século X V I I . E n t r e os muitos cemitérios me-
pela dominacao estrangeira, mas pelo absolutismo monár-
lancólicos da literatura universal é éste o maior, e só será
quico — comega em Franca a voga das epopéias, se bem
superado em extensao quando, um dia, o romance moder-
que em forma diferente e em prosa: é o romance heróico-
no, como género, se extinguir. A epopéia heroica e sacra
galante. Mas ésse género nao sobrevive á vitóría da lite-
do século X V I I constituí urna das advertencias mais se-
ratura classicista de Luís XIV, "ce grand roí bourgeois";
rias quanto á vaidade de todos os esforcos humanos. Mes-
apenas se guardam as aparéncias aristocráticas, do mesmo
mo sem falar da impossibilidade de 1er aqueles produtos
modo que a corte do monarca nao deixa influenciar o seu
insípidos, é quase impossível imaginar e explicar a obsti-
estilo de vida pelo mercantilismo de Colbert e pelo abur-
nacao de tanta gente seria — estadistas, sacerdotes, magis-
guesamento da administragio e da Justiga. A antítese ex-
trados, eruditos — em sacrificar anos e vidas inteiras es-
plícita do romance heróico-galante é o romance picaresco;
crevendo milhares e milhares de versos que logo se trans-
como a epopéia herói-cómica, nao é crítica social; é tam-
formaram em papel de embrulho. A paciencia désse es-
bém expressáo de urna atitude antiaristocrática em face
fórco é um problema psicológico que só será possível re-
da vida. Mas nao é a atitude de bom senso do burgués, e
solver por meio de futuras análises da mentalidade do ho-
sim a resignagao estoica do plebeu.
mem barroco. Mas, quanto ao problema de sociología li-
teraria, nao há dúvida de que aquela obstinacao também
Resignagao estoica é, alias, necessária para percorrer
devia ter motivos profundos. Urna religiosidade imposta
aquéle cemitério de epopéias. Apenas se pretende demons-
pela fórga precisava de profissóes de fé explícitas, menos
trar a quantidade dessa literatura e, com isso, a sua fungáo
da parte dos hipócritas do que da parte dos que aderiram
social.
sinceramente sem ter certeza íntima da sua própria sin-
A epopéia sacra pertence ao número daqueles géneros
ceridade. Na epopéia de Tasso, o assunto religioso estava
que tém precursores na literatura internacional em língua
ligado ao heroico, e em muitas imitacoes também é impos-
latina. A Christias (1535), do virgiliano Girolamo Vida, e
sível distinguir nítidamente a prioridade do motivo reli-
o fragmentario Joseph, de Girolamo Fracastoro (1483-
gioso ou do motivo heroico. Mas o número das epopéias
1553), que também cantou, em poema didático, os horrores
heroicas "sans phrase" é muito maior. A aristocracia es-
e remedios da sífilis, pertencem á Kenascenga; dúvidas
tava despojada do poder político, deixando-se-lhe, porém,
estilísticas podem subsistir relativamente ao Vincentius,
todas as aparéncias de classe privilegiada; as epopéias d*
do jesuíta portugués Luís André de Resende ( t 1573).
heroísmo ficticio sao o reflexo dessa situacao. Comeca-
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Mas a Sarcotis, do jesuíta alemao Jacobus Masen (1606- sacra e epopéia heroica como as tentativas francesas ( 1B * A ),
1681), já é bem barroca. Influencias colaterais sao repre- o Moyse sauvé (1653), do insincero Saint-Amant, alias nao
sentadas pelo lirismo bíblico das Lagrime di San Pietro a pior entre essas obras, e o Clovis, ou La France chré-
(1S8S), de Luigi Tansillo, acompanhadas pelas Larmes de tienne (1657), de Jean Desmarets de Saint-Sorlin ( i a ) , que
Saint-Pierre (1587), de Malherbe, e Saint Peter"s Complaint já antecipa, de longe, a Henriade, de Voltaire; parte das
(1595), do jesuíta inglés Robert Southwell — e, de outro epopéias francesas servem o patriotismo monárquico que
lado, pela poesía bíblica narrativa da Semaine (1578), de Du Richelieu e Mazarin fomentaram. E o Saint-Paul (1654), de
Bartas, e o Mondo creato (1592), de Tasso. A ésses tipos Antoine Godeau.
pertencem ainda as Lagrime della Veigine (1618), de Ro- A evolucáo mais surpreendente dá-se na Inglaterra. Os
dolfo Campeggi, e a Creazione del mondo (1609), de Gas- coméeos sao típicamente barrocos: a Theophüa (1652), de
pare Murtola. O exemplo de Tasso inspira aos poetas a Edward Benlowe, e a Davideis (1656), de Abraham Cowley
coragem de tratar um assunto sacro como se fósse heroico: ( 16 " A ). Surge, logo depois, o Paradise Lost, de Milton,
primeiro na Ester (1615), de Ansaldo Ceba; depois, na me- com o qual o género acaba; mas com "gloria ¡n exceliis".
lhor obra do género, a Strage degli innocenti (publicada A epopéia sacra falhou em toda a parte onde o assunto
em 1633), do próprio Giambattista Marino C*)< 1 u e trata foi imposto; só venceu no país do inconformismo religioso.
da chacina dos inocentes em Belém, com todo o sadismo
O campo da epopéia heroica é infelizmente muito
da imaginacáo barroca e todas as elegancias lingüísticas mais vasto; só oferece a compensacao de revelar com cla-
do marinismo, sem vestigio de espirito religioso. reza maior as intencoes e motivos. A primeira tentativa
A obra mais seria do género é a Cristiada, que o espa- fóra a África, de Petrarca, onde já aparecem duas qua-
nhol Hojeda ( 10 ) escreveu em Lima. Novo exemplo da au- lidades permanentes da epopéia italiana: a pretensao de
toctonía do estilo barroco na Espanha: a atmosfera som- identificar imperialismo romano e patriotismo italiano
bría do poema, a propósito da qual se lembrou o natura- (teórico, erudito alias), e a preponderancia do lirismo; só
lismo crasso e sangrento dos santos espanhóis esculpidos esta última qualídade era capaz de salvar algumas das ten-
em madeira. De um tipo mais italiano, mais renascentista, tativas épicas. Doutro lado, a falta de lirismo é o motivo
sao a Década de la Pasión (1579), de Juan de Coloma, o principal, mas nao o único, do malogro das epopéias hu-
erudito Monserrate (1588), de Cristóbal de Virués, e o manistas do século X V I ( 1 T ). Com a Italia liberata dai
popular San Isidro (1598), de Lope de Vega. J á se lem- Coti (1547-1548), Gian Giorgio Tríssino pretendeu opor
brou o culto barroco de S. José, do qual o San José ao poema fantástico de Ariosto urna epopéia de signifi-
(1604), de Valdivielso, é a expressao; e El Macabeo (1638), cacáo nacional, no sentido do nacionalismo dos humanistas
de Miguel de Silveira, é produto t í o híbrido de epopéia

16A) R. A. Sayce: The French Bíblicol Epic in the Seventeenth Cen-


14) Cf. "Poesía do Culteranismo e Teatro da Contra-Reforma", nota tury. Oxford, 1955.
14.
18) Cf. "Classlclsmo Barroco", nota 17.
15) Diego de Hojeda. 1570-1615.
La Cristiada (1611). — Edljáo Corooran, Washington, 1935. IBA) H. H. Kremplen; Der Stü der "Davideis" von Cowley. Hamburg,
P. J. Rada y Oamlo: La Cristiada. Madrid, 1917. 1936.
F. Plerce: The Heroic Poem of the Spanish Golden Age. London,
1947. 17) A. Bettonl: II poema épico e mitológico. Milano, 1911.
814 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 815

romanos; Trissino, autor da Sofonisba e partidario da imi- quaso Tasso, acompanhou-lhe os passos, iniciando-se na
tacao dos gregos, escolheu como enredo, deliberadamente, arte épica com o Rinaldo (1562) ; depois, veio-lhe a inspira-
a "líbertacao" da Italia pelos bizantinos, no século VI, para gao de substituir o heroísmo de cavalaria pelo heroísmo
homenagear ao mesmo tempo a "Grecia", e essa confusao cristáo dos cruzados, na Gerusalemme Hberata.
bastava para desvirtuar a tentativa, mesmo abstraindo-se O número dos epígonos de Torquato Tasso é imenso
da incapacidade poética do autor. Logo depois, a Italia ( 2 0 ) ; bastam aqui alguns nomes e motivos característicos.
caiu ñas máos dos espanhóis, e a Alamanna (1567), poema Chiabrera ( 3 1 ), versificador incansável, retomou, na Gotia-
insípido de Antonio Francesco Oliviero, já revela outra de (1582), o assunto de Trissino, e na Erminia (1605), o da
confuslo: identifica a causa da Italia com os objetivos do cavalaria; é patriota na Fiíenze (1615), e patriota anties-
imperialismo espanhol, celebrando as Vitorias do impera- panhol na Amedeide (publ. 1654). O assunto italiano rea-
dor Carlos V . Os próprios espanhóis, alias, nao foram mais parece sómente na Fiesole distrutta (1619), de Giandome-
felizes no assunto: o Carlos famoso (1566), de Luis de Za- nico P e r i ; mais perto de Tasso estáo a Siriade (1581), de
pata, e a Austriada (1584), de Juan Rufo Gutiérrez (em Pier Angelio da Barga, e o fragmento de urna Gerusalemme
parte, alias, metrificagao da Guerra de Granada, de Hur- distrutta, do próprio Marino. Sao transposicóes do motivo
tado de Mendoza), sao as epopéias horríveis que o vigário da cruzada para outras épocas a Croce riacquistata (1605/
e o barbeiro, no famoso capítulo V I da primeira parte do 1611) e a Bulgheria convertirá (1637), de Francesco Brac-
D. Quixote, condenam á fogueira. ciolini; a Heíacleide (1623), de Gabriele Zinani, e, voltan-
do ao ciclo espanhol, a Conquista di Granada (1650), de
Expressáo do pensamento antiespanhol é a Avarchide, Gírolamo Graziani, e a Bona expugnata (1694), de Vincenzo
de Luigi Alamanni ( 1 8 ), que fóra poeta renascentista nos Piezza. Antonio Caraccio chegou a cantar, no Imperio
seus belos sonetos e num poema didático sobre a agricul- vendicato (1679/1690), a vergonhosa quarta cruzada, e Sci-
tura, para depois iniciar a moda barroca das odes pindá- pione Errico, na Babilonia distrutta (1624), acontecimen-
ricas; na sua epopéia lamentável obedecen as pretensas tos da historia islamítica. Era insaciável a fome dos poe-
regras da poética aristotélica: síntoma de que já se encon- tas épicos, tratando assuntos cada vez mais longínquos e
tra nos comegos do Barroco. Poeta de transigió foi tam- esquisitos, em moldes sempre iguais. Só Tassoni, o "opo-
bém Bernardo Tasso ( I 8 ) , o paí de Torquato: bom poeta sicionista", se lembrou de um assunto mais verdadeiro:
lírico, horaciano e anacreóntico, pretendeu adaptar as exi- numa epopéia, Océano (1622), pretendeu celebrar as deseo-
gencias aristotélicas a epopéia fantástica á maneira de bertas dos espanhóis e portugueses; porém déla escreveu
Ariosto, versificando o Amadigi di Gaula. O filho, Tor- •penas um fragmento; o antimarinista Tommaso Stigliani
terminou um Mondo nuovo (1628). Os marinistas, os poe-
18) Lulgl Alamanni, 1495-1556. tas barrocos, estes imitam, todos, o heroísmo menos real de
Opere toscane (1533); La coltivazione (1546); Avarchide (publ. épocas remotas, á maneira de Tasso.
1570).
H. Hauvette: Un exilé florentin á la cour de France au XVIe
siécle. Luigi Alamanni, sa vie et son oeuvre. París, 1903.
19) Bernardo Tasso, 1493-1569. 80) A. Belloni: Gli epigoni della Gerusalemme Hberata. Padova, 1893.
Amadigi di Gaula (1544); Rime (1560).
F. Pintor: Delle liriche di Bernardo Tasso. Pisa, 1894. II) Cf. "A Poesía do Culteranismo e o Teatro da Contra-Relorma"
E. Willlamson: Bernardo Tasso. Cambridge, Mass, 1951. nota 19.
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Fora da Italia, a epopéia heroica nao é menos comum que, desde a ocupacáo espanhola em 1580, parecía perdida.
neni menos infeliz. Na Espanha, a transicáo entre o es- O número das epopéias portuguesas é grande ( 2B ). Nou-
tilo de Ariosto e o de Tasso produziu pelo menos um pro- tros tempos, os historiadores da literatura portuguesa tei-
duto singular, o Bernardo, de Balbuena ( 2 2 ), em que a gesta maram em descobrir, aqui e ali, certas qualidades: "ver-
de Carlos Magno, elaborada á maneira de Ariosto, é tra- sificado fluente" ou "descricoes interessantes" ou "episo-
tada em estilo pomposo como o de Góngora — produto hí- dios magníficos", sem insistir no valor do resto. Mas essas
brido e difícilmente legível, urna das obras mais estranhas epopéias nao valem nada; sao crónicas e biografías minu-
do Barroco. Além das epopéias barrocas de Lope de Vega ciosas, penosamente metrificadas, ou entao florestas de
(Dragontea, Jerusalém conquistada. Corona trágica), só imaginacáo fantástica, mas sem ánimo poético, antes de
os historiadores mais conscienciosos da literatura lembram um prosaísmo ridículo. Basta enumerar os nomes: o Con-
a Conquista de Betica (1603), de J u a n de la Cueva, e a destabre de Portugal (1610), do poeta pastoril Francisco
Ñapóles recuperada (1651), de Francisco de Borja. Sao, Rodrigues Lobo; Afonso, o Africano (1611), de Vasco
entáo, numerosas as epopéias que, a imitacáo de Ercilia ( 2 í ) , Mouzinho de Quevedo; Malaca Conquistada (1634), de
tratam da descoberta e conquista do Novo Mundo: a Me- Francisco de Sá de Meneses; Insulana (1635), de Manuel
xicana (1594), de Gabriel Lasso de la Vega; o Peregrino Tomás; Ulisséia (1636), de Gabriel Pereira de Castro; Ulis-
indiano (1599), de Antonio de Saavedra; a Conquista del sipo (1640), de Antonio de Sousa de Macedo. Esta última
nuevo mundo (1610), de Gaspar de Villagra ( 2 4 ). Na E s - epopéia publicou-se no ano em que Portugal se libertou da
panha foi nacional (e barroco) ésse assunto, que na Italia dominacáo estrangeira, e o seu autor foi um dos estadistas
só ocorreu aos antimarinistas Tassoni e Stigliani. mais importantes da Restauracáo nacional. Durante a épo-
ca da humilhacáo nacional, que terminou em 1640, o afi
Entre os espanhóis nao surgiu nenhum Camoes; mas
de celebrar as grandes facanhas do passado é digno de
entre os portugueses tampouco se repetiu o milagre. Con-
todo o apreso; mas "c'est avec les beaux sentiments que l'on
tudo, a insistencia com que tantos poetas portugueses
fait de la mauvaise littérature", e as vézes o verdadeiro
pretenderam criar mais e mais epopéias nacionais tem cer-
motivo foi apenas vaidade literaria que a gloria de Camoes
ta razáo de ser: a afirmacao da nacionalidade portuguesa
nao deixava dormir. É usual abrir excecáo em favor de
Brás Garcia de Mascarenhas ( 2 6 ), cujo Viriato Trágico se-
22) Bernardo de Balbuena, 1568-1625.
El Bernardo, o Victoria de Roncesvalles.
Edicao: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XVII.
J. Van Home: £1 Bernardo by Balbuena. A Study of the Poem. 36) Teoí. Braga: Os Seiscentistas. Porto, 1916.
Urbana (111.), 1927. Fid. de Flgueíredo: Historia da Literatura Clástica. 2.» Época
J. Van Horne: Bernardo de Balbuena. Biografía y critica. Ur- 1580-1756. Lisboa, 1920.
bana, 1940. Fid. de Figuelredo: A Épica Portuguesa no Sécula XVI. 85o Paulo,
23) Cf. "Renascenca Internacional", nota 48. 1938.
24) Noticias pormenorizadas sObre os poetas épicos espanhóis em: H. Cidade: Licóes de Cultura e Literatura Portuguesa. Vol. I. 2.»
cd. Coimbra, 1942.
0 . Ticknor: History o] Spanish Literature. 6.* ed. New York, I6> Brás García de Mascarenhas, 1596-1656.
1888. Viríaío Trágico (publ. 1699).
1. ntzmaurlce-Kelly: Historia de la literatura española (tradu- Edlcáo, Lisboa, 1848.
C&o castelhana, anotada por A. Bonilla y San Martin). Madrid, A. Ribeiro de Vasconcelos: Brás Qarcia de Mascarenhas, Estudo
1905. de Investigando Histórica. Coimbra, 1922.
818 OTTO M A B I A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 819

ria obra de patriotismo viril, respirando a atmosfera das As poucas epopéias heroicas inglesas estao em relacáo
montanhas da Beira A l t a ; é possível que o poeta tenha com o estilo barroco na poesia inglesa, a "metaphysical
sido diferente, mas o poema nao saiu rnelhor do que os poetry", como a Leoline and Lydanis (1642), de Francis
outros. Kynaston. Recentemente, dedicou-se maior atencáo á Pha-
A epopéia heroica francesa ( 2 7 ) talvez seja a mais in- ronnida, de Chamberlayne ( Z9 ), mistura de epopéia fantás-
sincera de tóelas. Os autores que celebraram facanhas de tica, á maneira de Ariosto e Spenser, com elementos pasto-
cavalaria histórica, misturando-as com motivos de religio- ris e estilo "metafísico"; é urna das obras mais singulares
sidade contra-reformistas, eram "précieux", quer dizer, es- do Barroco inglés.
critores que tinham antecipado a t r a n s f o r m a d o da aristo- Se a epopéia heroica nao encontrou em toda a parte
cracia feudal e guerreira em aristocracia de corte e salao. o mesmo entusiasmo quantitativo, em compensado alean-
Dai a hipocrisia do seu cristianismo e a falsa elegancia cou países que até entao pouco tinham participado da vida
dos seus heróis feudais ou primitivos. Pelo menos sinto- literaria européia. Um dos melhores discípulos de Tasso,
nía de ambigüidade é o fato de o jesuíta Pierre Le Moyne, certamente superior aos imitadores italianos, é o croata
autor da epopéia meio sacra, meio heroica Saint Louis ou ragusano Gundulic ( a o ) ; seu estilo é barroco, muito con-
le héros chrétien (1635/1658). ter ao mesmo tempo escrito forme á época; mas seu espirito é renascentista; seu tema
o livro De la dévotion aisée, que Pascal anatematizará. é contemporáneo, celebrando facanhas reais de um heroís-
Georges de Scudéri, autor de Alario ou Rome vaincue mo verdadeiro em guerra real, a dos poloneses contra os
(1654), já é, ao mesmo tempo, um dos autores principáis de turcos. Segundo o mesmo criterio, já é, porém, indubitá-
romances heróico-galantes; Jean Chapelain ( 2 8 ), autor da velmente barroco o outro "tassiano" conde húngaro Ni-
famosa ou notoria Pucelle d'Orléans (1656/1657), é herói colau Zrinyi ( 3 1 ) : a s u a Zrinyade, poema sobre o cerco da
dos saloes do Hotel de Rambouillet, e ao mesmo tempo um cidade heroica de Sziget pelos turcos, no tempo do seu he-
dos preparadores do classicismo académico, que, mais urna roico bisavó: o heroísmo já está longe, num passado re-
vez, revelará a sua substancia burguesa, acabando com a epo-
péia heroica. "Le reste ne vaut pas l'honneur d'étre 29) WUliam Chamberlayne, 1619-1689.
nommé" — mas éste verso é do classicista Corneille; his- Pharonnida (1659).
tóricamente, a epopéia francesa do século X V I I é impor- Edlcáo por 8. W. Slnger. London, 1920.
A. Higgins: Secular Heroic Epic Poetry of the Carollne Perlod.
tante como documento do caráter semibarroco da literatura
Bern, 1953.
do "siécle d'or".
30) Cf. "Renascenca Internacional", nota 90.
V. Setschkarefi: Die Dichtung GundullCs una ihr poetischer
Stil. Ein Beitrag tur Erjorschung des líterarischen Barock.
27) J. Duchesne: Histoire des poémes ¿piques franeáis du XVIIe Bonn, 1952.
siécle. Paris. 1870.
R. Tolnet: Quelgues recherches autour des poémes héroiques ¿pi- 31) Conde Nlcolau Zrinyi, 1620-1664.
ques frangais du XVlle siécle. París, 1899. Obsidio Szigetiana Zrinyade (1651).
A. Marni: Allegar y in the French Heroic Poem of the Seventeeth H. C. G., Stier: Zrinyi und die Zrinyade. 2.* ed. Budapest, 1876.
Century. Prlnceton, 1936. C. Szechy: Nicolcqi Zrinyi. 5 vols. Budapest, 1896/1902 (em lin-
gua húngara).
28) Cí. "A Poesía do Culteranismo e o Teatro da Contra-Reforma", M. Sántay: Zrinyi e Marino. Budapest, 1915. (Em língua hún-
nota 46. gara.)

820 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 821

m o t o ; serve como advertencia, da parte de um bravo guer- do-homérico do século V antes da nossa era, em que as
reiro católico, contra a apostasia protestante, que seria lutas dos heróis homéricos sao parodiadas, descrevendo-se
responsável pelo enfraquecimento da nacao e a derrota guerras burlescas entre ras e ratinhos; parodia engragada,
pelos turcos; Zrinyi foi discípulo do grande arcebispo sem significagáo superior, e que nunca merecerá muita
Pázmányi, que introduzira a Contra-Reforma na Hungría; atengao. Urna imitagao renascentista, a Moschea (1521), na
e em sua poesía notam-se influencias de Marino. É um bar- qual Folengo cantou a guerra das moscas contra as for-
roco. Alias, a existencia désse "Tasso bárbaro" nos confins migas, permaneceu obra isolada. De repente, no século
da Europa de entáo, onde a civiliza^ao crista acaba, tem X V I I , as imitacoes pululam de modo extraordinario, e os
algo de desesperado e comovente. parodistas, nao satisfeitos com as lutas entre animáis, es-
A epopéia heroica do século X V I I falhou pela fal- tendem o processo á parodia de guerras inventadas ou his-
sidade do seu ideal heroico. Nao foi seu único motivo a tóricas entre os homens, transformando em tolices as fa-
hipocrisia de literatos venáis, pretendendo bajular os me- ganhas heroicas. Dessa produgao numerosissima, só pou-
cenas aristocráticos; também cooperou, nessa atividade li- ca coisa sobreviveu: a Secchia rápita, de Tassoni, e o Hudi-
teraria quase febril, certa angustia: a transigáo social pa- bras, de Butler, e mesmo estes já nao sao lidos; o próprio
recía, como todas as transigoes sociais, ameaca gravíssima género herói-cómico morreu. Mas o fenómeno nao deixa
á própria civilizagao e aos intelectuais. Daí o passadismo, de ser interessante, exigindo interpretagáo.
o gósto pelos assuntos históricos, desconhecido na Renas-
cenga. Impoe-se mais outra observagao: as epopéias his- A epopéia herói-cómica é de um realismo grosseiro, as
tóricas sao particularmente numerosas entre as nagoes ven- vézes brutal; é antítese uxata da epopéia heroica, da qual
cidas: os italianos e os portugueses. O fenómeno literario é contemporánea. Tratar-se-ia, entáo, de um fenómeno de
está em relagao com outro fenómeno, político, do século oposigao literaria, talvez da oposigáo da burguesía lite-
X V I I : o processo da formagao e consolidagao das nagoes raria contra o aristocratismo dominante; especie de pres-
européias e dos caracteres nacionais chega ao fim. A par- ságío da revolugao burguesa do século X V I I I . Mas a lei-
tir désse momento, as tradigoes nacionais, históricas, tém tura das epopéias herói-cómicas nao confirma essa tese. As
significagáo maior do que antes, e quem mais senté as obri- mais das vézes, sao muito inofensivas, de um humorismo
gagoes do passado sao os vencidos. Mas a incorporagáo da quase infantil; nada revelam de espirito revoluciona-
historia na consciéncia nacional e na consciéncia literaria
rio, que só se encontrará ñas epopéias herói-cómicas do
é um processo generalizado no Barroco; contribuiu para
século X V I I I . E entre os autores aparecem muitos — Brac-
a formagao do teatro espanhol; e terá importancia maior
ciolini, Lope de Vega, Saint-Amant, Brébeuf — que tam-
ainda na formagao do teatro inglés.
bém escreveram, e ao mesmo tempo, epopéias heroicas. Em
Essas consideracoes também servem para esclarecer parte, o gósto pela epopéia herói-cómica é conseqüéncia do
um dos fenómenos literarios mais curiosos do século conceito da poesía como ficcáo gratuita, jógo de imagina-
X V I I : a moda da epopéia herói-cómica ( 3 2 ). Já havia sé- gao sem responsabilidade. Em parte, essas epopéias sao
culos era conhecida a Batrachomyomachia, o poema pseu- realmente produtos de oposigáo: mas nao contra a epopéia
•éria, nem contra a aristocracia, e sim contra a pretensáo
32) Karlenst Schmidt: Vorstudien zv. einer Geschichte des Komis-
da aristocracia, já domesticada ñas cortes, de manter as
chen Epos. Halle, 1953.
822 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 823

tradigoes do seu passado bárbaro e bélico ( S 2 ' A ). J á se disse figuras mais curiosas désse século XVII, táo rico em per-
que o Barroco é essencialmente anti-histórico, porque a sonalidades extraordinarias. Em geral, é considerado como
historia resiste á racionalizado. O culto das tradicoes his- burgués pacifico, vivendo na provincia entre os seus livros,
tóricas constitui necessidade íntima da aristocracia; a "clas- zombando da gente que lutara lá fora. Na verdade, nin-
se burguesa" da literatura, que nao é inteiramente idéntica, guém havia lutado lá fora; a Italia estava sufocada pela
alias, nern deve ser confundida com a classe burguesa em dominagáo espanhola, e as tentativas de resistencia da parte
sentido sociológico, responde ridicularizando a historia do Duque de Sabóia malograram-se. Tassoni nao era um bur-
( 8 3 ). Nao se trata de um movimento antibarroco; é antes gués, e sim um aristócrata, nem era pacífico, e sim pole-
uma antítese dialética dentro do Barroco; e a índole realis- mista nato e muito agressivo. A sua erudicáo em todos os
ta daqueles poemas faz parte da mistura de sublimidade e setores do saber humano era imensa, do mesmo modo que
parodia, mística religiosa e naturalismo, que convivem no a erudigao enciclopédica de muitos contemporáneos seus,
Barroco. uma erudicáo bizarra e esquisita, menos para saber a ver-
A epopéia herói-cómica é um género de origem ita- dade do que para contradizer os outros, para afirmar a
liana. Na Italia existe uma tradigao antiga de cepticismo todo custo coisas inéditas. Mas os "contras" de Tassoni
popular contra as pretensóes do heroísmo aristocrático. acertaram sempre. Ñas Considerazioni sopra Je rime del
Pulci e Folengo sao os representantes máximos dessa tradi- Petrarca atacou os lugares-comuns dos petrarquistas, aven-
gao: Pulci, mais fantástico e humorístico; Folengo, mais turando uma crítica sacrilega contra o próprio Petrarca.
realista e satírico. A mesma distingáo impoe-se quanto á Ñas Filippiche, o polemista corajoso ousou atacar os es-
epopéia herói-cómica: Tassoni é realista e satírico; Brac- panhóis, o que era entao atitude bem perigosa; dirigindo-
ciolini é humorista burlesco e fantástico. Seguem-nos os se ao Duque de Sabóia, revelou um patriotismo profetice
imitadores ( 3 i ) . A Secchia Rápita, enfim, tratando de uma ridicula briga
entre bolonheses e modeneses, na Idade Media, sobrevive
Alessandro Tassoni ( 8 S ), que já pelo nome parece ter
como parodia da epopéia heroica: ficou famoso o perso-
sido predestinado para ser um Tasso as avessas, é uma das
nagem do cavaleiro Culagna. Na verdade, Tassoni nao
32A) N. Busetto: La poesía eroicomica. Saggio d'una niiova interpre- pretendeu parodiar a epopéia; ao contrario, tratou como
tazione. Venezia, 1903. epopéia o que era apenas burlesco. Nao opós a realidade
33) V. Santl: La storia nella Secchia Rápita. Modena, 1909. aos ideáis fantásticos, mas os seus próprios ideáis aristo-
34) Edigoes em: Hueco!ta üei pin celebri poemi eroicomici italiani. cráticos á miserável realidade italiana de entao, ridicula-
3 vols., Firenze, 1842.
A. Betloni: "La poesía del rldere". (In: II Seicento. Milano, 1929.) rizando-a. O seu assunto nao é a historia, nem sequer em
36) Alessandro Tassoni, 1565-1635. sentido burlesco; o seu pensamento é anti-histórico, num
Pensieri diversi (1608): Considerazioni sopra le rime del Petrar- momento em que a Italia vivía só do passado e nao tinha
ca (1609); Filippiche contro gli Spagnuoli (1614/1615); La Sec- presente. Daí o espirito profético désse notável humo-
chia Rápita (1622).
Edl?ao de La Secchia Rápita por G. Rossl. Barí, 1929. rista.
A. Rocca: La Secchia Rápita di Alessandro Tassoni. Caltanisseta,
1884.
F. Nunzlante: 71 conté Alessandro Tassoni e il Seicento. Mila- Outro Tassoni nao houve. Só pobres restos do seu es-
no, 1885. pirito vivem no Malmantile raequistato (1650), do pintor
E. Glorgl: Alessandro Tassoni e la Secchia Rápita. Trapanl. 1921.
Lorenzo Lippi, e no Asino (1652), de Cario de' Dottori;
G. Bertoni: Alessandro Tassoni. Firenze, 1935.
824 OTTO M A M A CAHPEAUX HISTÓHIA DA LITERATURA OCIDENTAL 825

contudo, sao as melhores epopéias herói-cómicas depois da imitacáo engenhosa da Moschea, de Folengo; e Lope de
Secchia Rápita. Vega exibe notável verve cómica na Gatomaquia (1634),
A outra maneira, a fantástica e burlesca, representa-a que talvez aínda seja legível. Nao há muito sentido nes-
o polígrafo Francesco Bracciolini ( aB ). O poeta religioso sas brincadeiras poéticas. O mesmo se pode dizer a res-
da Croce riacquistata e de varias outras epopéias heroicas peito das epopéias burlescas francesas, que tém quase todas
revelou no belo idilio Batino capacidade surpreendente de a mesma intengao: zombar de Virgilio e da mitología an-
descrever com realismo minucioso a vida dos camponeses tiga. Daí a impressao de vinganga de colegiáis contra o
italianos. Mas a sua epopéia humorística, o Scherno degli mestre-escola. Citam-se a Rome ridicule (1643), de Saint-
dei, pertence ao outro aspecto da sua poesía: a parodia Amant, Les amours d'Enée et de Didon (1649), de Antoine
burlesca da mitología paga é táo fantástica e gratuita como Furetiére, a Gigantomachie (1644) e a entao famosíssima
o sao os seus heróis serios. E n t r e os seus imitadores, pa- Enéide travestie (1648/1653), de Scarron, o Jugement de
rodiou Giambattista Lalli a Eneide di Virgilio travestita París (1648) e o Ravissement de Proserpine (1653), de
(1633) — processo contrario ao de Tassoni — e voltou, na Charles Coypeau d'Assouci. Saint-Amant, como jé í e viu,
Moscheide (1630), ao poema humorístico dos animáis, á ma- também escreveu urna epopéia heróico-cómica, assim
neira da Batrachomyomachia. O u t r o s poemas dessas espe- como Bracciolini e Lope de Vega cultivaram ambos os gé-
cies sao: a Troia Rápita (1662), de Loreto Vittori, e a To- neros ao mesmo tempo- Essa atitude chega ao cúmulo da
peide (1636), de Giulio Cesare Croce. Enfim, Ippolito Neri dobrez no caso do poeta religioso Guillaume de Brébeuf
cantou, na Presa di San Mi ni ato (1706), um assunto pare- ( 3 8 ), que publicou em 1654/1655 a sua traducao muito seria
cido ao de Tassoni, mas á maneira burlesca de Bracciolini. da Farsália de Lucano, e deu ¡mediatamente depois Le
A epopéia cómica já perderá, entao, o sentido. premier livre de Lucain travestí (1656). Pelo meno9 neste
caso, a insinceridade nao é hipótese provável. A verdade
A Contra-Reforma conformou-se com a ofensiva da epo-
é que os poetas burlescos nao fizeram "oposicáo"; nao
péia burlesca dos animáis; do jesuíta Jacobus Balde existe pensaram em destruir o modelo parodiado. A intencao —
urna Batrachomyomachia latina. Na Espanha cultivou-se enquanto a houve — era fantástica, gratuita.
so esta especie. La Mosquea, de Villaviciosa ( 3T ), é urna
Mas nao pareceu assim ao gósto classicista. Boileau
36) Francesco Bracciolini, 1566-1645. (Cf. "Resnacenca Internacional", ( 39 ) escandalizou-se com os gracejos que ofendiam a ma-
nota 61). jestade dos deuses e dos poetas antigos; e o moralismo do
Poema heról-cómico: Scherno degli del (1618/1626). classicista nao admitiu arte gratuita. Numa passagem fa-
Epopéias heroicas: La Croce riacquistata (1605/1611); L'Elezione
di Urbano VIH (1628); La Roccela espugnata (1630); La Bulghe-
ria convertita (1637). 38) Cf. "Classicismo Barroco", nota 20.
Idilio: Batino (1618).
M. Barbi: Notizie della vita e delle opere di Francesco Braccioli- 3») Sobre Nicolás Boileau-Despréaux (1636-1711), cf. "Classicismo
ni. Firenze, 1897. Barroco", nota 70.
Le Lutrín (1673/1683).
37) José de Villaviciosa, 1588/1618. K. Reinhardstoettner: "Der Hyssope des Antonio Dinis ln seinem
La Mosquea (1615). Verhaeltnls zu BoUeau's Lutrin". (In: Aufsaetze und Abhandlun-
Edicao: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XVH. gen, vornehmlich vur Literaturgeschichte. Berlín, 1887.)
A. González Palencia: "José de Villaviciosa y La Mosquea". (In: W. Knaacke: Le Lutrín de Boileau et The Rape o/ the Lock
Boletín de la Real Academia Española, 1925.) de Pope. Nordhausen, 1883.
.

826 OTTO M A R Í A CARPEAXJX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 827

mosa de Art poétique (I, 81), Boileau condenou o género " T h e whole world, without art and dress,
burlesco, a parodia do sublime. Mas permitiu tratar, para Would be but one great w i l d e r n e s s . . . "
efeito humoristico, coisas baixas e ordinarias no estilo da
epopéia seria; deu, ele mesmo, um modelo désse género — Os puritanos vencidos pareciam selvagens, incultos, mas
que i o de Tassoni — em Le lutrin: historia da briga dedicados ás discussoes teológicas mais sutis, mais absur-
absurda entre clérigos ociosos em torno de urna estante das; a dominacáo puritana parecia urna cruzada de bur-
de coro. Só na escola se léem hoje trechos seletos dessa ros — e assim Butler a pintou, como viagem burlesca de
obra, que é regular demais para fazer rir. O rancor do Hudibras e do seu criado Ralph pelos perigos da vida in-
jansenista contra o clero, que Boileau exprimiu ñas entre- glesa. As famosas gravuras que Hogarth fez para a edi-
linhas, perdeu a fórca; só se percebe o aburguesamento do cao de 1726 do poema sao mais mordazes e cómicas do que
género pelo classicismo conformista. Justamente ñas maos o texto: afinal, as aventuras de Hudibras e Ralph imitam
do burgués — do qual a interpretadlo antiga poderia es- de perto, embora nem sempre com felicidade, as aventuras
perar a maior agressividade — a epopéia herói-cómica per- de D. Quixote e Sancho Panga, com urna porcao de gros-
deu a virulencia. seria á maneira de Rabelais; os elementos própriamente
Essa virulencia, de que o género é realmente capaz, burlescos provém de Scarron. Mas Butler é mais espiri-
aparece, ao contrario, quando um partidario da aristocra- tuoso do que qualquer dos seus modelos; as parodias das
cia instaura o processo herói-cómico contra a burguesía. discussoes teológicas sobre Pecado e Graga, ás vézes em
E i s o caso de Samuel Butler ( 4 0 ) e do seu poema antipuri- estilo parodiado da "metaphysical poetry", sao irresistí-
tano Hudihras. Butler exprime a indignacao das classes al- veis, e fazem ainda rir, porque se aplicam a qualquer dou-
tas da sociedade, os aristócratas e os seus oleres, que trinarismo surdo e obstinado.
durante a dominacao de Cromwell e dos puritanos se viram
privados dos seus prazeres pela hipocrisia reinante. A "He'd run in debt by disputation,
Restauracáo dos Stuarts, de que Butler é o primeiro es- And pay with ratiocination."
critor importante — a monarquía foi restaurada em 1660 e
Hudibras é o protesto do bom senso inglés contra a hipo-
a primeira parte de Hudibras saiu em 1663 — identificou
crisia inglesa — dois aspectos permanentes do caráter an-
ingenuamente os seus próprios costumes licenciosos com o
glo-saxónico. Butler também achou urna forma perma-
"reino das artes e ciencias", e Butler afirma que
nente para exprimir o protesto; ele mesmo fala de

" . . . rhyme the rudder is of verses,


40) Samuel Butler, 1612-1680. W i t h which, like ships, they steer their courses."
Hudibras (1663, 1664, 1678); Genuine Remains in Verse and
Prose (1759). Nenhum poeta na literatura universal, com excecáo de Hei-
Edis&o por A. R. Waller, 2 vols., London, 1908. (Vol. m , suple- ne, possui a capacidade de Butler de produzir efeitos có-
mento, edit. por R. Lámar, London, 1928.) micos por meio de rimas engenhosas e inesperadas. Butler
W. F. Smlth (In: The Cambridge History o/ Englísh Literature.
é um criador de proverbios humorísticos, "piloteados pela
vol. v m , 2.» ed., 1920.)
I. Veldkamp: Samuel Butler. Hilversum, 1923. rima" no mar da língua inglesa. Observou-se que, além da
E. A. Richards: Hudibras in the Burlesque Tradition. New York, Biblia e de Shakespeare, nenhum livro inglés forneceu tan-
1937.
828 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 829

tos proverbios, chacóes, alusoes e frases feitas á lingua in- capaz de urna outra interpretacao do género, no sentido na-
glesa como o Hudibras; a linguagem poética de Pope e turalista: porque o naturalismo tarabém é componente d o
Byron está cheia de reminiscencias da leitura de Butler. Barroco. O Ricciardetto, de Forteguerri ( 4 2 ), é urna p a r o -
Bem disse um crítico: "Inúmeras pessoas de lingua inglesa dia, á maneira de Pulci, da epopéia ariosttana, mas t í o fan-
usam diariamente expressoes butlerianas sem terem jamáis tástica, cheia de aventuras enormes, que a palavra "natu-
lido o Hudibras. É urna forma anónima da imortalidade." ralismo" nao parece j u s t a ; e o Ricciardetto é urna veemen-
Apesar de tudo, o Hudibras tomou-se, como todas as tissima sátira anticlerical, contra os abusos t vicios da
epopéias herói-cómicas, mera peca de museu literario. A Curia Romana, da qual Forteguerri era funcionario, d e
sua influencia mal se senté n a poesia satírica inglesa; a modo que o poema parece rebento do espirito do próprio
própria tradigáo hudibrasiana é f r a c a ( 4 1 ) : o Scarronides Lutrin. Mas, enquanto Boileau parte de um ponto de vista
or Viígile Travestie (1667), de Charles Cotton, caracteri- anti-romano, porém teológico, é Forteguerri um anticle-
rical em sentido popular, furioso contra gente ociosa que
za-se pelo título; e urna "batrachomyomachia" inglesa, The
vive a expensas do povo. Boileau, assim como o pomba-
Battle of the Frogs and the Mice (1717), de Thomas Par-
liano Dinis da Cruz e Silva, é porta-voz de urna élite, anti-
nell. é urna sátira literaria, em estilo diferente do de Bu-
clerical porque culta; Forteguerri é homem do povo tos-
tler, já classicista.
cano. Os excessos de imaginacáo fantástica no Ricciar-
Le Lutrin, de Boileau, constituí o fim natural da his-
detto tampouco sao exageros do ariostianismo, entáo já
toria da epopéia herói-cómica do Barroco. O classicismo
morto desde séculos; só servem para apresentar excessos de
do século X V I I I apoderar-se-á do género anti-históríco,
animalidade dos heróis, quase á maneira de Rabelais, ou
porque o classicismo, literatura de equilibrio estático, é
antes, á maneira de F o l e n g o ; e Forteguerri escreve na lin-
por definicáo an ti-histórico. Mas o poema herói-cómico
gua grosseira, rústica, do camponés toscano. O Ricciar-
do classicista está desvirtuado pela teoría: quando se
detto é um notável documento social. No século X V I I I , o
admite só a parodia de coisas baixas e fúteis, está quase
seu digno sucessor, o Peder Paars, de Holberg, revoltar-
excluida a seria intencáo satírica, e o género torna-se mes-
se-á contra absolutismo e feudalismo, em nome do campo-
mo passatempo fútil. Por outro lado, Boileau nao conse-
nés em condicao servil; revoltando-se contra o peso das
guiu excluir de todo a inten$ao satírica: Le Lutrin é evi-
tradicoes históricas, a epopéia herói-cómica cumpriu, no
dentemente urna sátira anticlerical. Déste modo, derivam
fim da sua evolucao, a sua vocacáo anti-histórica.
do poema de Boileau as duas possibilidades que a epopéia
herói-cómica do século X V I I I realizará: de um lado, o O número das epopéias heroicas francesas é muito
scherzo engrasado e fútil, como The Rape of the Lock^
menor do que o das italianas; o próprio esfórco épico tem
de P o p e ; de outro, a sátira anticlerical no sentido da Ilus-
tracao, como o Hissope, de Antonio Dinis da Cruz e Silva. menor importancia, e entre as causas désse fato está em
Sao duas experiencias literarias inteiramente alheias ao primeira linha urna de ordem sociológica, ou antes, de re-
espirito solene e angustiado do Barroco. Éste, porém, foi tí) Niccoló Forteguerri, 1674-1735.
Ricciardetto (escrito entre 1716 e 1726; publicado em París, 1738).
Edic&o: Classlci KaJiani, Milano, 1813.
41) E. A. Richards: Hudibras in the Burlesque Tradition. New York.. O. Procaccl: Nicsoló Forteguerri e la sátira toscana de" suoi tem-
1937. pL Plstoja, 1877.
F. Bermini: Jl Ricciardetto di Niccoló Forteguerri. Bologna, 1900.
830 OTTO M A R Í A CARPEATJX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 831

lacio entre situacáo da sociedade e situacáo das letras: a em língua latina ( 4 S ), e a Astrée, de D'Urfé (**). Éste úl-
dif erenca entre a aristocracia italiana e a aristocracia fran- timo romance pastoril conseguiu até revivificar, na Franca,
cesa. Quanto á maneira de viver e de pensar, a atmosfera a poesía pastoril, da qual é representante um discípulo de
italiana do século X V I I ainda é bastante feudal; mas feu- D'Urfé, Segrais ( 4 6 ), tradutor elegante da Geórgica e autor
dalismo como poder social já nao existia na Italia pos- de Églogues, que continuaram lídas no século X V I I I . O
medieval. Os numerosos aristócratas italianos que du- lato literario importante na Astrée é a combinadlo do ele-
rante o século X V I I se dedicaram as letras eram homens mento pastoril com o elemento heroico. O bucolismo da
livrescos, eruditos; no fundo, burgueses com ares de pas- Astrée já nao é o da Arcadia e da Diana, e sim o do Aminta
sadismo, sonhando com a época em que os cavaleiros, cruza- c Pastor fido, com o seu erotismo mais forte, quase obs-
dos a servico da Igreja, dominaram o mundo; e essa Igreja ceno; o elemento heroico deriva do Amadis de Gaula. Se
a ésses fatóres se juntar a influencia do romance da Gre-
fóra a Romana, italiana. Dai a mistura de devocáo ecle-
cia decadente, muito valorizado pelos leitores eruditos do
siástica e "patriotismo europeu" em Tasso e seus imita-
Barroco, está pronto o romance heróico-galante (**).
dores italianos. A aristocracia francesa do coméco do
século X V I I é ainda aristocracia feudal. Richelieu a sub- Os romances heróico-galantes ( 4 7 ), produtos comple-
jugará; depois, ela ainda terá fórca para desencadear a tamente ilegíveis hoje em dia, causam estranheza pelo ta-
manho: romances em 5 ou 10 volumes cada um sao fre-
revolta da Fronda, vencida enfim pela arte diplomática
qüentes. O tamanho é conseqüéncia das historias de aven-
do italiano Mazarin; e só Luís X I V conseguirá a trans-
turas néles insertas, como no Amadis, e da imitacao do es-
formagáo dos feudais recalcitrantes em cortesaos. Daí a
quema do romance grego. Theagenes e Chariclea, de H e -
fraqueza, em número e importancia, das epopéias france- liodoro, Leucippe e Clitofon, de Achules Tatios, e Mara-
sas, cujos autores só acompanham urna das modas lite- vilhas do além de Tule, de Antonios Diógenes, tém todos,
rarias da época. A sociedade aristocrática francesa expri- o mesmo enredo: dois amantes, separados por urna serie de
me-se por outro género narrativo, por meio de urna trans- desgranas, reencontrando-se através de muitas aventuras,
formagao barroca do romance pastoril: o romance heróico- de modo que o interésse reside na acumulacáo de digres-
galante. E se éste é pouco heroico e muito galante, reflete sóes novelísticas. Cervantes adotou esquema semelhante
fielmente a mentalidade, misturada de preciosismo e he- em Persiles y Segismunda, que se passa na fabulosa pai-
roísmo meramente espetacular, dos "frondeurs"; a litera-
tura antecipou a evolucao social. 43) Cí. "Renascenca Internacional", nota 84.
44) Cf. "Renascenca Internacional" nota 85.
O romance pastoril francés do coméco do século X V I I 4B> Jean Regnauld de Segrais, 1624-1701.
representa a última fase de evolucao désse género renas- Athys, pastorale (1635); Églogues (1658).
centista: as al uso es a figuras e acontecimentos contempo- L. Bredlf: Segrais, sa vie et ses oeuvres. París. 1863.
A. Gasté: Notes sur Segrais. París, 1887.
ráneos tornam-se incisivos tópicos políticos, e o erotismo 40) J. Bonflglio: Les sources ¡ittéraires de VAstrée. Torlno, 1011.
platónico dos "cortegiani"-pastóres transforma-se em galan-
47) E. Cohn: Gesellschaftsideale und Gesellschaftsroman des 17.
tería "preciosa". As obras representativas dessa fase sao Jahrhunderts. Berlín, 1921.
a Argenis, de John Barclay, obra de ura inglés afrancesado, M. Magendle: Le román frangais au XVIJe siécle. De VAstrée au
Qrand Cvrus. París. 1933.
.

832 OTTO M A R Í A C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OC[DENTAL 833

sagem nórdica de Antonios Diógenes. Os autores de ro- manees de Madeleine de Scudéry (*"), que o seu irmao
mances heróico-galantes gostavam dessa Escandinávia ima- Georges assinou: Ibrahim, Le grand Cyrus e Clélie.
ginaria, e também da Turquía, da Pérsia, da india e da O período dos romances heróico-galantes coincide
África, e naturalmente da A n t i g u i d a d e ; mas sempre sao quase, se nao exatamente, com a Restauracao inglesa e a
paises de imaginagao sem a mínima semelhanga com o Ori- invasao da Inglaterra monárquica pelos costumes e letras
ente ou com a Antiguidade r e a i s ; os turcos, persas, india- francesas ( 9 0 ). Houve imitagoes: a Parthenissa (1654), de
nos, gregos, do romance heróico-galante, falam e agem Roger Boyle Earl of Orrery, na qual existem uns restos
exatamente como aristócratas franceses do século X V I I . de fantasía spenseriana, e que foi lida e admirada aínda no
O assunto das suas conversas intermináveis, em linguagem século X V I I I ; a Aretina (1660), de Sir George Macken-
afetada, é a relacao entre amor e política: amores entre prín- zie; Pandion and Amphigenia (1665), de John Crowne.
cipes e princesas, contrariados pela razáo de Estado, e ou- Fenómeno mais interessante é a influencia do romance he-
tras coisas assim, ref lexos da mentalidade do Estado monár- róico-galante na tragedia da Restauragáo inglesa, cujos
quico, em que relacoes diplomáticas e relacoes de familia heróis amorosos, heroínas apaixonadas e "heroic cou-
sao idénticas. Os romances heróico-galantes sao alegorías plets" rimados refletem o estado de espirito daquela
políticas da Franja do século X V I I , especie de Divina sociedade com maior precisao do que os romancea fran-
Comedia da Franga aristocrática. Nao é possível chamar- ceses. Dryden tirou o assunto da Indian Queen (1665)
Ihes Comedie humaine, porque todo o realismo está au- do Polexandre, de Gomberville; Secret Love or The
sente; mas a psicología dos sentimentos amorosos é muito Maiden Queen;, e o de do Grand Cyrus, de Madame de
elaborada, preparando-se assim um elemento característico Scudéry, Almanzoi and Almahide (1672), da Almahide, da
do romance francés moderno. As análises dos sentimentos mesma autora. Nathaniel Lee encontrou na Cassandre, de
também contribuem para aumentar o tamanho. Um crítico La Calprenéde, o assunto das Rival Queens (1677), e na Clé-
moderno lembrou-se, em face désses romances enormes e lie, de Scudéry, o do Lucias Junius Brutus (1681). Em ou-
preciosos, de urna sociedade culta e decadente de Proust. tras, mas parecidas fontes francesas, baseiam-se duas trage-
dias de Thomas Otway: Don Carlos, Prince of Spain (1676),
Os mais famosos romances heróico-galantes da época no Don Carlos, romance histórico do Abbé de Saint-Réal; e
foram o Polexandie (1629/1637), de Marin Le Roy de Gom- Venice Preserv'd (1682), na Historie de la conjuration des
berville, que escreveu também Carithée (1621) e Cytherée
(1640); a Ariane (1632) e a Aspasie (1636), de Jean Des-
marts de Saint-Sorlin; Cassandre, Cléopétre e Faramond 49) Madeleine de Scudéry, c. 1627-1681.
ou i'Histoire de France, romance dos tempos merovíngios, Ibrahim ou L'lllustre Bassa (1641); Artaméne ou Le Orand Cyrus
(1649/1653); Clélie (1654/1661); Almahide ou l'esclave reine
de La Calprenéde ( 4 8 ), "romans á clef" da vida do Grand (1660/1663).
Conde e dos seus amigos; e sobretudo os famosíssimos ro- Cl. Aragonnés: Madeleine de Scudéry, reine du Tendré. París,
1934.
G. Mongrédlen: Madeleine de Scudéry et son salón. París, 1947.
48) Gautier de Costes de la Calprenéde, 1610-1663. 50) C. E. MUler: The Influence of the French Herolco-Historical
Cassandre (1642/1645); Cléopútre (1647); Faramond ou L'His- Romance on Seventeenth Century English Prose Fiction. Char-
toire de France (1661). lottesvüle. 1940. .
E. SeiUlére: Le romancier du Grand Conde: La Calprenéde. W. Miinn: Drydens herolsche Tragoedien ais Ausdruck hoelis-
París, 1921. cher Barockkultur. Tuebingen, 1932.
834 OTTO M A B I A CABPEAUX HI8TÓHIA DA LITERATURA OCIDENTAL 835

Espagnols contre la République de Vénise, do mesmo au- noko seria urna obra-prima se nao fósse um romance herói-
tor, obra historiográfica, bastante romanceada. Mas a ex- co-galante, com os defeitos fatais do género.
pressáo "historia romanceada" nao é exata. As obras do Em outros países o romance francés foi simplesmente
Abbé de Saint-Real ( 6 1 ), que continuaran! a ser muito lidas imitado, as vézes os imitadores realizaram obras de suces-
no século X V I I I , fornecendo enredos a Alfieri e Schiller, so internacional, tais como Calionadro sconosciuto (1640),
sao menos o resultado de um esfórco de romancear a his- do italiano Giovanni Ambrogio Marini, ou a Wonderlijke
toria do que de urna tentativa de aproximar da verdade Vrijage en rampzalige doch blijendige Trouwgefallen
histórica o romance heróico-galante; o Abbé, erudito e fan- (1668), do holandés Baltes Boekholt. Só na Alemanha se
tástico, romanceando as historias escandalosas das cortes. manifestam, e muito cedo, tentativas de aproximar da reali-
é o último dos que dramatizaran? ou romancearam o "ma- dade histórica o romance heróico-galante. Mas a literatura
quiavelismo" lendário. Outra tentativa de dar conteudo alema da época está mais longe da realidade que outra qual-
real ao romance heroico teve resultado mais "moderno": o quer; os romancistas oscilam entre erudicao histórica e
Oroonoko, da escritora inglesa Aphra Behn ( 6 2 ). Poetisa angustias religiosas, produzindo algumas das obras mais
espirituosa e autora de comedias lasciva?, que se deu a si curiosas désse curioso século ( 5 8 ). O Duque Antón Ulrich
mesma o apelido significativo "Astraea", Aphra Behn le- de Braunschweig encheu os seus romances Durchleuchtige
vou urna vida cheia de aventuras e algo duvidosa. Passou Syrerin Aramena (1669/1673) e Roemische Octavia (1677)
certo tempo em Surinam; Oroonoko, romance meio auto- com imensa erudicao histórico-arqueológica, para transfor-
biográfico, descreve com realismo surpreendente os sofri- má-los em livros didáticos de retórica e ciencia política
mentos dos escravos prétos, e a indignadlo da autora ex- para príncipes e estadistas. Lohenstein ( B4 ) é melhor nar-
prime-se as vézes de maneira que lembra Únele Tom's Ca- rador: no seu Grossmuetiger Feldherr Arminius (1689/
bin. Na verdade, ela pretendeu antes opor, em contraste 1690) sente-se a fórca do dramaturgo n a t o ; o seu intuito
vivo, os bárbaros primitivos aos civilizados decadentes e, é ressuscitar o patriotismo dos alemáes humilhados, lem-
portanto, corrompidos e cruéis — um processo também em- brando-lhes as facanhas de Armínio contra os romanos.
pregado ñas comedias de Aphra Behn: acumulou as obsce- O mais pessoal é Zesen ( 6 5 ) : poeta anacreóntico e poeta de
nidades para exaltar a virtude, conseguindo porém efeito melancolía religiosa, segundo os seus diferentes estados
contraproducente. Aphra Behn tinha muito talento. Oioo-

63) L. Cholevius: Die bedeutendsten deutschen Romane das 17.


61) César Vischard, abbé de Saint-Real, 1639-1692. Jahrhunderts. Leipzig, 1866.
Histoire de la conjuration des Espagnols contre la République F. Bobertag: Geschichte des Romahs in Deutschland. 2 vols.
de Vénise (1674); Histoire de Dom Carlos (1691). Berlín, 1876/1884.
G. Dulong: L'dtibé de Saint-Real. Étude sur les rapports de 64) Cf. "Teatro e Poesía do Barroco Protestante", nota 84.
l'histolre et du román au XVIIe siécle. Paris. 1921.
65) Phllipp von Zesen, 1619-1689.
52) Aphra Behn: 1640-1689, (Cí. "O Neobarroco", nota 62.) Poesias: Der Rosenmund (1661).
Oroonoko (1688) — Comedias: The Rover (1677/1681); The Feig- Romances: Adriatische Rosemund (1645); Assenat (1670); Sim-
ned Courtezans (1679); The Lucky Chance (1686); etc. son (1679).
Edic&o por M. Summers, 6 vols., London, 1915. H. Koernchen: Zesen's Romane. Leipzig, 1912.
V. Sackville-West: Aphra Behn, the Incomparable Astrea. Lon- Heinr. Meyer: Der deutsche Schae/erroman des 17. Jahrhun-
don, 1927. derts. Leipzig, 1927.
836 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 837

de alma. Na sua Adriatische Rosemund prevalecem os ele- o romance picaresco a ponto de defini-lo como produto bur-
mentos pastoris e o ambiente holandés em que o romance lesco-realista de oposicao contra o espirito aristocrático.
se sitúa é descrito com muito encanto. Em Assenat e Dentro da historia d a literatura francesa, essa interpreta-
Simson, a poderosa eiucHcáo histórica e bíblica nao dissi- £áo nao está de t o d o errada. Literatura burlesca e litera-
mula as graves p r e o c u p a r e s religiosas do autor. O maior
tura realista, ambas estao fora do perímetro da literatura
sucesso coube, porém, á ultra-romántica Des Christlichen
clássica, e por isso quase se encontram; Scarron é poeta
Teutschen Gross-Fuersten Herkules und der Boehmischen
Koeniglichen Valiska Wundergeschichte (1659/1660), de burlesco e, ao mesmo tempo, escritor realista. Mas rea-
Andreas Heinrich Buchholtz, e á Die asiatische Banise, lismo e espirito burlesco sao, na verdade, incompativeis,
oder blutiges docb mutiges Pegu (1688), vigoroso romance porque o espirito burlesco deforma a realidade. Saint-
exótico de Heinrich Anselm Ziegler, que foram os roman- Amant é burlesco, mas Furetiére é realista. Scarron é bur-
ces mais divulgados da primeira metade do século X V I I I , lesco e realista, mas nao ñas mesmas obras, e o seu Román
e dos quais ainda o velho Goethe, que os lera quando me- comique nao é de modo algum um romance picaresco. O
nino, se lembrava com prazer e nostalgia dos tempos idos. romance picaresco quase nunca é burlesco, e o seu realismo
Todas essas obras participaram do destino da literatura
está exposto a certas dúvidas. Romance picaresco autén-
barroca: foram condenadas e entregues ao esquecimento
pelo gósto classicista. A poesia barroca alema já ressus- tico só existe, alias, na Espanha; tudo o mais, além de al-
citou; para o romance barroco também chegará, talvez, o gumas imitacoes mais ou menos servís, é outra coisa.

dia. O grande modelo do romance picaresco, o Lazarillo de


O que é em relacao á epopéia heroica o poema herói- Toimes ( " ) , é de 1554; o sucesso foi enorme, mas a segunda
cómico, é em relacao ao romance heróico-galante o roman- obra notável do género, o Guzmán de Alfarache, de Ale-
ce burlesco de Charles Sorel ( B 6 ). Os títulos in extenso mán, é de 1599. O intervalo é surpreendente e sugere a
da Vraie histoire comique de Francion e do Berger extra- possibilidade de mudancas profundas durante ésse meio
vagant revelam bem o intuito parodístico dessas obras, século. Com efeito, o Lazarillo de Tormes só forneceu ao
ainda legíveis porque o humor burlesco se mistura com romance picaresco o esquema — narracáo, na primeira pes-
quadros vigorosos da vida burguesa. Ñas historias da li- •oa, da ascensáo penosa de um plebeu através de miserias,
teratura francesa contribuiu o fenómeno Charles Sorel humilhagoes, crimes e aventuras de toda a especie — e o
para produzir certa confusáo entre a literatura burlesca colorido característico, entre realismo e cinismo; mas o
e a literatura realista do século X V I I , incluindo-se naquela
espirito das obras posteriores é diferente; sobretudo desa-
66) Charles Sorel, 1599-1674. parecerán! no romance picaresco do século X V I I as alu-
La vrai histoire comique üe Francion, en laquelle sont décou- •des satíricas, erasmianas, contra o clero. Do Lazarillo de
vertes les plus subtiles finesses et trompeases inventions tant des Tormes só existe urna imitacáo feliz, e esta fora da Espa-
hotnmes que des femmes de toutes sortes que conditions at d'&ges,
non moins profitable pour ¿en garder que plaisante á la lecture nha: na Inglaterra. O Unfortunate Traveller, de Thomas
(1622); Le Berger extravagant oú parmi des fantasies amoureuses
on tott les impertinences des romans et de li poésie (16271.
Edicao de Francion por E. Roy. 4 vols.. Paris, 1924/1931.
E. Roy: La vie et les oeuvres de Charles Sorel. Paris, 1891. •7) Cl. "Renascensa Internacional", nota 144.
838 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 839
S8
Nash ( ), é cronológicamente a primeira obra com as ca- picarescos espanhóis- Mas Nash é otimista, enquanto Ale-
racterísticas do romance inglés: realismo na descricáo do mán pertence á tradicao estoica espanhola, da qual nao
ambiente — os bas-fonds da sociedade — humorismo na existe pendant na Inglaterra. Ésse estoicismo já aparece
caracterizado das personagens, gósto de reflexoes mora- no Lazarillo de Tormes, como sabedoria de humanista ple-
lísticas. Nash é um pequeño Dickens do século X V I . Re- beu, de erasmiano decaído, que o autor, provávelmente, era-
vela grande interésse pelas viagens e descobertas, pelos
Mas só no Guzmán de Alfarache e nos romances posterio-
crimes sensacionais e outros acontecimentos extraordina-
res o estoicismo espanhol é aquela mistura de melancolia
rios; seja ingenuidade de uma literatura nascente, seja
resignada ("desengaño") e cinismo frió ("todo mentira,
curiosidade de jornalista satírico, que Nash era, em todo
todo falso") que é tao típica do Barroco. Ésse natura-
caso nao é ésse o espirito do romance picaresco, do qual
lismo nao é uma apresentacao fiel da realidade social; an-
ele guarda, no fundo, só uma coisa, o ambiente novelístico:
as classes baixas da sociedade, mendigos, prostitutas, cri- tes se trata de uma deformacao da realidade, correspon-
minosos. Nasceu, assim, na Inglaterra, uma tradicao de ro- dendo á desvalorizacáo violenta do mundo por aquela filo-
mances, ou antes, novelas, de roguery, da malandragem sofía sombría. É isso o que caracteriza o romance picaresco
( 5 9 ), da qual o grande repositorio é The English Rogue, barroco. Nao existe nada de semelhante fora da Espanha;
de Richard Read e Francis Kirkman (""), vasta colecáo de os estrangeiros equivocaram-se, transformando em suas
novelas, autobiografías verdadeiras ou ficticias, anedotas, imitacóes o estoicismo cínico em sátira burlesca ou crítica
reflexoes moráis, sobre éssc mundo da perdicao. O ele- social. Está equidistante de ambas o romance picaresco ( f l l ).
mento picaresco só reaparecerá muito mais tarde, e intei- O primeiro romance picaresco do Barroco, o Guzmán
ramente anglicizado, em Defoe, Fielding e Smollett. de Alfarache, de Mateo Alemán ( 6 2 ), é o mais importante

As reflexoes e meditacoes moralísticas no Unfortunate fll) F. de Hiían: An Outline of the History of the Picaresque Novel
Traveller parecem, á primeira vista, muito semelhantes as in Spain. Haag, 1903.
digressóes do Guzmán de Alfarache e de outros romances A. Mlreya Suárez: La novela picaresca y el picaro en la literatura
española. Madrid, 1928.
M. Bataillon: Le román plcaresque. Paris, 1931.
58) Thomas Nash, 1561-1601. J. L. Sánchez Trincado: La novela piraesca. Valencia, 1933.
The Unfortunate Traveller, or the Life of Jack Wilton (1594). A. Valbuena Prat: La novela picaresca en España. Madrid, 1943.
Edicáo por H. F. B. Brett-Smith. Oxford, 1921. G. T. Northrup. The Picaresque Novel. New York, 1935.
J. W. H. Atkins (In: The Cambridge History of English litera- 62) Mateo Alemán, 1547 — c. 1614.
ture. Vol. m . 3.» ed. Cambridge, 1930). Guzmán de Alfarache (I Parte, 1599; U parte. Atalaya de la
F. Stamm: Thomas Nash. Basel, 1930. vida humana, 1604.)
F . T . Bowers: "Thomas Nash and the Plcaresque Novel." (In: Edicóes: Biblioteca de Autores Españoles, vol. n i ; e por I. Ce-
Studies in Honor of John Calvin Metcalf. ChailottevUle Va. jador, Madrid, 1931, e por S. Olll, Gaya, Madrid, 1942.
1941.) F. Rodríguez Marín: Vida de Mateo Alemán. Madrid, 1907.
59) F. W. Chandler: The Literature of Roguery. 2 vols. New York, U. Cronan: "Mateo Alemán and Miguel de Cervantes". (In: Re-
vue Hispanique, 1911.)
1907.
Fr. de Icaza: Sucesos reales que parecen imaginados de Gutierre
60) Richard Head, c. 1637 — c. 1686, e Francis Kirkman, c. 1632 — c. de Cetina, Juan de la Cueva y Mateo Alemán. Madrid. 1919.
1674. The English Rogue, described in the Life •>! Merxton Lairoon. G. Calabritto: í romamí picareschi di Mateo Alemán e Vicente
Being a Compleat History of the Most Eminent Cheats. (1665, Espinel. Valetta, 1929.
1668, 1671). 10.» ed,, de 1786 (relmpressa, London, 1928). A. Capdevlla. "Guzmán de Alfarache o el picaro moralista". (In:
840 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 841

de todos. A su a fama postuma foi prejudicada pela vizi- nha", e considera Alemán como espectador consciente e
nhanca cronológica do D. Quixote e pelo seu tamanho, pessimista do desastre político, militar e moral da patria,
que assusta a leitores modernos; só recentemente a crítica como precursor da a t i t u d e da geragáo de 1898. Contudo, o
literaria comegou a apreciar devidamente essa obra, urna Guzmán de Alfarache nao é obra realista, á maneira de "Rin-
das maiores da literatura espanhola e da literatura univer- conete y Cortadillo", de Cervantes; Alemán deforma a rea-
sal. Guzmán conta, na primeira pessoa, as suas aventuras, lidade, caricaturando-a até excessos de monstruosidade, em
que constituem um panorama enorme d a vida espanhola claro-escuro fantástico, como os grandes ilustradores do
dos comegos do século X V I I . Mas o romance nao é me- Barroco, como um Callot. O motivo, ou antes, um dos mo-
ramente espanhol nem urna "period piece"; é um comenta- tivos da deformagáo, é o scntimento vivo da injustiga social
rio da vida humana, de valor permanente. Guzmán passa neste mundo, que sujeita o pobre a todas as humilhacoes
a vida como malandro, jogador, falso fidalgo em Toledo, e corrugoes e garante ao bem-nascido, nao menos corruto,
soldado, mendigo em Roma, palhago do embaixador da a impunidade e a vida fácil: "yo sufro las afrentas de que
Franca, alcoviteiro, comerciante logo falido, aluno de se- nacen tus honras". O romance picaresco é o desmascara-
minario teológico, rufiáo de sua própria mulher, ladráo, mento cruel do ideal aristocrático do Barroco, que já nao é
presidiario, penitente enfim. O interésse novelístico e his- realidade, como na Idade Media, nem poesia romántica,
tórico da obra é extraordinario, e Alemán conta os acon- como na Renascenga, e sim urna imposigao mentirosa. Só
tecimentos mais repugnantes com aquela frieza cínica que os picaros observam aínda o código de honra; mas nao
c o apanágio de urna estirpe inteira de grandes romancis- lhes serve para nada. O mundo de Alemán é um inferno.
tas, com análise implacável dos motivos psicológicos, em Mas Guzmán nao se revolta. Seu esfórgo desesperado é
estilo elegante com ligeiras reminiscencias de sintaxe la- outro: transformar ésse inferno em purgatorio. No fundo
tina. Alemán traduziu Horacio para o castelhano; e sem- da alma do picaro existe um desejo de purificagáo do qual
pre guardou a compostura algo aristocrática do seu mo- é difícil dizer se se trata de ascetismo castelhano ou de
delo, certo ar de superioridade. O resultado é um con- estoicismo barroco; na verdade, ambos os motivos estáo
traste fortíssimo entre a baixeza das personagens e a no- presentes e dáo como resultado as digressoes e reflexoes
breza da apresentagao. Só por vézes, quando o caráter moráis, que interrompem a cada passo a narragáo do picaro
autobiográfico da narragao está por demais evidente, Ale- cínico e imoral, exprimindo urna filosofía pessimista e re-
mán revela certa emogáo, embora nunca efusiva; no meio da signada da vida. Essas digressoes sao, em parte, respon-
corrugáo moral mais completa, Guzmán continua, pelo me- sáveis pelo tamanho exagerado do. romance; dificultam,
nos perante o foro íntimo, um gentleman perfeito. O pano- hoje, a sua leitura; e Lesage, que se aproveitou de episo-
rama da época é desolador; Valbuena Prat chama ao Guz- dios do Guzmán para o Gil Blas, já manifestou desagrado
mán de Alfaracbe "o livro da decadencia fatal da Espa- para com os "sermoes intermináveis" do picaro moralista.
É que Lesage já nao era homem barroco. Os contempo-
ráneos compreenderam melhor a índole da obra, de modo
Boletín del Instituto de Investigaciones Literarias. Buenos Aires,
que, apesar de tamanho e "sermoes", apareceram do Guz-
1943.)
A. C. Crivelll: "Sobre el Guzmán de Alíaracne y la Segunda Par- mán de Aliaiache, entre 1599 e 1605, nada menos que 23
te apócrifa". (In: ínsula, 1944, I.) •digoes — o maior sucesso de livraria da literatura espa-
C. Moreno Baez: "Lección y sentido del Guzmán de Alfarache".
(In: Revista de Filologta Española, Anejo XL, 1948.)
842 OTTO M A R Í A CAHPEAOX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 843

nhola. O éxito foi tao grande que, antes da publicacao Celestina, de Salas Barbadillo ( 6 4 ), evoca um grande nome,
da segunda parte, em 1604, um autor sob pseudónimo, tai- e nao sem direito: a picara désse romance é urna filha do
vez certo Juan Martí, publicou em 1602 urna segunda parte povo, corrompida nos círculos cortesáos, caindo e caindo
apócrifa, que alias muito bem se enquadra no conjunto, ao depois, até o fim trágico. Os estrangeiros interpretaram
ponto de se Ievantarem dúvidas quanto á autoria e subsis- essa obra — que é do espirito de Mateo Alemán — como
tir até hoje um problema bibliográfico em torno do Guzmán um belo romance sentimental, e gostaram déle; déle fez
de Alfarache. A auténtica segunda parte, Alemán deu-lhe Scarron, nos Hypocrites, urna versáo francesa, que nao dei-
o subtítulo Atalaya de la vida humana, frisando o sentido xará de repercutir até em Manon Lescaut. O romance pi-
filosófico da obra: "Todo fue vano, todo mentira, todo ilu- caresco toma feicao mais psicológica e portanto mais geral-
sión, todo falso y engaño de la imaginación, todo cisco y mente humana, mais européia, no Marcos de Obregón, de
carbón, como tesoro de d u e n d e . . . " É expressáo perfeita Vicente Espinel ( 8G ), obra meio autobiográfica, na qual es-
da mentalidade angustiada do Barroco, condensada em don- pirito engenhoso e sentimentalismo delicado colaboram
trina estoica e ascética, e contrastada com as experiencias para produzir urna obra de valor universal, que agradou em
vitáis que desmentem todas as doutrinas e só deixam na toda a p a r t e : urna imitacao holandesa, o VermakeHje Avon-
66 A
boca o gósto amargo de "cisco y carbón". Mas quem diria turier (1695), de Nicolaes Hcinsius Júnior ( - ), é um dos
que essa experiencia é sómente do homem barroco? O romances mais espirituosos do sáculo; e Lesage saberá
Guzmán de Alfarache, obra bem barroca e bem espanhola, aproveitar-se do Marcos de Obregón para o Gil Blas. Mas
é um comentario permanente da vida humana. o romance francés é incontestávelmente urna obra de estilo
Entre a grande massa dos romances picarescos espa- e mentalidade diversas.
nhóis — exploracao de um género em moda — encontram- O melhor romance picaresco, depois do Guzmán de
se algumas obras diferentes, em parte notáveis; e quanto Alfarache, é a Vida de Buscón ou El gran tacaño: nao
mais diferentes do tipo auténtico, tanto melhor compreen- podia ter resultado diferente a tentativa, no género, de um
siveis e imitadas no estrangeiro. O romance da Pícara Jus-
tina, de López de Úbeda ( 6 3 ), apresenta a novidade de um
picaro feminino; mas o valor da obra, os hispanistas en- 64) Alonso Jerónimo de Salas Barbadillo, 1581-1635.
La hija de Celestina (1605).
contram-no apenas na riqueza do vocabulario popular, na Edicáo por E. Cotarello y Mir, 2 vols., Madrid, 1907/190».
materia folclórica. The English Rogue é coisa semelhante. 65) Vicente Espinel, 1550-1624.
O outro picaro feminino que se tornou notorio, La hija de Vida del escudero Marcos de Obregón (1618).
Edícóes por I. Pérez de Guzmán, Barcelona, 1881, e por S. Gilí
Gaya (Clásicos Castellanos).
G. Calabritto: J romanzi picareschi di Mateo Alemán c Vicente
63) Francisco López de Úbeda. Espinel. Valetta, 1929.
Libro de entretenimiento de la picara Justina (1605). (A autoría
de López de Übeda — hipótese de Foulché-Delbosc — é duvidosa.) 65A) Nicolaes Helnslus Júnior, 1656-1718.
Edicáo por J. Puyol Alonso, 3 vols. (vol. m : Estudio critico), Der VermakeHje Avonturier (1696).
Madrid, 1912. Edlcao por C. J". Kelk, Amsterdam, 1955.
R. Foulché-Delbosc: "L'auteur de la Picara Justina". (In: Revue J. Ten Brlnk: Nicolaes Heinsius Júnior. Eene studíe over den
Hispanique, 1903). Hollandschen schelmenroman in de 17 de eeuw. Rotterdam, 1885.
844 OTTO M A M A CARPEATJX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 845

escritor tao grande como Quevedo (° 8 ). A obra revela o Lozano, aos quais a historiografía literaria nao deu impor-
autor: na amargura satirica, na forra caricaturesca, na arte tancia alguma, tratando-se de leitura popular das classes
barroca de justapor contrastes violentos, na atmosfera baixas dos séculos X V I I e X V I I I . Mas ésses romances sao
sombría. A Vida de Buscón reúne, com a maior concisáo, produtos muito curiosos. Los reyes nuevos de Toledo,
todas as qualidades do género; mas ao lado do Guzmán de historia da cápela sepulcral dos "Reyes nuevos" na cate-
Alfatache é apenas urna novela. dral de Toledo, da qual Lozano era capelao, é a combina-
Os romances picarescos de Castillo Solórzano ( 9T ) sao cao fantástica de um romance de cavalaria com urna his-
de qualidade algo inferior. T o d o s os autores do género toria nao menos fantástica dos reís medievais de Castela.
se aproveitaram da novelística italiana para os seus enre- De outro lado, um título como Soledades de la vida, y De-
dos, principalmente quanto aos episodios e contos insertos, sengaños del Mundo evoca toda a mentalidade barroca. Lo-
e Castillo Solórzano voltou mesmo á técnica da novela ita- zano mistura da maneira mais curiosa o tipo picaresco com
liana: os seus romances sao antes colecoes de contos. Por a atmosfera calderoniana, produzindo a imagem de urna
isso, imitaram-no na Italia, onde Andrea Cavalcanti (1610- Espanha real e fantástica ao mesmo tempo, como um con-
1673) revivificou a antiga arte florentina de narrar facé- junto de quadros de Greco e Ribera, Zurbarán e Valdés
cias e burlas, ñas deliciosas Notize intorno alia vita di Leal. Os románticos espanhóis do comégo do século X I X
Cuizio da Marígnolle. conheciam e apreciavam ésse escritor popular, hoje esque-
cido, que forneceu a Espronceda e Zorrilla a materia de sua
Ñas historias antigás da literatura espanhola, Cristó-
"Espanha antiga": visoes fúnebres, igrejas misteriosas, pa-
bal Lozano (fl8) aparece — enquanto seu nome aparece —
lacios encantados, apari$6es de espectros, fidalgos men-
como dramaturgo de segunda ou terceira categoría, entre
digos e ministros assassinos. É o ponto era que Barroco
os discípulos de Calderón; a técnica das suas pegas é frouxa
e Romantismo se encontram, desmentido decisivo ao pre-
e pouco artística, a atmosfera é fantástica e sombria. Essas
tenso realismo do romance picaresco. Nao há nada de se-
pegas estáo incluidas, ao lado de novelas, nos romances de
melhante fora da Espanha.
66) Sobre Quevedo, cf. "Antibarroco", nota 7.
Historia de la vida del Buscón, llamado don Pablos, ejemplo de O romance picaresco fora da Espanha torna-se fatal-
vagamundos y espejo de tacaños (El gran tacaño) (1826). mente outra coisa. Desaparece a situacáo social da vaga-
L. Spltzer: "Die Runst Quevedos in seinem Buscón". (In: Archi-
vum Romanicum, 1927.) bundagem, típica da Espanha da época do mercantilismo
falido, e desaparece o estoicismo, que é na Espanha espe-
67) Alonso de Castillo Solórzano, 1584 — c. 1648.
Lisardo enamorado (1629): La niña de los embustes (1632); Aven- cie de filosofía do homem da rúa. O que fica é o realismo na
turas del bachiller Trapaza (1637); La Garduña de Sevilla y An- descricao dos costumes, a sátira contra os ocios e vicios
zuelo de las bolsas (1642), etc., etc. dos nobres, o humorismo de certas situacoes, tudo quanto
Edlcao da Garduña por R. Morcuende (Clásicos Castellanos); caracteriza o chamado romance realista do século X V I I na
outros romances, edit. por E. Cotarelo, 3 vols., Madrid, 1906/1908.
P. N. Dunn: Castillo Solórzano and the Decline oí the Spanish Franca ( 8:> ). Nada tem que ver com a literatura burlesca das
Novel. Oxford, 1952. epopéias herói-cómicas, a nao ser o fato de que os seus
68) Cristóbal Lozano, 1609-1667. autores escreveram também, por vézes, poemas assim. Mas
Soledades de la vida, y Desengaños del Mundo (1658); Reyes nue-
vos de Toledo (1667).
J. Entrambasaguas: El dr. don Cristóbal Lozano. Madrid, 1927. fluí O. Reynier: Le román réaliste au XVIIe siécle. Paris, 1914.
OTTO M A R Í A CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 847

quem podia fazer romance realista na 1'ranea dos "pré- Ao Román comique, de Scarron, já se fez justica; do
cieux" e dos classicistas académicos senáo os parias da Román bourgeois, de Furetiére ( 7 1 ), nao existe edicáo mo-
corte e da Academia, os poetas burlescos? derna nem, sobre ele, estudo concreto. Parece produzir
Paul Scarron ( 7 0 ), o criador do romance picaro-bur- efeitos postumos a cólera da Académie Francaise, que ex-
lesco, foi polígrafo, virtuose de todas as maneiras de di- cluiu o escritor por haver publicado um dicionário da lín-
vertir a gente. As suas comedias, tiradas de pegas espa- gua francesa antes de sair o dicionário oficial. Furetiére,
nholas, nao passam de Divertimentos; diversoes teatrais com efeito, era académico, amigo de Boileau, do qual aceitón
sao também os seus poemas herói-cómicos, á maneira ita- a estética "naturalista" — interpretando-a de maneira di-
liana, a Gigantomachie e a Enéide travestie. A necessi- ferente — e amigo de Moliere, do qual é patricio no sen-
dade de arranjar novos e sempre novos meios de divertir tido mais estrito da palavra: sao dois parisienses. Mas en-
levou o conhecedor da literatura espanhola ao romance quanto Moliere é o dramaturgo "de la cour et de la ville",
picaresco, do qual deu versóes livres, como revela a com- é Furetiére o romancista apenas da "ville", dos burgueses
paraclo dos Hypocrites com a Hija de Celestina, de Salas de Paris e dos "parásitos" da vida burguesa, dos boémios
Barbadillo. Só o seu Román comique é mais original em literarios; é burgués com consciéncia, embora com o es-
todos os sentidos: do romance picaresco apenas conserva a pirito e as franquezas moráis do literato profissional. A
apresentagáo dos acontecimentos em viagens — embora mistura de burgués e literato deu o académico e classicista
transformando a simbólica "viagem pela vida" em viagem — Furetiére já nao é burlesco e sim realista auténtico, pre-
real para Le Mans — e o nome melancólico do herói: Le cursor longínquo de Balzac. É um escritor admirável na
Destín. O ambiente burgués daquela cidade provinciana apresentacáo de personagens cómicas e na narracao viva.
de Le Mans e a miseria dos atores cómicos viajantes sao Mas foi sómente A n d r é Gide. o burgués classicista, que se
caracterizados com realismo insubornado, enquanto o há- lembrou do Román bourgeois a propósito de um inquérito
bito da poesía burlesca produz as cenas humorísticas, irre- sobre "les dix romans francais que je préfére".
sistíveis, ñas quais se defrontam os versos sublimes das tra-
Furetiére, como todos os romancistas realistas do sé-
gedias representadas e a miseria material e moral dos ató-
culo X V I I , aprendeu no romance picaresco certos truques
res. A propósito de Scarron já se lembrou Fielding; pre-
da técnica novelística e, antes de tudo, a coragem de apre-
ferimos pensar em Smollett. Nunca mais a Franga produ-
sentar a realidade; mas o Román bourgeois nao tem nada
ziu romance táo ingenuo e engenhoso.
que ver com o Guzmán de Allarache ou com El gran tacaño.
A confusáo é dos historiadores do século XIX. Quando
70) Paul Scarron, 1610-1660.
Le Román Comique (1651/1657); Les Hypocrites (1655).
Gigantomachie (1644); Enéítte travestie (1648/1653). 71) Antolne Furetiére, 1620-1688.
Comedias: Iodelet ou Le Maitre valet (1645); Don Japhet d'Ar- Les amours d'Enée et de Didon (1649); Le román bourgeois
ménie (1655), etc. (16661; Dictionnaire universel (1690).
Edit'do do Román Comique por V. Fournel, Parts, 1857. Edicáo do Román bourgeois por E. Fournier e Oh. Assellneau,
P. Morillo!.: Scarron, sa vie et ses oeuvres. París. 1888. París, 1854.
H. Chardon: Scarron inconnu et les types des personnages da F. Wey: "Antolne Furetiére, sa vie, ses oeuvres, ses démeles avec
Román Comique. 2 vols. París, 1904. l'Académle francaise". (In: Revue Contemporaine. 1852.)
E. Magne: Scarron et son milieu. 2.» ed. Parts, 1923. D. F. Dallas: Le román ¡raneáis de 1660 a 1680. Paris, 1932.
H. d'Almeras: Le Román Comique de Scarron. París, 1931. A. Thérlve: "Furetiére". (In: Tableau de la Littérature Francaise
N. F. Phelps: The Queen's Invalid. Baltlmore, 1951. de Corneille á Chénier. Paris, 1939.)

;

848 OTTO M A M A CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 849

Leiage apareceu com o seu Gil Blas, o primeiro romance


descoberta, também na boca dos camponeses napolitanos,
picaresco em língua francesa, e contudo de espirito tao di-
dos contos de fadas, de cuja existencia a literatura culta
ferente, a obra deu a impressao de novidade absoluta.
nunca tivera conhecimento; eram versees mediterráneas
O material do romance picaresco é o povo; mas os seus dos contos de fadas que sao propriedade comum dos povos
autores sao homens letrados, cultos e até eruditos. O in- indo-germánicos e q u e todo o mundo conhecerá nos Contes
terésse pelo folclore, por tradicoes, contos, canjees popu- de ma mere l'Oye, de Charles Perrault, e nos Contos de
lares, é típico do Barroco: no século X V I I descobriu Fran- fadas para as criangas, dos irmaos Jacob e Wilhelm Grimm.
ciscus Junius a literatura anglo-saxónica, e Brynjulf Mas, quando Basile reuniu, no Cunto de li cunti — outra
Sveinsson a Edda. A incansável erudicáo enciclopédica da vez em dialeto napolitano — ésses contos populares, as
época devora e rumina tudo, até a literatura oral. O tipo suas reminiscencias literarias das epopéias e do Amadis
do folclorista erudito foi Michelangelo Buonarroti ( 7 2 ), o intervieram; e interveio muito mais a sua própria imagi-
sobrinho do grande artista. Na Toscana, que é há quatro nacáo vivíssima, produzindo as narracóes mais fabulosas
séculos a térra mais letrada da Europa, descobriu tesou- que existem no m u n d o ; e, apesar do dialeto napolitano,
ros de fala popular na boca dos camponeses; em vez de também interveio o gósto marinista, em forma de lingua-
colecioná-los em dicionários, apresentou-os em comedias gem pomposa e complicada, que a todo o momento se con-
populares — Tanda, La fiera — que o seu espirito mali- verte em burlesca. Em suma: o Cunto de li cunti é urna das
cioso de florentino lhe inspirou. Em térra de civilizacáo obras literarias mais curiosas do Barroco; e mereceu a
ainda mais antiga, entre os camponeses de Ñapóles, o aris- honra de sugerir o interésse pela poesía popular ao napo-
tócrata erudito Giambattista Basile ( 78 ) descobriu as ma- litano Giambattista Vico. Mais tarde, o editor moderno do
ravilhas lingüísticas do dialeto da regiáo; aplicándolo ñas Cunto de li Cunti será o napolitano honorario Benedetto
églogas das Muse napoletane, saíram poesías integramente Croce.
diferentes de todas as églogas estilizadas da Renascenca
ou do Barroco: cenas fielmente realistas da vida popular A antítese mais perfeita désses folclorismos eruditos
napolitana. Mas Basile tornou-se famoso, sobretudo, pela é a poesía de Petter Dass ( 7 4 ), pastor protestante, perdido
mima paróquia do extremo Norte da Noruega, Dass tam-
72) Michelangelo Buonarroti il giovane, 1568-1646. bém nao era alheio á erudicáo enciclopédica da sua época,
Tancia (1612); Fiera (1618; publ. em 1726). e as suas "Vise" sao salmos e cancoes eclesiásticas de an-
Edipao por P. Fanfani, Firenze, 1860. Edicáo da Tancia por E. gustia barroca. A sua obra principal, Nordlands Trompet,
AllodoU, Firenze, 1936.
Sobre Buonarroti so existe urna monografía em lingua húngara: é um poema descritivo da natureza.do Norte ártico e da
A. Radó: Az Ifjabb Michelangelo Buonarroti. Budapest, 1896. vida dos pescadores e camponeses. O objetivo de Dass é,
73) Giambattista Basile, 1576-1632. mais urna vez, meio erudito: o vigário pretendeu enriquecer
// Cunto de li Cunti (.Pentamerone) (1634); Muse napoletane os conhecimentos de geografía patria. Mas ésse homem sim-
(1635).
Edicáo por B. Croce, Napoll, 1891.
Traducáo para o italiano por B. Croce. Bari, 1925. 74) Petter Dass, 1647-1709.
L. Di Francia: II Pentamerone di Giambattista BasUe. Torino, Dale-Vise (1711); Nordlands Trompet (1739).
1927. Edicáo por A. E. Erichsen, 3 vols., Oslo, 1874/1877.
A. Caccavelli: Fiaba e realta nel Pentamerone del Basile. Na- R. Sveen: Dass og hans diktning. Oslo, 1912.
poll, 1928. H. Midboe: Petter Dass. Oslo, 1947.

850 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 851

pies e sincero disse o que viu, com todos os prosaísmos e suportável se nao fósse o humorismo de Grimmelshausen,
rudezas da sua gente. Dass é o fundador de urna literatura, ás vézes irónico, as vézes brutal, introduzido por um tru-
da literatura norueguesa. Na segunda metade do século que genial: o seu herói. o Simplicissimus, é um "simples",
X V I I I , a obra de Dass continuar-se-á através dos folclo- quer dizer, um menino que cresce, tornando-se adolescente
ristas do pré-romantismo. e homem, observando e relatando aqueles horrores com es-
Quando ésse espirito popular — nao o estoicismo eru- pirito da mais perfeita ingenuidade; daí, tudo estar apre-
dito de um Alemán ou Quevedo — chega a informar um sentado da maneira mais nua, mais cruel do que poderia
romance picaresco, eis o Simplicissimus Teutsch, de Grim- ser o relato de um observador crítico, de espirito já for-
melshausen ( 1 S ), um dos maiores livros do século X V I I , mado ; e tudo está atenuado por um raio de humorismo ju-
um livro ainda hoje terrivelmente vivo. A literatura alema venil e pelo raio de esperanca de que aqueles horrores aca-
barroca é bastante rica e, após o desprézo de tres séculos, baráo, um dia. Mas, quando a guerra realmente acaba, Sim-
so agora devidamente apreciada; mas nao é original, é li- plicissimus, agora já homem que passou por todas as ex-
teratura de segunda máo, de urna élite italianizada e afran- periencias, torna-se de repente cristao e até eremita, reti-
cesada, sem raízes no espirito nacional. Espirito nacional rando-se do mundo. É o exemplo do Guzmán de Alíarache
nao existe num pais devastado durante 30 anos, e da manei- que Simplicissimus está seguindo, e o romance da sua vida
ra mais radical, pelos mercenarios de todas as nagoes. O é realmente um romance picaresco, o único auténtico que
Simplicissimus é um panorama da Alemanha durante essa foi escrito fora da Espanha, porque o seu autor, homem
grande guerra: aldeias incendiadas, saques e violacoes. cri- do povo, aprendeu na sabedoria popular algo parecido com
o estoicismo popular dos espanhóis; apenas, o estoicismo
mes e perversoes de toda a especie permanecendo impunes,
de Grimmelshausen é o de um cristao, embora sem dogma.
gente e bichos morrendo de fome, ortodoxias fanáticas e
No seu "desengaño del mundo" repercute a desilusao em
bruxas queimadas, mercenarios furiosos e eruditos supersti-
face da luta insincera, luta materialista, entre católicos e
ciosos e régulos e aristócratas pomposos — o Simplicissi-
protestantes. Aquilo a que Grimmelshausen aspirava era
mus é o grande documento de tudo isso. O horror seria in-
um cristianismo além das confissoes dogmáticas, e o ca-
ininho da vida do seu Simplicissimus é um caminho de edu-
76) Johann Jacob Christoffel von Grlmmelshausen, 1622-1676. carlo e auto-educacáo, através das tentacoes e experien-
Der Abentheurliche Simplicissimus Teutsch (1669); Trute Sim-
plex oder Lebensbeschreibung der Ertabetruegerin und Landstoer- cias da vida. O Simplicissimus foi comparado a outra gran-
tzerin Courage (1669); Der seltzame Springins/eld (1670); Der de obra alema de educagao religiosa! o Parzival, de Wol-
Keusche Josepk (1670); Proximus und Lympida (1672). fram von Eschenbach; e também já foi comparado á gran-
Edic&es por F. Bobertag, 3 vols., Stuttgart. 1882, e por H. H. de obra de auto-educacáo profana, o Wilhelm Meister, de
Borcherdt, 4 vols., Berlín, 1921.
Goethe. As comparasóes estío certas, do ponto de vista da
C. A. von Bloedau: Grimmelshausens Simplicissimus und seine
«volucáo histórica: Grimmelshausen criou o "Bildungs-
Vorgaenger. Berlín, 1908.
A. Bechstein: Grimmelshausen und seine Zeit. Heidelberg, 1914. roman", o "romance de educacao", variedade específica-
E. Ermatlnger: "Weltdeutung in Grimmelshausens Simplizlssi- mente alema do género "romance". Quanto ao valor lite-
mus". (In: Euphorion, Erg-Hefc 17, 1925.) rario é o Simplicissimus a maior obra da literatura alema
J. Alt: Qrimmelshausen und der Simplizissimus. Muenchen, #ntre o Nibelungenlied e Goethe.
1936.
J. H. Scholte: Der Simplizissimus und sein Dichter. Tueblngen.
1960.
"W" -

i! 52 OTTO M A R Í A CABPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 853

D u r a n t e todo o século X I X , o esquecimento completo nia p i t o r e s c a p a r a urna i i h a d e s e r t a , j á n a o á p r o c u r a d a


d a l i t e r a t u r a b a r r o c a p r o d u z i u a i m p r e s s á o d e ser o Sim- g r a n d e s o r t e o u d a s a l v a c a o da alma, m a s d e u m E s t a d o
plicissimus u m f e n ó m e n o ú n i c o , i s o l a d o , u m oasis n u m d e - ideal, u t ó p i c o , s e g u n d o a s i d é i a s d o século X V I I I . O r o -
serto literario. Os c o m p a n h e i r o s literarios de Grimmels- m a n c e d e S c h n a b e l j á é i m i t a c a o d o Robinson Crusoe; m a s
hausen descobriram-se pouco a pouco, e o mais curioso o m o d e l o é m a i s " m o d e r n o " . O século X V I I I d e S c h n a b e l
déles só recentemente: J o a h n n e s B e e r (T6), conhecido h á n a o é o d a I l u s t r a c a o ; é - c o m o o revela o s e u o u t r o r o m a n -
m u i t o como músico austríaco e agora identificado com os ce Der im Irrgarten del Liebe herumtaumelnde Cavalier —
v a r i o s p s e u d ó n i m o s q u e u s o u p a r a a s s i n a r os s e u s r o m a n - urna S a x ó n i a g a l a n t e , d e e s t a t u e t a s de p o r c e l a n a d e M e i s -
ces, c h e i o s de m a t e r i a l f o l c l ó r i c o e h u m o r i s m o p o p u l a r , a s sen; o Rococó é o herdeiro imediato do Barroco.
v é z e s d e u m s ó p r o épico. O e l e m e n t o s a t í r i c o d o r o m a n c e
p i c a r e s c o a p a r e c e em f o r m a b a s t a n t e o r i g i n a l ñ a s c o m e -
dias de Christian Reuter (77), q u a d r o s vivíssimos da vida
e s t u d a n t i l , na L e i p z i g d o s é c u l o X V I I . R e u t e r u t i l i z o u - s e
da personagem de Schelmuffsky, grande fanfarráo ñas co-
medias, para escrever um v e r d a d e i r o romance picaresco,
n a r r a c a o d e urna v i a g e m f a b u l o s a , i n t e i r a m e n t e i n v e n t a d a .
E n f i m , a m e n t i r a t r a n s f o r m o u - s e e m u t o p i a n a Insel Fel-
senburg, d e S c h n a b e l ( 7 8 ) : a f u g a d o p i c a r o d e urna S a x ó -

76) Johannes Beer. 1655-1700.


Romance eje cavalaria: Printz Adimantus (1678);
romance picaresco: Der simplicianische Welt-Kucker (1677/1679);
romances populares: Die Teutschen Winternaechte (1682); Die
Kurtzweiligen Sommertaege (1683).
R. Alewyn: Johannes Beer. Leipzig, 1932.
77) Christian Reuter, 1665-1712.
Schelmuffskys warhafftige curioese und sehr gefaehrliche Reise-
beschreibung zu Wasser und Land (1696); comedias: L'honnéte
¡érame (1695); Der Frau Schlampampe Krankheit und Tod (1696).
Edicáo do romance por A. Schullerus, Halle, 1885; edigéo das
obras por G. Witkowski, 2 vols., Leipzig, 1916.
O. Deneke: Schelmuffsky. Qoettingen, 1927.
H. Koenlg: Schelmuffsky ais Typ der barocken Bramarbasdlch-
tungen. Marburg, 1947.
78) Johann Gottfried Schnabel, 1692-c. 1750.
Wunderliche Fata einiger Seefahrer, absonderlich Alberti Julii,
cines gebohrnen Sachsen, und seiner auf der lnsel Felsenburg
errichteten Colonien (1731/1443); Der im Irrgarten der Liebe
herumtaumelende Cavalier (1738).
Edicáo da Felsenburg por H. TJllrlch, Berlin, 1902.
Edic&o do Irrgarten por P. Ernst. Berlin, 1907.
L. K. Beeker: Die Romane Johann Gottfried Schnabels. Bonn,
1911.
K. Schoroeder: Schnabels lnsel Felsenburg. Marburg. 1912.
CAPITULO IV

O BARROCO PROTESTANTE

A Inglaterra, a Renascenca chegou atrasada. Os come-


N gos do humanismo — Colet, Thomas Morus, Erasmo
— foram interrompidos pela "Reforma" do reí Henrique
V I I I ; a poesia italianizante de W y a t t e Surrey nao teve
conseqüéncias imediatas. Só mais tarde, na segunda me-
tade do século X V I , aparece o maior poeta da Renascenca
inglesa, Edmund Spenser, e pouco depois, os primeiros
grandes dramaturgos, Marlowe e Shakespeare. Ñas suas
obras reflete-se urna paisagem espléndida: após a vitória
sobre a Armada espanhola, a Inglaterra está no auge do
poder político, prepara-se o imperialismo colonial, a pros-
peridade económica satisfaz todas as classes da sociedade,
a aristocracia culta, a burguesia abastada, o povo, aínda um
pouco grosseiro, mas de inteligencia viva e gasto espontá-
neo; e o centro dessa vida febril e feliz é a barulhenta, a
opulentíssima cidade de Londres, em cujos teatros Shakes-
peare faz representar as suas tragedias patrióticas e co-
medias alegres. No conceito convencional da historia li-
teraria inglesa, nao é Spenser, e sim Shakespeare, o maior
poeta da Renascenca, a encarnacáo da fórca abundante da
¿poca da rainha Isabel. Depois, essa fórga teria come-
cado a enfraquecer. Num manual divulgadissimo (e re-
cente) da literatura inglesa, o capítulo em que sao estu-
dados Ben Jonson, John Webster, Donne e Thomas Browne,
856 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 857
é intitulado: " T h e Decline of t h e Renaissance". O fecha- dada, nos manuais, em dois capítulos inteiramente separa-
mento dos teatros pelos puritanos, em 1642, é comentado dos — teatro e poesía — como se nao tivessem nada em
como fim da "Merry Oíd England". A antiga alegria in- comum.
genua nao voltou nunca mais. A Inglaterra da Restaura- Só pouco a pouco se reconhece a natureza barroca da-
d o , depois de 1660, pretende s e r alegre, mas só atinge a quele teatro. Erudicao barroca é o que antigamente parecía
obscenidade; pretende ser clasiscista, e consegue chegar humanismo classicista, em Ben Jonson ( s ). Nao é casual
apenas a pompas barrocas. O puritanismo hipócrita estra- a grande influencia que Beaumont e Fletcher exerceram
gara a Renascenqa. sobre o teatro pseudoclassicista, e na verdade barroco, da
Ésse quadro da literatura inglesa entre 1590 e 1640 nao Restauraqác (*). O barroquismo de Webster e Ford, espí-
corresponde á totalidade dos fatos literarios. Baseia-se, ritos qnase anti-renascentistas, é evidente; e no último dos
em primeira linha, no menosprézo dos pretensos "sucesso- grandes dramaturgos, Shirley, descobriu-se o moralismo
res" de Shakespeare que pareciam, aos críticos de 1850, aristotélico, tao caro aos teóricos da estética barroca ( B ).
epígonos mais ou menos degenerados; baseava-se também Enfim, o teatro chamado elisabetano nao é elisabetano;
no esquecimento da poesía entre Shakespeare e Milton. Shakespeare escreveu suas maiores obras depois da morte
Mas desde os tempos de Taine mudou muita coisa. Swin- da rainha, em 1603; e recebeu muito mais favores e estí-
burne, voltando ao entusiasmo de Lamb e outros román- mulos da parte do sucessor, o reí Jaime I, personalidade
ticos, reabilitou os sucessores de Shakespeare, demons- das mais barrocas da historia británica. Com a exce^áo de
trando o valor dramatúrgico e poético, extraordinario, das Marlowe, o grande teatro inglés da época é "jacobeu"; e é
pegas de Chapman, Ben Jonson, Webster, F o r d ; Jonson hoje reconhecido como arte barroca (°).
e Webster, pelo menos estes, chegaram a ser colocados ao Contudo, quando Meissner ( 7 ) pretendeu demonstrar o
lado do maior dos dramaturgos e poetas ( ' ) . Gosse, Grier- caráter barroco de toda a literatura inglesa entre 1590 e
son, T. S. Eliot redescobriram, sucessivamente, reabilita- 1680, a crítica inglesa nao concordou. Essa literatura ex-
ram a "metaphysical poetry" de Donne, George Herbert, plora em grande parte motivos fornecidos pela Renas-
Crashaw, Vaughan, Marvell ( 2 ). Também a prosa da época cenca italiana, apresentando-os, muitas vézes, em formas
— os sermSes de Donne, os escritos de Robert Burton e italianas. A situacao da literatura inglesa por volta de
Thomas Browne — é tida hoje, novamente em altíssima 1580 é a mesma que a de Tasso na Italia: transicao entre
consideracáo. Sobre o caráter barroco dessa prosa e da Renascenca e Barroco. Muito do que Meissner conside-
"metaphysical poetry" nao pode haver dúvidas; mas a tra-
di;áo que considera o teatro shakespeariano como expres- 3) R. S. Walker: "Ben Jonson's Lyric Poetry". (In: Criterlon. XIII,
sáo da Renascen§a aínda resiste aos ataques da crítica li- 1934.)
teraria, e é éste o motivo porque a historia literaria inglesa 4) A. C. Sprague: Beaumont and Fletcher on the Restauration
da primeira metade do século X V I I continua a ser estu- Stage. London, 1926.
61 P. Radtke: James Shirley. His Cathollc Philosophy of Life.
London, 1929.
fl) T. S. Ellot: Elizabethan Essays. London, 1934.
1) Ch. A. Swlnburne: The Age of Shakespeare. London, 1908. U. M. Ellis Fernibr: The Jacobean Drama. London, 1936.
2) « . nota 87. 71 P. Meissner: Die geistesgeschlchtlichen Grundlagen des englis-
chen Literaturbarock. Berlín, 1934.
858 OTTO M A R Í A CARPEATJX HISTORIA DA L I T E R A T U B A OCIDENTAL 859

rava c o m o Barroco é n a v e r d a d e m e d i e v a l . N o s d r a m a - ghara, t r a b a l h o s d e T h o m a s S a c k v i l l e ( 1 0 ) , q u e era p o e t a


t u r g o s p r e v a l e c e m a s idéias e c o n c e i t o s m e d i e v a i s s o b r e a notável, u m m e s t r e d o e s t i l o solene, m e n o s p a r e c i d o c o m
c o s m o l o g i a e sobre a s r e l a c o e s e n t r e o h o m e m e o U n i - o estilo d e S p e n s e r d o q u e c o m o d e M i l t o n ; é u m p r e c u r -
v e r s o ( 8 ) . A I n g l a t e r r a e l i s a b e t a n a a i n d a era, c o m o a E u - s o r d o B a r r o c o . D é s t e m o d o , o Mirror for Magistrates re-
r o p a i n t e i r a d e e r t a o , m e i o m e d i e v a l , s e n d o a c u l t u r a da p r e s e n t a a s t r e s fases da é p o c a t r a n s i t o r i a á q u a l c h a m a r a m
R e n a s c e n $ a privilegio a p e n a s d a s c l a s s e s c u l t a s ; n o t e a t r o , antigamente "Renascenca inglesa". Shakespeare pertence
a r t e e d i v e r t i m e n t o p a r a as m a s s a s p o p u l a r e s , o e s p i r i t o a fase r e n a s c e n t i s t a p e l a s p r i m e i r a s c o m e d i a s , p e l o s d r a -
m e d i e v a l d e s s a s massas p r e v a l e c e u . S h a k e s p e a r e nao é,
m a s da h i s t o r i a i n g l e s a , e a i n d a p e l o Romeo and Juliet, p o r
n e s t e s e n t i d o , o poeta m a i s r e p r e s e n t a t i v o d a é p o c a , n e m
Midsummer-night's Dream, Twelfth Night, As You Like
q u a l q u e r dos o u t r o s d r a m a t u r g o s , p o r q u e s e a c o m o d a r a m
It, Much Ado About Nothing. Q u a n t o a Julius Caesar e
ao gósto do público m i s t u r a d o d e aristócratas e p o p u l a r e s ;
Hamlet, já pode haver dúvidas. O resto — quer dizer, a
nem é representativo Spenser, o "poet's poet". Obra re-
p a r t e s u p e r i o r e m n ú m e r o e valor, d a o b r a — e s t á m a i s
p r e s e n t a t i v a d a época é o c u r i o s o Mirror for Magistrates
perto de Middleton e W e b s t e r do que de qualquer a r t e
( 9 ) , o b r a coletiva, n a q u a l é p o s s í v e l d i s t i n g u i r t r e s cama-
d r a m á t i c a r e n a s c e n t i s t a . E v i d e n t e m e n t e , a a r t e d e Sha-
d a s . A i n t e n c a o era f o r n e c e r l e i t u r a p o p u l a r , p o e m a s n a r -
r a t i v o s á m a n e i r a de G o w e r o u C h a u c e r ; p r e t e n d e u - s e com- k e s p e a r e p e r c o r r e u d u a s f a s e s d e e v o l u c a o : urna p r i m e i r a ,
p l e t a r urna t r a d u c a o i n g l e s a d o De casibus virorum illus- a l e g r e , a m o r o s a e p a t r i ó t i c a ; e urna s e g u n d a , s o m b r í a ,
trium, pela r e l a c a o d e " c a s o s " d e i n g l e s e s i l u s t r e s . N e s t e a m a r g a , p e s s i m i s t a . D o w d e n b a s e o u nessa d i s t i n g S o a bio-
s e n t i d o , o Mirror for Magistrates é urna o b r a m e d i e v a l . N a grafía e s p i r i t u a l d e S h a k e s p e a r e , c o m o d e u m h o m e m p o u -
execucao do projeto escolheram-se quase sómente casos po- co a pouco a m a r g u r a d o pelas experiencias, evolvendo da
l í t i c o s : r e i s d e p o s t o s ou a s s a s s i n a d o s , r a i n h a s d e s t i t u i d a s , a l e g r í a d e Love's Labour Lost e da p a i x a o e r ó t i c a d e Ro-
m i n i s t r o s e j u i z e s e x e c u t a d o s o u e x i l a d o s ; o s u b t i t u l o fala meo and Juliet p a r a o p e s s i m i s m o d e King Lear, Macbeth
d e " P r i n c e s a s fell f r o m t h e i r e s t á t e t h r o u g h t h e m u t a b i l i t y e Timón; a e x e c u c a o d o C o n d e E s s e x , em 1601, t e r i a s i d o
of F o r t u n e " ; e essa idéia é b e m r e n a s c e n t i s t a . A g r a n d e o p o n t o c r í t i c o d e s s a e v o l u c a o ; e só n o f i m d a vida, em
m a i o r i a d o s p o e m a s q u e c o m p o e m o Mirror for Magistrates Cymbeline e Tempest, S h a k e s p e a r e t e r i a r e c u p e r a d o a paz
nao v a l e n a d a , e x c e t u a n d o — e i s a t e r c e i r a carnada — urna da a l m a . É s s e e s q u e m a foi r e p e t i d o em t o d a s as b i o g r a f í a s ,
Induction e The Complaint or Henry Duke oí Buckin- até q u e a s h a k e s p e a r i o l o g i a r e c e n t e r e j e i t o u o m é t o d o d e
e x t r a i r das p e c a s i n d i c a g o e s b i o g r á f i c a s . M a s o f e n ó m e -
no dos dois estilos de Shakespeare subsiste, e x i g i n d o nova
interpretacao.
8) E. M. W. Tillyard: The Elizobethan World Picture. London, 1943.
9) A Mirror for Magistrates (1.* ed. publicada por William Baldwln,
1559; outras edicoes, sempre aumentadas: 1563. 1574, 1578).
Edicao por J. Haslewood, 3 vols., London, 1815. 10) Thomas Sackville, Earl of Dorset, c. 1536 — 1608.
J. Davies: A Mirror for Magistrates, considered with special ü e - Tragedia: Oorboduc, or Lerrex and Porrex (1561/1662).
ference to the Sources of Sackville's Contributíons. Leipzig, 1906. Induction (1563); The Complaint o] Henry Duke of Buckingham
E. M. W. Tillyard: Shakespeare's History Plays. New York, 1946, <1583).
L. B. Campbel: Shakespeare's Histories, Mirrors of Elizabethan Edicao da Complaint por M. Hearsey, Newhaven, 1936.
Policy. San Marino, Calif. 1947. J. Swart: Thomas Sackville. Groningen, 1948.
860 OTTO MARÍA C A R P E AXJX. HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 861

Walzel foi o primeiro que ousou falar, a proposite dias, influenciadas pelo eufuísmo. O verdadeiro criterio
de Shakespeare, em Barroco O 1 ) : a composicao das gran- da distincáo entre Renascenca e Barroco no teatro inglés
des tragedias, acusada de irregularidade pelos classicistas, é a interpretagáo dramatúrgica da Historia, t í o diferente
parecia-lhe seguir as leis de composicao assimétrica das nos dramas de historia inglesa e ñas grandes tragedias.
obras de arte barrocas. Deutschbein demonstrou a índole Para interpretar bem o teatro inglés é preciso estudar as
barroca de Macbeth ( 1 2 ), e T . S. Eliot salienta, em Sha- concepgóes político-históricas da época.
kespeare, a influencia de Séneca, que é o grande modelo O título Mirror for Magistrates lembra um género li-
do teatro barroco. O ano da execucao de Essex, 1601, como terario, hoje esquecido, que nos séculos X V I e X V I I , e
ponto crítico, também é reconhecido por um partidario da até no X V I I I , tinha importancia considerável: chamavam-
equacao "Shakespeare—Renascenca", como Dover Wilson se essas obras "espelho de príncipes" ou "príncipe cris-
( 1 8 ), admitindo que déste modo só poucos anos de ativi- táo", ou "bússola política"; os títulos sao sempre muito
dade literaria de Shakespeare pertencem a "época alegre", loquazes — o título in extenso do Mirror for Magistrates
enquanto o resto, com quase todas as obras capitais, per- também enche urna página inteira — para indicar bem o
tence á "época sombría", quer dizer, ao Barroco; Shakes- fim didático dessas obras: ensinar aos herdeiros da coroa
peare aparece hoje mais perto de Webster e Middleton. e aos candidatos a ministro a arte de governar bem o Es-
que alias nao sao os seus sucessores, mas os seus contem- tado, segundo as leis divinas e humanas, lembrando-se aos
poráneos, seguidos imediatamente por Fletcher e Webster, leitores as desgracas dos que falharam aos seus deveres e
quase contemporáneos. As duas fases de Shakespeare nao descrevendo a felicidade futura de um govérno forte e
sao resultados da sua experiencia pessoal, mas da expe- justo; ás vézes esta descricáo amplia-se, constituindo ver-
riencia da época inteira. Já nao é admissivel falar em dadeira utopia; e ás vézes prefere-se á exposicáo seca das
"teatro elisabetano"; a maior época é a do "teatro jaco- doutrinas a forma de romance didático e utópico ( , 4 ) .
beu", sob o reinado de Jaime I ; e urna fase importante do
teatro inglés pertence ao reinado acentuadamente barroco O exemplo antigo do género é a Ciropedia, de Xeno-
do rei Carlos I. Contudo, a distincáo nao é táo fácil como f onte, programa de educacao modelar de um rei oriental por
parece. O primeiro grande dramaturgo inglés, Marlowe, um filósofo grego; nos capítulos pedagógicos de Rabelais
elisabetano típico, maneja o verso com todas as pompas encontram-se vestigios désse modelo. A primeira obra
barrocas; e Shakespeare nunca fala língua mais "marinis- dedicada exclusivamente á pedagogía política é o Relox de
ta", barroca, do que justamente ñas suas primeiras comé- Príncipes, o Libro Áureo del emperador Marco Aurelio,
de Antonio Guevara ( 1 0 ), obra ligada ás doutrinas do uni-
versalismo monárquico de Carlos V. Francesco Patrizzi,
11) O. Walzel: "Shakespeares dramatlsche Baukunst". (In: Iahrbuch no Eneas (1581), usou a epopéia de Virgilio como manual
der Deutschen Shakespeare-Gesellscha/t, LII, 1916.)
de educacao de um futuro rei, e ésse ramo humanista do
12) E. Eckhardt: "Gehoert Shakespeare zur Renaissance oder ziim
Barock?" (In: Festschrift fuer F. Muge. Tuebingen, 1926.) género continua nos "espelhos de príncipe" de Mengozzi,
L. Deutschbein: Macbeth ais Barockdrama. Marburg, 1934.
L. Schuecking: "The Baroque Character of the Ellzabechan Tra-
gic Hero". (In: Proceedings ol the British Academy, XXIV, 1936.) 14) J. Prys: Der St#atsroman des 16. und 17. Jahrhunderts. Wuerz-
burg, 1913.
13) J. Dover Wilson: The Essential Shakespeare. 1.a ed. Cambridge.
1943. IB) Cf. "Renascenca Internacional", nota 91.
862 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 863

Saravia. Jaquemot e Senault, para terminar na utilizagáo O mais famoso désses educadores de corte é Fénelon
da Odisséia, por Fénelon, para fins idénticos. Quanto mais 17
( ), preceptor do Duque de Borgonha e autor do romance
absoluto se tornou o poder dos reis, tanto maior importan- político-pedagógico Les aventures de Télémaque. No
cia tinha a educagáo dos futuros principes, de cuja boa fundo, é um romance heróíco-galante, á maneira de La Cal-
vontade e inteligencia dependeriam os destinos do Estado prenéde e da Scudéry, urna deformagáo irritante da Anti-
e de todos os individuos. Ninguém sentiu isso mais do guidade; apenas, as aventuras fantásticas servem para for-
que os jesuítas, que esperavam a felicidade terrestre pela mar e advertir dos seus deveres o futuro rei de ltaca. A
alianca da Igreja com a monarquía absoluta; esforgavam- obra inteira é urna alusáo á situacao e as necessidades fu-
se por aplicar os seus principios pedagógicos á pedagogía
turas do reino de Luís X I V ; daí o sucesso enorme — 20
política, da qual fornecerum duas obras-primas: o Tratado
edigoes só no ano da primeira publicagáo — que hoje nao
de la Religión y Virtud que debe tener el Príncipe cristia-
compreendemos. O estilo enfático e untuoso da narragáo
no (1595), do Padre Pedro de Ribadeneyra, e o De rege
constituí o desespero dos colegíais que aínda léem o Télé-
et regis institutione (1599), do grande Mariana. Os pre-
maque em "trechos seletos", e o programa político que o
ceitos dos jesuítas nao diferem muito dos ideáis de política
crista dos leigos da época: El gobernador cristiano (1619), Arcebispo de Cambrai recomenda — absolutismo paternal
de Juan Marqués e a Política de Dios, gobierno de Cristo, e benevolente, feudalismo moderado — já nao nos con-
y tiranía de Satanás (1626), de Quevedo, sao títulos ex- vence. Aos contemporáneos, Les aventares de Télémaque
pressivos; convém acrescentar-lhes o comentario histórico- pareciam crítica audaciosa, como confissáo da falencia do
biográfico de Quevedo, a Vida de Marco-Bruto (1644). ideal jesuítico da política crista. A educagáo dos prínci-
Encontram-se as mesmas idéias até no manual de um rei pes absolutos nao dera c e r t o ; e aquéle ideal, táo realista e
de convicgoes meio absolutistas e meio protestantes, o Ba- prático em Mariana e Quevedo, tornou-se utopia. Os ro-
silikon doron (1607), do rei Jaime I da Inglaterra. mances políticos do século X V I I I sao todos utopistas, de
maneira que aos ideáis cristáos se substituem cada vez
O primeiro país em que o absolutismo real conseguiu mais os da Ilustragáo: Les voyages de Cyrus (1727), de
realizacao completa, foi a Franga; daí a grande atencao Ramsay, o Sethos (1732), do Abade Terrasson, o Coldener
dada á educagáo dos "Dauphins". O Arcebispo Hardouin Spiegel (1772), de Wieland, educador do príncipe Carlos
de Péréfixe resumiu as suas idéias para a educagáo do Augusto de Weimar, que será o amigo de Goethe. Um
futuro Luís XIV na Institutio príncipis (1647), e o grande retrógrado é o poeta suigo Albrecht von Haller, defen-
Bossuet, autor da significativa Politique tirée de l'Écriture- dendo nos romances Usong (1771), Alfred (1773) e Fabius
sainte e preceptor do "Dauphin Louis", prestou conta das und Cato (1774) o regime aristocrático de Berna, polemi-
suas idéias pedagógicas numa carta importante ao Papa zando contra o seu patricio de Genebra, Rousseau: com
Inocencio X I ( 1 6 ). •

17) Sobre Fénelon cí. "O Neobarroco como base da Ilustracao e do


Pré-Romantlsmo", nota 74.
16) .Epístola ad Innocentium XI de Ludovici Delphin iinstitutione Les Aventures de Télémaque (1699).
(1679), publicada em 1709, como lntroducfio da Politique tirée de Edicao por A. Caben., 2 vols., Parts, 1920.
l'Écriture sainte. O. Blzos: Fénelon éducateur. París, 1886.
A. Floquet: Bossuet, précepteur du Dauphin. París, 1864. O. Gldel: la politique de Fénelon. París, 1907.
864 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 865

efeito, o Entile é o sucessor democrático de Télémaque; Quando as circunstancias políticas em que Maquiavel
Rousseau significa o fim da pedagogía monárquica e crista. escrevera já estavam esquecidas, só se observaram as con-
O absolutismo é o terreno próprio dos géneros "es- seqüéncias da aplicacáo da sua doutrina por príncipes
pelhos de principe" e "romance político-pedagógico". O inescrupulosos; aquela doutrina parecía obra do diabo, e
que carece de explicacáo é a uniformidade espantosa das o próprio Maquiavel um mensageiro do inferno. Assim
idéias enunciadas pelos humanistas e jesuítas, protestantes como os jesuítas afirmaram que a própria Virgem Maria
e arcebispos; nem sequer individualidades tao independen- .cria ditado a S. Inácio os Exercitia spiritualia. assim o
tes como Mariana e Quevedo se afastam do caminho. O cardeal Reginald Pole afirmou, na Apología ad Carolum V
motivo dessa unanimidade é o inimigo comum: Maqui- Caesarem, que o próprio Diabo teria ditado as obras de
vel. O Principe também é um tratado de educacio po- Maquiavel, e o jesuíta Ribadeneyra acrescenta: "A pior
lítica, embora muito diferente do Príncipe cristiano. Pa- e a mais abominável seita que o Demonio jamáis inventou,
rece refutacao de / / Cortegiano, de Castiglione, que vive só é a dos chamados políticos, verdadeiros mensageiros do
para arte e ciencias, abstendo-se da politica, que cai, déste Inferno." E Quevedo, no título da sua obra, opoe ao "go-
bierno de Cristo" a "tiranía de Satanás". É digno de nota
modo, ñas maos dos criminosos ou dos imbecis. Maquia-
que a condenacao já envolve "os políticos" em geral. O
vel pretendeu "politizar" o "cortegiano", ensinando-lhe,
século X V I I sentirá médo supersticioso da "política", d i
além da arte paga e da literatura paga, urna política paga.
diplomacia feita atrás de portas fechadas nos gabinetes de
A ésse intuito opóe-se a "Política de Dios", a dos jesuítas
reis e ministros; os jesuítas, adversarios de Richelieu, ali-
e a dos outros. Daí a uniformidade dos preceitos. Os je-
mentarlo ésse médo, espalhando o boato das artimanhas
suítas Ribadeneyra e Mariana, autores de "espelhos de diabólicas da "éminence grise", do P . Joseph. No teatro
príncipe", estao ao lado do jesuíta Possevino, todos éles dos séculos X V I I e X V I I I , até em Kabale und Liebe, de
autores de tratados antimaquiavelistas; e os seus argumen- Schiller, o "secretario" (isto é, o conselheiro "secreto") ou
tos nao diferem muito dos do huguenote francés Gentillet, cortesáo é sempre urna pessoa suspeita de ter concluido
defendendo os seus correligionarios contra o maquiavelis- um pacto com o diabo; o teatro popular dos románticos
mo de Cartarina Médicis, rainha da Franca. Mas no conservou ésse conceito, e os tribunos democráticos ali-
coméco do século X V I I já era quase certo o malogro da mentam até hoje a maior desconfianza contra a "diploma-
"política crista"; a Política de Dios, de Quevedo, já dá a cia dos gabinetes" — alias, desconfianza justificada. O
impressáo de urna utopia. Todos os príncipes, os cristáos e ttéculo X V I I tinha varios motivos para interpretar toda
cristianíssimos inclusive, aplicam o maquiavelismo. A ten- a política como arte do diabo, e um désses motivos era o
tativa frustrada deixa urna melancolía, que aparece como caso de Antonio Pérez ( " ' ) : ésse epistológrafo famosíssi-
resignacáo estoica; e, para resumir em poucas palavras as
conclusoes: aquela melancolía política é um dos motivos
mais importantes do teatro barroco inglés ( l 8 ) .
1U> Antonio Pérez, c. 1640-1611.
Relaciones de su vida (1592); Cartas a diferentes personas con
18) W. Benjamín: Der Ursprung des deutschen Trauerspiels. Berlín, aforismos españoles y italianos (1598); Segundas cartas y más
1928. aforismos (1603); Norte de principes, virreyes, presidentes, con-
A. Sorrentlno: Storia délV Antimachiavellismo europeo. Napoli, sejeros y gobernadores, y advertimientos políticos sobre lo públi-
1936. co y particular de una monarquía, importantísimos a los tales,
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAI 867
866 OTTO M A R Í A CARPEAUX

mo exerceu influencia profunda, pelas suas cartas litera- Déste modo, ambos os partidos exploraram o caso Pé-
riamente elaboradas, sobre a formaijao do estilo barroco e rez conforme os conceitos do estoicismo, da filosofía de Sé-
a sua divulgagáo internacional; mas foi mais profunda a neca, ressuscitada n o século X V I por Lipsius e tantos ou-
influencia da vida de Pérez. E l e é também autor de um tros ilustres humanistas ( 2 0 ). A aplicacao do estoicismo á
tratado de educagao política, o Norte de Príncipes, impres- teoría política encontrou-se no estudo de Tácito, até entáo
so só em 1788, mas feralmente conhecido já antes de 1600, muito menos considerado do que Lívio. O século X V I I
em copias manuscritas. A obra devia parecer mais útil do prefere Tácito ( 2 1 ), em quem encontrou a situagao política e
que outras semelhantes, porque o autor era homem da prá- psicológica do individuo em face da tiranía e a ligio da re-
tica política: fóra secretario particular do rei Filipe I I sistencia estoica. O s humanistas, mais perto de Maquia-
da Espanha. Mas os contemporáneos, que adoravam o es- vel, também admiraram em Tácito a interpretagao prag-
tilo epistolográfico de Pérez, sentiam médo supersticioso mática, quer dizer maquiavelista, da historia. No dizer de
do Norte de Príncipes, que se dirige, no título, a "virreyes, Giorgio Dati, que traduziu em 1563 os Anais para impe-
presidentes, consejeros y gobernadores", a todos ésses per- cável lingua toscana, Tácito "racconta con meraviglioso
sonagens suspeitos de pactos com o diabo; o próprio sub- ordine le cause motrici". Mas a mentalidade barroca nao
título da obra invoca a "ra2Ón de Estado" de Maquiavel. •dmitiu essa "maravilha". Nao suportava outra historio-
Com efeito, atribuiram-se á influencia de Pérez os atos de grafía senáo a retórica ou entao a pesquisa erudita de por-
intolerancia e violencia do rei. O "secretario" era bem um menores insignificantes. A Historia era o reino do caos
diabo. De repente, porém, 3 Europa inteira se assustou, irrazoável, daquilo que nao podia ser transformado em
quando o rei e o secretario brigaram e éste último foi per- ciencia; Descartes rejeitou a historiografía como acientí-
seguido e exilado. Em face désse acontecimento miste- fica. Da tarefa que a Razao abandonara — tornara compre-
rioso, todos os conceitos moráis sobre política mudaram. cnsível o caos dos fatos históricos — encarregou-se a dra-
Aos estrangeiros, o rei cristianíssimo da Espanha transfor- maturgia. A historia contemporánea forneceu os tipos dra-
mou-se em tirano terrível — assira aparece no romance de máticos : o tirano, o mártir, o intrigante diabólico — o "vil-
Saint-Réal e ñas tragedias de Alfieri e Schiller — e o se- lain" do teatro jacobeu. O "tacitismo" forneceu "le cause
cretario diabólico transformou-se em mártir da resistencia motrici", a rede de motivos e conseqüéncias. O estoicismo,
estoica contra o mal. Os espanhóis, porém, consideravam finalmente, forneceu o "état d'áme" e a psicología; e Sé-
Pérez como traidor, e o rei como mártir da sua alta digni- neca, o estoico, é também o dramaturgo mais lido e mais
dade, suportando com resignacáo estoica as traicoes e mal- admirado da época, o que nao deixará de influenciar as for-
dades, na solidao melancólica do seu gabinete no vasto pa- mas dramáticas do teatro inglés.
lacio do Escorial; era, segundo o título da tragedia de
Pérez de Montalbán, El gran Séneca de España, Filipe II. O teatro inglés nao é, evidentemente, um caso isolado.
Mas antes de caracterizar os elementos que tem em comum
com o teatro espanhol, será preciso explicar as diferengas.
fundados em materia de razón de Estado y de Gobierno (publi-
cado 1788).
Edlcáo de obras escolhldas ín: Biblioteca de Autores Españoles, :•»> L. Zanta: La renaissance du stoicisme au XVIe siécle. París.
xm. 1914.
F. Mlgnet: Antonio Pérez et Phllippe 11. París, 1845. 11) G. Toífanin: Machiavelli e il tacitismo. Padova, 1926.
J. Fitzmaurice-Kelly: Antonio Pérez. Oxford, 1922.
Gr. Marañón: Antonio Pérez. Buenos Aires. 1947.
868 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 869

Eram diferentes, na Espanha e na Inglaterra, os teatros era antimaquiavélico, polémica moralista contra urna dou-
populares que o Barroco e n c o n t r o u ; e disso resultaráo di- trina que dominava a atualidade política. Nao assim na
ferentes convenc,oes dramatúrgicas. Outra diferenga refe- Inglaterra. Lá nao havia o moralismo contra-reformista; e
re-se ao conceito do estoicismo: na Espanha, urna filosofía o maquiavelismo era "lenda", no sentido de Castelvetro. A
popular; na Inglaterra, urna doutrina dos cultos. Enfim, o influencia aparente do maquiavelismo no teatro inglés é
maquiavelismo, que forneceu ao teatro inglés os tipos da muito forte ( 2 8 ) : o nome do secretario florentino aparece
tragedia, nao podia entrar no teatro dos países católicos, sempre citado, e os seus conceitos sao atribuidos aos "vil-
por motivos de teoría estética. lains", sem Ihe negar o genio. Mas os dramaturgos elisa-
A aversao do Barroco á H i s t o r i a baseia-se, pelo menos betanos nao conheciam Maquiavel. A única obra que se
em parte, na filosofía aristotélica: á Poética de Aristó- traduziu relativamente cedo, em 1595, foram as Istorie fio-
teles faz urna distincao táo nítida entre Historia, que é rentine. O Príncipe, na tradugáo de Edward Dacres, BÓ foi
verdade, e Poesía, que é ficcáo, que a literatura barroca publicado em 1640, dois anos antes do fechamento dos tea-
parece impedida de tratar assuntos históricos. O pro- tros pelos puritanos. Os dramaturgos deviam o conheci-
mento da doutrina apenas a um obscuro panfleto antíma-
blema foi resolvido pelo teórico antiaristotélico Ludovico
quiavelista, do huguenote francés Innocent Gentillet:
Castelvetro ( 2 2 ), da maneira seguinte: a poesia nao pode
Discouis sur Jes moyens de bien gouverner et maintenir en
tratar assuntos históricos, para nao transformar-se em his-
bonne paix un royaume, Contre Nicolás Machiavel le Flo-
toriografía; nem pode inventar os seus assuntos, para nao
rentin, publicado em 1576, e traduzido para o inglés por
transformar-se em mentira; tem, pois, de tratar assuntos
Simón Patericke, em 1602. Maquiavel, na Inglaterra, era
históricos que nao estáo certos e deixam margem para mo- urna "lenda", no sentido de Castelvetro, dando margem
d i f i c a r e s inventadas sem ofender a verdade. O assunto da a construgóes dramáticas e ínterpretagoes psicológicas
tragedia seria a historia remota, lendária, meio incerta. no sentido de Séneca dramaturgo e de Séneca estoico. A
Foi urna solucáo engenhosa. Até entáo, imitava-se assldua- influencia de Séneca no teatro inglés é de importancia ca-
mente o teatro grego, mas sem bom éxito, porque o teatro pital ; mas nao só no teatro inglés, que aqui se enquadra na
grego se baseia no mito, alheio ao mundo cristao. A Con- evolugao da dramaturgia européia.
tra-Reforma baniu o mito pagáo; e gracas ao enredo in-
ventado transformou-se a "favola pastorale" em comedia. As analogías notáveis entre o teatro espanhol e o tea-
A solugáo de Castelvetro abriu ao teatro jesuítico e ao tro inglés provém do fato de que ambos constituem sín-
teatro espanhol o repositorio dos assuntos históricos, tra- teses de um teatro popular e de um teatro literario. Quem
tados como se fóssem inven$óes; disso resultou a feicáo operou a síntese foi, em Espanha, o genio Lope de Vega;
novelística das tragedias históricas espanholas, tragedias na Inglaterra, um dramaturgo apenas extravagante,
de tempos lendários da Espanha ou de países longínquos, Thomas Kyd. Mas a diferenga dos valores nao tem impor-
pouco conhecidos. Quando os dramaturgos jesuítas trata- tancia, quando se trata de relagoes históricas. A base po-
ram assuntos da historia contemporánea, o ponto de vista pular do teatro espanhol é mais renascentista do que me-

22) Ludovico Castelvetro, 1505-1571. 23) E. Meyer: Machiavelli and the Elizabethan Drama. Berlín. 1897.
La Poética d'Aristotele (1576). M. Praz: Machiavelli e gli Inglesi dell'epoca eílzabettiana. Fl-
A. Fusco: La poética del Castelvetro. Napoll. 1904. renze, 1937.
870 Orco MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 871

dieval: Gil Vicente e os seus sucessores, depois a novelís- parodias offenbachianas, intencionáis ou involuntarias;
tica italiana, preparada para o gósto espanhol. Os Miste- por isso, escolheu um episodio da historia romana, a Sofo-
rios medievais nao parecem ter sido muito importantes na nisba ( 2B ). A peca, prova da falta absoluta de talento dra-
Espanha; sao antecessores só de um ramo especial do tea- mático do autor, tem valor apenas cronológico: é a pri-
tro, os autos sacramentáis, d o s quais nao existe pendant meira do género. Mas foi intensamente admirada, e Gio-
na Inglaterra meio protestante. Ali, ao contrario, os Mis- vanni Rucellai (Rosmunda, Orestes), Lodovico Martelli
terios medievais, os melhores da Europa, já contém ele- (Tullía) e Pomponio Torelli (Merope) imitaram-na em
mentos essenciais da dramaturgia inglesa, na técnica dra- pegas que tornam aínda mais evidentes as fraquezas do
mática e na mistura constante de elementos trágicos e có- original: a falta de dramaticidade, o sentimentalismo, a re-
micos. E os sucessores dos Misterios, os "Morality Plays", tórica, defeitos inerentes a tantas outras imitacdes moder-
sao os precursores imediatos do teatro popular da época da nas do teatro grego. A crítica contemporánea observou
bem essas falhas, mas explicou a falta de efeito trágico de
rainha Isabel. Os componentes literarios, de literatura
outra maneira: como falta de efeito moralizador. Assim en-
culta, dos dois teatros, nao sao menos diferentes. Na Es-
tendeu Giraldi Cintio ( 26 ) os preceitos dramatúrgicos da
panha, é a Contra-Reforma católica que influí, da qual a
poética aristotélica: a tragedia produz "terror • compai-
maior expressao dramática é o teatro jesuítico; a imitacao
xao" por meio da representagao de horrores no palco, pu-
do teatro latino de Séneca nao deu resultados apreciáveis
rificando assim, pela "catarse", a alma do espectador. Ésse
na Espanha. Na Inglaterra, ao contrario, a influencia de criterio moralístico só parece aristotélico; na verdade, é
Séneca, recebida através da Franga, foi decisiva. um criterio de moralismo religioso, católico, que já pressa-
O grande problema foi o assunto histórico. A trage- gia a Contra-Reforma. Na tragedia grega, Giraldi nio en-
dia grega, primeiro modelo dos humanistas, baseara-se no controu modelo de urna tragedia assim que nao fósse, como
m i t o ; e o mundo moderno nao é capaz de acreditar no mito o Édipo, mito pagáo e por isso impossível no teatro mo-
antigo nem possui mito próprio. A escolha estava entre derno. Mas na tragedia latina de Séneca, os meamos enre-
enredo histórico e enredo inventado. O segundo é o apa- dos já nao tém significacáo religiosa; sao tragedias intei-
nágio do teatro popular; o primeiro nao cabía no esquema ramente humanas, e Giraldi apontou como modelo o Thycs-
da tragedia grega. Eis o problema em face do qual se en- tes com os seus efeitos terríveis: assassínios, espectros,
contravam os dramaturgos italianos do século X V I i2*). grande retórica dos coros. Séneca foi o modelo de Giraldi,
Quando Gian Giorgio Trissino criou, em 1515, a' pri-
meira tragedia "regolar" da literatura italiana e européia, 25) W. Cloetta: Die Anfaenge der Renaissancetragoedie. Ralle, 1892.
segundo o modelo de Sófocles, estava bem consciente da E. CiampoJlnl: La prima tragedia regalare della letteratura ita-
impossibilidade de tratar um assunto mítico; o mito grego, liana. Firenze, 1896.
<Cf. "O 'Cinquecento"', nota 17.)
no teatro moderno, dá "fábulas pastoris" ( 2 4 " A ), ou entáo
26) Oiovan Battista Giraldi Cintio, 1504-1573.
Orbeche (1541); Discorso intorno al comporre dellt comedie e
24) F. Neri: La tragedia italiana nel 500. Firenze. 1904. delle tragedie (1643).
24A) As vers6es modernas de enredos trágicos gregos também sao P. Bilancini: Oiovan Battista Giraldi e la tragedia italiana nel
"fábulas pastoris", empregando-se a palavra pastoril no sen- secólo XVI. Aquila, 1890.
tido de Empson: para conferir dignldade trágica a personagens C. Guerrieri Crocetti: Giovan Battista Giraldi e il pensíero cri-
nada heroicas e a conflitos comuns. tico del secólo XVI. Firenze, 1032.
872 Orro MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA L I T E H A T U R A OCIDENTAL 873

n a t r a g e d i a Oibecche, q u e se t o r n o u f a m o s í s s i m a c o m o p r i - g o " d e T r i s s i n o ; F . J e r ó n i m o B e r m ú d e z imitou-a, d e


meira tragedia moderna em q u e aparece o motivo do in- m a n e i r a m u i t o exata, ñ a s t r a g e d i a s clássicas Nise lastimosa
cesto, d e p o i s t a o f r e q ü e n t e n o t e a t r o i n g l é s . O s d e f e i t o s e Nise laureada (1577). A m a n e i r a d o s s e n e q u i s t a s italia-
d r a m á t i c o s da Orbecche f o r a m e v i t a d o s n a Canace, d o fa- nos foi i n t r o d u z i d a p o r V i r u é s ( 2 B ), d r a m a t u r g o v i o l e n t o ,
moso t e ó r i c o S p e r o n i ( 2 7 ) , t r a g e d i a d e h o r r o r o s o s i n c e s t o s , que m i s t u r a n o p a l c o os h o r r o r e s m a i s c r a s s o s c o m b e l e z a s
a s s a s s i n i o s e s u i c i d i o s ; foi i m a g i n a d a c o m o t r a g e d i a a u - líricas e grande retórica; V i r u é s lembra m u i t o Marlowe.
t é n t i c a m e n t e grega, s e g u n d o o c o n c e i t o a r i s t o t é l i c o , c o m Urna t e n t a t i v a s e r i a d e p u r i f i c a c á o e e s p a n h o l i z a c a o d o
a peripecia como centro moral d a obra; d u r a n t e a polémica t e a t r o i t a l i a n i z a n t e é a Numancia, de Cervantes ( 3 0 ) : pega
q u e a Canace s u s c i t o u , c o n v e n c e u - s e S p e r o n i d o s e u e r r o e de patriotismo retórico, e x p r i m i n d o conceitos de grandeza
m o d i f i c o u a peca á m a n e i r a d e S é n e c a . D e s d e e n t á o , Sé- da a l m a e s t o i c a , á m a n e i r a d e L u c a n o e Séneca, s e m c o r o s ,
n e c a foi o g r a n d e m o d e l o d o s d r a m a t u r g o s i t a l i a n o s q u e mas i n t r o d u z i n d o p e r s o n a g e n s a l e g ó r i c a s . É urna c r i a g a o
t r a n s f o r m a r a m o p a l c o em d o r m i t o r i o p o l u t o e m a t a d o u r o de todo original, se b e m que de sucesso duvidoso; parece
s a n g r e n t o . P e c a s como a Marianna (1565), d e L o d o v i c o m u i t o c l a s s i c i s t a , m a s foi e l o g i a d a s ó p e l o s r o m á n t i c o s d o
D o l c e , a Dalida (1572), d e L u i g i G r o t o , a Semiramis (1583), comégo d o s é c u l o X I X , p o r A u g u s t W i l h e l m S c h l e g e l ,
d e M u z i o M a n f r e d i , a h o r r i v e l Acripanda (1591), d e A n - S c h o p e n h a u e r , S o u t h e y , S h e l l e y . A p r o p ó s i t o da Numan-
tonio Decio da Orte, mereciam, no dizer de Ginguené, an- cia, T i c k n o r l e m b r o u - s e d e Macbeth, e nao sem razáo; o
t r o p ó f a g o s c o m o e s p e c t a d o r e s ; e e s s a s pegas f o r a m r e a l - t e a t r o e s p a n h o l e s t a r í a m a i s p e r t o d o i n g l é s , se a c o r r e n t e
m e n t e r e p r e s e n t a d a s p e r a n t e p l a t é i a s q u e d e r r a m a r a m lá- senequista tivesse encontrado possibilidades de sintetizar-
g r i m a s , c h e g a n d o a s m u l h e r e s , e n t r e os e s p e c t a d o r e s , a d e s - se com o t e a t r o p o p u l a r . M a s n a E s p a n h a , s ó o e s t o i c i s m o
m a i a r . U m dos ú l t i m o s p r o d u t o s d é s s e g é n e r o é o TOTTÍS- popular se encontra com o genio n a c i o n a l ; o estoicismo
mondo (1586), d e T a s s o , q u e j á nao t e v e s u c e s s o r e s . O m o - e r u d i t o fica á m a r g e m ; e foi o u t r a s í n t e s e q u e v e n c e u .
r a l i s m o c a d a vez m a i s r í g i d o da C o n t r a - R e f o r m a foi o m o - E m F r a n g a ( 3 1 ) , n o comégo, a s s i m c o m o em o u t r a s p a r -
tivo e x t e r i o r d o m a l o g r o e n q u a n t o a t r a g e d i a s e n e q u i a n a tes, s u r g e urna i m i t a g a o d a Sofonisba, de T r i s s i n o : Mellin
nao conseguiu a síntese com um teatro popular, o teatro d e S a i n t - G e l a i s t r a d u z i u - a em 1548. S é n e c a e n t r o u a t r a v é s
estava condenado a permanecer teatro experimental dos li- dos c o l e g i o s h u m a n i s t a s : p a r a o c o l e g i o d e B o r d c u s es-
teratos. crevera M a r c - A n t o i n e M u r e t , e m 1544", u m Julius Caesar em
A s evolugoes e s p a n h o l a e f r a n c e s a f o r a m p e r f e i t a m e n t e língua latina. O teórico francés que tem papel correspon-
a n á l o g a s . N a P e n í n s u l a I b é r i c a , a Castro, d o p o r t u g u é s A n -
t o n i o F e r r e i r a (* 8 ), p e r t e n c e ao m e s m o g é n e r o t e a t r o " g r e - dí Cristóbal de Virués, 1550-1609.
Epopéla: Monserrate (1588).
Tragedias: Elisa Dido; Aula furioso; La gran Semiramis, etc.
27) Sperone Speroni. 1500-1588. d n : Obras, 1609.)
Canace (1542); Apología (1544; contra o Giudizio sopra la tra- C. V. Sargent: A Study of the Dramatical Works o/ Cristóbal de
Virués. New York. 1530.
gedia di Canace; 1543).
A. Fano: Sperone Speroni. Padova, 1909. 30) Cf. "Oposlgóes Barrocas e Antlbarrocas", nota 6.
F. Cammarosano: La vita e le opere di Sperone Speroni. Empoll, A Numancia foi, publicada só em 1784.
1920.
II) E. Faguet: La tragedle franqaise au XVle. siécle. París, 1883.
28) Cf. "O 'Clnquecento'", nota 19. R. Lebegue: La tragedle ¡rancaise de la Renalssance. Paris, 1954.
874 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 875

dente ao dos italianos Giraldi e Speroni, é o famoso lati- maior poeta lírico do que dramaturgo, mas revela esta su-
nista Julius Caesar Scaliger ( 3 2 ) : é, segundo a expressao perioridade ñas próprias tragedias, que durante muito tem-
de Lintilhac, "o fundador do classicismo, cem anos antes po só foram consideradas do ponto de vista da evolucao
de Boileau", estabelecendo a regra das tres unidades; e histórica do género; parecem, entáo, inferiores, e Garnier
urna obra sua contra Cardano revela o seu aristotelismo mero precursor; na verdade, sao grandes obras da poesia
contra-reformista. Distingue-se dos primeiros teóricos ita- francesa. O primeiro aspecto do teatro de Garnier é o de in-
lianos, aos gregos já preferindo Séneca; porque na tra- capacidade dramática: a agáo é lenta e incoerente, substitui-
gedia grega as personagens agem conforme instintos e da, através de atos inteiros, pela efusáo lírica e retórica. A
paixoes imorais, enquanto na tragedia latina prevalecem amostra mais característica désse verbalismo é o drama bí-
as decisoes éticas e Tazoaveis. A doutrina de Scaliger é blico Les Juives, do qual um coro está em todas as anto-
senequista; mas nao tem nada com o senequismo popular logías de poesia francesa, aquéle que comega:
da literatura espanhola; antes favorece a retórica, o mora-
lismo e a "Raison". Encontrará realizacáo perfeita na tra- "Pauvres filies de S i o n . . . "
gedia classicista do século X V I I . A do século XVI é dife-
rente, por ser menos dramática e mais lírica. Corneille e e continua:
Racine nao sao própriamente poetas líricos. Jodelle é poe- "Notre orgueilleuse Cité,
ta da Pléiade; e Garnier é até um grande poeta da Pléiade. Qui les cites de la terre
Jodelle ( 33 ) é maior como poeta lírico do que como Passait en felicité,
dramaturgo; mas os assuntos das suas tragedias — Cleó-
N'est plus qu'un monceau de pierre."
patra, Dido — sao significativos. No caso de Robert Gar-
nier (Si), é preciso modificar a definigao: ele também é Dai a opiniáo geral sobre Garnier: precursor imperfeito de
Racine, seguindo mais Séneca do que Eurípides, substi-
tuindo a psicología das paixoes pela retórica. As poesías
32) Julius Caesar Scaliger, 1484-1558.
De causis Unguage latinae (1540); Exercitationes in Cardani De líricas de Garnier nao confirmam essa opiniáo: as grandes
subUlitate (1551); Poetices libri VII (1661); Epistolae (1600). elegias dedicadas a Desportes e a Nicolás Ronsard e aquela
E. Lintilhac: De Julii Caesaris Scallgeri poetice. París, 1887. sobre a morte de Pierre Ronsard sao, sem dúvida, pegas
W. F. Patterson: Three Centuries oí French Poettc Theory. Vol. I.
Ann Arbor Mlch., 1935. de alta retórica, mas de urna retórica disciplinada, per fin-
33) Cí. "Renascenca Internacional", nota 32. iamente clássica. Se Garnier se excedeu em verbalismo ñas
Cléopátre captive (1552); Didon se sacrifiant (1558). tragedias, nao foi porque a forma dramática estivesse im-
34) Robert Garnier, 1534-1590. (Cf. "Renascenca Internacional", perfeita, mas porque Garnier, imitador de Séneca, consi-
nota 33.)
Porcie (1568); Hippolyte (1573); Cornélie (1574); Marc-Antoine derava a tragedia como vaso das grandes emocóes, sobre-
(1678) ;La Troade (1579); Antigone (1580); Bradamante (1582); nido das emogoes coletivas. Um coro da Antigone —
Les Juives (1583).
Edicao por L. Pinvert, 2 vols., Paris, 1923; Edicao de obras es-
colhidas por R. Lebégue, Paris, 1949. " T u meurs, ó race généreuse,
P. Bernage: Étude sur Robert Garnier. Paris 1880. Tu meurs, ó thébaine c i t é . . . " —
A. Cardón: Robert Garnier. Paris, 1905.
H. Carrington Lancaster: The French Tragi-comedy. Baltimore, é comentario indispensável á compreensao daquele coro de
1907.
Th. Maulnierr Langages. Lausanne, 1946. Les Juives, e revela, junto com a tragedia Troade, a relagáo
876 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 877

entre os modelos e a emocao pessoal do poeta: como Sé- existia um teatro literario, o dos tradutores de Séneca, o
neca, prefere Garnier os espetáculos da agonía e morte, de Sackville e Gascoigne. A síntese dos dois teatros foi
porque sentiu a agonía; o protestante Garnier lamentou, na operada por Kyd sob a influencia direta de Garnier, e deu
Antigone, a guerra fratricida na Fran$a, e em Les Juives, a o primeiro teatro elisabetano, o de Kyd, Marlowe, e das
destruicáo da sua própria gente. O protestantismo de Gar- primeiras tragedias de Shakespeare. Só depois comecou a
nier talvez contribuísse para abrir á sua influencia as por- assimilacáo da filosofía estoica de Séneca, inspirando a
tas do teatro inglés; o motivo íntimo foi o fato de Garnier grande tragedia do teatro jacobeu. O processo de "sene-
ter combinado, de maneira admirável, a imitasáo de Séneca quizasáo" do teatro inglés é complicado; mas a sua com-
e a emo$áo pessoal: e era isso o que os primeiros drama- preensáo, segundo estudos recentes, é o único caminho
turgos elisabetanos considerkvam como ideal da arte dra- possível para chegar a urna defímero exata do teatro bar-
mática; por isso traduziram e imitaram as obras de Gar- roco inglés ( 3 5 ).
nier. A semelhanca entre estas e as pecas inglesas entre As primeiras tragedias inglesas á maneira de Séneca
1580 e 1590 nao é, déste modo, um acaso curioso. A crítica sao trabalhos eruditos: o Gorboduc (1562), de Sackville ( a 8 ),
moderna procura analogía sobretudo ñas famosas "passa- está fora de qualquer filiacáo inglesa; a Jocasta (1566)
gens demoníacas", que abundam ñas pecas de assunto clás- e o Gismond oi Sáleme (1567), de George Gascoigne, re-
sico de Garnier; cita-se a invocagáo, no quarto ato da velam que o teatro inglés estava a caminho de produzir for-
Porcie: mas semelhantes as de Garnier, mas com arte verbal incom-
parávelmente inferior. A s conseqüéncias teriam sido in-
"O terre! ó ciel! ó planétes luisantes! significantes, se nao fósse a impressao profunda produ-
O soleil éternel en courses rayonnantes! zida, ao mesmo tempo, pela primeira tradugáo inglesa das
O reine de la nuit, Hécate aux noirs chevaux! dez tragedias de Séneca ( 3 T ). Essa maravilha da grande
O de l'air embruni les lumineux f l a m b e a u x ! . . . " arte de traduzir, na época dos Tudors, só comparável ao
Plutarco, de North, facilitou aos contemporáneos a com-
Mas isto seria analogía só com os dramaturgos "demonía- preensáo da arte verbal de Garnier; mas, mesmo assim, o
cos" da época jacobéia, com Webster, Ford, Tourneur; seria
mais urna questáo de afinidade entre genios poéticos. A 35) J. W. CunUffe: The Influence of Séneca on Elizabethan Tragedy.
verdadeira analogía, é preciso procurá-la na única tragico- London, 1893.
media de assuntos fantásticos escrita por Garnier: Bra- F. L. Lucas: Séneca and Elizabethan Tragedy. Cambridge, 1921.
L. E. Kastner e H. B. Charlton: Introduc&o á ediqáo das obras de
damante. Eis urna peca elisabetana em língua francesa. William Alexander, citada na nota 40.*
Mas na Franca nao existia teatro popular capaz de servir A. M. Witherspoon: The Influence of Robert Oarnier on Eliza-
de base para urna síntese á maneira espanhola ou inglesa. bethan Drama. Newhaven, 1924.
T. S. Eliot: Introducto a edicáo das Tenne Tragedles, citada em
Na Inglaterra existia um teatro popular assim: a suces- 37. Relmpressa como: "Séneca ln Elizabethan Translatlon", (ln:
sáo dos "Morality Plays", no teatro de John Bale e ñas Selected Essays, 2.a ed. London, 1941.)
pecas históricas, anónimas e populares, como The True 36) Cf. nota 10.
Tragedy oí Richard III, The Famous Victories oí Henry 37) The Tenne Tragedles of Séneca (traduzldas entre 1559 e 1581
V, The Troublesome Raigne oi John, predecessores ime- por Jasper Heywoód, Alexander Nevyle, Nuce, Btudley e Tilomas
Newton, editadas por Newton em 1581).
diatos do teatro histórico de Shakespeare. De outro lado, Edigfio por T. S. Eliot, 2 vols., London. 1927.
878 OTTO M A M A CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 879

teatro á maneira de Séneca teria continuado apanágio ex- a historia da sua evolugao é o guia mais seguro pela evolu-
clusivo da gente culta, se nao se tivesse encontrado cora urna gao do drama elisabetano-jacobeu ( 30 ).
evolugao parecida do teatro popular. O Mirror for Ma- Elementos da "tragedia de vinganga" aparecem no Jew
gistrates revela na narracao poética das desgragas políticas of Malta (1592), de Marlowe. Mas o segundo grande repre-
um conceito trágico da Historia que nao encontra analogía sentante do género, depois de Kyd, é o próprio Shakes-
ñas Chronicles, de Raphael Holinshed, conhecidas como peare: Titus Andronicus (1593), Richard III (1594), Ju-
fonte principal das pegas de historia inglesa de Shakes- lius Caesar (1599), marcam a evolugao, até ao Hamlet
peare. Com efeito, Holinshed é apenas um compilador, e (c.1603), em que a "tragedia de vinganga" chega á sua ex-
a sua fama baseia-se no acaso da utilizaglo da sua crónica pressáo mais completa e a dramaturgia terrificante de Sé-
por Shakespeare. Deu-se menos atengáo ao seu predecessor neca principia a completar-se pela filosofía estoica de Sé-
Edward Hall, agora reconhecido como criador daquele con- neca. Ao lado da purificagáo do género pela arte shakcs-
peariana, continua a tragedia do horror "sans phrase" na
ceito trágico da Historia ( 3 8 ), e, talvez, fonte imediata do
History of Antonio and Mellida (1602), de Marston; chega
Mirror for Magistrates. Assim se explica que o represen-
á grande arte, diferente do tipo shakespeariano, na Reven-
tante mais poderoso do teatro popular, Thomas Kyd, o au-
ger's Tragedy (1607), de Tourneur. Um poeta aristocrá-
tor da Spanish Tragedle, homem culto alias, seja ao mesmo
tico e erudito, William Alexander (*°), aprésente ñas suas
tempo o primeiro tradutor daquele dramaturgo francés: o
quatro "tragedias monárquicas" algo como urna transpo-
seu Pompey the Great, his Faire Corneliaes Tragedy (im- sígáo do Mirror for Magistrates para as regióes da historia
presso em 1595, mas já antes conhecido) é a versao inglesa greco-romana, e consegue ao mesmo tempo anglicizar a
da Cornélie, de Garnier. No estilo de Garnier escreveu Sa- filosofía estoica. Macbeth (c. 1606) é a obra capital desta
muel Daniel a Cleopatra (1594) e o Philotas (1611). sintese suprema do teatro histórico com a filosofía de Sé-
A Spanish Tragedie (1589), de Kyd, é, pela primeira neca. Na Revenge of Bussy d'Ambois (1613), de Chapman.
vez, urna sintese completa dos dois elementos constitutivos os dois elementos estío perfeitamente conjugados. O fim
do teatro inglés. O enredo — vinganga sangrenta de um da evolugao encontra-se ñas obras curiosas e até impres-
pai por motivo do assassínio do filho — é popular e está sionantes de Fulke Greville ( 4 1 ) : como poeta lírico, é um
em relagáo com a historia, já entao conhecidíssima, de
Hamlet. Na elaboragao da pega, Kyd tomou por modelo, 39) Cf. a obra de Kastner e Charlton, vol. I, citada em nota 40. e:
para impressionar os espectadores populares, o Thyestes, F. Thayer Bowers: Elizabethan Revenge Tragedy. Prlnceton.
de Séneca: também tragedia de urna vinganga sangrenta, 1940.
com grandes explosoes de retórica, assassínios e mortes no 40> William Alexander, Earl of Stlrllng, 1567-1640.
Four Monarchique Tragedles: Croesus, Darías, The Aíexan-
palco, aparigáo de espectros. Kyd criou um tipo. A trage- draean, Julius Caesar (1604/1607).
dia de vinganga tornou-se permanente no teatro inglés; e Edlcao das obras por L. E. Kastner e H. B. Charlton. 2 vols., Man-
chester, 1921.
41) Fulke Greville, Lord Brooke, 1554-1628.
Mustapha (1609); Alaham; Remalns (1670).
38) Edward Hall, t 1547. Edlcfio por G. Bullough, 2 vols., Oxford. 1945.
The Union of the two Noble and ¡Ilústrate Famelies of hancas- M. Croll: The Works o] Fulke Greville. Phlladelphla, 1903.
tre and Yorke (1548). G. Bullough: "Fulke Greville, First Lord Brooke". (In: Modern
Language Review, XXVin, Janeiro de 1933.)
E. M. W. Tillyard: Shakespeare's History Plays. New York, 1946.

880 OTTO M A R Í A CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 881
"cortegiano" da Renascenga, de erotismo intenso, um gran-
de senhor aristocrático; ñas suas tragedias de vinganga, é tista, o conceitó da Historia é universal e trágico, a moral
o mais barroco de todos os dramaturgos ingleses, poeta da é concebida como suprema balanca do Universo — assim
"majesty of Power" e da luta entre "Passion and Reason", ñas pegas de historia romana de Shakespeare; no teatro
conforme as suas próprias palavras. A o mesmo tempo é barroco, ao qual pertence a maior parte do teatro inglés,
Greville um espirito inquieto, conhecedor de teorías "re- a Historia volta a ser o grande caos com todas as conse-
qüéncias da perversáo moral e do pessimismo cósmico.
volucionarias" da Renascenca italiana, "republicano" e
Ésses conceitos renascentistas ou barrocos, quando repre-
"ateísta" estoico indomável. A filosofía estoica, em Gre-
sentados no palco inglés, aparecíam ñas formas e conven-
ville, converte-se, afinal, em religiosidade angustiada, e a
goes do teatro popular, que era, por sua vez, um desen-
resignacao em lamento da "wearisome condition of hu-
volvimento do teatro medieval. O século X V I I I , acostu-
manity".
mado as convengoes teatrais do teatro clássico francés, de
Depois, comega o declínio, que nem sempre é decaden- todo diferentes, nao podía deixar de ver naquelas conven-
cia, como demonstra o aprofundamento psicológico da tra- goes el ¡sabe tanas um caos ou urna infantilidade; a preten-
gedia de vinganga no Changeling (1624), de Middleton. sao de condensar em poucas horas de representagáo tea-
Mas o género mudou de significagáo. J á a Yorkshire Tra- tral acontecimentos de anos ou geragoes inteiraa, ou entáo
gedy (1619), pseudo-shakespeariana, é urna tragedia nove- a pretensao de apresentar o mesmo palco primitivo ora
lística, burguesa, tratando um caso da crónica policial. O como palacio real, poucos minutos depois como campo de
Triumph of Death, um dos quatro atos de Four Plays in batalha, e na cena seguinte como floresta, pareciam pre-
One, de Beaumont e Fletcher, é, ao contrario, urna grande tensóes absurdas, só desculpáveis pela ingenuidade dos es-
"máquina" barroca, pseudo-histórica. E no Cardinal (1641), pectadores de entáo, e só suportáveis em virtude do ge-
de Shirley, o género desmente a teoría da qual nasceu, tra- nio verbal de um Shakespeare. A crítica do século XIX
tando um enredo novelístico como se fósse historia con- já nao fez questáo das tres unidades aristotélicas; mas
temporánea. também só suportou aquilo como embarago, apesar do qual
A evolucáo da "tragedia de vinganga" é um guia pela Shakespeare teria realizado obras geniais. E só as pesqui-
evolugáo do teatro inglés: do teatro popular e meio medie- sas recentes de historia teatral é que revelaram aquetas
val, através da Renascenca elisabetana, ao Barroco jaco- convengoes como condigáo essencial da arte de Shakes-
beu. Como criterio de distingáo, indicou-se o conceitó da peare e dos seus contemporáneos e sucessores ( " ) .
m o r t e : no teatro medieval, a morte é urna advertencia mo-
ral; no teatro elisabetano, a morte é um caso trágico; no O ponto de partida é o teatro medieval inglés, os Mis-
terios. Daí vém duas particularidades do teatro elisabe-
teatro jacobeu, barroco, a Morte exerce fascinagáo irresis-
tano: a mistura íntima e continua dos elementos trágico
tível. Está isso em relagáo exata com tres conceitos dife-
e cómico, mistura que mais tarde se transformou em arte
rentes da Historia: no teatro popular — e a éste perten-
barroca de contrastes fortes, de modo que o "double plot"
cem, nesse sentido, as poesías pré-dramáticas do Mirror fot
Magistrates e as pegas de historia inglesa de Shakespeare
43) E. K. Chambers: The Elizobethan Stage. 4 vola. Oxford, 1923.
— o conceitó da Historia é patriótico e moralista, demons- C. E. Bentley: The Jacobean and Caroline Stage. 2 vols. London,
trando-se a vitória das fórgas do bem; no teatro renascen- 1941.
A. Harbage: Shakespeare's Audience. New York, 1941.
882 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 883

— compondo-se as pegas d e dois enredos, um serio e o u t r o rossímeis os acontecimentos teatrais por um outro meio:
humorístico — é a qualidade mais característica do teatro o verso branco. O metro da dramaturgia inglesa está mais
inglés; a outra é o hábito das reflexóes moráis, que servi- perto da prosa do que o tetrámetro do teatro espanhol, de
ram mais tarde ao Barroco para distinguir nítidamente, modo que serve para exprimir t u d o ; difere, no entanto,
com preferencia pelo monólogo revelador, os caracteres no- essencialmente da prosa, criando urna linguagem simbólica,
bres e os infames, os "villains". O palco dos Misterios era correspondente ao lugar simbólico e ao tempo simbólico;
do tipo "simultáneo"; varias construgoes, colocadas urna linguagem simbólica que separa a realídade dos especta-
perto da outra, as "mansions", simbolizavam os diversos lu- dores da realídade das personagens no palco. O verdadeiro
gares em que se teriam passado os acontecimentos dramá- teatro inglés só principia com Marlowe, porque é ele o cria-
ticos. O teatro elisabetano permaneceu, no comégo, nesse dor do verdadeiro verso branco dramático. Ésse metro, de
tipo de palco, menos ñas representagoes na corte e nos pa- flexibilidade maravilhosa, permitiu urna coisa que nao exis-
lacios aristocráticos; ali se adotou o "palco unificado" do tí u nunca no teatro espanhol: a diferenciagao exata de
teatro italiano, quer dizer, um palco de arquitetura fixa, modos de falar de personagens diferentes, ao passo que no
simbolizando um lugar neutro, sem determinagáo nítida do teatro espanhol todas as personagens falam a mesma lín-
lugar. Ésse segundo tipo, quando conservado com coerén- gua dramática. Por isso, o teatro espanhol é essencialmente
cia, devia levar á unidade aristotélica de lugar, como no teatro de agao; o teatro inglés é essencialmente teatro de
teatro clássico francés. O teatro elisabetano, porém, es-
caracteres.
colheu — e isso é bem inglés — urna "vía media": um
palco "unificado", em que certas construgoes primitivas As convengoes teatrais constituem o elemento perma-
(urna varanda, urna porta, e t c . ) eram capazes de simboli- nente do teatro inglés. O que se modificou durante a evo-
zar, segundo a vontade do autor, os lugares mais diferen- lugáo foram os conceitos históricos e moráis. Déste modo,
tes, de modo que o mesmo palco se apresentava já como é possível distinguir urna fase inicial, de teatro popular;
palacio, logo depois como campo de batalha, e depois como em seguida, urna fase puramente renascentista, da qual Ro-
floresta ou qualquer outra localidade. Daí a liberdade ili- bert Greene é o representante; finalmente, a introdugáo do
mitada do "lugar"; e, por conseqüéncia, a liberdade ilimi- senequismo, quer dizer, a transigao da Renascenga ao Bar-
tada do "tempo". A distingao rigorosa entre o espago roco, em Kyd, Marlowe e Shakespeare. Esta evolugao é
real do edificio e o espago simbólico do palco corresponde acompanhada pelos contemporáneos ¡mediatos de Shakes-
a distingao rigorosa entre o tempo real da representagao peare: Chapman, Ben Jonson, Marston, Dekker, Middle-
teatral e o tempo simbólico dos acontecimentos na pega. ton, Thomas Heywood. A última fase, puramente barroca,
O teatro inglés tornou-se capaz de dramatizar epopéias e a de Beaumont e Fletcher, Massinger, Tourneur, Webster,
romances inteiros; "teatro épico", comparável ao "teatro
Ford e Shirley, leva até á dissolugáo dos criterios moráis
novelístico" dos espanhóis, que partirá de convengoes dife-
barrocos e á sua substituigao, pouco a pouco, pelos crite-
rentes. Mas a analogia também acaba ali. Porque o teatro
rios moráis burgueses. -O fechamento dos teatros, em 1642,
espanhol insistía na "verdade" dos enredos representados,
nao é um fim; o teatro da RestauragSo continuou, vinte
religiosos, históricos ou novelísticos, enquanto o teatro in-
•nos depois, onde os dramaturgos elisabetanos e jacobeu-
glés renunciou cedo a essa pretensáo; preferiu tornar ve-
884 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 885

carolinos acabarais. A historia do teatro inglés constituí pegas históricas do teatro espanhol. As comedias désse
teatro popular inglés também lembram pendants continen-
urna unidade ( 4 3 ).
tais: urna délas, Calisto and Melibea, é tirada de La Ce-
O "missing link" entre os "Morality Plays" e o teatro
lestina; e as farsas meio medievais de John Heywood pa-
popular da época elisabetana é o Kyage John, de J o h n
recem-se muito com as farsas francesas. Só o Ralph Rois-
Bale ( " ) , Bispo de Ossory, pega que toma por assunto e
ter Doister, de Nicholas Udall, é diferente, porque o autor,
pretexto a luta entre o rei Joao da Inglaterra e o Papa,
homem culto e tradutor de Teréncio, fez a tentativa de
para fazer propaganda do protestantismo; a presenga de
adaptar a comedia latina ao gósto dos espectadores po-
personagens alegóricas lembra os modelos de Bale, os
pulares.
"Morality Plays", mas o objetivo da atividade dramatúr-
gica já é diferente: já prenuncia o patriotismo típico dos Essa adaptagao, preludiando a síntese que é o "teatro
elisabetanos. Numa pega posterior, anónima, The Trouble- elisabetano", foi obra dos "Uníversity wits", jovens hu-
some Raigne oí John, acrescenta-se aos interésses religio- manistas que, após haverem saído das universidades, se per-
so e político um terceiro: o interésse histórico e humano deram no meio boémio dos literatos da capital. J o h n Lyly
no destino do rei deposto pelos baroes e envenenado por ( 4 0 ), o criador do eufuísmo, é um déles: as suas comedias
um monge, o que lembra as desgranas históricas do Mirror foram escritas para representagóes na corte ou em pala-
for Magistrates. E o Troublesome Raigne é, por sua vez, cios aristocráticos, mas o fato importante é a tentativa de
a base de urna terceira peca, na qual o motivo religioso de- divertir os espectadores nobres com farsas populares, po-
sapareceu para se salientar apenas o elemento humano e o lindo-as e refinando-as; Lyly é o criador da comedia lite-
patriotismo: o King John, de Shakespeare. raria. Os outros "University wits" escolheram o caminho
contrario: introduzir elementos literarios em pegas repre-
O Troublesome Raigne of John faz parte de um grupo sentadas públicamente para o povo. Entre éles — os Peeles,
de pegas anónimas ( " ) , todas elas tiradas da historia in- Lodges, Nashs, — aparece um poeta auténtico: Robert
glesa, e de interésse especial, porque os mesmos assuntos Greene ( 4 7 ). Poeta alegre, idílico, fantástico, Greene nao é
foram tratados por Shakespeare. Sao pegas de dramatur- um grande dramaturgo. Suas pegas sao mediocres. Mas pelo
gia muito primitiva, incoerentes, comparáveis as primeiras seu lirismo merece sobremaneira, entre todos os drama-
turgos elisabetanos, o título de representante da "Merry
43) A. W. Ward: History of English Dramatic Literature to the Oíd England". Nao é por acaso que o seu romance pas-
Death of Queen Anne. vols. I - n . 2.» ed. London, 1889.
F. E. Schelllng: Elizabethan Drama. 2. vols. Boston, 1908.
46) Cf. "Renascenca Internacional" nota 95:
44) John Bale, 1495-1563.
Kynge John (c. 1548). Comedias de Lyly: Alexander, Campaspe and Diogenes (1584);
Edlgao por J. S. Fanner, London, 1907. Sapho and Phao (1584); Endimion U59I); Gallathea (1592);
Mother Bombie (1594); etc.
45) The Famous Victories of Henry V (antes de 1588).
The Trae Tragedy of Richard III (antes de 1588). 47) Robert Greene, c. 1558-1592. (Cf. '•Renascenca Internacional",
The Troublesome Raigne of John (Impresso em 1591). nota 82.)
The True Chronicle History of King Leir (c. 1694). Romance: Pandosto (1588).
Comedias populares: Calisto and Melebea (1530); John Hey- Pecas dramáticas: Friar Bacán and Friar Bungay (1589); The
wood iPardoner and ¡rere 1533, Jóhan Johan the husband, etc. Scottish History of James IV (1591).
1633); Nicholas Udall IRalph Roister Doister, 1333). Edicáo por J. C. Collins. 2 vols.. Oxford, 1905.
A. W. Reed: Early Tudor Drama. London, 1926. J. O. Jordán: Robert Greene. New York, 1915.
H I S T Ó H I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 887
886 OTTO MABIA CARPEAUX

t o r i l Pandosto f o r n e c e u o e n r e d o d a Winter's Tale, de S h a - viccoes ateístas e a t i t u d e s provocadoras, tivesse sido assas-


k e s p e a r e ; em G r e e n e já e x i s t e q u a l q u e r coisa das c o m e d i a s s i n a d o em c o n s e q ü é n c i a d e urna d e n u n c i a d e K y d . A g o r a
fantásticas de Shakespeare. s e sabe q u e o p r ó p r i o M a r l o w e foi o d e n u n c i a n t e ; d e s c o -
nhecidos mataram-no, quando souberam que Marlowe era
O papel que Greene desempenhou na comedia, desem-
a g e n t e s e c r e t o da polícia. A r e v e l a c a o é d e c e p c i o n a n t e ,
p e n h o u - o T h o m a s K y d (48) na t r a g e d i a ; papel m u i t o m a i s
e m b o r a n a o s u r p r e e n d a : M a r l o w e foi u m m o n s t r o , se b e m
importante, porque Kyd, tradutor de Garnier, trouxe para
q u e u m m o n s t r o g e n i a l . I n f a m e foi a s u a v i d a , e i n f a m e
o t e a t r o i n g l é s a i n f l u e n c i a d e S é n e c a . The Spanish Tra-
a sua m o r t e . M a s ésse i n f a m e é o c r i a d o r d o g r a n d e t e a t r o
gedle é a p r i m e i r a " t r a g e d i a d e v i n g a n c a " á m a n e i r a d e
i n g l é s ; d u r a n t e m u i t o t e m p o , só foi a p r e c i a d o c o m o p r e -
Thyestes; e a f o r m a a n t i g a foi t a o p e r f e i t a m e n t e a n g l i c i -
c u r s o r d e S h a k e s p e a r e , m a s h o j e e m d i a sao r a r o s o s c r í -
z a d a q u e a p e g a se t o r n o u urna das m a i s p o p u l a r e s d o t e a -
ticos que nao o considerem "genio", n o sentido mais alto
tro elisabetano. Oíd Jerónimo, que vinga a morte do seu
da p a l a v r a .
f i l h o H o r a t i o , v i r o u p e r s o n a g e m p r o v e r b i a l ; em t o d a a
p a r t e se e n c o n t r a m a l u s o e s e r e m i n i s c e n c i a s d a Spanish A obra de Marlowe é táo monstruosa como o caráter
Tragedle, a t é n o Hamlet, e a r e t ó r i c a r e t u m b a n t e da p e g a do seu a u t o r . E M a r l o w e p a r e c e t e r t i d o c o n s c i é n c i a d i s s o
n a o nos deve impedir de reconhecer, além da grande im- q u a n d o se i d e a l i z o u a s i m e s m o n a f i g u r a d o t i t a Tambur-
p o r t a n c i a h i s t ó r i c a da Spanish Tragedie, o p o d e r dos efei- laine, q u e passa p o r t o d o s os c r i m e s p a r a c o n q u i s t a r o
tos teatrais e do verso dramático. m u n d o i n t e i r o , e n o f i m se e n c o n t r a d e s i l u d i d o e d e s e s p e -
r a d o ; é a tragedia do niilismo. A d a p t a d o ás convcncocs do
Nos últimos anos de sua curta existencia, K y d estéve
t e a t r o p o p u l a r , Tamburlaine, cuja acao c o m p r e e n d e u m
e n v o l v i d o n o f i m v i o l e n t o d a vida, n a o m e n o s c u r t a , d e
c o n t i n e n t e e urna v i d a h u m a n a i n t e i r a , é m a i s urna s e r i e
Christopher Marlowe ( , 9 ) . A t é há bem pouco se acredi-
incoerente de cenas do que um d r a m a ; a personagem cen-
t a v a q u e M a r l o w e , b o é m i o d e v a s s o e d e s e n f r e a d o , de con-
t r a l lhe c o n f e r e , n o e n t a n t o , m a i s u n i d a d e d o q u e t é m as
48) Thomas Kyd, 1558-1594. pecas históricas de Shakespeare; e a retórica justifica-se
The Spanish Tragedie (e. 1589); Pompey the Oreat, his Taire também pelo elemento autobiográfico, pela tentativa de
Corneliaes Tragedy (1595). " m e t t r e en s c é n e " a p r ó p r i a p e r s o n a l i d a d e . M a s a r e t ó r i c a
Edicao por F. 8. Boas, London, 1901. d e M a r l o w e a i n d a t e m o u t r o fim, m a i s c o n s c i e n t e : p r e -
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Oreg Smith: (ln: The Cambridge History of English Literaturet Oreg. Smith (ln: The Cambridge History of English Literature,
vols. V, 3.» ed. Cambridge, 1929). voL V, 3.» ed. Cambridge, 1929).
F. J. Bowers: Elizabethan Revenge Tragedy. Prlnceton, 1940. J. M. Robertson: Marlowe. A Conspectus. London, 1931.
F. S. Boas: Christopher Marlowe. A Biographical and critica!
48) Christopher Marlowe, 1564-1593. Study. London, 1940.
Tamburlaine the Oreat (1588); The Tragical History o/ Doctor J. Bakeless: The Tragical History o) Christopher Marlowe. 2 vols.
Faustus (1592); The Jeto of Malta (1592); The Troublesome Cambridge, Mass., 1943.
Raigne and Lamentable Death o) Edward II (1593); Massacre of
París (1593); Dido Queen of Carthage. — The Passionate Shepheri P. H. Kocker: Christopher Marlowe. A Study of his Thought.
to His Love (1588); Hero and Leander (publ. 1598). Learning and Character. chapel HUÍ, 1947.
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T . S. Eliot: "Marlowe". (In: The Sacred Wood. London, 1920.) H. Levin: The Overreacher. A Study of Chistopher Marlowe.
TJ. M. Ellls Fennor: Marlowe. London, 1927. London, 1954.
888 OTTO M A M A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 889

tende provocar. Provocagáo inédita é o seu poema Hero A subordinagáo da vida humana ás leis da "Fortuna" pa-
and Leander, hiño ardente á sexualidade, a poesía mais sen- rece sabedoria renascentista. Mas o "pay nature's debt"
sual da língua inglesa, e de um poder verbal irresistível. lembra antes o desejo dos estoicos de conformar-se com as
Provocadora parece a tragedia do Doctor Faustus, que leis da Natureza, e a "cheerful countenance", a resignacáo
exalta menos a sede titánica, renascentista, do saber, do estoica. Marlowe é um homem barroco, fantasiado de boé-
que a resistencia heroica contra a morte e todos os diabos. mio da Renascenca. Espirito barroco em forma renascen-
Marlowe está sempre exaltado, e no fundo nao pretende tista seria a definigáo do teatro elisabetano inteiro, do
outra coisa senáo exaltar-se a si mesmo, chegando até as qual Marlowe é o "spiritus rector", o primeiro genio.
fronteiras da parodia. Só assim é possível interpretar a mais A revalorizacao atual de Marlowe faz parte de um mo-
monstruosa das suas pegas, The Jew oí Malta; Eliot cha- vimento crítico de dimensoes mais ampias, beneficiando
ma-lhe "farsa trágica", lembrando as caricaturas miguelan- também Ben Jonson, Middleton, J o h n Webster e outros
gelescas de Daumier. dramaturgos da época; repete-se com certa insistencia que
Ñas monstruosidades de Marlowe há um elemento que obras comparáveis a Doctor Faustus, Volpone, The Chan-
as eleva ácima da regiáo do grito inarticulado: o verso geling e The Duchess of Malfi nao se encontram entre as
branco. Marlowe é o criador do verso dramático do teatro pegas de Shakespeare. E ' um movimento saudável, capaz
inglés, e éste seu mérito nao pode ser sobreexaltado. Criou de tirar o maior dos dramaturgos da solidao incomunica-
o verso — Ben Jonson o chama de "mighty Une" — que vel na qual a idolatría do século XIX o colocara. Contudo,
é capaz de exprimir todos os sentimentos humanos e sim- ' é preciso moderar certas reivindicagoes: Shakespeare, se
bolizar, pela modulacao do ritmo, as diferengas de caracte- bem que outros o tivessem igualado em dados momentos,
res e paisagens e a durée do tempo. O próprio Marlowe c ¡mensamente superior a todos os dramaturgos da época
deu provas dessa capacidade verbal no lirismo exaltado do quando se Ihe considera a obra em conjunto. É o maior dra-
Doctor Faustas e, em estilo mais sentencioso, na melhor maturgo e o maior poeta da língua inglesa. Enquanto a
construida das suas pegas, Edv/aid II; há quem admita criagao de um mundo poético completo fór mantida como
a superioridade dessa "historia" sobre os primeiros dra- supremo criterio, é Shakespeare superior a Cervantes,
mas históricos de Shakespeare. Marlowe subordinou os Goethe e Dostoievski; e só Dante participa dessa sua altura.
motivos políticos á tragedia humana do rei. A historia Enquanto Shakespeare, pela liberdade soberana do seu es-
da deposigáo e morte do tirano Eduardo I I nao é um Mirror pirito, está mais perto de nos e de todos os tempos futuros
ior Magistrates, mas a tragedia da decadencia de um ho- do que o maior poeta medieval, é Shakespeare o maior poeta
mem perverso e corruto que se eleva, na hora da agonía, dos tempos modernos e — salvo as limita§óes do nosso juízo
á grandeza trágica. O milagre de transformar a persona- crítico — de todos os tempos.
gem antipática do rei em herói nobre, realizou-o Marlowe
Infelizmente, nao sabemos quase nada da vida de Wil-
pela nobreza do verso:
liam Shakespeare ( B0 ). A s hipóteses que enchem as biogra-
"Pay nature's debt with cheerful countenance, 60) WUllam Shakespeare, 1564-1616.
Reduce we all our lessons unto this, — Venus and Adonis (1593); Lucreee (1694); Sonneís (1609).
T o die, 6weet Spenser, therefore live we all; Relagáo das pecas, conforme a cronología de E. K. Chambers
(outras hipóteses da shakespearlologla menos recente, quando
Spenser, all live to die, and rise to fall." multo diversas sao Indicadas):
•un .

890 OTTO MARIA C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 891

fias mais conhecidas desfizeram-se urna após outra, e o por dois amigos do poeta, J o h n H e m i n g e H e n r y Condell,
que nos fica ñas maos é coisa bem p o b r e : um ator hábil, em edicáo in-fólio, em 1623. Ñas reedigoes posteriores da
que também escreveu pegas de m u i t o sucesso, ganhou mui- colegio acrescentaram-se outras pegas, cuja autenticidade
to dinheiro e se retirou cedo dos negocios, para m o r r e r hoje nao se admite, com excecao de Pericles, Prince of
pouco depois. E m certo sentido, essa escassez de infor- Tyre. Ao contrario, repetem-se as tentativas de desintegrar
magao biográfica nao deixa de ser benéfica: excluí as su- o "canon" de 1623, negando a autenticidade de muitas pe-
tilidades, ás vézes fantásticas, da interpretagao psicológica, gas ou afirmando a colaboragáo de outros dramaturgos,
limitando a crítica á própria obra. A primeira tarefa é de- enquanto urna corrente oposta procura demonstrar a cola-
terminar a cronología das pegas. Varias délas saíram, quan- boragáo de Shakespeare em pegas désses outros dramatur-
do o autor vivía aínda, em pequeñas edigoes nao a u t o r i - gos. Mas essas tentativas criticas nao deram, até hoje, re-
zadas, os " q u a r t o s " ; as outras pegas só foram publicadas sultados indiscutidos. Quanto á cronología, as edigoes em

Henry VI, Part 1-111 (1592; outros: 1590/1592); Richard III Yale Shakespeare, por W. L. Cross, C. F. T. Brooke e outros, 40
(1592; outros: 1693); Titus Andronicus (1592; outros: 1588); vols., Newhaven, 1918/1928.
The Taming o] the Shrew (1593); The Camedy of Errors (1593; Biografías e estudos de shakespeariologia antlga:
outros: 1591); The Two Gentlemen of Verona (1593); Love"t La- S. T. Colerldge: Notes and Lectures on Shakespeare. 1814. (Edl-
bour's Lost (1593; outros: 1590); Romeo and Juliet (1594); Ri-
cao por T. Ashe, London, 1883.)
chard II (1595); A Midsummer-Nights Dream (1595; outros:
1593); King John (1596); The Merchant of Ventee (1596); Henry W. Hazlitt: Characters of Shakespeare's Plays. 1817. (Varias edl-
IV, Part I (1597); Henry IV, Part II (1598); Much Ada Aoout No- Qóes.)
thing (1598); Henry V (1599); As You Like It (1599); Julius F. Th. Vlscher: Kritische Gaenge. 6 fascículos, 1844. (3.* ed.
Caesar <1599; outros: 1601); The Merry Wives of Windsor (1600); Berlín, 1912.)
Trotlus and Cressida (1600; outros: 1603 ou 1607); Hamlet, Prin- E. Dowden: Shakespeare. His Mind and Art. London, 1874. (Mui-
tas edlcoes.)
ce of Denmark (1601); Twélfth Night (1602); AIVs Well that F. Kreyssig: Vorlesungen ueber Shakespeare. 3.» ed. 2 vote. Ber-
Ends Well (1604); Measure for Measure (1604); Othello, the lín, 1877.
Moor of Ventee (1604); Macbeth (1606); King Lear (1606); A. C. Wlnburne: A study of Shakespeare. London, 1880.
Antony and Cleopatra (1607); Coriolanus (1607); Timón of R. O. Moulton: Shakespeare as a Dramatic Artist. Oxford, 1885.
Alhenas (1607); Pericles, Prince of Tyre (1608); Cymbelins (3.» ed. Oxford, 1906.)
(1610); The Wintefí Tale (1611); The Tempest (1611); Henry B. Ten Brink: Five Lectures on Shakespeare. London, 1895.
VIII (1613). G. Brandes: William Shakespeare. KJoebenhavn. 1896. (Varias
Edlcoes: traducóes.)
Primeira edic&o in-fólio 1623 (depois: 1632, 1664, 1685) (edlcSo A. C. Bradley: Shakespeare Tragedy. London, 1904.
da Folio por S. Lee, Oxford, 1902). W. Ralelgh: Shakespeare. London, 1907.
Cambridge Shakespeare, por J. Olover, W. G. Clark, W. Aldis Br. Matthews: Shakespeare as a Playpright. New York, 1913.
Wrlght, 2.» ed. 9 vols. Cambridge, 1891/1893; New Cambridge A. Quiller-Couch: Shakespeare's Workmanship. Cambridge, 1918.
Shakespeare, por J. Dover Wilson e outros, desde 1921. G. Landauer: Shakespeare. 2 vols., Frankfurt, 1920.
Temple Shakespeare, por J. Gollancz, 40 vols., London. 1894/1900. S. Lee: A Life of Shakespeare, 2.» ed. London, 1922.
Eversley Shakespeare, por C. H. Heríord, 10 vols., London, 1899/ F. Gundolf: Shakespeare. 2 vols. Berlín, 1928/1929.
1900. B. Croce: Ariosto, Shakespeare, Corneille. 2.» ed., Barí, 1929.
Arden Shakespeare, por W. J. Craig, R. H. Case e outros, 37 vols.. G. Salntsbury (in: The Cambridge History of English Literature,
London, 1899/1924. New Arden Shakespeare, por M. M. Ellis vol. V, 3 * ed. Cambridge. 1929).
Fermor e outros, desde 1951. Estudos de shakespevariologla moderna:
Oxford Shakespeare, por W. J. Craig, 3 vols., Oxford, 1904. A. W. Pollard: Shakespeare's Fight with the Pirates and the Pro-
Stratíord Shakespeare, por A. H. Bullen, 10 vols.. Stratford, 1907. blems of the Transmission of his Text. 2.a ed. Cambridge, 1920.

1
892 OTTO MAHIA C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 893

quarto e as noticias conservadas fornecem certas indica- Dispomos hoje de urna tabela cronológica, longe de ser de-
goes. Demonstrou-se também que Shakespeare cultivou nos finitiva, porém mais ou menos suficiente.
comegos da sua atividade teatral tima versificagao mais O primeiro grupo das pegas de Shakespeare compoe-se
exata, dando depois cada vez menos atencao á regularidade de comedias em estilo renascentista: a Comedy of Eriors,
do verso; e o recenseamento estatístico dos versos regu- versao dos Menaechmi, comicidade contrastada com o
lares e irregulares confirmou certas hipóteses cronológicas, fundo sombrio das apreensoes do pai dos gímeos; The
estabelecendo outras. Finalmente, as pesquisas de A. W . Two Gentlemen of Verona, comedia tirada do romance
Pollard sobre a autenticidade de certos "quartos" modifi- pastoril de Montemayor, com urna viravolta no fim que
caram radicalmente a historia do texto shakespeariano. pode ser descuido dramatúrgico ou entao experimento psi-
cológico; The Taming of the Shrew, farsa popular, um
L. Schuecking: Dle Charakterproblerne bel Shakespeare. 2.* ed. pouco barulhenta, mas de efeito irresistível. Enfim, Love's
Leipzig, 1927. Labour's Lost, pega pastoril, com as usuais alusoes polí-
E. E. Stoll: Shakespeare Studies. New York, 1927. ticas, em complicadíssimo estilo eufuísta, e da qual é di-
H. GranvlUe-Barker: Prejaces to SJiakespeare. 5 vols. London,
1927/1948. fícil dizer se é parodia brilhante dos costumes aristocrá-
J. Balley: Shakespeare. London, 1929. ticos ou, como hoje se prefere pensar, pastoril auténtico,
E. K. Chambers: Wllltam Shakespeare. A Study of Facts and de lirismo gracioso.
Problema. 2 vols. Oxford, 1930.
J. W. Mackall: The Approach to Shakespeare. Oxford, 1930. Urna das primeiras pegas de Shakespeare deve ter «ido
G. Wllson Knlght: The Wheel of Flre. London, 1930.
W. W. Lawrence: Shakespeare's Problem Comedies. New York, Titus Andronicus: "tragedia de vinganga" e de tantos hor-
1931. rores que muitos críticos nao se animaram a atribuí-la a
E. E. Stoll: Art and Artífice In Shakespeare. New York, 1933. Shakespeare; mas a pega tem o grande estilo retórico de
C. F. E. Spurgeon: Shakespeare's Imagery. Cambridge, 1935.
J. Mlddleton Murry: Shakespaere. London, 1936. Marlowe; por que nao o teria imitado o jovem Shakespeare?
H. B. Charlton: Shakespearean Comedy. London, 1938. As mesmas dúvidas estendem-se á autoría das tres partes
D. Traversi: An Approach to Shakespeare. London. 1938. de Henry VI; quanto a estas, Shakespeare teria só re-
H. Granvllle-Barker e G. B. Harrlson: A Companion to Sha-
kespeare Studtes. Cambridge, 1941. visto obras alheias ou entáo colaborado com outros. Com
T. S. Ellot: "Shakespeare and the Stolclsm of Séneca". <In: Se- efeito, em Henry VI há mais de Greene e Marlowe do que
lected Essays. 2.a ed. London, 1941.) de Shakespeare, mas o estilo dramático é o mesmo das ou-
Th. Spencer: Shakespeare and the Hature of Man. New York,
1942. tras "historias" inglesas, e a terceira parte é inseparável
J. Dover Wllson: The Essentlal Shakespeare. 7* ed. Cambridge, do auténtico Richard III, tragedia marjowiana com a cena
1943. comovente do assassínio de Clarence, o humorismo burles-
E. M. W. Tlllyard: Shakespeare's Hlstory Plays. London, 1944.
J. Palmer: Polltical Characters of Shakespeare. London, 1945. co da cena dos bispos, a aparigáo vingadora dos espectros
G. Wllson Knlght: The Crown of Life. London, 1947. antes da batalha final. A pega está de tal modo dominada
H. Fluchére: Shakespeare, dramaturge éllsabéthaln. Marsellle, pela grandiosa figura do rei criminoso que alcanga quase
1948. a unidade do teatro clássico francés. Em comparagáo com
H. B. Charlton: Shakespearean Tragedy. Cambridge, 1948.
E. M. W. Tlllyard: Shakespeare's Problem Plays. London, 1949. Richard III, urna das pegas mais representadas e de efeito
M. O Bradbrook: Shakespeare and Ellzabethan Poetry. London, mais forte no palco, Richard II é um retrocesso: menos
1950. pelo estilo do que pelo assunto, deposigao do rei viciado e
D. Traversi: Shakespeare, The Latt Phase. London, 1954.
892 OTTO M A H I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 893

quarto e as noticias conservadas fornecem certas indica- Dispomos hoje de urna tabela cronológica, longe de ser de-
r e s . Deraonstrou-se também que Shakespeare cultivou nos finitiva, porém mais ou menos suficiente.
comegos da sua atividade teatral urna versificagao mais O primeiro grupo das pegas de Shakespeare compoe-se
exata, dando depois cada vez menos atengao á regularidade de comedias em estilo renascentista: a Comedy of Errors,
do verso; e o recenseamento estatístico dos versos regu- versáo dos Menaechmi, comicidade contrastada com o
lares e irregulares confirmou certas hipóteses cronológicas, fundo sombrío das apreensoes do pai dos gémeos; The
estabelecendo outras. Finalmente, as pesquisas de A. W . Two Gentlemen of Verona, comedia tirada do romance
Pollard sobre a autenticidade de certos "quartos" modifi- pastoril de Montemayor, com urna viravolta no fim que
caran! radicalmente a historia do texto shakespeariano. pode ser descuido dramatúrgico ou entao experimento psi-
cológico; The Taming of the Shrew, farsa popular, u m
L. Schuecking: Die Charakterprdbleme bei Shakespeare. 2.4 ed. pouco barulhenta, mas de efeito irresistível. Enfim, Love's
Leipzig, 1937. Labour's Lost, pega pastoril, com as usuais alusoes polí-
E. E. Stoll: Shakespeare Studies. New York, 1927.
H. Granvllle-Barker: Prefaces to Shakespeare. 6 vols. London, ticas, em complicadíssimo estilo eufuísta, e da qual é di-
1927/1948. fícil dizer se é parodia brilhante dos costumes aristocrá-
J. Bailey: Shakespeare. London. 1929. ticos ou, como hoje se prefere pensar, pastoril auténtico,
E. K. Chambers: William Shakespeare. A Study o/ Facts and de lirismo gracioso.
Problems. 2 vols. Oxford, 1930.
J. W. Mackall: The Approach to Shakespeare. Oxford, 1930. Urna das primeiras pegas de Shakespeare deve ter sido
O. Wllson Knlght: The Wheel of Fire. London. 1930.
W. W. Lawrence: Shakespeare1 s Problem Comedies. New York, Titas Andronicus: "tragedia de vinganga" e de tantos hor-
1931. rores que muitos críticos nao se animaram a atribuí-la a
E. E. StoD: Art and Artifice in Shakespeare. New York, 1933. Shakespeare; mas a pega tem o grande estilo retórico de
C. F. E. Spurgeon: Shakespeare's Imagery. Cambridge, 1935.
J. Mlddleton Murry: Shakespaere. London, 1936. Marlowe; por que nao o teria imitado o jovem Shakespeare?
H. B. Charlton: Shakespearean Comedy. London, 1938. As mesmas dúvidas estendem-se á autoría das tres partes
D. Traversl: An Approach to Shakespeare. London. 1938. de Henry VI; quanto a estas, Shakespeare teria só re-
H. Granvllle-Barker e G. B. Harrlson: A Companlon to Sha-
kespeare Studies. Cambridge, 1941. visto obras alheias ou entáo colaborado com outros. Com
T. S. Eliot: "Shakespeare and the Stolclsm of Séneca". (In: Se- efeito, em Henry VI há mais de Greene e Marlowe do que
lected Essays. 2.1 ed. London, 1041.) de Shakespeare, mas o estilo dramático é o mesmo das ou-
Th. Spencer: Shakespeare and the Nature o/ Man. New York,
1942. tras "historias" inglesas, e a terceira parte é inseparável
J. Dover Wllson: The Essential Shakespeare. 7.» ed. Cambridge, do auténtico Richard III, tragedia marlowiana com a cena
1943. comovente do assassinio de Clarence, o humorismo burles-
E. M. W. Tlllyard: Shakespeare's History Plays. London, 1944.
J. Palmer: Political Characters of Shakespeare. London, 1945. co da cena dos bispos, a aparigáo vingadora dos espectros
G. Wllson Knlght: The Crown o! Lije. London. 1947. antes da batalha final. A pega está de tal modo dominada
H. Fluchére: Shakespeare, drainaturge élisabéthain. Marsellle, pela grandiosa figura do rei criminoso que alcanga quase
1948. a unidade do teatro clássico francés. Em comparagáo com
H. B. Charlton: Shakespearean Tragedy. Cambridge, 1948.
E. M. W. Tlllyard: Shakespeare's Problem Plays. London, 1949. Richard III, urna das pegas mais representadas e de efeito
M. C. Bradbrook: Shakespeare and Elizabethan Poetry. London, mais forte no palco, Richard II é um retrocesso: menos
1950. pelo estilo do que pelo assunto, deposigáo do rei viciado e
D. Traversl: Shakespeare, The Last Phase. London, 1954.
894 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 895

a sua elevagáo moral no fim; é imitagao de Edward II, de Shakespeare, dramaturgo da Renascenca internacional,
Marlowe, sendo até menos coerente e menos filosófica do revela-se primeiro em Romeo and Juliet, a mais mediterrá-
que o modelo. Em compensagáo, o moralismo estoico de nea das suas pegas e certamente a mais famosa tragedia
Marlowe é substituido pela poesia elegiaca da alma nobre de amor de todos os tempos; mas convém salientar mais
humilhada; Ricardo I I é o primeiro dos famosos "gráo- alguns outros aspectos: o realismo da "nurse" que lembra
senhores" de Shakespeare, expressoes do seu legitimismo La Celestina; a sabedoria renascentista do Friar Laurence,
político muito marcado: a amarga queixa social, na cena do farmacéutico, o roman-
tismo de contos fadas, na descrigáo da Queen Mab, de-
"For every man that Bolingbroke hath press'd, senvolvida depois no Midsummer-Night's Dream, que é a
T o lift shrewd steel against our golden crown, mais bela das "favole pastorali", de poesia e humorismo
Heaven for his Richard hath in heavenly pay irresistíveis. Comedia também é The Merchant of Venice,
A glorious ángel: then, if angels fight, apesar das aparéncias; Shylock parece-nos urna das maiores
Weak men must fall; for heaven still guards the personagens trágicas do poeta, mas os contemporáneos
right." compreenderam-no como personagem de farsa trágica á ma-
neira de Marlowe, e a sua desgraga serve para dissolver a
A falta de interésse político transforma King John quase nobre melancolía de Antonio, do "mercador de Veneza",
em tragedia doméstica das vítimas do mau rei; mas os dis- e transfigurá-la na doce música de luar do último ato. Dés-
cursos patrióticos do valente bastardo Faulconbridge si- te modo, a tragedia do judeu já seria a pega mais serena,
tuam a pega no ambiente elisabetano. mais feliz de Shakespeare, se nao fósse seguida pelas co-
medias románticas de alegría quase celeste: as conversas
A maior das "historias" é Henry IV: a tragedia polí-
espirituosas de Much Ado About Nothing; a magnífica co-
tica do rei que usurpou o trono e, assaltado pelas revolu-
media pastoril de As You Like It, em que a mais encanta-
góes aristocráticas, sob a chefia do magnífico Percy Hots-
dora poesia de amor ñas florestas vence a melancolía mi-
pur, sofre de remorsos profundos, entrelaga-se com a nao
santrópica de Jacques; e a doce melancolía de Twelfth
menos grandiosa comedia de Falstaff e dos seus compa-
Night, interrompída, como que de entremezes, pelas malda-
nheiros na Boar's Head Tavern, inversao cervantina dos
des burlescas perpretradas contra o puritano Malvolio.
valores aristocráticos e glorificagao imortal da "Merry Oíd
England"; e no meio entre palacio e taverna está o "Prince
O espirito da Renascenga comega a esvanecer-se em
of Wales", gozando da sua mocidade exuberante e reve-
Julius Caesar: a pega é incoerente, decompondo-se em duas
lando na continuagao, em Henry V, a alma nobre do rei
partes quase independentes, de modo que á tragedia do
mais brilhante da Inglaterra medieval. As simpatías aris-
ditador assassinado se substituí a tragedia maior do repu-
tocráticas do poeta sao evidentes, sobretudo no desprézo
blicano desiludido e vencido; César transforma-se em per-
com que apresenta os movimentos populares. Mas a se-
sonagem tragicómica; na retórica de Antonio e na resigna-
rie das "histories" em conjunto revela imparcialidade su-
gao estoica de Bruto aparece o Barroco. A obra de tran-
perior e um conceito político ácima do moralismo barato;
sigió é Hamlet; e a crítica moderna salienta essa circuns-
as nove pegas históricas constituem o maior monumento
tancia para explicar as misteriosas incoeréncias dessa obra,
dramático que qualquer nagáo erigiu ao seu passado.
a maior de todas as "tragedias de vinganga". Mas o público
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 897
896 OTTO M A R Í A CARPEAUX
educagáo de um homem velho que viveu em orgulho e
n i o prestou nunca atencao a essas restribóos; continua aprende a morrer. Em Macbeth, mais outra tragedia na
inalterada a imensa popularidade de Hamlet, em que até qual todas as cenas decisivas se passam durante a noite,
leitores menos intelectualizados sentem com evidencia o o mundo noturno dos assassinos e das bruxai é ligado ao
verdadeiro assunto: Hamlet é a tragedia da inteligencia e mundo humano da única cena inglesa (IV, 3) pela cena hu-
do intelectual; e só a combinagao désse tema de profundi- morística do Porter, o famoso "Knocking at the gate", em
dade com o tema aparente da vinganga produziu a aparente que De Quincey descobriu a chave da pega: o sol da vul-
incoeréncia. O pensamento, em Hamlet, pode ser menos garidade entra no inferno dos fantasmas irreais. Macbeth,
profundo do que parece. Mas nao importa. E ' caso único a tragedia do niilismo —
na literatura dramática universal a combinagao de um
assunto filosófico com os mais irresistiveis, quase melo-
" a tael
dramáticos, efeitos cénicos. Um désses efeitos — "o palco
Told by an idiot, full of sound and fury,
no palco" — já é( alias, típicamente barroco: um "double
Signifying nothing." —
plot", servindo para o "desengaño" trágico. Da primeira
cena no terrago, quando aparece o espectro, até a cena no
cemitério e até o fim, a atmosfera da obra é noturna. Desde é a mais barroca das pegas de Shakespeare, e — segundo o
entáo, Shakespeare é o dramaturgo da noite. Noturnas sao consenso unánime — a maior das suas obras.
todas as cenas importantes de OtheUo: mais do que estudo O conceito barroco do mundo como teatro levou Sha-
penetrante da psicologia dos ciúmes é OtheUo urna trage- kespeare a urna concepgao altamente original da Historia:
dia sofocliana, isto é, de encobrimento e revelagao da ver- conceber a tragedia histórica como tragicomedia. Antony
dade. O verso mais característico da pega — "Chaos is and Cleopatra, em que um mundo desaparece, é a tragico-
come again" — também se aplica ¿mediatamente ao King media de um amor perverso, trágica e ao mesmo tempo
Lear, outra tragedia noturna: noturna é a cena do temporal cómica num sentido muito alto, porque o cosmo, que é
em que o "Fool", o palhago, serve de coro trágico á loucura a cena dessa pega "mundial", compreende t u d o ; a constru-
do velho reí; noturna a filosofía maniquéia dos versos: y o dramática, em Antony and Cleopatra, é difusa; mas a
música verbal do poeta dramático atinge nessa obra seu
ponto mais alto. E em Coriolanus, a vitória da plebe bruta
"As flies to wanton boys, are we to the gods;
sobre o herói viril é t í o revoltante que a atitude do dra-
They kill us for their s p o r t . . . " ;
maturgo já foi interpretada como violentamente reacioná-
e noturna é a sabedoria estoica em que culmina essa tra- ria; na verdade, a pega parece dizer: a historia pretende
gedia barroca: ser tragedia dos heróis e acaba em comedia dos imbecis. O
mundo, para Shakespeare, tornou-se problema.
"Men must endure
Their going henee, even as their coming h i t h e r : Daí as pegas mais curiosas e mais origináis de Shakes-
Ripeness ís all." peare: as comedias de problemas moráis. A mais amarga
é Troilus and Ciessida, na qual os heróis homéricos se re-
King Lear é pega de dimensoes cósmicas, na qual a Natu- velam como faladores imbecis e mulherengos ordinarios.
reza inteira comeca a girar em torno da crueldade incom- A mais profunda é Measure for Measure, em que o duque
preensível da existencia humana; é também a tragedia da
898 OTTO M A R Í A CABPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 899
disfargado, testemunha incógnita de orgias sexuais e an-
meio frustrados, de um genio inculto; nem com o ponto
gustias de morte, desmascara a hipocrisia do puritanismo
de vista dos románticos — a obra de Shakespeare teria
moral. A mais furiosa é Timón oí Athens, a maior explo-
sido erupcao de um poeta em que se encarnara o espirito
sáo de misantropía em toda a literatura universal, e, no do mundo. A época vitoriana precisava de um Shakes-
fundo, a comedia de um homem nobre que nao sabia adap- peare sereno, calmo; e como as tragedias pessimistas se
tar-se a esta vida infame. opunham a ésse conceito, era preciso estabelecer urna evo-
Por ésse mesmo tempo, Shakespeare escreveu — em lugáo, urna acalmacáo progressiva. Acostumada a estabele-
colaboragáo com outro dramaturgo, ou entao refundindo cer relacoes causáis entre a biografía e a obra poética, a crí-
urna pega antiga — Pendes, Prince oí Tyre, inserindo tica literaria do século XIX, nao dispondo de urna biografía
num enredo novelístico cenas de beleza inesperadamente pormenorizada do poeta, inventou urna, interpretando as
harmoniosa. É a primeira das pecas ñas quais Shakespeare pegas como confissoes autobiográficas. Shakespeare teria
renunciou ao realismo trágico, transformando o mundo em comegado com tragedias bombásticas á maneira de Marlowe
sonho poético. Cymbeline é dramatizagáo intensamente ro- e comedias ligeiras á maneira de Greene; as primeiras ex-
mántica de um enredo novelístico, ou antes, um grande periencias pessoais ter-lhe-iam aprofundado a nogao da
contó de fadas. Em The Winter's Tale, o romance de vida, revelando-se a mudanga em tragedias como Romeo
amor pastoril entre Florizel e Perdita desmente a sombria and Juliet e Hamlet, e ñas comedias de alto estilo renas-
tragedia oteliana de seus pais; o modelo, o romance pas- centista. Ao mesmo tempo, a observagáo dos grandes acon-
toril Pandosto, do renascentista Greene, está perfeitamente tecimentos políticos da época ter-lhe-ia agugado o senso
"desrealizado". Enfim, "la vida es sueño": The Tempest histórico, e o resultado teria sido as "historias" inglesas
ainda é parodia amarga, desta vez do utopismo renascen- e romanas. Desgracas pessoais e desilusoes políticas — o
tista que acreditava em paraísos e só encontrou Calibans. O caso Essex — teriam escurecido o espirito do poeta, até
Barroco nao conhece utopia, porque éste mundo lhe pa- ao pessimismo e misantropía que se revelam ñas grandes
rece utopia ás avessas, parodia da verdadeira realidade, tragedias. Depois teria vindo a libertagáo interior, a re-
que é sonó e sonho — tirada para Stratford, as serenas pegas románticas e, em
Tempest, a despedida de um semideus. As comedias "pro-
blemáticas" — Mensure ioi Mesasure, Troilus and Cressida
" W e are such stuff
— nao encontraram lugar nessa evolugao e foram despre-
As dreams are made on; and our little life .
n d a s . Eis a interpretagáo de Shakespeare, muito divul-
Is rounded with a sleep."
gada pelos livros populares de Dowden e Brandes, e ainda
mantida pela maioria dos leigos.
É o testamento poético de Shakespeare — dizem todos
os que consideram a evolucáo de Shakespeare, de Titus
Poucos foram os que ousaram protestar contra essa
Andronicus a Tempest, como caminho de perfeigáo de
biografía romanceada: nao sabemos quase nada da moci-
urna vida pela poesía. A crítica literaria do século XIX
dade de Shakespeare; da sua vida como ator, durante a
nao se podia satisfazer com o ponto de vista dos classicis-
época da ativídade literaria, só temos noticias comerciáis
tas do século X V I I I — as "irregularidades" da obra de
e nada que possa apoiar a interpretagáo autobiográfica
Shakespeare teriam sido experimentos meio grandiosos,
das pegas; enfim, a retirada para Stratford dá menos a im-
900 OTTO M A R Í A C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 901

pressáo de despedida de um feiticeiro poético do que da poética das pegas (Knights) e das convengóes teatrais da
aposentadoria voluntaria de um comerciante enriquecido. Se época (Stoll). Os trabalhos de E . K. Chambers sobre a
essas objegoes já pareciam crimes de lesa-majestaderos sha- organizagáo do teatro elisabetano sao de especial impor-
kespeariólogos ortodoxos entristeceram-se ainda m a s com tancia. Shakespeare, embora em primeira linha poeta, pas-
as heresias de alguns franco-atiradores da crítica, como sou pela vida como playwright, dramaturgo profissional;
Ruemelin e Shaw: a construgáo irregular das pegas nao se- fato que está de acordó com as suas atividades de ator e
ria genialidade extraordinaria, mas revelaría incoeréncias e empresario comercial de teatros. As suas pegas nao sao
inverossimilhangas psicológicas da pior especie; Shakes- confissoes autobiográficas, e sim experiencias sucessivas
peare salvar-se-ia apenas pela música verbal, e esta mesma de mediagáo entre o gósto dos espectadores, aristocráticos
seria em grande parte estragada pela retórica bombástica e ou populares, e as suas necessidades de expressao poética.
pelo humorismo artificial ou grosseiro; e aquela música
Nao é admissível identificar o poeta com certas persona-
verbal escondería mal a falta de urna filosofía da vida.
gens suas, nem procurar ñas suas pegas a expressio de
Essa crítica negativa só tem o mérito de haver chamado urna filosofía da vida. Sempre se havia observado que o
a atencao para certas falhas da positiva. Devemos a Colé- mundo poético de Shakespeare era um mundo completo,
ridge o reconhecimento da unidade e homogeneidade es- fechado em si, a ponto de Shakespeare ignorar a Provi-
trutural das obras shakespearianas. Mas a Coleridge tam- dencia e Deus; a nao ser naquela comedia sombría, Mensure
bém se deve a preferencia pelo estudo psicológico das íor Measure, na qual a intervengao do Duque se parece com
grandes personagens: Hamlet, Macbeth e Lady Macbeth, a agio da graga divina. Seria melhor dizer que o poeta,
Ótelo e lago, Lear, Palstaff. O maior mestre désse como poeta, nao tem filosofía nem religiáo; só tem estilo
método, Bradley, perdeu, enfim, de vista a arte dramática dramático e poético. A análise désse estilo — sobretudo
de Shakespeare. As pegas, entáo muito mais lidas do que
das imagens e metáforas — tem sido feita com a precisao e
representadas na Inglaterra, foram lidas assim como se
os recursos da estatística moderna; e com o resultado des-
léem romances modernos: como biografías imaginarias; £i-
concertante de que as "imagens-chaves" foram novamente
caram de lado o teatro e a poesía.
usadas (ou abusadas) para considerar a poesía de Shakes-
A renovagáo da shakespeariologia foi iniciada pelo ge- peare como expressao alegórica de sabedorias e verdades
nial ator Harley Granville-Barker: admitindo corajosamen- escondidas. Essa tendencia da critica já está, porém, re-
te os "defeitos" dramatúrgicos (do ponto de vista da drama- cuando. É mais importante manter .o resultado de que
turgia moderna) das pecas de Shakespeare, e, valendo-se das aquela aparente evolugáo psicológica se revela como evo-
suas próprias experiencias na mise-en-scéne das pegas, ex- lugáo estilística, de comegos renascentistas, através de
plicou aqueles defeitos como conseqüéncias das conven- transigóes meio barrocas, até ao pleno Barroco senequista,
góes teatrais da época, as quais até um Shakespeare se ñas grandes tragedias pessimistas e ñas "comedias proble-
devia submeter, e encontrou a grandeza do poeta na arte máticas", enfim revalorizadas; e, por último, o que parecia
com que utilizou aquetas convengoes, vencendo-as, para "solugao das dissonáncias", é a última fase barroca, a de
produzir os maiores efeitos dramatúrgicos e poéticos. Subs- transfiguragao da realidade em Gran teatro del mundo. É
t i t u i r s e o estudo psicológico das personagens, cultivado mesmo o maior teatro do mundo.
com tanta felicidade por Bradley, pela análise da estrutura

902 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 903

No Barroco shakespeariano enquadra-se, finalmente, a Henry VIII e The Two Noble Kinsmen, parece certa —
parte mais misteriosa da sua obra: os 154 sonetos. Poesías liga-se á situacao caótica do teatro elisabetano no que diz
obscuras, as vézes herméticas, em estilo densíssimo, ser- respeito a colaboragáo, pseudonímia e anonimía. Nao é pos-
vindo até há pouco de base a urna bibliografía ¡mensa de sível excluir a colaboragáo de outros com Shakespeare ou
interpretagoes biográficas, cada vez mais complicadas e de Shakespeare com outros quando sabemos que o conceito
menos satisfatórias. A análise estilística rcdimiu os sone- de literatura dramática era entáo muito mais industrial do
t o s : sao poesias artificiáis, "preciosas", mas realmente pre- que literario. Trabalhava-se para os teatros, para os atores,
ciosas, partindo da dogura renascentista de Spenser, en- refundiam-se e modificavam-se sem escrúpulos pegas
chendo-se de petrarquismo sutil, eufuísmo conceituoso, alheias. Um dramaturgo táo extraordinario como Middle-
emotividade excessiva, metáforas barrocas, atenuando o ton escreveu quase todas as suas obras em colaboragáo com
hermetismo pelas reminiscencias familiares da paisagem outros. Ele, Fletcher, Chapman, Massinger construíram
inglesa e acabando numa severidade quase clássica, tran- urna rede inextricável de "cooperativas" dramatúrgicas.
sigáo imediata para os sonetos de Milton. As poesias cons- Dramaturgos de segunda e terceira ordem como William
tituem a única parte da sua obra que o próprio poeta pu- Rowley e Nathan Field poem as máos em muitas produ-
blicou; só ali ele se sentiu responsável pela sua missáo goes famosas dos grandes. A segunda edigáo in-fólio das
poética, afirmando: obras de Beaumont e Fletcher, de 1679, é um verdadeiro
repositorio de pegas de "varios ingenios". Déste modo,
"Not marble, not the gilded monuments nao é surpreendente a existencia de mais de 40 pegas
Of princes shall outlive this powerful r i m e . . . " pseudo-shakespearianas, algumas já publicadas em vida do
pretenso autor, outras acrescentadas á terceira edigao in-
O segrédo dessa imortalidade do grande dramaturgo está folio, de 1664. Em certos casos, é muito possível que Sha-
na poesia de Shakespeare, ou mais exato, no seu verso. kespeare tenha colaborado com outros, por exemplo, com
Shakespeare é o maior artista do verso inglés, e a inter- George Wilkins, no Pendes, Prince of Tyre; em outros
pretagáo da sua obra tem de ser, em primeira linha, inter- casos, as pegas só lhe teriam sido atribuidas para explorar
pretagáo poética, ao lado de análise dos valores humanos. a fama do seu nome. Contudo, algumas dessas pegas pseu-
Por isso, a shakespeariologia moderna, com todos os seus do-shakespearianas sao de valor notável ( 5 1 ).
resultados admiráveis, nao desvalorizou a crítica poética,
mas admirável, de um Coleridge, nem a psicológica de um
Bradley. No fundo devemos conformar-nos com o fato de
51) As pecas mais Importantes entre as atribuidas a Shakespeare:
que a arte de Shakespeare sobreviverá a todas as nossas Arden of Feversham (1592) ¡ Locrine (1595); Eáward 111 (1596);
interpretagoes; ou, no dizer de T . S. Eliot: "About any Sir Thomas More (publ. 1844); The hondón Prodigan (1605);
one so great as Shakespeare it is probable that we can never A Yorkshire Tragedy George (1608); The Two Noble Kinsmen
(Shakespeare e Fletcher?) (publ. 1634).
be right, it is better that we should from time to time Edi?ao completa das pecas duvidosas por A. F. Hopklnson, 3 vols..
change our way of being wrong." London, 1891/1895.
Edicao: The Shakespeare Apocrypha, edlt. por O. F. Tucker
A incerteza quanto á autoría de certas pegas shakes- Brooke. Oxford% 1908.
pearianas ou quanto á sua colaboragáo com outros drama- A. F. Hopklnson: Essays on Shakespeare"s Doubtful Plays.
London, 1900. (Introducto da edlcao citada.)
turgos — só a sua colaboragáo com John Fletcher, em H. D. Sykes: Sidelights on Shakespeare. Stratford, 1919.
.

904 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 905

Mas o valor nao é indicio da autoría. Locrine é urna prio do grande ensaísta, soube salientar os valores poéti-
impressionante "tragedia de vinganga", mas nao tem nada cos e dramatúrgicos de Jonson, Fletcher, Massinger, Mid-
de shakespeariano; e a historia Edward III recebeu, quanto dleton, Webster, F o r d ; e descobriu o esquecido Tourneur.
muito, alguns retoques do mestre. Arden of Feversham e Os poetas románticos ingleses foram, todos, admiradores
A Yorkshire Tragedy sao tragedias poderosas, nao de todo do teatro "pós-shakespeariano", e a crítica de Swinburne,
indignas de Shakespeare; mas sao tragedias "domésticas", mais poética do que critica, deu áquele entusiasmo a ex-
passadas em ambiente burgués, e nada nos indica que o pressáo mais intensa. Contra essa idolatría do teatro eli-
dramaturgo dos "gra-senhores infelizes" se tivesse ja- sabetano levantou-se, com coragem notável, o crítico tea-
máis ocupado com assuntos semelhantes. O "aristocra- tral William Archer, tradutor de Ibsen e amigo de Shaw;
tismo" também é argumento contra a autoría de Marlowe, num livro-panfleto apaixonado, pretendeu demonstrar a
ao qual se gostaria de atribuir o interessantissimo hondón superioridade do teatro moderno sobre o antigo, denun-
ciando implacávelmente os efeitos dos dramaturgos elisa-
Prodiga!], transposicao da parábola do filho pródigo para
betanos: as inverossimilhangas grosseiras dos enredos, as
o ambiente da boémia de Londres. O caso mais misterioso
incoeréncias enormes da psicología. Archer, porém, foi,
é o fragmento de Thomas More do qual possuimos o ma-
por sua vez, incoerente: abriu excegáo para Shakespeare,
nuscrito; urna das cenas está escrita, segundo todas as
porque nao ousou atacar o ídolo nacional. Déste modo,
evidencias grafológicas, pela mao do próprio Shakespeare,
Shakespeare parecia, outra vez, separado dos seus suces-
mas nao é possível afirmar se redigida ou copiada pelo sores por urna diferenga incomensurável de valores. A sha-
mestre. kespeariologia moderna já reduziu a distancia, admitindo
O problema das atribuigoes e colaboragoes depende calmamente aqueles mesmos defeitos no próprio Shakes-
em parte do criterio de valor que aplicamos. Os shakes- ciando implacávelmente os defeitos dos dramaturgos elisa-
peariólogos alemaes e franceses nao deram muita impor- tano; e, no fundo, nao sao defeitos, porque o criterio de
tancia ao problema, porque a distancia entre Shakespeare Archer estava errado. O drama elisabetano nao pode ser
e os seus contemporáneos lhes parecia táo grande que a comparado com o de Ibsen ou Shaw, porque tem outros
confusáo significava quase blasfemia. Os ingleses, em ge- objetivos; nao pretende, de maneira alguma, imitar ou re-
ral, nao adotam o mesmo criterio. Ao contrario do que presentar a realidade. Os románticos tinham um pouco de
amigamente se pensava, o teatro elisabetano nunca estéve razao quando chamavam "romántico" a Shakespeare; ape-
esquecido, e a "redescoberta" no século X V I I I foi nas seria mais exato o adjetivo "barroco". Do estilo bar-
antes revalorizagáo, caindo agora em esquecimento os con- roco nos sucessores de Shakespeare já nao duvida nin-
temporáneos de Shakespeare. Mas os románticos retifi- guém; mas é digno de nota que os "sucessores", na maior
caram logo a injustica ( 5 2 ) : Lamb, com o entusiasmo pró- parte, nao sao sucessores, e sim companheiros. Dekker,
Middleton, Jonson pertencem a geragáo de Shakespeare;
Heywood, Tourneur e Fletcher nasceram pouco depois; só
52) Ch. Lamb: Specimens of English Dramatlc Poets, who lived
about. the time o) Shakespeare. 1808. Webster, Ford e Massinger sao "sucessores". Parte consi-
A. O. Swlnburne: The Age of Shakespeare. London. 1908. derável do teatro elisabetano foi escrita quando Shakes-
W. Archer: The Oíd Drama and the New. 2.» ed. New York, 1929. peare ainda vivia, e Beaumont e Fletcher chegaram a exer-
V. M. Ellis Fermor: The Jacobean Drama. An Interpretation.
London, 1936.
906 OTTO M A R Í A C A K P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 907

cer influencia sobre o estilo das suas últimas comedias. "Oh of what contraríes consists a man!
Finalmente, as maiores obras de Shakespeare sao posterio- Oh what impossible mixtures! vice and virtue,
res a 1603; ele é também mais jacobeu do qiig elisabetano, Corruption and eterneness at one time,
é o primus ínter pares dos chamados "pós-shakespearia- And in one subject, let together, loóse!"
nos". A sua grandeza nao é capaz de diminuir os outros
Chapman é, segundo a observagao de Dobrée, o primeiro
que ocasionalmente o igualam; a distingio depende do cri-
dos "metaphysical poets", ensaiando-se no drama. Eis,
terio estilístico, das fases diferentes da transigió da Re-
alias, um trago característico do teatro elisabetano-jacobeu
nascenga para o Barroco.
inteiro: fraquezas dramatúrgicas, iluminadas por grande
George Chapman (:,:1) só pode ser assim interpretado. poesía dramática.
É alguns anos mais velho do que Shakespeare, e a sua gran- Antes de Chapman ser devidamente apreciado, consi-
diosa tradugáo de Homero constituí o cume lingüístico da derava-se Ben Jonson (° 4 ) como o maior poeta renascen-
Renascenga inglesa. Tanto mais curiosa é a dramaturgia tista entre os companheiros de Shakespeare. As poesías
pesada e inábil das sombrías "tragedias de vinganga" Bussy líricas de Jonson justificam, alias, essa fama; sao hoje
d'Ambois e Rcvenge of Bussy á'Ambois, como se o poeta, novamente apreciadas, como representando a transigió en-
depois da virtuosidade da tradugáo, comegasse de novo; e tre a poesía elísabetana e a "metafísica"; mas o seu modo
a comicidade exuberante de AI] Fools, os fortes contrastes próprio de expressao parece ter sido a prosa. A critica
tragicómicos de The Widdowes Teares constituem sur-
présa. Chapman é um espirito filosófico: "most strangely
intellectuall fire", assim chamou ele á sua própria poesía. 54) Ben Jonson, c. 1573-1637.
O sentido profundo da simultaneidade dos elementos trá- Every Man in his Humour (1598); Every Man out of his Humour
gicos e cómicos torna-se, em Chapman, mais evidente do (1599); Cynthia's Reveis (1601); The Poetaster (1601); Sejanus
(1603); Volpone, or the Fox (1606); The Hue and Cry after Cupid
que no próprio Shakespeare: (1608); Epicoene, or the Silent Woman (1609); The Alchemist
(1610); Cataline (1611); Bartholomew Fair (1614); The Magnetic
Lady (1632); The Sad Shepherd (publ. 1641).
53) George Chapman. 1559-1634. (Cf. "Renascenca Internacional", Poesía lírica: The Forest (1616); Underwoods (1640).
nota 6.) Edl;6es por W. Glfford e F. Cummingham, 3.° ed., 9 vols., London,
Gentleman Usher (1602); Monsieur d'Olive (1604); All Fools 1875, e por C. H. Herford e P. Slmpson, 7 vols., London, 1925/
(1605); Bussy d'Ambois (1607); The Conspíracy and Tragedy of 1941.
Charles Duke of Byron (1608); The Widdowes Teares (1612); The J. A. Symonds: Ben Jonson. London, 1886.
Revenge of Bussy d'Ambois (1613); Caesar and Pompey (1631); A. C. Swlnburne: A Study of Ben Jonson.. London, 1889.
Chabot Admiral of France (publ. 1639); Eastward Hoe (com B. E. Gosse: The Jacobean Poets. London, 1894.
Jonson e Marston, 1605). M. Chastelain: Ben Jonson, l'homme et l'oeuvre. París, 1907.
Edlcáo das obras dramáticas por T. M. Parrot, 2 vols., New Gr. Smlth: Ben Jonson. London, 1919.
York, 1910/1913. J. Palmer: Ben Jonson. London, 1934.
G. Thorn Drury: "George Chapman". (In: Review of Engllsh Stu- C. L. Knights: Drame and Society in the Age of Jonson. London,
dies, julho de 1925.) 1937.
I. Spens: "Chapman's Ethical Thought". (In: Essays and Studies, T. S. Ellot: "Ben Jonson". (In: Selected Essays, 2.» ed, London,
XI, 1926.) 1941.)
H. Ellis: George Chapman. London, 1934. G. B. Johnston: Ben'Jonson, Poet. New York, 1946.
I. Smith: "George Chapman". (In: Scrutiny, marco, junho de H. Watte Baum: The Satirio and the Dldactic in Ben Jonson'$
1935.) Comedy. New York, 1947.
908 OTTO MARÍA CABPEAÜX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 909

sempre opós ao genio poético do escassamente culto Shakes- dade sua, é comum na Renascenca, e cumpre conhecé-la
peare o genio prosaico do seu erudito amigo Jonson, expli- para compreender bem a "melancolía" de Hamlet ou de
cando: a poesia de Shakespeare nutriu-se das excursoes fan- Jacques em As You Like It. Jonson serviu-se désse ins-
tásticas da sua imaginacao, ao passo que a inteligencia pro- trumento para exprimir o seu conceito pessimista da na-
saica de Jonson se nutriu das experiencias de urna vida tureza humana, apresentando no palco verdadeiros mons-
quase picaresca: Jonson foi sucessivamente scholar de tros moráis, ou antes, imorais, como Volpone, na comedia
Cambridge e pedreiro, soldado e ator, jornalista e "poeta désse título, rico avarento que se finge de moribundo para
laureatus" da coroa de Inglaterra. É preciso verificar se arrancar presentes aos que nutrem esperanzas de serem
na sua obra dramática prevalece a cultura renascentista ou lembrados no seu testamento. Volpone é um verdadeiro
a vitalidade do homem do povo. museu de personagens corrutas, miseráveis e ridiculas, e
a comicidade irresistível das cenas magistralmente cons-
Teóricamente, Jonson é classicista de gósto italiano, truidas deixa um travo amargo na boca. Eis a obra da
antecipando doutrinas e gostos de Corneille, na tragedia qual nem o pessimismo de Shakespeare teria sido capaz, a
romana, e de Moliere, na comedia moralista. Reconhe- obra em que Jonson supera o mestre.
cendo o genio de seu amigo Shakespeare, menosprezava no
entanto o drama irregular dos seus companheiros, defen- O ambiente das maiores comedias de Jonson — Vol-
dendo teorías aristotélicas. O seu gósto renascentista ma- pone e Epícoene — é italiano, e o ambiente está bem ca-
nifestava-se também na surpreendente capacidade do clas- racterizado: urna danca frenética de desmoralizados em
sicista algo pesado de escrever "masques" ligeiros como torno dos ídolos Ouro e Volúpia. As reminiscencias da li-
The Hue and Cry aitei Cupid, e pastorais poéticas como teratura antiga e os nomes italianos nao bastam, porém,
The Sad Shepherd. A erudicáo prejudicou-lhe as tragedias para definir a arte de Jonson; distingue-se de toda a arte
romanas, Sejanus e Catiline, obras de admirável reconstru- renascentista pelo forte moralismo, que lembra aos críti-
y o arqueológica mais do que de poesia dramática; pegas cos franceses a atitude de Moliere e os tipos duramente
sólidas e eficientes, mas algo frias, menos ñas vigorosas modelados de La Bruyére. Deveriam também lembrar a
cenas satíricas. psicología pessimista de La Rochefoucauld, reduzindo as
chamadas virtudes a expressoes mais sutis de egoísmo e
O mesmo Ben Jonson é comediógrafo satírico, abra-
vaidade. Só assim é possível apreciar devidamente as tra-
sando o gósto popular. O Alchemist zomba das supersti-
gedias romanas de J o n s o n : nao se comparam aos panora-
coes da época; seu enredo, magistralmente construido, foi
mas dramáticos, cheios de vida, de Shakespeare; mas s l o
comparado por Coleridge ao de O Rei Édipo. Batholomew
sátiras poderosas contra a corrucao humana, que é igual em
Fair é urna sátira mordaz contra os puritanos, cujo repre-
todos os tempos. Daí a escolha de assuntos repugnantes,
sentante na pega tem o nome signifcativo de Rabbi Zeal-of-
em Catiline e Sejanus; daí a eloqüéncia poderosa da lin-
the-Land Busy — dir-se-ia personagem de Sinclair Lewis.
puagem, servindo para exagerar os defeitos infra-humanos.
Every Man in his Humoui é urna revista de caracteres có-
c apresentar caricaturas grandiosas, assim como ñas come-
micos, cada um dos quais é viciado pelo excesso de urna
dias. Eliot reconhece em Jonson a suprema perfeicao ar-
qualidade característica, de um humour. Eis a contri-
tística das monstruosidades geníais de Marlowe; mas se-
buicáo principal de Jonson para a comedia de tipo plau-
ria isso aínda Renascenca? O conjunto de erudicáo clás-
tino-terenciano; mas a teoría dos humours nao é proprie-
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 911
910 OTTO MARÍA CARPEAUX

sica e humorismo popular é antes urna antitese barroca, e sas barulhentas com tipos vivíssimos da vida inglesa, mes-
ao Barroco também pertencem a teoria aristotélica e o mo- mo quando tém nomes italianos. A obra mais forte de
ralismo amargo. Jonson é um Dryden)eem peruca, supe- Marston é The Malcontent: nada menos do que o assunto
rior ao grande satírico pela capacidade de criar um mundo de Measure íor Measure, concebido como comedia gro-
completo de loucuras sinistras e caricaturas sombrías. An- tesca, na qual o duque disfargado fala como raisonneur
tigamente, a crítica considerava o teatro de Ben Jonson cínico; ai há qualquer coisa do melhor de Jonson. E quan-
como urna sala fría de museu; hoje — a observagáo é outra do Marston toca em assunto clássico — na Tragedy of So-
vez de Eliot — o conjunto da brutalidade dos sentimentos phonisba — revela urna capacidade surpreendente de ex-
e polidez das expressoes das personagens de Jonson pare- pressáo poética que, apesar de todas as monstruosidades de
ce bastante moderno. Com efeito, Volpone tornou-se um mau gósto, é barroca. T . S. Eliot lembrou-se, a propósito
dos maiores sucessos teatrais da nossa época. A arte de de Marston, de Corneille, de um Corneille inculto, gros-
Jonson é menos humana do que a de Shakespeare. Mas seiro, do Barroco popular.
artistas da sua especie sao táo raros como os Shakespeares, Thomas Dekker ( 6 6 ) é, de todos os dramaturgos da
e a posteridade tem todos os motivos para concordar com época, o mais popular. É jornalista satírico, redigindo fo-
a inscricao no seu túmulo: "O rare Ben Jonson!" lhetos que se vendiam ñas esquinas; as vézes usa a gíria
De todos os dramaturgos elisabetanos é Ben Jonson da roguery, dos mendigos e criminosos. Um désses es-
o menos popular; as criacoes da sua inteligencia poderosa critos, The Guls Hornebook, é versao livre do Grobianus
sao "caviare to the general". Marston, Dekker, Heywood (1549), sátira latina do alemáo Friedrich Dedekind, contra
sao os dramaturgos das massas barulhentas da cidade de os costumes grosseiros (groó significa em alemao "gros-
Londres da rainha Isabel. Mas cada um déles revela seiro") da época, e a sátira nao é menos "grobiana". Ésse
á sua maneira a fórca irresistível da evoluclo Renascenga mesmo Dekker é um grande poeta dramático. Oíd Fortu-
— Barroco. J o h n Marston ( 60 ) é um Jonson "to the gene- natos, dramatizagáo de um contó de fadas, está cheio de
ral". É até grosseiro: quando pretende criar urna "tra- belezas Úricas; trata, em The Witch of Edmonton, urna
gedia de vinganga" á maneira de Séneca, sai Antonio and ocorréncia de crónica policial, e sai urna comovente trage-
Mellida, produto monstruoso. Marston está á vontade na dia psicológica; e The Shoemakers Holiday, dramatizagáo
comedia, em The Dutch Courtezan, em Eastward Hoe, far- do romance popular The Gentle Craft, de Deloney, elogio

65) John Marston, c. 1575-1634. 56) Thomas Dekker, c. 1570 — c. 1641.


Antonio and Mellida (1602); The Malcontent (1604); The Dutch The Shoemakerg Holiday (1600); Oíd Portunatus (1600); The
Courtezan (1605); Eastward Hoe (cono Chapman e Jonson, 1605); Honest Whore (com Mlddleton; 1609, 1630); The Witch o/ Ed-
Tragedy of Sophonisba (1606). monton (1621).
Edlcoes por A. H. Bullen, 3 vols., London. 1887, e por H. H. Wood. Sátiras: The Wonder]ul Year (1603); The Belman o/ London
3 vols.. Edlnburg. 1934/1939. (1608); The Guls Hornebook (1609).
W. Macneile Dlxon (in: The Cambridge History of English Li- Edl?óes por R. H. Shepherd, 4 vols., London, 1873, e por F. flow-
terature, vol. VI, 2.» ed. Cambridge, 1919.) ers, Cambridge, 1953/1954.
R. E. Brettle: John Marston. Oxford, 1928. M. J. Hunt: Thomas Dekker. New York, 1911.
T. 8. Eliot: "John Marston". (In: Selected Essays. 2.» ed. Lon- W. Macneile Dixon (in: The Cambridge History of English Li-
don, 1941.) terature, vol. VTJ, 2.Í ed. Cambridge, 1919).
K. L. Gregg: Thomas Dekker, a Study in Economical and Social
A. J. Axelrod: Un malcontent élisabéthain. John Marston. Paria, Background. Seattle, 1924.
1956.
912 OTTO MARÍA CABPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDKNTAL 913

jubiloso do pequeno-burgués londrino, realiza o milagre seus assuntos preferidos eram a farsa popular, da qual
de transformar em poesia o ambiente cockney. Nesta The Fair Maid of West é excelente exemplo, e a tragedia
obra há qualquer coisa de Dickens, e nao foi casualmente doméstica, de ambiente burgués, da qual Heywood criou a
que The Shoemakers Hohday se tornou urna das pegas obra-prima: A Woman Killed with Kindness. Nenhum
mais representadas e lidas do teatro inglés. Nos outros outro dramaturgo elisabetano parece táo moderno como
preferimos The Honest Whore: ali há tambera urna perso- éste; apesar das incoeréncias da a$ao, é Heywood um
nagem dickensiana, Orlando Friscobaldo, de expressoes grande realista, nos motivos psicológicos e no sentimenta-
rudes e coracao de ouro, atingindo ás vézes a emocao mais lismo moderado. As vézes, o leitor acredita 1er um poeta
patética. Assim é na primeira parte, que Dekker escreveu romántico, como na famosa declaracao de amor que comeca
era colaborado com Middleton, e que a interpretacáo de "O speak no m o r e ! . . . " ; outras vézes, lembra um poeta
Hazlitt tornou famosa. Na segunda parte, Dekker revela o de hoje, como na passagem que T . S. Eliot admira tanto:
reverso da medalha: o mesmo Hippolito que converteu a
"honest whore" Bellafront, pretende agora seduzi-la; e
essa ironía dramática transforma a comedia moralissima "O God! o God! that ít were possible
era sátira barroca. T o undo things done; to cali back y e s t e r d a y . . . "

A Thomas Heywood ( 07 ) atribui o seu biógrafo re- Na verdade, essa historia sentimental de urna mulher se-
cente, A . M. Clark, a autoría ou principal autoría de «duzida que recebe perdao na agonia está cheia de poesia
Appius and Virginia, tragedia quase classicista, publicada auténtica, lembrando a definicáo de Wilfred Owen: "The
como sendo de J o h n Webster, e que representa excegao es- poetry is in the pity." Heywood fez urna tentativa para
tranha entre os obras déste poeta noturno. Se a hipótese enobrecer a vida da gente humilde. Dispondo de arte mais
se verificasse, Heywood merecería menos do que nunca o pura, poderia ter escrito urna tragedia de simplicidade
apelido pouco feliz que o seu admirador Lamb lhe confe- clássica como Appius and Virginia. Em compensado, é
r i u : "the prose Shakespeare". Shakespeare é, segundo os um dos poucos dramaturgos elisabetanos que aparecem até
conceitos modernos, antes de tudo um dramaturgo profis» hoje no palco.
sional, um playwright, que foi grande poeta. Heywood
é apenas playwright, de atividade incansável, mestre de O último e maior dramaturgo da geracáo de Shakes-
todos os efeitos baratos do palco — terror e sentimenta- peare é Thomas Middleton ( B8 ). Nos seus momentos mais
lismo. A expressáo prose, de Lamb, quer dizer que os
wii Thomas Middleton, c. 1570-1627.
Michaelmas Term (1604); A Trick to Catch the Oíd One (1608):
57) Thomas Heywood, c. 1575-1650. The Roartng Girl (1611); Women Beware Women (1613); A
King Edward IV (1600. 1605); A Woman Killed with Kindness Chaste Maid in Cheapside (1612); The Fair Quarrel (com Row-
U807); The Fair Maid o/ the West (1631); The English Traveller ley; 1616); A Game at Chesse (1624); The Changeling «com
(1633). Wllllam Rowley; 1624); The Witch (1627);
Edlc&o por R. H. Shepherd. 5 vols., London, 1874. Edic&o por A. H. Bullen, 8 vols.. London, 1885/1886; sclecao por
A. M. Clark: Thomas Heywood, Playwright and Miscellaníst, H. Ellls. 2 vols.. London. 1890.
Oxford. 1931. A. Symons (in: The Cambridge History o/ English Literature.
T. S. Ellot: "Thomas Heywood". (In: Selected Essays. 2.» ed. Lon- vol. VI, 2.» ed. Cambridge, 1919).
don, 1941.)
F. S. Boas: Thomas Heywood. London, 1950. W. D. Dunkel: The Dramatic Technitjue o/ Thomas Middleton
in his Comedies of London Lile. Chicago, 1925.
914 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 915

felizes ombreia com Shakespeare, superando-o no descuido tauracáo? J á se admite hoje, nestas últimas, um fundo de
absoluto pelo destino literario da sua obra dramática. A s moralismo, e o próprio Middleton se revela mais moralista
mais das vézes admitiu colaboradores, até ñas suas maio- do que realista e psicólogo ñas suas tragedias; moralismo
res pecas, para facilitar ou apressar o trabalho, colabo- no sentido francés da palavra, como análise psicológica de
rando ele mesmo ñas pegas de outros, sem que seja possível casos de consciéncia. A Fair Quarrel, que mereceu a admi-
sempre distinguir o que realmente Ihe pertence. A parte radlo de Lamb, trata da crise moral por que passa urna
mais auténtica da sua obra — as comedias da vida das mulher que tem de confessar ao próprio filho os pecados
classes baixas de Londres — revelam um observador agudo, do seu passado. Middleton é o maior mestre de psicología
grande realista, com urna forte dose de cinismo quase imo- feminína entre os elisabetanos. Em Women Beware Wo-
ral. A Chaste Maid in Cheapside é farsa de um "triángulo" men, a "tragedia de vinganca" é motivada pela traicáo re-
adulterino á melhor maneira parisiense. Em A Trick to pentina de urna mulher, sucumbindo á seducáo, perse-
Catch the Oíd One, Middleton toma o partido de um boé- guindo depois o marido. Bianca, a heroína criminosa, n i o
mio duvidoso, e em Michaelmas Term consegue tornar sim- é porém de todo responsável; ela apenas aceita as con-
pático um usurario. Por meio deste cinismo, Middleton seqüéncias de um fato irreparável:
parece precursor da comedia imoral da Restauracao. Mas
talvez o cinismo seja apenas aparente, expressao do forte "Can You weep Fate from ¡ts determined purpose?"
interésse de Middleton em casos psicológicos, explicando-se
assim a atitude moralissima, quase heroica, da duvidosa O chamado imoralismo de Middleton baseia-se no deter-
Molí Cutpurse no ambiente picaresco da Roaring Girl. minismo psicológico; eis o tema da sua obra-prima, The
Evidentemente, Middleton é um grande realista, mas o seu Changeüng: Beatrice ama Alsemero, e, para livrar-se do
realismo nao é o realismo alegre de Dekker nem o senti- noivo, Alonso, aluga o assassino De Flores; o prego que
mental de Heywood; aproxima-se mais do moralismo sa- tem de pagar é o seu próprio corpo, e ela acaba amante,
tírico de Jonson, superando-o pela coragem de intervir nos dedicada até a mortí, do criminoso, que antes lhe inspiravs
negocios públicos: A Game at Chesse, chamada com ra- repugnancia física. Beatrice e De Flores sacr'ificam suas
zio "aristofánica", é urna sátira alegórica contra a política vidas a paixoes pelas quais nao se acreditam responsáveis.
exterior, entao hispanófila, do govérno inglés. Middleton A acáo da pega, violenta, licenciosa, inverossimil, mas de
é o intérprete fiel dos sentimentos da massa, para a qual alta eficiencia dramática, só serve para mettre en scene
escreve. No prefacio da Roaring Girl, o próprio Middle- aquéle determinismo; o sentido moral da pega é até acen-
ton afirma a sua resolugao de acompanhar sempre o gósto tuado pelo enredo episódico, o double .plot, que se asse-
do público que exigiría agora comedias ligeiras. Será Mid- melha ao enredo principal, passando-se em um manicomio.
dleton realmente o precursor das comedias imorais da Res- Ésse episodio burlesco escandalizou os admiradores mais
entusiasmados da tragedia, até que Empson o revelou como
chave da interpretagáo psicológica ( 69 ) da pega e da inter-
T. S. Ellot: "Thomas Middleton". (In: Selected Essays. 2.» ed. pretagáo histórica do teatro elisabetano inteiro: o dou-
London, 1941.)
E. E. Stoll: "Héroes and Villains". (In: From Shakespeare to ble plot é a expressao mais característica da síntese entre
Joyce. New York. 1944.)
S. Schoenbaum: Middleton's Tragedles. A Critical Study. New
York, 1955. 08) W. Empson: English Pastoral Poetry. New York, 1936.
916 Orro MARÍA CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 917

Barroco culto e espirito popular, que constituí o teatro


espirito elisabetano. A separagáo nao é completa: isto
inglés. O paralelismo dos crimes no palacio e das loucuras
acontecerá sómente mais tarde, na época da revolugáo pu-
no manicomio envolve The Changeling em atmosfera meio ritana contra a monarquía aristocrática dos Stuarts. Por
trágica, meio burlesca. A pega, que é, ao lado de Macbeth, enquanto, continua urna síntese precaria, convivencia de
das maiores do teatro barroco inglés, é sintoma de urna aristocratismo e grosseria, romantismo e obscenidade, den-
crise nos conceitos moráis da época: o fim da moral re- tro das mesmas obras, dos mesmos autores: urna antítese
nascentista. Déste modo, The Changeling, além de ser urna típica do Barroco. O teatro jacobeu revela qualidades de
tragedia shakespeariana, é urna data histórica da litera- grandiosa caricatura trágica. A poesía dramática torna-se
tura inglesa. mais intensa, a construgao dramatúrgica mais eficiente;
Jonson e Middleton sao os grandes dramaturgos que mas torna-se precario o criterio moral em que se baseava o
operam a transformagáo do teatro elisabetano em teatro teatro inglés: o que fóra problema angustioso em
jacobeu, ao qual já pertencem; Webster e Ford continuar- Middleton, é mera convengáo teatral em Massinger e mero
Ihes-ao a obra. As modificagóes sao t í o profundas quanto jógo de palavras em Beaumont e Fletcher; e em Webster
intensas: concentragao da técnica dramatúrgica em torno e Ford acontecerá qualquer coisa como um colapso.
de assuntos da violencia mais crassa, escurecimento da
Já durante os últimos anos de Shakespeare, a gloria de
atmosfera, pessimismo cínico, abalo dos standares mo-
John Fletcher e Francis Beaumont ( 6 0 ), colaboradores in-
ráis. O mundo de Marlowe e Chapman e das comedias re-
nascentistas de Shakespeare já está longe. Mas o próprio 60) John Fletcher, 1579-1625 e Francis Beaumont, 1584-1616.
Shakespeare pertence, pela segunda metade da sua car- As edicóes in-íólio, de 1647 e 1679. também compreendem as
reara literaria, ao teatro jacobeu: Macbeth e Antony and pecas escritas em colaboracáo com outros dramaturgos, e mes-
mo alheias.
Cleopatra, Measure for Measuie e Timón, sao pegas das Pecas de Fletcher: The Faithful Shepherdess (1609); Valentinian
mais poderosas do novo estilo \ as últimas comedias fantás- (1614); Bonáuca (1614); Wit without Money (1614); Monsieur
ticas de Shakespeare nasceram mesmo sob a influencia dos Thomas; Tne Loyal Subject (1618); The Humorous Lieutenant
(1619); The Chances (1620); The Wüd-Goose Chase (1621): The
dramaturgos jacobeus Beaumont e Fletcher. O que anti- Lovers Progress (com Massinger?) (1623); Rule a Wife and
gamente se considerava como mudanga psicológica no in- Have a Wife (1624); A Wife for a Month (1624); etc. Pecas
dividuo Shakespeare é na verdade um dos síntomas da mo- de Fletcher e Beaumont: The Kníght of the Burning Pes-
tle (1607); Philaster (1608); The Scornjul Lady (1609); The
d i f i c a d o radical do teatro inglés, em transigió para a épo- Coxcomb (1610); A King and No a King (1611); The Maid's
ca jacobéia. Alegou-se a impressáo penosa do caso de Tragedy (1611); Four Plays in One (1612?); etc.
Essex em 1601. Em vez do fato político prefere-se agora Pecas de Fletcher em colaboracáo com Massinger: Th.ierry and
Theodoret (1617); The Little French Lawyer (1619); The Custom
salientar o fato social: de 1600 é a primeira "Poor Law", o/ the Country (1619); The Laios of Candy (1620); The False
medida brutal contra o chómage, conseqüéncia da infla- (1620); The Spanish Cúrate (1622); The Beggars Bush (1622); etc.
Edicáo por A. Glover e A. R. Waller, 10 vols., Cambridge. 1905/
gao e outros disturbios económicos. A estrutura social da 1912; nova edicáo por J. St. Loe Strachey, comecada em 1950.
Inglaterra elisabetana, a comunidade nacional da "Merry C. Swinburne: Studies in Prose and Poetry. London, 1894.
Oíd England", abala-se. O teatro jacobeu é um fenómeno O. L. Hatcher: John Fletcher, a Study in Dramatic Mcthod.
Chicago. 1905.
de dissociagao: de separagáo entre política e povo, espirito
aristocrático e espirito popular, cuja unidade constituirá o C. M. Gayley: beaumont as Dramtist. New York, 1914.
O. C. Macaulay (in: The Cambridge History of English L'.te-
rature, vol. VI, 2.» ed. Cambridge, 1919).
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 919
918 OTTO M A R Í A CARPEAUX

do rei, e das conseqüéncias sangrentas désse fato, já foi


separáveis, eclipsou a do m e s t r e ; e na época do esqueci-
comparada ás grandes tragedias do teatro clássico francés;
mento, embora sempre relativo, do teatro elisabetano, os
exibe, realmente, efeitos tremendos com eloqüéncia pa-
dramaturgos-gémeos continuaram sempre famosíssimos. A
tética. Mas nao se senté a grande necessidade trágica da
sua obra, mais do que a de qualquer outro dramaturgo in-
agáo. A King and no a Ring é a primeira das muitas tra-
glés, lembra o teatro espanhol: pela intensa fecundidade
gedias de incesto do teatro inglés; e a impressáo é mais
dos autores, pela variedade dos assuntos, pelo romantismo
de horror que de frémito trágico. A s comedias, como
algo fantástico, pela linguagem cuidada. A posteridade
The Scornful Lady, revelam mestria igual no diálogo
viu principalmente ésses dois aspectos: a riqueza de ma-
cómico e trágico, sem se elevarem ácima do nivel geral
teria dramatúrgica, e o estilo poético, que durante os sé-
da comedia elisabetana. O terreno próprio dos dois poe-
culos X V I I e X V I I I , e até no tempo de Keats, foi consi-
tas está situado entre tragedia e comedia: comedias román-
derado magnífico e exemplar. Samuel Johnson, o austero
tico-fantásticas, á maneira de As You Like It e Twelfth
crítico classicista, chamou ao verso de Fletcher e Beau-
Night, mas de um lirismo mais terno, mais melancólico,
mont o mais perfeito da língua inglesa, preferível ao de
que lembra a Cymbeline. É assim a outra pega famosíssima
Shakespeare e Milton; Keats dedicou aos dois poetas a
dos dois autores: Philaster. Mas é só jógo de cenas e pa-
famosa "Ode on the P o e t s " ("Bards of Passion and of
lavras, teatro apenas. Essas míos escreveram também a
M i r t h " ) , chamando-lhes poetas "sans phrase"; e o sé-
divertida farsa The Knight of the Burning Pestle, parodia
culo XIX concedeu-lhes, sem hesitagáo, o segundo lugar
cervantina das loucuras de cavalaria de um aprendiz de
depois de Shakespeare. Hoje, pensa-se de maneira dife-
quitandeiro.
rente.

Fletcher parece o maior dos dois; a sua comedia pas- Fletcher e Beaumont sao poetas essencialmente aristo-
toril The Faithful Shepherdess já revela o encanto lírico cráticos; dai a sua semelhanca com o teatro espanhol, daí
que em geral se atribuí a Beaumont. Mas ñas obras de co- o estilo poético, a procura de enredos sempre novos e iné-
laboracao é difícil, senao impossível, separar a parte de ditos, a virtuosidade dos efeitos cénicos — Beaumont e
cada um. As tragedias dos poetas assemelham-se ás de Fletcher introduziram no teatro inglés as reviravoltas sur-
Middleton: sao tragedias de problemas moráis, tratados preendentes, a thrill, a sensagáo, os desfechos inespera-
com virtuosidade cénica bastante maior, mas sem angustia, dos. Só a escolha de enredos e ambientes fantásticos torna
até sem seriedade. A famosíssima Maid's Tragedy, his- suportáveis as enormes inverossimilhancas; e entre os ins-
toria do casamento forjado de um cortesao com a amante trumentos dos dois poetas para impressionar e fascinar os
espectadores está, ao lado da diccáo lírica, a obscenidade in-
M. Chelli: Étude sur la collaboration de Massinger avec Flet- tencional. Todo ésse virtuosismo é barroco, no sentido
cher et son groupe. París, 1926. algo pejorativo da palavra. É um barroco exterior, de fa-
E. H. C. OUphant: The Plays of Beaumont and Fletcher. Ox- chada, que se satisfaz com as aparéncias. A arte de Beau-
ford, 1927.
B. Maxwell: Studies on Beaumont, Fletcher and Massinger. mont e Fletcher é enfeíte, e podía servir a outros para en-
Durham, N. C. 1939. feitar coisas boas e até menos boas. Shakespeare, ñas suas
L. B. Wallls: Fletcher, Beaumont & Company. Entertainers to últimas pegas — Cymbeline, The Winter's Tale, The Tem-
the Jacobean Gentry. New York, 1947.
W. W. Appleton: Beaumont <& Fletcher. A Critícal Study. Lon- pest — utilizou-se realmente de certos efeitos cénicos e li-
don, 1956.
920 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 921

rismos fantásticos de Beaumont e Fletcher, cuja arte pom- do século X I X . Mas sem convengoes assim nao há teatro.
posa e aristocrática podia também, sem alteracoes essen- Na Antiguidade e na Espanha, a convengio moral do tea-
ciais, servir de fonte á tragedia heróico-romántica da Res- tro estava garantida, respectivamente, pelo mito e pelo
tauragáo: Dryden, Otway, Lee. A situagao histórica de dogma. Na Inglaterra, nao havendo mito nem sendo de
Beaumont e Fletcher, entre o teatro antigo e o moderno, tanto rigor o dogma, reinava ura equilibrio precario entre
é notável. a moral renascentista e a forma barroca do teatro. A au-
Na obra independente de Fletcher encontram-se algu- tonomía do mundo dramático de Shakespeare é táo com-
mas boas comedias románticas — Monsieur Thotnas, The pleta que existe equilibrio perfeito; é, por assim dizer, urna
Humorous Leutenant — que justificam recentes tentativas moral laicista sem Deus, que nem pelo pessimismo do
de revalorizagáo. Sua colaboragáo com mais outros dra- poeta é quebrada. Ben Jonson já tem de defender a sua
maturgos apresenta maior número de pegas de valor, sem posicao pela sátira moralista, e em Middleton as conven-
se distinguir muito da obra que realizou com Beaumont. goes moráis tornam-se problemáticas. Em um dramaturgo
Fletcher dispoe, ñas tragedias (Bonduca, Valentiniau), de de mentalidade burguesa, como Heywood, comega a subs-
retórica eficiente, e al guiñas das suas comedias (The Can- tituigao dos conceitos renascentistas pelos conceitos da
ches, The Wild-Goose Chase, Rule a Wife and Have a moral burguesa, de sentimentalismo e perdáo; daí a apa-
Wiie) sao de construgao magistral. Na colaboragáo com rente modernidade de Heywood. Em dramaturgos de men-
Massinger, Fletcher aproxima-se cada vez mais da come- talidade aristocrática como Fletcher e Beaumont, a con-
dia licenciosa da R e s t a u r a d o , cujos dramaturgos refundi- vengáo moral já é mera convengáo, sem seriedade; os con-
ram com éxito pegas como The Little Lawyer e The flitos sexuais ñas suas tragedias e a licenciosidade ñas suas
Spanish Cúrate. A impressao é a de comedias espanholas, comedias nao sao imorais (isso também seria convengáo
mas sem o rigor das convengoes moráis da sociedade es- moral, apenas oposta á reinante), e sim amorais; por isso,
panhola; e isso é de importancia capital. falta-lhes o sedtido superior.

A presenga, mesmo subentendida, de certas conveng5es O teatro de Philip Massinger (•'), colaborador ocasio-
moráis no teatro, é condigáo indispensavel á existencia de 61) Philip Massinger, 1583-1640.
urna arte dramática. Sem convengoes assim, com respeito The Virgin Martyr (com Dekker; 1622); The Maid 0/ Honour
as quais autor e público concordam, o espectador nao é ca- (1622); The Duke o/ Milán (1823); The Unnatural Combat
paz de distinguir quem está, na tragedia, com a razao, e (1623); The Bondman (1624); The Parliament o/ Love (1624);
The Renegado (1624); The Román Actor (1626); A New Way to
quem é culpado; nem é capaz de distinguir, na comedia, Pay Oíd Debts (1626); The Oreat.Duke o/ Florence (1627);
quem é ridículo e quem é razoavel. Sem o criterio moral, a Believe as You List (1631); The Fatal Dowry (com Nathan Fleld;
tragedia degenera em anedota entristecedora ou em acumu- 1632); The City Madam (1632); The Guardian (1633); A Very
Woman (com Fletcher?; 1634); The Bashjul Lover (1636).
l a d o de horrores, e a comedia em farsa divertida. Ésse cri- Cf. a colaboracáo cora Fletcher, nota 59.
terio moral do teatro pode coincidir com os criterios da Edícáo por W. Glííord e F. Cunninghan, 4 vols.. 4.» ed., London.
moral reinante, mas nao é mister que isto acontega: a con- 1870; selecao por A. Symons. 2 vols.. 2.» ed., London. 1904.
L. Stephen: Hours in a tibrary, vol. n . London. 1899.
vengáo da honra no teatro espanhol nao se harmoniza bem A. H. Cruickshank: Philip Massinger. Oxford, 1920.
com a moral católica, e as convengoes moráis do teatro de T. S. EHot: "Philip Massinger". (In: The Sacred Wood. London,
Ibsen e Shaw nao se harmonizam com a moral burguesa 1920.)
M. Chelli: Le árame de Massinger. Lyon, 1933.
<>22 Orco MARÍA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 923

nal de Fletcher, representa urna tentativa de restabelecer


singer, sem ser grande poeta, um dos maiores mestres do
o equilibrio. Massinger era católico e conhecia bem o
verso. E a sua habilidade, alias bem espanhola, na compo-
teatro espanhol. Dali tirou tantos enredos que o seu sigáo dramatúrgica, foi reconhecida até por um Archer.
teatro é um dos mais ricos e interessantes do tempo. Nin- A outra atitude possível era a negacao consciente das
guém, na época jacobéia, escreveu comedias tao finas como convengoes moráis. Nao se trata de provocacáo antimora-
The Great Duke of Florence, ou tao divertidas como A lista, como em Marlowe; os dramaturgos jacobeus nao
New Way to Pay Oíd Debts, a mais famosa obra-prima de eram "University wits", escreveram para o público. Mas
Massinger — o personagem do usurario Sir Giles Over- ésse público estava — ao que parece — preparado para ver
reach atraiu todos os grandes atores ingleses. A fraqueza no palco os horrores mais tremendos e as perverso» mais
de Massinger revela-se ñas comedias serias, embora estas abjetas, as visoes infernáis do pessimismo cósmico de
sejam também excelentes: a honestidade de A Very Wo- Webster e Ford. Há nisso algo de enigmático. Um público
man é tao inacreditável quanto a maldade demoníaca de moderno mal suporta pegas assim no palco; e a grande poe-
Luke Frugal, na melhor comedia de Massinger, The City sía verbal, na qual se apresentam aqueles horrores, seria
Madam. Pela mesma falta de seriedade superior, varias hoje antes um dos obstáculos. Parece que o mal-estar e a
tragedias de Massinger parecem-se muito com as de Fle- angustia que geraram Timón e Volpone eram comuna na
tcher e Beaumont: The Unnatural Combat, urna das mui- época, e isso já muito antes de Webster e Ford. O pre-
tas tragedias de incesto do teatro jacobeu; The Duke of cursor de Webster e Ford, Cyril Tourneur ( ea ), é quase
Milán, tragedia dos ciúmes, muito inferior a El mayor contemporáneo de Shakespeare. Nao sabemos quase nada
monstruo, los celos, de Calderón, que trata o mesmo assun- da personalidade do poeta; estéve esquecido durante dois
to, e quase é urna caricatura de Ótelo. O ponto de apoio de séculos, até que Lamb o redescobriu, e Swinburne, na In-
Massinger era o seu credo católico; mas teatro, arte cole- glaterra, e mais recentemente Marcel Schwob, na Franga,
o celebraram. rlao está, alias, inteiramente certa a autoria da
tiva, nao se baseia em convicgóes pessoais. The Virgin
única pega pela qual Tourneur existe para nos; mas esta
Martyr, tentativa de renovagáo contra-reformista dos mis-
é poderosíssima: The Revenger's Tragedy. É urna "tra-
terios medievais, é, na Inglaterra protestante, um anacro-
gedia de vinganga" senequiana, como tantas outras, mas
nismo. Em The Román Actor, a conversao repentina do
que supera a todas. O ambiente — a corte de um duque
ator París, que faz no palco o papel de um mártir cristáo
italiano, Lussurioso — é um verdadeiro inferno de sedu-
e se torna, depois, mártir de verdade, é um golpe teatral
goes, adulterios, vingangas sangrentas, assassinios, e o herói,
da maior eficiencia; mas só isto. Um enredo á maneira de
Middleton, a infidelidade de urna mulher irresponsável,
transforma-se, tratado por Massinger, em tragedia de hor- 62) Cyril Tourneur, c. 1675-1626.
rores, The Fatal Dowry; Rowe, na Fair Penitent (1703), The Revenger's Tragedy (1607); The Athelst's Tragedy (1611).
Edicáo por A. Nlcoll, London, 1930.
revelará as possibilidades trágicas do assunto. Massinger A. C. Swinburne: The Age of Shakespeare. London, 1908.
é, realmente, o precursor da tragedia da Restauragáo, pelo O. E. Vaughan (In: The Cambridge History o/ English Litera-
ture, vol. VI, 2.» ed. Cambridge, 1919).
romantismo sem emocáo profunda, pelo heroísmo mera- M. M. Ellis Fermor: The Jacobean Drama. London, 1936.
mente decorativo, e — last but not least — pela cultura do F . J. Bowers: Elisabethan Revenge Tragedy. Princeton, 1940.
T. S. Ellot: "Cyril Tourneur". (In: Selected Essays. 2.» ed. London,
seu estilo poético. Entre os dramaturgos ingleses é Mas- 1941.)
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 925
924 OTTO M A R Í A CARPEAUX

é o instrumento de urna ordem, ou antes, desordem, cósmica.


com o nome significativo de Vindice, aparece como chama
Eis o drama barroco de Webster. No White Devil, Vitto-
viva, iluminando um mundo n o t u r n o de abjeglo. Sendo
ria Corombona, mulher sedutora e sem escrúpulos, instiga
já impossível a representagáo d a pega, continua a talar-nos
aos piores crimes, purif ica-se no processo contra ela instau-
a eloqüéncia grandiosa, torrencial, de Tourneur, conden- do, e caí, vítima de vinganga, como heroína. Tampouco a
sando-se nos momentos decisivos em versos epigramáticos Duchess of Malíi é vítima passiva: casando, contra a von-
como o famoso tade de seus irmáos, o Duque Fernando e o Cardeal, com
'"Tis well he died; he was a witch." o mordomo Antonio, ela desafia as violencias déles e do
assassino Bosola, suporta o massacre de marido e filhos,
The Revenger's Tragedy é expressao de um pessimismo in- desafia a loucura que lhe pretendem insuflar, e morre como
curável e cínico. Eliot explicou-a bem como obra-prima um anjo.
única de um homem mogo amargurado por urna experien- Os críticos ingleses costumam colocar Webster ao lado
cia terrível, e que depois se cala para sempre. O que Tour- de Shakespeare. Mas que significa isto? Duas tragedias
neur deixou é como que urna voz clamando do além-túmulo de horrores, por mais poderosas que sejam, nao suportam
contra éste mundo. a comparagáo com o mundo dramático completo de Sha-
Muitas vozes noturnas assim, reunidas em coro fúne- kespeare. Em realidade, aqueles críticos só pretendem afir-
bre — eis o mundo dramático de John Webster ( 6 S ). E mar que o próprio Shakespeare nao quis ou nao era capaz
nao há lirismo excessivo nessa definigáo, porque o teatro de exprimir certos aspectos noturnos e fúnebres de alma e
de Webster, apesar dos fortíssimos efeitos cénicos, é essen- vida que Webster conseguiu apresentar, representando,
cialmente lírico. É a adaptagao do "teatro de horrores" portanto, o que falta em Shakespeare. Isto já é grande
italiano de Giraldi e Speroni — as tragedias de Webster coisa, se bem que Webster tenha pago por isto prego ele-
passam-se na Italia renascentista — a um estado de alma vado. As tragédias*de Webster, cheias de agoes violentas
lírico, em que reminiscencias do Séneca dramaturgo e do sem motivagáo psicológica, cheias de incoeréncias crassas,
Séneca moralista se misturam com as luzes infernáis do nao sao dramas humanos: sao colecóes de cenas magni-
"maquiavelismo" lendário: criaturas humanas caindo ví- ficas, cenas de horror fascinante. Sao dramalhoes mons-
timas de urna política diabólica de gabinetes secretos que truosos, exibicoes de um sadismo torturante. O elemen-
to humano em meio dos horrores acumulados é a poesía
63) John Webster, c. 1580 — c. 1625. verbal. Webster é um dos maiores poetas da literatura
The White Devtt or Víttoria Corombona (1612); The Duchess
o/ Mal/i (1614); Appius and Virginia (com Heywood?; 1620); universal, mas, por assim dizer, um 'poeta especializado
The Devil's Law-Case (1623). em melancolía fúnebre. A posteridade escolheu bem,
Edicao por F. L. Lucas, 4 vols., London, 1927. citando sempre, como o seu verso mais famoso, as pala-
E. E. Stoll: John Webster. London, 1905.
R. Brooke: John Webster and the Elisabethan Drama. London, vras do Duque Ferdinand em face da irmá assassinada
1916. por ordem sua:
0. E. Vaughan (In: The Cambridge History o) English Litera-
ture, vol. VI, 2.a ed. Cambridge, 1919). "Cover her face: mine eyes dazzle; she died young."
E. W. Hendy: "John Webster, Playwright and Naturalist". (In:
Nineteenth Century, Janeiro de 1928.) A alma da poesia de Webster é "pity". O dramaturgo
C. Leech: John Webster. London, 1951. é moralista; em suas tragedias, os horrores sao conseqüén-
1. Bogard: The Tragic Satire ol John Webster. Berkeley, 1955.
926 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 927

cías inelutáveis de atos da vontade livre ("How tedious is. Pela expressao, nao pelo pensamento, é Webster o mais
• guilty conscience!"). As suas criaturas caem vítimas d a moderno dos dramaturgos jacobeus: a propósito das suas
ambigáo, da crueldade, da volúpia: " W e fall by ambition, metáforas noturnas, mais de um crítico se lembrou do supra-
blood, or lust". Mas Webster p r e t e n d e — e nisto reside a realismo. Mas isso parece depender só do a&sunto. Em
novidade da sua posijáo moral — desculpá-las. Senté Appius and Virginia (se Webster é realmente o autor
"pity" dos "friendless bodies of unburied men", transforma desta obra), tanto a expressao como a composicao tém
o monstro Vittoria em heroína angélica; desculpa tudo o simplicidade surpreendente, quase classicista; todos OB dra-
que perpetraram, pelo determinismo mais angustiado: maturgos jacobeus sao, em certos aspectos ou momentos,
precursores do teatro da Restauracao. Déste modo, John
"My soul, like to a ship in a black storm Ford ( 84 ) afirma a sua posicao histórica ao lado de Webs-
Is driven, I know not whither." t e r : a sua "historia" inglesa Perkin Waibeck é urna peca
regular, sem excessos; os críticos académicos considera-
As personagens de Webster estáo presas ern cárceres in- ram-na sempre como a sua obra-prima. Rejeitaram, porém,
fernáis — aquelas cortes de política diabólica — e a única as outras pegas como síntomas de horrorosa decadencia mo-
saída parece ser a morte voluntaria: ral; e pelo mesmo motivo essas pegas foram, por volta de
1920, muito elogiadas. O fatalismo do irresistível amor in-
"Death hath ten thousand several doors
cestuoso entre irmáo e irma em 'Tis Pity She's a Whore,
For men to take their exits."
e as impressionantes cenas de The Broken Heart, ñas quais
O pensamento consolador de Séneca, a possibilidade per- se misturam morte cruel e danca dionisiaca — defmiu-os
manente de sair déste mundo por vontade própria, é, em bem o próprio F o r d :
Webster, um pesadelo, porque nao há verdadeira saída: o
cosmo inteiro é um inferno, " neveryet
Incest and murder have so strangely"; met
".../... .that wich was made for man,
The world, to sink to that was made for devils, compreende-se, enfim, o interésse febril da época da
Eternal darkness." psicanálise por essas pegas, que foram até representadas,
pela primeira vez, depois do século X V I I . O que nao se
Nenhum outro poeta sentiu, nem exprimiu com tanta fórca,
a signifícagáo cósmica que a morte individual tem para o 64) John Ford, 1586 — c. 1639.
individuo; embora o mundo continué, para o morto já nao Lovefs Melancholy (1629); 'Tis Pity She's a Whore <1833); The
existe. E todos nos temos de morrer. Webster é o genio Broken Heart (1633); The Chronicle History of Perkin Warbeck
do cosmo; isso justifica a justaposigao. Desaparecerán! (1634).
Edi?ao por A. H. Bullen, 3 vols., London, 1895, e por 8. P. Sher-
os últimos vestigios do imanentismo da Renascenga; afir- man, Boston, 1915 (incompl., com Introducto Importante).
ma-se em Webster, com a maior fórca, o pensamento da A. C. Swlnburne: Essays and Stttdies. London, 1888.
W. A. Neilson (ln: The Cambridge History of English Literatu-
vaidade déste mundo, como se fósse um Calderón ateu. A re, vol. VI, 2.» ed. Cambridge, 1919).
vida é um sonho, sim, mas um pesadelo. É o último cume M. J. Sargeaunt: JoHn Ford. Oxford, 1936.
do teatro jacobeu. O. F. Sensabaugh: The Tragic Muse o/ John Ford. London, 1946.
K. David: Le drame de John Ford. Parts, 1954.

.

928 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 929

harmoniza bem com os enredos é a língua poética de Ford, é acaso que ele é católico, sem as pretensóes de propaganda
romántica, melancólica, intensa, mas nao eloquente como a religiosa que aparecem as vézes em Massinger. Ñas pe-
de Webster — Ford é um dos poetas mais "puros" do cas de Shirley triunfa sempre a moral, e o "víllain" cai
século X V I I , poeta de músicas angélicas. Defende a vencido. Tragedias políticas como The Traitor e The Car-
paixao erótica, mesmo que seja incestuosa, e esta sua ati- dinal apresentam a interpretagáo (e a c o n d é n s a l o ) cató-
tude foi possivelmente reagáo contra o poder crescente do lica e burguesa daquele "maquiavelismo" lendário com que
puritanismo. Mas é defesa sem rebeldía, como a língua o teatro barroco inglés comegara. Em tudo mais, Shirley
poética revela; o título mais característico de Ford é merece o elogio de Lamb: " T h e last of a great race." Sem
Lover's Melancholy. Ford nao é decadente no que diz res- profundidade, é um mestre da cena, impressionante ñas
peito á arte dramática; naquela época de grandes drama- tragedias, divertido em comedias como Hyde Park e The
turgos, ele aínda é de primeira ordem. Nem é decadente Lady of Pleasure, que precedem ¡mediatamente a comedia
no sentido em que Webster o é ; nao nega o mundo, mas da Restauracao. Mesmo sem o fechamento dos teatros em
afirma-lhe a paixao. Nem é decadente em sentido moral; 1642, o antigo teatro inglés teria acabado; mas o "mo-
as suas peías de incesto sao incomparávelmente mais se- derno" — o teatro da Restauradlo — já estava pronto.
rias do que as de Fletcher e Beaumont. Ao contrario, Ford
Entre os dramaturgos elisabetano-jacobeus, pelo me-
exprime com seriedade o que é apenas jógo cénico nos
nos Jonson, Middleton e Webster sao de primeira ordem;
poetas-gémeos. Mas justamente nesse "progresso" reside
e há mais algumas pegas de Chapman, Heywood, Dekker,
a verdadeira decadencia de F o r d : tomando a serio o que
Fletcher, Massinger, Tourneur, Ford, que nao aeriam in-
aqueles inventaram como thríll, Ford admite que as con-
teiramente indignas de Shakespeare. Mas há urna dife-
vengoes moráis da Renascenga já nao existem.
renga importante: Shakespeare continua a dominar o palco
Neste sentido, é Ford o último dos grandes dramatur- inglés e o de varios países do continente, enquanto que as
gos ingleses. A síntese entre moral renascentista e arte tentativas de representar as obras dos seus companheiros,
barroca — base do teatro inglés — já nao existia, porque o com poucas excegoes, falharam. No comégo do século XIX
público, segundo a confissáo de Middleton, mudou: já nao só urna pega das antigás estava no repertorio: A New Way
é a massa popular, completamente dócil da aristocracia, e to Pay Oíd Debts. Depois, as reprises de outraa pegas
sim urna burguesía que em breve se revoltará contra o rei por Phelps e Carr nao tiveram éxito, e o mesmo se pode
aristocrático. A moral renascentista é sentida como pro- dizer das tentativas de Paul Fort, Maeterlinck, Schwob e
vocagáo imoral. Resta só a arte barroca de construir dra- Copeau na Franga, Reinhardt e Jessner na Alemanha. O
mas eficientes, e nesses dramas tem de prevalecer, agora, antigo teatro inglés pertence a um tipo diverso do nosso,
outro elemento barroco: o aristotelismo, interpretado em c a diferenga é tao grande que nem sequer para as pegas
país protestante como simples moralismo, moralismo bur- de Shakespeare se encontrou, até hoje, um modo perfeita-
gués. O representante desta última fase é Shirley (••): nao
Edic&o por W. Giíford e A. Dyce, 6 vols., London, 1833; Selec&o
por E. Gosse. London, 1888.
65) James Shirley. 1596-1666. A. H. Nason: James Shirley, Dramatist. New York, 1915.
LovCs Cruelty (1631); The Traitor (1631); Hyde Park (1632); P. Radtke: James Shirley. His Catholic Philosophy o/ Life.
The Gamester (1633); The Lady o) Pleasure (1635); The Impos- London, 1929.
ture (1640); The Cardinal (1641). A. Harbage: Cavalier Drama. New York, 1936.
930 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 931

mente adequado de representá-las. As obras-primas do aristocrática, inteligencia erasmiana e democracia calvi-


teatro elisabetano-jacobeu sobrevivem como pegas para nista. A literatura correspondente a essa fase de evo-
leitura, como poemas dialogados, em virtude do poder poé- lugao espiritual e social encaminha-se logo para o estilo
tico dos dramaturgos. Nenhum déles foi, porém, grande barroco. Hooft, Bredero, Vondel comefam como renascen-
poeta lírico fora do drama, e até em Shakespeare existe, tistas; mas a obra principal de Bredero é a d r a m a t i z a d o
como já se notou, separacáo estrita entre as obras dramá- de um romance picaresco, Hooft passa de Petrarca a Sé-
ticas e os sonetos. Conhecendo só os dramaturgos daquele neca; e Séneca chega, como na Inglaterra, através de Gar-
tempo, ninguém adivinharia que sao contemporáneos de nier, ao conhecimento de Vondel, que se torna depois dra-
Donne, Herbert, Herrick, Milton, Vaughan, de urna das maturgo barroco. O panorama completa-se com o realismo
maiores épocas da poesía lírica inglesa. Eis um problema de Cats e Asselijn: panorama de urna literatura de primeira
com que a historiografía literaria ainda nao se ocupou. ordem ( 6 T ).
Depois da revelacáo da índole barroca do teatro jacobeu,
Hooft ( 6S ) é geralmente considerado como a figura
certas dificuldades daquele problema deixam de existir.
mais típica da Renascenca holandesa: pela cultura italiana,
Mas continua a dificuldade principal: por que os drama-
pelo lirismo petrarquesco — que é, alias, em Hooft, muito
turgos barrocos e os poetas líricos barrocos da Inglaterra
pessoal e sincero — e pelo classicismo sereno da sua obra
se exprimiram de maneira tao diferente que nos primeiros
historiográfica. Nao convém incluir nessa enumeracao o
falta quase todo o vestigio da "metaphysical poetry", ca-
drama pastoril Granida, por ser mais parecido com o Pastor
racterística dos segundos? Urna solucáo aproximada do
fido que com 6 Aminta; nem a comedia Warenar, na
problema — nao se pode tratar de mais, por enquanto —
qual o modelo, a Aulularia, de Plauto, nao é tratado á ma-
será facilitada pela comparacáo com o Barroco contempo-
neira de Ariosto ou Crazzini, mas transfigurado em qua-
ráneo na literatura alema, o qual, por sua vez, nao pode ser
dro de gente, claro-escuro á maneira de Terborch. As
bem compreendido antes de ter-se estudado o Barroco li-
primeiras tragedias de Hooft acompanham o estilo de Tris-
terario holandés, do qual dependem os alemaes. E m am-
sino; Baeto, a obra capital de Hooft, é urna poderosa tra-
bos os países, e ainda na Suécia, encontra-se urna forte cor-
gedia senequiana, com acentos de individualismo estoico.
rente "marinista", com acessos de angustia religiosa e ve-
A impressáo geral da obra de Hooft é de literatura culta
leidades de poesía erótica e tragedia política. De modo
de urna élite erudita e viajada, que cultiva um patriotismo
que se completa, assim, o panorama do Barroco pro-
artificial e urna liberdade moderada.
testante.

A literatura holandesa de antes do século X V I I nao foi 67) O. Kalfí: Litteratuur en tooneel te Amsterdam in de eeventien-
das mais importantes. A Renascenca chegou tarde, como de eeuw. Haaj-lem, 1895.
J. A. Worp: Geschiedenis van het drama en van het tooneel in
na Inglaterra, encontrando fortes residuos medievais e Nederland. 2 vols. Amsterdam, 1904/1907.
mais forte mentalidade protestante. Daí resultou urna sín- 68) Pleter Comelisz Hooft, 1581-1647.
tese ( a G ): burguesía medieval e desejo de representacao Afoeeldingen van Mine (1611); Gedischten (1636); Granida
(1605); Geeraerd van Veteen (1613); Warenar (1616); Baeto
(1617).
66) J. Huizinga: Die hollaendische Kultur des 17. Jahrhunderts. Edlgóes por P. Leendertz, 2 vols., Amsterdam, 1871/1875, e por
Jena, 1933. W. O. Helllnge e outros, Amsterdam, 1954, segs.
932 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 933

De um ponto de partida oposto chegou o genio malo- obra constituí urna enciclopedia poética do scculo X V I I .
grado de Bredero (6*) a um Barroco diferente. Filho de É o século do teatro; e Vondel é dramaturgo. Mas a sua
um sapateiro, tendo passado por formacáo clássica e eru- arte é principalmente lírica, e no lirismo chegou a um
dita, Bredero voltou, em suas farsas ("Kluchten"), a ser o classicismo que o aproxima de Milton: ñas magnificas ele-
poeta das classes populares de Amsterdao, já com alguns gías Lijkangen, na poesía religiosa dos Altaergeheime-
tragos de naturalismo violento á maneira de Caravaggio ou nissen. Vondel nao chegou sem luta a essa calma olímpica,
Brouwer. A sua obra-prima, a comedia De Spaansche Bra- assim como lhe custou a conversáo do protestantismo
bander, é urna dramatiza$áo burlesca do Lazarillo de Tor- sectario ao catolicismo. Precedeu a conversáo vasta lite-
mes; a parodia do falso aristocratismo lembra um pouco ratura de controversia política e religiosa, e os epigramas
Moliere, revelando o fundo b u r g u é s da civilizacáo urbana, Hekaídichten revelam um Vondel satírico e humorístico,
da qual Bredero é rebento. Mas é um filho pródigo da que a critica académica gostava de ignorar. A poesía de
pequeña burguesía, poeta lírico de violentos acentos eró- Vondel é, realmente, segundo a definigáo de WordBworth,
ticos e, finalmente, de profunda emosao religiosa. Mais "emotion recollected in tranquillity". A mesma tranqüi-
alguns anos de vida, e Bredero teria sido um dos grandes lidade serena inspirou-lhe os espléndidos coros líricos de
Gysbreght van Aemstel e Lucifer. Mas só em outro sentido
dramaturgos barrocos: foi a sorte que coube a Vondel.
se pode afirmar que todo o teatro de Vondel é lírico:
Joost Van den Vondel ( 7 0 ) é o maior poeta da língua
'apenas no drama o seu lirismo é emocáo livre, capaz de
holandesa e um dos maiores da literatura universal. A sua
exteriorizar-se e exprimir urna civilizacáo inteira.

O. Kalfí: Studien over de nederlandsche díchters der zeventien- O ponto de partida de Vondel é a cultura burguesa,
de eeuw, vol. I. Haarlem, 1901. meio medieval, das cidades holandesas. A s fábulas da
J. Prlnsen: Pieter Cornelisz Hoo/t. Amsterdam, 1922. Vorstelijke warande der dieren lembram aínda o gótico
P. Leendertz jr. üit den Mulderkring. Haarlem, 1935.
"flamboyant". A cultura clássica veio-lhe da Franca, atra-
69) Gerbrand Adriaensz Bredero, 1585-1618.
Moortje (1617); De Spaansche Brabander (1618); Kluchten wendalers (1648); Lucifer (1654); Jephta (1659); Kontna David
(1619); Nederduytsche Rijmen (1620); Amorens en Aendachtigh (1600); Adam in ballingschap (1664); Noah (1667).
Groot Liedboeck (1621); Boertlgh (1622). Edicfio por J. F. M. Sterck e H. W. Moller, 10 vols., Amsterdam,
Edic&o por J. Knuttel, 3 vols., Amsterdam, 1918/1929. 1927/1934.
J. Ten Brink: Gerbrand Adriaensz Bredero. 2* ed. 3 vols. Lei- A. Baumgartaer: Joost van Vondel. Frelburg, 1882.
den, 1887/1888. G. Kali'f: Litteratuur en tooneel te Amsterdam in de zeventien-
G. Kalfí: Litteratuur en tooneel te Amsterdam in de zeventien- de eeuw. Haarlem, 1895.
de eeuw. Haarlem, 1895. G. Kalíí: Studien over nederlandsche dichters der zeventiende
H. Poort: Gergrand Adriaensz Bredero. Qroninger, 1918. eeuw, vol. I. Haarlem, 1901.
J. R. Prinsen: Gerbrand Adriaensz Bredero. Amsterdam, 1919. G. Kalfí: Vondels leven. 2.» ed. Haarlem, 1902.
70) Joost Van den Vondel. 1587-1679. H. C. Dlferee: Vondels leven en Kunstontwikkeling. Amsterdam,
De vorstelijke warande der dieren (1620); Hekeldichten (1627); 1912.
Lijkzangen (1633/1635); Verscheide Gedichten (1644); Altaer- A. Barnouw: Joost Van Vondel. Haarlem, 1926.
gehetmenissen (1645); Johaunes de Boetgezant (1622); Het Pos- J. F. M. Sterck: Het leven van Joost Van den Vondel. Haarlem,
cha (1612); Hierusalem verwoest (1620); Palamedes (1625); 1926.
Gysbreght van Aemstel (1637); Maeghden (1637); Batavisch* A. Verney: Vondels vers. Amsterdam, 1927.
Gebroeders (1639); Joseph in Egypten (1640); Joseph in Dothan
(1640); Peter en Pauwels (1641); Marta Stuart (1648); De Leeu- I O. Brom: Vondels geloof. Amsterdam, 1935.
J. van de Velden: Staat en recht bij Vondel. Haarlem, 1939.
HISTORIA DA LITEBATUBA OCIDEKTAL 935
934 OTTO MARÍA. CARPEAUX

vés de Garnier: Hierusalem verwoest já é urna tragedia se- in ballingschap tem algo de bucólico, e Zungchin, tragedia
chinesa, ideada como obra de extensáo do tiagicismo clás-
nequiana; depois, os Batavische Gebroeders, tratando a
sico a assuntos remotos no espago, já é urna chinesice á
mais antiga historia holandesa, segundo a narragao de Tá-
maneira do Rococó. Os 90 anos de vida de Vondel acom-
cito. Neste caminho, Vondel ter-se-ia encontrado com o
panham um século de civilizagáo européia.
italianismo renascentista de H o o f t ; mas os amigos "huma-
Vondel é urna síntese. Os poetas menores do seu sé-
nistas" — eruditos barrocos como Vossius e Grotius —
culo desenvolvem aspectos parciais da sua obra; sao, em
transmitiram-lhe as teorías aristotélicas, de modo que a
geral, de valor apenas histórico. Huygens ( " ) , poeta dile-
exigencia de "regulandade clássica" deu fatalmente como
tante, marinista e epigramático, transfigura os arredores
resultado urna poesía contra-reformista. As formas sao
de Haia em vale arcádico; é o lado classicista de Vondel.
evidentemente barrocas: a transfiguragao inesquecível da
Antonides Van der Goes ( 7 2 ), o panegirista retórico de
paisagem holandesa em De Leeuwendalers é urna comedia Amsterdáo e do seu Ijstroom, é discípulo direto de Von-
pastoril, e Lnciter, a tragedia mais regular (e mais famosa) del, mas imitando-lhe só os aspectos exteriormente barro-
de Vondel, é, em forma dramática, comparável as epopéias cos da obra. O realismo satírico do mestre ressurge, com
heróico-religiosas da época; a influencia de Vondel é evi- surprésa geral, em Thomas Asselijn ( 7 3 ) : a sua comedia
dente no Paiadise Lost, de Milton. Do "grande Barroco" genial Jan Klaasz, farsa do amante, disfargado em criada
aproximou-se Vondel através de reminiscencias do cristia- que os pais da moga encarregam de vigiá-la — com todas
nismo medieval. No drama patriótico Gysbreght van Aems- as conseqüéncias — é o desmentido enérgico do purita-
tel, o poeta dedica especial carinho as cenas da celebragáo nismo, como que dizendo: isso também é holandés. Mas
de Natal, e os dramas bíblicos Joseph in Egypten e Joseph a preocupagáo mais profunda da época é a religiao. Vondel
in Dothan tém a vivacidade do sabor popular dos mis- é, antes de tudo, um grande poeta religioso. Notáveis poe-
terios medievais. Depois veio, em 1641, a conversao. E n t r e tas religiosos sao Camphuysen, Revius e Luyken ( 7 4 ). O
as obras específicamente católicas de Vondel, a mais ca-
racterística é a tragedia María Stuart, de espirito contra-
71) Constantin Huygens, 1596-1687.
reformista. A conseqüéncia mais importante da conversao Batava Tempe of 't Voorhout van 's Oravenhage (1621); Daghtv-
é a desistencia definitiva das pretensoes classicistas. Von- erck (1639); Tryntje Cornelia (1663); Cluyswerck (1683).
del chega a um barroco nacional, denso como o de Rem- Edlc&o por T. A. Worp, 9 vols., Groningen, 1892/1899.
K. J. Eymal: Hujensstudien. Culemborg, 1886.
hrandt, mas menos sombrio, mais burgués e suntuoso. Von- G. Kalll: Studien over de nederlandsche dichters der zeventien-
del nao foi pensador. As profundidades que a crítica pa- de eeuw. XX, Haarlem, 1901.
triótica dos seus patricios lhe atribuí, nao se encontram em 72) Antonides Van der Gocs, 1647-1684.
suas obras. E ' um grande artista do verso, da língua. A s Ijstroom (1671); tragedla Sinai (1674).
Edlc&o por W. Bilderdljk, 3 vols.. Lelden, 1827.
odes ao Rynstroom, á Beurs van Amsterdam, para a Inwy-
ding van't tandhuys, ao Zeetríomf der Vrye Nederlanden 73) Thomas Asselijn, c. 1620-1701.
Jan Klaasz of de gewaande dienstmaagt (1682), etc.
sao os maiores monumentos da grandeza política, civil c Edlc&o por N. A. Cramer, Zwolle, 1900.
económica dos Países Baixos no século X V I I , e a trage- J. Van Vloten: Het Nederlandsche kluchtspel, vol. TU. Haarlem,
dia bíblica Jephta é a maior expressáo do espirito religioso 1881.
da nacao. Vondel nao mantinha ésse grande estilo. Adam 74) Cf. "Renascenca Crista e Reforma", notas 46, 47 e 48.
936 OTTO MARÍA CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 937

maior é Dullaert ( T 4 _ A ), e éste é, enfim, um grande poeta, Barroco nacional inspira a Dahlstjerna ( 7 7 ), marinista au-
um dos maiores do século. O s Christus Sonnetten e a poe- téntico, tradutor do Pastor fido para a lingua sueca. O seu
sía fúnebre Aan mijn uitbrandende kaerse seriam dignos d e panegírico á morte do rei Carlos XI, Kungaskald, com os
Donne, se nao fóssem poesía mais pura, mais intima, mima lamentos das quatro "classes" ou "ordens" do reino perante
lingua metafórica na qual os simbolistas holandeses de o ataúde do monarca, é urna grande "máquina" barroca,
1880 reconhecerao os seus próprios ideáis já realizados. comparável ás impressionantes esculturas no género das de
Mas convém observar que Asselijn foi lancado ao ostra- Bernini, que escultores italianos criaram naquela época
cismo e Dullaert esquecido, ao passo que a nagáo conside- para as cápelas reais das capitais nórdicas. M;is no canto
rou, durante dois séculos, como alta poesia as obras de bélico Goeta-Kaempavisa, celebrando as vitórias do rei Car-
Jacob Cats ( 7 5 ), moralizador insuportável e trivial. Sua obra los X I I sobre os russos, volta Dahlstjerna aos sons rudes
é o breviario da gente menos poética do mundo. Em forma da poesia popular, medieval. Finalmente, os Sonetos sobre
epigramática, embora sem espiit algum, voltara o espi- a Paixao, do islandés Petursson ( 7 8 ), urna das obras mais
rito didático da burguesía medieval. O Barroco holandés
poderosas do século X V I I , expressáo de profundas expe-
é apenas forma artística; serviu para substituir urna Renas-
riencias religiosas em versos herméticos, artificialissimos,
cenga que nao chegara ao pleno desenvolvimento, pela in-
sao considerados obra capital do Barroco protestante; mas
tervengao da Reforma. E — excetuando-se Bredero e Von-
pelo menos urna parte daqueles artificios é volta ás formas
del — mero classicismo barroco.
-complicadas da poesia escáldica da Idade Media. Em toda
Em todo o caso, o resultado foi urna poderosa lite- a parte o Barroco protestante, bem barroco, desempenha
ratura nacional; nos países protestantes, a introducto do fungoes da Renascenga, que falhara nesses países: desen-
estilo barroco é continuacao direta da Renascenga inter- volve as línguas nacionais e prepara literaturas nacionais.
nacional interrompida ali pela Reforma. Trata-se de algo O século X V I I é a época mais negra da historia alema:
como urna "Contra-Reforma protestante". a da Guerra de T r i n t a Anos, da qual resultou a destruigao
No mesmo sentido, o modelo do sueco Stjernhjelm material completa do país e, por muito tempo, o fim da sua
( T 0 ), poeta barroco, é Ronsard. A pretensao de criar um civilizagáo. O Simplicissimus, de Grimmelshausen, é o pano-
74A) Helman Dullaert, 1636-1684. rama perfeito, sem reticencias, da época, e a historiografía
Gedichten (publ. 1719). literaria teimou, durante muito tempo, em declará-lo o úni-
A. Verwey: "Heiraan Dullaert". (In: Stille Toernvoein. Amster- co documento digno de nota da literatura alema do século.
dam, 1901.)
J. Wilie: Helman Dullaert. Zelst. 1926. Os poetas e escritores alemaes contemporáneos de Grim-
75) Jacob Cats. 1577-1660. melshausen sao muito diferentes: marinistas, traduzindo
Houwelijck (1625); Spiegel van den ouden en nieutoen Tijd (1632).
Edl?ao por J. Nan Vloten, ZwoUe, 1862. 77) Gunno Eurellus von Dahlstjerna, 1661-1709.
O. Derudder: Cats, sa vie et ses oeuvres. Calais, 1898. Edic&o por E. Noreen, 2 vols., Stockholm, 1920/1928.
G. Kalíí: Cats. Harlem, 1901. M. Lamm: Dahlstjerna. Stockholm, 1946.
76) Qoeran Stjernhjelm, 1598-1672.
Hercules (1653). — Edigáo das obras por J. Nordstroem e P. 78) Hallgrlmur Petursson, 1614-1674.
Wleselgren, Stockholm, 1924. Passiusálmar (1666). •
J. Nordstroem: Goeran Stjernhjelm. 2 vols. Stockholm, 1924.. Edic&o por G. Thomsen, 2 vols., Rejkjavik. 1887/1890.
A. Frlberg: Den svenske Heracles. Stockholm, 1945. M. Jónsson: Hallgrimur Petursson. 2 vols., Rejkjavik, 1947.
938 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 939

Tasto e Guarini, cantando angustias místicas e amores obs- d a época no estrangeiro. Até que ponto éles conseguiram
cenos, escrevendo tragedias artificiáis á maneira de Séneca ésse fim, é outra questáo. Mas é certo que o Barroco pro-
e Vondel, e tudo isso em linguagem "gongórica", bombás- testante na Alemanha é dos mais típicos: angustia mís-
tica — de modo que o século X V I I parecía o século per- tica e erotismo obsceno, tragedias senequianas e natura-
dido da literatura alema. A crítica do século XIX mediu lismo popular — essas antíteses dialéticas já sao bem co-
essa época com os criterios da literatura classicista e po- nhecidas. Ou antes, tornaram-se internacionalmente conhe-
pular ao mesmo tempo, do século X V I I I , de Goethe e Schil- cidas gragas á renovagáo do estudo da literatura barroca
ler. Só percebeu, no século X V I I alemáo, artificialismos alema ( 7 "). Fenómenos importantes, como a f usáo do es-
da pequeña élite aristocrática da Silesia barroca, italiani- tilo senequiano da tragedia com o "maquiavelismo" lendá-
zada e hispanizante, dedicando-se, em meio da tormenta, a rio, foram primeiramente descobertos em obras alemáes do
jogos inúteis de preciosismo, insensível aos sofrimentos do século X V I I ; toda a interpretagao nova do Barroco origi-
povo. Grimmelshausen, porta-voz do povo, só ele teria sal- nou-se naqueles estudos. E entre muitos documentos de
vo a honra da literatura alema do século X V I I . Eis a opi- alto interésse histórico descobriram-se inesperadamente
niao corrente, até há mais ou menos 35 anos. obras de grandes poetas.
Nao pode haver nada de mais inexato. O realismo do- Em conseqüéncia do malogro parcial da Reforma lu-
cumentário é apenas um dos aspectos da obra de Grim- terana — metade da Alemanha foi recuperada pelo cato-
melshausen: no seu romance picaresco prevalecem elemen- licismo e a outra metade desunida pelo sectarismo — a nova
tos de estoicismo barroco e reminiscencias do cristianismo língua alema, a de Lutero, nao conseguiu conquistar a na-
gótico, e o "porta-voz do povo" nao desdenhou escrever gao inteira. Ao contrario, recomegou o processo do des-
romances heróico-galantes com muita erudicao antiquária
membramento em dialetos regionais. Os cultos preferiam
— Der Keusche Joseph, Proximus uncí Lympida — bem á
escrever em latim, e a língua alema, abandonada ao sabor
maneira dos romancistas barrocos Zesen, Buchholtz e Sie-
gler. E estes, assim como Grimmelshausen, também nao dos incultos, tornou-se outra vez grosseira, incapaz de ex-
sao aristócratas. Entre os poetas alemáes do século X V I I pressáo literaria. A reagáo contra ésse estado de coisas
há pouca aristocracia. Quando muito, sao membros da alta iniciou-se com a fundagao das "Sprachgesellschaften", "so-
burocracia, enobrecidos em recompensa de bons servicos. ciedades literarias" para melhorar a língua e promover boas
Sao juízes, altos funcionarios e pastores protestantes, quer tradugoes. O programa dessas sociedades incluiu, em ger-
dizer, intelectuais burgueses. Conhecedores das literatu- me, o preciosismo marinista e a imitagáo do Barroco es-
ras estrangeiras, particularmente da italiana e da holandesa, trangeiro. A única figura literaria importante que surgiu
e contaminados, literariamente, pelo Barroco contra-refor-
mista e jesuítico dos seus vizinhos imediatos, dos alemáes
católicos, aqueles poetas adotam, sem hesitacóes, o estilo 79) 8. FUlpponi: 11 Marinismo nella letteratura tedesoa. Flrenze.
marinista do Barroco internacional; imbuidos de forte sen- 1910.
timento patriótico, doeu-lhes o atraso vergonhoso da civi- H. Cysarz: Deutsche Barockdichtung. Leipzig, 1024.
W. Benjamín: Ursprung des deutschen Trauerspiels. Berlín.
lizacáo na sua patria devastada, a grosseria da língua, a li- 1928. (Interpretado profunda.)
teratura bárbara, meio medieval; desejavam ficar á altura H. Cysarz: Barocke Lyrik. 3 vola. Leipzig. 1937. (Antología com
importante Introduc&o.)
940 OTTO M A M A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 941

dessas ambigóes foi Martin Opitz (8(,)> tradutor de Séneca, <ia Idade Media. Em formas "modernas", quer dizer, do
poeta pastoril e religioso, autor de um livro teórico Buch Barroco italiano, mas conservando sempre a simplicidade
von der deutschen Poeterey, em que ensinou aos poetas e sinceridade da poesía popular, Fleming exprimiu urna
alemaes os conceitos e regras da poética aristotélica e os alma rica: rica em amor e patriotismo, religiosidade e es-
metros latinos e italianos. Nao sendo grande poeta, foi toicismo. Morreu mogo; mas só a imperfeii;ao da língua
Opitz urna das muitas personalidades mediocres que, pela o impediu de tornar-se grande poeta, consideragáo que tam-
cooperagáo de circunstancias, fizeram historia. A sua pre- bém se aplica ao vigoroso poeta erótico Stieler ( 8 2 - A ). Neste
tensáo foi tornar clássica a literatura alema; escolhendo caso já nao se encontra — urna geragáo depois —
os seus modelos na Holanda contemporánea, tornou-a bar- Hofmannswaldau ( 8 -" B ), o representante mais perfeito do
roca, e nao lhe perdoaram isso os classicistas do século marinismo alemao; menos sincero do que Fleming, porém
X V I I I , declarando-o pedante inepto. Mas o seu mérito maior artista. O tradutor do Pastor íido é o mais artificial
histórico de fundador da literatura alema moderna ressalta de todos os poetas alemaes, um virtuose de sintaxe com-
com evidencia cada vez maior. plicada e metáforas abstrusas, hipócrita de emogóes reli-
giosas, sincero apenas quando erótico, envolvendo em rit-
Opitz era silesiano; e quase todos os poetas alemaes mos irresistivelmente musicais a obscenidade. Mas ali
importantes do século X V I I foram silesianos. A circuns- estava realizado o que Opitz desejara, e após a desmorali-
tancia é digna de nota. Na Silesia, protestantes e católi- zagáo do Barroco alemao pelos classicistas a poesía alema
cos viviam misturados, e aqueles poetas, funcionarios bu- precísava de mais de um século para chegar outra vez a
rocráticos de cortes e cidades protestantes, juristas de semelhante cultura da forma.
formagao latina, abriram-se com certa facilidade á influen-
cia dos vizinhos católicos de formagao jesuítica, barroca. As duas correntes reúnem-se em Andreas Gryphius
Mas havia também na Silesia um folclore muito vivo — a (•*)} e eis um auténtico poeta, mesmo um grande poeta.
Silesia é um dos centros do lied, da cangáo popular —
e havia um forte movimento místico, talvez conseqüéncia 82A) Caspar Stieler, 1632-1707.
da mistura dos silesianos com sangue eslavo. Eis as raízes Die geharnischte Venus (1660).
Edicao por Th. Raehse, Halle, 1888. •
da literatura barroca alema. A. Koester: Der Dichter der Geharnischten Venus. Leipzig,
1897.
O aspecto popular é representado por Paul Fleming,
( S 1 ), o primeiro poeta lírico notável de língua alema depois 82B) Christian Hofmann von Hofmannswaldau, 1617-1879.
Deutsche Nebersetzungen und Gedichte (1679); Des Herrn
von Hofmannswaldau und anderer Deutschen auserlesene Ge-
80) Martin Opitz von Boberfeld, 1597-1639. dichte (edit. por B. Neukirch, 1697).
Zlatna (1623); Buch von der deutschen Poeterey (1624); Teuts- Edicao (incompl.) por F. P. Greve, Leipzig, 1907.
che Poemata (1624). J. Ettlinger: Hofmann von Hofmannswaldau. Halle, 1891.
F. Gundolí: Martin Opitz. MuencheD, 1923. L. Olschkl: G. B. Guarinis Pastor Fido In Deutschland. Leipzig,
1908.
81) Paul Fleming, 1609-1640.
Geist-und Weltliche Poemata (1651). 83) Andreas Gryphius, 1616-1664.
EdiQáo por J. M. Lappenberg, 2 vols. Stuttgart, 1863/1865. Sonn — unde Feiertagssonnette (1639); Kirchhoffsgedancken
H. N. Staden: Fleming ais religioeses Lyrikes. Stade. 1908. (1656); Cardenio und Celinde (1648); Leo Armenius (1650); Caro-
T. Witkowski: Paul Fleming und sein Kreis. Leipzig, 1909. lus Stuardus (1657); Papinianus (1659); Horribilicribrifax (1663);
H. Pyritz: Paul Flemings deutsche Liebeslyrik. Leipzig, 1932. Die gelibte Dornrose (1663).
042 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 943

A historiografía literaria antiga, hostil ao Barroco, lamerr- A tnesma angustia de "vida es sueño" domina a sua tra-
tou, em Gryphius, os conceitos marinistas na poesía reli- gedia fantástica Cardenio und Celinde, amigamente con-
giosa, a d e s f i g u r a d o da cancao luterana eclesiástica pelo siderada a melhor das suas pecas, porque livre dos con-
estilo artificial da moda; só eram apreciadas as suas co- ceitos políticos que irritaram os críticos "liberáis" ñas
medias, o Horribilicríbrifax, sátira plautina contra os pe- outras tragedias. Pois como pode o poeta protestante de-
dantes, e a Gelibte Dornrose, comedia pastoril, realista, em fender, em Carolus Stuardus, o rei absolutista e catolícizan-
dialeto silesiano, como de um Hauptmann do século X V I I . te, degolado pelos puritanos? Que sentido tinha a represen-
Gryphius era realista quando se tratava de ver, de olhos tagáo dos horrores da corte imperial de Bizáncio, em Leo
bem abertos, a miseria déste m u n d o ; as d e v a s t a r e s e so- Arminius? Gryphius traduziu e imitou Vondel, e parte das
frimentos trazidos pela guerra crudelíssima arrancaram- suas inegáveis falhas dramatúrgicas provém da contradi-
Ihe alguns dos seus sonetos mais sentidos (Thraenen des gao entre a forma classicista do modelo e o conteúdo bar-
Vateríanos Anno 1636), confirmando-o na sua profunda roco do seu pensamento. Gryphius é um dramaturgo ja-
melancolía, já próxima da loucura religiosa. A imaginacao cobeu, e nao dos menores. O seu verdadeiro modelo, «tra-
de Gryphius estava povoada de cemitérios e decomposicáo, vés de Vondel, é Séneca, e os horrores acumulados ñas suas
demonios e anjos-mensageiros do Juizo Final; está claro tragedias sao conseqüéncia do seu pensamento dramático-
que essa mentalidade apocalíptica nao se podía exprimir político, que nao é outro senao aquéle "maquiavelismo"
ñas palavras e metros simples da cancao popular. E m lendário, com os seus tiranos, mártires e vilaos diabóli-
compensacao, Gryphius é o mais profundo ou pelo menos o cos, criaturas de um pessimismo político e cósmico. Cal-
mais profundamente emocionado poeta religioso de língua mando a sua angustia pela vontade de resignacio estoica,
alema, poeta da vida déste mundo, de visoes calderonia- aliando á dramaturgia senequiana a filosofia senequiana,
nas da "vida como sonho, perturbado pela angustia": realizou Gryphius a sua maior tragedia: Papinianus, a tra-
gedia do jurisconsulto romano que morre mártir da re-
" und was sind unsre taten, sistencia contra o despotismo. A grande emogao retórica,
Ais ein mit herber angst durchaus vermischter t r a u m ? " nesta pega, explicar-se-ia como autodramatizagao do poe-
ta-jurisconsulto, que transfigura a sua própria condigao.
Papinianus nao é de todo indigno de Massinger ou até de
Edicfio por H. Pftlm, 3 vols., Tueblngen, 1878/1884. Webster. No entanto, e apesar dos grandes elogios que a
L. O. WysocU: Andreas Gryphius et la tragédie allemande da
XVHe siécle. Parts, 1893. crítica inglesa moderna consagra ao teatro de Gryphius,
V. Mannhelmer: Dle Lyrik des Andreas Gryphius. Berlín, 1904. sua verdadeira grandeza reside na poesía lirica.
W. Harríng: Andreas Gryphius und as Drama der Jesuiten.
Halle. 1908. Quase caricatura, porém aínda poderosa, da dramatur-
F. Oundolv: Andreas Gryphius. Heidelberg, 1927.
W. Fleming: Das schlesische Kunstdrama. Leipzig, 1930. gia de Gryphius, é a de Lohenstein ( 8 4 ), possesso de vi-
F. Fricke: Die Büdlichkeit in der Dichtung des Andreas Gry-
phius. Berlín, 1933. 84) Panlel Casper von Lohenstein, 1635-1683. (Cf. "Pastorals, Epo-
pélas e Picaros", nota 54.)
J. Ruettenauer: Weltangst und Erloesung in den Gedichten non Agrippina (1665); Sophonisbe (1680); Ibrahim Bassa (escr. 1653,
Gryphius. Leipzig, 1940. publ. 1685); Der grossmuetige Feldherr Arminius (1689/1690).
E. Lunding: Das schlesische Kunstdrama. KJoebenhavn, 1940. Edicao (lncompl.) por F. Bobertag, 2 vols., Berlín, 1885.
H. Powell: Introducao da edicao critica de Carolus Stuardus. W. Martin: Der Stil in den Dramen Lohensteins. Leipzig, 1927.
Lelcester, 1955, E. Lunding: Das schlesische Kunstdrama. KJoebenhavn, 1940.
944 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCDDENTAL 945

sóes sexuais e fúnebres e de erudicjáo enciclopédica; pelo dários dos Stuarts, simpatizaram com o catolicismo; que
menos a sua Sophonisbe é impressionante versao barroca Donne era católico n a t o ; que Herbert pertenceu á ala ca-
do assunto que servirá aos experimentos renascentistas de tolicizante do anglicanismo; que Crashaw se converteu ao
Trissino. A literatura alema do século X V I I seria, entao, catolicismo. Éste Barroco auténtico nao teve base popular
urna das expressoes mais típicas do Barroco. A sua reva- na Inglaterra, e, por isso, nao encontrou expressao teatral,
lorizagáo deve-se ao entusiasmo recente por ésse estilo; nao tem dramaturgos. O católico Massinger também nao
mas o ponto de partida e o resultado nao sao fatalmente fala a língua dos "metaphysical poets", porque o seu pú-
idénticos. A mentalidade barroca dessa literatura está tao blico nao a teria compreendido. Mas á síntese precaria
fora de dúvida como a expressao marinista. O problema, de elementos cultos e populares no Barroco protestante
porém, reside na fungao histórica do Barroco protestante. alemao-holandés corresponde a síntese mais perfeita do
Cysarz salientou a base social da literatura silesiana do teatro elisabetano-jacobeu e mais urna outra coisa: a poe-
século X V I I nos círculos de intelectuais burgueses, a pre- sía lírica classicista. Ñas literaturas neolatinas, a poesía
tensao de criar urna língua culta de élite, o zélo em tra- barroca é acompanhada por urna reagao classicista, a dos
duzir modelos estrangeiros, a escolha désses modelos ñas Chiabreras, Argensolas, Malherbes. Na Inglaterra, a poesía
literaturas neolatinas e na literatura latinizada da Holanda: classicista do século X V I I é a expressao dos intelectuais
todos ésses elementos sao característicos da Renascenqa. burgueses e protestantes, puritanos de formacáo latina
Os países protestantes — a Alemanha e a Holanda em pri- assim como os poetas-burócratas da Silesia. Mas dispdem
meira linha — nao tiveram verdadeira Renascenga, porque de urna língua madura, culta; entre éles nasceu um Milton,
a Reforma interrompeu a evolu$ao. O Barroco protestante um Marvell.
tcm a funcao histórica de substituir a Renasccnca falhada,
recuperar o tempo perdido. Aos críticos do século X I X Essas conclusoes explicam suficientemente a s e p a r a d o
o malogro désse experimento parecía explicado pelo cará- entre o teatro elisabetano-jacobeu e a "metaphysical poe-
ter aristocrático daquela literatura, sem raízes no povo, try", e a existencia, ao lado desta última, de urna poesía
produzindo só artificios. Na verdade, dá-se o contrario. classicista-puritana. A explicagáo por analogía, do caso
Essa "Renascenga" atrasada foi perturbada e desviada pela alemáo, nao é descabida: existem relacoes entre os dois
intervengao de residuos populares, ainda vivos, do espirito países, se nao literarias, pelo menos filosófico-religiosas,
gótico, "flamboyant", e do cristianismo protestante. Mas capazes de influir na evolugáo literaria. A "metaphysical
criou-se, assim, urna síntese precaria, que forneceu aos li- poetry" nao é realmente metafísica no sentido moderno da
teratos cultos a possibilidade de se exprimirem igualmente palavra; é erótica e religiosa, mistura que se encontra tam-
na poesía individual, lírica, e na poesía coletiva do teatro. bém em certas expressoes místicas; e o ambiente místico
Seria esta a solucao do problema da coexistencia de da "metaphysical poetry" foi criado por influencias con-
urna dramaturgia barroca popular e de urna poesía lírica, tinentais.
barroca e aristocrática — independentes e separadas — na A grande expressao da mística barroca alema é Johan-
Inglaterra. Ao Barroco aristocrático e contra-reformista nes Scheffler ( 8 5 ), geralmente chamado "Ángelus Silesius",
corresponde, na Inglaterra, a "metaphysical p o e t r y " ; e
convém notar que os "cavalier poets" monarquistas, parti- 66) Joahnnes Scheffler, 1624-1677.
Der cherubinische Wandersmann von Ángelus Silesius (1657), etc.
Edlcao por H. L. Held, 3.» ed., 3 vols., Muenchen, 1951.
946 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 947

pseudónimo sob o qual publicou o Cherubinischer Wan- gunda hipótese e apontam, como mestre d e Scheffler, o
dersmann. Um anjo é ele realmente, um mensageiro de místico Maximilianus Sandaeus ( f 1656 ). Outros lembram
outros mundos que o poeta encontrara ñas profundidades o silesiano Valentín Weigel (1533-1588), u m dos últimos
da alma humana. Na própria alma ficam o céu e o inferno rebentos do movimento sectario da época da Reforma, ob-
de Ángelus Silesius; o nascimento de Cristo, a Paixáo do servando-se que do grupo weigeliano surgiu o outro gran-
Gólgota e o Juízo Final sao acontecimentos de toda a hora de místico silesiano, Jacob Boehme ( 8 0 ), o sapateiro de
no "foro íntimo", e a doutrina ortodoxa da "imitatio Chris- Goerlitz que os pastores luteranos perseguiram cruelmente,
t i " transforma-se, para o jesuíta silesiano, em identificado o pensador poderoso que colocou a origem do bem e do
perfeita, em uniáo mística. A forma pela qual Scheffler mal no seio da divindade, do "Urgrund". A dialética re-
se exprime é o epigrama; a sua poesia enquadra-se na epi- ligiosa de Boehme exerceu profunda influencia sobre os
gramática e emblemática barrocas, que Quarles já adaptara románticos: Schelling, Novalis, Tieck, Adam Mueller, na
ao pensamento religioso. Scheffler gosta de inversoes e Alemanha; Coleridge e Shelley, na Inglaterra. Na Alema-
enjambements complicados, de metáforas surpreenden- nha, Boehme foi urna descoberta dos románticos; na In-
tes, de trocadilhos espirituosos, e, contudo, essa arte in- glaterra existía urna tradicáo boehmiana, muito mais an-
telectual exprime emocoes profundas, realiza versos, in- tiga. Blake era boehmiano, e antes déle o sectario William
felizmente intraduzíveis, mas inesquecíveis como estes que Law; e no século X V I I estavam os escritos de Boehme
dizem: que estaríamos perdidos para sempre, se o Cristo bastante divulgados entre os ingleses. Newton foi grande
tivesse apenas nascido em Belém e nao também em n o s ; e admirador de Boehme, conheceu-lhe a mística em Cam-
que a cruz só nos salvará, se nao apenas erigida em Gólgota, bridge, onde Cudworth e Henry More, os chamados "Cam-
mas também em nos: bridge Platonists", cultivaram um platonismo místico. Mil-
ton nao menciona o nome de Boehme; mas a sua influen-
"Waer 1 Christus tausendmal in Bethlehem geboren, cia é evidente na Doctrina Christiana. Pensamentos ou an-
Und nicht in dir, du waerst doch ewiglich verloren. tes sentimentos boehmianos encontram-se nos "metaphy-
Das Kreuz auf Golgatha kann dich nicht von dem Boesen, sical poets" Vaughan e Traherne. A filosofía mística de
So es nicht auch in dir wird anfgericht', erloesen." Boehme faz parte do ambiente espiritual em que a "me-
taphysical poetry" floresceu.
As fontes da mística de Scheffler constituem objeto
de controversias. Além da disposi$!o mística do povo si- Mas a mística nao é o centro do fenómeno complicado
lesiano, meio eslavo, ao qual o "Ángelus Silesius" pertencia, daquela poesia que constitui hoje o objeto dos estudos mais
trata-se de saber se ele se tornou místico antes ou depois
da sua conversao ao catolicismo e ingresso na Companhia
de Jesús. Os estudiosos jesuítas opinam em favor da se- m Jacob Boehme. 1575-1624.
Aurora oder Morgenroete im Aufgang (1612); Beschreibung der
G. EUlnger: Ángelus Silesius. Berlín. 1927. drei Primipien goettlichen Wesens (1618); Mt/sterium Magnum
H. Plard: La mystique i'Ángelus Silesius. Paris, 1943. (1623); etc.
E. Spoerri: Der Cherubinische Wandersmann ais Kunstwerk. Edicáo por K. W. Schiebler, 3.» ed., 7 vols., Leipzig, 1922.
Zuerich, 1947. P. Hankanner: Jacob Boehme, Gestalt und Qestaltung. Bonn»
E. Spoerri: Der Cherubinische Wandersmann ais Kunstwerk. 1924.
Zuerich, 1947. A. Koyré: La philosophíe de Jacob Boehme. Paris, 1929.
.

948 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 949

assíduos de crítica literaria anglo-americana ( 8 T ). Os "me- pelas coisas fúnebres, o ascetismo de Herbert, a mística
taphysical poets" sao, em geral, representantes da "via transcendental de Crashaw e Vaughan, a retirada de Wal-
media" anglicana, sao catolicizantes; alguns entre éles, até ton para a pesca á Iinha fora da cidade — sao formas di-
se converteram ao catolicismo romano; por isso mesmo ferentes de evasao, atitudes ambiguas que podem ser fontes
pertencem ao mais auténtico Barroco. Mas sao ingleses. de grande poesía.
Certo realismo empirista nao lhes é alheio; e á erudi^áo
A arma poética com que os "metaphysical poets" do-
medieval, escolástica, aliam os primeiros conhecimentos da
minam as dificuldades da sua condícao humana, é a inte-
filosofía de Bacon, da astronomía de Copérnico, da física
ligencia; o termo técnico da época é wit. Pela inteli-
de Galileu, da fisiología de Harvey. Doutrinas aristotéli-
gencia engenhosa conseguem a transformacáo das visoes
cas sobre a alma e a teoría da circulacao do sangue mistu-
místicas em metáforas naturalistas, tomadas ao mundo sen-
ram-se de maneira inquietante, produzindo nova ambigüi-
sível, e a retransformagao dos sentimentos eróticos em alu-
dade além da ambigüidade religiosa da "vía media" entre
sóes metafóricas, tomadas ao mundo religioso. Daí o ma-
protestantismo e catolicismo. E isso nao é tudo. A alte-
rinismo e gongorismo das suas expressóes que os tornou
racáo dos conceitos moráis da Renascenca, já evidente em
t í o antipáticos aos classicistas do século X V I I I e táo in-
dramaturgos como Middleton e Ford, produz o erotismo
compreensíveis aos críticos do século XIX. Por volta de
violento e obsceno dos "cavalier poets" como Carew,
1800, Hazlitt confessa que nao os conhece; e por volta de
Suckling e Lovelace, inspira naturalismo erótico ao poeta
1900 existem manuais da literatura inglesa nos quais o nome
sacro Donne; é responsável pelo evasionismo dos Herbert
de Donne nao aparece. Se essa antipatía aínda persiste
e Vaughan. Mas ésse evasionismo tem mais urna fonte: os
em certos círculos académicos, a expressáo "metaphysical
"metaphysical poets" sao contemporáneos de graves crises
poetry" é, em parte, responsável por ela. É urna expressáo
sociais, da guerra civil dos puritanos contra a monarquía e
equívoca. Nao sao poetas filosóficos, nao metrificam doutri-
da ditadura republicana de Cromwell. O erotismo dos "ca-
nas metafísicas. Dryden, que, segundo parece, inventou
valier poets" que se batem pela causa perdida do rei Car-
a expressáo, só pretendeu afirmar que aqueles poetas ofe-
los I, o verdadeiro entusiasmo de Donne e Thomas Browne
recem análises psicológicas do sentímento erótico; e a psi-
cología foi considerada, entáo, como parte da metafísica.
87) R. Dowden: Puritans and Anglicans. Studies in Literature. Lon- Em Samuel Johnson, a expressáo já é pejorativa: chama
don, 1900. ele "metaphysical" as metáforas barrocas, á juncáo vio-
B. Wendell: The Temper of the Seventeenth Century in Engllsh lenta de expressóes naturalistas e as v.ézes científicas com
Literature. Boston, 1904. sentimentos místicos ou amorosos. Aos críticos románti-
H. J. C. Grlerson: Cross-Curtents in English Literature o/ the cos e realistas do século XIX, acostumados a urna poesía
17 th. Century. London, 1949.
Ch. Brooka: Modern Poetry and the Tradition. Chapel HUÍ, 1939. sentimental e de afirmacóes "serias", aquela poesía inte-
T. Spencer e M. van Doren: Studies in Metaphysical Poetry. lectualista era aínda mais inacessível- A "high serious-
New York, 1939. ness" de Matthew Arnold era incompatível com a ironía
T. S. Eliot: "The Metaphysical Poets". (In: Selected Essays. a.*
ed. London, 1941.) (Estudo importantissimo.) dos "metaphysical poets", conscientes de que os símbolos
W. Sypher: "The Metaphyslcals and the Baroque". (In: Partisan da poesía exprimem estados da alma e nao verdades abso-
Review. Wlnter, 1944.) lutas; e por isso eram considerados "insinceros". A mis-
C. V. Wedgwood: "Poets and Politics in Baroque England. (In:
Penguin New Writing, 1944.)
950 OTTO M A R Í A C A R P E A U X HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 951

tura de estilo coloquial e sutileza metafórica, retórica Grierson, organizando a sua famosa antología dos "me-
eclesiástica e naturalismo obsceno só comegou a desema- taphysical poets", incluiu, naturalmente, Marvell, excluiu
ranhar-se pela análise histórica: como efeito da desilusáo o classicista pós-elisabetano Herrick, e escolheu de Mil-
da época jacobéia a respeito das ilusóes da Renascenga; ton só duas poesias barrocas da mocidade. No que respeita
como reacio psicológica, cada vez mais sutil e lembrando aos comegos, a distingao entre poetas renascentistas e poe-
as distingoes escolásticas dos poetas provengáis, contra o tas barrocos nao é muito fácil. Pois as metáforas t í o típi-
realismo despreocupado da Renascenga. A análise cientí- cas dos "metaphysicals" já se encontram nos poetas eli-
fica das razóes históricas, iniciada por Gosse, nao foi su- sabetanos ( B 0 ); a evolugao se realizou sem solugio de con-
ficiente para compreender a "metaphysical poetry", con- tinuidade. Existem precursores, dos quais o mais impor-
denada e esquecida. Só a época seguinte á Primeira tante é William Drummond of Hawthornden ( 8B-A ). Ésse
Guerra Mundial — a época das desilusóes políticas e so- poeta renascentista é o único do século X V I I que dispoe
ciais, dos movimentos místicos e da psicanálise — se en- dos acordes serenos de Sidney e Spenser; urna ode como
contrava em estado de alma parecido, e criou, por isso, urna "Phoebus a r i s e ! . . . " , um madrigal como "Like the Ida-
poesía semelhante: compreendeu o Barroco, e o Barroco lian queen", e até os sonetos religiosos, parecem escritos
inglés, reconhecendo-o como urna das maiores épocas da sob o céu da Italia; a sua famosa expressao "uncreate
poesía inglesa ( 8 8 ). Desde entáo, o nome de Donne está beauty, all-creating love" é o credo de um neoplatónico
inscrito ao lado do nome de Shakespeare — nao como igual que lera Leone Ebreo. Mas o céu azul e de ouro do so-
déle, mas em detrimento da gloria de Milton. Mas logo co- neto "Marvel of Incarnation" lembra as decoragóes pompo-
mega a esbogar-se urna reagáo. Em contraposigao a T . S. sas de Góngora, e o fim niilista (" dissolve in nought")
Eliot, nota-se que a admiragao a Donne e a admiragáo de urna poesía sobre "this Ufe" revela outro estado de
a Milton nao sao incompatíveis ( 8S -A); e 0 classicista espirito: o poeta no seu castelo na solidáo da Escocia so-
representa outro aspecto do idolatrado Barroco. E o nome nhava apenas com a Italia; e quando acordou, em meio da
do "metaphysical poet" classicista e puritano barroco Mar- guerra civil, soube apenas responder como o seu "Saint
vell, hoje já objeto de admiragóes unánimes, servirá no fu- John Baptiste, the last and greatest Herald of Heaven's
turo, provávelmente, de sinal de reconciliagao. K i n g " : "Repent!" Por tras de urna linguagem maravilho-

I samente clara, é Drummond um poeta fantástico, o pri-


meiro dos muitos ingleses excéntricos que, como Swift e
88) E. Gosse: The Jacobean Poeís. London, 1894. Landor, pareciam classicistas. O primeiro que domina ple-
M. Praz: Secentismo e marinismo in ¡nghilterra. Flrenze. 1925. namente a nova linguagem poética é Aurelian Townshend
G. Willlamson: The Donne Tradition. English Poetry ¡rom O10), redescoberto só em nosso tempo, poeta erótico e es-
Donne to Cowley. Cambridge Mass., 1930.
H. J. C. Grlerson: Metaphysical Lyrics and Poems of the Seven-
teenth Century, 4." ed. Oxford. 1936. (Antología com importante 89) R. Tuve: Elizabethan and Metaphysical Imagery. Chicago, 1948.
introduc&o.) 89A) William Drummond of Hawthornden, 1585-1649.
H. C. White: The Metaphysical Poets. A Study in Religious Flowers of Sion (1623); Poems (1656).
Experience. New York, 1936. Edicao por L. E. Kastner: 2 vols,. Manchester, 1913.
R. L. Sharp: From Donne to Dryden. Durham, N. C, 1955. A. Joly: William. Drummond o) Hawthornden, Lille, 1935.
88Ai E. M. W. TUlyard: The Metaphysicials and Milton. London, 90) Aurelian Townshend, c. 1583 — c. 1643.
1956. Poems and Masks, edit. por E. K. Chambers, Oxford, 1912.
952 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 953

pirituoso; pelo menos em urna poesia, para a qual T . S . me no more where Jove bestowes"; e a tentacao é grande
Eliot chamou a atengáo, "A Dialogue betwixt Time and a de confundi-lo com um anacreóntico como Herrick. Mas,
Pilgrime", as suas antíteses engenhosas se aproximam da em vez de traduzir o "carpe diem" horaciano em melódico
profundidade, mas sempre com aquela graca que distingue "Gather ye rosebuds.. .", escreveu "persuasions love". Ca-
da metafísica toda a "metaphysical poetry". Esta graca é rew nao é um anacreóntico, e sim um erótico brutal, um
o apanágio particular dos "cavalier poets", "bon-vivants", "rude male". Num poema como The Ranture, serie de pro-
devassos e partidarios belicosos dos Stuarts contra os pu- postas das mais audaciosas e diretas á sua Celia, Carew
ritanos; assim como a política absolutista dos Stuarts é consegue transformar em poesia — em "poésie puré" —
a dos reis do Continente, assim os "cavalier poets" lem- urna cena ao gósto de D . H . Lawrence. Apenas, Carew
bram e conhecem a Pléiade francesa. Sao poetas meio re- nao ¡dolatrava o sexo; estava consciente da ambigliidade
nascentistas, quer dizer, de urna "Renascen$a anglicana", o das suas atitudes, entre o erotismo e a defesa da Igreja e
que já é urna das definigoes possíveis do Barroco inglés. do Rei. Na elegía dirigida a Sandys, o tradutor dos salmos,
Os "cavalier poets" sao também aristócratas alegres, confessa ou promete que —
acostumados a viver com o povo: últimos representantes
da "Merry Oíd England", e certamente os últimos "habi- "My unwasht Muse pollutes not things D i v i n e . . . " ;
túes" apaixonados dos teatros; ao mesmo tempo, sao táo
sutilmente espirituosos como os "metaphysical poets", e, e na elegía profundamente sentida sobre a morte do maior
assim como estes, dignam-se, de vez em quando, escrever dos "metaphysical poets", Donne é, para ele, apenas o rei
poesia "divina", hinos ao Deus do outro amor e da Igreja da "universall Monarchy of wit". "Unwasht", a musa de
anglicana. As vidas dos "cavalier poets" sao compará- Carew o é; mas nunca ordinaria. Carew é um grande artista.
veis aos doubie plots do teatro elisabetano-jacobeu; e Nenhum outro "cavalier" encontrou expressóes tao "don-
esta comparaqao pretende revelar, enfim a analogía se- nianas" como "the golden atoms of the day" e "the warme
creta entre o teatro e a poesia do Barroco inglés: ao dou- firme Apple, tipt with corall berry"; mas também soube
bie plot do teatro corresponde a ambigüidade da "meta- apresentar-se como "penitente, ouvindo a liturgia sacra sem
physical poetry". assistir ao sacrificio solene", e falar, com sinceridade evi-
dente, do "dry leavelesse T r u n k on Golgotha". Os "ca-
O primeiro dos "cavalier poets" e o maior entre éles valier poets" foram assim.
é Thomas Carew ( 9 l ) . Todo o mundo lhe conhece as pe-
Suckling (•*), outro autor de pegas antológicas como
cas antológicas, "Give me more Love, or more Disdain",
"Out upon it" e " W h y so palé and wan, fond lover", nao
"Know Celia", " W h e n thou, poore excommunicate", "Ask
dispoe da arte verbal de Carew. Em compensado, escre-
veu um legítimo tratado de apologética religiosa contra
01) Thomas Carew, c. 1565 — c. 1639. os heréticos a par de alguns versos dos mais obscenos —
Poems (1640).
Edicóes por A. Vincente, London, 1899, e por R. Dunlap, Oxford, e alguns dos mais humorísticos — da língua inglesa; era
1949.
A. Quiller-Couch: Adventures in Críticism. London. 1896.
C. J. Sembower: "A Note on the Verse Structure of Carew". (In: 02) Str John Suckling, 1609-1642.
Studies in Language and Literature jor J. M. Hart. New York, Fragmenta Áurea (1646); "masque" Aglaura (1638).
1910.) EdiS&o por A. H. Thompson, London, 1910.
954 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 955

um oficial valente e, vendo malogradas as suas aventuras pouco digna, serviu a Cromwell e depois ao reí Carlos I I ;
em favor do absolutismo real, acabou suicidando-se. sabia porque se tornou, no Parlamento da Restaurara».
O mais famoso dos "cavalier poets" é Richard Love- apostólo da tolerancia política e religiosa. As ambigüí-
lace ( 9 3 ). Táo notoria se tornou a sua vida devassa que, dades intrínsecas da "cavalier poetry" viram em Waller
ainda no século X V I I I , Samuel Richardson se lembrou de atitudes oportunistas. O poeta engenhoso acabou como
Lovelace para dar nome característico ao sedutor, n o ro- orador parlamentar e conversador espirituoso no clube, e
mance Clarissa Harlowe. Mas nem todos os "Don J u a n s " essa transformadlo é mais importante, porque mais sinto-
sabem fazer versos como os seus, pecas antológicas admi- mática do que a sua poesía: Waller, o último "cavalier",
ráveis: To Lucasta, Going beyond the Seas; To Althaea, é o primeiro gentleman.
from Prison; To Lucasta, Going to the Wars, que imorta- O precursor — ou o "cavalier" — da "metaphysical
lizaram a beleza perecível dessas damas. E Lovelace con- poetry" religiosa é o jesuíta Robert Southwell ( BB ), que
quistou com maior facilidade do que Carew ou Suckling o morreu como mártir da sua fé. Tinha urna enorme paixáo
favor dos antologistas, porque o seu erotismo é mais deli- religiosa, quase erótica, dedicada com predilecáo ao Cristo-
cado, mais perto de Herrick e da tradicáo romántica de menino — Southwell é o poeta do Natal, e The Burning
Spenser. Um Lovelace maior encontra-se em outros poe- Babe é a mais famosa das suas poesías — paixao religiosa
mas, "metafísicos", complicados e engenhosíssimos, como que pretende exprimir-se ñas formas algo pálidas e algo
The Grasshopper; e o cinismo franco do sedutor é resga- preciosas da Renascenga italiana. Saint Peters Complaint
tado pela confissáo do oficial destemido: está, entre os dóis modelos, mais perto de Tansillo do que
de Malherbe, mas mesmo assim a linguagem pré-barróca
" I could not love thee, Dear, so much, do italiano perde, na boca de Southwell, a compostura,
Loved I not Honour more." transformando-se em expresslo balbucíante do inefável, re-
cuperando o equilibrio lingüístico apenas por meio de an-
Lovelace encarnava um tipo simpático, mas já condenado. títeses violentas como o "humble pomp" do Cristo-menino.
O último dos "cavaliers" já é diferente: Edmund W a l - Só ou quase só pela sinceridade perfeita se distingue essa
ler ( U1 ), o autor de poesías conhecidíssimas, como " T h a t poesía da ambigüidade dos estados de alma antitéticos de
which her slender waist confíned" e "Go, lovely Rose". Donne.
Waller foi, politicamente, menos "cavalier" do que os ou-
t r o s : conspirou contra o Parlamento, salvou-se de maneira Para nos iniciarmos na poesía de Donne e ñas complica-
cóes psicológicas que a criaram nao há meio melhor do
que 1er trechos bem seletos da Anatomy of Melancholy,
93) Richard Lovelace, 1618-1658.
lucasta (1649).
Edicáo por C. H. Willtlnson, 2.» ed., Oxford, 1930.
C. H. Hartmann: The Cavalier Spirit and its [n/luence on the 95) Robert Southwell, 1561-1595.
Life and WoTk oí Richard Lovelace. London, 1925. Saint Peters Complaint (1595); Maeoniae (1595).
94) Edmund Waller. 1606-1687. Edlcao por A. B. Grosart, London, 1872.
Poems (1645). R. A. Morton: An Appreciation of Robert Southwell. Philadel-
Edicáo por G. Thorn-Drury, 2.* ed.. 2 vols., London, 1905. phla, 1949.
E. Gosse: Seventeenth Century Studies. London, 1897. Chr. Devlln: The Life oj Robert Southwell, Poet and Martyr.
London, 1956.
956 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 957

d o seu c o n t e m p o r á n e o R o b e r t B u r t o n ( 9 6 ) . T r e c h o s a p e - n e i r a mais e n g r a c a d a , o s s á t i r o s e n i n f a s da m i t o l o g í a g r e g a
nas, p o r q u e o l i v r o i n t e i r o n a o s e r á d i g e r í v e l . É, á rnaneira c o m os e s p e c t r o s , g i g a n t e s , a n o e s e fadas da s u p e r s t i c á o
d e c e r t a s c o m p i l a c o e s m e d i e v a i s , urna colecao imensa d e folclórica i n g l e s a . E B u r t o n e x p l i c a essas c o n f u s o e s c o m
r e f l e x o e s , m e d i t a c o e s , citacocs, a n e d o t a s , f r u t o s d e l e i t u r a a r g r a v e d e p e n s a d o r , i n v o c a n d o a r g u m e n t o s d a escolás-
á m a r g e m d e urna vida d e e s t u d o s d e u m h u m a n i s t a ; t u d o tica medieval. Nao ignora as descobertas da ciencia, mas
isso u n i f i c a d o e t r a n s f i g u r a d o p e l a s e s q u i s i t i c e s de u m es- serve-se d é l a s d e r n a n e i r a p o r a s s i m dizer a p e n a s e s t i l í s t i -
p i r i t o e x c é n t r i c o , bern i n g l é s , e n t r e m e l a n c o l í a e h u m o - c a : s e C o p é r n i c o t e m r a z á o e o sol s e e n c o n t r a n o c e n t r o
r i s m o . A Anatomy of Melancholy é u m l i v r o da p r e d i l e - d o U n i v e r s o , e n t á o — c o n c l u í B u r t o n — a T e r r a é urna es-
c t o de Charlie Chaplin. Mas nao será conveniente exage- p e c i e d e l ú a , e e s t á c l a r o p o r q u e todos n o s s o m o s u n s
r a r a " a t u a l i d a d e " d a obra. O h u m o r i s m o d e B u r t o n é d e l u n á t i c o s . O t r o c a d i l h o p r e t e n d e ser t o m a d o a s e r i o . B u r -
urna e s p e c i e a n t i q u a d a , h u m o r i s m o d e t r o c a d i l h o s e b u f o - t o n e x p l i c a a m e l a n c o l í a d a g e n t e como l o u c u r a , c a u s a d a
n a d a s , e a p a l a v r a " m e l a n c o l í a " t e m p a r a ele s e n t i d o d i f e - pelo amor e pelo fígado, e dá receitas, misturadas de pur-
r e n t e d o q u e t e m p a r a nos. E ' u m d o s " q u a t r o t e m p e r a m e n - g a t i v o s e r e z a s , q u e , c o n f o r m e a s u a p r ó p r i a confissao, n i o
t o s " d a p s i c o l o g í a r e n a s c e n t i s t a , tal c o m o a p a r e c e n o s h e - dáo muito resultado. O m u n d o continua louco, e a me-
r ó i s " m e l a n c ó l i c o s " do t e a t r o e l i s a b e t a n o ; s i g n i f i c a , e m lancolía d e R o b e r t B u r t o n n a o passa d e urna v a r i e d a d e p a r -
parte, aquela incoeréncia pela qual o melancólico H a m l e t t i c u l a r d e l o u c u r a ; é difícil, p o r é m , d i s t i n g u i - l a da sabe-
s e d i s t i n g u e ; e ésse h u m o r i s m o m e l a n c ó l i c o t o r n a v a s t o , doria.
incoerente e estranho o livro de Robert Burton. Éste E n t r e a s p o e s í a s d e J o h n D o n n e (9T) e x i s t e m t r e s q u e ,
" p h a n t a s t i c , g r e a t o í d m a n " , c o m o dizia, d o i s s é c u l o s m a i s pela semelhanca dos títulos, convidam a confundi-las. The
t a r d e , o s e u d i s c í p u l o g r a t o L a m b , era v i g á r i o d e a l d e i a ; e,
como muitos da sua profissáo, ocupava-se ñas horas de 97) John Donne, 1572-1631.
ocio com estudos de medicina, p r o c u r a n d o como autodi- Poems (1633/1635); Paradoxes and Problems (1633); Essays in
data tratamentos e remedios para as doencas e dores ima- Divinity (1651); Sermons (1623/1660).
Edicao completa (com os sermóes) por H. Alíord, 6 vola., London,
g i n a r i a s q u e ele, g r a n d e h i p o c o n d r í a c o , s e n t í a . O s s e u s 1839.
conhecimentos científicos eram vastíssimos, mas nao es- Edicóes das poesías por A. H. Bullen, London, 1901, e por H. I. C.
t a v a m b e m a a l t u r a d o t e m p o . B u r t o n era m u i t o s u p e r s t i - Grlerson, 2.a ed., Oxford. 1929.
Edicao dos Sermóes por O M. Slmpson e R. Potter, 10 vola., Cam-
cioso, e o s c a p í t u l o s m a i s d e l i c i o s o s da Anatomy of Me- bridge, 1952/1957.
lancholy t r a t a m das i n f l u e n c i a s b e n é f i c a s o u p e r n i c i o s a s E. Gosse: The Life and Letters of John Donne, 2 vols. Lon-
dos "black spirits" e "white spiríts", confundindo, da ma- don. 1899.
M. P. Ramsay: Les doctrines medievales'chez John Donne. Ox-
ford. 1914.
H. I. C. Grierson (in: The Cambridge History of English Li-
96) Robert Burton, 1677-1640. terature, vol. IV, 2.» ed. Cambridge, 1919).
Anatomy of Melancholy (1621). H. J. Fausset: John Donne. A Study in Discord. London, 1924.
Edicao por A. R. Shllleto (com IntrodugSo por A. H. Bullen), E. M. Slmpson: A Study of the Prose Works o) John Donne.
4.a ed., 3 vols., London, 1923. Oxford, 1924.
J. M. Murry: Contries of the Mind. London. 1922. P. Legouls: Donne. the Craftsman. París, 1928.
P. Jordan-Smlth: Bibliographia Burtoniana. Palo Alto, 1931. O. Salntsbury: "Donne's Poems". (In: Prefaces and Essays. Lon-
D. Mac Carthy: "Robert Burton". (In: Portraits, vol. I. London, don, 1933.)
1931.) C. H. Whlte: "The Converslons and the Divine Poetry of John
958 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 959

First Anniversary, tair.bém chamada The Anatomy of the poesias que, se fóssem em latim, poderiam fazer parte da
World, é urna daquelas muitas poesías eróticas que sao, liturgia romana. Mas Donne nao exibiu ortodoxia angli-
pela originalidade absoluta dos conceitos, a parte mais cana para se defender contra perseguicoes, e sim para se
característica da sua obra: The Good-morrow, The Sun habilitar á ordenacao como sacerdote da Igreja oficial
Rising, Aire and Angeis, The Dream, A Valediction, of da Inglaterra, visto que o seu passado nao se harmonizava
weeping, A Valediction, forbidding mourning, The Mes- bem com o sacerdocio. Quando mogo, tinha raptado urna
sage. O outro poema, The Second Anniversary, também garóta de 16 anos, casando com ela contra a vontade do
chamado Of the Progress of the Soul, pertence á serie de pai; secretario de grandes senhores, tinha-se servido dos
poesías elegiacas como The Funeral e The Relie, ñas quais seus vastos conhecimentos de direito civil para intervir
o pensamento da morte serve para afirmar com maior ener- no escandaloso processo de divorcio da Condéssa de Ox-
gía a importancia da uniao física dos sexos. Enfim, The ford, da mesma maneira como abusava constantemente da
Progress of the Soul é, apesar do título quase idéntico, sua virtuosidade poética para bajulacóes da maior insin-
obra muito diferente: longo poema filosófico sobre a teo- ceridade; e John Donne vai terminar a vida como decano
ría pitagórica da metempsicose. O conjunto dessas t r e s da igreja de S. Paulo, em Londres, asceta severo, o maior
poesias dá idéia da multiformídade do pensamento poé- orador sacro do seu tempo, venerado pelos paroquianos,
tico de Donne; mas nao das suas contradicoes. Em idade morrendo em cheiro de santidade.
juvenil, escreveu os Paradoxes and Problems, que lembram
um pouco Robert Burton: defesas do riso como suprema A crítica biográfico-psicológica, que dominava no sé-
sabedoria, da infidelidade erótica como supremo encanto culo XIX, explicando a obra literaria pelas circunstancias
da mulher, e até urna defesa do suicidio. O mesmo "advo- da vida, nao chegaria a compreender a poesía de Donne.
catus diaboli" escreveu os Essays in Divinily para provar "Mentira poética de um virtuose das palavras" — seria
a sua ortodoxia anglicana. Precisava disso, porque nasceu éste o julgamento; e as dificuldades da sintaxe, a lingua-
católico; e mesmo depois da sua conversáo continuava a gem hermética, o verso duro e arbitrario de Donne seriam
salientar os elementos católicos dentro da " vía media" an- interpretados (e foram interpretados) como conseqüéncias
glicana: nos sermóes. volta com insistencia á doutrina do poéticas da sua duvidosa atítude humana. A critica mo-
"corpus Christi mysticum", e The Cross e The Litanie sao derna elogia o que amigamente se censurava: considera
Donne como o maior poeta barroco, ao lado do seu con-
Donne". (In: The Metaphysical Poets. A Study in Religious Ex- temporáneo Góngora. Na ambigüidade a critica de Ri-
perience. New York, 1936.)
C. M. Colfin: John Donne and the New Philosophy. New York, chards e Empson reconheceu a fonte da maior poesia, e
1937. ambiguo é Donne em todas as facetas da sua obra. Foi
M. Rugofí: Donne's Imagery. New York, 1939. capaz das mais graciosas expressoes de amor ligeiro
H. J. C. Grlerson: Criticism and Creation. London, 1949.
J. B. Leishman: Monarca o¡ Wit. An Analytical and Compa- ("Stay, o sweet, and do not r i s e ! . . . " ) , como um poeta do
rative Study of the Poetry of John Donne. London, 1951. flirt; foi capaz das expressoes de amor platónico (The
D. Loutham: The Poetry of John Donne. New York, 1952.
Cl. Hunt: Donne's Poetry. Essays in Litterary Analysis. New Canonization) e de amor apaixonado (Ecstasy), e chegou
Haven, 1955. a verdadeiros delirios dos sentidos — como em To his Mis-
P. Cruttwell: The Shakespearean Moment and its Place in the tress foing to Bed, os versos:
Poetry of the XVII th. Century. New York, 1955.
.

960 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 961

"Licence my roving hands, and let them go, sofia. A essa ambigüidade filosófica corresponde a am-
Before behind, between, above, below." bigüidade religiosa entre o catolicismo e o protestantismo
— a poesia de Donne personifica o paradoxo da "via me-
Nenhum poeta inglés — e poucos em outras línguas — dia" anglicana. Daí a mistura de imagens sacras e pro-
celebrou tanto o corpo feminino ("her body thought"), fanas, a "metaphysical poetry" que assustou Johnson; daí
e sempre ñas expressoes mais diretas, até obscenas e ás vé- o realismo audacioso da sua mística ("God is ai visible as
zes cínicas. A poesía erótica de Donne é a mais original Green"); daí as suas excursoes para a especulado pitagó-
do mundo, e ai está o seu papel na historia da poesía in- rica, no Progress oí the Soul, e daí o cepticismo amargo de
glesa: foi ele quem acabou com o petrarquismo da Renas- Donne, reverso da sua obsessáo da morte.
cenga. Substituiu-o por urna mistura de neoplatonismo A poesia religiosa de Donne nao podia 1er compre-
exaltado e naturalismo sexual, representando assim urna endida na época de indiferentismo religioso do século
nova definicao do Barroco. As expressoes convencionais X V I I I , nem na época de liberalismo do século X I X . Per-
nao prestavam para essa poesía nova. Donne é revolucio- tence á corrente anglo-católica que prevaleceu na Igreja
nario: substituí as usuais alusoes mitológicas por con- anglicana até á revolucáo dos puritanos; Donne é poeta
e s t í / origináis, as comparagoes clássicas por metáforas jacobino-carolino, contemporáneo dos Bispos Andrewes e
inéditas, encontradas em todos os setores da sua erudi- Laúd. A Hymn to God the Father, A Hymn to Christ, at
5S0 enciclopédica, os sentimentos meigos por trocadilhos 4he Authors last going into Germany, Goodfriday 1613,
espirituosos, o estilo harmonioso por desigualdades veemen- Riding Westward, Lítame, sao poesías litúrgicas. Con-
tes, a cadencia musical por ásperos ritmos que aborrece- tudo, Donne fala, as mais das vézes, na primeira pessoa.
ram aos ouvidos de Samuel Johnson. Porque a t r a d i s i o Pertence a urna Igreja que ainda cultiva a liturgia, e Isto
poética que Donne pretendeu destruir é a de Spenser, lhe fornece formas poéticas; mas o que o preocupa é a sal-
Sidney e Shakespeare; e será a de Milton, Pope, Words- vadlo da sua própria pessoa, da mesma que se preocupara
worth, Shelley, Keats e Tennyson. Só Robert Browning com os prazeres da própria carne; é mesmo egoísmo reli-
revela, ás vézes, a qualidade dramática da linguagem de gioso; e trata-se outra vez só da carne, da carne subme-
Donne, e só a poesía inglesa moderna — Yeats, T . S. Eliot, tida á morte e á decomposicáo. Os Holy Sonnets expri-
Auden, Spender — Ihe acompanha os processos poéticos. mem só um medo —
Só como poeta barroco Donne pode ser compreendido,
abstraindo-se de todos os cánones clássicos. Os naturalis- "Thou hast made me, And shall thy W o r k decay? —
mos de Donne —• aquilo a que Eliot chama o seu "estilo co-
loquial" — sao expressoes das suas experiencias ambiguas; e só urna esperanza:
a sua poesia nao é fruto de sentimentos románticos, mas de
" . . . And death shall be no more; death, thou shalt die."
urna inteligencia vivíssima que transforma tudo em ima-
gens; e essas imagens sao as mais surpreendentes, porque Donne está cheio de angustias fúnebres, como Miguel An-
Donne é homem de transigió entre duas épocas, imbuido gelo, e cheio de esperarlas de imortalidade e receios do
de escolástica e erudi$ao medievais, e fortemente impreg- céptico, como Unamuno.
nado dos conceitos da nova geografía, astronomía e filo- Afirmam que Donne foi o maior orador sacro do seu
tempo; e os seus sermoes continuam a impressionar o lei-
962 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 963

tor moderno. A prosa de Donne é tao artificial como a a um romance moderno que emocionou todo o mundo.
sua poesia; e realiza o mesmo milagre de urna grande in- Donne é hoje o poeta mais célebre da literatura inglesa.
teligencia que fala diretamente ao cora$ao, falando sem- Contudo, aquelas semelhangas desapareceráo, e a moda de
pre da mesma coisa: a mor te. A eloqüéncia de Donne é Donne passará, também por outro motivo: Donne é ini-
inesgotável quando se trata da m o r t e : "God is the L o r d of mitável. A sua grandeza toda pessoal estragaría a poesia
Hosts, and he can proceed b y martial law: he can hang inglesa — os "donnianos" modernos já se esquecem, as
thee upon the next tree"; " E n t e r into thy grave, t h y me- vézes, de que a imagem de Donne nao era o f im e sim o meio
taphorical, t h y quotidian grave, thy bed"; "This death
de expressáo do seu espirito sui generis. Já comegam a
after burial, this dissolution after dissolution, this death
"out-Donne the Donne". E ' preciso acabar com certos
of corruption and putrefaction, of vermiculation and
exageros. Donne nao é um poeta universal nem um poeta-
incineration". Grierson observou bem que a advertencia
grande homem; nao é um Shakespeare nem um Milton.
fúnebre é o lugar-comum mais freqüente da oratoria sacra
Nao é o maior poeta inglés; mas é o poeta inglés mais
há quase dois mil anos; nos sermoes de Donne, o mesmo
lugar-comum é novo e poderoso como urna fuga de órgáo original, mais extraordinario. E isso é grande coisa.
de Bach, porque as imagens retóricas dessa eloqüéncia O próprio século X V I I nao gira inteiramente em
saem das profundidades de urna alma angustiada. A morte torno de Donne. Ele parece o criador da "metaphysical
foi a maior preocupagao désse grande egoista e, ao mesmo poetry", mas os "metaphysical poets" sao personalidades
tempo, a sua grande esperan$a de reunir-se aos outros independentes, assím como os prosadores — Burton, Jeremy
numa grande comunidad e, maior do que a dos vivos, e na Taylor, Thomas Browne — que escrevem "metaphysical
qual desaparecerlo as torturas da carne e da solidáo hu- prose". Os temas sao, em grande parte, os meamos; é o
mana. "No man is an Iland, intire of it selfe; every man mesmo espirito que os enforma; mas as realizacoes sao táo
is a peece of the Continent, a part of the m a i n e . . . any pessoais como as do mestre.
mans death diminishes me, because I am involved in Man-
Thomas Browne (BK) é — quanto ao estilo — um Donne
kinde; And therefore never send to Know for whom the
bell tolls; It tolls for thee." leigo. Um médico e d e n t i s t a , fazendo excursoes pelos
campos para colecionar borboletas e plantas, estudar os
Os sermoes de Donne, nos quais o poeta para poucos vestigios da populagao pré-histórica das ilhas británicas,
se dirigía á comunidade dos fiéis, representam na sua obra
o papel das Soledades na obra de Góngora: "historia sa- 98) Thomas Browne, 1605-1682.
cra" em vez de "historia ideal"; mas o motivo é o mesmo: Religio Medid (1642); Pseudodoxia Epidémica (1646); Hydriota-
phia. Urne Buriall (1658); The Garden of Cyrus (16S8).
procurar fundamentos permanentes de urna civilizagáo de EdigSo por G. Keynes, 6 vols., London, 1928/1031.
élite, orgulhosa e angustiada. O nosso tempo, ligado ao L. Stephen: "Slr Thomas Browne". (In: Tours in a Library, vol.
século X V I I I por afinidades de mentalidade e analogías I, 2.a ed. London, 1892.)
E. Gosse: Sir Thomas Browne. London, 1905.
de situasáo social, talvez seja capaz de compreender os L. Sthephen: Sir Thomas Browne. (In: Hours in a Library, vol.
dois grandes poetas melhor do que os próprios contempo- London, 1922.)
ráneos. Sabe-se que aquelas palavras sacras do poeta in- O. Leroy: Le Chevalier Thomas Browne. Paris, 1931.
E. S. Merton: Science and Imaginatlon in Sir Thomas Browne.
glés, esquecido durante tres séculos, serviram de epígrafe
Oxford, 1949.
964 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 965

os seus cemitérios e cerámicas, urnas e ossos. Conversan- nebres do próprio Donne: "In vain do individuáis hope for
do e discutindo com os camponeses, pretende convencé-los immortality, or any patent from oblivion, in preservations
do absurdo das suas superstigoes populares, mas em com- below the Moon Pyramides, arches, obelisks, were but
pensagáo comunica-lhes outras, as superstigoes científicas the irregularities of vainglory, and wild enormities of
do seu tempo. Browne entende de zoología e mineralogía, ancient m a g n a n i m i t i e s . . . T h e greater part must be con-
astronomía e historia. Nao acredita que o pelicano sacri- t e n t to be as though they had not been, to be found i n
fique o seu sangue pelos filhos, nem que o cristal de rocha the Register of God, not ¡n the Record of Man". Mas
seja agua condensada, nem que a lúa seja urna face hu- nenhuma citagáo pode dar idéia da magnificencia musical
mana, nem que os druidas tenham sido feiticeiros. Mas désses períodos, o "sensible fit of that harmony which
acredita na existencia do licorne, na possibilidade de trans- intellectually sounds in the ears of God" como a música
formar chumbo em ouro, ñas conjungoes dos astros e ñas das esferas, na qual o médico Sir Thomas Browne acre-
bruxas. Eis o tema da sua Pseudoxia Epidémica. Browne ditava. "Intellectually" é boa definigáo do seu estilo, mo-
escreveu um livro, The Garden of Cyrus, sobre as qua- delado artificialmente, de harmonía com os modelos lati-
lidades naturais e místicas do pentagrama que ele en- nos. E nao convém acentuar demais a solenidade désse es-
controu, como um monomaniaco, ñas constelagoes, na tilo; Saintsbury acertou bem ao observar a freqüéncia de
formagáo das montanhas e na geografía subterránea do trocadilhos humorísticos e alusoes engenhosas. O capítulo
Inferno. É cristao, filho fiel da Igreja anglicana, obser- V do Urn Burial é, em prosa, a maior ode em língua in-
vando-lhe os ritos e defendendo-lhe os dogmas. Mas o glesa; mas no meio dos períodos que parecem majestosas
autor da Religio medid é, ao mesmo tempo, livre-pen- fugas bachianas, nao falta o humorismo sutil do — "What
sador sui generis e quase contra vontade, porque encon- Song the Syrens s a n g . . . though puzzling q u e s t i o n s . . . " .
tra boas coisas em todas as religioes, no catolicismo, Browne é um "metaphysical poet" em prosa. Mas ésse la-
ñas seitas, e até entre judeus e maometanos, de modo tinismo é mais urna das suas superstigoes. Os romanos,
que urna super-religiáo tolerante seria o seu ideal de mé- até aqueles cujos corpos foram incinerados em Norfolk,
dico e cientista barroco, ao qual todas as coisas razoáveis nao tinham a menor idéia do mundo noturno de Browne,
se apresentam como objetos de meditagao religiosa. E m inimigo da "Diuturnity, a dream and folly of expectation".
Norfolk, os trabalhadores rurais descobrem urnas fune- Ésse médico é urna maravilha do Barroco; contra todas as
rarias, pré-históricas ou romanas; Browne examina-as da suas predigoes, imortalizou-se ele como o prosador mais
maneira mais razoável, estuda o processo de incineragao impressionante do século. O seu monumento nao é da es-
dos cadáveres — e logo lhe ocorrem todos os modos, co- pecie dos "Pyramides, arches, obelisks", mas um pequeño
nhecidos na historia, de enterrar ou queimar os mortos, livro, um dos maiores da grande literatura inglesa.
todos os métodos jamáis usados para imortalizar a memo-
ria dos que se foram para sempre; a inutilidade désses es- A tensao enorme que é o ñervo da poesía e prosa de
forgos angustia-lhe a alma, e Browne escreve afinal um Donne nao podía ser mantida indefinidamente. Os seus
sermao de leigo sobre Hydriotaphia, Urn Burial, or a Dis~ sucessores tinham de atenuar a veeméncia das suas ex-
course of the Sepulchral Urns Jately found in Norfolk, pressoes e procurar ilhas de paz no tumulto da guerra ci-
mais retórico e mais emocionante do que os sermoes fú- vil, sobretudo quando eram sacerdotes e bispos da Igreja
anglicana, Igreja da "vía media", da conciliagáo e pacifi-
HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 967
966 OTTO M A R Í A CARPEATJX

cacao. Assim é Jeremy Taylor ( 8 9 ) , o maior orador s a c r o d a e s t i r p e d e D o n n e , e e m m e i o da Exequy, c a n c á o e m o c i o -


depois de Donne. Nos seus sermoes também aparecem n a n t e s o b r e a m o r t e d a sua m u l h e r , a p a r e c e m os v e r s o s —
"dissolution and eternal ashes"; mas o que Taylor r e c o -
" . . . M y Pulse like a soft D r u m
menda aos fiéis é "prayer, the peace of our spirit, t h e
Beats my approach, tells T h e e I come;
stillness of our thoughts, the evenness of recollection, t h e
A n d s l o w h o w e r e m y m a r c h e s be,
seat of meditation, the rest of o u r cares, and the calm of
I shall at last s i t down by Thee."
our tempest". E, entao, o sol d e fora invade a igreja, as
janelas se abrem, e no pulpito aparecem as imagens da — q u e sao d o s m a i s i m p r e s s i o n a n t e s da l í n g u a inglesa:
paisagem inglesa, as estagoes d o ano com as frutas da Poe achou-os terrificantes.
térra e o canto dos pássaros, e o próprio sermao "made a A religiosidade catolicizante m a s anglicana passou de
prosperous flight, and did rise and sing, as if it head lear- Donne para George H e r b e r t ( l c l ) , o único poeta do grupo
ned music and motion from an ángel". Taylor é um g r a n d e " m e t a f í s i c o " q u e s e t o r n o u p o p u l a r , e até m e s m o o p o e t a
poeta em prosa, poeta elisabetano que passou pela escola r e l i g i o s o m a i s p o p u l a r da l i n g u a . E s s a p o p u l a r i d a d e p r e -
de Donne. Coisa semelhante se pode dizer de H e n r y judicou, em nossos dias, a fama do poeta; varios críticos
King ( I 0 °), que chegou á dignidade de bispo de Ossory e o consideraran! como u m " D o n n e para a massa", u m
passou dignamente pelas tempestades da guerra e da época D o n n e a t e n u a d o a p o e t a oficial da I g r e j a a n g l i c a n a . M a s
puritana. Éste poeta raro parece ser o último dos eli- ' a p o p u l a r i d a d e d e H e r b e r t é u m p r o b l e m a : p o r q u e se t r a t a
sabetanos; tem certa afinidade com Campion, mas é me- de u m poeta sutil, d e riqueza espantosa de ritmos e caden-
nos leve; e a sua poesia amorosa dirige-se, naturalmente, cias, p r o c u r a n d o e f e i t o s m u s i c a i s q u e se d i r i a m s i m b o l i s -
só á sua esposa legítima. A sua afinidade com os elisa- t a s ; poeta metafórico como poucos no Barroco, usando
betanos é antes a dos dramaturgos contemporáneos; quan- i m a g e n s d a v i d a d o m é s t i c a , da v i d a d a s p r o f i s s o e s . d o
do a sua Contemplation upon Flowers acaba com as pa- U n i v e r s o i n t e i r o p a r a i l u s t r a r os s e u s s e n t i m e n t o s r e l i g i o -
lavras "and perfume my Death", o leitor se lembra de
J o h n Webster. King é um poeta t e m o e suave; mas é
101) George Herbert, 1593-1633.
The Temple: Sacred Poems and Prívate EjaculatUms (1633);
99) Jeremy Taylor, 1613-1667. A Priest to the Temple (1652).
Holy Living and Holy Dying (1650); A Course of Sermons for all EdlpSea por A. B. Grosart, 3 vols.. London, 1874, e por G. H,
the Sundays of the Year (1651/1653). Palmer, 2.* ed., 3 vols., London, 1920; edicao das poesías por
Edicao por C. P. Edén, 2.» ed., 10 vols., London, 1847/1854. F. C. Hutchlnson, Oxford, 1941.
E. Gosse: Jeremy Taylor. London, 1904. J. J. Daniel: The Life of George Herbert. 3.» ed. London, 1902.
W. J. Brown: Jeremy Taylor. London, 1925. A. G. Hyde: George Herbert and Hit Times. London, 1906.
M. S. Antoine: The Rhetoric of Jeremy Taylor. Washington, P. E. More: Shelburne Essays. Vol. IV. Prlnceton, 1906.
1946. A. Clutton Borck: Afore Essays on Books. London, 1921.
C. J. Stranks: 77te Life and Writings of Jeremy Taylor. Lon- O. H. White: "George Herbert and The Temple". (In: The Me-
don, 1952. taphysical Poets. A Study in Religious Experience. New York,
1936.)
100) Henry King, 1592-1669. L. C. Knlghts: Explorations. London, 1946.
Poems (1657). M. Bottrall: George Herbert. London, 1954.
Edicao por J. Sparrow, London, 1925. J. H. Summers: George Herbert, hts Religión and Art. Lon-
Sele?ao por O. Salntsbury ln: Minor Caroline Poets, vol. m . don, 1954.
Oxford, 1921.
968 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 969

•os; por meio de metáforas violentas, as vézes d e man a cúpula da igreja, e sobretudo o altar, chegando a dispor
gósto, Herbert reúne o mais sacro e o mais profano, d e modo tipográficamente as poesías em forma de altares e de va-
que a palavra "metaphysical" no sentido pejorativo de sos sacros, antecipando processos poéticos de Apollinaire,
Johnson a nenhum outro poeta se aplica melhor do que nos Calligrammes.
a George Herbert. Contudo, The Temple é o breviario poé- Herbert é poeta de religiosidade muito pessoal, pro-
tico da Igreja anglicana. testante, rezando numa igreja católica. É o poeta da "via
Herbert veio do mundo, da corte. Só nos últimos anos media", da Igreja anglicana. Nesse caminho, chegou a ex-
de urna vida distraída e elegante se converteu, tornando-se primir os sentimentos íntimos de todos os seus irmaos
vi gario de aldeia. Foi urna conversáo sincera, levando a naquela Igreja, dos cultos e dos simples, criando poemas
urna nova vida de asceta e até de santo. Mas Herbert como The Quip, Life, The Collar, Love, The Pulley, Dis-
nao esqueceu o mundo que renegara. No seu maior poema, cipline, que penetraram em todos os coragoes e na memo-
The Sacrífice, revela-se a luta íntima entre a religiosidade ria da nacáo. Enfim, Herbert perdeu quase a personalidade,
intensa e os sentidos revoltados, a mesma ambigüidade psi- cantando como um coro de fiéis
cológica que em Donne e em Herbert foi fonte da grande
poesia. A luta decidiu-se em favor de Deus, mas sem sa- "who plainly say: My God, My King!"
crificio completo do m u n d o :
Tornou-se um santo no coro celeste. Nos versos do Quip,
" . . . •—• Both heav'n and earth em que o poeta já nao quer responder as tentagoes de Be-
Paid me my wagens in a world of mirth." leza, Mundo, Gloria e Genio, afirmando:
Sacrificar tudo a Deus, isto significou para H e r b e r t : de-
"But thou shalt answer, Lord, for me." —
positar no altar de Deus todas as riquezas déste mundo.
As coisas mais profanas transfiguraram-se em santidade e nestes versos há algo da harmonía do "Paraíso", de Dante.
devogáo: Mas é um paraíso em que todo o mundo entra e se senta,
"You must sit down, says Love, and taste my meat. como numa igreja de aldeia inglesa.
So I did sit and eat." A segunda geragáo dos "metaphysical poeta" é dife-
A igreja em que Herbert oficiou encheu-se das flores, rente. As tentagoes e a ambigüidade como que desapare-
do ouro, das pedras preciosas das suas imagens, quase cen!; na verdade, escondem-se sob urna floresta densa de
como urna igreja católica. Mas nao era bem isso. A Igreja imagens barrocas ou transfiguram-se em visoes místicas.
á qual Herbert serviu nao é, decerto, a invisível Igreja dos J á nao se trata de angustias vagas* e sim de experiencias
protestantes, e sim a Igreja concreta dos "católicos", no reais. Monarquía e Igreja caíram por térra, e os fiéis fogem
sentido ampio da palavra; mas nao a Igreja "estrangeira" para os bracos largamente abertos da Igreja de Roma, ou
de Roma, e sim a "anglo-católica" da Inglaterra, a Igreja entao, através da solidáo escura, para a uniáo mística. O
anglicana a que Herbert apostrofou: primeiro caminho foi escolhido por Richard Crashaw ( , 0 2 ) .

"Beauty in Thee takes up her place." 102) Richard Crashaw, 1612-1649.


Steps to the Temple (1646).
K o poeta da liturgia inglesa, do "service" das rubricas, Edicñes por A. B. Grosart, 2.a ed., 2 vola., London, 1887/1888, e
das grandes festas; canta as portas, as naves, as janelas por L. C. Martin, Oxford, 1927.
970 OTTO MARÍA CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 971

É o único católico romano entre os "metaphysical poets" poema profano seu, como "Music's Duel", tem, segundo o
c, muito lógicamente, o mais barroco entre éles. O cónego elogio de Swinburne, a verve e a sublimidade de urna
inglés da Chiesa della Casa Santa, em Loreto, pertence poesia de Shelley.
ao Barroco católico, contra-reformista. Traduziu para o
inglés urna parte da Strage degli Innocenti, de Marino; Henry Vaughan (1011) parece, á primeira vista, um ir-
é mesmo marinista. Mas está longe da frivolidade e do máo poético de Crashaw. O famoso verso inicial da "Ascen-
oportunismo artístico do italiano. O simbolismo obscuro sión H y m n " —
das suas imagens, as elipses forcadas da sua sintaxe, a
rapidez vertiginosa dos seus metros nao provém de am- "They all gone into the world of light" —
bigüidades e angustias. Crashaw já se senté no céu, já
poderia fazer parte daquelas visoes extáticas. Mas Vau-
vé a gloria de Deus e dos seus santos, e a sua poesía, por
ghan, solitario, quase eremita, natureza meditativa, é mís-
mais engenhosa que seja, confessa-se incapaz de exprimir
tico de outra estirpe. "God's silent, searching flight" é
o inefável, os "intolerable joys" que "Angels cannot tell".
um verso menos famoso, porém o mais característico. As
Em éxtase, Crashaw vé
visoes poéticas de Vaughan sao mais sentimentais e, ao
mesmo tempo, mais intelectuais do que as de Crashaw. " T h e
" . . . . the sacred flames Retreat", é, em formas barrocas, expressáo de urna atitude
Of thousand souls ", típica da religiosidade inglesa: a infancia ingenua como
e entáo S. Teresa, á qual dedicou dois hinos admira veis. porta do reino de D e u s :
é o seu guia —
"Happy those early days when I
"Whereso'er He set His white Shined in my ángel i n f a n c y . . . "
Steps, walk with Him those ways of light".
Sem as formas de expressáo barrocas, Wordsworth apre-
Quando Crashaw desperta das suas visóes, logo volta á ex- sentará o mesmo pensamento na "Ode on Intimations of
pressáo marinista. O famoso poema "The Weeper", sobre Immortality from Recollection of Early Childhood", e
as lágrimas de Madalena, é artificial e engenhoso, embora todo inglés saber-lhe-á de cor os versos. Vaughan é t í o
cheio de versos de beleza sugestiva. Crashaw é urna das inglés como Herbert, talvez mais intenso, mais harmonioso;
figuras mais curiosas da poesia inglesa; mas nao está in- mas, em comparacao, é um poeta menor. Nao é mais pes-
teiramente fora da tradicao. Descende de Donne; e um
103) Henry Vaughan. 1622-1695.
E. Gosse: Seventeenth Century Studies. London, 1897. Silex Scintillans, or Sacred Poems and Pious Ejaculattons (1650-
F. E. Hutchinson: (in: The Cambridge History oj English Li- 1655).
terature, vol. VEt, 2.a ed. Cambridge, 1920). Edicáo por L. C. Martin, 2 vols., Oxford, 1914.
M. Praz: Secentlsmo e marinismo in Inghilterra. Firenze. 1925. E. Blunden: On the Poems of Henry Vaughan. London, 1927.
R. C. Wallerstein: Richard Crashaw. A Study in Style and P. E. More: New Shelburne Essays. Vol. I. Prlnceton, 1928.
Poetic Development. Madlson, 1935. F. E. Hutchinson: Henry Vaughan. A Ll/e and Interpretation.
A. Warren: Richard Crashaw, a Study in Barogue Sensibillty. Oxford, 1947.
Baton Rouge, 1939. S. L. Bethell: "The Poetry of Henry Vaugham, Sllurlst". (In: The
M. Praz: Richard Crashaw. Brescie, 1945. Cultural Revolution o] the Seventeenth Century. London, 1951.)
972 Orro MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 973

•oal, porém mais individual, senté menos "cum Ecclesia". déste século. O aparente artificialismo dessa poesia nao
Certas expressoes suas lembram as metáforas audaciosas de é, no fundo, maior que o dos poetas petrarquistas:
Donne: a maior parte dos sonetos ingleses e espanhóis do século
X V I , inclusive os de Shakespeare, nao parecerá menos ar-
"I saw Eternity the other night tificial ou menos complicada a um leitor moderno despre-
Like a great ring of puré and endless light." venido, acostumado as expressoes mais simples da poesia
romántica e pós-romántica. Com efeito, já sabemos (10«-A)
A linguagem parece científica, e, com efeito, H e n r y
que os processos poéticos, nos "metaphysicals" e nos renas-
Vaughan estava influenciado pelo ocultismo e rosicrucia-
centistas, sao fundamente parecidos, senáo idénticos. Mas
nismo do seu irmao Thomas Vaughan e pelos conceitos de
o mesmo raciocinio também vale para a mentalidade re-
Jacob Boehme. Muitas das suas poesías, que parecíam infe-
ligiosa désses poetas barrocos. Certos pormenores de sua
riores ou desiguais á crítica puramente estética, ressentem-
devocáo só pareciam originalíssimos aos prímeiroi intér-
se désse misticismo obscuro. Nos seus momentos lúcidos,
pretes modernos porque estes ignoravam a origem medie-
Vaughan é feliz e grande como aquéle outro grande ocul-
val dos respectivos conceitos. Um Donne, um Herbert sao
tista e maior poeta da literatura inglesa, William Blake.
sacerdotes nutridos de teología escolástica e de religíosi-
O último dos prosadores "metafísicos": eis como foi dade católica. Depois de William Empson ter interpretado
considerado Traherne ( , M ) até há poucos decenios, como psicanaliticamente certas imagens de Herbert, como resi-
um sucessor inspirado da arte do sermao de Andrewes e duos de conflitos nao resolvidos em sua alma, pode Ro-
Donne; até Dobell descobrir, em 1903, as suas poesías iné- semond Tuve demonstrar ( I ( ) « - B ) q U e essas imagens sao
ditas. Na poesia, Traherne também é um grande retórico, "locí", isto é, lugares-comuns da devocao e da sermonís-
com a eloqüéncia veemente do prosador Donne; mas é tica medievais. Vista assim, a poesia barroca seria um fe-
mais místico, está mais perto de Vaughan; e a sua religio- nómeno "retrógrado".
sidad e é diferente; é, apesar da erudicáo notável do poeta,
ingenua como a dos primeiros místicos do século X V I I I . Foi o contrario o caminho da prosa barroca: dos ar-
Em certo sentido, Traherne continua a tradigáo poética tificios renascentistas para a simplicidade moderna ( l 0 4 -°).
de Quarles, que acabará na cancáo eclesiástica popular dos O ponto de partida é o período ciceroniano, ideal da Re-
metodistas. Em outro sentido, revela, mais urna vez, o nascenga; depois, o estilo torna-se conciso e conceituoso,
equilibrio da "via media": é um "místico alegre" de men- seguindo os modelos de Séneca e T á c i t o ; enfim, vence,
talidade quase medieval. Mas esta nao é só o privilegio de através do "genus humile", o estilo conciso mas transpa-
Traherne. rente dos "classicistas barrocos" como Pascal, estilo que
será o da prosa moderna. Na prosa inglesa, depois das
A "poesia metafísica" nao é t í o absolutamente inédita magnificencias e extravagancias de Donne, Taylor e
como parecía aos seus primeiros admiradores exaltados Browne — embora nestes também apareca sempre o ele-
104) Thomas Traherne, c. 1634-1674. 104A) Cf. nota 89.
Primeira edigáo das poesías por B. Dobell, 1903.
Edls&o por O. J. Wade, London, 1932. 104B) R. Tuve: A Reading of George Herbert. London, 1952.
O. E. willct: Traherne. An Essay. London, 1919. 104C) M. W. Croll: "The Baroque Btyle ln Prose". (In: Studies in En-
O. J. Wade: Thomas Traherne. Princeton, 1944. glish Philology. Miscellany for F. Klaeber. Mlnneapolis, 1929.)

974 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 975

mentó coloquial — o "genus h u m i l e " já está perfectamente de Deus que ele conheceu pessoalmente, e a escolha dos
encarnado num escritor de tanta simplicidade como W a l t o n . nomes é significativa: Donne, que é para Walton mais o
Izaak Walton ( u ! ) . que foi paroquiano de Donne e mestre do pulpito de St. Paul's do que o poeta; Wotton,
sobreviveu a Traherne, é o comentarista em prosa do mo- o "cavalier" converso; Hooker, o teórico erudito da "vía
vimento "metafísico", e essa defini§ao pode, á primeira media"; George Herbert, o poeta da "via media"; e o suave
vista, parecer esquisita ao conhecedor daquela poesía; por- bispo Robert Sanderson. A escolha dos biografados ca-
que Walton é escritor da maior simplicidade, sem "con- racteriza o biógrafo. Walton é um homem devoto, mas sem
cetti" barrocos nem sublimidades místicas; nem é sacer- bigotismo; o seu cristianismo é sereno e alegre, o da "via
dote erudito nem aristócrata devasso ou converso, e sim media", e ésse otimismo divino ilumina-lhe a vida inteira.
um modesto comerciante da City de Londres, filho devoto Em certo sentido é Walton o último dos elisabetanos, sabe
da Igreja, divertindo-se aos domingos com excurs5es ino- rir como a "Merry Oíd England", mas é menos tumultuoso.
fensivas aos campos. Em vez de angustia profunda, revela O seu riso é antes um sorriso, e com o mesmo sorriso lhe
paixao pelo esporte preferido do inglés medio, a pesca responde a paisagem inglesa, prados, colinas e os riachos
á linha, á qual dedicou o tratado mais completo que existe cheios de peixes. The Compleat Angler, diálogo entre Pis-
dessa arte, The Compleat Angler. Contudo, essa ocupagao cator e Venator sobre a técnica e as vantagens essenciais
pacífica desempenhou na vida de Walton urna funcáo vital: da pesca á linha, já foi chamado poema pastoril em prosa,
vida de 90 anos; durante os reinados de Isabel, Jaime e é o mais belo poema pastoril da língua inglesa, certamente
I e Carlos I, revolucáo e guerra civil, ditadura do Parla- o mais completo: O título indica, modestamente, só esta
mento e ditadura de Cromwell, Restauracáo monárquica. última qualidade.
A s excursoes de Walton pelos campos parecem-se, as
Apesar da sua simplicidade, como escritor e como ho-
vézes, com fugas; trata-se de um evasionista como os mís-
mem, Walton é um autor consciente, tao consciente da
ticos Crashaw e Vaughan, assim como foram evasionistas,
sua arte esportiva como da sua arte da prosa. "As no man
embora diferentes, os "cavalier poets", mas apenas de ou-
is born an artist, so no man is born an angler. I t is an
tra estirpe, menos nobre. O comentario da sua longa vida
art worthy of the knowledge and art of a wise man. It
é constituido pelas biografias que fez dos grandes homens
is somewhat like poetry — men are to be born so." Walton
é pescador e poeta. Um poeta do silencio ñas longas ho-
105) Izaak Walton. 1593-1683. ras de espera paciente do peixe, algo semelhante ao si-
Life of Dr. Donne (1640); Life of Sir Henry Wotton (1651); The lencio místico dos misticos. "God never did make a more
Compleat Angler (1653); Life of Dr. Hooker (1665); Life of Geor- calm, quiet innocent recreation than- angling." Urna mis-
ge Herbert (1670); Life of Bishop Sanderson (1678).
Edlcao das obras completas por S. L. Keynes, London, 1929. tica na qual pode mergulhar impunemente o comerciante
R. B. Maratón: Walton and Some Earlter Writers on Fish and mais razoável da City de Londres. Walton também é "a
Fishing. London, 1894.
wise man", u m sabio. Dos místicos e eruditos da "meta-
S. Martin: Izaak Walton and his Friends. London, 1903.
D. A. Stauífer: English Biography befare 1700. Cambridge, Mass., physical poetry" distingue-o principalmente a sua origem
1930. burguesa, e éste ponto é de importancia capital. Sem ge-
Edi?áo do Compleat Angler por A. Lang., London, 1898. (Cora neralizar, e limitando-nos ao século X V I I , podemos dizer: o
introducao.)
EdicSo das Ufes por O. Salntsbury, London, 1927. (Com In- Barroco dos burgueses torna-se classicismo; e Walton já
troducao.) é um clássico.

976 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 977

Robert Herrick ( 1 0 í ) é outro que recebeu o apelido de contrario, as Lesbias, Oenones, Celias, Corinas pululam no
"o último elisabetano"; e á sua poesía nao faltam influ- catálogo do devoto vigário Herrick, de modo que ele mes-
encias do renascimentismo romántico de Spenser. Mas, do mo acha bom defender-se: "You say I love n o t . . . " Na
ponto de vista histórico, a definicao de Herrick como "me- verdade, Herrick nao é poeta própriamente erótico — nem
taphysical Spenser" nao é exata. Herrick revela afinida- clássico nem barroco — e sim poeta anacreóntico, quer
des estilísticas com a poesia elisabetana: o seu "Cherrie- dizer, classicista. O ambiente da sua poesia amorosa é a
Ripe, Ripe, Ripe, I cry" é um eco de Campion, e a famosís- paisagem inglesa —
sima poesia "To the Virgins, to make much of T i m e " —
"I sing of brooks, of blossoms, birds and bowers,
"Gather ye rosebuds while ye may, Of April, May, of J u n e and J u l y - f l o w e r a . . . " —
Oíd Time is still a-flying:
And this same flower that smiles to day e nao se cansa de dirigir d e c l a r a r e s de amor "To the Vio-
To-morrow will be dying." — léis", "To the Daffodils", " T o the Blossonw", "To the Dai-
sies", "To the Meadows". Mas é o amor da natureza por par-
é a anglicizacao definitiva do "Carpe diem" horaciano, lu- te de um veranista que ignora os aspectos menos agradáveis
gar-comum poético da Renascenca — longe das brutais da vida r u r a l ; e, quando a guerra civil forcou o poeta a viver
"persuasions to love" de Carew. Contudo, Herrick nao é continuamente nos campos, comecou a queixar-se. Tudo i aso
um clássico, é um classicista. E ' representante, e um dos nao quer dizer que Herrick seja insincero; nao se cria com
representantes mais nobres, da oposicao classicista que insinceridade urna poesia táo etérea, tao leve no sentido
acompanha em toda a parte o marinismo, o gongorismo, o mais alto da palavra. Apenas, a poesia de Herrick é arte
preciosismo. Como todos os classicistas antigongoristas do sómente, arte classicista. Por isso, o sacerdote anglicano
século X V I I , Herrick nao pode fugir integramente ao es- nao encontrou a mínima dificuldade íntima em reunir ero-
tilo dominante da época: a sua poesia erótica, epigramá- tismo e devogáo — o que parece, mas só parece "metaphy-
ticamente condensada, é rica em "concetti". Contudo, nao sical poetry". As suas poesias religiosas, os Noble Num-
é um "metaphysical". O seu amor, assunto permanente da bers, ressentem-se, mais do que as anacreónticas, de falta
sua poesia, nao é sutil nem conhece complicacoes psicoló- de profundidade. A "Litany to the Holy Spirit" e "A Than-
gicas; é admiracao física ("When as in silks my Julia ksgiving to God for His House" sao oragoes poéticas muito
goes"), afeicao cordialíssima ("A Meditation for his Mis- bonitas, até muito sinceras, que nao vio edificar nem con-
tress") e íeérie romántica ("The Night-piece: To J u l i a " ) . solar ninguém. Enquanto nao se conhecfa ou se desprezava
Nao se trata, de modo algum, sempre da mesma J u l i a ; ao a "metaphysical poetry", Herrick foi considerado como
um dos maiores poetas de língua inglesa. Hoje, a critica
106) Robert Herrick, 1591-1674. está mais inclinada a negar-lhe o titulo de poeta, chaman-
Hesperides. and Noble Numbers (1648). do-lhe um dos maiores artistas da poesia inglesa. Mas a
Edlgóes por F. W. Moorman, 2.* ed., Oxford, 1921, e por L. C. sua importancia histórica permanece incontestável. Em-
Martin, Oxford, 1956.
F. W. Moorman: Robert Herrick. A Biographical and Critical bora membro da Igreja Oficial, Herrick nao é "cavalier"
Study. London, 1910. nem "metaphysical", e sim classicista, porque é burgués
F. Delattre: Robert Herrick. Paris, 1912. • filho de burgueses, como o seu contemporáneo Milton.
L. Mandel: Robert Herrick, the Last Elizabethan. Chicago, 1927.
978 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 979

Depois de Shakespeare, é o Paraclise Lost a maior obra desrespeitaram o puritano e republicano; e no cornejo
da literatura inglesa do século X V I I . Sendo éste século do século X V I I I a sua poesia renascentista já nao foi com-
o maior da historia literaria inglesa, aquela afirmagio de- preendida; Samuel J o h n s o n ainda lhe censurou a arte do
fine o lugar de John Milton ( , 0 T ) : é o maior poeta inglés verso, preferindo Cowley. Mas nem mesmo os inimigos
depois de Shakespeare. Mesmo antes de falar das tenta- mais apaixonados de Milton aprovariam hoje ésse dispa-
tivas modernas para destroná-lo, convém observar que rate. O Paradise Lost é um monumento. Urna epopéia pelo
Milton nem sempre foi apreciado assim. Os contemporá- menos igual a Gerusalemme liberata e a Os Lusíadas, urna
neos da sua velhice, os poetas e escritores da Restauracáo, das poucas epopéias q u e ainda se léem com admiracáo sin-
cera. O assunto é, segundo conceitos de um poeta cristlo
107) John Milton. 1608-1647. e de leitores cristáos, o mais importante de todos: a cria-
Poems. both English and Latín (1645); Paradise Lost (1667. gao do homem, a queda de Adáo e Eva, e a expulsáo do
1674); Paradise Regaind (1671) ¡ Arcades (1632); Comus (1634);
Samson Agonistes (1671). Paraíso, e o panorama visionario da historia humana intei-
Of Reformatlon Touching Church — Discipline in England (1641); ra, com a visao da Redengáo nos conf ins do horizonte histó-
Of Prelatical Episcopacy (1641); The Reason of Church-go- rico. Mas o Paradise Lost distingue-se de todas as outras
vernment urg'd against Prelaty (1642); Doctrine and Discipline
o/ Divorce (1643); On Education (1644); AreopagiUca (1644); epopéias por mais uma qualidade especial: a torga dramá-
Eikonoklastes (1649); Joannis Matoni Angli pro populo Anglicano tica da caracterizagao das personagens; sobretudo o Sata
De/ensio (1651); Defensio Secunda (1654); De Doctrina Chris- *de Milton é um d o s maiores personagens dramáticos
tiana (c. 1660. publ. 1825).
Edlcao dos Obras completas por J. Mltíord, 8 vols., London, 1851, da literatura universal. E essas figuras sobrenaturais, de
e por F. A. Patterson, 18 vols.. New York, 1930/1936. tamanho sobre-humano, movimentam-se em paisagens ines-
Edicóes das obras poéticas por W. A. Wright, Cambridge, 1903, quecíveis — céu, inferno, paraíso terrestre — transfigu-
e por A. Raleigb, London, 1905.
ragóes impressionantes da paisagem inglesa. Em geral,
D. Masson: The Lije of Milton. 7 vols. London, 1859/1894.
Stopíord A. Brooke: Milton. London, 1879. pode-se afirmar que o poema está á altura do assunto. Mil-
J. H. Masterman: The Age of Milton. London, 1897. ton é o Dante do p r o t e s t a n t i s m o ; e o público ledor dos sé-
A. Raleigb.: Milton. 2.* ed. London, 1913. culos X V I I I e XIX apreciou Milton assim, conseguindo
S. B. Liljegren: Studies in Milton. Lund, 1919.
G. Saintsbury (in: The Cambridge History o! English Litera- vencer a hostilidade d a crítica. Mas será que a grandeza
ture, vol. VII, 2.» ed. Cambridge. 1920). dantesca do poeta e da sua obra foi realmente compreen-
D. Saurat: La pensée de Milton. París, 1920. (Trad. ingl. 2.» ed. dida? Nao teria sido ele, porventura, reduzido ao nivel do
London, 1944.)
J. 8. Smart: The Sonnets of Milton. Glasgow, 1921. seu público, leitores burgueses e puritanos? A evolugao da
W. F. Shclnner: Antike, Renaissance und Puritanismus. Muen- gloria do poeta corresponde á protestantizagao mais ou me-
cl.cn. 1924. nos completa da I g r e j a anglicana no século X V I I , e as
E. M. W. Tlllyard: Milton. London, 1930. Vitorias sucessivas d a burguesía, particularmente ao abur-
L. Pearsall Smith: Milton and His Modern Critice. London. 1942.
T. 8. Eliot: Milton. London. 1947. guesamento da l i t e r a t u r a . Milton tornou-se o poeta da
E. M. W. Tlllyard: Studies in Müton. London, 1951. familia crista; o Paradise Lost é dado de presente aos
A. Steln: Answerable Style. Essays on Paradise Lost. Minnea- colegiáis, por ocasiao da confirmagao, ficando na estante,
polis, 1953.
K. Muir: Müton. London, 1955. ao lado da Biblia. M i l t o n passa, ou passava, por muitíssimo
A. E. Barker: Milton and the Puritan Dilemma. Toronto, 1956. ortodoxo. Só q u a n d o em 1825 foi descoberto um lívro seu
R. M. Adama: Ikon. John Milton and the Modern Critics. Ithaca,
1956.
978 OTTO M A F I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 979

Depois de Shakespeare, é o Paradise Lost a maior obra desrespeitaram o puritano e republicano; e no coméco
da literatura inglesa do século X V I I . Sendo éste século do século X V I I I a sua poesía renascentista já nao foi com-
o maior da historia literaria inglesa, aquela afirmagao de- preendida; Samuel Johnson ainda lhe censurou a arte do
fine o lugar de John Milton ( , 0 T ) : é o maior poeta inglés verso, preferindo Cowley. Mas nem mesmo os inimigos
depois de Shakespeare. Mesmo antes de falar das tenta- mais apaixonados de Milton aprovariam hoje ésse dispa-
tivas modernas para destroná-lo, convém observar que rate. O Paradise Lost é um monumento. Urna epopéia pelo
Milton nem sempre foi apreciado assim. Os contemporá- menos igual á Gerusalemme liberata e a Os Lusiadas, urna
neos da sua velhice, os poetas e escritores da Restauragao, das poucas epopéias que ainda se léem com admiracao sin-
cera. O assunto é, segundo conceitoi de um poeta cristao
107) John Milton, 1608-1647. e de leitores cristaos, o mais importante de todos: a cria-
Poems, both English and Latín (1645); Paradise Lost (1687. gao do homem, a queda de Adáo e Eva, e a expulsáo do
1674); Paradise Regain'd (1671); Arcades (1632); Comus (1634);
Samson Agonistes (1671). Paraíso, e o panorama visionario da historia humana intei-
O/ Jte/onnation Touching Cnurch — Discipline in England (1641); ra, com a visao da Redengao nos confins do horizonte histó-
O/ Prelatical Episcopacy (1641); The Reason oí Church-go- rico. Mas o Paradise Lost distingue-se de todas as outras
vernment urg"d against Prelaty (1642); Doctrine and Discipline
o/ Divorce (1643); On Education (1644); Areopagitlca (1644); epopéias por mais urna qualidade especial: a fórga dramá-
Eikonoklastes (1649); Joannis Mütoni Angli pro populo Anglicano tica da caracterizacáo das personagens; sobretudo o Sata
De/ensio (1651); Defensio Secunda (1654); De Doctrina Chris- "de Milton é um dos maiores personagens dramáticos
tiana (c. 1660. publ. 1825).
da literatura universal. E essas figuras sobrenaturais, de
Edlc&o dos Obras completas por J. Mltford, 8 vols., London, 1851,
e por F. A. Patterson, 18 vols., New York, 1930/1936. tamanho sobre-humano, movimentam-se em paisagens ines-
Edicóes das obras poéticas por W. A. Wright, Cambridge, 1903, quecíveis — céu, inferno, paraíso terrestre — transfigu-
e por A. Raleigh, London, 1905. ragoes impressionantes da paisagem inglesa. Em geral,
D. Masson: The Lile o/ Milton. 7 vols. London, 1859/1894.
Stopford A. Brooke: Milton. London, 1879. pode-se afirmar que o poema está á altura do assunto. Mil-
J. H. Masterman: The Age of Milton. London, 1897. ton é o Dante do protestantismo; e o público ledor dos sé-
A. Raleigh: Milton. 2.a ed. London, 1913. culos X V I I I e XIX apreciou Milton assim, conseguindo
S. B. Llljegren: Studies in Milton. Lund, 1919.
G. Salntsbury (ln: The Cambridge History o/ English Litera- vencer a hostilidade da crítica. Mas será que a grandeza
ture, vol. VII, 2.» ed. Cambridge, 1920). dantesca do poeta e da sua obra foi realmente compreen-
D. Saurat: La pensée de Milton. París, 1920. (Trad. ingl. 2.» ed. dida? Nao teria sido ele, porventura, reduzido ao nivel do
London, 1944.) seu público, leitores burgueses e puritanos? A evolugáo da
J. 8. Smart: The Sonnets o/ Milton. Glasgow, 1921.
gloria do poeta corresponde á protestantizagao mais ou me-
W. F. Shclrmer: Antike, Renaissance und Puritanismus. Muen- 1
chen, 1924. nos completa da Igreja anglicana no século X V I I , e ás
E. M. W. Tillyard: Milton. London, 1930. Vitorias sucessivas da burguesía, particularmente ao abur-
L. Pearsall Smith: Milton and His Modern Critice. London, 1942. guesamento da literatura. Milton tornou-se o poeta da
T. S. Eliot: Millón. London, 1947.
E. M. W. Tillyard: Studies in Milton. London, 1951. familia crista; o Paradise Lost é dado de presente aos
A. Stein: Answerable Style. Essays on Paradise Lost. Minnea- colegiáis, por ocasiáo da confirmagáo, ficando na estante,
polls. 1953. ao lado da Biblia. Milton passa, ou passava, por muitissimo
K. Muir: MUton. London, 1955.
A. E. Barker: Müton and the Puritan Dilemma. Toronto, 1956. ortodoxo. Só quando em 1825 foi descoberto um livro seu
R. M. Adama: Ikon. John MUton and the Modern Critics. Ithaca,
1956.
.

980 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 981

inédito, De Doctrina Christiana, cheio de opinioes heréti- aluno da Universidade de Cambridge, estudante na Italia,
cas, nao apenas a respeito do catolicismo, o que se entende panfletista puritano, secretario de Estado no govérno de
num puritano, mas também heréticas a respeito do credo Cromwell, poeta em ostracismo na época da Restauragáo,
protestante e cristáo em geral, só entáo chamou Macaulay impondo-se a maior disciplina moral e artística — erudi-
a atendió para a presenga das mesmas heresias na epopéia: gáo clássica, cristianismo protestante e política republicana
com efeito, Milton nao acreditava na criacáo do mundo harmonizam-se melhor do que no pensamento. A crítica
ex nihilo, nem na divindade de Jesús Cristo; o poeta de psicológica nao dá resultado, em geral, nos casos de poetas-
urna epopéia sobre o pecado original acreditava até na li- artistas como foi Milton: talvez o artista mais consciente
berdade absoluta da vontade humana. E só entáo os crí- da literatura inglesa, e nesse aspecto só comparável a Goe-
ticos perceberam a simpatía inconfundível com que no the. Assim como Goethe, Milton recebeu a sua formagáo
Paradise Lost, é caracterizado Satanás. definitiva na Italia, já entáo país dos museus; a sua arte
tem o aroma da perfeigáo latina — Milton escreveu grande
O mais perfeito poema de Milton — a opiniao a res-
número de poesías em latim e varios sonetos em italiano
peito é provávelmente unánime — é a elegía pastoril "Ly-
— e do perfeito, no sentido de acabado, morto, pega de
cidas", lamentando a morte de um amigo, afogado no mar.
museu. Particularmente nos sonetos é Milton artista in-
comparável da língua, dispondo sabiamente dos ritmos e
"Yet once more, O ye Laurels, and once more
da música das palavras; e isso é tanto mais digno de nota
Ye Myrtles brown, with Ivy never-sear,
quanto os sonetos constituem a parte mais burguesa e mais
I come to pluck your Berries harsh and crude,
puritana da obra de Milton, sendo dirigidos a pessoas da
And with forc'd fingers rude,
sua classe — Mrs. Catherine Thomson, Lady Margaret Ley,
Shatter your leaves before the mellowing year. Mr. Lawrence, Mr. Cyriac Skinner — e aos chefes republi-
Bitter constraint, and sad occasion dear, canos Cromwell e Farifax. Milton aproveita-se da sua arte
Compels me to disturb your season d u e : clássica para falar da maneira mais concreta, evitando os
For Lycidas is dead " sentimentalismos románticos, assim como as suas heresias
religiosas e políticas aparecem vestidas da pompa mais
Nestes versos está Milton inteiro: a solene música verbal,
aristocrática. A música verbal de Milton nao é vaga, su-
as reminiscencias clássicas, o perfume da paisagem inglesa,
gestiva, mas solene e sonora, baseada firmemente no sentido
a melancolía cheia de dignidade. É poesia clássica, táo per-
lógico (base que T. S. Eliot lhe tem, alias, negado). Essa
feita que chegou a tornar-se lugar-comum; um crítico mo-
harmonía perfeita entre sentido e música é até o elemento
derno fala de "poem nearly anonymous". É poesia clássica,
mais característico da arte de Milton; foi éste seu equi-
paga, em contradigáo íntima com os sentimentos religio-
librio que eclipsou a "metaphysical poetry", impondo á
sos que o mesmo poema exprime, esperangas de imortali-
poesia inglesa urna serenidade que em espíritos menores
dade crista —
se devia fatalmente tornar trivial.
"To morrow to fresh Woods, and Pastures new."
O pensamento de Milton é menos equilibrado. Nunca
A vida de Milton revela, porém, a plena harmonía entre se ignorou que a sua erudigáo era imensa, compreendendo
ésses elementos contraditórios: um filho de burgueses, todas as literaturas entáo conhecidas, historia, ciencias po-
982 OTTO M A M A CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 983

líticas, filología e arqueología, astronomía, física e histo- lado contra o cristianismo. O tratado Pe Doctrina Chris-
ria natural; além de ser poderosíssima no campo teológico tiana nao é para desmentir a hipótese. Em Milton agem e
e filosófico. Quanto a éste último aspecto, devemos ao crí- reagem fortes recalques. A sua maneira de reunir enorme
tico francés Denis Saurat esclarecimentos preciosos: Mil- erudigáo teológica e jurídica em favor do divorcio, para
ton estava familiarizado com a escolástica medieval e a fi- conseguir e justificar o seu próprio divorcio, é pouco sim-
losofía renascentista, com as doutrinas místicas e as teo- pática; e os estudos biográficos do sueco Liljegren revela-
rías dos ocultistas e cabalistas, e estes estudos esquisitos ram um Milton bem diferente do ídolo olímpico dos retra-
levaram-no ao gnosticismo e a heresias de toda a sorte, de tos ñas paredes das casas burguesas da Inglaterra; um Mil-
modo que parte do seu deísmo, aparentemente racionalista, ton despótico, egoísta, violento.
é de origem mística. Ésse tipo de erudigáo nao é barroco;
lembra antes Telésio, Cardano e outros pensadores da Re- Ésses conflitos e ambigüidades nao constituem caso
nascenga; é característica a aversao de Milton a Aris- ¡solado no século X V I I ; podiam bem gerar urna poesía
tóteles. As raizes do pensamento e da arte de Milton en- barroca; e urna das primeiras obras de Milton, o hiño "On
contram-se na Renascenga. A língua inglesa possui pou- the Morning of Christ's Nativity", é urna pega magistral de
cas poesías renascentistas tao belas como "L'Allegro", o elo- "metaphysical poetry", no estilo de Donne, ou pelo menos
gio "fantástico" da paisagem inglesa, as cianeas na aldeia, de Herbert. Mas Milton renuncia logo aos jogos do "wit",
os contos de fadas, o tumulto alegre ñas rúas da cidade,*as empobrecendo voluntariamente os seus meios de expres-
modas, as máscaras, o teatro em que se representa urna pega sao, adotando o verso branco do teatro elisabetano. Che-
do "sweetest Shakespeare, Fancy's child", e a doce música gou a escrever a epopéia inteira nesse verso dramático,
lidia, acompanhando cenas de amor — e "II Penseroso", que e o fato é de alta importancia. Conforme essa conquista
gosta de música melancólica, das leituras noturnas, da métrica, extraordinaria, e conforme o poder de caracte-
poesía, rizagao dos personagens no Paradise Lost se deve julgar
a fórga dramática de Milton; nao conforme as suas pegas
" These pleasures Melancholy give, dramáticas, a "masque" lírica Comus e a tragedia rigorosa-
And I with thee will chose to live." mente classicista Samson Agonistes. Milton é, no fundo,
poeta dramático, afastado do teatro vivo pelas conviegóes
A resolugao nao é menos característica do que o conjunto puritanas e pelo ambiente burgués. Como representante da
das duas poesías, escritas ao mesmo tempo, revelando um reacao classicista na época barroca, Milton — antigo "me-
conflito íntimo que se agrava na "masque" alegórica Co- taphysical" — aproxima-se mais do teatro do que os "meta-
mus: os encantadores "songs", nesta "favola pastorale", physical poets". Pelo puritanismo, o classicista Milton
nao se harmonizam milito com a moral severa da pega, na conseguiu restabelecer o equilibrio moral que o teatro eli-
qual os costumes licenciosos dos "cavaliers" sao denuncia-
sabetano-jacobeu, de Jonson a Ford, estava perdendo, e
dos como devassidáo de faunos. O mesmo conflito entre
perdeu, e que a "metaphysical poetry" nunca possuirá; em
ascetismo puritano e paganismo renascentista caracteriza
Milton reencontram-se, após a separagáo de meio século,
o Lycidas. E houve quem considerasse o retrato de Sata-
poesía lírica e poesía dramática. Desaparecerá a "ambi-
nás, na sua beleza melancólica de anjo caído e fórga indo-
güidade barroca".
mável de revolucionario cósmico, como protesto dissimu-
98* OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 985

Eis a fonte da imensa fórga moral de Milton nos seus A poesia de Milton é síntese de classicismo aristocrá-
escritos em prosa: os mais poderosos panfletos e sermoes tico e puritanismo burgués. Pelos recursos usuais da ex-
políticos da literatura inglesa, contra o regimentó episco- pressao barroca o confuto nao pode ser resolvido, porque
pal na Igreja, contra a monarquía, em favor da "honest li- nao é um confuto estético nem um confuto religioso, e sim
berty of free speech", em favor da liberdade do pensamento um confuto moral. Déle nasceu um estilo sui generis, que,
e da imprensa até contra os próprios puritanos. A ésses evidentemente, nao podía fugir as influencias do ambiente,
panfletos compara-se só urna poesía de Milton: o soneto mas que é um Barroco todo especial, exclusivamente milto-
"On the late Massacre in Piedmont", grito revoltado contra niano. Barrocas, neste sentido, sao expressoes como o
a chacina dos protestantes piemonteses pelo fanático du- verso
que católico —
"To live with Him, and sing in endless morn of light"
"Avenge, o L o r d ! T h y slaughter'd Saints, whose bones
e os "victorious psalms" da ode "Ata Solemn Musick", Bar-
Lie scatter'd on the Alpine mountains cold " —
roco sem reticencias e "concetti", Barroco grave, pomposo
mas " g r i t o " nao caracteriza bem essa pega eficientíssima, som de órgao, assim como os coros de Haendel sao barrocos
que é o soneto mais elaborado, mais trabalhado da língua. em pleno século X V I I I ; até a predominancia do "som"
O puritanismo antiartístico é a própria fonte da grande sobre o "sentido", na poesia de Milton, aquela predomi-
arte de Milton — das suas contradigoes e da sua grandeza. nancia das "visoes" auditivas sobre as visoes, t í o censu-
A segunda epopéia, Paradise Regain'd, nao é urna con- radas por Eliot, lembra a grande música barroca. E no es-
tinuadlo mais fraca; nao é "obra de velhice". Wordsworth pirito profético do grande poeta burgués, embora cegó,
e Coleridge, os grandes inimigos do "style soutenu" na "eyeless in Gaza", existe algo como um pressentimento da
poesia, sabiam bem porque preferiam esta obra ao Paradise catástrofe désse seu mundo pomposo de poesia e erudigao
Lost. Apenas, o século X V I I I , classicista, nao gostara do aristocráticas. Bem se percebe nos seus versos a melan-
Paradise Regain'd, em que sentiu, com instinto infalível, a colía do Penseroso, despedindo-se para sempre da "Merry
"heresia" estética: ai, assím como na tragedia Samson Ago- Oíd England" do Allegro. A poesia de Milton pós-se a ca-
nistes, escrita na mesma época, reapareceram os "concetti" e minho pelos séculos, para o mundo cinzento, burgués, do
antíteses "metafísicas". A segunda epopéia é o poderoso des- futuro, assim como Adáo e Eva saíram do Paraíso:
mentido da primeira, a reagao do velho puritano contra o
classicismo estético, assim como em Samson Agonistes o "They hand in hand with wand'ring steps and slow,
herói, vencido e cegó como o poeta, "eyeless in Gaza", a T r o u g h Edén took their solitary Way."
cidade dos inimigos, recolhe todas as fórgas para derru-
bar o templo, para cuja construcao ele mesmo contribuirá; A historia da influencia de Milton na poesia inglesa
e entáo — é a historia da poesia inglesa depois de Milton ( 1 0 8 ). Com
ou contra vontade, Dryden, Pope, Wordsworth, Byron,
" true experience of this great event Keats, Tennyson, Browning sao miltonianos, até quando o
W i t h peace and consolation hath dismiss'd,
108) B. D. Havens: The Injluence of Müton on English Poetry. Cam-
And calm of mind all passion spent." bridge, Mass., 1922.
986 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 987

renegam. Quem pretende, na Inglaterra, falar gravemente, O classicismo de Milton deixou vestigios na "meta-
fala a língua de Milton, embora seja língua latina em pa- physical poetry" do seu colega na Secretaria de Estado
lavras inglesas. Eis a acusa cao — a de exotismo — que de Cromwell, Andrew Marvell ( 1 1 0 ), que depois, sem rene-
sempre se repete, e que levou Keats e Moris á entronizacáo gar as suas convicc,oes puritanas e republicanas, soube con-
de Chaucer, e Keats e Eliot á entronizacáo de Donne em lu- formar-se com a Restaurasio da monarquía; a sua memo-
gar do poeta puritano. Mas também foi significativa a re- ria aínda vive nos anais da Casa dos Comuns como de
tratacao posterior do mesmo Eliot, A reacio a favor de um dos membros mais gentis e mais eruditos dessa assem-
Milton é sempre uma reacio moral. E os seus últimos bléia. Déste modo, Marvell reuniu as qualidades de pa-
defensores — Tillyard, Pearsall Smith — tém r a z i o : Be triota e parlamentar "metaphysical" barroco e humanista
Milton é um poeta latino, entáo é Donne um poeta espa- sereno, tornando-se o gentleman mais fino da historia
nhol; e se o Barroco de Donne é "continental" entao criou da poesia inglesa. Antigamente, apenas se dava atencao a
Milton um Barroco inglés, distinguindo-se dos outros "Bar- algumas poucas poesías suas, pecas de antología conheci-
rocos" pela f orea moral. dissimas; só em nosso tempo a sua obra inteira foi exposta
Na gera$io que acompanhou a vida de Milton, a sua á luz das análises da crítica moderna, que revelou em An-
influencia conseguiu desviar do caminho até um "meta- drew Marvell um dos maiores poetas de língua inglesa.
physical poet" como Abraham Cowley ( , 0 ° ) . Compondo, Nos poemas mais longos, como "The Nymph and the
entre outras odes "pindáricas", muito pomposas, uma "Oáe Fawn", prevalece o classicismo; e a famosa "Horadan Ode
Of W i t " ou um "Hymn T o Light", ou lamentando com luxo upon Cromwell's Return from Ireland" foi celebrada por
enorme de alusoes mitológicas e maiúsculas, e trocadilhos Quiller-Couch como a poesia mais clássica da língua; outros
esquisitos, a morte do "santo poeta" Crashaw, ou elaborando a compararam as odes de Malherbe ao reí Henrique IV. Com
os mais engenhosos galanteios, é Cowley um típico "meta- efeito, Marvell fala ao ditador de maneira muito seme-
physical", complicado, "barroco", insincero. Contudo, em lhante:
Cowley havia um confuto miltoniano: entre a sua arte
barroca e as suas conviccoes, que já se aproximavam do "But thou, the War's and Fortune's son,
racionalismo científico. Cowley está entre Milton e o March indefatigably on,
classicismo burgués dos Drydens e Popes. Aburguesou o And for the last effect
" w i t " dos "metaphysicals", e introduziu ésse " w i t " ate- Still keep the sword erect."
nuado na poesía anacreóntica, á maneira de Herrick, crian-
do assim o "society verse", que é uma tradicáo da poesía 110) Andrew Marvell, 1621-1678.
Mlscellaneous Poems (1681); The Rehearsal Transposcd (1672).
inglesa. Edl?6es por H. M. Magollouth, 2 vola., Oxford, 1927. e por H.
Macdonald, London, 1952.
A. Blrrel: Andrew Marvell. London, 1905.
109) Abraham Cowley. 1018-1667. P. Legouís: Andrew Marvell, poete, purltain, patrióte. Paris,
Poems (1656); Verses lately vrritlen (1663); Several Discourses 1928.
by way of Bssays (1668). V. Sackvllle — West: Andrew Marvell. London, 1929.
Edigoes por A. B. Grosart, 2 vols., London, 1881. e por A. B. T. 8. Eliot: "Andrew Marvell". (In: Selected Essays. 2.' ed. Lon-
Waller, 2 vols.. Cambridge. 1905/1906. don, 1941.)
A. H. Nethercot: Abraham Cowley. Oxford, 1931. B. Wallersteln: Studies in Seventeenth Century Poetry. Madl-
J. Lolsseau: Abraham Cowley, sa vie, son oeuvre. París, 1931. son, 1950.
988 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 989

Mas Malherbe termina em urna apoteose da paz — sentimento profundo da natureza, quase pré-romantico, des-
conhecido no seu século. Nisso também, Marvell é muito
"Le fer, mieux employé, cultivera la terre,
inglés; um gentleman em sua casa nos campos.
E t le peuple qui tremble aux frayeurs de la guerre,
Milton exerceu influencia intelectual sobre Cowley e
Si ce n'est pour danser, n'orra plus de tarnbours" —
influencia artística sobre Marvell. A sua influencia moral
enquanto Marvell concluí: é que nao aparece nos seus contemporáneos, pelo menos
"The same arts that did gain quando se presta atencáo apenas aos escritores cultos. Mas,
A power, must it maintain." no sentido moral, havia um miltoniano inconsciente entre
Atrás do classicismo patriótico da ode horaciana esconde- a gente iletrada: o caldeireiro ambulante John Bunyan
se urna doutrina política que pretende reunir "Sanction" ( m ) é o único escritor de língua inglesa que pode ser com-
e "Efficiency": é o maquiavelismo, dentro da forma clás- parado com Milton. Bunyan, puritano sectario, aerviu no
sica. Marvell, nobremente comovido, nao deixa de ser iró- exército do Parlamento, era soldado valente, mas pouco
nico. Foi grande satírico. " T h e Rehearsal Transposed" é aproveitável, porque gostava de perdoar aos inimigos, para
uma sátira vigorosa contra a Restauracáo, a propósito da combater com a maior resolucáo outros inimigos, que ape-
qual T . S. Eliot se lembrou das investidas de Dante con- nas existiam ñas suas alucinacoes. O pobre visionario ca-
tra Florenca. Mas o "wit" de Marvell tem outro funda- minhava pelo país, consertando caldeiras e pregando ser-
mento, e nisso difere essencialmente de Milton: nao é re- inoes camponeses. A Igreja, restaurada pela monarquía,
volta moral, e sim angustia religiosa (evidente no poema n i o podía tolerar essa concorréncia ilegal, e Bunyan passou
" T h e Coronet"), que o leva a desrespeitar as coísas terres- metade da vida ñas prisoes, pregando aos companheiros
tres. Em "To His Coy Mistress", o motivo horaciano do de desgraca. As visoes continuaran!: nem na prisao o
"Carpe diem" alarga-se de repente, abrindo um panorama deixaram em paz os seus inimigos, que sempre o acompa-
terrificante: nharam, porque eram os seus próprios pecados pcrsonifi-

"But at my back I always hear


Time's winged chariot hurrying near, 111) John Bunyan, 1628-1688.
Grace Aboudtng to the Chlef of Sinners (1688): The Pilgrim't
And yonder all before us lie Progress From This World To That which is to come (1678/1684);
Desert of vast eternity." The Life and Death of Mr. Badman (1680); The Holy War (1682).
Edicóes das obras completas por H. Stebblnu, 4 vola., London,
O elemento clássico, em Marvell, manífesta-se na precisao 1859.
das suas expressóes, na dureza metálica da sua língua, du- Edicóes do Pllgrim's Progress por C. Whlbley, London, 1926. e
reza que nao excluí a musicalidade. Mas a inteligencia "me- por G. B. Harrlson, London, 1928.
J. W. Mackall: The Pilgrim's Progress. London, 1924.
tafísica", barroca, prevalece. Classicismo e Barroco estáo, na J. Brown: John Bunyan, His Life, Times and Works. 2.» ed. 2
poesía de Marvell, em perfeito equilibrio, como em paz de- vols. London, 1928.
pois de uma longa guerra; e é esta a situacao humana do O. B. Harrlson: John Bunyan. A Study in Personallty. London,
poeta. "A Garden. W r i t t e n after the Civil W a r s " chama-se 1928.
W. Y. Tindall: John Bunyan, Mechaníck Preacher. New York,
uma das suas poesías; e nesta como em outras poesías bu-
1934.
cólicas — "Upon Appleton House" — Marvell revela um
J. Lindsay: John Bunyan, Maker of Myths. London, 1937.
H. Talón: John Bunyan. Parla, 1951.
990 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 991

cados. Essas experiencias, descreveu-as numa autobiogra- só déle. "The Pilgrim's Progress", diz Macaulay "is per-
fia espiritual, Grace Abounding to the Chief of Sinners; haps the only book about which, after the lapse of hundred
e depois resolveu transformar a narragáo em urna especie years, the educated minority has come over to the opinión
de romance ou epopéia em prosa, The Pilgrim's Progress. of the common people."
O espirito inglés possui urna capacidade especial de
"As I walked through the wilderness of this W o r l d " , se exprimir em alegorías. Abundam em toda a parte na li-
assim comega Bunyan; e logo nos ocorre outro comégo: teratura inglesa, e urna das maíores obras dessa literatura,
"Nel mezzo del cammin di nostra vita". Assim como o a Fairie Queen, de Spenser, é alegoría elaboradissima.
outro mundo de Dante é a imagem fantástica da Italia do The Pilgrim's Progress é, porém, a maior obra alegórica da
século X I I I , assim o mundo de Christian, herói do Pil- literatura inglesa. Parece mera leitura popular, feita sem
grim's Progress, é urna imagem fantástica da Inglaterra do arte alguma; e Bunyan nao era, evidentemente, artista, ou
século X V I I , povoada de personagens alegóricas que acom- entáo, quando muito, seria artista contra a sua vontade que
panham, perturbando ou ajudando, o pobre Christian na era só pregar e pregar, assustar e consolar os pecadores.
sua viagem, da City of Destruction para Zion, a City of Na sua memoria intervieram, além da Biblia, reminiscen-
God. Passa pelos lugares mais estranhos, o Desfiladeiro do cias de outras leituras. As semelhangas com Piers the
Desespero, a Aldeia da Moral, a Colina da Dificuldade, o Plowman, outra obra-prima alegórica da literatura inglesa,
Vale da Humílhagáo, onde tem de lutar contra o terrível - e com os "Morality Plays", sao casuais, porque Bunyan
Appolyon; é preso na Feira das Vaidades (a "Vanity Fair" nao os conheceu; mas conheceu alguna tratadinhos místi-
que Thackeray tomou como título de romance), atravessa cos, e conheceu edigoes populares de velhos romances de
o Rio da Morte, e chega enfim á Cidade Santa. Quanto cavalaria, talvez o próprio Malory. Da£ certas analogías
mais pormenorizado faz o resumo do livro, tanto mais in- assombrosas com os Exercitia spiritualia, de Santo Inácio de
fantil parecerá. Mas a leitura causa outra impressáo: todas Loyola, que fóra também leitor de romances de cavalaria;
aquelas paisagens fantásticas respiram a atmosfera terri- daí a maneira vivíssima de contar aventuras romanescas.
ficante do "déjá vu" nos sonhos, todas aquelas personagens Bunyan é romancista e, em certo sentido, precursor do
alegóricas táo vivas estío que acreditamos té-las conhecido romance moderno: em outra obra de Bunyan, The Life and
pessoalmente; a leitura torna-se pesadelo, como se fósse Death of Mr. Badman, o caminho de perdigáo de um pe-
o maior thriller entre os romances policiais; e o fim vi- cador é descrito com o realismo de um Defoe e com as
torioso é um alivio enorme, como urna verdadeira salvacao. minucias psicológicas de Samuel Richardson. The Pilgrim's
Tudo isso está narrado numa linguagem popular, na qual Progress é um romance arcaico: o que seria definigao da
abundam metáforas militares — reminiscencias do servigo epopéia. Bunyan seria o Milton do povo.
no exército — e sobretudo as citagoes e alusoes bíblicas.
Mas é o The Pilgrim's Progress realmente urna epopéia?
Organizou-se urna estatística, segundo a qual a maior parte
A obra revela, na apresentagáo das cenas e na caracte-
do texto do Pilgrim's Progress é literalmente tomada da
rizagao das personagens, as mesmas qualidades dramáticas
Biblia, leitura principal do caldeireiro. Com efeito, The
do Paradise Lost. Bernard Shaw afirmou ocasionalmente
Pilgrim's Progress é a segunda Biblia das nagoes anglo-
que Bunyan era um grande dramaturgo, afastado do teatro
saxónicas, o Paradise Lost do homem do povo. Mas nao
pelo puritanismo, e que urna versáo do The Pilgrim's Pro-
992 OTTO M A R Í A CARPEAÜX

gress para o teatro revelaría fórga dramática maior do que a


de Shakespeare. O paradoxo chega a exprimir urna verdade
histórica. Em Bunyan, o puritanismo encontrou a aproxi-
magao entre a sua literatura e o teatro, o caminho que
Milton nao acertou, por causa dos preconceitos classicistas
da sua erudigao literaria, enquanto que Bunyan era homem
do povo. The Pilgrim's Progress nao é teatro; mas é a CAPITULO V
transformagao e continuagao histórica do teatro elisabeta-
no. Em 1642, fecharam-se os teatros, e em 1661 só se abri- MISTICISMO E MORALISMO
ram para o gósto aristocrático. No The Pilgrim's Progress,
o povo inglés encontrou de novo as angustias que o tinham P R E S E N T E capítulo, que se ocupa principalmente
comovido diante das pegas de Shakespeare e W e b s t e r ; en-
controu personagens alegóricas, mas táo vivas e imortaís
O dos escritores franceses do século X V I I , chamados
"clássicos", abre, no entanto, com a discussao da literatura
como Hamlet. E mais urna coisa que Shakespeare nao mística espanhola. Nao se trata, evidentemente, de tenta-
fóra capaz de criar: um enredo inventado, que na imagi- tiva de aproximagao, que seria absurda. Mas justifica-se a
nacao do leitor se torna verdade vivida, acompanhando-o justaposigáo por motivos históricos: de influencias da mís-
e guiando-o pela vida fora. Bunyan é, segundo a exprlssao tica ibérica na psicología que caracteriza, em parte, o clas-
de um crítico moderno, um criador de mitos. sicismo francés. E por mais um elemento comum, embora
menos manifestó: o realismo.
Meditagoes, contemplagoes e éxtases místicos produ-
ziram urna parte importante da literatura espanhola do
século X V I I ( ' ) . A bibliografía é imensa — as lcituras
místicas eram evidentemente popularíssimas; e em certo
sentido toda a literatura espanhola do século é invadida
pela mística: Lope de Vega tem poesías sacras do mais
puro sabor místico, Calderón é dramaturgo místico, o es-
toicismo ascético de Alemán e Quevedo aproxima-se mais
de urna vez da mística; só Cervantes fica livre, e Góngora
duvidoso. E n t r e os místicos por assim dizer profissionais,
encontram-se duas figuras das mais elevadas da literatura
m espanhola: Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz.
O problema é um dos mais dificeis e delicados da his-
toria literaria. Os místicos nao escreveram para produzir

1) P. Sainz Rodríguez: Introducción a la historia de la literatura


miítica en España. Madrid. 1927.
E. Allison Peers: Studies of the Spanish Mystícs. London, 1927.
994 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 995

literatura; a origem das suas obras é a experiencia reli- escotista, jesuítas da escola de Suárez e agostinhos de tra-
giosa, o fim a catequese, e no centro se encontram, ira- digáo platónica. A ordem do Carmo estéve, durante a pri-
plicite ou explicite, teorías dogmáticas que a critica lite- meira metade do século XVI, em decadencia gravíssima,
raria nao é capaz de julgar com competencia. Falamos da qual só a reforma operada por aqueles dois santos a
sempre em torno dos místicos, sem chegar até o centro das salvou. É a época posterior ao concilio de T r e n t o ; a Es-
suas atividades (ou passividades) interiores; sobretudo a panha torna-se mais eclesiástica do que nunca, e a orto-
distingao entre místicos auténticos e místicos falsos está doxia identifica-se cada vez mais com a filosofía tomista.
inteiramente fora da competencia da crítica literaria. Os escritores místicos, cuja formagáo é da época anterior,
A primeira dificuldade reside logo na classificagao sao diferentes: um dominicano como Fray Luis de Granada
daquela enorme bibliografía: sao poucos os místicos que nao se haveria, depois, aberto a influencias platónicas. Du-
interessam ao historiador da literatura, que aplica déste rante o século XV e a primeira metade do século XVI, a
modo um criterio literario; mas éste nao diz respeito á mística espanhola é principalmente ascética; a obra mais
esséncia ou substancia mística das obras, e nao fornece, significativa é o Abecedario espiritual, de Francisco de
portanto, um meio de classificagao. Menéndez y Pelayo Osuna. Pela vitória do tomismo, a ascética separa-se algo
propós a classificagao dos místicos segundo as ordens a da mística, tende a transformar-se em moralismo cristáo;
que pertenciam, porque as tradigoes espirituais das ordens contribuí para isso a doutrina dos dominicanos, que consi-
religiosas da Igreja católica sao diferentes. Essa classifi- tleram a mística como mera fase superior da vida contem-
cagao é cómoda e apresenta a vantagem de reunir as duas plativa; e contribuí também a desconfianga dos jesuítas
figuras máximas, Santa Teresa de Ávila e San Juan de la quanto á autenticidade de visóes e éxtases freqUentes. A
Cruz, unidas por amizade e atividades comuns, e perten- mística própriamente dita torna-se algo independente:
centes ambos á Ordem do Carmo. A insuficiencia désse como um ramo separado da teología, no qual se concen-
criterio revela-se, porém, a propósito de urna das obras tran! as correntes platónico-augustinianas, mas sempre
mais importantes, embora das menores em tamanbo, da com a tendencia superposta de aristotelizar-se. Os gran-
mística espanhola, o famoso soneto "No me mueve, mi Dios, des místicos dessa segunda fase sao todos franciscanos,
para q u e r e r t e . . . " , que já foi atribuido, sucessivamente, á agostinhos, carmelitas. Herangas da mística flamenga ali-
carmelita Santa Teresa, ao franciscano Fray Pedro de los mentam o humanismo de San J u a n de la Cruz, enquanto
Reyes, aos jesuítas Santo Ignacio e S. Francisco Javier, em Santa Teresa prevalece o realismo da raga castelhana,
e que hoje se atribuí a um missionário Fray Miguel de acessível a influencia do realismo aristotélico. Por isso a
Guevara, do qual nlo sabemos quase nada ( z ). repercussao da grande religiosa foi mais forte que a do
seu companheiro. O meio de expressao daquela tendencia
Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre domini- é o estilo barroco. No soneto de Miguel de Guevara que
canos de pura tradigáo tomista e franciscanos de tradigáo assim termina:

2) R. Foulché-Delbosc (in: Revue Hispanlqne, n . 1895).


A. M. Carrefio: Ensayos literarios. México, 1915.
M.C. Huff: The Sonnet "No me mueve, mi Dios". Its Theme in "Muévesme al tu amor en tal manera
Spanish Tradition. Washington, D.C.. 1943. que aunque no hubiera cielo yo te amara
M. Batalllon: "El anónimo del soneto "No me mueve". (In:
Nueva Revista de Filología Hispánica, 4, 1950.) y aunque no hubiera infierno te temiera.
<>>)(> OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 997

N o me t i e n e s q u e d a r p o r q u e t e q u i e r a ; rusta. E m p r i m e i r a l i n h a , é t e ó r i c o consciente. A e x p r e s -
que aunque q u a n t o espero no esperara sao ¡ m e d i a t a das s u a s e x p e r i e n c i a s místicas f o r a m a l g u m a s
l o mismo q u e t e q u i e r o t e q u i s i e r a . " poesías; e todo o resto da sua literatura — as grandes obras
Subida del Monte Carmelo e Noche oscura del Alma — é
r e c o n h e c e m - s e ¡ m e d i a t a m e n t e a s a n t í t e s e s como p e t r a r - comentario teológico daqueles poemas. A própria e última
quismo "a lo divino", quer dizer, resultado do processo e x p e r i e n c i a m í s t i c a , a u n i á o c o m D e u s , é ¡nefável. O q u e
aristotélico-barroco de santificar a poesia profana. É o p o d e s e r d e s c r i t o é s ó o i t i n e r a r i o p a r a ésse fim, p a r t i n d o
e s t i l o , d o q u a l nao e x i s t e m a n t e c e d e n t e s nos dois L u i s e s , das " t i n i e b l a s " d o p e c a d o , a t r a v e s s a n d o a " n o c h e o s c u r a " ,
e q u e s e p a r a S a n t a T e r e s a e S a n J u a n d e la C r u z d o s é c u l o q u e é o s í m b o l o m a i s f r e q ü e n t e da poesia d o s a n t o ; s í m -
X V I em que viveram e morreram, colocando-os as portas bolo misterioso, significando, ao mesmo tempo, a ignoran-
d o B a r r o c o . Afinal, sao c o n t e m p o r á n e o s d e M i g u e l A n g e l o cia das c o i s a s d i v i n a s n o h o m e m c a í d o —
e Tasso.
A s influencias flamengas, s o b r e t u d o de Ruysbroeck, " E n una noche obscura.
sao b a s t a n t e f o r t e s n o f r a n c i s c a n o F r a y J u a n d e l o s Á n - C o n a n s i a s en a m o r e s i n f l a m a d a ,
geles (3), humanista platónico com certa dose de senti- Oh dichosa ventura!"
m e n t a l i s m o , q u e se m a n i f e s t a a t r a v é s d a t o n a l i d a d e b a r -
r o c a d o s e u estilo. ' — e a ausencia de impressoes sensoríais, c o n d i s t o da
Nao se pode qualificar de outra maneira o estilo de "subida" —
S a n J u a n d e la C r u z ( 4 ) . E o s a n t o é u m g r a n d e h u m a -
" . . . s i n o t r a luz n i g u í a
3) Fray Juan de los Angeles, 1536-1609. S i n o q u e en el c o r a z ó n a r d í a . . . " ;
Triunfos del amor de Dios (1590); Manual de vida perfecta (1608),
etc.
Edlcfto por J. Sala, 2 vols., Madrid, 1912/1917. e, enfim, a " n o c h e " é o s í m b o l o da i g n o r a n c i a s u p e r i o r , d a
J . Domínguez Berrueta: Fray Juan de los Angeles. Madrid. "ignorantia docta" que olvidou e já ignora o m u n d o e as
1927.
suas "imágenes" sensoríais, para viver só á "presencia de
4) San Juan de la Cruz (Juan de Yepes y Alvarez), 1542-1591. Dios":
Obras Espirituales (1618).
Edicfio por P. Gerardo de San Juan de la Cruz, 3 vols., Toledo,
1912/1914. "Aquesta una fuente que deseo.
Edicáo das poesías por P. Salinas, Madrid. 1936. E n este p a n d e v i d a y o la veo,
R. Encinas y López Espinosa: Las poesías de San Juan de la
Cruz. Valencia, 1905. Aunque de noche."
J . Baruzi: Saint Jean de la Croix et le probléme de l'expértenc»
mystique. París, 1924.
P. Garrlgou-Lagrange: Perfection chrétienne et conté mplation R. Sencourt: Carmelite and Poet. A Framed Portraít of St.
selon Saint Thomas d'Aguin et Saint Jean de la Croix. París, John of the Cross. London. 1943.
1926. Dámaso Alonso: La poesia de San Juan de la Cruz. Buenos Aires,
E. Alllson Peers: Saint John of the Cross. Cambridge, 1932. 1943. (2.a edlcfio, 1946.)
San Diego: Aftísica y ritmo en la poesia de San Juan de la CruM. J. Descola: La quintessence de Saint Jean de la Croix. Paria,
El Escorial, 1942. 1952.
998 OTTO M A F I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDEMTAL 999

Déste modo, o santo continua na presenga de Deus, "aun- poesia, por assim dizer, didática, para "hacer más represen-
que en la noche" déste mundo, na qual Deus está presente table un concepto"; e nesse caso a interpretagáo psicanalí-
no "pan de vida" da Eucaristía. A experiencia mística nao tica é justificada: seria a racionalizacáo do que a "censura"
separa da Igreja o santo; ao contrario, é o seu guia para moral nao deixa passar pelo limiar da consciéncia. A poesia
os misterios sacramentáis. de San J u a n de la Cruz nao apresenta, porém, alegorias. O
A poesia religiosa de San J u a n de la Cruz é a poesía termo noche tem pelo menos tres, talvez quatro signifi-
mais erótica do Barroco. A s imagens sexuais sao fre- cagóes, sendo a quarta a reinterpretagio dos símbolos es-
qüentes, chegando a tornar-se provocantes: toicos, táo freqüentes na poesia espanhola, do silencio e
da "soledad":
"Quédeme y olvidéme,
El rostro recliné sobre el Amado, "La noche sosegada
Cesó todo, y déjeme, E n par de los levantes de la aurora,
Dejando mi cuidado La música callada.
Entre las azucenas olvidado." La soledad s o n o r a . . . "

O santo teria explicado essas imagens como poesia erótica A poesia do santo é "poésie puré", porque incapaz de ser
"a lo divino". A psicología moderna poderia interpretar o parafraseada em conceitos racionáis; apresenta timbólos
niilismo da "noche obscura" como eliminagao da "censura" de experiencias ihefáveis. Por isso, o seu último termo
da consciéncia, como "evasáo abismal" através do sub- é "música callada", "soledad sonora", antiteses que tam-
consciente. A "ignorancia" seria a imagem do próprio sub- bém se encontram em Vaughan; antiteses das quais — se-
consciente: gundo observagoes de Azorín e Sencourt, respectivamente
— irá lembrar-se o romantismo de Novalis e Wordsworth.
"Éntreme donde no supe, Essa analogía com o romantismo de poetas conscien-
y quédeme sabiendo, temente medievalistas é bastante curiosa. San Juan de la
Toda ciencia trascendiendo". Cruz, o maior "poeta noturno" de todos os tempos, é, fora
da sua poesia, um espirito solar, um humanista; as suas
citacoes latinas mereceram estudo especial, e quanto á sua
Mas essa interpretacao leva a contradicoes inextricáveis.
frase: "Más vale un pensamiento del hombre que todo el
Evasao é fuga; e Pedro Salinas salienta, com razáo, o
mundo" — será difícil decidir se lembra mais Pascal ou
caráter centrípeto dessa poesia puramente emotiva, "poé-
Descartes. Em todo o caso, é um conceito da tradígáo pla-
sie puré", sem o menor elemento narrativo, nem sequer
tónico-augustiniana; com razao Alois Mager rejeitou as
didático, no qual a interpretagáo psicanalítica se pudesse
interpretagoes tomísticas de Garrigou-Lagrange, merecen-
apoiar. Fica apenas a própria expressáo como conteúdo.
do com isso os aplausos dos jesuítas, que preferem a in-
Por isso, Baruzi coloca no centro do seu estudo sobre o
terpretagáo da mística do santo segundo conceitos menos
santo o problema: alegoría ou símbolo? Se a poesia de
rigorosos. Pensa-se em Suárez, em Duns Scotus. San Juan
San Juan de la Cruz apresenta alegorias, sinais racional-
de la Cruz é mais medieval do que os seus contemporáneos
mente compreensíveis de sentimentos írracionais, entáo é
1000 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1001

renascentistas. A sua doutrina é urna ponte entre a mística nimias sobre a realidade dos conceitos abstratos. Ledesma
flamenga e a poesía barroca; exprime mística medieval é "realista" no sentido escolástico da palavra. O seu anti-
em versos barrocos. O guia poético através dessa ponte aristotelismo talvez inconsciente, minia época na qual a
foi Garcilaso de la Vega: sua poesía renascentista é a base existencia do platonismo já era precaria, colocou Ledesma
da expressáo poética do santo, que a transfigura "a lo di- perto de outras correntes "oposicionistas" do Barroco. A
vino". Dámaso Alonso considera San Juan como o supre- secularizagáo do conceptismo, "a lo profano", realiza-se no
mo realizador da poética garcilasiana; por isso, como o Barroco estoico de Quevedo, e depois em Gracián.
maior poeta da língua castelhana Nao concordaram com
A justaposicáo usual de Santa Teresa (°) e San Juan
isso os humanistas como Ortega y Gasset, que sempre
de la Cruz justifica-se pela amizade e as atividades comuns
darao a preferencia a Fray L u i s de León. Mas a poesía de
dos dois grandes santos, pertencentes á mesma ordem, a
San Juan de la Cruz está, em mais um sentido, fora das
do Carmo; porém nao deixa de produzir graves inconve-
discussoes e até fora do t e m p o ; pela sua "pureté" realiza
nientes e incompreensóes. A santa costumava chamar a
o milagre de exprimir a "música", a "soledad sonora", que
é o próprio conteúdo da indizível experiencia mística, tor- San Juan "mi pequeño Séneca", e com isso demonstrou
nado luminoso — "aunque de noche". consciéncia perfeita do humanismo do santo; mas o ape-
lido era bastante inexato. Santa Teresa nao era mulher
Os maiiuais antigos da historia literaria espanhola em- erudita, e da erudi$ao humanística do companheiro sepa-
penharam-se em destacar o poeta Alonso de Ledesma ("), rou-a um realismo profundo. Com Santa Teresa estamos
fundador de urna "escola" esquisita de poesía, o "concep- em térra firme, longe da atmosfera celeste de San Juan,
tismo": jógo de conceitos, em vez do suposto jógo de pa- na qual só eleitos podem respirar. A índole popular da
lavras dos gongoristas. Como se vé, a distincio é bastante devo$áo teresiana já foi objeto de estudos especializados;
precaria, parecendo-nos que "conceptismo" e "culteranis- até a expressáo da santa é popular, típicamente castelhana.
mo" fóssem mais ou menos a mesma coisa. Aconteceu,
porém, que Quevedo, o maior inimigo do culteranismo, nao
teve objecóes que opor ao conceptismo, que os gongoris- 6) Santa Teresa de Avila (Teresa de Cepeda y Ahumada), 1515-
tas, por sua vez, combateram. Na verdade, os autores da- 1582.
Libro de su vida (1562)/1565); Libro de las fundaciones (1567/
queles manuais nao sabiam bem onde colocar histórica- 1582); Camino de perfección (1570); has Moradas o el Castillo
mente ésse Ledesma; e talvez pelo mesmo motivo os ma- interior (1577); Cartas (1562/1582).
nuais mais recentes lhe omitam o nome. Na verdade é Edlcóes por V. de la Fuente ('Biblioteca de Autores Españoles',
vols. L m e LV), e por P. Sllverlo de Santa Teresa, B vols.
Ledesma um místico, se bem que nao dos mais profundos. Burgos, 1922.
Góngora nao é místico, é naturalista. A doutrina de Le- O. Hahn: Die Probleme der Hysterie und (Lie Of/enbarungen
desma é tentativa de tornar "a lo divino" o gongorismo; der hl. Theresia. Leipzig, 1906.
os seus jogos de palavras baseiam-se em teorías augusti- M. Mlr: Santa Teresa. Madrid. 1912.
G. Truc: Les mystiques espagnols, Sainte Thérése et Saint Jean
•i • - —
de la Croix. París, 1921.
5) Alonso de Ledesma Buitrago, 1562-1623. R.Hoornaert: Saint Thérése, écrivain. París, 1922.
Am. Castro: Santa Teresa y otros ensayos. Madrid, 1929.
Conceptos espirituales y morales (1600/1612); Juegos de Noches M. Lepée: Le realisme chrétien chez Sainte Thérése d'Avila.
Buenas a lo divino (1605). Paria, 1948.
Edlcáo em: "Biblioteca de Autores Españoles', vol. XXXV. E. Alllson Pers: Saint Teresa oj Jesús. London, 1953.
'

1002 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1003

A origem aristocrática da familia nao é circunstancia dis- a santa era o amor encarnado e, quase se diría, um grande
tintiva num país de "hidalgos" e num século aristocrático, homem de acao.
e a forma aristocrática de certos pensamentos teresianos Valbuena Prat chamou a atencáo para o realismo da
baseia-se antes ñas leituras preferidas da sua mocidade: os devocáo da santa: "Entended", dizia ela, "que si es en la
romances de cavalaria. Versoes populares dos mesmos ro- cocina, entre los pucheros anda el Señor"; o leitor lem-
mances encantaram o pobre caldeireiro ambulante J o h n bra-se do realismo popular das "comedia» de santos" e dos
Bunyan; e talvez um estudo comparativo revelasse analo- quadros de Murilo, nos quais a Virgem aparece aos irmaos
gías curiosas entre a viagem perigosa do herói do Pilgrim's leigos na cozinha do convento. Santa Teresa tem a me-
Progress pelas paisagens de urna Inglaterra fantástica e moria cheia de lendas assim, emprega com gósto as frases
as viagens penosas da autora do Livro de las fundaciones saborosas da gíria, exibe, ñas cartas, franquezas inesperadas
pela Castela muito real, e contudo iluminada de visoes e luzes de humorismo. A energia da sua expressáo é enor-
místicas que Bunyan tampouco desconhecia. me, ajudada pela linguagem algo arcaica. Teresa é da velha
estirpe de Castela: sobria, prática, altiva, independente
Com efeito, Santa Teresa é urna santa popular, incom-
como o Cid. As irmas, dá os conselhos mais pormenoriza-
parávelmente mais realista que o seu companheiro-poeta.
dos sobre administracáo e manutencao dos conventos; ás
De maneira bem espanhola, a mística de Santa Teresa é
autoridades eclesiásticas que pretendem impedir-lhe a re-
mais ascética, e á ascese dedicou a santa urna das suas
* forma do Carmo, Teresa opoe-se com energia indomável;
obras capitais, o Camino de perfección. Sobretudo a leitura
até ao nuncio apostólico e ao próprio rei escreve com a
das suas cartas impressiona pelo realismo, pelo humor, pela
consciéncia da sua missáo, empregando expressoes respei-
capacidade de acáo. Na memoria, porém, fica urna outra
tosas, mas pouco diplomáticas. Há em Santa Teresa algo
Teresa: urna santa pomposa, grande dama de Espanha, com
de D. Quixote, da sua paixao pela boa causa, do seu roman-
os olhos voltados para o Céu — a estatua barroca de que a
tísmo. Na mocidade, a futura santa gostava de 1er roman-
Contra-Reforma espalhou mil exemplares pelas igrejas da
ces de cavalaria, e o Libro de las fundaciones, o relatório
Europa católica. A mais famosa dessas esculturas é a que
realista das suas atividades monásticas, mostra a santa,
o grande Bernini fez para a igreja de Santa Maria della
montada na muía, viajando, como D. Quixote, pelas estra-
Vittoria, em Roma: a santa desmaiando perante a visáo
das reais, pernoitando em tavernas miseráveis, lutando con-
inconfundivelmente erótica de um anjo. Francamente, o
tra o sol, a poeira e os ladróos com ares de fidalgos, ven-
aspecto extático, supramundano, exaltado, de Teresa de
cendo todas as dificuldades, fundando e visitando conven-
Cepeda y Ahumada, faz menos parte da sua santidade que
tos e salvando a Igreja moralmente calda da Espanha.
da sua historia. A grande santa foi histérica; após a aná-
lise discreta dos documentos pelo bolandista Hahn nao Por essa atividade pertence Santa Teresa á Contra-
restam dúvidas. Mas, enquanto a histeria nao fór indicada Reforma: á época posterior do concilio de Trento, á época
como fonte de pretensa santidade, e admitindo-se que san- da fundacáo de muitas novas ordena e c o n g r e g a r e s e do
tidade auténtica pode ser acompanhada de histeria, como desenvolvimento da Companhia de Jesús, época na qual
de qualquer outra doenca, nao existe contradicho entre as urna "nuvem de testemunhas" demonstrou ao mundo, pela
duas qualificacoes. E a santidade foi mais forte: as his-
agio e pelo pensamento, a verdade divina. Teresa, que é
téricas sao egoístas e esgotam-se em atividades fingidas;
urna dessas testemunhas, parece limitada á ac¿áo. "No está
1

1004 Orro MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1005

la cosa en pensar mucho, sino e n amar mucho." A sua reli- "jAy, qué larga es esta vida
giosidade fundamentalmente popular exclui os vóos do pen- qué duros estos destierros,
samento teológico. Teresa vive na liturgia, na adoracáo do esta cárcel y estos hierros
Santíssimo Sacramento. A historia bíblica e as vidas dos en que está el alma metida I"
santos, ela as vé como quadros vivos, como os quadros na-
turalistas, cheios de sangue, ñas igrejas espanholas. Essas O pensamento é o do platonismo renascentista, incompa-
tível com o ativismo da santa, e também com a expressao
cenas, os santos, a Virgem e o próprio Redentor, afigura-
popular. Contradicoes tais só se encontram no Barroco,
se-lhe que entram na sua cela, conversando com a humilde
no qual se enquadra também melhor o ascetismo moralista
religiosa, revelando-lhe a significagáo dos sofrimentos hu-
de Santa Teresa. Assim como Santa Teresa ae apóia, tal-
manos; e quando Teresa percebe que se encontra em uniao vez sem sabé-lo bem, em doutrinas da mística platónico-
mistica com a divindade, cai desmaiando. Entáo, é a grande augustiniana, assim ela encarna o misticismo realista, tipico
visionaria. Las Moradas o el Castillo Interior é o maior da raga espanhola, o misticismo de agio que se aliou ás
livro de devogáo mística em língua espanhola, e talvez em forjas da Contra-Reforma, da qual a Espanha t e tornou
qualquer língua. A energía do pensamento antitético — campea, e que se esgotou com ela ( T ). Como representante
"Todo y Nada" — só é superada pela ternura dessa alma dessa mística da agio, é Teresa urna santa do Barroco; per-
que foi realmente aquilo a que aspirava: urna "alma her- tence, sem o saber, ao realismo aristotélico. Assim, Teresa
mosa". A expressao tornou-se, em tempos posteriores, um deu á tradicao mística medieval, ameagada pelo intelectua-
lugar-comum da mística européia e, depois, do sentimen- lismo neotomista e depois pelo racionalismo filosófico, a
talismo literario. Em Teresa nao há nada disso. Grande fórga de vencer o século que identificou mística e angustia
— para que a tradigáo platónica chegasse ao século X V I I I ,
poesia nao é nunca sentimental, e Teresa foi, além de pro-
quando se transformará em pietismo, sentimentalismo e
sadora, poetisa rara mas inspirada, transformando "a lo
pré-romantismo.
divino" glosas populares de amor ardente:
Esta missáo histórica da mística teresiana realizou-se
fora da Espanha. Na patria de Santa Teresa, a mistica
"Aquesta divina unión continuou como religiosidade popular. É característica a
y el amor con que yo vivo obra de um escritor de talento extraordinario, Malón de
hace a mi Dios mi cautivo Chaide ( 8 ) : na sua Conversión de ¡a Magdalena, narraglo
y libre mi corazón; ascética, vivissima, o realismo torna-se naturalismo; o edi-
y causa en mi tal pasión tor moderno dessa curiosa obra, o P. e Félix García, com-
ver a Dios mi prisionero,
que muero porque no muero." 7) P. Rousselot: Les mystiques es-pagnols. París, 1867.
8) Fray Pedro Malón de Chaide, c. 1530-1589.
Nestes versos está Teresa inteiramente: a religiosidad* La conversión de la Magdalena (1578/1583).
popular, o extase visionario, a energia ardente — e mai» Edi?áo por FéL T3arcia ('Clásicos Castellanos', vols. CIV/CV)
(com Importante Introducto).
urna coisa que se revela nos versos seguintes: P. Rousselot: Les mystiques espagnols. París, 1867.
I

1006 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1007

para-a com a escultura espanhola em madeira, com estatuas ficagáo pelo reí Henrique IV baseava-se no cansaco geral
de santos suando sangue e chorando lágrimas de pedras da nacáo e no indiferentismo religioso do monarca. Só meio
preciosas, ésses santos que se levam em procissáo pelas rúas século depois, urna querela religiosa, em torno dos janse-
das cidades espanholas, acompanhados de cortejos de as- nistas de Port-Royal, sacudiu a Franca inteira, cindindo a
cetas, gritos do povo e tiros dos soldados. É a Espanha literatura francesa em dois campos inimigos, de tal modo
pitoresca. Mas a obra de Malón de Chaide é a de um gran- que desde entáo existem as famosas "duas Franjas", reno-
de artista, e por isso menos popular do que os escritos do vando-se a luta, de vez em quando, sob etiquetas ideológicas
jesuíta Nieremberg ('•'), nos quais se mistura a uncáo as sempre diferentes — "plus ca change, c'est la méme chose".
descricoes macabras e terrificantes e ao ascetismo sobrio De urna controversia teológica nasceu a literatura francesa
dos castelhanos. Apesar disso, os livros de Nieremberg, moderna. Entre S. Francisco de Sales e Port-Royal, na
agradando ao gósto barroco, foram traduzidos para todas prímeira metade do século X V I I , a Franga deve, portanto,
as línguas e contribuíram para a repercussáo universal da ter sido teatro de profundas transformacóes religiosas, que
mística espanhola. escaparam á atencáo dos historiadores da literatura; Henri
Bremond revelou essas transformacóes, redescobrindo urna
Essa repercussáo nao se limitou aos países católicos. vasta literatura mística, esquecida, renovando completa-
Jeremy Taylor e Richard Crashaw celebraram e cantaram mente a historia literaria francesa do século X V I I ( l 0 ) .
Santa Teresa; no holandés Dullaert encontra-se um eco da A mística espanhola exerceu sobre ésse movimento influ-
poesía mística espanhola; os livros ascéticos espanhóis in- encia decisiva. Mas a primeira fonte da renovacáo reli-
fluenciaram a literatura edificante dos luteranos alemáes. giosa é de origem italiana.
Urna situacáo das mais complicadas encontrou a mís-
tica espanhola na Franca: parte do país era protestante, A Contra-Reforma na Italia ( n ) foi feita, como em
sobretudo a aristocracia e a burguesía, e a parte católica toda a parte, pela propaganda e pela violencia. A violencia
se opós, por galicanismo inveterado, ás exigencias da Con- estava aliada a dominacáo espanhola, o que explica a aver-
tra-Reforma tridentina. Terminadas as guerras de religiáo, sáo dos patriotas italianos; e a propaganda, dirigida con-
a Franca devastada era também um deserto espiritual; a tra a corrupsáo moral do clero e exigindo do povo prin-
mística espanhola chegou, juntamente com urna vaga de cipalmente obediencia litúrgica, satisfazia-se com resul-
humanismo cristáo, produzindo o fenómeno de urna Re- tados superficiais, tolerando abusos e supersticóes, usando
nascenca católica. de complacencia para com os poderosos, criando hipocrisia
generalizada. Eis o quadro sombrio, familiar aos leitores
As guerras de religiáo deixaram reflexos em toda a
literatura francesa da época; em Ronsard nao menos do
que em Montaigne e Malherbe; mas as duas obras repre- 10) H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en Frun-
sentativas da controversia, Les Tragiques, de D'Aubigné ce depuis la fin des guerres de religión jusqu'á nos jours. 10 vols.
e a Satire Menippée, nao tiveram conseqüéncias, a paci- Paris, 1916/1932. (2." ed.: París, 1935.)
O. de Reynold: Le XVlie Siécle. Le Classique et le Baroque.
Montreal, 1944.
J. Rousset: La Ifttérature de l'áge baroque en France. París,
8) Juan Eusebio Nieremberg, c. 1595-1658. 1953.
De la hermosura de Dios y su amabilidad (1641); Diferencia en-
tre lo temporal y lo eterno (1643). 11) M. Petrocchi: La Controríforme in Italia. Roma, 1947.
1008 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1009

de I promessi sposi, de Manzoni. Aos estudiosos moder- te pela sua formagáo italiana, isto é, humanista. Fóra aluno
nos a Contra-Reforma italiana revelou mais outros aspec- da Universidade de Pádua, gostava das leituras clássicas,
tos. Na Italia também apareceu numa "nuvem de testemu- cita Séneca, como o fizeram Lipsius e Montaigne, tam-
nhas" extáticas como Santo Giuseppe da Copertino e Santa bém nos sermoes e na vasta correspondencia com amigos
María Madalena de'Pazzi, ao lado de santos ativos como e amigas que se confiaram á sua direcao espiritual. Desta
Camillo de Lellis. U m representante extraordinario da parte literarias das atividades do santo nasceram os seus
religiosidade popular foi o franciscano Fra Bartolomroeo livros, manuais de um cristianismo sereno, calmo e até
Cambi da Salutio ( 1 I _ A ), místico extático, asceta, pregador alegre, manuais de moral crista para gente culta e bem-
popular de repercussao imensa, poeta sacro, figurando
educada. Na apresentaqáo literaria revela-se a tendencia
dignamente entre S. Francisco e Savonarola. O centro de
geral da Contra-Reforma, de origem jesuística, a tenden-
autenticas atividades reformadoras era a curia arquiepis-
cia de se dirigir principalmente ás classes superiores da
copal de Milao, dirigida pelo santo Arcebispo Cario Bor-
sociedade; estava em relacáo com isso a complacencia,
romeo e, depois, pelo Cardeal Federigo Borromeo. Da
senáo por vézes a laxidáo moral, dos diretores de cons-
Savóia, e n t l o provincia do ducado italiano de Piemonte,
surgiu o santo que na Franga continuará a obra de San ciéncia. S. Francisco de Sales nao pensava, é claro, em
Cario Borromeo: S. Francisco de Sales. facilitar o cristianismo; pretendía apenas demonstrar que
em nossa própria natureza agem fórcas moráis paralelas e
S. Francisco de Sales ( 1 2 ) é, em primeiro plano, o que, portanto, o fim nao é inacessível nem de dificuldade
apostólo da Sabóia; reconquistou os territorios calvinistas sobre-humana. A sua própria "conversao", em 1585, con-
em torno de Genebra, da cidade de Calvino, da qual o santo sistirá em rejeitar a doutrina augustiniana da predestina-
era bispo, assim como San Cario Borromeo havia trazido gao, aceitando a tese do mérito das obras humanas. Neste
de novo ao catolicismo as regioes protestantes do Veltlino. sentido, pela confianca no homem, Francisco de Sales é
Obedecendo ás diretrizes do Papado, assegurou a vitória humanista como Erasmo ou Montaigne. Apenas, Francisco
pela fundagao da Ordem das Visitandinas, pela fundadlo de Sales salientou que o homem depende de Deus, nio do
de colegios e obras de caridade. Dos apostólos italianos da "Deus absconditus" dos calvinistas, mas do Deus do amor.
Contra-Reforma distingue-se Francisco de Sales justamen- Assim, a religiao nao é urna intervengao severa do mora-
lismo contra a natureza humana, e sim o equilibrio sereno
das fórgas humanas e das fórgas divinas. Se ésse equili-
11A) F. Sarrl: II venerabíle Fra Bartolommeo Cambi da Salutio.
brio se assemelha, por vézes, á "ataraxia" estoica, o estilo
Flrenze, 1925.
12) Saint Frangote de Sales, 1567-1622.
• desmente logo a comparagáo: é um estilo temo, florido,
Introduction d la vie dévote (1608; 2.* ed., 1619); Traite de até florido demais para o nosso gósto, expressáo de um
Vamour de Dieu (1616); etc. cristianismo amoroso. O próprio santo nao pareceu satis-
Edlcáo das obras completas pelas Réllgleuses de la Vlsitatlon feito com a redagao da Introducían á la vie dévote; na
d'Annecy, 24 vols., Annecy, 1892/1918.
P. Archambault: Saint Francols de Sales. París, 1927. segunda edigáo, de 1619, emendou muito, no sentido da
F. Strowskl: Saint Francois de Sales. 2.» ed. París, 1928. harmonía mais clássica; mas ficou o gósto das exclama-
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en Frun-
ce devuis la fin des guerres de religión. Vol. I. 2.» ed. Partí, goes, das comparagóes longamente desenvolvidas, das me-
1935.
1010 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1011

táforas novas ( l 3 ) . Nao chegou ele ao classicismo, mas, entre os novos apostólos da Franca: o Cardeal Pierre de
quando muito, ao aristotelismo estilístico, que faz p a r t e Bérulle (1575-1629), fundador da "École fransaise". Orga-
do Barroco. Porém o seu "catolicismo para gente culta e nizou em 1611 o Oratorio francés e reorganizou o Carmo
bem-educada" será o do classicismo francés dos grandes — Bérulle já estava imbuido de mística espanhola. Phi-
senhores e grandes damas que brilham na corte e se dedi- lippe Thibaut é o primeiro grande carmelita francés. A
cam, clandestinamente, a leituras edificantes e obras de fundadora do primeiro convento de carmelitas descaigas,
ascese e caridade. ' segundo as regras de Santa Teresa, é Barbe Avrillot, Ma-
Durante o ano de 1602, S. Francisco de Sales estéve dame Acarie; antes de entrar para a ordem, Madame Acarie
em Paris. O rei Henrique IV, que razoes de Estado haviam era centro de um saláo, especie de pendant religioso do
convertido ao catolicismo, veio a tornar-se católico zeloso, Hotel de Rambouillet, saláo freqüentado por Bérulle e os
apesar dos seus costumes relaxados. O monarca rejeitou seus discípulos. E entre ésses discípulos de Bérulle e
ainda o reconhecimento oficial dos decretos de T r e n t o ; amigos de Madame Acarie encontrava-se o capuchinho
mas desejava e apoiava a Renascenca religiosa que de um Pére Joseph, ligado aos "précieux" como autor de urna
lado os jesuítas e do outro lado os amigos e discípulos de epopéia heróico-sacra, Turcias, em língua latina, e ligado
S. Francisco de Sales iniciaram ( , 4 ) . É a época do "hu- a círculos muito diferentes como secretario do Cardeal Ri-
manismo devoto", entre cujos representantes principáis chelieu. O Pére Joseph era o diplomata mais temido de seu
Bremond incluí o jesuíta Pierre Le Moyne, autor da epo- tempo, encarnagáo do "secretario diabólico" do maquiave-
péia sacra Saint Louis ou le héros chrétien (1653), e do lismo lendário; com ele, cai no movimento místico francés
manual De la dévotion aisée (1652), que Pascal atacará. a sombra de Antonio Pérez. O espirito de Bérulle conser-
Ao humanismo devoto, de feicáo italiana, opor-se-á a ten- vou-se mais puro entre os oratorianos franceses: o maior
dencia mais rigorosa dos oratorianos, a que Bremond cha- entre éles, Charles de Condren (1588-1641), é hoje consi-
ma "École frangaise", mas que nascera além dos Pireneus. derado por alguns historiadores católicos como verdadeiro
genio religioso, superior ao próprio Pascal; a sua biogra-
De inicio, as influencias italianas juntam-se influencias fía, escrita em espirito teresiano, em 1643, p e l o P . " Amelóte,
da mística espanhola; e já se sabe que no século X V I I es- é apreciada como sendo o primeiro romance psicológico.
panholizagao significa Barroco. O primeiro centro da Re- Outro oratoriano da época, Jean-Jacques Olier (1608-1657),
nascenga religiosa ficará as fronteíras da Italia, na Pro- é o fundador do Seminario de St. Sulpice, em Paris, que
venga; é lá que se fundam os primeiros conventos franceses foi durante dois séculos o bergo do catolicismo liberal.
dos oratorianos e das ursulinas. A mentalidade ativa e Déste círculo sai Marie Martin (1599-1672), que no con-
serena de S. Francisco de Sales continua a agir em S. Vi- vento se chamou Marie de l'Incarnation, grande mística e
cente de Paula (1576-1660), o fundador dos lazaristas e das fundadora dos conventos das ursulinas no Canadá. Bre-
irmás de caridade; mas éste já é discípulo da maior figura mond exprime-se claramente: "Marie de l'Incarnation est
notre Thérése."
13) F. Vincent: Le travail du style chez saint Frangote de Sale».
París, 1923. É pleno Barroco. A revelagao do movimento místico
14) H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en Franca tem como conseqüéncia a revalorizagáo da literatura reli-
despuis la fin des ouerres de religión. Vols. n , m . 2.» ed. Parí»,
1935. giosa da época, intimamente ligada ao Barroco dos "pré-

1012 OTTO MARÍA CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1013

cieux": Desmarets e Godeau, representantes literarios da La Cépéde faz parte de urna extensa literatura religiosa
Renascenca religiosa, aparecem entre os autores de epo- ou, pelo menos, imbuida de espirito religioso, que se ex-
péias heróico-sacras e de romances heróico-galantes. Tra- prime em formas barrocas: é a literatura barroca da Con-
ta -se. por vézes, de literatura "a lo divino", como no caso tra-Reforma francesa: classicismo religioso, porque imbui-
de Pierre Camus ( 15 ), Bispo de Belley, colaborador e amigo do do realismo que aprenderá na mistica espanhola. Nao
devoto de S. Francisco de Sales. Assustado pela influencia
se encontra em oposicáo ao nascente classicismo de base
erótica, considerada nefasta, d o s romances pastoris 'e de
aristotélica, do "Siécle de Louis X I V " ; antes é seu pre-
aventuras, Camus escreveu romances semelhantes com fins
diferentes. Palombe ou La Femme honorable é urna Astrée cursor (*°- A ).
"a lo divino", igualmente ilegível, "précieuse", mas pre- Assim como aconteceu na Espanha e na Inglaterra, na
ciosa como testemunho do Barroco francés. relacao entre Garcilaso e os poetas barrocos, entre os Úricos
elisabetanos e os "metaphysical poets", também na Franca
A maneira de escrever "a lo divino" é a inversao bar-
roca do processo dos petrarquistas da Renascenga, que em- aquela poesía barroca tem raízes renascentistas: seus pre-
pregaram imagens religiosas para exprimir sentimentos cursores sao últimos rebentos da "Pléiade". O mais impor-
eróticos. Na Franca, é esta a especialidade do "conceptis- tante désses intermediarios, Jean de Sponde ( 1 0 " B ), BÓ re-
t a " Desportes, e inversao semelhante encontra-se no pro- centemente f oi redescoberto, após um esquecimento de mais
cesso poético de Jean de La Cépéde ( I C ), empregando ter- de tres séculos: em formas ronsardianas exprime angustias
mos militares para descrever as cenas da Paixao. O "vexilla religiosas que letnbram Pascal. Da mesma estirpe é Sar-
regis prodeunt" torna-se razin ( l 6 " c ) , cujos sonetos sobre o desolamento material e
espiritual da Franca se parecem, as vézes, com as expres-
"Les cornettes du Roí volent par la campagne", e a soes que seu contemporáneo Andreas Gryphius dedica á
Cristo diz o poeta: Alemanha devastada pela Guerra de T r i n t a Anos. Nao se
esquece, enfim, aquéle grande precursor do estilo barroco
"Tous vos faits, tous vos dits ont un sens héroique."

16A) J. Rousset: La Litterature de l'&ge baroque en France. Paris,


15) Pierre Camus. 1582-1653. 1953.
Agatomphile ou Les Martyrs siciliens (1623); Palombe ou La
femme honorable (1624). 16B) Jean de Sponde, 1557-1595.
Edlcao da Palombe por H. Rlgault. París, 1853. Stances; Sonnets d la mort; Médltatians sur les psaumes (1588);
H. Bremond: Histoire littéraire du sentlment rellgieux en Frun- Poésies (1597).
ce depuis la fin des guerres de religión. Vol. I. 2.» ed. Paris. 1936. Edlcao das Poesías por A. Boase e F. Ruchon, Oénéve, 1950.
A. P. Bayer: Pierre Camus, sein Leben und seine Romane. A. Boase: "Jean de Sponde". (In: Mesures, 1939.)
Leipzig, 1906. M. Arland: L'oeuvre poétique de Jean de Sponde. París, 1943.
16) Jean de La Cépéde, c. 1550-1622. O. Mácenla; "Jean de Sponde e 11 problema della poesía ba-
Théorémes sur les sacres Mystéres de notre Rédemption (1613). rocca In Francia". (In: Letteratura, 1/1, 1963.)
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment rellgieux en Frun- 16C) Jean-Francois Sarrazln, 1603-1654.
ce depuis la fin des guerres de religión. Vol. I. 2.a ed. Parto, Edl?ao das obras por P. Festuglére, París, 1926.
1935. A. Mennung: Jean-Frangois Sarrazin's Leben und Werke. Halle,
D. Anry: Anthologie de la poésie religeuse francaise. París, 1943. 1902.
1014 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1015

e m l í n g u a francesa que foi A g r i p p a D ' A u b i g n é ( l 8 - D ) . M a s t r a n s f o r m a n d o v e r s í c u l o s b í b l i c o s o u t r e c h o s da l i t u r g i a


éste é protestante, inimigo d a sociedade aristocrática que em verdadeiras torrentes de metáforas.
r o d e i a o m o n a r c a , c o m b a t e n d o - a c o m a s a r m a s da a l t a sá- A f i g u r a m a i s e s p a n h o l a e m a i s c o m p l e t a entre o s
tira poética. poetas religiosos do Barroco francés é Guillaume de B r é -
A i e s p o s t a católica é a q u é l e h e r o í s m o "a lo d i v i n o " d e b e u f ( 2 0 ) . A o b r a c a p i t a l d a s u a v i d a é a t r a d u c a o d a Phar-
q u e L a C é p é d e é um dos p o r t a - v o z e s m a i s d e c i d i d o s . A salia, d o e s t o i c o r o m a n o - e s p a n h o l L u c a n o , t r a d u g a o m u i t o
mesma mentalidade aristocrático-católica inspira a epopéia caluniada pelos classicistas, mas nao de todo desprezivel;
h e r ó i c o - s a c r a Clovis, d e D e s m a r e t s d e S a i n t - S o r l i n ( 1 T ) , B r é b e u f c o m p l e m e n t o u - a l o g o d e p o i s c o m urna p a r o d i a
q u e t a m b é m escreveu r o m a n c e s h e r ó i c o - g a l a n t e s ; é s t e f r e - h e r ó i - c ó m i c a , t o m a n d o a s s i m a t i t u d e a n t i t é t i c a , bem bar-
qüentador do Hotel de Rambouillet traduziu a Imitatio roca. O s Entretiens solitaires sao o b r a d e u m p o e t a l í r i c o
Christi, r e v e l a n d o - s e n o s Délices de l'Esprit u m m í s t i c o da
n o t á v e l q u e e x p l o r a e x p e r i e n c i a s í n t i m a s em t o m grave
oragao, s e g u n d o o t e s t e m u n h o d e B r e m o n d . D e s m a r e t s é
e sincero:
hoje pouco legivel; parece ter sido o Chateaubriand da
s u a época, d a q u a l o L a m a r t i n e foi A n t o i n e G o d e a u ( 1 8 ) (
b i s p o d e urna diocese da P r o v e n g a , a b e r t o a i n f l u e n c i a s " A i n s i c o n t r e s o i - m é m e il n ' a p a s d e r e f u g e ;
marinistas, e mais líricamente emocionado do que, e m I I est s o n c h á t i m e n t a u s s i b i e n q u e s o n j u g e ,
g e r a l , os s e u s c o n t e m p o r á n e o s . L i r i s m o a b u n d a n t e , á m a - L ' i n s t r u m e n t d e sa p e i n e a u s s i b i e n q u e l ' a u t e u r ,
n e i r a e s p a n h o l a , a p a r e c e ñas p o e s í a s d o f r a n c i s c a n o M a r t i a l E t d e v i e n t m a l g r é lui, p o u r p u n i r s e s of t e n s e s ,
de Brives ( , B ) , o gongorista e n t r e os poetas franceses, De vos rudes vengeances
L e rude exécuteur."
16D) J. Buffum: Agrippa D'Aubigné, Les Tragiques. A Studv of the
Baroque Stvle in Poetry. New Haven, 1951.
O p e n s a m e n t o q u e se e x p r i m e n e s t e s v e r s o s s o m b r í o s é
17) Jean Desmarets de Saint-Sorlin, 1595-1666. (Cf. "Oposicoes
barrocas e antibarrocas", nota 35.) p u r a m e n t e estoico; o estilo poético désse estoico cristáo
Epopéia: Clovis ou La France chrétienne (1657); romances: Aria- parece pouco "précieux". E m Brébeuf se encontram, de
ríe (1632); Aspaste (1636); Le Cantíque des Degrés; Les Délices maneira típicamente barroca, cristianismo e estoicismo,
de l'Esprit; comedia: Les Visionnaires (1637).
B . KerviJer: Jean Desmarets de Saint-Sorlin. Paris, 1879. gongorismo e classicismo. É u m Quevedo francés. O pro-
J. Relbetanz: Jean Desmarets de Saint-Sorlin, sein Leben und s a d o r dessa c o r r e n t e é J e a n - L o u i s G u e z d e B a l z a c .
seine vi erke. Leipzig, 1910.
R. Gebhardt: Jean Desmarets de Saint-Sorlin, ais dramatisches
Dientes. Erlangen, 1912.
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en France 20) Guillaume de Brébeuf, 1618-1661. (Cf. "Pastorals, Epopéias e
depuis la Jin des guerres de religión. Vol. VI. 2.» ed. Paris, 1935. Picaros", nota 38.)
18) Antoine Godeau, 1606-1672. La Pharsale de Lucaln (1654/1655); Le premier livre de Lucain
Oeuvres chrétiennes (1633); Psaumes (1648); Saint-Paul (1654). travestí (1656); Entretiens solitaires (1660).
A. Cognet: Godeau, évéque de Vence et de Grasse. Paris, 1900. Edicao dos Entretiens por R. Harmand. Parla, 1911.
R. Harmand: Essai sur la vle et les oeuvres de Guillaume de
1») P . Martial de Brives (Paul Dumas), t c 1653. Brébeuf. Paris, 1897.
Parnasse séraphique (1660).
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en France
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en Franct
depuis la fin des guerres de religión. Vol. I . 2.» ed. Paris, 1935.
depuis la fin des guerres de religión. Vol. I. 2.» ed, Paris, 1935.
1016 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1017

Jean-Louis Guez de Balzac ( 2 1 ) é considerado o Ma- tosas, com o movimento místico: Mere Angélique Arnauld,
Iherbe da prosa francesa, o criador da frase clássica har- a reformadora de Port-Royal, é discípula de S. Francisco
moniosa e redonda. O que s e censura a Balzac é a falta de Sales, e o Abade de Saint Cyran, diretor espiritual dos
de idéias, o lugar-comum permanente, que, por sua vez. primeiros jansenistas, era amigo de S. Vicente de Paula.
teria facilitado a divulgarlo do novo estilo. Também Apenas, o jansenismo é urna reacio antimística, antiaris-
Sainte-Beuve, que o compara a Isócrates e a Tito Lívio, totélica, enquanto o classicismo antimístico dos Bossuets e
Ihe chama superficial; mas dedica-lhe duas vézes o mesmo Bourdaloues é aristotélico; mas os dois movimentos rea-
adjetivo: "Isocrate chrétien", "Tite-Live chrétien". Com gem igualmente contra a influencia espanhola, servindo-se
efeito, Balzac é cristáo; pertence á Renascenca religiosa, para ésse fim da prosa de Balzac. Mais perto do Barroco
ao "humanismo devoto". Mas nao é cristáo platonizante. estao, paradoxalmente, os grandes oradores sacros, que
O seu ideal está no título de urna das suas obras: Socrate parecem tao classicistas; porque criaram urna prosa aris-
Chrétien. É, por assim dizer, a síntese de S. Francisco de totélica, correspondente á poesía aristotélica.
Sales e Lipsius. Balzac é estoico cristáo, como Brébeuf,
como Quevedo, do qual se aproxima num "espelho de prín- Evidentemente, é um aristotelismo diverso do dos gon-
cipes", Le Prince; e do estoicismo político de Balzac des- goristas. Difícil foi a vitória do Barroco burgués de Luis
cende a tragedia política de Corneille. A sua epistologra- XIV, "ce grand roi bourgeois", sobre o Barroco aristocrá-
fia, veículo principal da sua repercussáo, ressente-se da tico e o gósto popular; e o resultado nao se entende bem
influencia de Antonio Pérez. Balzac, criador da prosa sem se tomar conhecimento dos antecedentes espanhóis.
clássica, é um espirito barroco; a própria abundancia de Assim como a poesía gongorista sai do renascentismo
metáforas na sua prosa nao é muito clássica. O fato de o de Garcilaso de la Vega e Fernando de Herrera, assim
classicismo francés comecar com a obra de um discípulo também o estilo barroco no pulpito se inicia com as dou-
de Antonio Pérez e párente longinquo de Quevedo merece trinas de eloqüéncia sacra de Fray Luis de Granada. O
lembrado. último clássico e primeiro estilista barroco do pulpito es-
panhol é, significativamente, um dominicano: Fray Alonso
A prosa de Balzac é um instrumento formal; pode
de Cabrera ( 2 2 ). O editor moderno dos seus sermoes, o
servir a gregos e troianos, e serviu igualmente aos janse-
P. e Mir, compara a majestade do seu estilo as pompas do
nistas e aos oradores sacros ortodoxos. O jansenismo es-
Escorial, salientando os lugares-comuns estoicos, encon-
téve em reláceos muito evidentes, embora nem sempre amis-
trados em Séneca, na famosa oracáo .fúnebre do rei Fili-
pe I I . Fray Alonso faz questáo de dizer que toda a pompa
21) Jean-Louis Guez de Balzac, 1594-1654. humana acaba com a morte e que só Deus é grande. Mais
Lettres (27 llvres: 1624/1655); Le Prince (1631); Socrate crestien de um século depois, no fim da evolucáo da oratoria sacra
(1652); etc.
Ünica edicao completa por L. Billalne, 2 vols., 1665. clássica, Massillon diz perante o catafalco pomposo de
Obras seletas, editadas por M. Moreau, 2 vols.. París, 1854.
Kdigao crítica das Premieres lettres por H. Blbas e K. T. Butler,
París, 1934.
A. Sainte-Beuve: Histoire de Port-Royal. Vol. n . 4.* ed. Paris, 22) Fray Alonso de Cabrera, c. 1549-1598.
1926. Edl;ao dos sermoes (com lntroducáo) por M. Mir. ('Nueva Bi-
G. Guillaumle: Balzac et la prese francaise. Paris, 1927. blioteca de Autores Españoles', vol. m.)
1

1018 OTTO M A R Í A CAHPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1019

Luis X I V : "Dieu seul est grand." Entre estes polos se fala déles, apresentando, déste modo, um vasto panorama
coloca a tentativa do pulpito barroco de dizer algo de novo, da Austria barroca, vista de baixo para cima, de interésse
inédito, em vez do lugar-comum moral, que constitui fatal- evidente para nos — mas será isso oratoria sacra? E pe-
mente o fundamento da eloqüéncia sacra. rante a corte? Abraham a Sancta Clara, sem fazer oposicao
Para ésse fim serviu o gongorismo, seja o sublime, seja sistemática, é a voz do povo perante o trono. Falando a
o burlesco. O representante d o gongorismo sublime, no gíria popular perante os poderosos, Abraham faz-lhes sen-
pulpito, é Fray Hortensio Paravicino ( 2 a ), poeta gongorista tir que a entendem e que sao, portanto, da mesma estirpe.
que dedicou quatro sonetos ao Greco. A notoriedade dos Zombando de todas as classes e profissoes. o agostinho tem
seus sermóes como obras difíceis, de dialética sutil, data o direito de zombar dos grandes também. A profunda se-
de urna época em que o Greco era desprezado. Já se admite riedade das admoestacóes moráis coloca a eloqüéncia bur-
hoje a grande beleza do Sermón de la Soledad (1626); e um lesca de Abraham a Sancta Clara na situacáo dos bobos da
estudo moderno désse orador sacro talvez chegasse a resul- corte, que tinham o direito de dizer verdades duras. Por
tados surpreendentes. E m contrapartida, nao é mister pres- isso — além do auténtico genio lingüístico — distingue-se
tar muita atengao aos pregadores populares de gósto bur- Abraham a Sancta Clara dos outros oradores burlescos do
lesco; um dos últimos foi o franciscano Francisco de Soto pulpito barroco, de um Emanuele Orchi, na Italia, do agos-
y Mame, objeto da sátira destruidora de Isla, no Fray Ge- tinho André Boullanger, na Fran$a. Parecem-nos, porém,
rundio. Em outra língua, porém, ésse gósto popular produ- mais "burlescos" — no sentido pejorativo da palavra — os
ziu a obra esquisita e divertidíssima do agostinho Abraham padres que tomaram a serio o "marinismo sacro", os ita-
a Sancta Clara ( 2 4 ), pregador da corte de Viena. Se os gran- lianos Francesco Fulvio Frugoni e Luigi Giuglaris, os
des oradores sacros da Franca sao de "la cour et la ville", o franceses Pierre Cotón e Jean-Franc,ois Senault, famoso,
vienense é apenas da "ville"; fala a giria do povo, acumula éste, pelos panegíricos sadisticamente pormenorizados so-
anedotas burlescas, á maneira dos contistas medievais, bre mártires famosos. Nao é possível formar opiniao se-
imita a fala das diversas profissoes, é pródigo cm trocadi- gura sobre a eloqüéncia do Cardeal Jacques Du Perron,
lhos, fala da guerra, dos turcos, da peste, dos médicos e dos poeta galante que fez as oracoes fúnebres, hoje perdidas,
advogados, dos judeus e até dos padres, assim como o povo de Ronsard e da rainha María Stuart. A grande eloqüéncia
sacra nao principia senáo na segunda metade do século.
23) Fray Hortensio Félix Paravicino y Arteaga, 1580-1633.
Oraciones evangélicas en las festividades de Cristo Nuestro Señor O representante dessa nova arte no ambiente do Bar-
y su Santísima Madre (1640); Oraciones evangélicas de Adviento roco contra-reformista é Paolo Segneri ( 2 5 ), pregador da
y Cuaresma (1645).
J . E. Hartzenbusch: La oratoria sagrada española en el siglo 35) Paolo Segneri, 1624-1694.
XVII. Madrid, 1853. Panegirici (1664); Quaresimale (1679); II Cristiano istrulto (1686):
24) Abraham a Sancta Clara (Ulrich Megerle), 1644-1709. Prediche dette nel Palazzo Apostólico (1694).
Merks Wien (1680); Auf, auf. ihr Chrlsten (1681); Grosse To- Edlcáo completa, 8 vols., Milano, 1853/1855.
tenbruderschft (1681); Judas, der Ertzschelm (1686). Edigáo do Quaresimale por F . Ranalli, Prato. 1841.
Edlcáo de obras escolhldas por H. Strlgl, 6 vols. Wlen, 1904/ F . Ranalli: Vita di Paolo Segneri. Prato, 1841.
1905; edlcáo das obras completas por K. Betrsche, Wlen, 1943. F . Scolari: L'eloquenza del padre Segneri. Venezia, 1845.
Th. G. V. Karajan: Abraham a Sancta Clara. Wlen, 1867. N. Risl: II principe dell'eloquenza sacra italiana: Paolo Segneri.
K. Bertsche: Abraham a Sancta Clara. 2.» ed. Muenchen-Glad- Bologna. 1924.
bach, 1922. A. Bellonl: Paolo Segneri. Torino, 1932.
1020 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1021

corte papal, dono de erudigáo enciclopédica e virtuose da-, •certa frieza estoica, certo humanismo cristianizado. No
lingua, grande polemista contra inimigos inexistentes — fundo, trata-se de urna verdadeira revolugáo literaria. Bru-
nao houve ateístas e heréticos n a Italia barroca — que com- netiére, em esbógo engenhoso e ainda nao antiquado ( 2 T ),
bate com vigor de advogado; é, apesar de tudo isso, um explicou a falta de poesia lírica na Franja da segunda me-
moralista destemido, dizendo a verdade ao Papa e aos car- tade do século X V I I pelo próprio classicismo: pelo con-
deais. Os sermoes de Segneri, além de oferecerem fontes formismo que excluí a emogáo subjetiva, pelo intelectua-
lismo que transforma a inspiragáo em dialética; o que so-
importantes para o estudo da inteligencia italiana no século
brava de lirismo refugiou-se na eloqüéncia sacra, que per-
X V I I , constituem, ainda hoje, impressionante leitura: o
correu, Bossuet, através de Bourdaloue, até Massillon, o
grande dialético, para vencer os recalcitrantes, baseou os
mesmo caminho da objetivagáo e intelectualizagáo, até se
seus sermoes em disposicoes tao rigorosamente elaboradas
perder no comégo do século X V I I I . Meio século depoÍ6,
que nos parecem até agora irrefutáveis. É um contempo-
Rousseau renovaría o subjetivismo e a sensibilidade; e a
ráneo digno de Bourdaloue. nova eloqüéncia "sacra" de Chateaubriand e Lamennais iria
O processo retórico de Segneri é o mesmo da eloqüén- abrir caminho á poesia de Lamartine e á da primeira fase
cia eclesiástica francesa; só a linguagem é diferente. Os de Vítor Hugo, crista e retórica como a literatura do pul-
pregadores da corte de Henrique IV, como Du Perron e pito no século X V I I . Thibaudet acrescentou á tese de
Nicolás Coeffeteau, lembram — assim como Segneri — a Brunetiére importantes reflexóes sobre o "espirito de pro-
escola espanhola. Claude de Lingendes, que foi conside- sa" na grande literatura francesa. O que nao é admissível
rado reformador do pulpito, ainda é "précieux". S. Fran- naquele esquema histórico é a oposigáo absoluta entre li-
cisco de Sales exige simplicidade, e ele e S. Vicente de rismo e dialética; justamente a poesia barroca é expressáo
Paula evitam realmente os "concetti"; mas substituem-nos de um lirismo dialético. O verdadeiro motivo por que na
pelas exclamagóes sentimentais, pelas comparagóes elabo- Franja do século X V I I ésse lirismo se exprimiu em prosa,
radas. Em vez de ocupar a inteligencia, pretendem impres- nem Brunetiére nem Thibaudet souberam explicá-lo satis-
sionar a emotividade. Dai um lirismo que se aproxima, p o r fatóriamente. Quanto á sociedade aristocrática, talvez o
sua vez, do preciosismo. O famoso representante dessa fase problema nao exista, como o parece indicar o descobrimento
da eloqüéncia sacra é Fléchier ( 2 6 ), que converteu a ter- da poesia de Sponde e Brébeuf. Mas é certo que o classi-
nura de S. Francisco de Sales em elegancia mundana; as cismo burgués nao admitiu outra fonte de emogáo pessoal
suas famosas oracoes fúnebres de Madame de Montau- além da religiosa, que aparece igualmente na poesia de
sier (1672) e de Turenne (1676) sao modelos de retórica Brébeuf, no Polyeucte, de Corneille, na Athalie, de lÜacine,
nobre e vazia. Entre os reformadores do pulpito nao se na prosa de Pascal, e que encontrou a sua expressáo mais
deve esquecer um "pregador leigo": Jean Louis Guez de legítima, porque autorizada, ñas oragoes fúnebres de Bos-
Balzac. Com a sua frase chegam o moralismo aristotélico,. suet e nos sermoes de Bourdaloue. O progresso da dialética
a expensas da inspiragáo lírica que Brunetiére apontou

26) EsprJt Fléchier, 1632-1710.


Oraisons fúnebres (1705); Sermons de morale (1713).
Edigáo por A. Ducreux, 10 vols., Nimes, 1782.
A. Fabre: Fléchier orateur. París, 1886. 27) F. Brunetiére: L'évolution des genres dans Vhistoire de la litté-
G. Gerente: Fléchier. París, 1934. rature. París, 1890.
.

1022 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1023

como causa da decadencia da poesia, é, na verdade, o for- sacra". Quando, a partir de 1772, se publicaram pela pri-
talecimento do espirito clássico-burgués. Os críticos d o meira vez os seus sermoes completos, o Abade Maury ex-
século X V I I I , sentindo isso instintivamente, ousaram opor- primiu a impressao geral, proclamando ser Bossuet o maior
se ao consenso unánime, que vé em Bossuet o mais clássico orador cristáo de todos os tempos. A posteridade aderiu,
dos clássicos; preferiram Bourdaloue a Bossuet, e Massil- porém, á opiniáo céptica da La Harpe, censurando as desi-
lon a Bourdaloue. A evolucáo da eloqüéncia sacra fran- gualdades do sermonista; o século X V I I I preferirá sem-
cesa ( 28 ) acompanha a ascensáo histórica da burguesía fran- pre os Bourdaloues e Massillons. Bossuet é o maior de to-
cesa; os sermoes nao substituem a poesia barroca aristocrá- dos, nao como orador sacro, mas porque nao é apenas orador
tica, mas constituem, de inicio, um género "lírico" inde- sacro. É antes a figura mais completa do movimento que
pendente. No pulpito francés, a vitória da burguesía — no se chama "classicismo francés", cujo estudo se comega con-
sentido de classe literaria — estava garantida de antemao. venientemente com ele. A sua atividade literaria foi imen-
Daí os relativamente poucos ref lexos da querela jansenista sa: eloqüéncia e historiografía, epistolografia e política,
— luta em torno da religiáo da burguesía — na eloqüéncia meditagoes místicas e polémicas exegéticas. Contudo, para
sacra: motivo pelo qual é possível tirá-la da cronología dos a apreciacáo da obra literaria de Bossuet só pode empre-
outros fatos literarios; possível, e até cronológicamente gar-se o criterio do valor literario; mas será possível, será
certo, porque o estilo d a eloqüéncia sacra existia antes de, justo empregá-lo? O próprio Bossuet, exposto as observa-
durante a luta jansenista, "se fixer la langue'' nos escritos • >-oes estilísticas e estéticas dos cortesáos, dizia-o claramente,
de Pascal. na orac,áo fúnebre da "princesse palatine": "Mon discours
dont vous vous croyez peut-étre les juges, vous jugera au
Bossuet ( 2 9 ), a maior figura da Igreja "docens" da dernier jour." Bossuet tem consciéncia do seu genio lite-
Franja, nao cabe inteiramente no género "eloqüéncia rario; mas nao se serve déle para criar belezas verbais ou
para exprimir a sua própria forte personalidade, e sim para
28) J. S. Maury: Essai sur Véloquence de la chaire. 1777. (2.* ed.: dizer a verdade como ele a entende: a verdade da Igreja
París. 1810.)
J. Hurel: Les prédicateurs sacres á la cour de Louis XIV. 2.a ed.
2 vols. París, 1874.
Discours sur Vhistoire universelle (1681); Histoire des variations
O. E. Freppel: Bossuet et Véloquence chrétienne au XVIIe siécle.
des églises protestantes (1688); Politique tirée des propres paroles
2 vols. París, 1803.
de l'Ecriture Sainte (1700); Élevations sur les mystéres (1727);
20) Jacques-Bénlgne Bossuet, 1627-1704. Médltations sur Vtvangile (1730/1731); etc., etc.
Panegíricos: Panégyrique de St. Bernard (1653); Panégyrique de Edlcáo completa por M. Lachat, 31 vols., París, 1862/1866.
St. Paul (1650); etc. Edlcao das obras oratorias por Ch. Urbain e E. Levesque, 6 vols.,
Sermoes: Sur Veminente dignité des pauvres dans l'tglise (1650); París, 1014/1023.
Sur Vhonneuer du monde (1660); Sur Vambition (1662); Sur la C. A. Salnte-Beuve: Causeries du Lundl. Vols. X, XII, XIII.
mort (1662); Sur Vimpénitence tíñale (1662); Sur la Providence G. Lanson: Bossuet. París, 1800.
(1662); Sur les devoirs des rois (1662); Sur l'amour des plaisirs J. Lebarq: Histoire critique de la prédication de Bossuet. 2.» ed.
(1666); Sur Vunité de Vtglise (1681); Sur le silence (1686); etc. París. 1801.
Oralsons íunébres: du P. Bourgoing (1662); d'Henriette-Marie
de Trance (1660); d'Henriette-Anne WAngleterre (1670^; de .'./«- A. RebeUlau: Bossuet. París, 1000.
rie-Thérése d'Autriche (1683); d'Anne de Gomague, princesse F. Brunetiére: Bossuet. 2.* ed. París, 1014.
palatine (1685); de Michel Le TeUier (1686); de Louis de hour- L. Dimler: Bossuet. París, 1016.
bon, duc de Conde (1687). O. Truc: Bossuet et le classicisme religieux. París, 1034.
J. Calvet: Bossuet. París, 1041.
.

1024 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1025

da qual é bispo, investido para pregar, defender e ampliar ceiro ponto, argumentagoes e conclusóes — mas isso nao
o reino de Cristo. O "estilo", p a r a ele, é apenas um instru- passa de "construgao auxiliar", como ñas demonstragoes
mento; e, se os termos "Barroco" e "Classicismo" signifi- geométricas. O ponto de partida é o versículo bíblico, a
cassem apenas estilos d a expressao verbal, a discussao seria conclusáo é o dogma; entre ésses polos, o desenvolvimento
inútil. Bossuet nao é de nenhum partido literario, nem de lógico é própriamente supérfluo, porque o resultado foi
qualquer partido profano. O seu partido é a Igreja, o seu previsto. Na verdade, o sermao inteiro é só paráfrase. Era
cargo é o de bispo. isso que parecía primitivo aos críticos do século X V I I I .
E é "primitivo", embora noutro sentido: é o estilo da ho-
Como bispo, Bossuet é a u t o r i t a r i o ; representa a auto-
milía, da predicagao na Igreja primitiva. Ambrosio, o
ridade. A sua intolerancia é o seu dever. Bossuet parece
grande bispo de Milao que negou entrada na Igreja ao im-
a encarnacáo da Igreja contra-reformista, aliada ao reí ab-
perador manchado de sangue, fala assim. Bossuet, com a
soluto da Franca; parece o porta-voz teocrático e aristo-
mesma inspiracao. com o mesmo sentimento da sua digni-
crático do absolutismo francés do século X V I I . Mas essa
nida, nao chega a tanto; o século o impede. " O rois", diz
opiniáo corrente nao aprecia bem a parte de reforma au-
Bossuet, "exercez done hardiment votre puissance, car elle
téntica na Contra-Reforma. P e l o menos na Franga, após
est divine", quer dizer, como a dos bispos; mas acrescenta:
o reconhecimento dos decretos tridentinos, a Igreja cató-
"au fond elle vous laisse faibles; elle vous laisse mortels."
lica sofreu urna reforma de verdade; teve, depois, o melhor
* O rei morto é apenas um pobre mortal, batendo, como to-
clero do mundo, e também o melhor episcopado, no qual
dos, as portas da eternidade; e, entao, nessa porta que é o
um Bossuet nao é caso único. Na Igreja francesa do sé-
servigo fúnebre, é o bispo que o julga. Ambrosio nao che-
culo X V I I viveu algo do espirito altivo do cristianismo
gou a t a n t o ; Bossuet parece-se mais com os profetas bí-
romano de Ambrosio, bispo e ciceroniano. Como em Am-
blicos, que também eram chamados juízes. O seu modelo
brosio, a forma é romana e erudita, a inspiracao é hebraica
seria Samuel, julgando o povo e os reís. Essa inspiragáo
e profética. Em seus melhores momentos no pulpito, Bos-
de Bossuet fez surgir de novo um género retórico já exis-
suet fala como um profeta do Velho Testamento. Os seus
tente, mas do qual é ele o único verdadeiro mestre: a oragáo
precursores, S. Francisco de Sales, S. Vicente de Paula,
fúnebre. Sainte-Beuve observou que a grande vantagem
desejando purificar o estilo do pulpito, chamaram a atengao
de Bossuet em viver sob o govérno de Luís XIV consistiu
para a expressao simples da Biblia. O conselho era bom,
em que o rei lhe forneceu os grandes assuntos político-
mas a realizacáo difícil porque em país católico, onde a
históricos da sua predicagao. Isto seria em váo, porém, se
leitura da Biblia nao é geral, nao existe estilo bíblico ge-
Bossuet nao fósse, como é, o grande intérprete da Historia,
ralmente aceito. Bossuet, falando do pregador ideal, diz
juiz dos vivos e dos mortos, dispondo, como um deus, dos
também: "II puise tout dans les Écritures, il en emprunte
destinos humanos, explicando os designios da Providencia
méme les termes sacres." Nao encontrou estilo bíblico em
Divina. O estilo das oragoes fúnebres é classico; nunca se
lingua francesa; criou, entáo, um estilo francés correspon-
escreveu francés mais classico. As pompas fúnebres da
dente ao bíblico; porque Bossuet era um genio hebraico,
decoragáo exterior sao barrocas. O Bossuet que vive na
da estirpe dos pontífices do templo de Jerusalém. Os seus
nossa memoria — o bispo em rico ornato entre os panos
sermoes estáo redigidos de harmonía com os preceitos da
prétos e os príncipes humilhados pela sua palavra — é
retórica aristotélica — primeiro ponto, segundo ponto, ter-
1026 OTTO MARÍA CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1027

uma personagem barroca. O conceito da Historia que en- desde quase tres séculos, o ídolo de uma parte da Franca
forma as oragóes fúnebres é u m compromisso entre clássico — "o Vítor Hugo da Igreja da Fransa" — e o espantalho
e barroco. Também no Discours sur l'histoire universelle da outra parte, foi inúmeras vézes censurado por ser a sua
a historia providencial dos judeus, gregos e romanos chega obra um imenso lugar-comum eloqüente, que já nao nos
ao compromisso entre o mundo clássico e o mundo cristáo, diz nada. Essa apreciacao malevolente nao leva em conta
digamos, entre Renascenca e Barroco. E esta seria a pri- aquelas contradigoes íntimas, que precedem a formulagao
meira definigao aproximativa d o classicismo francés. lógica do pensamento. Para a maior parte do mundo mo-
Ésse compromisso é o dogma literario de Bossuet; é derno, a filosofía de Bossuet é inaceitável: o seu providen-
uma das conclusoes do seu dogma católico. O rompimento cialismo histórico nao satisfaz as nossas exigencias; a ma-
do compromisso seria heresia, ou literaria ou religiosa. A neira como Bossuet perseguiu o grande oratoriano Richard
heresia dos protestantes consiste num rompimento assim: Simón, fundador da exegese crítica da Biblia, aborrece até
rejeitando a parte paga da civilizagao crista, quebraram o aos eruditos católicos, e levou o Abade Bremond a silen-
equilibrio, típico do classicismo literario e do classicismo ciosa mas veemente hostilidade contra o grande bispo
religioso; desde entao, debatem-se os heréticos em inúmeras ortodoxo. O sistema de Bossuet é homogéneo, sem contra-
variacóes sucessivas dos seus credos, sem jamáis encontra- digoes lógicas, e por isso o mundo moderno é levado a
rem a unidade firme e equilibrada da Igreja apostólica. rejeitá-lo em bloco. Talvez se abram possibilidades de
Demonstrando-o, Bossuet cumpre o seu dever de bispo, melhor compreensáo, se essa falta de contradigoes fór
defendendo a fé. O elogio désse equilibrio, na Histoire des
interpretada do mesmo modo por que os matemáticos e
variations des Églises protestantes, é bem clássico; mas a
logicistas modernos declaram "sem contradigáo" uma ló-
idéia de interpretar a heresia como falta de equilibrio
gica ou uma geometría, nao considerando se ela corres-
entre a Providencia Divina e a vontade humana, quer dizer,
ponde ou nao a uma realidade exterior. É outra maneira
a dos heresiarcas, é uma idéia barroca, porque é uma idéia
da "suspensión of disbelief", proposta por Coleridge para
dialética.
poder aceitar expressoes artísticas de religióes alheias.
Existem em Bossuet, atrás da homogeneidade impo- Partindo désse ponto de vista, admite-se o irracionalismo
nente da sua obra, varias c o n t r a d i c e s assim latentes; nao do pensamento de Bossuet, sem negar a coeréncia lógica
contradigoes lógicas, mas contradigoes do compromisso entre as partes irracionais. Entáo, a contradigáo é colocada
entre duas maneiras de pensar. Para defender a sua fé, antes da formulagao lógica, mima carnada mais profunda
Bossuet emprega um método dialético: "Non contents de da alma. Ali reside ambigüidade da qual saiu a "emogáo
leur faire voir q u e . . . . montrons au contraire q u e . . . . " . Na lógica", por assim dizer, de Bossuet, as qualidades poé-
carta ao P. Caffaro, contra as comedias, Bossuet chega, ticas da sua prosa, a transformagao dos lugares-comuns
empregando essa dialética, a limitar a autoridade de "Saint sacros dos pregadores de todos os tempos em imagens
Thomas et des autres saints" que toleraram o teatro. O melancólicas ou terrificantes: frases como — "Madame
método leva a conclusoes ortodoxíssimas, mas como método cependant a passé du matin au soir, ainsi que l'herbe des
nao concorda bem com a ortodoxia de Bossuet, que só champs"; ou a reuniao dos demonios na cámara mortuária
admite "quod ubique, quod semper, quod ab ómnibus cre-
do rico impenitente, no Sermón sur Vimpénitence finale;
ditum est", isto é, o "lugar-comum" sacro". Bossuet, que é,
ou as descrigóes pormenorizadas, ás vézes crudelíssimas,
1028 OTTO MARÍA CARPEAÜX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1029

de martirios e da desgrana dos judeus, que tanto irritaram parce que excessivement échauffée et agitée elle se con-
o gósto clássico de Sainte-Beuve. Essa peosia de qualida- sume elle-méme par son propre feu." É urna especie de
des eminentemente barrocas, lernbrando os quadros de mar- economía mental, indispensável para manter o equilibrio
tirios de Valentín de Boulogne ou a Destruicao de Jeru- classicista entre a decoragáo aristocrática e o espirito bur-
salém, do classicista Nicolás Poussin — essa poesía sai de gués da literatura de "ce grand roi bourgeois". No pen-
u m confuto típico do Barroco: da inefabilidade do irra- samento de Bossuet mantém-se assim o equilibrio entre
cional. A poesia de Bossuet corneja onde a sua lógica teocratismo ortodoxo e absolutismo real, entre o dogma e
termina. a dialética. O edificio imponente existe ainda, qual um
Existe um caso análogo n a vida pública de Bossuet. monumento que perdeu a utilidade pública, mas tem fun-
As suas tentativas de promover a uniáo das Igrejas sepa- damentos indestrutíveis; para nos, é imponente apenas a
radas eram enformadas pelo ortodoxia mais pura e pela fachada, o estilo. O século X V I I I já viu aquéle equilibrio
obediencia mais leal á Santa S é ; a sua doutrina política, em plena dissolugáo: o absolutismo monárquico dos Bour-
explicada na Politique tirée des propres paroles de l'Écri- bons tornou-se "ilustrado", antijesuístico e anticlerical, e
turc sainte, justifica o absolutismo, o direito divino dos reís, a dialética entrou a dirigir-se contra o próprio dogma. Os
sempre da maneira mais ortodoxa. Mas a uniáo das Igrejas críticos do século X V I I I tinham de rejeitar a arte de
malogrou-se por causa dos obstáculos políticos, e a atitude Bossuet; mas, capazes de distinguir entre o que era o seu
monarquista levou o Bispo a apoiar as veleidades galicanas, próprio estilo e o conteudo, que nao os interessava, prefe-
anti-romanas, do rei; quase levou á constituigao de urna riram idolatrar Bourdaloue e Massillon, nos quais se rea-
Igreja nacional francesa. E, se é admirável o Sermón sur lizara sucessivamente a dissolugáo daquele equilibrio clás-
l'unité de l'Église, com o qual teve coméco a campanha, é sico.
mais admirável ainda o Sermón sur le silence, com que ela
acabou. É a poesia da dialética malograda. Bourdaloue ( 3 0 ), o maior orador sacro da Companhia
de Jesús, renuncia inteiramente á apresentagáo poética do
O oportunismo político de Bossuet é o lado mais cen-
"lugar-comum" do pulpito; nem sequer profere lugares-
surável das suas atividades. " J e respecte dans chaqué peu-
comuns. O seu fim é prático, de moralista; ataca os erros
ple le gouvernement que l'usage y a consacré et que l'ex-
moráis da época, assim como um grande jornalista ataca as
périence a fait trouver le meilleur" — essa doutrina é orto-
doxa e serve para as acomodacoes mais oportunistas. É o diretrizes erradas dos políticos para conseguir unía mu-
conformismo típico de todo o classicismo francés e de
todos os outros, revelando urna das fontes do classicismo:
30) Louis Bourdaloue, 1632-1704.
a mentalidade burguesa que aspira ao equilibrio e á tran- Avents de 1670, 1684, 1686, 1689, 1691. 1693, 1697.
qüilidade pública. Bossuet é filho de urna familia de "par- Carémes de 1672, 1674, 1676, 1680, 1682, 1695.
lamentarios", de grandes jurisconsultos da provincia. A Edicáo completa por J. Brlquet, 6 vols.. Paria, 1900; selecáo
sua dialética é mais do foro que do templo, e o espirito por G. Truc, París, 1921.
C. A. Salnte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. IX. (O melhor
da contabilidade aparece em meio as Élévations sur les estudo.)
mystéres, na oitava meditagáo: "Preñez garde seulement A. Feugére: Bourdaloue, sa prédication et son temps. París, 1874.
de ne laisser jamáis votre imagination s'échauffer trop, F. Castets: Bourdaloue, la vie et la prédication d'un religieux
ou XVIle siécle. 2 vols. París, 1901/1904.

i
1030 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1031

danca na opiniao pública. O Sermón sur ¡a médisance de- Em comparacao com Bourdaloue, parece Massillon ( 3 > ),
fende os jesuítas contra os ataques espirituosos de Pascal; metade de cuja vida pertence ao século XVIII, muito mais
o Sermón sur la sévérité évangélique ridiculiza o rigorismo pomposo, mais barroco. É o orador sacro dos grandes ef ei«
hipócrita dos jansenistas; o Sermón sur l'hypocrisie res- tos retóricos, aquéle que, encarregado da oracao fúnebre
tabelece a verdade a respeito da querela do Tartuffe. O de Luís XIV, fitou durante minutos, no meio do silencio
moralista Bourdaloue, confessor experimentado, é um gran- angustiado da assembléia, o ataúde faustoso, para comecar
de psicólogo; é rico em " r e t r a t o s " característicos, em ob- depois: "Dieu seul est grand " Massillon pertence ao
servacoes surpreendentes, desmascarando as desculpas neobarroco do fim do século; a famosa passagem "Si Jésus-
mundanas do vicio; compararam-no a La Rochefoucauld, Christ paraissait dans ce t e m p l e . . . " , no Sermón sur le
a La Bruyére, ao próprio Moliere. Essas definicoes da petit nombre des élus, é urna cena angustiosa ao gósto es-
eloqüéncia de Bourdaloue sao muito exatas; o leitor que panhol. Mas títulos assustadores como ésse, ou como Ser-
vem do grande poeta Bossuet nao pode deixar de sentir món sur la morte du pécheur, encabecam doutrinas pouco
decepcao. "On vous a cent fois touchés et attendris par le rigorosas, antes laxistas, e a eloqüéncia de Massillon é
récit douloureux de la passion de Jésus-Christ, et je veux, harmoniosa, até "précieuse", como o estilo neobarroco dos
moi, vous instruiré; mon dessein est de convaincre votre movéis Rococó. Massillon é sómente moralista; um bur-
raison." Bourdaloue realiza exatamente ésse programa: a gués que sabe comportar-se em sociedade fina, o que seria
sua lógica é fria, quer dizer, sem retórica poética. Quase * mais urna definigáo do classicismo francés — Voltaire, outro
nao parece literatura. O melhor caminho de indicacao é o burgués assim, cónsiderava Massillon como o estilista mais
belíssimo ensaio de Sainte-Beuve — escrito no momento clássico da lingua francesa. Os enciclopedistas admiravam
culminante das tendencias anti-románticas do crítico — so- a Massillon; D'Alembert escreveu o Éloge de Massillon,
bre o pregador que costumava discursar com os olhos fe- oracao fúnebre de urna arte que nao voltou nunca mais. O
chados, como submerso no rigor da sua lógica. Todos os processo da separacao entre religiao e burguesia tinha che-
contemporáneos se confessaram vencidos pela dialética de gado ao fim; e fóra isso, justamente o que os jansenistas
Bourdaloue; acompanhando a serie dos argumentos, espe- pretenderán) evitar. Todos os grandes pregadores sao anti-
ravam o fim como um julgamento. Os aristócratas da corte jansenistas, o que dá para pensar, tratando-se de urna Igreja
de Luís XIV entenderam assim o jesuíta que havia conquis- na qual havia arcebispos jansenistas e religiosas jansenis-
tado a fama ñas igrejas dos bairros burgueses da cidade, e tas, para nao falar dos leigos. O jansenismo está no polo
com razio. Bourdaloue renuncia á pompa aristocrática de oposto á poesia aristotélica do pulpito.
Bossuet para acomodar a expressáo do seu pensamento á
prosa da vida burguesa. Groethuysen salientou a importan-
cia dos conceitos da ordem social e da vocacao profissional 31) Jean Baptlste Massillon, 1663-1742.
em Bourdaloue. O jesuíta é o pregador da burguesía, á Avent (1699); Grand Caréme (1701); Oralson Junébre de Lovii
qual se concederá um lugar dentro da ordem hierárquica XIV (1715); Petit Caréme (1718).
Edlc&o por E. A. Blamplgnon, 2.» ed. 4 vols. Parts, 1888.
da sociedade; ninguém o elogiou mais do que o burgués C. A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. IX.
"arrivé" Voltaire. A. Bayle: Massilion. étude historique et littéraire. París. 1867.
C. Pauthe: Massillon, sa prédication sous Louis XIV et houit
XV. Paris, 1908.
1032 OTTO M A M A CABPBAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1033

A historia do jansenismo ( s a ) é de importancia tao acentuando a capacidade do homem para adquirir a graga
grande e é táo complicada que, antes de qualquer tenta- por meio das atividades caritativas e religiosas. Os seus
tiva de interpretagáo, o resumo dos fatos exteriores se adversarios, porém, denunciaram nisso a negacao do pecado
impóe. Em 1608, Angélique Arnauld, membro de urna original, urna facilitacao ilícita da vida religiosa, urna re-
grande familia de jurisconsultos calvinistas, convertidos novacao da heresia do semipelagianismo; afirmaram que a
ao catolicismo, e discípula de S. Francisco de Sales, tor- exaltacáo do livre arbitrio pelos jesuítas minava os funda-
nou-se abadéssa do velho convento de Port-Royal-des- mentos da religiao crista, aproximando-a do humanismo
Champs, no vale de Chévreuse; reformou a casa decaída, pagáo. Jansenius era um désses adversarios; no Augus-
segundo os principios mais rigorosos de vida monástica. tinus invocou o maior dos Padres da Igreja como teste-
Na famosa "Journée du Guichet" — 25 de setembro de 1609 munha das suas doutrinas: o pecado original teria limitado
— recusou até a visita de seus pais; e com éste dia comeca
tanto as possibilidades de realizar obras meritorias que o
a historia daquela severidade que será mais tarde o rigoris-
homem só pode ser salvo pela Graca divina, conferida aos
mo jansenista. Em 1625, a abadéssa fundou o convento de
eleitos e recusada aos outros. Doutrina de predestinacao,
Port-Royal em Paris, no lugar hoje chamado Boulevard de
que cheira a calvinismo, mas com conclusóes de ascetismo
Port-Royal; e em 1634 tornou-se confessor dessa casa de
rigoroso. Os jesuítas conseguiram em 1642 a bula papal
religiosas Jean Du Vergier Hauranne, Abade de Saint-Cy-
ran (1581-1643), discípulo do Cardeal Bérulle e amigo de S. "In eminenti", que condenou os erros doutrinários de
Vicente de Paula, grande diretor espiritual, representante Jansenius. Saint-Cyran serviu-se, no entanto, da doutrina
de práticas rigorosas a respeito dos sacramentos da P e n i ' de Jansenius para apoiar a sua própria praxe rigorosa
téncia e da Eucaristía. A base teórica désse rigorismo era como confessor: instruiu as religiosas da maneira mais
a doutrina de Cornelius Jansenius, Bispo de Ypres, autor severa, proibiu aos leigos os divertimentos inofensivos
de urna obra monumental sobre a teología de Augustinus permitidos pelos jesuitas. Recomendou reserva tímida com
(1640). O concilio de Trento e, depois, a "Congregado de respeito á Eucaristía, porque o homem pecador só rara-
auxiliis gratiae", nao haviam completamente resolvido o mente merece a graca da comunháo com Deus, ao passo
problema da cooperacáo entre a Graca divina e as obras que os jesuítas facilitaram o Sacramento da Penitencia
meritorias do homem na salvagáo da alma. Os jesuítas para conseguirán comunhóes freqüentes. Os sucessores de
ensinaram e praticaram urna doutrina clemente e humana, Saint-Cyran no confessionário de Port-Royal, Singlin e
Isaac Louis Lemáitre de Saci, autor de urna nova traducáo
da Biblia, continuavam no rigorismo, e obtiveram tanto
sucesso entre clérigos e leigos que Port-Royal se tornou
32) C. A. Salnte-Beuve: Hiatoire de Port-Royal. 5.* ed. 2 vols.
Paris, 1925/1932. centro de um grande movimento ascético e de urna religio-
J. Paquier: Le jansénisme. París, 1909. sidade que parece mística. Um grupo de leigos e clérigos,
H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en France adeptos da nova doutrina, "ees messieurs de Port-Royal",
depuis la fin des guerrea de religión. Vol. TV. París, 1920.
A. Oazier: Histoire genérale du mouvement janséniste depuis retiraram-se para o vale de Chévreuse, fundando perto do
sea originea jusqu'i nos jours. 2 vols. Paris, 1922. convento das religiosas urna colonia de eremitas; o mais
J. Laporte: La doctrine de Port-Royal. 2 vols. Paris, 1923. importante entre éles era um dos membros da familia
A. Gazier: Port-Royal-des-Champa. 11.a ed. París, 1927.
C. Oazier: Cea Messieura de Port-Royal. París, 1932. Arnauld — todos éles jansenistas — Antoine Arnauld
1034 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1035

(1612-1694), chamado "le g r a n d Arnauld", teólogo de eru- lames sobre a prática dos confessores jesuíticos, que des-
dicáo imensa e de espirito jurídico, polemista violento, culpam os mais graves pecados e até crimes dos peniten-
natureza de heresiarca nato. Entre os "solitaires" havia tes. As Lettres provinciales, obra-prima de polémica seria
mais alguns homens de g r a n d e talento pedagógico: Claude « ironía mordaz, obtiveram éxito enorme, até nos círculos
Lancelot, autor de ótimos livros sobre o ensino do grego e mundanos. Todos se riram dos casuistas jesuisticos cita-
latim, e sobretudo Pierre Nicole (1625-1695), que escreveu dos, dos seus nomes bárbaros, das suas opinioes abstrusas
13 volumes de Essais de morale, muito divulgados, e, junto e expressóes obscenas. Ao mesmo tempo, o movimento
com Arnauld, a obra La logique ou l'ait de penser (1662), jansenista recebeu sinais visíveis da Graga divina: o fa-
a famosa Logique de Port-Royal, o livro didático mais moso Miracle de la Sainte-Epine, no dia 24 de margo de
usado do século XVII. As "petites écoles" de Port-Royal 1656, cura milagrosa da sobrinha de Pascal, por urna reli-
tornaram-se freqüentadíssimas; após haverem contrariado quia conservada em Port-Royal. A resistencia heroica das
a prática religiosa dos jesuítas, os jansenistas acrescenta- religiosas a toda a especie de perseguigoes transverteu-se
ram a concorréncia pedagógica contra os colegios da Com- em fanatismo. Em 1668 encontrou-se urna fórmula conci-
panhia. E em 1643 publicou Arnauld um livro, De la iié- liatoria, da qual resultou a "Paix de l'Église". Mas, quando
quente communion, no qual anatematizou a prática jesuíti- o jansenismo havia perdido varios dos seus protetores no
ca e pregou o rigorismo mais severo. Os jesuítas atacaram episcopado e na corte, renovou-se, em 1679, a perseguigáo.
o mal pela raiz. Em 1653 submeteram ao Papa Inocencio X Após muitas vicissitudes, a vitória dos jesuítas foi defini-
cinco tese, tiradas do Augustinus, de Jansenius; consegui- tiva: em 1709, o convento de Port-Royal foi abolido, e des-
ram a constituigáo papal "Cura occasione", condenando truido o edificio, chegando-se até á profanagáo do cemi-
aquelas teses como heresia calvinista. Arnauld nao pre- térío e bárbara exumagao dos ossos heréticos. Nem com
tendeu negar o sentido herético das teses; mas estas, ela- isso acabou a luta. Grande parte do clero francés e muitos
boradas pelos jesuítas, nao se encontravam assim literal- leigos recusaram, de 1713 em diante, o reconhecimento da
mente na obra de Jansenius, e Arnauld distinguiu entre a constituigáo Papal antijansenista "Unigenitus", e, apesar
"question de la foi", já decidida pelo Papa, e a "question de todas as perseguigoes, continuou o jansenismo, durante
du fait" — se aquelas teses se encontram de fato em Jan- o século X V I I I , como fórga considerável. Um periódico
senius — questáo em que o Papa nao teria maior autori- clandestino, as "Nouvelles ecclésiastiques", publicou-se
dade que qualquer leitor. Arnauld agiu como jurista sutil, regularmente e foi muito lido; os jansenistas colaboraran:
atingindo as bases da autoridade da Santa Sé; conquistou na expulsao dos jesuítas, sobreviveram até a Revolugáo,
como aliado outro convertido de Port-Royal, o fisico Blaise e urna corrente jansenista apoiou — até á separagáo de
Pascal, que langou, de 23 de Janeiro de 1656 até 24 de marco Igreja e Estado, em 1905 — todas as atividades oposicio-
de 1657, urna publicagao periódica contra os jesuítas, aa nistas, anti-romanas, no clero francés.
18 Lettres provinciales: fingiu consultas de um provin-
A querela jansenista é o maior acontecimento da his-
ciano modesto que pretende informar-se sobre os proble-
mas e motivos da querela, recebendo informagóes horripi- toria espiritual da Franga no século X V I I . A luta emo-
cionou o país inteiro, menos, talvez, os grandes represen-
«^

1036 OTTO MARÍA CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1037

tantes da eloqüéncia sacra, que continuava majestosamente, Descartes ( :l3 ). O racionalismo analítico de Descartes, o
como certa da vitória da boa causa. Os meios sociais e seu espirito metódico, a clareza sistemática das suas expo-
literarios dividiram-se em dois partidos. Ou se era jan- sigoes, a análise das paixoes, tudo isto se encontra na lite-
senista, ou antijansenista; nao havia terceiro partido; im- ratura clássica em toda a p a r t e ; e o racionalista Descartes
possível nao tomar atitude. Decorridos dois séculos e meio, sería precursor mais conveniente da Franga moderna, pro-
o caso Dreyfus produzirá espetáculo semelhante. E a se- gressista, do que o "grand Arnauld".
melhanca nao é aparente. A divisao da Franca em dois Féz-se, com efeito, urna tentativa de apresentar Des-
partidos, operada pelo jansenismo, tornara-se permanente. cartes como "spiritus rector" da literatura clássica ( S 4 ).
A posteridade os jesuítas afigxiravam-se os "reacionários", Os tragos característicos da estética cartesiana seriam o
enquanto os jansenistas eram considerados como os parti- ideal de beleza racional e impessoal assim como Madame
darios da liberdade religiosa, da insubmissáo política, do •de La Fayette e Racine o realizaram; a perfeigáo da cla-
"progresso". As religiosas ascéticas e os eremitas rigo- reza lógica, realizada em Bourdaloue; a imitacáo da natu-
rosos quase sao festejados como precursores da Ilustra- reza, pregada por Boileau. Hoje, poderíamos acrescentar
gao, da Magonaria, da Revolugáo, do livre-pensamento. que até o conformismo político e religioso de Descartes,
Certos historiadores sentiram, porém, o monstruoso ana- submetendo-se exteriormente aos poderes estabelecidos, é
cronismo existente nesses conceitos. A religiosidade as- típico dos súditos de Luís XIV.
cética do jansenismo nada tem que ver com progressismo Contra essa interpretagáo cartesiana da literatura clás-
e republicanismo; mas, se isso é verdade, será preciso mo- sica levantou-se com energía a voz de Brunetiere ( 8 5 ). A
dificar toda a historiografía literaria francesa. idéia fundamental do cartesianismo é a identidade de pen-
samento e ser; daí o valor objetivo da ciencia, a onipo-
Pascal, o criador da prosa moderna, foi jansenista, téncia da Razáo, o progressismo, o anti-historicismo de
pelo menos durante certo tempo; Boileau, o legislador cri- Descartes, que é inimigo quase violento da erudigáo clás-
tico da literatura clássica, foi jansenista; Racine, o maior sico-filológica. E seria éste cartesianismo o fundamento
dramaturgo, foi jansenista. Em geral, o jansenismo era o
partido dos escritores e intelectuais. Reconhecendo isso,
Sainte-Beuve colocou Port-Royal no centro da literatura 33) Rene Descartes, 1596-1650.
do século; o convento teria sido o bergo da literatura clás- Discours de la méthode (1637); Méditations métaphysiquea
(1641): Traite des passions (1649); etc.
sica francesa, e em torno de Port-Royal agrupou Sainte-
Edicfio completa por Ch. Adam e P. .Tannery, 11 vols., París,
Beuve todas as grandes e pequeñas figuras da época, como 1897/1909.
amigos ou como inimigos. Desde a publicagao da Histoire J. Chevaller: Descartes. París. 1921.
M. Leroy: Descartes. Le philosophie au masque. 2 vols. París,
de Port-Royal, de Saínte-Beuve (terminada em 1848), o 1929.
jansenismo ocupa o centro da historia da literatura fran- J. Marltaln: Le songe de Descartes. París, 1932.
cesa. Nao se conseguiu isto sem certo artificio; e outros 34) E. Krantz: Essai sur l'esthétique de Descartes, étudiée dans les
raports de la doctrine cartésienne avec la littérature francaise
críticos observaram a imensa influencia que exerceu na classique au XVire siécle. París, 1882.
literatura clássica um pensador anterior ao jansenismo: 35) F. Brunetiere: "Jansénlstes e cartéslens". (In: Études critiques
sur l histoire de la littérature /rangalse. Vol. IV. París, 1898.)
1038 OTTO MARÍA CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1039
do classicismo? Corneille, Pascal e Bossuet nao foram
cartesianos, e que seria o classicismo sem éles? O número- letras; assím como na Igreja existe, ao lado da psicología
dos cartesianos professos, no século X V I I , é surpreenden- dos professóres tomistas, a outra psicología, empírica, dos
temente reduzido. Dos "clássicos", só Arnauld e Nicole, confessores, grandes conhecedores das paixoes e angustias
os autores jansenistas da Logique de Port-Royal, sao car- humanas. E a analogía vai mais longe: a psicología lite-
tesianos. O que parece cartesianismo na literatura fran- raria dos franceses é realmente produto do confessionário.
cesa do século XVII é antes um trago característico da Nasceu ñas conversas de religiosas, damas e penitentes
literatura francesa inteira: o gósto da exposigáo sistemáti- com os confessores jesuítas ou jansenistas, na correspon-
ca, da clareza metódica, da composicao simétrica. Os "clás- dencia dos diretores espirituais com os consultantes, ñas
sicos" do século X V I I I nao precisavam de Descartes para meditacoes e anotagoes autobiográficas dos homens do
aprender isso. A influencia do cartesianismo ñas letras fran- mundo e do convento. A curiosidade e arte psicológica
cesas reside na sua capacidade de por em dúvida sistemá- de Marivaux, Abbé Prévost, Rousseau, Constant, Stendhal,
tica todas as "fables convenues". Mas os clássicos foram até Bourget e Mauriac, Estaunié e Gíde, e a critica psico-
partidarios das "fables convenues"; e só no fim do século, lógica de Sainte-Beuve, provém da querela jansenista.
com Bayle e Fontenelle, principia urna fase de cartesia- Nesse sentido, Sainte-Beuve tem razao para sempre: a li-
nismo céptico. O classicismo nao é cartesiano ( X8 ). teratura francesa moderna nasceu, com Pascal e Racine,
em Port-Royal. Neste sentido, todos os clássicos sao mais
O que parece, nos doutrinadores da classicismo, racio-
ou menos "jansenistas", isto é, adeptos da análise e auto-
nalismo cartesiano, é, muitas vézes, intelectualismo aristo-
análise psicológica. Até o pessimista, um tanto cínico, La
télico; a poética do classicismo é aristotélica. O confor-
Rochefoucauld, elaborou as suas observagóes psicológicas
mismo político e religioso, típico do século, aparece como
no salao da jansenista Madame de Sable.
conformismo literario nos dramaturgos e moralistas; sub-
metem-se éles, muitas vézes contra gósto, as regras dos teó- Mas sao "jansenistas" entre aspas. Nenhum déles é
ricos, para conservar a liberdade íntima. E desta se ser- jansenista de todo o coracao. Na melhor das hipóteses, sao
vem todos ou quase todos os clássicos para se tornarem "simpatizantes", e no caso importantíssimo de Racine tra-
jansenistas. No gósto da análise psicológica, sobretudo ta-se de urna ambivalencia, oscilagáo entre amor e ódío.
da auto-análise, reconhece Peyre ( S7 ) um trago caracterís- Evidentemente, havia outras influencias — cartesianas,
tico do classicismo francés. A literatura francesa é, entre
aristotélicas, humanísticas — que se opunham ou sobre-
todas, a que revelou a maior curiosidade psicológica; só
punham ao imperio do jansenismo. Chamar "jansenista"
na Franca existe, ao lado da psicología profissional dos
ao classicismo inteiro é urna símplificacáo táo inadmissível
filósofos e professóres, outra psicología, a dos dramatur-
como chamar-lhe "cartesiano". Rigorosamente, só Arnauld
gos, romancistas e moralistas, a psicología dos homens de
e Nicole sao jansenistas auténticos, e estes também sao
cartesianos, o que demonstra a necessidade de estudar mais
de perto as filiagoes contraditórias. E Arnauld e Nicole
36) O. Lanson: "L'influence de la philosophie cartéslenne sur 1»
littérature francaise". (In: Études d'histoire littéraire. Parla, nao sao escritores de prirneira ordem. Pode-se até afirmar
1929.) que nenhum escritor de prirneira ordem foi jansenista au-
87) H. Peyre: Le classicismt franqais. New York. 1942. téntico. E Pascal? Nao seria ele o genio literario de Port-
1040 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1041

Royal? Com o caso d e Pascal convém iniciar aquéle estudo fraie." E nessa citagáo, que se tornou lugar-comum, está
analítico das correntes que enformaram o classicismo. Pascal inteiro: a angustia desesperada em face de proble-
Blaise Pascal (,1s) nao foi poeta, nem dramaturgo, nem mas da epistemología, da metodología astronómica e teo-
romancista; é o primeiro grande prosador francés, mas lógica. Pascal é um melancólico de nascenca; as doencas
nao o maior; contudo, é o genio literario mais completo físicas que lhe minaram o corpo produzem estados de alma
da nacáo francesa. É até um genio universal, á maneira da mórbidos, pessimismo e desespero, de que só urna ilumi-
Renascenca: é o grande matemático e físico, o estudioso nacáo súbita o arranca, um "rinascimento" místico: "Feu
das seqoes cónicas, d a hidráulica, o criador da geodesia Certitude Certitude Sentiment Joie Paix!"
barométrica e do cálculo das probabilidades. Pascal é, se- Evidentemente, nao se trata de um mero especialista
gundo sua própria expressáo, um "esprit géométrique"; em matemática e física. Será até precipitado incluir o seu
mas distingue-se de todos os outros espíritos geométricos nome entre os promotores decisivos do progresso cientí-
pela angustia que o objeto dos seus estudos lhe inspira. fico: outros motivos, subentendidos, o animaram. Pascal
Onde os outros observam, medem e calculan), Pascal fica é do número daqueles que destruiram o dominio da física
assustado: "Le silence éternel de ees espaces infinis m'ef- aristotélica; mas a sua vítima é menos o próprio Aristó-
teles, a quem conhecia mal, do que o aristotelismo dos co-
mentadores. Eis a primeira distincáo que se impóe. Aris-
38) Blaise Pascal, 1623-1662. tóteles fóra o fundador das ciencias experimentáis; o de-
Bssai pour les coniques (1640); Expériences touchant le vide feito das suas pesquisas reside na impaciencia típicamente
(1647); Récit de la grande expérience de Véquilibre des liqueurs grega, que se contenta com o primeiro resultado empírico
(1648); Priére pour le bon usage des maladies (1648); Discours e logo se volta para as deducoes lógicas. Os aristotélicos
sur les passions de Vamour (1653): Traite du triangle arithmé-
tique (1654); Entretien avec M. de Saci sur Épictéte et Mon- de todos os tempos satisfizeram-se com as dedugoes.
taigne (1655); De Vesprit géométrique (1655); Lettres Provin- Pascal retorna ao experimento, mas com a impaciencia do
ciales (1656/1657); Pensées (1670). próprio Aristóteles. Partindo dos coméeos mais geniais,
Edicáo completa por L. Brunschvicg, P. Boutroux e A. Galzer,
14 vote., París, 1904/1914. nao termina coisa alguma, porque a sua verdadeira curio-
Edi?ao das Pensées por L. Brunschvicg, París, 1897, e 3 vols., sidade, nao diz respeito á física, mas á metafísica. Neste
París. 1904; por F. Strowskl, París, 1923/1931; por J. Chevalier, sentido, Pascal, antiaristotélico como fisico e como janse-
París, 1925.
C. A. Sainte-Beuve; cf. nota 32. (Vols. TI/III.) nista, é urna natureza aristotélica; um grande "outsider",
A. Vinet: ttudes sur Blaise Pascal. 2." ed. París, 1856. físico entre os homens da religiáo, homem da religiao entre
E. Droz: ttude sur le scepticisme de Pascal. París, 1886. os físicos. Revela misterios dos cones e dos líquidos, e no
V. Oiraud: Pascal, l'homme, Voeuvre, l'injluence. París, 1900. fundo é outra revelacáo apenas que lhe importa, aquela que
F. Strowskl: Pascal et son temps. 3 vols. París, 1907/1909.
V. Oiraud: Blaise Pascal, études d'histoire morale. París, 1910. explicada um misterio do qual os experimentos nem se-
A. Suarés: Puissances de Pascal. Paris, 1923. quer se aproximam: o misterio da "condi$ao humana".
A. Jolivet: "L'antlcartésianisme de Pascal". (In: Archives de Parece mesmo que foi Pascal que transformou essa ex-
Philosophie, m , 1923.)
W. Clark: Pascal and the Port-Royalists. Edinburgh, 1920. pressáo dos pregadores e moralistas em termos de filosofía
Q. Brunet: Pascal poete. París, 1923. moderna. A "conditibn humaine", generaliza§áo pessimis-
L. Brunschvicg: Le génie de Pascal. Paris, 1925. ta da sua própria situacáo angustiosa, é o problema de
L. Brunschvicg: Pascal. Paris, 1932,
J. Chevalier: Pascal. París, 1936.
1042 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCTDENTAL 1043

Pascal, essa mistura esquisita de capacidades espirituais jesuítas, advertindo-os de que Deus poderia remover do
e miserias físicas, e o pensamento invariávelmente voltado altar os candelabros déles; e em Moliere nao há nada mais
para a m o r t e : "Le dernier a c t e est sanglant, quelque belle cómico do que a enumeragao burlesca dos nomes extrava-
que soit la comedie en tout le reste: on jette enfin de la gantes dos casuistas jesuísticos, com a pergunta "ingenua"
terre sur la tete, et en voilá p o u r jamáis." Mas nao é sim- no fim: e estes todos seriara cristáos? Talvez sejam as
plesmente a obcessao da m o r t e ; é o sentimento da morte Lettres provinciales a única obra moderna comparável aos
lenta e permanente em nos, da perversáo inexplicável das grandes discursos de Demóstenes, e, assim como estes, as
nossas capacidades. "Ce qui m'étonne le plus est de voir
Lettres provinciales também sao injustas. Pascal nao des-
que tout le monde n'est pas étonné de sa faiblesse." Isso
denhou o uso de citagóes alteradas; a sua dialética está
é conseqüéncia da indiferenca religiosa, porque só a reli-
cheía de sofismas; confundiu, conscientemente ou nao, o
giao conhece "á fond notre nature, tout ce qu'elle a de
papel dos juristas da casuística, indispensável em todas as
grand et tout ce qu'elle a de miserable." A verdadeira reli-
religioes organizadas com o dos santos e místicos, ao qual
giáo é a que resolve ésse problema: a religiao crista expli-
ca-nos a grandeza do homem como criatura de Deus, e a aqueles nao aspiraran). Mas o efeito da polémica era des-
sua fraqueza pelo dogma do pecado original. É o dogma truidor. Até hoje, os jesuítas nao foram capazes de resta-
de Pascal. Mas ésse dogma nao é propriedade exclusiva belecer o seu renome, e em muitas línguas a palavra jesuíta
dos jansenistas; só a interpretacáo do pecado original é conservou a significarlo de hipócrita astuto. Houve quem
indiferente no calvinismo, de que Pascal está afastado por considerasse a polémica das Lettres provinciales como ini-
circunstancias exteriores e pelo calor das suas emocoes cio do estilo satírico em materia religiosa, do voltairia-
religiosas, e no catolicismo, no seio do qual Pascal nasceu. nismo; mas cumpre observar que a polémica da Reforma e
Mas quem agora domina, na Igreja católica, os jesuítas, Contra-Reforma já conhecera a sátira maledicente, e que
que "facilitara"' a religiao, permitindo por motivos políticos o uso mecánico dos ritos talvez tenha sido maior estimulo á
e "políticos" o ingresso dos pecadores no templo, substi- indiferenga religiosa do que qualquer ardor polémico. Por
tuindo a angustia pelo uso mecánico dos ritos. "C'est en outro lado, a profunda seriedade do autor das Pensées des-
faisant tout comme s'ils croyaient, en prenant de l'eau mente aquela apreciacao das Lettres provinciales, no sen-
bénite, en faisant dire des messes, etc. Naturellement méme tido da polémica maliciosa do século X V I I I . Parece, no
cela vous fera croire et vous abétira." Os jesuítas perver- entanto, que os próprios jansenistas nao estavam edificados
teram o sentido da religiao crista; por isso, Pascal torna-se com certos processos polémicos do seu aliado. As Lettres
aliado dos antíjesuítas profissionais, dos jansenistas, e eis provinciales já tinham sido o maior servico que Pascal
a segunda distincáo que se impoe: Pascal tornou-se parti- pudera prestar a Port-Royal. Depois, separaram-se os ca-
dario de Port-Royal, mas nao será jansenista. A servi$o minhos.
de Port-Royal, Pascal escreveu as Lettres provinciales,
urna das maiores obras da eloqüéncia francesa. Voltaire O desgósto de Pascal com os subterfugios dos janse-
encontrou reunidos nessa obra o grande pathos de Bossuet nistas, fazendo as distingoes mais sutis a respeito de "as-
e a comicidade de Moliere; e, com efeito, em Bossuet nao sinar", "nao assinar" e "assinar com reservas mentáis" os
há nada mais sublime que a ameaga pascaliana contra os documentos de submissáo, nao foi decisivo; tampouco foi
decisivo o seu desejo de morrer no seio da ortodoxia ca-
1042 OTTO M A M A CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1043

Pascal, essa mistura esquisita de capacidades espirituais jesuítas, advertindo-os de que Deus poderia remover do
e miserias físicas, e o pensamento invariávelmente voltado altar os candelabros déles; e em Moliere nao há nada mais
para a m o r t e : "Le dernier acte est sanglant, quelque belle cómico do que a enumeragáo burlesca dos nomes extrava-
que soit la comedie en tout le reste: on jette enfin de la gantes dos casuistas jesuísticos, com a pergunta "ingenua"
terre sur la tete, et en voilá pour jamáis." Mas nao é sim- no fim: e estes todos seriam cristáos? Talvez sejam as
plesmente a obcessáo da m o r t e ; é o sentimento da morte Lettres provinciales a única obra moderna comparável aos
lenta e permanente em nos, d a perversao inexplicável das
grandes discursos de Demóstenes, e, assim como estes, as
nossas capacidades. "Ce qui m'étonne le plus est de voir
Lettres provinciales também sao injustas. Pascal nao des-
que tout le monde n'est pas étonné de sa faiblesse." Isso
denhou o uso de citacoes alteradas; a sua dialética está
é conseqüéncia da indiferenga religiosa, porque só a reli-
cheia de sofismas; confundiu, conscientemente ou nao, o
giáo conhece "á fond notre nature, tout ce qu'elle a de
papel dos juristas da casuística, indispensável em todas as
grand et tout ce qu'elle a de miserable." A verdadeira reli-
giáo é a que resolve ésse problema: a religiáo crista expli- religioes organizadas com o dos santos e místicos, ao qual
ca-nos a grandeza do homem como criatura de Deus, e a aqueles nao aspiraram. Mas o efeito da polémica era des-
sua fraqueza pelo dogma do pecado original. É o dogma truidor. Até hoje, os jesuítas nao foram capazes de resta-
de Pascal. Mas ésse dogma nao é propriedade exclusiva belecer o seu renome, e em muitas línguas a palavra jesuíta
dos jansenistas; só a interpretagáo do pecado original é conservou a significagáo de hipócrita astuto. Houve quem
indiferente no calvinismo, de que Pascal está afastado por considerasse a polémica das Lettres provinciales como ini-
circunstancias exteriores e pelo calor das suas emogoes cio do estilo satírico em materia religiosa, do voltairia-
religiosas, e no catolicismo, no seio do qual Pascal nasccu. nismo; mas cumpre observar que a polémica da Reforma e
Mas quem agora domina, na Igreja católica, os jesuítas, Contra-Reforma já conhecera a sátira maledicente, e que
que "facilitam" a religiáo, permitindo por motivos políticos o uso mecánico dos ritos talvez tenha sido maior estímulo á
e "políticos" o ingresso dos pecadores no templo, substi- indiferenga religiosa do que qualquer ardor polémico. Por
tuindo a angustia pelo uso mecánico dos ritos. "C'est en outro lado, a profunda seriedade do autor das Pensées des-
faisant tout comme s'ils croyaient, en prenant de l'eau mente aquela apreciagáo das Lettres provinciales, no sen-
bénite, en faisant dire des messes, etc. Naturellement méme tido da polémica maliciosa do século X V I I I . Parece, no
cela vous fera croire et vous abétira." Os jesuítas perver- entanto, que os próprios jansenistas nao estavam edificados
teram o sentido da religiáo crista; por isso, Pascal torna-se com certos processos polémicos do seu aliado. As Lettres
aliado dos antijesuítas profissionais, dos jansenistas, e eis provinciales já tinham sido o maior servigo que Pascal
a segunda distingáo que se impoe: Pascal tornou-se parti- pudera prestar a Port-Royal. Depois, separaram-se os ca-
dario de Port-Royal, mas nao será jansenista. A servigo minhos.
de Port-Royal, Pascal escreveu as Lettres provinciales,
urna das maiores obras da eloqüéncia francesa. Voltaíre O desgósto de Pascal com os subterfugios dos janse-
encontrou reunidos nessa obra o grande pathos de Bossuet nistas, fazendo as distingoes mais sutis a respeito de "as-
e a comicidade de Moliere; e, com efeito, em Bossuet nao sinar", "nao assinar" e "assinar com reservas mentáis" os
há nada mais sublime que a ameaga pascaliana contra os documentos de submissáo, nao foi decisivo; tampouco foi
decisivo o seu desejo de morrer no seio da ortodoxia ca-
1041 OTTO MARÍA. CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1045

tólica. A grande diferenga e n t r e Pascal e os jansenistas Rickert e Windelband, pode ser plenamente compreendida:
está nos processos apologéticos. nem para todas as ciencias serve o mesmo método; sao di-
Pascal é poeta em prosa. J á o compararam, como poeta ferentes o método indicado para as ciencias matemático-
religioso, a Dante; já se consideraran! as Pensées como um físicas e o método das "ciencias do espirito". Nestas, na
monólogo shakespeariano n o grande drama dessa alma. historia, na metafísica, na teología, nao existe a certeza
Mas as Pensées nao sao urna confissáo poética; sao urna matemática das demonstragoes lógicas e temos de conten-
apologia do cristianismo. Pascal pretendeu demonstrar a tar-nos com probabilidades. As demonstragoes históricas
verdade crista, assim como s e demonstra urna verdade geo- nao oferecem nunca certeza absoluta. Ésse pensamento é,
métrica, e a tragedia da sua inteligencia consiste na sua do ponto de vista católico, altamente herético; daí os tra-
incapacidade de apresentar essa demonstragao. Um Nicole, gos pascalianos no pragmatismo dos modernistas, que che-
bom católico e bom cartesiano, acreditava firmemente ñas garam a distinguir as certezas da fé e as probabilidades da
demonstragoes lógicas e históricas em materia apologética. historiografía e também da teología de Newman, Pascal
Pascal, nao. E a única saida do seu cepticismo foi o "salto nao tem médo da mera probabilídade: é o máximo possível
mortal" de renunciar á certeza lógica para conseguir a que o espirito humano pode conseguir em assuntos exis-
certeza empírica. "Dieu d'Abrahan, Dieu d'Isaac, Dieu de tenciais. Eis o sentido do famoso "pari de Pascal": "Pesons
Jacob; non des philosophes et des savantes". Ésse famoso le gain et la perte, en prenant croix que Dieu est. Estimons
grito do Memorial, testemunho da sua conversáo, pode ser ees deux cas: si vous gagnez, vous gagnez tout; si vous per-
tido por declaracao de falencia do matemático; mas é a dez, vous ne perdez ríen. Gagnez done qu'il est, sans hési-
profissáo de fé do fisico, que só confia no experimento ter." A argumentagao é, sem dúvida, contraria á metodolo-
visto e controlado. É o credo do existencialista. " J e no gía da dogmática católica; mas Pascal nao fala do dogma, e
crois que les histoires dont les témoins se feraient égor- sim de necessidades vitáis da alma angustiada: " O u i ; mais
ger." Os mártires nao sao testemunhas da fé revelada e il faut paríer." Permanece a objegao dos primeiros leitores
escrita, mas no próprio ato do martirio está a demonstragao das Pensées: apostar em materia táo grave como a existen-
da fé "que está por cima de toda a razáo". Ésse existencia- cia de Deus é blasfemia. Mas, responde Pascal outra vez,
lismo meio céptico é profundamente anticatólico e devia "il faut"; para chegar a Deus, tudo serve e a expressáo
aborrecer a Nicole, na sua qualidade de jansenista, e tam- dessa angustia violenta tem de ser violenta, original —
bém na sua qualidade de cartesiano. O anticartesianismo enfim, poética, literaria. Pascal respondería aos assusta-
de Pascal é a explicarlo da famosa frase: "Le coeur a ses dos: "Estáis aborrecidos nao com o pensamento, mas com
raisons que la raison ne connait point." O cartesianismo a sua expressáo literaria; ora, assim como a física e a teo-
pretende submeter todos os setores da atividade mental ás logía tém os seus métodos próprios, assim a literatura tem
regras da "Raison", e, se a religiáo nao se revela "raison- também o seu, capaz de nos emocionar e convencer." Seria
nable", entao Descartes a excluí das suas cogitagoes, como a Declaragáo de Independencia da literatura moderna, da
assunto marginal. Para Pascal, a religiáo está no centro qual Pascal é, pelo menos na Franga, o criador. Para esta
de todas as cogitagoes, e o seu empirismo — que tem, literatura Pascal criou urna lingua — "il a fixé la langue"
outra vez, algo de aristotélico — leva-o a urna distingáo — e urna prosa capaz de exprimir igualmente os raciocinios
fundamental, que só hoje, depois das análises de Dilthey, do "esprit géométrtque" e as emogóes do "esprit finesse",
1046 Otro MAMA CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1047

de tal modo que essa prosa substituiu a própria poesía. Em sos da humanidade; ou antes, a solidao dos que, como Agos-
compensacáo, revelam-se na sua prosa científico-poética tinho, T.ulero. Kierkegaard, morreram para éste mundo para
todas as suas contradicoes dialéticas entre ortodoxia dog- nascerem outra vez; os "twice-born" da psicología religiosa
mática e cepticismo humanístico, entre curiosidade cien- de William James. "Console-toi, tu ne me chercherais pas
tífica e angustia enxistencialista. £ por isso esta prosa se si tu ne m'avais trouvé " — só isso lhe importa. E isso
presta a equívocos e interpretacoes erradas de toda especie. nao é jansenismo; é antes antijansenismo. Porque o ponto
A exegese pascaliana percorreu urna historia longa e de partida do jansenismo é teocéntrico: Deus confere, ar-
dolorosa ( 3 8 ). Comega com a s polémicas entre jansenistas, bitrariamente, a graca aos seus c:leitos; e o ponto de par-
católicos e libertinos a respeito da ortodoxia das Pensées; tida de Pascal é antropocéntrico: procura sair das miserias
continua com a pretensao dos protestantes de considerar da condi$ao humana. Em comparadlo com os jansenistas,
Pascal um dos seus; prossegue com o odio dos "filósofos" Pascal é humanista. E nao poderiam ser mais diferentes
do século X V I I I contra o pessimista metafísico; continua do que sao os resultados do movimento psicológico-reli-
com a interpretacao romántica da vida de Pascal como tra- gioso: nos jansenistas, temor e esperanca da Graca do
gedia da alma religiosa, tragedia escrita por Sainte-Beuve, "Deus absconditus", do qual a criatura está separada pelo
vivida por Lamennais e tantos outros apóstatas, esmagados abismo dialétíco; em Pascal, "Feu Certitude Joie" da uniao
entre a ortodoxia e o mundo. Pascal já nao é o "anticlerical" mística com Deus, que o jansenismo exclui. Néle se reú-
dos pos-jansenistas. Renán e Nietzsche odeiam e admiram • nem empirismo, jansenismo e mística; e eis um dos mo-
"o maior e mais infeliz dos cristáos", a mais ilustre vítima tivos da grandeza contraditória do seu genio. Em todos os
do cristianismo que esmaga o homem natural. Os moder- tempos Pascal encarna a inquietacao das almas, crentes ou
nistas católicos, por volta de 1905, reclamam Pascal como descrentes, para as quais mundo e vida sao misterios inde-
precusor do seu pragmatismo; e pelo menos é verdade que cifráveis. Pascal é o mais anticlássico dos espíritos; mas,
Pascal influiu no método apologético do Cardeal Newman, em virtude daquela combinacáo de empirismo científico,
reivindicado como santo do modernismo. Os jovens "neo- jansenismo cartesiano-anticartesiano e psicología mística
católicos" de 1920 reconheceram em Pascal o espelho das — que é a combinacáo básica, a disposicáo mental dos clas-
suas próprias angustias dentro da ortodoxia penosamente sicistas franceses — Pascal, disciplinando-se com heroísmo
mantida. Pascal tornou-se o santo patrono dos descrentes, "clássico", criou-lhes o instrumento de expressao: a lin-
o genio religioso no deserto do cepticismo e da indiferenca. g u a ; a prosa do classicismo.
Comparam-no a Kierkegaard e a Kafka; como estes, Pascal
teria descoberto ou antes redescoberto a incompatibilidade Os movimentos e figuras que compoem o classicismo
fundamental entre o cristianismo e o mundo. Adoram-no francés, revelam-se todos como misturas contraditórias; só
como precursor de Heidegger e Sartre, como doutor do os acentos sao diversos. O jansenismo, como movimento
existencialismo. neo-augustiniano, é antiaristotélico, e por isso antiescolás-
tico e antijesuítico. Mas nessa oposicáo contra os jesuítas
Em meio dessa nuvem de interpretacoes, Pascal con- os jansenistas encontram como aliados os dominicanos,
tinua na sua ¡mensa solidao, a dos grandes genios religio- antijesuíticos pelo tomismo rigoroso da sua tradigáo, que
é aristotélica. Talvez se explique assim o fato análogo de
ser Boileau, grande simpatizante do jansenismo, o repre-
39) B. Amoudru: La vie posthume des Pensées. París, 1936.

1048 OTTO M A M A CAHPEAUX HISTORIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 1049

sentante principal da poética aristotélica. "Imitacao da "Aimez done la raison: que toujours vos écrits
natureza" é a tese central da estética de Aristóteles, e Boi- Empruntent d'elle seule et leur lustre et leur prix."
leau interpreta:
"Raison" é o instrumento, nao o fim; nao se trata de "racio-
"Que la nature done soit votre étude unique" nal", e sim de "razoável": o classicismo educa para o com-
portamento razoável na vida, para a "raison créatrice et
prudence épique" (* 2 ). É urna literatura moralista no sen-
"Rien n'est beau que le v r a i : le vrai seul est aimable;
tido de Aristóteles e dos seus comentadores contra-refor-
II doit régner partout, et méme dans la fable."
mistas. Em país de catolicismo contra-reformista, a arte
Brunetiére ( 40 ) baseou nesses versos a hipótese do na- nao pode ter outro fim; é o pendant ficticio da religiao e
turalismo que teria dominado na literatura clássica — o da moral verdadeiras. A arte do dramaturgo e a do roman-
verdadeiro naturalismo, em oposicao ao falso de Zola. Mas cista justificam-se apenas quando correspondem á arte di-
é preciso entender o sentido do termo imitacao em Aris- ferente, mas análoga, do diretor das consciéncias, do con-
tóteles, para evitar o equívoco evidente. "Imita$ao", se- f essor. Os jansenistas eram inimigos da arte profana porque
gundo a interpretagao de Lascelles Abercrombié ( 4 1 ), sig- gostavam de monopolizar a outra arte, a da psicopedagogia
nifica, em grego, a transformac,áo dos impulsos psicológicos religiosa. Os chefes principáis do jansenismo nao sao Ar-
em realizacoes estilísticas; quer dizer: técnica literaria. nauld e Nicole, mas os confessores Saint Cyran, Singlin e
As famosas regras aristotélicas, das quais Boileau é par- Saci. Bremond demonstrou ( 43 ) que a verdadeira origem
tidario ortodoxo, fazem parte dessa técnica de transformar do jansenismo estava no ascetismo mórbido de Claude
o "vrai" em "beau". Daí, o heroísmo e a sublimidade da Lancelot, que se privou do conforto da eucaristía, e no
literatura clássica francesa nao deixarem de ser "natura- rigorismo mórbido de Saint Cyran, que aprovou e aplicou
listas", mas apenas em sentido diferente do moderno. Os essa praxe; a teoría de Arnauld com respeito á comunháo
clássicos franceses nao sentiam contradigáo entre o "vrai" veio só depois, baseando a praxe na doutrina da Jansenius.
e o "beau", porque o fim da sua arte nao era retratar a na- A doutrina, porém, teve origem diferente. Jansenius
tureza bruta, mas educar a natureza humana. A sua lite- era bispo de Ypres, e Louvain o centro da sua escola. No
ratura é urna literatura de pedagogos e moralistas — eis a protesto contra o semipelagianismo dos jesuítas havia tam-
influencia principal do jansenismo e, podemos acrescentar, bém protesto contra os arminianos, semipelagianos protes-
do realismo da mística espanhola — e por isso excluem tantes, que na mesma época inquietaran! a Holanda vizinha.
cuidadosamente os elementos caóticos e irracionais da na- O ambiente flamengo-holandés, com a sua tradícao eras-
tureza. Eis o que parece racionalismo cartesiano nos ver- miana de humanismo cristáo numa "Terceira Igreja", é
sos de Boileau:
preciso estudá-lo para compreender bem o contramovimen-

40) F. Brunetlére: "Le naturallsme au XVHe slécle". (In: Études 42) J. C. Fidao-Justlnlanl: Discours sur la raison classique. Paris,
critiques sur l'histoire de la littérature frangaise. Vol. I. París, 1937.
1896.)
43) H. Bremond: Histoire littéraire du sentiment religieux en Frunce
41) L. Abercrombié: The Theory o/ Poetry. London, 1924. depuis ¡a fin de la guerre de religión. Vol. IV. París, 1920.
1050 Qrro MARÍA CABPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1051

to do jansenismo, essencialmente anti-humanístico, protes- meritorias: sao problemas sutis, decorrentes de antinomias
tando contra a identificacáo o u mistura do divino com o dentro do próprio dogma; nao deixam, porém, de ter con-
humano. Pela mesma razáo, o jansenismo é antimístico; seqüéncias importantíssimas quanto ao comportamento do
acentúa o abismo dialético e n t r e Deus e o homem, opon- homem no mundo. O homem moderno gostaria de dar ou-
do-se á idéia da uniáo mística, outra tradicao flamenga tros nomes as coisas, nomes tomados por empréstimo á
desde os tempos de Ruysbroeck. Arnauld opoe ao movi- psicofisiologia e á sociología; mas as coisas permanecem
mento místico francés da primeira metade do século X V I I as mesmas: o problema da liberdade e do determinísmo nao
a dialética augustiniana de Jansenius, num momento em foi resolvido. Assim, a literatura psicológica dos franceses
que a psicología e epistemología de Santo Agostinho já sempre continuou e continuará a debater aqueles proble-
haviam sido renovadas por Descartes. Daí provém a atra- mas teológicos, embora dando-lhes outros nomes. Desde que
gao que o cartesianismo exerceu sobre os jansenistas Ar- Sainte-Beuve redescobriu Port-Royal, "jansenista" é urna
nauld e Nicole: Descartes era um aliado contra a mística. das qualificagoes mais freqüentes na crítica literaria fran-
A pedagogía de Arnauld e Nicole é urna tentativa de ra- cesa. Mauriac e Julien Green sao chamados "jansenistas";
cionalizar, transformar em pedagogía cartesiana, a psico- um romance como L'École des femmes, de André Gide,
pedagogia dos grandes confessores. No fundo, o janse- enquadra-se perfeitamente no panorama da luta em torno
nismo é urna tentativa de condensacáo em fórmulas teoló- de Port-Royal.
gicas, razoáveis, do problema angustioso da Graca, tema Mas nao se trata apenas de conflitos íntimos e rea§6es
principal das conversas no confessionário. psicológicas. Desde que Max Weber e Troeltsch criaram
Os "filósofos" e enciclopedistas do século X V I I I nao a sociología religiosa, sabemos da enorme influencia da
se cansaram de zombar dos jansenistas e jesuítas, clérigos, religiáo no comportamento social dos homens; o calvi-
leigos e até damas mundanas que quebraram as cabecas e nismo, com a sua doutrina de predestínagao dos eleitos e
lutaram apaixonadamente por causa dos sutilíssimos pro- a moral da ascese intramundana do trabalho, é responsável
blemas teológicos da Graca divina. Poderia haver ocupa- pela mentalidade que criou o capitalismo, na Holanda, na
cao mais inútil? Desde Voltaire, a querela jansenista foi Inglaterra, na Suiga; a ausencia de doutrinas assim é res-
tratada como assunto de comedia. Mas nao se pode julgar ponsável pelo atraso económico das nagóes católicas, E s -
assim sem cometer anacronismo grave. Para o crente, os panha e Italia, a partir dos séculos X V I e X V I I . Entre
problemas da Graca e da predestínagao sao da maior impor- os dois polos encontra-se a Franga, país onde o catolicismo
tancia. Saber se Cristo morreu por todos ou só pelo "pe- venceu pela Contra-Reforma, e onde ao mesmo tempo a
queño número de eleitos"; saber se a própria pessoa per- burguesía, aliada do absolutismo real, ascendeu á riqueza
tence ao número dos predestinados ao Céu ou ao número e a participagao no poder. Certas doutrinas do catolicismo
dos predestinados ao Inferno; saber se a Graca divina é medieval, com o alto aprégo á pobreza ou o desprézo do
irresistível e salva a todos, ou se o coracao petrificado pela sucesso mundano em face da morte, sao incompatíveis com
concupiscencia tem fórga para rejeitar a salvacáo; saber a mentalidade burguesa. Mas a incompatíbilidade mais
se o pecado original nos corrompeu de tal modo que só da grave existia a respeito da consideragao do dinheiro: a fi-
Graca se pode esperar a salvacáo, ou se foi concedido ao losofía crista medieval, imbuida de idéias feudais, consi-
homem o livre arbitrio para merecé-la por meio de obras dera o dinheiro como destinado a ser consumido, enquanto
• ¥W'

1052 OTTO MARÍA CARPEAUX


HISTÓFIA P A LITERATURA OCIDENTAL 1053

na época moderna só aristócratas ociosos, latifundiários


ser mais ortodoxos do que o próprio Papa. No fundo, os
absenteistas e a "jeunesse d o r é e " podem tomar essa ati-
dois partidos procuravam conciliacoes impossíveis. Os je-
t u d e ; para o burgués, o dinheiro significa fonte de enri-
suítas pretendiarn reconhecer a burguesía como "corpora-
quecimento por meio de colocacao de capitais, créditos,
(3o" no sentido medieval, como novo "tiers-état" ao lado
empréstimos e todos os negocios que rendem juros. Porém
das classes antigás, outorgando-lhe certas "facilidades"
o Direito canónico, criagao da época feudal, proíbe peremp-
económicas, análogas ás facilidades moráis, mas vedando-
tóriamente os juros como usura criminosa. Os dominicanos
lhe a possibilidade de ascensao política. O* jansenistas
sempre mantiveram ésse ponto de vista rigoroso. Os je-
recomendavam como solugáo do problema a volts á ascese
suítas, desejosos de acomodar-se ao mundo moderno para
medieval; conservando-se, assim, a ortodoxia da doutrina
nao perderem tantas almas, inventaram certas formas de
social com respeito á nova classe inteira, possibilitou-se
contratos comerciáis — o "contractus trinus", o "titulus
aos membros dessa classe, como individuos, a "ascese intra-
lucri cessantis", o "census personalis", o "titulus legis ci-
mundana do trabalho" e, como conseqUéncia, a ascensao
vilis" — para iludir a proibigáo canónica dos juros. E n t r e
individual á riqueza ilimitada. A solucáo jesuítica satiafez
os jesuítas que defenderam tal solu$áo encontram-se Le-
os desejos dos pequeños-burgueses; era, no entanto, incom-
desma, Gregorius de Valencia, Gretser, Laymann, Tanner,
patível com as pretensóes mais exigentes, económicas e
casuistas que também figuram ñas Lettres provinciales.
outras, da grande burguesía. A solugao jansenista sstisfez
Aínda no século X V I I I , o dominicano italiano Daniele
' a "noblesse de robe", as grandes familias da Justica par-
Concina atacou a colocac.ao de capitais em anuidades
lamentar e da alta burguesía provinciana; mas era incom-
("census personalis") e os juros dos empréstimos públicos
patível com o caráter económico, essencíalmente pequeno-
("titulus legis civilis"), chamando-lhes "heresias calvinis-
burgués, da na$áo francesa. O malogro das duas solucóes
tas". Desta vez, respondeu-lhe, como representante da bur-
levou á indiferen$a religiosa, á laicizacáo da burguesia
guesía católica de Verona, o Conde Scipione Maffei, ar-
francesa, com a Revolugao e o an ti clericalismo da Revo-
queólogo, dramaturgo e jansenista, baseando-se em argu-
lucao como resultado final ( " ) .
mentos do famoso teólogo jansenista holandés Nicolaus
Broedersen, que já defenderá os juros. Existe, sem dú- A significagáo social da querela jansenista é a luta
vida, urna reíanlo íntima entre o problema da Graca e o de ascensao da burguesia, luta que se travou ñas fórmulas
problema dos juros do capital (**"). teológicas da época barroca. É o processo do Barroco. A
expressáo literaria désse processo é o classicismo francés,
Tratava-se da posigáo da nova burguesía dentro do
compromisso entre as tendencias contráditórias da época.
sistema da hierarquia social, herdada da Idade Media.
A teoría literaria do classicismo é aristotélica, ÍBto é, pro-
Quem se bateu em primeira linha pela acomoda$áo da dou-
vém do aristotelismo dos teóricos contra-reformistas da
trina social católica foram os jesuítas; as famosas "facili-
Italia. Neste sentido, o classicismo é barroco; o primeiro
dades" eram, em parte, concessoes á burguesía. O papel
dos jesuítas era mais "progressista" do que "reacionário".
Os "reacionários" eram os jansenistas, porque pretendiarn 46) B. Groethuysen: Origines de l'esprit bourgeots en France. París,
1927.
B. Oroethuysen: Die Entstehung der buergerlichen Welt — und
Lebensanschauung in Frankreich. 2 vols. Halle, 1927/1930.
44) A. M. Knoll: Der Zins in der Scholastik. Wien, 1932. (As duas edl?óes da obra sao diferentes, completando-se.)
,

1054 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCJDENTAL 1055

grande partidario das "regras aristotélicas" foi o "pré- "intendants" de "ce grand roi bourgeois". Spengler intro-
cieux" Chapelain. O conteúdo do classicismo é jansenista; duziii na historiografia o termo mineralógico pseudomoi-
sobre isso nao pode haver dúvidas, depois dos estudos de íose: certas substancias minerais, embora havendo passado
Brunetiere e Lanson. Mas a angustia religiosa é atenuada, por profundas transformacoes da sua composicio química,
até certo ponto abafada, pelo racionalismo cartesiano, que cristalizam, na forma primitiva, engañando o mineralogista
encontra a sua expressáo p u r a — a observagáo é, urna vez a respeito da composigáo do cristal; ou entio, urna subs-
mais, de Lanson — nos realistas e naturalistas da poesía tancia mineral preenche o lugar de outro mineral, de cora-
burlesca e do romance picaresco. E a forma exterior dessa posicáo química diferente, tomando-lhe emprestada a forma
mistura de elementos heterogéneos é o aristocratismo, em cristalográfica. O classicismo francés é urna pseudomor-
que estao acordes Corneille e La Rochefoucauld, Bossuet fose assim: o cristal é aristocrático, o conteúdo é burgués;
e Racine: a sublimidade trágica e a "ardeur épique". Aris- a presenga dos outros elementos barrocos, é possível diag-
tocratismo, naturalismo, mística e aristotelismo: eis os nosticá-la pelo estudo dos movimentos anteriores da lite-
quatro elementos constitutivos do Barroco. Contudo, ratura francesa e das influencias estrangeiras.
cumpre admitir que o classicismo francés se distingue de Essa definigáo do classicismo francés torna dispensá-
toda a literatura barroca. O Barroco é retórico, exuberan- veis as classificagóes artificiáis segundo os géneros, ñas
te, excessivo, angustiado, "clair-obscur"; o classicismo quais genios tao diferentes como Corneille, Racine e Mo-
francés é sobrio, temperado, equilibrado, claro, é a ex- • liére se acham reunidos como "dramaturgos de primeira
pressáo máxima da famosa "ciarte fran§aise". Peyre ( 46 ) ordem"; Madame de La Fayette, como moralista, é sepa-
reconhece nessa clareza as virtudes essenciais do povo fran- rada de Racine e colocada ao lado de La Rochefoucauld,
cés: "l'économie, la tempérance, la peur de l'excés et la ou, pior ainda, ao lado de Madame de Sévigné, pelo sim-
peur du risque". Contra essa identificagao está a hipótese ples fato de serem mulheres; e La Fontaine, porque foi
de Hatzfeld de que o classicismo é a forma francesa do o único fabulista da época, é qualificado como "indepen-
Barroco. O próprio Peyre invoca, alias, a opiniáo de dente". Na verdade, os independentes sao La Fontaine e
Gide ( 47 ) acerca do fundamento da "ciarte classique" em Moliere, mas por outros motivos. Quanto aos outros, é
qualidades moráis, que nao sao fatalmente as da nacao in- possível distinguir tres correntes principáis: urna corrente
teira; Peyre fala em "vertu bourgeoise", e cita urna frase hispanizante, romántica, jesuítica, á qual pertence Cor-
do grande aristócrata La Rochefoucauld: "Ce n'est pas neille; outra corrente, italianizante, aristotélica, que se
assez d'avoir de grandes qualités, il faut en avoir l'éco- exprime estoicamente em Balzac e de. maneira crista em
nomie." A fachada do classicismo francés é aristocrática; Bossuet; e urna terceira corrente, augustiniano-cartesiana,
o interior do edificio revela-o como grande casa burguesa, jansenista, que exerce influencia dominante sobre todo o
em correspondencia exata com a estrutura do Estado de resto. A influencia espanhola, barroca, revela-se nos corne-
Luís XIV, reí da corte mais aristocrática de todos os tem- j o s de um teatro popular de que Hardy é o representante;
pos, sendo ésse Estado administrado pela burguesía dos a intervengao da teoria aristotélica modifica essa evolugáo,
produzindo a tragedia de Corneille. Com o aristotelismo,
entra na Franga o conceito moral da literatura, do qual sao
46) Cf. nota 37. representantes os oradores sacros e os famosos "moralis-
47) A. Gide: Incidencet. París, 1924.
.

1056 OTTO MABIA CARPEAUX HISTORIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 1057

tes"; mas o sentido désse moralismo é logo modificado pelo enquanto o teatro francés parece só de gente culta, sobre-
misticismo da época anterior, berulliana, pelos escrúpulos tudo da corte e da aristocracia. É outra ilusáo de óptica.
jansenistas, pelas análises cartesianas. O moralismo fran- Espetáculos na corte, havia-os também em Madri e Lon-
cés é urna especie de arrependimento após as convulsoes dres, e o gósto barroco das decoragoes suntuosas, do "tea-
da F r o n d e ; o espirito burgués impoe urna tranqüilizagáo tro de ilusáo", é dos jesuítas, de Calderón e do teatro inglés
das paixoes a seu modo, atenuando-as pelas "bienséances" da Restauragáo; na Franca, só aparece nos últimos anos da
da estética aristotélica de Boileau: o resultado é a poesia atividade de Corneille e com a infiltradlo da ópera. A
aristocrática e temperada, jansenista e aristotélica, barroca organizagáo do teatro clássico francés ( 48 ) assemelha-se
e clássica, de Racine. mais á organizagáo do teatro elisabetano: as companhias,
conquanto gozem de privilegios e subvengoes reais, repre-
Boileau, na sátira nona, censura os costumes pouco
sentam o seu repertorio principalmente na cidade, perante
polidos dos espectadores, nos teatros, dizendo:
o público burgués, e aqueles versos de Boileau já revelam
o que os documentos pormenorizam: todas as classes da
"Un clerce, pour quinze sous, sans craindre le hola,
sociedade participaran! da paixáo teatral, que era táo viva
Peut aller au parterre attaquer Attila."
como na Espanha ou na Inglaterra. A extrema simplici-
dade das decoragoes nao decorria de urna vontade de esti-
Estes versos encerram preciosa ligáo, corrígindo urna •iizagáo, e sim do senso de economía, considerando-se par-
ilusáo de óptica muito freqüente, como se o teatro clássico ticularmente que as companhias levavam o repertorio tam-
francés tivesse sido apenas aristocrático e literario. O bém as cidades da provincia; e o público era táo pouco
teatro de Corneille, Racine e Moliere é, porém, urna criagáo exigente quanto em Londres. O teatro clássico francés tem
táo nacional como os teatros mais típicos de outras nagoes; larga base popular. Fóra literario apenas no século X V I :
no século X V I I I , ingleses, italianos, espanhóis e alemaes teatro de humanistas eruditos, destinado á leitura ou, quan-
nao conseguiram imitar aquela arte, que parece universal, do muito, á representagáo nos colegios, assim como as pegas
mas é exclusivamente francesa. Os críticos, espectadores "experimentáis" dos italianos contemporáneos ou dos pri-
e leitores estrangeiros sentiram sempre, no teatro francés, meiros "University wits". Robert Garnier é grande poeta;
certa frieza intelectual, certa dignidade inacessível, expli- mas a sua poesia teatral nao pertence ao teatro vivo. A
cando isso pelo imitagáo exata dos modelos antigos e pelo origem do teatro clássico antes se encontra ñas represen-
público aristocrático e intelectual dos teatros. Mas ésses tagoes populares, desprezadas por aqueles humanistas: ñas
dois motivos nao resistem á análise. O principal elemento últimas "moralités" e "mystéres", teatro burgués-medieval
antigo no teatro francés é a teoría, e esta nao difere do em pleno século X V I e até no comégo do século X V I I , em
aristotelismo mal interpretado dos italianos do século X V I . competigáo com as companhias de atores viajantes, dessas
As tragedias político-históricas de Corneille seriam táo que Scarron descreveu no Román comique. Na Inglaterra,
incompreensíveis a um romano como o seriam a um grego
as tragedias psicológicas de Racine; tampouco sao Har-
pagáo, Tartufo e Alceste personagens plautinas ou teren-
48) S. Wllma Holsboer: Histoire de la mise en scéne dans le théátre
cianas. O teatro espanhol e o inglés parecem mais nació- frangais de 1600 d 1657. París, 1934.
nais no sentido de mais populares, dirigindo-se á massa, P. Mélése: Le théátre et le public á París sous Louis XIV. París,
1935.
1058 OTTO VI \u i \ CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1059

pela mesma época, gente culta, os "University wits", co- pular, o seu "romantismo teatral" á maneira espanhola, o
megou a escrever para o t e a t r o popular; e o mesmo acon- estilo involuntariamente cómico, porque burgués, das suas
teceu na Franga. Nasceu assim o teatro de Alexandre cenas patéticas. Contudo, Hardy é um escritor culto, que
Hardy (*D). Na sua ansia d e apresentar assuntos sempre apenas condescende com o gósto das massas; no intimo,
novos — o consumo foi grande — Hardy gostava de utili- permanece poeta, se bem que mediocre, e nao impenetrável
zar enredos espanhóis, e n e n h u m teatrólogo francés se ás exigencias literarias. As "peripecias" surpreendentes ñas
assemelha tanto aos dramaturgos espanhóis quanto H a r d y : suas tragicomedias pretendem impressionar os espectado-
na fertilidade imensa, na escolha dos assuntos mais varia- res, mas podem também ser interpretadas como elemento
dos, na composicao incoerente e novelística, na adaptacáo aristotélico; segundo as doutrinas de Speroni, a peripecia
de todos os enredos — mitológicos, históricos, pastoris, era considerada como preparacáo indispensável da "catarse.
fantásticos, tragicómicos — ao gósto do espectador bur- Ela tem certamente essa fungao no Pyrame et Thisbe
gués, parisiense. Até o seu estilo bombástico e, as vézes, (1617), de Théophile de Viau, pega "précieuse", vale dizer,
involuntariamente cómico, o aproxima da dramaturgia do barroca, representada para o Hotel de Rambouillet. É o
ator que recita no Hamlet, e do qual Polonius afirma ser comégo da síntese francesa de teatro popular e teatro aris-
o melhor ator do mundo, "either for tragedy, comedy, totélico, pendant das sínteses de teatro popular e teatro
history, pastoral, pastoral-comical, historical-pastoral, tra- culto na Espanha e na Inglaterra.
gical-historical, tragical-comical-historical-pastoral, scéne
A estética aristotélica é de origem francesa: Scali-
individable". Os burgueses de Paris aceitaram tudo de
ger C°) e r a francés. Os seus discípulos italianos — Cas-
Hardy, inclusive porque ele representava o seu drama de
telvetro, Riccoboni, Ingegneri — tornaram-se conhecidos
maneira que Ihes era familiar: perante decoracoes "simul-
na Franga. Discipulo dos italianos é o "précieux" Cha-
táneas" — as "mansions" — do palco medieval, de modo
pelain ( M ) , que na Lettre sur Vart dramatique (1630) pro-
que aparece até a "scéne individable". Mesmo para os
poe as famosas "tres unidades" pseudo-aristotélicas: uni-
enredos mais romanescos Hardy usava apenas de urna de-
dade de acáo, de tempo e de lugar. Discípulo dos italianos
coragáo, imutável, e Rigal acredita encontrar nessa mise-
é Jean de Mairet (•''•), autor de pastorais e comedias em
en-scéne a origem da "unidade de lugar" do teatro clássico.
estilo italiano; no prefacio da Silvanire (1625), recomen-
Hardy é o criador do teatro francés; o primeiro que
dou as tres unidades, e a sua Sophonisbe (1634) é a pri-
escreveu pegas nao para serem lidas, mas para serem re-
meira tragedia estritamente "regular" em língua francesa.
presentadas. Daí suas concessoes ao gósto burgués e po-
Nao é por acaso que a pega trata o mesmo assunto da tra-

49) Alexandre Hardy, c. 1570-1632. 50) Cf. "Teatro e Poesía do Barroco Protestante", nota 32.
Didon; Mariamne; Alceste; Alexandre; Ariane; Théagéne et 51) Cf. "Poesía do culteranismo e Teatro da Contra-Reforma",
Charíclée; Gésippe; Cornélie; La forcé du sang; La belle Egyp- nota 46.
tienne; Elmire; Frégonde; Phraate; Alcée; etc. 52) Jean de Mairet, 1604-1686.
Edicáo por K. Stengel, 5 vols., Marburg, 1883/1884. Silvanire (1625); La Sylvie (1626); Sophonisbe (1634).
E. Rigal: Alexandre Hardy et le théátre trancáis au commen- Edicao da Sophonisbe por K. Vollmoeller, Halle, 1888.
cement du XVlle siécle. París, 1890. G. Blzos: Étude sur la vie et les oeuvres de Jean de Mairet.
W. Deierkauf-Holsboer: Vie d'Alexandre Hardy, Poete du RoU París, 1877.
New York, 1948.
M

1060 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1061

gédia de Trissino. Assim como Trissino, na evolucao do tosos. Os teóricos fizeram adaptar o aristotelismo barroco
teatro italiano, também Mairet representa, na evolucao do ao gósto francés. Corneille representa o próprio Barroco
teatro francés, a fase "grega", fase transitoria. O verda- francés.
deiro teatro barroco principia sempre com a influencia de O chamado "classicismo francés" é t í o pouco "clá-
Séneca. O senequismo de Garnier, tao importante na his- sico", no sentido da Antiguidade greco-romana, e tao au-
toria do teatro inglés, já n a o podia exercer influencia na ténticamente francés, que os críticos estrangeiros chegam,
Franga. Mas o grecismo de Mairet é logo substituido pelo quando muito, a urna admiragáo fria e algo hipócrita.
novo senequismo de Georges de Scudéry ( 5 3 ), cuja Mort Desde a tentativa infeliz dos classicistas franceses do sé-
de César apareceu no ano do Cid; já dois anos antes, em culo X V I I I de impor Corneille e Racine como modelos a
1634, Paris vira a mais senequiana das tragedias francesas, todo o mundo, a resistencia tornou-se cada vez mais forte.
o Hercule mourant, de Rotrou, que precede ¡mediatamente Quanto a Racine, existe aínda a possibilidade de se pre-
Corneille ( " ) . ferir sua poesia á sua dramaturgia. Quanto a Corneille,
O classicismo francés aproveita-se das ligóes da Anti- porém, que é só dramaturgo, essa possibilidade desaparece.
guidade; mas nao se deixa dominar por elas. Malherbe Pierre Corneille ( 5B ) é para os estrangeiros o "clássico"
colocou o "sens commun", virtude típicamente burguesa,
ácima da imitagao servil dos modelos greco-romanos. O 55) Pierre Corneille, 1606-1684.
teatro francés evitou o erro dos italianos, a imitagao dos Mélite (1629); La veuve (1633); La Galerie du Palais (1633);
horrores da tragedia de Séneca. O "sens commun" inspira La Place Royale (1634); Médée (1635); L'ülusion comique (1636);
Le Cid (1636); Horace (1640): Cinna (1640); Polyeucte tnartyr
as "bienséances" do palco, atenuagao burguesa dos choques (1643) i Le Menteur (1643); Lo mort de Pompee (1643); Rodo-
sangrentos e conflitos apaixonados. Os primeiros teóricos gune princesse des Parthes (1644); Theodore vierge et martyre
(1645); Héraclius empereur d'Orient (1646); Don Sanche d'Ara-
franceses conhecem a poética aristotélica dos italianos, gon (1650); Nicoméde (1651); Pertharite roi des Lombards (1652);
mas compreendem-na de outra maneira; as "regras" signi- Oedipe (1659); La Toisón d'or (1660); Sertorius (1662); Sopho-
fican!, para éles, meras normas estilísticas, leis de mecá- nisbe (1663); Othon (1664); Agésilas (1666); Attila roi des Huns
(1667); Psyché (com Moliere e Qulnault) (1671); Pulchérie
nica da cena. Quando aparece a primeira grande tragedia (1672); Sureña general des Parthes (1674).
barroca do teatro francés, Le Cid, éles reagem logo. Até
L'Imitalion de Jésus-Christ (trad. em versos —1651-1656); Trois
o Cardeal Richelieu acredita perceber na glorificagáo do Discours (1660); etc.
duelo urna ameaga contra a "bienséance" imposta pelas leis Edlgóes completas por M. Marty-Laveaux, 12 vols., Paris, 1862/
do Estado, e Chapelain interpreta os Sentimens de ¡'Acá- 1868, e por P . Liévre e R. Clllois, Paris, 1934.
E. Faguet: Corneille. Paris, 1886.
démie sur le Cid (1638), que nao sao sentimentos amis- G. Lanson: Corneille. París, 1898.
P. Desjardlns: La méthode des classíques Jrancais, Corneille,
Poussin, Pascal. París, 1904.
C. Stelnweg: Corneille. Kompositionsstudien. Halle, 1905.
53) Georges de Scudéry, 1601-1667. F . Faguet: En lisant Corneille. París, 1913.
La mort de César (1636); Arminius (1643). A. Dorchaln: Pierre Corneille. Paris, 1918.
Ch. Slerc: Un matamore des lettres. La vie tragicomique de L. M. Riddle: The Génesis and Sources of Corneilles Tragedles,
Georges de Scudéry. París, 1929. Jrom Médée to Pertharite. Baltlmore, 1926.
54) A Importancia de Séneca na evolucao da tragedla clássica íol B. Croce: Ariosto, 'Shakespeare e Corneille. 2.» ed. Barí, 1929.
acentuada por G. Lanson: Esquisse d'une histoire de la tragédit V. Klemperer: Pierre Corneille. Muenchen, 1933.
jrangaise. 2.» ed. Paris, 1927. J. Schlumberger: Plaisir á Corneille. Paris. 1936.
1062 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1063

que os críticos franceses apresentam; isto é, nao seria um as pegas espanholas. Introspectivo, Corneille reduziu os
verdadeiro clássico. Mas s e r á isso um defeito? Na ver- acontecimentos exteriores a um mínimo, deslocando o inte-
dade, Corneille é maior do q u e o seu classicismo. résse dramático para o foro íntimo das suas personagens;
As comedias de Corneille — La Galeríe du Palais, La criou um teatro de conflitos psicológicos, invisíveis. O
Place Royale, Le Menteur — sao pouco cómicas; já foram importante no Cid, em Horace, em Cinna, em Polyeucte,
chamadas de "dramas burgueses", e o objetivo é sobretudo nao é o duelo, a luta fratricida, a conspiragáo, o martirio,
importante nessa definigáo. Corneille é um burgués de mas o confuto entre amor e honra, no Cid; o conflito entre
Ruáo, e nunca perdeu os hábitos do provinciano um tanto patriotismo e amor, em Horace; o conflito entre necessi-
extraviado na Corte. O ambiente da capital deslumbrou-o. dade política e generosidade humana, em Cinna; o conflito
Ñas comedias, fez a tentativa de desembaragar-se, redu- entre paganismo e cristianismo, em Polyeucte. Assim, Cor-
zindo o novo ambiente a dimensóes cómicas. Ñas trage- neille criou a simplicidade característica do teatro clássico,
dias, tentou engrandecer-se a si mesmo, até á altura dos a tragedia psicológica dos franceses. O mundo exterior
reis e príncipes de que a realidade e a sua imaginagáo po- comega a ter importancia cada vez menor. Os heróis das
voaram ésse grande mundo. O seu mestre na realizagao pecas espanholas aínda sao escravos da Providencia, do
désses instintos dramatúrgicos nao foi ouiro grande dra- Fado, de fatos complicados e inextricáveis que se emara-
maturgo, mas o seu professor de Retórica no colegio dos nham cada vez mais até o fim trágico; os heróis de Cor-
jesuitas em Ruao. Na aula de Retórica aprendeu Corneille neille chegam a ser donos dos acontecimentos, forjam os
o que para o futuro as teorías estéticas lhe confirmaram: seus próprios destinos; no dizer de Auguste: "Je suis
que só grandes caracteres e acontecimentos extraordinarios maitre de m o i . . . "
merecem memoria perpetua; e de grandes caracteres e
Brunetiére, Faguet, Lanson, todos quantos escreveram
acontecimentos extraordinarios estava cheia a sua alma de
compreensivamente sobre Corneille, protestaram contra o
burgués provinciano, tímido e sonhador. Como drama-
equívoco de interpretar aquetas grandes situagoes dramá-
turgo, Corneille nao fez outra coisa senáo exteriorizar seu
ticas como conflitos entre a vontade apaixonada e o dever
deslumbramento íntimo. Mas nao sucumbiu: impondo-se
moral. Na verdade, o conflito é entre paixoes diferentes
aquela severa disciplina moral que também aprenderá
— Corneille é contemporáneo de Descartes, que escreveu o
na casa paterna e no colegio de Ruao, baniu do palco a
Traite des passions — e o dramaturgo distingue razoável-
serie infinita de acontecimentos exteriores e violentos,
mente paixoes mais nobres e paixoes mais baixas, segundo
assim como os apresentavam os seus primeiros modelos,
o método da apreciagao dos méritos relativos que ele apren-
derá nos casuistas jesuíticos. O cohflito nao se dá entre
vontade e dever, mas entre vontade e vontade, e a historia
V. Vedel: Cornetlle et son temps. (Trad. do original dinamar- íntima das suas personagens é urna serie de esforgos difi-
qués: Corneille og hans samtid. Kjoebenhavn, 1927.)
R. Brasillach: Fierre Corneille. París. 1939. ceis e dolorosos até conseguirem superar as complicagoes
I. Schlumberger: "Corneille". (In: Tableau de la littérature exteriores e tornar-se senhores do próprio destino. Ro-
francaise, de Corneille a Chénier. París, 1939.) drigue, Auguste, Héraclius, Nicoméde, Sertorius — a serie
O. Nadal: Le sentiment de Vamour dans Voeuvre de Fierre Cor-
neille. París, 1948. imponente de heróis cornelianos — criam os seus próprios
G. Couton: Le veillesse de Corneille. París, 1949. destinos; e acontece que com isso criam historia. Os con-
G. Couton: Réalisme de Corneille. Clermont-Ferrand. 1953.
.

1064 Orro MARÍA CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1065
temporáneos de Corneille nao se cansaram de elogiar a
profunda verdade dos seus panoramas históricos; e Saint- cristao Balzac. Além da "virtude antiga", só existe um
Évremond chamou-lhe "grande historiador". A opiníáo sur- caminho extraordinario de p u r i f i c a d o das paixoes, fecha-
preende-nos um pouco: a retórica um pouco monótona em do aos pagaos romanos, mas abertos a nos outros: o caminho
todas as pegas, a linguagem sempre igual dos gregos e ro- da conversao. J á por isso — se nao houvesse outros mo-
manos, espanhóis, bizantinos e hunos de Corneille, corres- tivos — a conversao em Polyeucte nao pode ser igualada
ponden! bem á roupagem sempre igual — elmo, couraca, ás conversoes repentinas dos jansenistas; é antes educacao
botina — com que todas aquelas personagens aparecem no da vontade humana pela intcrvencáo irresistível da Graca
palco, correspondem ao palacio sempre igual que constituí divina, e essa nocao da irresistibilidade encontra apoio na
o fundo de todas as cenas. É um anacronismo perpetuo. teología dos jesuítas.
Na verdade, porém, retórica, roupagem, palacio, desempe- O elemento mais "clássico" em Corneille é a economía
nham apenas a fungió da "compositío loci", nos Exercitia com que usa os recursos do teatro: dentro das linhas sim-
jesuíticos: preparacáo exterior do teatro de acontecimen- ples da composigao dramatúrgica e da arquitetura rigoro-
tos de significagáo universal e permanente, mas invisíveis. samente simétrica das cenas e atos, as personagens mos-
A Historia de Corneille é Historia ideal, repctindo-se em tram-se transparentes, perfeitamente caracterizadas pela
todos os tempos: teatro dos conflitos entre grandes von- agao e pelo verso. A língua de Corneille é pouco sugestiva,
tades e paixoes políticas. Por isso os contemporáneos o pouco poética; é expressao direta das situacoes dramáticas.
aprecíavam t a n t o : éles, os heróis e combatentes das pai- É sentenciosa apenas para condensar no mínimo de pala-
xoes, conspíracóes e lutas da Fronde, viram-se representa- vras o resultado do confuto psicológico. Entáo nascem os
dos, a si mesmos, no nivel ideal da historia romana; por- famosos "mots" citáveis e sempre citados: o "Moi, dis-je,
que a historia de Roma era considerada, desde Maquiavel, et c'est assez", de Medée; o "Rodrigue, as-tu du coeur",
como a historia ideal, modelar, do género humano. A fa- de Don Díégue; o "Qu'il mourut!", do velho Horace;
mosa "virtude" romana serviu de "desculpa", ou antes, de o "Soyons amis, Cinna!", de A u g u s t e ; o " J e vois, je sais,
pretexto, ao teatro das paixoes desenfreadas — ñas rúas de crois", de Pauline; o "Rome n'est plus dans Rome,
de Paris e nos seus palcos — e o ambiente heroico serviu elle est toute oü je suis", de Sertorius. Eis a grande e
de recurso ao dramaturgo para conferir ao teatro das von- nobre eloqüéncia de Corneille, epigramática e estoica como
tades e paixoes o sentido moral exigido pela dramaturgia a do seu poeta preferido, Lucano. Essa eloqüéncia é res-
aristotélica dos jesuítas. Os romanos de Corneille, sempre ponsável pelo equívoco que La Bruyére formulou e todos,
falando em patria, dever, bravura, generosidade e renun- depois, repetiram: "Celui-lá peint les hommes comme ils
cia, sao co-responsáveis pelo equívoco moralista em torno devraient étre". É verdade que Corneille nao pinta os
do teatro corneliano. Sao os tipos algo triviais dos exer- homens como sao; mas tampouco como deveriam ser, e
cícios de eloqüéncia na aula de Retórica do colegio jesuí- sim como gostavam e gostariam de ser. Corneille, segundo
tico. Exibem virtudes que se aprendem nos livros antigos, a expressao de Schlumberger, é o realista dos sonhos he-
e Corneille acredita realmente que a virtude se aprende; roicos de todas as almas humanas. Estes sonhos também
se nao acreditasse, o dramaturgo nao teria sido aluno dos lhe vivificam as mejhores comedias. Dorante, o mentiroso,
jesuítas, leitor assíduo de Séneca e discípulo do estoico em Le Menteur, pretende menos mistificar os outros do
que viver mesmo em ilusoes de grandeza. Em L'IUusion
1

1066 OTTO MARÍA. CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDEISTAL 1067

comique, estes sonhos e ilusóes sao desmascarados, por um ilusorio; mas a conclusáo moral tem de ser real e seria.
golpe de cena, como facanhas de um pobre ator que imita O juiz, na tragedia corneliana, nao é a sociedade, mas a
no palco os gestos dos grandes. Brunetiere definiu a tra- Historia. O próprio Corneille diz, no primeiro dos seus
gedia de Corneille como "comedie jouée par des rois". Trois discours: "Les grands sujets qui remuent fortemet les
Schlumberger chama Corneille "genio cómico que falhou pasions, et en opposent l'impétuosité aux lois du desoír ou
á sua vocasáo". É um exagero espirituoso. Mas esclarece aux tendresses du sang, doivent toujours aller au delá du
o segrédo íntimo de Corneille, que ficou impenetrável du- vraisemblable." Mas teria o dramaturgo autorizacao para
rante séculos; é urna revelacáo como aquela que o próprio inventar e representar coisas "au delá du vraisemblable"?
dramaturgo definiu em um dos seus versos mais memo- Nao seriam, entáo, inverossímeis como as invencoes gratui-
ráveis: tas do "menteaur" Dorante? Os contemporáneos aristocráti-
cos o consideram autorizado para tanto porque ñas lutas da
" . . . c e t t e obscure ciarte qui tombe des étoiles." Fronde se digladiaram realmente paixóes e generosidades
comparáveis ás do Cid, de Horace e Cinna. Corneille, o
"Obscure ciarte" — reconhecemos nessa expressáo um dos burgués, é mais modesto e, ao mesmo tempo, mais exigente;
traeos mais característicos da pintura barroca. E a reve- mais modesto porque nao se acredita autorizado a inventar
lacáo do heroísmo como ilusáo é idéia tao típicamente enredos trágicos; e mais exigente porque nao pretende
barroca, que daí se origina uma interpretagao nova de Cor- representar os acontecimentos da historia contemporánea,
neille, até agora apenas esbocada ( 5 0 ). As comedias de idealizando-os, nem da historia francesa, da inglesa ou outra
desilusáo de Corneille desmentir-lhe-iam as tragedias, se qualquer, e sim os acontecimentos da historia ideal, "eter-
a antítese nao fósse intencional. Segundo o aristotelismo na" que é a historia greco-romana. "II ne serait pas permis
dos teóricos italianos, a arte se justifica como mera ficcao, toutefois d'inventer ees exemples"; m a s : "L'Histoire la
jógo da imaginacao, mas sempre com con el uso es moráis; e doit, et la représentation de ees grands crimes ne trouve
L'IUusion comique e Le Menteur — "engaño" e "desen- point d'incrédules." Todo o teatro barroco precisa do
gaño" — representam esta teoria no palco: a mentira e a enredo histórico para justificar-se perante Deus e os ho-
ilusáo, depois de haverem divertido o espectador, dizem- mens. Os dramaturgos jesuíticos trataram todos os assun-
lhe a verdade, duras verdades de licao moral. As tragedias tos históricos possíveis — greco-romanos, profanos e sa-
de Corneille já foram definidas como versóes dramáticas cros, medievais, contemporáneos; e os enredos de Cor-
dos romances heróico-galantes com as suas complicacoes neille já se encontram todos no repertorio dos jesuítas.
psicológicas de amor e bravura, de inverossimilhanca ex- A preferencia que o dramaturgo francés deu aos assuntos
trema. Colocados no palco, tais romances dariam comedias da historia romana nao é suficientemente explicada pela
de "¡Ilusión comique", representadas por "menteurs". A leitura assídua dos Entretiens sur les Romains, de Balzac.
inegável inverossimilhanca ñas tragedias de Corneille é, A historia romana era considerada, desde Maquiavel, como
porém, de outra especie, pela intervencáo da consciéncia historia ideal, modelar, de todas as nacoes, e nao é por
histórico-política do dramaturgo. O heroísmo pode ser acaso que o nome do grande italiano aparece nesta altura.
Brunetiere já observou que se encontram em Corneille, ao
lado das frases de heroísmo e generosidade, versos como
56) V. Klemperer: Idealistische Philologie. I. Muenchen, 1927.
1068 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1069

"Tous ees crimes d'État qu'on fait pour la couronne, Urna das diferengas exteriores, porém mais evidentes
Le ciel nous en absout alors qu'il nous la donne" entre o teatro calderoniano e o teatro corneliano, é consti-
tuida pelas chamadas regras aristotélicas — as tres unida-
— que poderiam figurar ñas meditagóes políticas daquele des de lugar, tempo e agao — que Corneille observou, em-
contemporáneo de Corneille que era o Pére Joseph. Cor- bora algo contra vontade. Sendo o seu teatro de mentali-
neille é mais explícito no prefacio de Othon: "Ce sont dade barroca, Corneille nao precisava das normas aristo-
intrigues de cabinet qui se détruisent les unes les autres". télicas para chegar ao resultado moral que a Contra-Re-
Sobretudo as pecas da velhice de Corneille — Sertorius, forma lhe prescreveu; e mal podía utilizar para ésse fim
Othon, Agésilas, Sureña, e, j á antes, Cinna e Nicoméde — as regras tal como lhe foram propostas pelos teóricos fran-
apresentam um quadro completo da política barroca, com ceses, interpretadas mecánicamente, com meros expedien-
os seus tiranos, secretarios, ministros diabólicos e mártires tes da composigáo dramatúrgica. O maior servigo que a
estoicos; do tirano-mártir n a o há exemplo mais magnífico, regra das tres unidades prestou a Corneille foi a realizagáo
em todo o teatro barroco, do que o imperador Auguste, em da verossimilhanga dos seus enredos históricos, em confuto
Cinna. A conversáo do romano á generosidade tampouco é permanente com a vontade de apresentar tragedias "au
urna mortificagáo da vontade como a conversáo, em Poly- delá du vraisemblable". O resultado désse confuto foram,
eucte; ao contrario, sao triunfos da vontade sobre as pai- porém, os assuntos cada vez mais complicados, dos quais
xoes, que nos impedem de agir com independencia. O me- Rodogune é o exemplo mais famoso, injustamente atacado
canismo dramático das pegas de Corneille representa, no por muitos críticos estrangeiros como se fósse o modelo
palco, a transformagáo da vontade desordenada em von- do teatro clássico francés. Rodogune é táo complicada
tade dirigida, conforme os preceitos moráis dos seus mes- porque os assuntos romanescos á maneira espanhola se con-
tres, os jesuítas. Observa excelentemente Lanson que Po- densaram em excesso dentro da rígida forma "aristotélica".
lyeucte, longe de defender o dogma jansenista, exprime Na verdade, o "classicismo" constituí, na carreira teatral
antes a doutrina molinista dos jesuítas a respeito do livre de Corneille, apenas urna fase: a segunda. A primeira fase
arbitrio; mas nao é suficiente a conclusáo de que o livre ó semi-senequiana (Médée) ou semi-espanhola (Le Cid).
arbitrio reina no teatro corneliano como lei absoluta. Na A segunda fase é a "clássica": a de Horace, Cinna, Po-
verdade, o livre arbitrio é o grande problema de Corneille, lyeucte, La Mort de Pompee. Na terceira fase, parece
como é o de Calderón. Quanto aos pagaos romanos, basta- Corneille voltar aos modelos espanhóis. Mas será que
lhes como resultado a impassibilidade estoica; e ésse estoi- Héraclius se baseia en En esta vida todo es verdad y todo
cismo, aprendido em Séneca, é bem barroco. Em Polyeucte, es mentira, de Calderón, ou Théodore em Los dos amantes
tal resultado teria sido insuficiente; devia intervir a Graga del cielo? Nao existem provas suficientes de haver Cor-
irresistível da conversáo. Existe outra conversáo, superior, neille conhecido ésses dramas espanhóis. Contudo, o en-
aquela que Calderón apresentou em La vida es sueño, e contró casual seria mais significativo do que a imitagáo.
que se baseia no reconhecimento da vaidade ilusoria déste A dramaturgia de Corneille tendeu naturalmente para a
m u n d o ; Corneille, "genio cómico", chegou ao mesmo re- forma calderoniana. Daí a crítica francesa "ortodoxa" nao
sultado em L'IIlusion comique, que é algo como um "pe- gostar muito das pegas de velhice de Corneille, nem sequer
queño teatro del mundo". de obras-primas como Sertorius e Sureña. Censurou-se,
1070 OTTO M A M A CARPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 1071

nelas, a comicidade involuntaria de certas cenas trágicas. o Don Bernardo de Cabrera, de Mira de Amescua, em Don
Mas os críticos esqueceram q u e Corneille já tinha intro- Bernard de Cabrére. Rotrou teria sido capaz de retomar
duzido, muito deliberadamente, o elemento cómico naquela a diregáo abandonada depois de Hardy, isto é, reconduzir
tragedia superior que é Nicoméde. As últimas pegas de o teatro francés as suas bases populares; o gósto pelas pegas
Corneille sao mesmo melodramas de tipo calderoniano. O de Lope de Vega é significativo. Mas o Barroco classici-
dramaturgo francés libertou-se, enfim, de toda a "vraisem- zado foi, afinal, mais forte. Saint-Genest, a tragedia do
blance", adotando os recursos cénicos da ópera. Urna "piéce ator que faz o papel de mártir cristáo, se converte no pró-
á machines" como La Toisón d'Or", urna "tragédie-ballet" prio palco e sofre o martirio, é urna magnífica tragedia
como Psyché, tem toda a semelhanga possível com as úl- barroca, digna de figurar entre Lo fingido verdadero, de
timas pegas mitológicas de Calderón. Corneille é, ao lado Lope de Vega, e The Román Actor, de Massinger. Ven-
de Pascal, o representante mais auténtico da tendencia bar- ceslas volta á maneira clássica da segunda fase de Corneille,
roca dentro do classicismo francés. de cuja última maneira se aproxima Bélisaire. Rotrou nao
No teatro francés do século X V I I essa tendencia conseguiu manter um rumo firme; o teatro francés perdeu
aparece clara em Thomas Corneille e, já antes déle, em com ele as possibilidades de urna síntese á moda espanhola.
Rotrou ( " ) . Teria sido um grande dramaturgo, se tivesse Em compensagao, ficou aberto o caminho para a evolugao
a severa disciplina de Corneille. As suas primeiras pegas da tragedia psicológica, de Corneille a Racine. Para tanto,
sao plautinas, através de modelos italianos. Intervém, bastou a eliminagáo completa do elemento romanesco e
depois, a imitagao de Séneca, em Hercuie mourant. O re- melodramático, que se refugiou no teatro dos grandes su-
sultado foi urna mistura dos elementos cómicos e trágicos cessos mundanos: o de Thomas Corneille ( B 8 ). A sua obra
— pela qual Rotrou, como único dramaturgo francés da corresponde aos romances heróico-galantes de La Calpre-
época, se aproxima dos dramaturgos ingleses; parece com néde e da Scudéry; obteve os mesmos éxitos ruidosos; Ti-
Thomas Heywood. Reunindo grande poder de imaginagáo mocrate foi a pega mais representada do século. Stilicon
cénica e considerável eficiencia no verso dramático, Rotrou é urna tragedia política, nos moldes de seu irmao mais
supera nessas tragicomedias os seus modelos espanhóis: a velho, e Le comte d'Essex tem algo de urna pega caldero-
Laura perseguida, de Lope de Vega, em Laure persécutée; niana; nessas tragedias, o papel da galantería já revela a
vizinhanga de Racine. Contudo, Thomas Corneille nao é o
intermediario entre Pierre Corneille e Racine. O caminho
57) Jean Rotrou, 1609-1650.
da tragedia psicológica, de Corneille a Racine, nao foi
Les Ménéchmes (1631); Hercuie mourant (1634); Les deux sosies d i r e t o ; interpóem-se mudangas radicáis ñas condigoes da
(1636); Laure persécutée (1637); Les captifs (1638); La soevr criagao dramática.
(1645); Saint-Genest (1646); Venceslas (1647); Don Bernard de
Cabrére (1648); Cosroés (1650); Bélisaire (1650).
Edicao completa por P . M. Vlollet-le-Duc, 5 vols., París, 1820.
Selecao por F. Hémon, París, 1683. 58) Thomas Corneille, 1625-1709.
J. Jarry: Essai sur Us oeuvres dramatiques de Jean Rotrou. Pa- Don Bertrand de Cigaral (1653); Le aeolier de soi-méme (1655);
rís, 1868. Tlmocrate (1656); Stilicon (1660); Laodice (1668); La mort
L. Person: Hlstoire du véritable Saint Genest de Rotrou. París, d'Hannibal (1669); Le comte d'Essex (1678); etc.
1882. Edlsfio por E. TRlerry, París, 1881.
L. Person: Htstoire du Venceslas de Rotrou. Parts, 1882. O. Reynler: Thomas Corneille, sa vie et son thédtre. París,
L.Curnier: Études sur Jean Rotrou. París, 1885. 1893.
1072 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1073

A vitória do absolutismo real sobre a Fronde, por poderoso. Ésse fatalismo é o elemento característico da
Ma/arin. e o estabelecimento da administracao burguesa nova psicología; néle reside a diferenca fundamental entre
dos "intendants" e da economía mercantilista, por Luís X I V a tragedia psicológica de Corneille, de tipo romano, e a
e Colbert, significam o fim d a aristocracia de panache e da tragedia psicológica de tipo grego, de Ráeme.
política "maquiavelística"; a s últimas pegas de Corneille Os intermediarios entre os dois tipos sao os "moralis-
foram rejeitadas pela crítica e pelo público. A política tes", na acepcao francesa e literaria da palavra: observa-
tornou-se prerrogativa do rei e dos seus ministros. A vida dores do comportamento humano, do alheio e do próprio.
pacificou-se e "privatizou-se". Conflitos psicológicos de Críam as "réf lexions", "máximes", "portraits", "mémoires",
natureza privada, sobretudo os eróticos, tornam-se mais a epistolografia, a autobiografía, o romance psicológico.
interessantes. Contudo, já nao é possível resolver ésses Parte désses novos géneros nao tém outro nome senáo o
problemas pela vontade forte, como em Corneille: as pai- francés; é o ramo mais especificamente francés da litera-
xoes sao menos violentas, porém mais complicadas, os sen- tura francesa ( B 9 ).
timentos, mais delicados; e as possibilidades de solucáo,
O tipo antigo despede-se com o Cardeal de Retz ( 6 0 ),
menos claras. Análise e auto-análise dos movimentos psi-
o grande chefe da revolucáo da Fronde contra Mazarin,
cológicos intensificam-se, numa atmosfera de gabinete de
conspirador consumado, diplomata e demagogo, misto de
estudo, boudoir ou confessionário, atmosfera "clair-obs-
cardeal da Renascenga italiana e de bon-vivant da Renas-
cure". Urna saída dos conflitos íntimos é possivelmente
cenga francesa, com algo de um maquiavelista barroco e
a renuncia estoica do pessimista, como em La Rochefou-
algo de "précieux" do Hotel de Rambouillet. É persona-
cauld; outra é a renuncia ascética, de natureza religiosa,
gem de tragedia política, á maneira de Corneille, e de ro-
como em La Princesse de Cléves, de Madame de La Fayette.
mance heróico-galante, á maneira da Scudéry. Mas nenhum
O cavalheiro barroco, a quem já é pouco útil a espada,
désses personagens seria capaz de narrar como ele. As suas
transforma-se em "honnéte homme"; a "précieuse", em
Mémoires falsificam intencionalmente a verdade histórica,
dama. Em vez de se 1er romances, consulta-se o confessor,
menos para justificar os fatos ínjustificáveis do que para
seja ele jesuíta ou jansenista. Até urna dama da alta socie-
engrandecer a figura do memorialista, vencido que nao se
dade como Madame de Sévigné sofre de acessos ocasionáis
arrepende de nada. A sua j u s t i f i c a d o é a inteligencia,
de religiosidade, e Madame de Maintenon é, no fim da
que se revela nos penetrantes retratos psicológicos de com-
vida, urna especie de religiosa sem hábito. Na segunda
panheiros e adversarios, na complicacáo dramática das in-
metade do século X V I I voltam a aparecer figuras religio-
trigas, na descricao vivíssima do ambiente, na apreciacáo
sas da estirpe do grande "printemps mystique": Madame
dos fatos e condensacáo epigramática das experiencias, em
de La Valliére que troca a corte pelo convento; Raneé,
que funda a congregacáo ascética de la T r a p p e ; e a Mere
de l'Incarnation. Mas a maneira de encarar os problemas
59) L.-A. Prévost-Paradol: Études sur les moralistes f raneáis. Pnris,
místicos é diferente: a querela jansenista inspirou todas as 1866.
especies de sutilezas teológicas; a angustia da predestina-
60) Paul de Oondl, cardeal de Retz, 1614-1679.
gao substituí as alegrias da Graca; surge certo fatalismo Mémoires (1662/1677; publ. em 1717).
que corresponde á submissao do súdito ao Estado todo- Edlcáo por O. Mongrédien, 4 vola., París, 1935.
Ch. Normand: Le cardinal de Retz. Paris, 1896.
L. Battifol: Biooraphie du cardinal de Retz. Parle, 1929.
' •
.

1074 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1075

aforismos de interésse permanente. O que Ihe faltava na Contudo, a sua sabedoria nao é táo exclusivamente
vida, falta-lhe também na l i t e r a t u r a : o senso moral. Quan- racional, como se pensa. "L'esprit est toujours la dupe du
do muito, admite francamente o elemento criminoso nos coeur" é urna das suas máximas mais preciosas — inversao
seus próprios atos; e essa franqueza aproxima-o de La profana da epistemología de Pascal. O muito "esprit" de
Rochefoucauld. La Rochefoucauld permite concluir ter file um grande
coraqáo, se bem que nao muito terno. A sabedoria do Duque
La Rochefoucauld ( 0 1 ) também veio do ambiente da
é menos o resultado da sua inteligencia penetrante que do
F r o n d e ; mas o que para Retz foi o conteúdo da vida malo-
seu amargo ressentimento de herói frustrado. N i o acredita
grada, foi para La Rochefoucauld um engaño romántico em atos heroicos, nem em sentimentos nobres. O ressenti-
da mocidade, do qual, infelizmente, nunca se pode resta- mento envenenara-lhe a fé aristocrática, e desde entSo vé
belecer. A vida de La Rochefoucauld é, desde a idade todos envenenados. "Nos vertus ne sont le plus souvent
madura, urna velhice prolongada, ocupada em descobrir que des vices déguisés." Esta frase antitética é urna das
nos outros os defeitos que lhe haviam causado o fracasso: maiores descobertas da psicología moderna: o ressentimen-
o "amour-propre" e o "intérét". Foi preciso ter analisado to como fórca motriz dos atos moráis. Nietzsche levará
bem a própria vaidade para poder dizer dos o u t r o s : "Quel- toda a vida para confirmar a tese; e Scheler para refutá-la.
que bien qu'on nous dise de nous, on ne nous apprend rien
As Máximes repetem cem vézes, da maneira mais va-
de nouveau"; e ter reconhecido bem o próprio egoísmo
riada, a mesma tese psicológica: "Les vices entrent dans
para descobrir a verdade: "Nous avons tous assez de forcé
la compositioh des vertus comme les poisons entrent dans
pour supporter les maux d'autrui." É o pessimismo de um
la composition des remedes." Entre todas as frases de La
gráo-senhor, preso na poltrona pela gota; na mocidade, foi
Rochefoucauld, é esta urna das mais espirituosas, porém a
dupe das suas vaidades e interésses, e agora só tem urna
menos sincera, porque o Duque só acredita em venenos, e
preocupagáo: "n'étre pas dupe". Para ésse fim, prefere nao em remedios. O seu conceito da natureza humana é
supor sempre os piores motivos, nos outros e em si mesmo, tao pessimista como o dos jansenistas: corrupcBo profunda,
e essa norma só raramente o engaña. La Rochefoucauld é total. Mas o caso parece-lhe irremediável. Nao existe
infeliz, porque sempre tem razáo. Gra<;a, nem resistível nem irresistível. La Rochefoucauld
nao é cristao. Da doutrina crista, diziam os jansenistas, o
Duque aceita apenas o pecado original, mas rejeita a sal-
(51) Fran?ois, duc de La Rochefoucauld. 1613-1680. vacáo. É o anti-Pascal.
Reflexiona ou Sentences et máximes morales (1665).
Edlcao das Obras completas por Ollbert e Gourdault, 4 vota., Parece dita a propósito de La Rochefoucauld a má-
París. 1868/1883. xima de Pascal: "Diseur de bons mots, mauvais caractére."
Edi;áo das Máximes por L. Martln-Chauffler, París, 1935. Mau caráter nao era, mas "diseur de bons mots", sim, e de
L.-A. Prévost-Paradol: cf. nota 59.
C.-A. Salnte-Beuve: Causeries du hundí. Vol. XI. ótimos "bons mots". Em colegio de aforismos transformou
J. Bourdeau: La Rochefoucauld. París, 1895. ele o romance da sua vida e o drama das suas experiencias;
P». Grandsalgnes d'Hauterlve: Le pessimisme de La Rochefotl» e há mais de dois séculos que ésses aforismos servem de
cauld. Parta, 1914. "théses" para o romance psicológico francés e para o dra-
E. Magne: Le vrai visage de La Rochefoucauld. Parta, 1923.
J Schmldf. "Dle Máxime n von La Rochefoucauld". (In: ma chamado de bulevar: cada aforismo urna "thése". Sao
Zeitschrift fuer framoessche Sprache und Literatus, LVH. 1933.)
1076 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1077

"concetti" de um "moraliste". La Rochefoucauld é o úl- nan, que viveu na provincia, e para quem as cartas da máe
timo dos "précieux", cagando a expressáo mais densa, mais eram o jornal, vindo de Paris, com todas as noticias ima-
certa, mais brilhante; supera o preciosismo, tornando-se o gináveis — o "corpus" das cartas de Madame de Sévigné
maior aforista de todos os tempos, o clássico do género. é a enciclopedia do século. A morte de Turenne e a intro-
Mas, em sentido absoluto. L a Rochefoucauld nao é um ducto de urna nova moda feminina, o casamento da "Gran-
clássico. O seu pessimismo é o fruto derradeiro do "ma- de Mademoiselle" e o processo contra o ministro Fouquet,
quiavelismo" lendário; um pouco de Antonio Pérez, outro a execucao da envenenadora Brinvilliers e um sermao de
conspirador malogrado; um pouco da fé de Maquiavel Bourdaloue, urna representacao de Racine e urna tempo-
na permanencia das qualidades, ou antes, dos defeitos rada na estacáo de aguas de Vichy, La Rochefoucauld dis-
humanos; um pouco do estoicismo de Quevedo; um pouco cutindo com Madame de La Fayette e Boileau zombando
da arte de dizer de Gracián; e muita melancolía, melan- de um jesuíta, a perseguicáo das religiosas de Port-Royal
colía barroca. "Le soleil ni la mort ne se peuvent regarder e o novo romance de Madame de Scudéry, o lever do reí e
fixement." A sombra da morte cai sobre tudo quanto diz a opressáo crudelíssima da revolta dos camponeses na Bre-
La Rochefoucauld, e o sentimento que o mantém vivo nao tanha, um tedeum pelas Vitorias do Marechal de Luxem-
é a esperanza, e sim o desdém. Porque afinal La Roche- bourg e urna excursao ao luar, nos arredores de Paris —
foucauld nao acredita nem sequer na sua própria psico- tudo isso e muito mais se encontra ñas cartas de Madame
logía: "On donne de bons conseils, mais on n'inspire point de Sévigné: a enciclopedia do século, embora so de urna
de conduite." A compostura de grao-senhor é coisa que classe da sociedade. O centro unificador dessa massa imen-
nao se ensina a ninguém. La Rochefoucauld é o último sa de palavras espirituosas, maliciosas, sentimentais, elegan-
gráo-senhor da Franca antiga, antes do "roi bourgeois". tes e sinceras é a personalidade da Marquesa: grande dama
e excelente rale, "précieuse" e sabichona, e de urna natura-
A primeira dama dessa Franca foi Madama de Sé- lidade encantadora, gozadora da vida e crista sincera, até
vigné ( 6 2 ) : inteligente e um pouco leviana, religiosa e ale- devota, parisiense como ninguém, e, entre os escritores do
gre, culta e superficial, amável e espirituosa, táo espirituosa classicismo francés, a única a sentir a natureza. O estilo
que nem urna citacao, nem muitas citacoes, nem a transcri- de Madame de Sévigné é também assim, cintilando em mil
cáo de urna carta inteira, nem de varias ou de muitas car- facetas como o seu espirito. É necessário lé-la para ter
tas, poderia dar a mínima idéia do seu "esprit"; seria pre- idéia da escritora, talvez a mais completa da língua fran-
ciso citar todas as 1500 ou mais cartas que a Marquesa cesa. Nada lhe falta para grande dama; para grande dama
escreveu, as mais das vézes a sua filha, Madame de Grig- do século X V I I falta-lhe apenas o arrependimento e a pe-
nitencia.
62) Marle de Rabutln-Chantal, marqulse de Sévlgné, 1626-1696.
Lettres (primeiras edicóes, 1734, 1754). Outro tipo de grande dama e grande epistológrafa é
Edl;ao por P. Mesnard, 14 vols., París, 1862/1867. (Suplemento
por Ch. Capmas, 2 vols., París, 1876.) Madame de Maintenon ( C 3 ). A esposa morganática de Luís
C. A. Salnte-Beuve: Portraits de femmes. 1844. (Valias edicóes.)
G. Boissier: Madame de Sévigné. París, 1887. 63) Francoise d'Aublgné, marcjulse de Maintenon, 1635-1719.
E. Faguet: Madame de Sévigné. París, 1910. Lettres (publ. 1782/1756).
A. Hallays: Madame de Sévigné. Parts, 1921. Edlcfio por M. Langlois, 12 vola., París. 1935/1939.
C. Gazier: Madame de Sévigné. París, 1933. M. Langlois: Madame de Maintenon. París, 1932.
A. BalUy: Madame de Sévlgné. París, 1955. J. Cordelier: Madame de Maintenon. París, 1955.
1078 O I T O MARÍA CARPEATJX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1079

X I V , conselheira de suas perseguigoes religiosas e derro- introspecgáo é antes urna das formas do espirito barroco em
tas políticas, tem fama de fanática sombría, empenhada era geral; autobiografías, diarios, cartas de confissao, parti-
expiar a heresia de seu avó A g r i p p a D'Aubigné; o famoso cularmente feminínas, aparecem em toda a parte, da Di-
educandário de Saint-Cyr, q u e ela fundou, nao foi, porém, namarca até Portugal. Nao existe documento mais pessoal
urna prisáo de mocinhas. F ó r a ela esposa de Scarron, e que a autobiografía da condéssa dinamarquesa Leonora
dispunha de bastante espirito na conversa oral e epistolar; Christina Ulfeldt ( 8 4 ), filha ilegítima de um reí e mulher
a sua grande paixáo literaria era Racine. E suas palavras, de um traidor, presa, sem culpa, durante 20 anos, num
numa carta, com referencia á educacáo em Saint-Cyr: — cárcere de Estado, e que abre a urna posteridade desconhe-
"On doit moins songer á orner leur esprit qu'á former leur cida a alma dolorosa e patética, a "Jammers minde" da vida
raison" — significam a derrota definitiva do Hotel de malograda. O pendant mediterráneo, confissao de outra
Rambouillet pela razáo de Descartes. Diretrizes do século mulher traída e presa, sao as cartas da famosa "religieuse
diferentes entre si harmonizam-se táo perfeitamente no portugaise", Mariana Alcoforado ( 8 8 ), freirá do convento
estilo sobrio e na mentalidade clara das cartas de Madame de Nossa Senhora da Conceigao, em Beja. A grande expe-
de Maintenon que a propósito déla se pode falar, sem exa- riencia da sua vida foi o encontró com o Conde de Saint-
gero, de espirito clássico; em comparagáo com Madame de Léger, depois Marqués de Chamilly, um amor fulminante
Maintenon, a Sévigné parece urna princesa da Renascenga. e rápido como um raio. Saint-Léger tornou-se, depois, ma-
E daquele espirito clássico é característica urna relígiosi- rechal de Franga, lutou em todos os campos de batalha da
dade seria, que tem algo da arquitetura da igreja parisiense Europa, casou com urna marquesa feia, e acabou gordo e
de Val-de-Gráce e do templo, no palco, em que se repre- inútil. A freirá expiou suas culpas em cinqüenta anos de
senta Athalie: é a sombra do Barroco. ascese. As cinco cartas que escreveu ao amante — é duvi-
dosa a autenticídade das sete cartas, acrescentadas depois
A epistolografia como revelagao nao intencional, con- — foram publicadas em tradugáo francesa, e constituem
quanto literariamente elaborada, da personalida.de, sítua-se um dos problemas bibliográficos mais dificeis da literatura
entre a psicología dos "moralistes" e a confissao autobio-
gráfica. Os homens escrevem memorias, para se justifi-
carem ou se consolarem; as damas abrem-se ao confessor
64) Leonora Christina grevlnde TJlíeldt, 1621-1698.
ou ao amante, a sua auto-análise é mais direta e particular, Den ¡angne Grejfwinne Leonorae Christinae Jammers Minde
precisando, no entanto, de véus protetores contra a curio- (publ. 1869).
sidade indiscreta. Escolhem como protegáo a alegoría, que A. Smlth: Leonora Christina Grevinde Ul/eldts Histotre. 2 vols.
KJoebenhavn, 1879/1881.
já fóra recurso freqüente do romance heróico-galante; e
65) Mariana Alcoforado, 1640-1723.
surge assim o romance psicológico. Com respeito á evo- Lettres portugaises (1669).
lugáo de novo género, Bremond dá grande importancia a Edicoes por E. Henrlot, París, 1909, por M. Rlbelro, Lisboa,
La vie du P. Charles de Condren (1643) do P. c Amelóte, 1923. e por H. de Vlbraye, París, 1933.
como primeiro exemplo de biografía psicológica. Será, L. Cordelro: Sóror Mariana, a Freirá Portuguesa. 2.» ed. Lis-
boa, 1890.
porém, conveniente observar que o fenómeno do apareci- P. e J. Larat: "Les lettres d'une religieuse portugaise et la sen-
miento désse género no século X V I I nao se limita á Franga, slbilité francaise". (In: Revue de Littérature Comparte, 1928, IV.)
nem depende dos movimentos de introspecgáo mística. A Manuel Rlbelro: Vida e marte de Madre Mariana Alcoforado.
Lisboa, 1940.
.

I ()¡10 Orro MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1081

universal. Nao se sabe se foram escritas em portugués e ees com o nome do irmao; Madame de La Fayette escolheu
depois traduzidas, ou se foram redigidas em francés; nao o do seu amigo Segrais, poeta bucólico, último discípulo
se sabe com certeza se sao auténticas — alguns críticos de D'Urfé. Os mesmos tres nomes ocorrem a propósito de
preferem acreditar em mistif icacáo literaria. Mas isso é Zayde, o romance heróico-galante de Madame de La Fayet-
problema para eruditos de velho estilo. O conceito de te. No fundo, La Princesse de Cléves também é um romance
amor, ñas cartas da religiosa, é neoplatónico, com raios de heróico-galante; apenas, o heroísmo consiste na confissao
sensualidade entre os desesperados gritos da abandonada. da aventura galante e na renuncia: a princesa confessa ao
A pequeña obra situa-se entre a mística "a lo profano" do marido a paixáo pelo Duque de Nemours, e, responsabili*
Barroco e o sentimentalismo do século X V I I I . O estilo zando-se pela morte do marido, torturado pelas suspeitas,
de confissao desenfrcada e dolorosa — urna Gaspara Stampa á uniáo com o homem querido prefere o convento. É o
á sombra do convento — é algo de inédito naquela época. caminho inverso do que percorreu a freirá portuguesa. O
Afirmam-se vestigios de influencia das cartas em Phédre, preciosismo de palavras galantes é substituido pela análise
talvez já em Bérénice. Mais certa parece a influencia no sutil dos sentimentos, ciencia psicológica que a Condéssa
romance de Madame de La Fayette. de La Fayette aprendeu com seu amigo La Rochefoucauld.
O teatro dos acontecimentos, dados como verdadeiros, teria
Madame de La Fayette (fl6) é grande dama como a
sido, conforme alega a autora, a corte algo fantástica do
Sévigné e natureza profunda como a Maintenon; o seu
rei Henrique I I ; na verdade, o ambiente nao é o da Renas-
espirito é menos rico do que o da primeira, mais concen-
c eneja, é o dos Frondeurs e das suas damas, das carmelitas
trado que o da outra, e seu estilo menos vivo e mais sim-
e dos jansenistas de Madame Acarie e Madame de Sable.
ples. Além disso, Madame de La Fayette é — o que nem
a Sévigné nem a Maintenon foram — urna vocacáo lite- La Princesse de Cléves é o primeiro romance moderno
raria. No seu caso, nao se trata de cartas, circulando em da literatura francesa, e é — bem característicamente —
copias entre amigos e publicadas meio século após a morte um romance psicológico. "Elle est vraie", dizia La Roche-
da autora. Trata-se de romances. O género era considerado foucauld sobre a sua amiga; e essa qualidade excluiu a
menos decente, e urna grande dama nao lhe podia empres- mentalidade romanesca e o estilo precioso da galantería
tar o nome. Madame de Scudéry publicou os seus roman- heroica. La Princesse de Cléves é o romance de um am-
biente em que os aristócratas já escrevem cartas e livros
em vez de envolverem-se em conspiracóes e duelos; de um
ee) Marle-Madelelne Pioche de La Vergne, comtesse de La Fayette, ambiente em que o ocio culto permite a observacáo dos sen-
1634-1693.
Mademoiselle de Montpensier (1662); Zayde (1670); ha Prin- timentos e exige a expressao clara e concisa, emotiva mas
cesse de Cléves (1678). reservada. J á nao há aventuras senao do coracáo, e ésse
Edl?áo da Prlncesse de Cléves por A. Cazes, París, 193*. coracáo é aristocrático em outro sentido que nao o panache
O. A. Salnte-Beuve: Portralts de femmes. 1844. dos Frondeurs. A sabedoria psicológica de Madame de La
H. Talne: "Madame de La Fayette". (In: Essaü de critique et
d'histoire. 5.» ed. París, 1887.) Fayette é comparável á de La Rochefoucauld; a análise é
O. Dllaussonvllle: Madame de La Fayette. París, 1B91. igualmente exata, mas as conclusoes sao diferentes. Ma-
H. Ashton: Madame de La Fayette, sa vie et ses oeuvres. Cam- dame de La Fayette, apesar de falar como no confessio-
bridge, 1922.
M. Turnell: "Madame de La Fayette and 'La Prlncesse de Clé- nário e indicar o caminho para o convento, nao é crista,
ves' ". (In: The Novel in France. London, 1950.)
1082 Orto MARÍA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAA 1083

porque é personalidade independenté, obedecendo só aos preensível como obra-gémea de Bérénice e Phédre, das
imperativos do seu próprio coragáo; mas conhece urna tragedias de renuncia de Racine. O jansenismo subjugou
"vertu", na composi$ao da qual nao entram os vicios, e essa a vontade heroica dos personagens de Corneille ao " F a d o "
virtude é heranga da galantería heroica: o sentimento de da Predestinagao. Ésse Fado divino pode ser contrariado
honra. A honra manda á princesa conf essar tudo ao marido, pelo Fado infernal das paixoes; mas o homem permanece,
a honra manda-lhe renunciar á uniao com o amante. T r a - em todo o caso, joguéte entre essas duas fórgas, perdendo
ta-se — com relacao á personagem e á autora — de damas a autonomía da vontade, e ésse fatalismo excluiría a tra-
da grande aristocracia, heroínas do teatro de Corneille, gedia, que precisa de individuos livres e responsáveis; se
mas sem grandes "mots", sem brilho retórico. Aristocracia nao fósse a solugáo da renuncia ascética: solugáo de Ma-
do coragáo e honra do coragao. Mas a honra nao é um dame de La Fayette e, em parte, de Racine. Só em parte,
conceito da religiáo crista. Em La Princesse de Cléves porque Racine nao conseguiu livrar-se da forma "clássica"
da tragedia, baseada no mecanismo corneliano de conflitos.
reina a atmosfera das discussoes teológicas em torno da
A libertagáo parcial, alcangou-a o dramaturgo pelas modi-
querela jansenista, dos diarios íntimos, das corresponden-
f i c a r e s da teoria aristotélica, pela t r a n s f o r m a d o do aris-
cias com confessores; urna atmosfera algo sombria, de con-
totelismo á maneira de Séneca em aristotelismo pseudo-
vento. Mas tudo isso aparece "secularizado": renuncia
grego.
estoica, em vez de ascese crista; amor da própria integri-
dade, em vez do amor de Deus. Madame de La Fayette "Enfin Malherbe v i n t " : depois veio Balzac; depois
"secularizou" a ciencia de psicología empírica que sé culos veio Chapelain; depois vieram varios outros e, finalmente,
de experiencia no confessionário tinham ensinado aos ob- Boileau. A tarefa "classicista" de domar o espirito barroco
servadores da alma humana; e essa "secularizagáo da psico- nao era fácil, ao que parece; tinha que comegar sempre de
logía do confessionário" é a base do romance psicológico novo. O que torna perplexo o observador désse espetáculo
francés: do Abade Prévost e Lacios, de Constant e Sten- é que nao há evolugáo. Todos ésses legisladores da estética
dhal, de Gide e Mauriac. Com La Princesse de Cléves, o clássica dizem mais ou menos a mesma coisa. A historia
da formagao do ideal clássico é de grande importancia
próprio termo romance muda de sentido: o que foi, até
para a historia da estética, mas parece de importancia
entao, género algo suspeito de indecente, ameacado pelos
muito menor quanto á evolugáo da literatura (° 7 ). O mais
anatemas dos confessores, leitura proibida ás jeunes filies
rigoroso dos teóricos aristotélicos, o Abade d'Aubignac ( 8 8 ),
e até aos jeunes gens em geral — torna-se género serio,
codificou as normas do teatro corneliano; mas a sua obra
capaz de fornecer materia para causeríes de saláo, reflexóes
foi publicada quando já se iniciara a época de Racine. O
dos "moralistes" e meditagóes no próprio confessionário. próprio Boileau foi influenciado, como hoje se salienta,
Mais tarde, um novo ramo da profissao literaria, a crítica,
encontrará na discussáo do novo género o maior campo
das suas atividades. O género, do qual La Princesse de 67) R. Bray: La formation de la doctrine classique en France. Pa-
Cléves é o primeiro exemplo, será o mais poderoso da li- rte, 1931.
teratura francesa e, talvez, da literatura moderna em geral. 68) Francote Hédelin, abbé d'Aubignac, 1604-1676.
Mas, no século X V I I , La Princesse de Cléves, como Pratique du théátre (escr. c 1642/1645. publ. 1657).
Ch. Arnaud: Les théories dramatiques du XVIIe siécle, étude sur
romance, é urna obra isolada. Históricamente é só com- la vie et les oeuvres de Vatibi d'Aubignac. Parte, 1888.
OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1085
1084
pelo jesuíta Bouhours ( e o ) ; m a s ambos só puderam fixar uniforme: homem de nobreza e coragem moral, imbuido de
teorías, já realizadas por Moliere e Racinc. A influencia espirito malicioso de burgués parisiense, inimigo critico
das teorías na literatura é m e n o r do que se pensa. A ver- do preciosismo, da énfase, da poesía burlesca, defensor de
dadeira importancia dos teóricos do século XVII nao é de Racine e Moliere, teórico da "raison", da "vérité", da
ordem técnica, e sim d e ordem moral; a sua tarefa é a jus- "nature", da imitagáo dos antigos, das regras aristotélicas,
da moralidade ñas letras; e, também, poeta satírico apre-
tificacjio da causa literaria.
ciável. Na verdade, nao existe um Boileau só, mas varios
A teoría aristotélica da literatura, e particularmente
Boileaus, e poucos sao os escritores cuja reputacáo tenha
do teatro, comegou na Italia, justificando a poesía, perante
mudado tanto durante os tempos que passaram. O século
o tribunal da Contra-Reforma, como instrumento de ensino
X V I I I submeteu-se de bom grado á autoridade crítica de
moral ou como divertimento inofensivo. É outro processo
Boileau, e um Voltaire observava as "regras" com pontua-
que nao acaba. A polémica contra o teatro é renovada na lidade muito maior do que os próprios amigos contempo-
Franga dos oradores sacros e dos jansenistas. Pascal e ráneos do crítico; mas as maiores homenagens foram pres-
Nicole, os oratorianos e Bossuet estáo de acordó neste tadas, naquele século, ao poeta. Tres geragoes de "filóso-
ponto: sao inimigos do teatro. Pouco adiantam as respos- fos" deliciaram-se com a magra sátira anticlerical de Le
tas dos dramaturgos atacados. A proposta de d'Aubignac Lutria; as sátiras e epístolas eram consideradas obras-
no sentido de distinguir teatro bom e teatro nocivo, e com- * primas de finíssimo estilo horaciano; Pope, Parini e
bater éste último pela censura, nao resolve a questáo, que Holberg imitaram-nas. Durante um século inteiro, a
é de ordem moral e literaria ao mesmo tempo. Nao é por Franca nao conheceu outra poesía. Nos frontispicios das
acaso que as tentativas repetidas de aprofundar a teoría edígoes representava-se o busto de Boileau coroado de
literaria partem todas de pessoas de responsabilidade mo- louros e rodeado de musas e ninfas, afugentando os fan-
ral : um abade, um jesuíta, um burgués grave com simpatías
jansenistas. Mairet et Chapelain compreenderam as regras
aristotélicas apenas como instrumentos de técnica literaria; lTiomme" (1667); "Satlre IX, A son esplrit" (1867); "Art poetl-
o problema foi a transformagao das normas técnicas em que" (1674); "Epltre V, Se connaltre aol-méme" (1674); "Le
diretrizes moráis. lutrfn" 1674/1683); "Epltre LX, Ríen n"est béau que le vral"
(1675); "Epltre VII, De 1'utiUté des ennemls" (1677); "Epltre
Da personalidade literaria e teoría poética de Boi- VI, La campagne et la ville" (1677); "Satlre X, Les femmes"
leau ( 70 ) dáo os manuais, desde muito, urna exposigao (1693): "Epitre XI. Le travall á mon Jardlnler" (1695); "Epltre
XII, L'amour de Dleu" (1690).
Edicáo completa por J. BainvUle, 5 vola., París, 1928/1931.
Dominlque Bouhours S. J., 1628-1702. EdlQáo critica do Art poétlque por V. Delaporte, 3 vols., París,
finíreíiens d'Ariste et d'Eugéne (1671). 1885.
S. Doucleux: Un jésuite, homme de tettres du XVIle siécle. Edl;áo critica das Satires por A. Caben, París. 1932.
Le P. Bouhours. Parts, 1886. C. A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. VI.
O. Lanson: Boileau. París, 1892.
10) Nicolás Boileau-Despréaux, 1636-1711. (Cf. "Pastarais, Epopéias H. Bremond: "La légende de Boileau". (In: Pour le romantisme.
e Picaros", nota 39.) Parts. 1923.)
"Satlre I" (1660); "Satlre VI, Les embarras de París" (1660); M. Hervier: VArt Poétique de Boileau. Parts. 1938.
"Satlre VII, Sur le genre satirlque" (1663); "Satire n , Accord D. Mornet: Nicolás Boileau. París, 1941.
de la rime et de la ralson" (1664); "Satlre m . Le repas rldlcule" R. Bray: Nicolás Boileau. Parts, 1942.
(1665); "Satlre V, Sur la noblesse" (1665); "Satlre VIH. Sur
. .

1086 OTTO MARÍA C A R P E A Ü X HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1087

tasmas da ignorancia e do obscurantismo. No período q u e um modelo désse "naturalismo clássico", sátira forte, mas
medeia entre Rousseau e a Revolugáo de Julho, a gloria moderada ñas expressoes, digna de sair ñas páginas da
de Boileau revela aspecto diferente. J á nao se fala d o Revue des Deux Monds. Até a pouco conhecida duodécima
poeta; o vento do pré-romantismo era forte demais para epístola, "L'amour de Dieu", lhe pareceu o maior produto
se agüentar a leitura da poesia d e Boileau depois de Ros- poético do jansenismo. Lanson desdobrou essas opinioes:
seau e Chateaubriand. Mas os franceses continuam a ter Boileau teria sido, se nao naturalista, pelo menos realista,
em altíssimo aprégo a teoría literaria do mestre, e isso por o poeta da burguesía parisiense, esbogando quadros diver-
um instinto de defesa nacional. Porque todas as outras
tidos dos Embarras de París, zombando da aristocracia e
nagoes européias deixaram de admirar e imitar o classi-
do clero, antecipando-se a Candide no elogio do jardim
cismo francés, contra o qual os Lessings e Schlegels, Bar-
francés; teria sido, quase, poeta para os republicanos mo-
rettis e Coleridges dirigiram os ataques mais veementes;
derados de 1900. Os esforgos do neo-classicismo maurras-
e Boileau foi sempre a primeira vítima do desprézo déles.
siano para revivificar a teoria literaria de Boileau nao
Depois de 1830, muda novamente a situagáo: agora, os
próprios franceses responsabilizara Boileau pela enorme foram muito vigorosos; ninguém pode hoje perdoar a Boi-
derrota literaria da Franga no mundo, excluindo-o do leau o crime de haver eliminado a memoria de Ronsard, e
número dos vivos entre os grandes mortos. Desde ésse justamente os membros mais jovens do grupo da Action
momento, Boileau já nao existe para a literatura universal. Frangaise descobriram o valor da poesia francesa barroca,
Mas na Franga a querela nao pode morrer: a condenagao que caira em esquecimento por culpa de Boileau. O aboé
integral de Boileau implicaría a condenagao do próprio Bremond disse a última palavra: o Art poétique é a maior
classicismo e, com isso, da época mais importante da his- acumulagao de lugares-comuns, preconceitos e equívocos
toria literaria francesa. Sainte-Beuve, que, como crítico críticos, mal versificados, que o mundo já viu; felizmente,
do romantismo, contribuirá tanto para a desvalorizagao a sua influencia nos grandes escritores seus contemporá-
daquele escritor, depois recuou um pouco: reconheceu o neos foi reduzida, de modo que nem a importancia histórica
papel histórico de Boileau, gragas ao qual a Franga, e só de Boileau subsiste. Mas Bremond ainda revela certa ad-
ela entre todas as nagoes, nao sucumbiu ao mau gósto bar- m i r a d o á "poesia menor" de Boileau, na qual descobre
roco ; e chegou a celebrar o fino artista do verso e inventor novas qualidades: pelo menos, a seus olhos, salva-se a sátira
de rimas espirituosas. Ésses dois conceitos reaparecem, vulgar, mas vigorosa, quase medieval, contra "Les Femmes".
algo modificados, em Brunetiére. O crítico áspero odiava Mesmo assim, a poesia "moderada" de Boileau impor-
igualmente o naturalismo de Zola e o simbolismo de Bau- ta-nos pouco. Convém, no entanto, observar que as suas
delaire, que lhe pareciam reincarnagoes da poesia burlesca sátiras nem sempre erara moderadas. O que atraiu o aus-
e do preciosismo do século X V I I . Lutando contra éles, tero antimodernista Brunetiére foi urna qualidade de Boi-
Brunetiére julgava-se um Boileau redivivo, e nao se can- leau que nao se harmoniza bera com o "realismo moderado":
sou de recomendar as teorías do grande mestre do classi- o pessimismo. No fundo da alma do classicista pedante
cismo, campeao da "Raison", da "Nature" e da "Vérité". existe ésse elemento .barroco, embora apenas ésse. O seu
Chegou a celebrar a poética de Boileau como o verdadeiro
"naturalismo" nada tem que ver cora a análise cartesiana
naturalismo francés, e a descobrir-lhe na própria poesia
da realidade; é condenagao jansenista da corrupgáo moral
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1089
1088 Orro MARÍA CARPEAUX

político, contingente, mas sentido humano, universal. Em


do mundo, e tal moralismo é a qualidade principal de Boi-
Britannicus, Bérénice, Mithridate, tragedias de monarcas
leau; é no moralismo que reside a sua importancia histórica.
o príncipes, já nao se trata de decisoes políticas, e sim de
A t é o tempo de d'Aubignac, as "regras aristotélicas"
conflitos de familia, assim como na mitología heroica. Mes-
sao apenas instrumentos da técnica literaria. Como tais,
mo tratando-se de historias romanas, essas historias nao sao
porém, nao serviram para abrir novos rumos á arte dramá-
"romanas" no sentido de Corneille. Sao antes "gregas",
tica. O sistema dramatúrgico do teatro francés baseava-se
embora substituindo-se o mito grego pela psicologia crista.
na "tragedia da vontade", de Corneille, tragedia política e
O teatro de Racine, de fundo jansenista, apresenta aspecto
histórica, culminando em conflitos de paixoes. Mas já nao
grego.
se apreciava Corneille. O seu tipo de tragedia era impos-
sível num mundo que o absolutismo consumado excluía da Só resta afastar o equívoco de que tenha sido Boileau
colaboraglo nos negocios públicos; em que a historia po- quem realizou essa transformagao. A sua poética 60 é o
lítica era substituida pela historia psicológica das almas síntoma da transformagao realizada. A Art poétique saiu
individuáis; em que nao se digladiavam paixoes de von- no ano em que morreu Moliere; todas as pegas "profanas"
tades livres, mas em que paixoes fatais, invencíveis e ine- de Racine, com excegáo de Phédre, já estavam no palco.
lutáveis, lutavam contra o fado inelutável da Predestina- Boileau nem sequer compreendeu sempre a transformagao
gao jansenista. Para salvar a forma da tragedia clássica da qual era ele o porta-voz teórico. O seu pessimismo satí-
francesa, era preciso conferir um novo sentido moral ás rico só gostava das "altas" comedias de Moliere, que seriam,
"regras aristotélicas", reconciliar a teoría aristotélica e a no entanto, ineficientes se nao fóra aquela fórga cómica
psicología jansenista. Essa transformagao foi iniciada pelo que ñas farsas se manifesta; e Boileau condenava a farsa.
aristotélico Bouhours e terminada pelo jansenista Boileau. Nem podemos afirmar com seguranga se ele compreendeu
bem a Racine. Só Athalie arrancou ao simpatizante do
Boileau voltou ás origens italianas da teoria. Com jansenismo um elogio incondicional, que diminuiu, ao
efeito, as regras só se justificam como normas de compor mesmo tempo, o valor das tragedias precedentes; no resto,
e tornar verossímil urna agao que culmina na peripecia e Boileau apreciou, no amigo, o poder de emocionar o público
leva, assim, á solucáo moral, á catarse. Esta, a purif icagao até ás lágrimas. O público, porém, reagiu de maneira igual
moral dos espectadores por meio do espetáculo, só é rea- ante as imitagoes lamentáveis de Campistrou e Pradon. A
lizável se a unidade de agáo concentra o interésse no con- prova do equívoco está em que Boileau nunca houve por
futo, que se revela pela peripecia; e se a unidade de tempo bem mencionar o nome do único precursor notável de
e lugar nao garantissem a "verdade" da a§áo, os especta- Racine: Tristan l'Hermite.
dores nao se sentiriam f eridos ñas próprias almas, e se, em
vez da purificagao moral, houvesse apenas divertimento Tristan l'Hermite ( 7 I ) pertence á geragao anterior;
irresponsável. Em Boileau, as regras tém fundamento psi- os modelos espanhóis ou italianos que imitou, e o estilo
cológico ; a sua exigencia de "nature" e "vérité" serve para
71) Francote, dlt Tristan L'Hermite. 1601-1665.
fins moráis. Assim, é possível desistir dos assuntos histó- Mariamne (1636); La mort de Sénéque (1844); La mort de
ricos e escolher assuntos mitológicos que apresentam a Crispe (1645); etc.; — Le page disgracié (1643).
mesma "verdade" psicológica. Ou entáo, se se escolherem Edicóes das obras dramáticas por N. M. Bemardin. París, 1907.
N. M. Bernardln: Un précurseur de Racine. Tristan l'Hermite.
assuntos históricos para a tragedia, já nao tém sentido Paris, 1896.
.

1090 Orro MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1091

retórico, revelam o contemporáneo, o rival de Corneille. os de Hugo, nem os de Baudelaire; e com razoes mais ou
Tristan parece até pertencer a urna época anterior a Cor- menos suficientes. Mas Jean Racine é o poeta mais perfeito
neille: escreveu sonetos "preciosos" e um romance auto- da língua francesa — esta afirmacáo pode contar com a
biográfico, meio picaresco, meio burlesco, La page dis- quase unanimidade dos críticos e leitores. A demonstracao
gracié. A tragedia Mariamne situa-se entre a Marianna,
é menos fácil. "Perfeicáo" encerra um nao-sei-qué de ba-
de Lodovico Dolci, e El mayor monstruo los celos, de
nalidade, de coisas triviais em versos perfeitos, e isto se
Calderón. Os fatos essenciais, no entanto, sao os trechos
senté sobretudo ñas traducoes, quando o sotaque estran-
líricos, ás vézes de beleza raciniana, e sobretudo a trans-
geiro estraga a música da língua. Os críticos estrangeiros
formacáo do caso politico em confuto psicológico. Neste
manifestaram, com raras excecoes, hostilidade contra Raci-
sentido, Tristan é percusor de Racine.
n e ; mas os críticos franceses respondem, em geral com ge-
Que Jean Racine ( 72 ) seja o maior poeta da literatura neralizacoes brilhantes, por vézes "perfeitas", que nao sao
francesa, nao o admitiráo os partidarios de Villon, nem respostas. Voltaire chamou á Iphigénie en Auiide a maior
obra do espirito humano, e o belo livro de Lemaitre sobre
72) Jean Racine, 1639-1699. Racine é, no fundo, urna serie interminável de lugares-
La Thébaíde (1664); Alexandre (1665); Andromaque (1667); Les
plaideurs (1668); Britanntcus (1669); Bérénlce (1670); Bajazet comuns elogiosos. Acerca de Racine já se disseram mais lu-
(1672); Mithridate (1673); Iphigénie en Auiide (1674); Phédre gares-comuns do que acerca de qualquer outro grande poeta,
(1677); Esther (1689); Athalie 1691).
EdlcSes, por P. Mesnard, 8 vola., París. 1865/1873, e por O. c os manuais propoem o mais trivial de todos os lugares-
Truc, 4 vols. Paris, 1922/1925. comuns da crítica literaria para provar a grandeza de Raci-
H. Talne: "Racine". (In: Nouveoux essais de critique et d'histoire. n e : a comparacáo com Corneille. "Celui-lá peint les hommes
Paris, 1866; 5.» ed., 1887.)
E. Deschanel: Racine. París, 1884. comme ils devraient étre, celui-ci peint tels qu'ils sont",
O. La rr mi niel: Racine. Paris, 1898. dizia La B r u y é r e ; e desde entáo nao se cansam de opor
J. Lemaitre: Racine. Paris, 1908.
ao idealista Corneille o realista Racine; a poesía dramática
L. Strachey: "Racine". (In: Books and Characters. London,
1922.) de Corneille seria idealizacáo das supostas "virtudes ro-
O. Truc: Jean Racine. L'oeuvre, Vartiste, l'homme et le temps. manas", ao passo que Racine revela as almas com o
Paris, 1926. realismo agudo de Eurípedes. A crítica estrangeira sem-
K. Vossler: Racine. Muenchen, 1926.
B. Croce: Racine, Shakespeare e CorneiUe. [Apéndice: "La poe- pre achou em Racine o contrario disso: os seus cortesáos
sía del Racine".] 2.» ed. Bari, 1929. e damas da corte de Luís XIV, vestidos "á la grecque",
H. Bremond: Racine et Valéry. Paris, 1930.
J. Oiraudoux: Racine. Paris, 1930. pareciam bastante idealizados, e ésse costume é, afinal,
Th. Maulnler: Racine. 2.a ed. Paris, 1936. mais romano do que grego, nao romano como Tácito, mas
D. Mornet: Jean Racine. Paris, 1944. romano como Virgilio; Racine seria, quando muito, um
M. Turnell: The Classical Moment. Studies in Corneille, Moliere Virgilio teatral, um elegiaco suave e algo frivolo, um gran-
and Racine. London, 1947.
E. Vinaver: Racine et la poésie tragique. París, 1951. de poeta menor. Nao se pode negar um grao de verdade
O. Brereton: Jean Racine. A Critical Biography. London, 1951. ñas opinioes contraditórias, de ambos os lados da barri-
R. C. Knight: Racine et la Gréce. París, 1952.
L. Sorrcnto: L'opere poética e la modernita di Racine. Milano, cada. Racine precisa de urna interpretacáo dialética. O
1952. premio do esfórgo será, porventura, urna comparagáo mais
R. Plcard: La carriére de Jean Racine. París, 1956. justa entre Racine e Corneille.

1092 OTTO MARÍA CARPBAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1093

Na opiniáo de um dos maiores inimigos de Racine, literatura universal, o ideal clássico, definido por Gide da
Hippolyte Taine, o dramaturgo teria sido o pintor natura- maneira seguinte: "L'oeuvre classique ne sera forte et belle
lista da sua sociedade, da corte de Versalhes, das ambigoes qu'en raison de son romantismo dompté. Un grand artiste
vitoriosas ou frustradas dos cortesáos, dos desejos eróticos, n'a qu'un souci: devenir le plus humain possible — disons
criminosos ou recalcados; sociedade artificial e estreita mieux: devenir banal." Racine parece banal, porque a sua
como os caminhos entre as arvoretas chapotadas do parque poesía dá a fórmula mais geral, mais humana das emocoes
de Versalhes. A gente de Versalhes teria concordado com humanas.
o "naturalismo", com a semelhanca do retrato; e foi isso Taine — para citá-lo mais urna vez — definiu csse
o que La Bruyére pretendeu dizer com "tels qu'ils sont": classicismo de maneira diversa: como "ideal du beau diré",
ele nos pinta como somos, com as nossas paixoes e vicios. como espirito cartesiano de abstracao. Racine teria sacri-
Mas Í6to é verdade, mais verdadeira do que pensava Taine. ficado a verdade á harmonía musical do seu verso, e o seu
O chamado realismo de Racine é realismo psicológico, como espirito lógico só deixaria subsistir a sombra pálida da
o de Dostoievski; e nao está, bem feitas as contas, táo verdadeira tragedia grega. Com efeito, Racine nao é grego.
longe da fórca brutal do grande russo. Quais sao, afinal, Ter-se-ia malogrado se houvesse aspirado a isso. É grande
os temas de Racine? Chimes criminosos (Andromaque), poeta francés, e do seu século. Mas a harmonía do seu
assassínio de um tirano (Britann/cus,), sacrificio de urna verso nao resulta de preciosismo estilístico, e sim da me-
inocente para fins políticos (Iphigénie en Aulide), incesto lancolía elegiaca do poeta, virgiliana, se quiserem — bem
(Phédre). Quase se pensa naquele outro poeta "puro" do entendido, entáo, que Virgilio é um dos maiores poetas de
palco: J o h n Ford. As personagens principáis de Racine todos os tempos. E a poesía elegiaca de Racine nao tem
sao, as mais das vézes, mulheres: Hermione, Bérénice, Agri- nada, ou tem pouco, do sentimento de decadencia, da "con-
pine, Roxane, Monime, Phédre, Athalie — porque as mulhe- sumacao dos tempos", do poeta romano; é antes a melan-
res sao mais emotivas do que os homens, as suas paixoes ex- colía que subsiste após a subjugacáo dos instintos pela mais
primem-se com gestos verbais mais vivos, de modo que se rigorosa autodisciplina. Nao basta salientar o cristianismo,
tornam mais bem representáveis no palco. E seria isso idea- o jansenismo de Racine. É necessário lembrar que csse
lizacáo? Racine é há mais de dois sáculos autor escolar; os aluno das "petites écoles" de Port-Royal lancou mais tarde
professóres léem com os meninos as suas pecas, comentan- os panfletos e epigramas mais mordazes contra os seus
do-as, e levam os alunos ao teatro para aprenderem a boa mestres; que todos os seus instintos se revoltaram contra
pronuncia, na declamacáo dos famosos monólogos. Mas a moral crista; e que um désses instintos era a malicia:
Racine nao é leitura infantil. É um poeta do lado noturno Les plaideurs sao urna das comedias mais cómicas do tea-
da alma, um poeta das paixoes mórbidas e perversas; e tro francés. Racine passou apenas por Port-Royal; e quan-
todos os indicios biográficos revelam que era ele mesmo do, enfim, voltou a ésse lar espiritual da sua mocidade,
hornera apaixonado e perverso, impondo-se apenas — pe- deixou a literatura. O jansenismo era o instrumento de
nosamente — a compostura calma e mesurada que os seus disciplina das suas angustias pascalianas, e o resultado é
versos serenos e musicais sugerem em meio as tempestades táo "clássico" — ou t í o pouco cristáo — que o poeta pa-
psíquicas. Nessa disciplina humana e poética reside o clas- rece o mais grego dos poetas modernos: já foi chamado o
sicismo de Racine; realizou, como nenhum outro poeta da Sófocles francés.
1094 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA O C I D E N T A I 1095

Síntese do jansenismo e d a Grecia, eis a fórmula q u e poeta menor, dramaturgo ineficiente, péssimo modelo.
•e propoe para definir Racine. Mais mistura do que sín- Quando muito, admitem alguma poesia em Racine, mas de
tese, e da qual nunca nasceria um Sófocles. É preciso significacao meramente nacional, e nao de ordem dramá-
entender a significado do vocábulo Grecia. Sófocles nao tica. Compará-lo a Shakespeare — seria impossível.
é a Grecia. Há varias Grécias, e, históricamente, o maior
Realmente, é impossível. Nao pela diferenca dos va-
feito de Racine é ter descoberto essa diferenc,a. Desde
lores, mas das convencoes teatrais a que os dois dramatur-
Trissino e Garnier até Racine, a tragedia classicista (e as
gos se submeteram. Conhecemos hoje melhor a relacáo
suas sínteses com o teatro popular, na Espanha e na In-
entre as particularidades dramatúrgicas de Shakespeare e
glaterra) só conheceu urna alternativa: o modelo grego de
as convencoes que regiam o teatro elisabetano em geral; a
Sófocles ou o modelo romano de Séneca. Racine descobriu
conclusáo inelutável é que as convensoes do teatro shakes-
outra Grecia: a de Eurípedes, que é o seu modelo imediato
peariano nao podem vigorar para os dramaturgos de todos
em Andromaque, Iphigénie en Aulide e Phédre; a Grecia
os tempos, e as convencoes diferentes do teatro raciniano
do mito em decomposicáo pela psicología, assim como o
tém a mesma relativa razio de ser. O teatro inglés é de
jansenismo de Racine estava sendo devorado pelo seu sub-
tipo novelístico; daí a liberdade de lugar e tempo, a rela-
consciente; assim como o cristianismo do século X V I I
tiva incoeréncia da acáo, a variedade dos episodios, a mis-
estava sendo minado pelo moralismo leigo. No sentido
tura dos elementos trágico e cómico. Se Shakespeare vol-
euripidiano, é Racine um grego auténtico e, ao mesmo
tasse a nascer no século XX, nao seria dramaturgo; seria
tempo, um poeta moderno. Eis porque a sua Iphigénie en
um Dostoievski ou um Joyce. Só poderia exprimir-se
Aulide e geralmente reconhecida como mais auténticamen-
livremente no romance, porque a verdade é que o tipo
te grega do que a Iphigénie auf Tauris, suavemente crista,
raciniano do teatro venceu: já nao nos servimos das tres
de Goethe. Racine foi o único dramaturgo moderno que
unidades aristotélicas, mas os dramaturgos modernos go-
conseguiu criar urna tragedia comparável á grega, mítica
zam de menos liberdade de lugar e tempo do que Shakes-
e, contudo, já nao mítica — assim como nos convém, a nos
peare, e a unidade da agáo é hoje restabelecida. Dostoie-
que já nao acreditamos no mito. Neste sentido especial —
vski, o grande psicólogo — admirador apaixonado de
porque a tragedia mítica é a mais permanente de todas — é
Racine, alias — nao teria sido romancista no século X V I I ;
Racine o maior dramaturgo dos tempos modernos, maior
seria um Racine. Servir-se-ia, como Racine, das unidades
até que Shakespeare.
de tempo, lugar e a;áo para condensar as suas investí garóes
psicológicas em tragedias de grand.es crises moráis, como
Afirmá-lo parece blasfemia e heresia das piores. O Crime e Castigo e Phédre.
capítulo das comparacoes entre Shakespeare e Racine é
um dos mais tristes nos anais da literatura comparada e A lógica rigorosa e algo esquemática das composicoes
da crítica literaria. As tentativas de naturalizar Shakes- de Racine é a lógica das convulsoes do coracáo, em desen-
peare na Franca levaram o raciniano apaixonado Voltaire volvimento rápido e desfecho trágico. Na "singleness of
as injurias mais violentas contra o grande inglés; e os purpose", como diz Strachey, revelam-se melhor as almas.
estrangeiros responderam-lhe de modo igual: desde Les- Essas tragedias condensadas e concentradas nao suportam
sing e os irmáos Schlegel, desde Hazlitt e De Quincey. dígressoes episódicas nem intervencóes humorísticas. A
Racine é considerado pela opiniáo alema e inglesa como Racine só importam os acontecimentos íntimos, na alma
1096 OTTO MAKIA CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDEINTAL 1097

das personagens. Por isso, todas as suas tragedias se pas- sem responsabilidade pública. A tragedia de Racine seria
sam na mesma "sala de um palacio", sem pormenores des- o empobrecimento máximo da tragedia psicológica, mas
critivos — mas Strachey — para citá-lo urna vez mais, política, de Corneille. Agora, a comparacáo convencional
observou bem que a pálida e quase pobre linguagem de tem sentido diferente. A primeira observagao é de ordem
Racine (afirmam que o seu vocabulario consiste em 500 estilística: Corneille condensa nos seus famosos "mots"
palavras) sabe sugerir t í o fortes impressoes como a opu- a situagáo do confuto psicológico: "Rodrigue, as-tu du
lenta música verbal de Shakespeare. A impressao da calma coeur?". Racine, nos seus "mots", abre perspectivas; quan-
noturna em do no fim de Britannicus, o espectador já sabe que Néron
cometerá urna serie interminável de crimcs, reza o último
"Mais tout dort, et l'armée, et les vents, et Neptune" verso:

reside inteiramente na música misteriosa da composigio "Plut aux dieux que ce fut le dernier de ses crimes!"
das palavras mais comuns. A muitos o estilo de Racine se
afigura pálido, trivial, prosaico; "il rase la prose", dizia Outra observagao importante: Corneille pretende re-
Sainte-Beuve; mas o próprio Racine nos fornece a melhor presentar o ambiente histórico-político dos seus enredos,
definigáo do seu estilo: enquanto Racine se contenta em dar á pega o colorido
aproximadamente exato de época ou país longínquo. O
"Belle, sane ornements, dans le simple appareil primeiro fato explica-se pelas intengoes diferentes dos dois
D'une beaute " dramaturgos: Corneille representa conflitos psicológicos,
Racine representa crises psicológicas; aqueles desenvol-
Essa "prosa" seria conseqüéncia do uso da língua como vem-se em choques, estas concentram-se em peripecias, de
instrumento da análise psicológica; e Racine é, com efeito, modo que o ambiente histórico perde a importancia, re-
um moralista que pode rivalizar com La Rochefoucauld: cuando, por assim dizer, para o fundo da cena, e deixando
as personagens sózinhas no palco. As unidades aristoté-
"Ainsi que la vertu le crime a ses degrés." licas, que Corneille mal suportou, servem a Racine para
condensar ao máximo a crise; daí o poderoso efeito dra-
A verdadeira razáo daquela "ciarte" prosaica é, porém, a mático das suas pegas, até na leitura. Tao dramático é
autodisciplina rigorosa do poeta, ou, como disseram os Racine que quase nao precisa do palco. É poesía dramá-
jansenistas, a subordinagáo da "sensibilité" ao "jugement". tica de ordem mais geral, independente de todas as con-
A mesma subordinacao permanente é, alias, a raíz do tingencias históricas. As personagens de Racine •— tiranos
grande talento cómico de Racine; o seu "jugement" triunfa cruéis e mulheres perversas — agem e reagem conforme
sobre a "sensibilité", e, quando nao se trata do seu próprio os preceitos da política "maquiavelístíca" — mas no am-
caso, entáo sabe rir, como em Les Plaideurs, rir dos outros biente da familia. Racine desiste, até ñas tragedias rigo-
com a crueldade das personagens trágicas mais violentas. rosamente históricas, em Bérénice e Britannicus, da signi-
ficagáo política da agao; o que importa é a crise psicológica
"Poeta cómico", assim chamou Schlumberger a Ra- como desfecho de um conflito familiar, humano. A sabe-
cine; e explicou: poeta de conflitos íntimos e familiares
1098 OTTO M A B I A CARPEAUX HlSTÓHIA DA LlTEBATUKA OciDENTAL 1099

doria política de Corneille é substituida p e l o Fado das matizacáo de um contó de facías", destinada a ser repre-
paixoes irresistíveis. A vontade, p r e p o d e r a n d o em Cor- sentada por mocinhas, é, ao mesmo tempo, uma sátira poli-
neille, já nao conta; é sempre vencida. tica, advertencia ao rei, táo mal aconselhado na luta contra
Eis o tema de Racine: vontades q u e b r a d a s , desejos os jansenistas. Athalie é um estudo dramático da tiranía
frustrados. É "romantisme dompté". E aos v e n c i d o s abrem- que termina derrotada pela ¡ntervencao da Providencia
se apenas as perspectivas de derrotas f u t u r a s ou de r e - Divina. A s duas pecas celebram a vitória de heróis ino-
flexáo e expiacáo. O classicismo de R a c i n e é "baroque centes sobre a política "maquiavelística" dos inimigos de
dompté". Daí provém a sintaxe complicada, á s vézes " p r e - Esther, de Joas e de Deus. O conformismo político do
ciosa", de milites versos seus. Barroca é até a sintaxe de "siecle d'or" francés está superado por uma atitude de
um dos versos mais famosos de Racine: oposigáo, já francamente antibarróca.
Todavía, sao essas duas pegas políticas, antes de tudo,
"Ariane, ma soeur, de quel amour b l e s s é e obras de profunda inspiracáo religiosa, bíblica. Seu tema
Vous mourutes aux bords oü vous f u t e s laissée!" é a Graga que desee do Céu, embora a nuvem sombría pe-
rante a face do "Deus absconditus" continué a envolver o
em que a simetria das harmonías pretende p r o d u z i r a im- templo:
pressao de equilibrio clássico. Leo Spitzer c h a m o u a aten-
gao para a música, "con sordina", do verso d e Phédre: "Courons, fuyons, retirons-nous
A l'ombre salutaire
" dérober au jour une flamme si n o i r e . " Du redoutable sanctuaire."

É a surdina classicista sobre o violoncelo b a r r o c o . O templo, em Athalie, está cheio de "terreur sacrée", e a
salvacáo anuncia-se pelo instrumento supremo da poesía
Phédre é, no consenso dos séculos, a o b r a - p r i m a de
raciniana: a música verbal, que já preludiara, como no
Racine: reúnem-se, nessa tragedia, a psicología requintada
órgáo, na tragedia pré-cristá Iphigénie en Aulide, e sobe
de Andromaque, a tragicidade inelutável de Britannicus e
como um hiño nos coros de Athalie. O inegável elemento
o sentimento do humano de Iphigénie en Aulide. Os jan-
senistas tiveram mais outros motivos para a c e i t a r favorá- barroco em Racine é táo transfigurado, táo superado, como
velmente aquela tragedia do amor: a queda f a t a l d e Phédre na música do último mestre do Barroco musical e primeiro
simbolizava, para éles, a corrupcao e queda d a alma hu- neoclássico: ñas óperas de Gluck. Música é a última pala-
mana, conforme o seu dogma. O que a um c r í t i c o ameri- vra da arte de Racine; torna-se, desta maneira, "le plus
cano moderno parece, ainda hoje, "a historia s ó r d i d a de um humain possible", táo geral que parece quase trivialidade.
incesto", significava para os contemporáneos u r n a tragedia Eis o motivo da solidáo absoluta de Racine, que nao
religiosa. tinha rival nem sucessor. É necessário possuir o máximo
As duas tragedias religiosas de Racine, s u a s últimas de personalidade para criar poesía que se afigura táo uni-
obras, nao sao, por sua vez, sómente r e l i g i o s a s . Também versal, táo impessoál. Os contemporáneos satisfizeram-se
tém evidente sentido político. Esther, essa a m á v e l "dra- com as aparéncias, os sentimentos nobres, o verso polido;
1100 Orco MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1101

aplaudiram Carnpistron ( T3 ), dono de varias qualidades es- X V I I . Por outro lado, existem diferengas inegáveis. Os
tilísticas e de nenhuma qualidade poética ou dramática. métodos da abstragáo e generalizagáo nao sao próprios da
O único sucessor legitimo de Racine é Quinault ( í 4 ) ; historiografía; foram tomados de empréstimo ás ciencias
e isso nao deixa de ser paradoxal em varios sentidos. Qui- naturais, e desde Rickert e Windelband se acham firme-
nault nasceu quatro anos antes de Racine, e a época dos mente estabelecidos "os limites da formagáo de leis e ter-
seus grandes éxitos situa-se entre as primeiras derrotas de mos, á maneira das ciencias naturais". O objeto da histo-
Corneille e as primeiras vitórias racinianas. Mas as suas riografía é constituido por "individuos": individuos pró-
tragedias nao tém valor, e seria inútil a tentativa de erigi-lo priamente ditos e individuos coletivos — classes, nacoes,
em intermediario entre os dois grandes dramaturgos. A s épocas — ligados por acontecímentos "irrepetíveis" e irre-
pegas realmente importantes de Quinault sao os libretos versíveis. "Individualizar" é urna das tarefas principáis da
que escreveu, depois de Phédre, para as óperas de L u l l i : historiografía literaria, como de toda a historiografía. De-
pegas líricas, de um lirismo muito geral, capaz de servir pois de haver acentuado os tragos barrocos do chamado
como base permutável de recitativos e arias. Todo o teatro "classicismo francés", será preciso acentuar os elementos
barroco tende a sacrificar a sua verdade humana á máquina nao barrocos ou antibarrocos; a literatura de Pascal e Bos-
teatral, transformándose em ópera ( 7 6 ). suet, Corneille e Racine, nao é, afinal, a de San Juan de
la Cruz e Donne, Shakespeare e Calderón.
Nao pode ter sido por acaso que o teatro francés cha-
mado "clássico" terminou em ópera, do mesmo modo que Basta a citagao dos nomes para imediatamente se
o teatro espanhol, que toda a gente reconhece como bar- reconhecerem as qualidades próprias e independentes da
roco. É mais um argumento em favor da tese do caráter literatura que aqueles poetas e escritores franceses repre-
secretamente barroco do classicismo francés do século sentan!. Em compensagáo, é ¡mensamente difícil defini-las,
a ponto de ser impossível tratar o classicismo francés sem
repetir coisas já inúmeras vézes afirmadas, e da maneira
73) Jean Galbert de Camptstron, 1656-1723. mais brilhante. No fim do "siécle d'or" da literatura fran-
Andronic (1685); Tiridate (1690). cesa, La Bruyére confessou: "Tout est dit, et l'on vient
J. Hausdring: Carnpistron in selner Bedeutung ais Dramatiker trop tard depuis plus de sept millo ans qu'il y a des hom-
fuer das Theater Frankreichs und des Auslands. Leipzig, 1903.
mes, et quí pensent." Reduzindo-se os "sete mil anos" a
74) Philippe Quinault, 1636-1688. dois mil, a frase ajusta-se ao classicismo francés, que re-
ha mort de Cyrus (1656); Amalasonte (1657); Astrate (1664);
La mere coquette (1664). presenta a suma do pensamento ocidental — greco-romano,
Operas: Alceste (1674); Proserpine (1680); Amadis (1684); Ro- cristao, renascentista — em estilo extremamente cultivado;
land (1685); Armide (1686). donde a impressáo de "um ¡menso lugar-comum em perío-
F. Lindemann: Die Operntexte Quinaults vom Uterarischen dos redondos e versos sonoros", que ocorreu a muitos crí-
Standpunkt. Leipzig, 1904.
E. Oros: Philippe Quinault. Sa vie et son oeuvre. París, 1927. ticos estrangeiros. Quanto á crítica francesa, é preciso
J. Buytendorp: Philippe Quinault, sa vie, ses tragedles et ses apenas reduzir aqueles "sete mil anos" a dois séculos e
tragi-comédies. Amsterdam, 1928. meio: "Tout est dit, et l'on vient trop tard". La Harpe,
76) R. Rolland: Histoire de l'Opéra en Europe avant Lulli et Scar- o comentador autoritárío dos "clássicos", no século X V I I I ,
latti. Paris. 1895.
R. Rolland: Musiciens d'autrejois (Les origines de l'opéra; Lulli). tem hoje fama de crít¡co dogmático e inepto; mas no seu
Parla, 1908.
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1103
1102 Orro MARÍA. CARPEAUX

COUTS de littérature já se encontra quase tudo quanto foi universal. O conformismo característico do classicismo
repetido depois de modo menos afirmativo e provocante. francés contribuí até para eliminar-lhe as contingencias
A s melhores edigoes de Racine podem, até os nossos días, históricas, tomando-o digno de ser objeto permanente de
aproveitar-se de certas notas d o anti-romántico impenitente urna crítica literaria que é, por sua vez, um permanente
Nisard. Depois, acabou a "crítica das belezas e defeitos"; comentario das condicoes gerais da vida humana. A in-
Sainte-Beuve introduziu a crítica psicológica e organizou terpretagao "barroquista" do classicismo francés — a única
em torno da historia de Port-Royal urna nova tábua de contribuigao nova — nao será capaz de modificar sensl-
valores da literatura clássica. Porém continuou a comparar velmente aquela tábua de valores; esclarecendo melhor as
"Comeille et Racine", a opor Bourdaloue a Moliere, e a origens históricas, serve antes para reinterpretar os moti-
gostar de Regnard. Taine pretendeu destruir Racine; mas vos daquela "permanencia": as ambigiiidades antitéticas
a parte mais permanente da sua crítica é o elogio de La da prosa clássica e a política "maquiavelístíca" do teatro
Fontaine. "Enfin Brunetiére vint", reconstruindo a igreja clássico sao mesmo expressóes barrocas da psicología per-
da ortodoxia clássica; e Lemaitre e Faguet nao fizeram manente do género humano. O classicismo francés "lugar-
mais do que repetir, de maneira cada vez mais brilhante e comum" geralmente humano na língua de Pascal e Racine.
espirituosa, os lugares-comuns sólidamente estabelecidos É barroco, abarroco e antibarroco ao mesmo tempo. Che-
da crítica literaria francesa. Em 1939 publicou-se, sob a gar-se-ia a afirmar que o elemento clássico, o "abarroco",
diregáo de André Gide, um novo Tableau de la littérature é resultado do equilibrio entre as forjas barrocas e as fór-
irancaise, XVII et XVIIIe siécles, de Comeille a Chénier: gas antibarrocas que agem e reagem dentro do classicismo
o classicismo visto através da sensibilidade contemporánea francés. De fato, nao lhe falta um elemento antibarroco,
e das ideologías modernas. Escreveram Schlumberger so- o estilo de pensar de La Fontaine e Moliere; mas éste
bre Comeille, Léon-Paul F a r g u e sobre La Fontaine, Fer- Antibarroco sucede cronológicamente, e nao apenas cro-
nández sobre Moliere, Mauriac sobre Pascal, Thibaudet nológicamente, ao Antibarroco espanhol, de Cervantes a
sobre Boileau, Giraudoux sobre Racine, e devia haver, evi- Gracián, que é, por sua vez, como expressáo espanhola,
dentemente, muitas modificagoes na opiniáo estabelecida, urna expressáo do Barroco.
novas interpretagoes psicológicas — mais psicológicas do
que própriamente literarias — e varios aforismos brilhan-
tes e inéditos; contudo, o reexame nao modificou o pano-
rama em conjunto. E Thibaudet, após definir Boileau como
"Président" da "République des L e t t r e s " francesas, con-
cluí: "Nous n'avons ni envíe mi motifs de modifier cet
état des choses. Le Président reste le Président."

E a crítica continua a ser a crítica, e o classicismo


continua classicismo. E nos outros, "nous n'avons ni envíe
ni motifs de modifier cet état des choses": a liteiatura de
Pascal e Bossuet, Comeille e Racine, constituí um dos
valores mais permanentes dentro do panorama da literatura

CAPITULO VI

ANTIBARROCO

OR mais poderoso que o Barroco seja como expressáo


P política e social e como expressáo estilística, nao lhe
falta oposicáo. Mas nao é fácil distinguir entre a oposicáo
de verdade, antibarróca, e "His Majesty's most loyal oppo-
sition", que faz parte da mentalidade antitética do Bar-
roco. O romance picaresco e a epopéia herói-cómica pa-
recem antíteses do Barroco e nao passam de antíteses
dentro do Barroco: veleidades de oposicáo social, acabando

em pessimismo á maneira de Alemán, ou fantasía burlesca
á maneira de Bracciolini; o naturalismo, burlesco ou som-
brío, faz parte do próprio estilo barroco, sempre "clair-
obscur". O criterio estilístico nao é capaz de distinguir
.
entre oposicáo intrabarroca e aposicao antibarroco: as for-
mas clássicas dos grandes franceses nao excluem mentali-
.
dade barroca, e o aparente antibarroquismo dos naturalis-
tas nao implica verdadeira oposicáo. Racine é táo con-
formista como Bossuet; os picaros aderem ao estoicismo
barroco; os autores das epopéias herói-cómicas sao inte-
lectuais, eruditos típicamente barrocos.

Mas o estilo bem barroco de Quevedo, Gracián e Cam-


panella será capaz de exprimir ideologías incompatíveis
com a corrente dominante. A verdadeira oposicáo reve-
la-se na resistencia ao aristotelismo reinante, em atitudes
de humanistas, nominalistas, cépticos, na tentativa de
atacar a própria réalidade da sociedade barroca — o que
nao fizeram nem o romance picaresco nem a epopéia herói-
1106 Orro MARÍA CABPEAUX HlSTÓRIA DA LlTEBATUBA OciDENTAL 1107

cómica. O próprio Calderón póe em dúvida a realidade do lam-se com superior clareza ñas obras dos seus historió-
mundo, mas em favor das realidades supranaturais da fé; grafos oficiáis: Ocampo ( ' ) procura de maneira fantás-
a ideología de Vida es sueño nao é mais nem menos resig- tica, aparentemente medieval, ligar a historia espanhola á
nada que a do Guzmán de Alfarache. Cervantes, Quevedo, historia romana para criar urna perspectiva ampia da his-
Boccalini, Campanella, Sarpi, pelo contrario, sao homens toria universal, para patentear o sentido universal, "roma-
da acño; Galileu se submete verbalmente; e Moliere é o no", da política do imperador. O perigo de que esta polí-
primeiro a usar o palco como tribuna pública, no sentido tica estava ameagada era a desagregagao dos seus elemen-
romano do tribunato. E n t r e os jesuítas há até tribunos, tos básicos: o poder espanhol transformar-se-á, depois da
tais como Vieira, e jesuítas insubmissos, como Gracián. eliminagáo do universalismo pela derrota de Carlos V, em
A s origens dessas atitudes oposicionistas encontram-se na imperialismo; a política crista transformar-se-á, depois da
Renascenga: o humanismo erasmiano dos espanhóis, o no- eliminagáo do universalismo pela derrota de Erasmo, em
minalismo de italianos recalcitrantes, o cepcismo epicureu Contra-Reforma. A nova sintese de política crista e polí-
de Montaigne. O humanismo espanhol do século X V I I , o tica espanhola é capaz de nao ser nem erasmiana nem renas-
antiespanholismo e empirismo italiano e o "libertinismo" centista, mas barroca, absolutista e jesuítica. Há urna an-
francés, todas essas "oposigoes" nada puderam contra o tecipagao literaria dessa evolugáo posterior: em pleno
Barroco; os seus representantes constituem urna galeria imperio de Carlos V, aparece, anacrónicamente, antes do
de grandes vencidos, porque as suas tentativas isoladas tempo, a literatura pré-barróca de Antonio de Guevara (-').
nao tinham base social bastante forte. Considerando-se as Desta vez — e a experiencia nao é a única — a "super-
suas origens renascentistas, parecem "reacionários". Mas, estrutura" precedeu, proféticamente, os acontecimentos no
ao mesmo tempo, sao percursores da "Ilustragáo" do século plano real. Carlos V foi vencido pelas fórgas unidas da
X V I I I . Vencem, postumamente, no terreno do classicismo Reforma alema, do nacionalismo francés e do P a p a d o ;
francés, que, neste século X V I I I , continuará a existir como Paulo I I I desligou a Igreja da política universalista do
"pseudomorfose" estilística de urna sociedade já burguesa, imperador, preparando o "particularismo" romano da Con-
preparando, em odes, sátiras e tragedias classicistas, a Re- tra-Reforma tridentina. A retirada de Carlos V para San
volugáo. Yuste significa o fim definitivo do erasmismo político.
Com Filipe I I inicia-se a época do imperialismo espanhol,
A política do Imperador Carlos V fóra urna tentativa da Contra-Reforma, da política maquiavelística dos Esta-
de realizar os ideáis do erasmismo espanhol, no momento dos nacionais, do Barroco.
em que a Reforma e as primeiras explosoes do nacionalismo
destruíram a unidade espiritual da Europa. Pretendem A grande derrota deixou um problema irresolúvel. O
restabelecé-la por meio de urna política universalista, ba- poder espanhol transformara-se em espada da Contra-Re-
seada no humanismo cristao — ou antes, no cristianismo forma; mantinha a pretensao de realizar "política crista".
humanista — de Erasmo. Carlos V é, como o interpretaran! Na verdade, porém, realizou imperialismo espanhol, prati-
os historiadores protestantes, o último representante do
universalismo medieval: é o primeiro e maior dos estadis- 1) Florlán de Ocampo, c 1495-1568.
tas de horizonte europeu, o soberano do primeiro "bom Crónica general de España (1543).
europeu" Erasmo. Os motivos ideáis da sua política reve- A. Morel-Fatio: L'Historiographle de Charles-Qtlint. París, 1913.
2) Cf. "Renascenca Internacional", nota 91.
1108 OTTO M A M A CABPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 1109

cando aquéle maquiavelismo que os teóricos da Contra- f u n d a d o r da ciencia d o D i r e i t o das G e n t e s . O r e s u l t a d o


Reforma rejeitarara, porque era a arma dos Estados nacio- f o r a m a s " N u e v a s L e y e s d e I n d i a s " (1542), q u e p e r m a n e -
nais contra a Igreja, que mantinha, por sua vez, a pretensao cerán!, i n f e l i z m e n t e , l e t r a m o r t a : encontrava-se o u t r a i n -
da universalidade. O campo em que se revelou a contra- t e r p r e t a d o , m a i s c ó m o d a , d o d i r e i t o n a t u r a l — em v e z d a
dicho íntima, mesmo antes das guerras de religiáo na erasmiana, a aristotélica.
Europa, foi a colonizacao das Américas, realizada pelos E n t r e os g r a n d e s h u m a n i s t a s espanhóis d a s u a g e r a c a o ,
métodos mais violentos do imperialismo, mas com a pre- é Sepúlveda (5) quase o único que nao é erasmiano; tra-
tensao de servir á fé universal. Surgiu, entao, a figura d u z i r a a Política, de Aristóteles, é aristotélico fervoroso, é
evangélica de Bartolomé de Las Casas ( 3 ) , bispo de Chiapa "humanista a servico d o imperialismo" espanhol. A teoría
e "apostólo dos indios", orador fogoso e até violento a ser- a r i s t o t é l i c o - t o m i s t a d e dois d i r e i t o s n a t u r a i s — o p r i m e i r o ,
vico de urna grande causa: a salvacao dos indígenas ino- paradisiaco, e o segundo, justificando guerra e escravidáo
centes, subjugados pelo poder dos espanhóis; e o q u e Las p o r m o t i v o d o p e c a d o o r i g i n a l — serve-lhe p a r a r e f u t a r o
Casas exigiu com tanta veeméncia foi a "política crista", pacifismo cristao de L a s Casas e interpretar como cruza-
a observacao do direito natural, conceito em que o huma- das as guerras imperialistas dos espanhóis. A aplicacáo
nismo cristao encontrara a sua ideologia política. Os rela- prática dos conceitos de Sepúlveda implicou, decerto,
t ó n o s de Las Casas, consubstanciados em Del único modo a q u é l e m a q u i a v e l i s m o s e m o q u a l p o l í t i c a d a fórca é im-
de atraer a todas las gentes a ¡a religión de Cristo e sobre- p o s s í v e l , m a s q u e o s j e s u í t a s , os g r a n d e s p a r t i d a r i o s d o
tudo na impressionante Brevísima relación de la destruy- aristotelismo, combateram. A contradicáo repete, no ter-
ción de las Indias, encontraram reprecussáo profunda. O r e n o p o l í t i c o , a s c o n t r a d i c o e s c r i a d a s p e l a aplicacáo d o
próprio imperador convocou urna comissao para estudar as aristotelismo a literatura renascentista: a justificagao do
reivindicacoes do Bispo e os remedios necessários. Con- " h e d o n i s m o i n o c e n t e " e m face d o m o r a l i s m o a r i s t o t é l i c o
tribuíram para a vitória do apostólo os conceitos jurídicos da C o n t r a - R e f o r m a só foi p o s s í v e l p o r m e i o d e urna h i p o -
do grande teólogo humanista Francisco de Vitoria ( 4 ), crisia estética, c o r r e s p o n d e n t e ao maquiavelismo. O s S p e -
r o n i s , P i c c o l o m i n i s , C a s t e l v e t r o s sao o s S e p ú l v e d a s da
l i t e r a t u r a . M a s o q u e se c o n s e g u i u d i s s i m u l a r n o t e r r e n o
3) Bartolomé de Las Casas, 1470-1566.
Del único modo de atraer a todas las gentes a la religión de da ficcáo r e v e l o u a s s u a s c o n t r a d i c o e s n o t e r r e n o d a a c á o .
Cristo (1537); Brevísima Relación de la Destruyción de Las Indias U m s o l d a d o d e C a r l o s V, l u t a n d o n o coméco d o s é c u l o
<1552); Historia general de las Indias (1561). X V I I pelos ideáis erasmianos, era a encarnacáo d e um
Edlg&o do Único Modo por L. Hanke, México, 1042.
a n a c r o n i s m o ; o " m i l e s c h r i s t i a n u s " d e E r a s m o j á se havia
A. M. Fabié: Vida y escritos de Fray Bartolomé de Las Casas,
obispo de Chiapa. 2 vols. Madrid, 1879.
F . A. Macnutt: Bartholomew de las Casas. Washington, 1909.
J. Hoeffner: Christentum und Menschenwuerde. Das Anliegen
der spanischen Kolonialethik im Qoldenen Zeitalter. Trier, 1947. 5) Juan Ginés de Sepúlveda, c. 1490-1573.
4) Francisco de Vitoria, 1480-1546. Democrates Alter De Justis Belli Apud Indos (c. 1548). (Pri-
Relectiones de Indis recenter inventis (1532); De iure bellt his- meira publlcacao por M. Menéndez y Pelayo, Madrid, 1892.)
panorum in barbaros (1532). Edic&o por M. García Pelayo, México, 1941.
J. Brown Scott: The Spanish Origin of International Lato. Fran- A. F . G. Bell:" Juan Ginés de Sepúlveda. Oxford, 1925.
cisco de Vitoria and his Law of Nations. Oxford, 1934. Rlc. Smlth: Un humanista al servicio del imperialismo. Juan
A. Gómez Robledo: Política de Vitória. México, 1940. Oinés de Sepúlveda. Córdoba [Arg.], 1942.
.

1110 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1111

transformado em conquistador violento e cruel. Ora, sol- resumo, o julgamento e a transfiguracáo. O resto da sua
dado de Carlos V a servico de Filipe I I , eis o q u e foi atividade literaria parece apenas preparacáo da obra prin-
Cervantes; e a encarnacáo daquele anacronismo foi o seu cipal. Ainda no Dom Quixote, certos episodios lembram a
Dom Quixote. literatura pastoril que Cervantes enriqueceu com a Galatea,
Na opiniao geral, Cervantes ( 8 ) é tao exclusivamente a sua obra de estréia. O humorismo algo primitivo, pré-
o autor do Dom Quixote q u e autor e obra quase s e con- lopiano, dos entremeses, prepara o humorismo superior do
funden!. Cervantes só parece ter vivido a sua desgracada romance. Quanto as pegas serias e ao último romance, Per-
vida de soldado, cativo dos mouros e literato pobre para siles y Segismunda, a posteridade condenou-os a um quase
acumular as experiencias das quais aquela grande obra é o esquecimento, porque nao se harmonizan! bem com a "tese"
humorística do Dom Quixote. Enfim, a colegio das Nove-
las Exemplares ninguém negou jamáis o título de urna das
<¡) Miguel de Cervantes Saavedra, 1547-1816. maiores obras narrativas da literatura universal. Mas ésses
El Trato de Argel (c. 1582); El cerco de Numancta (c. 1582; contos sao desiguais; alguns ao gósto italiano da época,
publ. 1784); Galatea (1585); El ingenioso hidalgo Don Quixote
de la Mancha (1605); Novelas ejemplares (1613); Viaje del outros tao románticos que só mesmo os románticos alemáes
Parnaso (1614); Ocho comedias y ocho entremeses nuevos e ingleses podiam gostar déles; novelas da mesma especie
["El rufián dichoso"; "Dom Pedro de Urdemalas"; "Los baños de encontram-se insertas no Dom Quixote ("El curioso im-
Argel", etc.] (1615); Segunda parte del Don Quixote (1615); tos
trabajos de Persiles y Segismunda (1617). pertinente", "Las bodas de Camacho"), e as duas obras-
Edicfio das Obras completas por R. Schevlll e A. Bonilla y primas da novelística cervantina, a picaresca "Novela de
San Martin. 12 vols., Madrid, 1914/1925; Edlcao da Real Aca- Rinconete y Cortadillo" e a filosofía melancólica do "Colo-
demia de Lengua Española, 7 vols., Madrid, 1917/1923. EdicSo
do Don Quijote por F . Rodríguez Marín, 8 vols., Madrid. quio de los perros Cipión y Berganza", preparam ¡mediata-
1911/1913. mente o realismo e o humorismo do Dom Quixote, síntese
A. Morel-Fatio: Études sur VEspagne. Vol. II. Paris, 1895. da arte e do pensamento de Cervantes. A visáo da obra na
J. Apráiz: Estudio histórico-crítíco sobre las Novelas ejemplares memoria da humanidade restringe-se até, principalmente, á
de Cervantes. Vitoria, 1901. primeira parte do romance: as aventuras do fidalgo Alonso
R. Léon Mainez: Cervantes y su época, 2 vols. Jerez. 1901/1903.
M. Menéndez y Pelayo: Orígenes de la novela. Vol. I. Madrid, Quijano na taverna que tomou por castelo, com os moinhos
1905.
J. Fitzmaurlce-Kelly: Miguel de Cervantes Saavedra. Oxford,
1913.
F. A. Icaza: Las novelas ejemplares de Cervantes. Madrid, 1915. J. Cassou: Cervantes. Paris, 1937.
A. Cotarelo y Valledor: El teatro de Cervantes. Madrid, 1915. A. Valbuena Prat: "Cervantes". (In: Historia de la literatura
Azorín: "Al margen del Persiles". (In: Al margen de los clásicos. española. Vol. TI. Barcelona, 1937.)
Madrid, 1913.) J. Casalduero: Sentido y forma de las Novelas Ejemplares. Bue-
A. Bonilla y San Martín: Cervantes y su obra. Madrid, 1916. nos Aires, 1943.
R. Schevlll: Cervantes. New York, 1919. A. F. O. Bell: Cervantes. Norman, Okle., 1947.
Am. Castro: El pensamiento de Cervantes. Madrid, 1925. J. Casalduero: Sentido y forma de los Tabajos de Persiles y Se-
H. Hatzfeld: Don Quijote ais Wortkunstwerk. Leipzig, 1927. gismunda. Buenos Aires, 1947.
J. MlLé Jiménez: Sobre la génesis del Don Quijote. Barcelona, L. Astrana Marín: Vida exemplar y heroica de Miguel de Cer-
1930. vantes Saavedra- 6 vols. Madrid, 1948/1953.
P. Hazard: Le Don Quichotte de Cervantes. Paris, 1931. J. Casalduero: Sentido y forma del Don Quijote. Madrid, 1949.
M. Azafia: La invención del Don Quijote. Madrid, 1934. J. Casalduero: Sentido y forma del teatro de Cervantes. Madrid,
Ríe. Rojas: Cervantes. Buenos Aires, 1935. 1951.
1112 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1113

de vento que combateu como se fóssem gigantes, com a na qual os ideáis sempre sao derrotados pela famosa "tal-
bacia do barbeiro que lhe pareceu elnio de Mambrino; as mosia dos fatos". Essa interpretagáo antiga nao explica
conversas do improvisado cavaleiro errante com Sancho bem a simpatía do autor pelo seu herói louco, simpatía
Panga, que mobiliza t o d o o realismo seco dos proverbios que se comunica a todos os leitores, e baseada no fato de
castelhanos para convencer o seu dono da loucura daqueles que nao sómente os ideáis falsos sao derrotados na vida e
erros, acompanhando-o, no entanto, na esperanza de con- no Dom Quixote, mas também os ideáis verdadeiros; o
quistas imaginarias. O contraste é de um humorismo irre- cavaleiro á antiga, que defende a fé, a justiga e os indo-
sistivel: e o Dom Quixote conservará para sempre as suas
fesos, tem de desaparecer num mundo sem fé, sem justiga
duas classes de leitores: as crianzas, que ainda nao conhe-
e muito utilitario. Heine foi — parece — o primeiro em
cem a vida, e os outros, duramente experimentados por ela.
compreender a tragedia comovente do idealismo desiludido
Mas, enquanto as simpatías do público se inclinavam para
por tras do sorriso humorístico. E logo resultou urna con-
o lado do cavaleiro perfeito e comovedoramente ridículo,
clusao importante: na literatura universal é o Dom Qui-
a literatura universal ouviu de preferencia a licáo de San-
cho Panga e do seu realismo razoável. O "método" cervan- xote a primeira grandiosa obra de arte em prosa porque o
tino do contraste entre ideáis extravagantes e obsoletos, humorismo é o sentimento da poesía em face da prosa da
por um lado, e, doutro lado, o bom-senso comum da gente, vida. Eis a interpretagáo romántica do Dom Quixote. De-
sugeriu inúmeras imitacoes e versoes, das quais o Hudibras, pois, tornou-se possível salientar, alternadamente, o ele-
de Samuel Butler, é o primeiro espécíme, e o Tom Jones, mento poético ou o elemento prosaico; e originam-se daí
de Fielding, o primeiro resultado definitivo. Disse bem o duas series de interpretagoes. O primeiro caminho é o de
crítico americano T r u l l í n g que o contraste entre as apa- Turgeniev, explicando a derrota de Dom Quixote como
réncias e a realidade é a própria substancia do género "ro- sendo a da fé num mundo sem fé; a essa interpretagáo
mance". Nesse sentido é o Dom Quixote "o romance dos Unamuno deu a f eicao do paradoxo, compreendendo a obra
romances". Déle deriva o romance realista, em que as duras de Cervantes como protesto da Vida contra a Razao, cele-
realidades do ambiente se opóem ás idcias e atos subjetivos brando Dom Quixote como herói da fé idealista contra o
do homem; quer dizer, o romance moderno. racionalismo utilitario. Por isso, Unamuno emprestou a
devida importancia á segunda parte do romance, na qual o
Mais um episodio da primeira parte do Dow Quixote tom é mais solene, quase religioso, e o "caminho de muerte"
se gravou na memoria universal: a cena em que o vigário do idealista se parece com a paixáo de um mártir da fé.
e o barbeiro julgam os romances de cavalaria, responsáveis O ponto fraco da interpretagáo unamunesca é a identifica-
pela loucura anacrónica de Don Quixote. Ésse episodio gao do herói com o seu autor; já se criticou a transformagüo
constituí a base da interpretagáo realística da o b r a corres- do cervantismo em quixotismo. A outra possibilidade de
pondente á reprecussáo do Dom Quixote na literatura uni- interpretagáo, a realista, foi indicada por Menéndez y
versal: a obra foi compreendida como sátira contra o entu- Pelayo: Cervantes teria restabelecido os direitos da reali-
siasmo apaixonado dos espanhóis pelos romances de cava- dade ; o seu caso literario teria sido análogo ao do romane*
laria. Na elaboracao, estendeu-se a sátira a todas as formas
picaresco. E, chamando a atengao para o excelente contó
de "idealismo" extravagante que perde de vista a realidade;
picaresco "Rinconete y Cortadillo", o grande critico cha-
e a parodia transformou-se em panorama da vida humana,
1114 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1115

gou a lamentar que Cervantes nao houvesse escrito um vida. Cervantes é, segundo a interpretagáo de Américo
novo Lazarillo de Tormes ou um Guzmán de Alíatache. Castro, um homem da época de Carlos V ; o patriotismo
Essa observagáo foi o ponto de partida da nova inter- romántico da tragedia Numancia é o ponto de partida da
p r e t a d o de Américo Castro. O verdadeiro picaro de Cer- viagem pela vida que o levará á desilusáo do Dom Quixote:
vantes aparece na comedia El rufián dichoso: picaro que um contó humorístico á maneira das "facezie" da Renas-
se torna santo, mas sem a feigao ascética do Guzmán. T a m - cenga italiana tomou o vulto de um símbolo da decadencia
pouco é possível ignorar a imparcialidade da distribuigáo espanhola sob os Filipes; derrotada, a Espanha tem de
de sombras e luzes em "Rinconete y Cortadillo", enquanto reconhecer que moinhos de vento nao sao castelos; e que
Alemán é o pregador do pessimismo barroco. O otimismo, os castelos do inimigo nao sao moinhos de vento. Cervan-
embora melancólico, de Cervantes, provém da superposiclo tes teria sido um homem entre os séculos, o último dos
do idealismo platónico, que ele deveu á sua formagao re- «rasmianos e o precursor do movimento regenerador de
nascentista, sobre o realismo picaresco, resultado da sua 1898. E a falta de idéias própriamente erasmianas, "libe-
origem plebéia. Daí a grandiosa imparcialidade de Cer- ráis", na sua obra, seria explicável pela opressao do pensa-
vantes, a sua capacidade de fazer j u s igualmente a Dom mento livre na época filipina.
Quixote e a Sancho Panga. É possível acompanhar a aqui- Éste último ponto é o mais fraco na interpretagáo de
sigao gradual dessa imparcialidade ñas Novelas Exempla- Américo Castro. Cervantes foi um espirito ¡mensamente
res. Ejemplar quer dizer "moral", "que dá ligoes moráis"; livre, a ponto de, na grande comedia Don Pedio de Urde-
mas também quer dizer: "sao exemplos do que acontece"; malas, desmentir o seu próprio idealismo: o herói, especie
"a vida é assim". E o "assim" de Cervantes nem sempre de Malasarte espanhol, é derrotado por Bélica, cujo maquia-
foi o mesmo. Nos contos de tipo italiano, renascentista velismo lembra a moral de Gracián; e Pedro admite fran-
("La Señora Cornelia", "La española inglesa", "El amante camente a derrota, como devida. Mas Cervantes nao é livre-
liberal", "La fuerza de la sangre"), Cervantes é tao idea- pensador. Byron disse, em verso famoso, que "Cervantes
lista, no sentido do neoplatonismo de Leone Ebreo, como smiled Spains chivalry away"; mas isso nao é exato, porque
na sua obra de estréia, o romance pastoril Galatea. O rea- Cervantes sucumbiu e o espirito de cavalaria sobreviveu.
lismo já intervém em "La gitanilla", "La ilustre fregona", A Galatea, que nos parece bastante convencional, foi sem-
"El celoso extremeño"; e leva ao naturalismo picaresco de pre, para ele, a predileta entre as suas obras; e até nos últi-
"Rinconete y Cortadillo" e do "Coloquio de los perros". A mos anos de vida pensava em escrever urna segunda parte
primeira síntese encontra-se em "El licenciado Vidriera", désse romance pastoril. Porém o argumento mais forte
retrato do idealista que sabe que a sua fé é mera ilusao em contra a interpretagáo de Américo Castro é a última obra
face da realidade. No Dom Quixote, essa conviccao chegará de Cervantes, o romance Persiles y Segismunda. É um ro-
á profundidade do idealismo filosófico, quase cartesiano ou mance de cavalaria, cheio de episodios fantásticos passados
kantiano: "Eso que a ti te parece bacía de barbero, me pa- em ambiente fabuloso. Os críticos antigos registraram a
rece a mí el yelmo de Mambrino, y a otro le parecerá otra obra como recidiva lamentável; confessaram-se incapazes
cosa." Eis a base sobre a qual Cervantes foi capaz de trans- de explicar porque Cervantes deu a ésse romance impor-
formar o seu protesto, de humanista plebeu contra o Bar- tancia muito grande, considerando-o como o principal dos
roco aristocrático, em panorama imparcial, humorístico, da seus livros. Neste ponto, todos cairam na confusao entre
J116
OTTO M A B I A CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1117
cervantismo e quijotismo. Para Américo Castro, a ú l t i m a
obra de Cervantes seria a profissáo de fé definitiva do seu o problema que levara á loucura o autor da maior obra de
idealismo platónico; mas nao é possível ignorar as sombras cavalaria crista, o Tasso: quicá o modelo do fidalgo louco
escuras de angustia barroca em Persiles y Segismunda. Na e genialmente simpático. Mas Cervantes conseguiu, pelo
dedicatoria do romance, escrita poucos dias antes de mor- humorismo, resolver a contradicáo entre a prosa e a poesía.
rer, Cervantes cita "aquellas coplas antiguas, que fueron Sua obra sutilmente multiforme é um bloco homogéneo.
en su tiempo celebradas, que comienzan:
A demonstragao da homogeneidade da colegáo das
Novelas Exemplares, por Casal duelo, combina bem com o
"Puesto ya el pie en el estribo", resultado da análise estilística da Obra inteira de Cervan-
tes, por Hatsfeld: demonstrando a unídade perfeita desta
. . . casi con las mismas palabras la puedo comenzar, di- Obra. O estilo de Cervantes foi, do comégo até o fim, o
ciendo:
estilo idealista da Renascenga, revelando ésse idealismo a
tendencia de acentuar-se cada vez mais. A particularidade
"Puesto ya el pie en el estribo, da Segunda Parte do Dom Quixote é o tom solene; em
con las ansias de la muerte, Persiles y Segismunda, já é quase "estilo religioso". A ex-
gran señor, esta te escribo." pressao do "erasmiano" nao foi embaragada ou recalcada,
mas evolveu para o Barroco, ao qual pertence o elemento
Todos os biógrafos de Cervantes citam o prefacio; porém fantástico de Persiles y Segismunda. A interpretagáo de
as mais comoventes interpretagóes biográficas nao expli- Américo Castro pode ser mantida, mas necessita de urna
cam bem porque o autor do Dom Quixote morreu com ver- modificagao, levando-se em conta o "Barroco ideal" des-
sos de um "romance" romántico na boca. tacado por Casalduero. O realismo de Cervantes nao foi,
O fenómeno Cervantes é muito mais complicado do como em Alemán, o resultado, e sim um método para rege-
que se pensava. Com razáo se salientaram os elementos nerar o falso idealismo, para restabelecer a verdadeira
platónicos e renascentistas em sua obra. Mas também com "cavalaria", a do "miles christianus"; apenas, Cervantes
razao Casalduero destaca os elementos de Barroco ideali- nao logrou manter o equilibrio superior e precario entre
zado, em Cervantes, apoiando-se especialmente na demons- idealismo e prosa, porque ésse equilibrio já se tornara im-
tradlo bem sucedida da homogeneidade das Novelas Exem- possivel em pleno Barroco. Neste sentido, Persiles y Se-
plares: sao todas elas, sem excegao, expressóes de um ele- gismunda é realmente a obra definitiva de Cervantes: a
vado idealismo moral, estritamente conforme á moral severa única na qual o grande humorista desee do seu trono de
e aristocrática da Contra-Reforma. Cervantes, espirito livre superioridade olímpica, confessando as angustias infinitas,
e súdito ortodoxo dos reís Fílipe I I e Filipe I I I , tampouco "las ansias de la muerte", da vida humana. Com razáo
foi hipócrita como Descartes, em cujo pensamento também observou Azorín que justamente essa obra, declarada "an-
existem elementos aristotélico-escolásticos. Num livro de tiquada" por urna crítica inepta, "es el libro que nos da
preferencia de Cervantes, a Philosophia antigua poética más honda sensación de continuidad, de sucesión, de
(1596), de López Pinciano, encontrou o autor do Dom vida.... hay pocos libros tan vivos y tan modernos como
Quixote o problema da relacáo entre a ficcao e a verdade. éste." O Dom Quixote é a obra de importancia universal,
embora devendo em parte essa importancia, como acontece

1118 07TO MAHIA C A R P E A U X HISTORIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1119

t a n t a s vézes, a u m equívoco. Persiles y Segismunda só a g o r a r e n g a : Q u e v e d o n a o s e r e a l i z o u p l e n a m e n t e só e m o b r a s


s e c o m p r e e n d e u como o lado b a r r o c o d e C e r v a n t e s , q u e foi d e ficgáo, e s i m na poesía. A p o p u l a r i d a d e d a s d u a s s á t i r a s
r e a l i s t a e i d e a l i s t a ao m e s m o t e m p o . O Dom Quixote é s e u e c l i p s o u u m t a n t o o g r a n d e p o e t a lírico, n a o o m a i s i n s -
l i v r o p a r a t o d o s o s t e m p o s . Persiles foi a obra d e i m p o r - pirado, porém o mais completo da literatura espanhola. O s
t a n c i a h i s t ó r i c a i m e d i a t a : d o e l e m e n t o r e a l i s t a do B a r r o c o e d i t o r e s d o s e u Parnaso Español — e Quevedo representa
viveu o p i c a r o ; o e l e m e n t o i d e a l i s t a e n c o n t r a r á a s u a con- u m p a r n a s o i n t e i r o — c l a s s i f i c a r a m as p o e s í a s s e g u n d o os
t i n u a d o no intelectualismo rebelde de Gracián; o elemento r e i n o s d a s n o v e m u s a s : a s p o e s í a s h e r o i c a s d e Clio, a s s á -
r e a l i s t a , em Q u e v e d o . A s í n t e s e , p o r é m , é a p e n a s c e r v a n - t i r a s m o r á i s d e P o l í m n i a , a s cangóes f ú n e b r e s d e M e l p ó -
t i n a : é a c o n s e q ü e n c i a p o é t i c a d a d e r r o t a vital do h o m e m mene, as poesías eróticas de É r a t o e E u t e r p e , os "bailados"
antibarroco em pleno Barroco. Foi oportunamente que de Terpsícore, as poesías burlescas de Talia, as poesías
V a l b u e n a P r a t c i t o u o s v e r s o s d e Don Pedro de Urdemalas: moráis de Calíope e as poesías sacras de Urania. A clas-
sificagao é p o u c o feliz, m a s d á i d é i a da r i q u e z a a s s o m b r o s a
d o p o e t a l í r i c o Q u e v e d o , s e n h o r d e t o d o s o s estilos e m o -
" T u p r e s u n c i ó n y la m í a
d u l a r e s d a voz, d o n o a b s o l u t o da l í n g u a . É " p o e t a d e
han llegado a conclusión;
ocasiáo", no sentido de G o e t h e : a expressáo poética lhe
la m í a sólo en ficción,
a c o m p a n h a a s fases e i n c i d e n t e s da v i d a a g i t a d a d e e s t u -
la t u y a c o m o d e b í a . "
dioso, cortesao, m i n i s t r o da Fazenda do vice-reino de Ña-
póles, diplomata, conspirador contra a república de Veneza.
Os mesmos versos poderiam servir de epígrafe á vida p o l í t i c o m a i s o u m e n o s m a q u i a v e l i s t a , c a i n d o na d e s g r a c a ,
e literatura de Francisco de Q u e v e d o (T). Com esta dife- p r i s a o e p e n i t e n c i a final. É u m " s e c r e t a r i o " , f i g u r a t í p i c a
do Barroco, homem da agáo; a literatura significa, para
ele, a p e n a s i n s t r u m e n t o das s u a s a m b i g o e s e r ó t i c a s e p o l í -
7) Francisco de Quevedo y Villegas, 1580-1645. (Cf. 'Tastorais, t i c a s , e, n o fim, e x p r e s s á o d a s d e s i l u s o e s . E x p r e s s á o b a r -
Bpopélas e Picaros", nota 66.)
roca de u m h o m e m barroco, e v i d e n t e m e n t e ; mas impoem-se
El sueño del Juicio final (nos Sueños: El sueño de las calaveras;
1606); £2 alguacil endemoniado (nos Sueños: El alguacil algua- c e r t a s r e s t r i g o e s dessa d e f i n i g á o .
cilado; 1607); El sueño del ¡n/erno (nos Sueños: Las zahúrdas
de Plutón; 1608); España defendida y los tiempos de ahora (1609); O p o n t o d e p a r t i d a é, c o m o o d e C e r v a n t e s , o p a t r i o -
El mundo por de dentro (p. IV dos Sueños; 1610); Grandes ana-
les de quince días (1621); El sueño de la muerte (nos Sueños: t i s m o e s p a n h o l . M a s j á n a o é o t e m p o d o r o m a n t i s m o ale-
La visita de los chistes; 1623); Historia de la vida del Buscón g ó r i c o d a Numancia. " O h d e s d i c h a d a E s p a ñ a " , diz o p u b l i -
(1626); Política de Dios, gobierno de Cristo y tiranía de Satanás c i s t a da España defendida y los tiempos de ahora, " r e v u e l t o
(1626); Cartas del Caballero déla Teneza (1627); Los Sueños
(1628); £2 entremetido, la dueña y el soplón (prlmeiro titulo:
Discurso de todos los diablos o Infierno enmendado; 1628); La
Cuna y ¡a Sepultura (1634); La hora de todos y la Fortuna J . Juderías: Quevedo, la época, el hombre, las doctrinas. Ma-
con seso (1636); Vida de Marco Bruto (1644); Vida de San drid, 1923.
Pablo (1644); El Parnaso Español (L.I-VI, 1648; l.Vü-IX, 1670). L. Astrana Marín: Quevedo y su época. Madrid, 1925.
Edlsdes por A. Fernández-Guerra y Orbe, 3 vols., Sevilla, 1897/ R. Bouvler: Quevedo, homme du Diable, homme de Dieu. [Tra-
1907, e por L. Asinina Marín, 2 vols., Madrid, 1932. ducao castelhana.l Buenos Aires, 1945.
B. Mérlmée: Essai sur la vie et les oeuvres de don Francisco O. Lira: La visión política de Quevedo. México, 1949.
de Quevedo. París, 1886. E. Catllla: Quevedo, entre dos centenarios. Tucumán, 1949.
Dámaso Alonso: Poesía española. Madrid. 1950.

1120 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1121

he mil veces en la memoria t u s antigüedades y anales, y no neste poeta do pré-barroco Tasso — para revalorizar o clas-
he hallado por qué causa seas digna de tan porfiada per- sicismo renascentista. Mas o estilo do próprio Quevedo nao
secución." O contraste entre a grandeza de há poucos anos é renascentista, é pré-renascentista, "flamboyant". Negan-
e a desgraga dos "tiempos de ahora" inspira-lhe os senti- do a evolusáo da Renascenca ao Barroco, Quevedo caiu no
mentos mais amargos contra o materialismo reinante do extremo oposto, abrasando o conceptismo, especie de ginás-
"poderoso caballero don D i n e r o " : a sátira contra o amora- tica do pensamento; estilo que se presta a reservas mentáis
lismo miserável por tras da resplandecente fachada aristo- e subterfugios sutis. O conceptismo é um estilo essencial-
crática, no romance picaresco La vida del Buscón; a pa- mente hiperbólico, e a hipérbole é o instrumento principal
rodia de La hora de todos y la Fortuna con seso, n a qual da sátira quevediana: exageros grotescos das monstruosi-
um Júpiter grotesco a maneira de Offenbach tem de cur- dades reais déste mundo, e diminui$oes burlescas do que
var-se perante a Fortuna. É bem barroca, bem naturalista, néle passa por grande e considerável. Mas o conceptismo
esta sátira: a luz sombria da realidad e desmascarando as
também é o método indicado para evitar conclusoes, e neste
divindades brilhantes e falsas da Renascenca.
sentido censurou Azorín a reserva quase tímida de Que-
Um desfile de tipos da sociedade barroca, tal como no vedo em atravessar a fronteira entre sátira moral e denun-
Buscón, colocado naquele H a d e s burlesco, eis o ambiente cia social. A ordem estabelecida por Estado e Igreja nunca
da sátira mais famosa de Quevedo; Los sueños, a propó- é posta em dúvida. Bergamín salienta, porém, a inutilidade
sito dos quais já se falava em Dante. Com efeito, trata-se de reivindicacóes sociais no mundo quevediano, "llamado a
de um Juizo universal no outro m u n d o : dos poetas, comer- desaparecer", porque tudo é váo e nulo, inclusive, as rei-
ciantes, ministros, juízes, em "El alguacil alguacilado"; vindicacóes. Mas — a dialética de Quevedo só pode ser
dos bajuladores, alcoviteiros, astrólogos e heréticos, ñas interpretada com muitos "mas" — há nisso urna confusao
"Zahúrdas de Plutón"; dos médicos, farmacéuticos, bar- entre expressao e ideologia. A expressao de Quevedo é
beiros, charlataes, em "La visita de los chistes". É urna barroquíssima, expressao perfeita da ortodoxia católica da
Divina Comedia burlesca; mas a sátira contra todas as classe aristocrática; contudo, o próprio Azorín admite a
classes e profissoes lembraria antes as dancas macabras irreverencia na sátira e até ñas obras serias de Quevedo.
medievais — a própria irreverencia de Quevedo é mais Dámaso Alonso, embora preocupado em salvar a ortodoxia
medieval do que moderna — se nao fósse a amargura bar- de Quevedo, lembra-se, a propósito de Los sueños, dos
roca de desilusáo, do desmascaramento das vaidades mun-
caprichos e caricaturas monstruosas do liberal revolucio-
diais, como em El mundo por de dentro. Mundo sombrio
nario Goya. Quevedo é o espirito mais inquieto do século;
que foi bem comparado as visóes diabólicas de Hieronymus
e impóem-se algumas distingoes, nunca sutis demais quan-
Bosch — será preciso um estudo das qualidades do "gótico
do se trata de um escritor sutilíssimo. ,«í_i* . : '-5'H
flamboyant" no estilo de Quevedo — e de Goya, mas a
que nao falta inteiramente a luz sobrenatural da visao do As últimas obras de Quevedo sao ascéticas. É ascética
Greco. Quevedo é barroco, mesmo contra a vontade: pois a despedida do político derrotado, que parece consolar-se
Quevedo foi o maior inimigo do estilo barroco em literatura. com o subtítulo dramático da sua Vida de San Pablo: "La
Nao perdeu ocasiao de zombar de Góngora, e publicou as caida para levantarse". O pensamento do asceta Quevedo
poesias do esquecido Francisco de la Torre — escapou-lhe continua estoico. Mas é diferente do estoicismo comum do
Barroco. Distinguindo-se do estoicismo pessimista do pie-

1122 OTTO M A R Í A CAHPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1123
beu Alemán, o do aristócrata Quevedo é altivo e ativo, ven-
cido mas prestes a "levantarse". Nao é estoicismo barroco. expressao "muerte callada" e ao idealismo (no sentido fi-
Basta a comparacáo com urna das poesías mais famosas de losófico) dos versos fináis:
língua espanhola, a anónima "Epístola moral a Fabio" ( 8 ),
síntese única do estoicismo erudito á maneira de Séneca e " . . . rompí los lazos.
do estoicismo popular que é a filosofía das esquinas de Ven y verás al alto fin que aspiro
rúa na Espanha antiga. O tema desta síntese é o lugar- Antes que el tiempo muera en nuestros brazos."
comum horaciano "Beatus ille qui procul n e g o t i i s . . . . " , a
A "Epístola moral a Fabio" pertence, pela forma, á cor-
retirada da vida engañadora da corte para a solidáo:
rente classicista, antibarróca, dentro da poesía barroca; por
isso foi desprezada pelos neogongoristas, e é hoje revalo-
"Fábío, las esperanzas cortesanas rizada como documento ideológico de urna secreta "reli-
prisiones son do el ambicioso muere"; giáo" laicista, estoica, em pleno Barroco contra-reformista,
do qual possui a tonalidade sombría. O poema revela a
mas a mentalidade que inspira a versao é táo típicamente possibilidade de expressao de urna ideología barroca em
espanhola que lembrou a Luiz Cernuda as Coplas de Jorge forma clássica, sugerindo a possibilidade da expressao de
Manrique. O nobre classicismo do poema parecía colocá-lo urna ideología humanística — e meío medieval — em forma
no século XVI. Na Renascenca, porém, nao haveria sido barroca: o que acontece em Quevedo, em que o extremo
possível a versao do horaciano "Ule mihi terrarum angu- Barroco se transforma dialéticamente em Antibarroco.
lus " como O estoicismo de Quevedo nao é o estoicismo barroco
da "Epístola moral"; é antes o estoicismo renascentista de
"Un ángulo me basta entre mis lares, Justus Lipsius, com o qual estava Quevedo em relacoes, e
Un libro y un amigo, un sueño breve". cuja filosofía lhe inspirou a mais predileta das suas obras,
a Vida de Marco Bruto. Nao é estoicismo de resignacáo
O livro e o amigo sao da época do Cortegiano; o "sueño barroca, mas de conduta política. E a conduta política é o
breve", já nao. E o ascetismo chega até ao misticismo da grande problema da época e o problema pessoal de Quevedo.
A Vida de Marco Bruto é um "espelho de principes";
8) "Epístola moral a Fabio" (c. 1626). o genero é barroco. Mas o fim é "enmendar el mundo", e
(Atribuida, sucesivamente, a Francisco de Rioja, Francisco de sobretudo a Espanha decadente. ]?m Quevedo, como em
Medrano, Rodrigo Caro, e, por Adolfo de Castro, a Andrés Fernán- Miguel Angelo, nao há pensamento
dez de Andrada.)
A Epístola figura em todas as antologías da poesía espanhola.
R. Foulché-Delbosc: "Les manuscrits de lEpístola moral a Fa- "que no fuese recuerdo de la muerte."
bio". (In: Revue Hispanique, 1900.)
A. Balg Baños: Rodrigo Caro, autor de la Epístola moral a As suas expressoes fúnebres parecem-se, as vézes, com as
Fabio. Madrid, 1932.
Q. Diaz-Plaja: La poesía lírica española. Barcelona, 1937. de Góngora —

M. Zambrano: Pensamiento y poesía en la vida española. México, "Azadas son le hora y el momento
1939.
L. Cernuda: "Tres poemas metafísicos". (In: ínsula, 1948.) cavan en mi vivir mi monumento."
1124 Orro MARÍA CARPEATJX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1125

Mas o que predomina em Quevedo é o sentido do tempo, panorama da política maquiavelista; em La Hora de todos
da durée: combate, em forma burlesca, a resistencia astuta dos ma-
quiavelistas contra a " F o r t u n a " ; na Política de Dios, oíe-
"Ya no es ayer, mañana no ha llegado, receu o manual de conduta política e humana que ele mesmo
hoy para y es, y fué, con movimiento renegou ñas suas atividades políticas na Italia. Nessa con-
que a la muerte me lleva despeñado." tradicáo encontra-se a resposta do desespero patriótico do
escritor: "no he hallado por qué causa seas digna de tan
A fórca motriz do seu pensamento fúnebre é o aspecto da porfiada persecución." A política espanhola, abandonando
decadencia espanhola. o universalismo de Carlos V e Erasmo, tornara-se imperia-
lista e contra-reformista, adotando o maquiavelismo que os
"Miré los muros de la patria mía seus principios cristaos lhe proibiram. A vida política de
Si un tiempo fuertes, y a desmoronados, Quevedo é urna "novela exemplar", simbolizando essa con-
De la carrera de la edad c a n s a d o s . . . " , tradicao. Os elementos da ideología sao humanísticos: a
síntese contraditória é barroca. Déste modo nasceu do
humanismo derrotado de Quevedo a contradigao mais po-
diz Quevedo, quase como um espanhol desesperado da derosa do século X V I I : a sua sátira mais violenta.
gera§áo de 1898. Contudo, nao é exato chamar-lhe "huma-
nista em forma barroca". A ideología de Quevedo é táo O mesmo problema político apresentou-se ao espirito
ambigua como a sua personalidade; e certamente nao é tolerante, "liberal", de Saavedra Fajardo ("): a decadencia
erasmiano. A mitología grotesca dos Sueños nao teria sido espanhola só pode ser remediada pela execugao inteligente
possível na Renascenca; e é preciso observar que Las za- da política maquiavelística, á qual se opoem, porém, os
húrdas de Plutón se chamavam, na primeira versao, El fins cristaos da política espanhola. Saavedra Fajardo pensa
sueño del Infierno. A modificagao de varios títulos de como um liberal do século X I X : explica a decadencia da
obras de Quevedo e a transformagao do seu Inferno cris- patria pelas conseqüéncias nefastas das descobertas, pela
t í o em Olimpo burlesco é resultado da opressao inquisi- expulsao dos mouros e judeus, pelas guerras ¡núteis. Mani-
torial, da censura. O humanismo de Quevedo limita-se á festa um pacfismo bem erasmiano, em expressoes que o
oposicao contra o aristotelismo oficial; por isso, também humanista liberal Ludovico Vives assinaria: "Muchas veces
é adversario da poesía aristotélica, do culteranismo de Ma-
rino e Góngora. O estoicismo de Quevedo parece huma-
nista, porque reage contra a ética aristotélica: o "buen 8) Diego de Saavedra Fajardo. 1548-1648.
Idea de un principe político-cristiano representada en Cien Em-
tirano" e o "mal leal" que aparecem na Vida de Marco presas (1640); La República literaria (1665).
Bruto, lembram Antonio Pérez e as personagens maquia- Edicóes: Biblioteca de Autores Españoles, vol. XXV; por V.
vélicas da tragedia senequiana. Mas o que Quevedo opoe García de Diego (Clásicos Castellanos); e por A. González Po-
tencia, Madrid, 1946.
ao maquiavelismo nao é a ética aristotélico-tomística dos J. M. Ibafiez García: Saavedra Fajardo. Estudio sobre su vida
jesuítas, nem a conduta de "miles christianus" erasmiano, y sus obras. Murcia, 1884.
e sim a de um "miles christianus" estoico. Nos Grandes F. Cortines: ideas jurídicas de Saavedra Fajardo. Sevilla, 1907.
Azorin: Saavedra Fajardo. (In: Lecturas españolas. Madrid, 1912.)
anales de quince dias deu Quevedo um breve e perfeito P. Frank de Andrea: "Lo Barroco en Saavedra Fajardo". (In:
Studium, agosto de 1950.)
1126 OTTO M A R Í A CAHPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1127
se levantan las armas con pretexto de celo de la mayor
gloria de Deus y causan su mayor deservicio; otras por la naram possível a expressao do maquiavelismo político do
religión, y la ofenden; otras por el público sosiego, y le Político e do maquiavelismo individual do Oráculo manual
perturban; otras por la libertad de los pueblos, y los opri- y arte de prudencia; tratando outros assuntos, insuspeitos,
men." A forma estilística das Cien Empresas é barroca; é nos seus poucos escritos religiosos, Gracián escreveu em
um "espelho de príncipes" em estilo emblemático, tao caro estilo simples, sem reticencias e sutilidades. Essa dobrez
ao Barroco. O humanista liberal Saavedra Fajardo nao de Gracián agradou muito a Schopenhauer, tradutor do
conhece outra solucao do problema espanhol além da tra-
Oráculo manual; o filósofo alemao revelou contradicáo
dicional, que se diz antimaquiavelistica e é maquíavelística.
A solucao radical encontra-se na literatura do jesuíta semelhante entre a prosa sublime do seu pessimismo cós-
Baltasar Gracián ( l 0 ) ; retomando o maquiavelismo aristo- mico e as ligoes de prudencia egoística dos seus aforismos.
crático da Renascenga, transforma-o em outro, o da bur- Com efeito, as "particularidades" ideológicas do jesuíta já
guesía dos séculos vindouros. De maneira alguma parece foram explicadas, assim como seu pessimismo: ésse teria
Gracián pertencer, ideológicamente, ao seu tempo; mas é sido simples mau humor de professor decepcionado, e
forcado a exprimir-se de maneira sutil, hiperbólica e elíp- aquetas, apenas veleidades obstinadas de um clérigo recal-
tica. É conceptista e — quase — o escritor mais barroco citrante, em permanente "incompatibilidade de genio" com
do Barroco.
os seus superiores na Companhia de Jesús. Até Menéndez
Gracián é o teórico do conceptismo: na Agudeza y arte y Pelayo, ao réstabelecer a gloria de Gracián, só o elogiou
de ingenio ensinou os processos estilísticos que Ihe tor- como grande estilista; pouco depois, a geragáo de 1898
entrou a considerá-lo como o pensador mais profundo da
io) Baltasar Gracián, 1601-1658. literatura espanhola.
SI Héroe (1637); Sí Político (1640): Agudeza y Arte de Ingenio
(1642); El Discreto (1646); Oráculo Manual y Arte de prudencia Na verdade, os conflitos de Gracián com a Companhia
(1653); Criticón (1651/1653. 1657). de Jesús só foram, realmente, casos de disciplina monás-
Edlcao crítica do Criticón por M. Romera-Navarro, 3 vols., Phl-
ladelphia. 1938/1940. tica; lembram as dificuldades de Mariana. Mas, desta vez,
Edlfáo de Héroe, Discreto e Oráculo Manual por A. Reyes, Ma- os superiores tinham plena razio. Mariana levara o anti-
drid. 1918.
A. Coster: Baltasar Qracián. New York, 1913. maquiavelismo teórico ao absolutismo incipiente. Gracián
F. nao revelou segredos da Companhia, a nao ser um segrédo
1916.Maldonado: Qracián como pesimista y político. Salamanca,
A. F. G. Bell: Baltasar Gracián. Oxford, 1921. que toda a gente conhecia, quando invocou a prática ma-
0 . Marone: Morale e política di Baltasar Qracián. Napoll, 1925. quíavelística da Companhia para apreciá-la á teoria da con-
1. F. Montesinos: "Gracián o la Picaresca pura". (In: Cruz duta humana. O "herói", "político", "discreto", de Gracián,
y Raya. juDio de 1933.)
A. Reyes: Capítulos de literatura española. México, 1939. é um tipo moral, tao "perfeito" como o "cortegiano" da
M. Romero-Navarro: "Das alegorías del Criticón". (In. Hispanic Renascenga; mas é "prudente" como um jesuíta, e essa
Review, rx, 1941.) "prudencia" é um maquiavelismo requintado e polido. A
F. Schalk: Baltasar Gracián und das Ende das Siglo de Oro.
(In: Romanlsche Forschnungen, LTV, 1940, e LV, 1941.) base dessa atitude é o desprézo da natureza humana. Gra-
J. García López: Baltasar Gracián. Buenos Aires, 1947. cián aprecia os homens como o seu contemporáneo La
1

1128 OTTO M A R Í A CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1129
Rochefoucauld; a vida lhe parece luta permanente e im-
fonso Reyes considera Gracián como pragmatista, Azorín,
placável entre egoístas irremediáveis. Mas nem por isso
como intelectualista. Na verdade, o pragmatismo pedagó-
pensa em amaTdifoar o m u n d o ; tao-sómente "to make the
gico de Gracián é mero instrumento disciplinar para con-
best of it", isto é, fazer tudo para que os melhores vencam
seguir a racionalizacáo e intelectualizacáo do homem ins-
e dominem os outros, os ineptos e imbecis. Nisto reside
tintivo. Assim, Gracián pretende ensinar como criar urna
aquilo a que Azorín chamou o "nietzschianismo" de Gra- nova élite em s u b s t i t u i d o da antiga, já quixotesca; e, se
cián; nao se trata, porém, de urna antecipacao anacrónica, nao conseguiu ésse fim, pelo menos antecipou o futuro.
e sim do desenvolvimento implacávelmente lógico do con- O romance pedagógico Criticón, que parece continuacao
ceito das élites, que foi o conceito político fundamental da conceptista das Soledades de Cóngora, é precursor do ro-
Companhia de Jesús. As élites tém de dominar o mundo. mance pedagógico Robinson Crusoe, em que se forma o
Mas como consegui-lo? É possível, porque a Fortuna nao "homo novas" do capitalismo e utilitarismo. A disciplina
é, como no "maquiavelismo" de Maquiavel, a grande adver- dos instintos em Gracián nao é muito diferente da "ascese
saria da "virtü"; é possível conquistar a Fortuna, a ponto de trabalho", base calvinista da mentalidade burguesa,
de ela se tornar aliada do homem, de modo que, enfitn, a segundo Max Weber. A i n t e r p r e t a d o da vida como luta
moral e o sucesso coincidam. Entao o maquiavelismo já de egoísmos antecipa a interpretacáo semelhante de Man-
nao teria nada de imoral, de anticristáo; seria até urna deville e as harmonías preestabelecidas do liberalismo
diretriz da conduta crista, e o grande problema político e económico de Adam Smith. A coincidencia de sucesso e
moral do Barroco estaría resolvido. Mas como vencer a moral resolveu realmente o problema barroco do maquia-
Fortuna? Por meio de urna autodisciplina rigorosa; como velismo; mas de um modo que excedeu a vontade e as
jesuíta, Gracián é em primeira linha pedagogo, professor possibilidades do Barroco aristocrático. Gracián antecipou
de energía. o novo maquiavelismo da nova élite burguesa. A sua ex-
pressao é barroquíssima; mas só principiou a ser compre-
A pedagogía de Gracián vence o pessimismo barroco. endida quando o "siglo de oro" da literatura espanhola já
No romance picaresco, o mundo aristocrático da Renas- passara, e a hegemonía literaria coube, em toda a parte,
cenca é desvalorizado, como "ilusión" e "engaño"; o picaro ao classicismo francés, até na Espanha dos Bourbons.
chega ao "desengaño" pela víagem trabalhosa através do Gracián morreu em 1658; mas o seu éxito internacional só
Inferno barroco. É urna solucao crista. Nao tem outro fim comecou por volta de 1680; e na perspectiva histórica o
o romance picaresco do protestantismo, o Pilgrim's Pro- jesuíta aparece como o último grande escritor da Espanha
gress do viajante e picaro puritano Bunyan. O jesuíta barroca, antes de a hegemonía passar para a Franca e ini-
Gracián é menos tradicionalista que o sectario protestante. ciar-se o caminho para a Revolucao da Burguesía.
Andrenio e Critilo, os heróis do romance alegórico Cri-
ticón, representantes do homem no estado da natureza pri- A derrota de um Quevedo, de um Saavedra Fajardo,
é a de espanhóis que se rebelam contra o espanholismo.
mitiva e do homem civilizado, viajam, como o romeiro de
Mas logo a Europa inteira se levantará contra a domina-
Bunyan, pelas paisagens alegóricas da civilizagáo humana;
cao da grande potencia do Barroco; entre os primeiros, os
mas o ponto final nao é a redencáo, e sim a cultura. A!
portugueses.
1130 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATUBA OCIDENTAL 1131

Ambigüidades e hesitacoes da transicao caracterizan! liberalismo á maneira de Saavedra Fajardo se alia ao pa-
o portugués D. Francisco Manuel de Meló ( u ) . grande es- triotismo á maneira de Quevedo. Mas Vieira é mais auda-
critor em lingua portuguesa e em língua espanhola, hu- cioso que os outros. Fala com eloqüéncia torrencial em
manista e homem de acáo como Quevedo, estoico como favor dos judeus e dos indios escravizados, contra os im-
Lipsius, crítico literario de modernidade surpreendente, e postos injustos, propugnando nova política colonial, razoá-
que antecipa a atitude da oposigáo na "Querelle des An- vel e mercantilista. As suas "heresias", que o imcompati-
ciens et Modernes". Salvou-se de conclusoes talvez dema- bilizaram com a Inquisicáo, chegam a prof issoes de fé meio
siado perigosas, dedicando-se ao esteticismo de urna grande ocultistas; mas ainda nao se sabe se o sebastianismo de
cultura estilística, bilingüe. É, porém, mais urna vez, uin Vieira foi residuo da idéia de urna "Terceira Igreja" eras-
jesuíta rebelde quem antecipa o f u t u r o : o autor de urna miana ou, talvez, joaquimita. Em todo caso, podia utilizar
Historia do Futuro, o P. e Antonio Vieira ( 1 2 ). Como esti- o sebastianismo utópico da superstigáo popular em favor
lista, é tao barroco quanto Quevedo e Gracián, e mais do da nova dinastía portuguesa e contra os espanhóis. O Anti-
que Segneri. Urna erudigao enciclopédica e a experiencia barroco em forma barroca ataca os fundamentos politicos e
de urna vida agitadíssima de 90 anos fornece-lhe a abun- sociais do edificio de que aquéle estilo é a expressáo.
dancia de imagens e metáforas que impressionaram o secuto.
A revolta portuguesa contra a Espanha é um de varios
Como pregador e como epistológrafo, Vieira é um grande
sintonías políticos de urna revolta ideológica geral. Os pri-
jornalista, a servido de urna política corajosa, na qual um
meiros grandes ideólogos antiespanhóis sao os herdeiros
¡mediatos da Renascenca, os italianos. No "Hospital das
Letras", a espirituosa sátira literaria de D. Francisco Ma-
11) Francisco Manuel de Meló, 1608-1666. nuel de Meló, aparece como interlocutor, ao lado de Lipsius
Historia de los movimientos y separación de Cataluña y de la
guerra (1645); Carta de Guia de Casados (1651); Epanáforas
e Quevedo, o italiano Trajano Boccalini ( 1 S ), um dos cria-
de Varia Historia Portuguesa (1660); Cartas Familiares (1664); dores do género de crítica literaria em forma alegórica,
El jidalgo aprendiz (1665); Apólogos Dialogáis (publ. 1721). nos seus famosos Ragguagli di Parnasso. Boccalini finge-se
Edicáo da Historia por J. O. Picón, Madrid, 1912. secretario da corte de Apolo, que convocou um parlamento
Edicáo do Guia de Casados por Camilo Castelo Branco, P6rto,
1873. dos maiores homens de todos os tempos para resolver os
Edic&o dos Apólogos por F . Nery, Rio de Janeiro, 1921. problemas atuais da época. Em primeiro plano, trata dos
Camilo Castelo Branco: Boémia do Espirito. Porto, 1886. problemas literarios: Lodovico Castelvetro, o teórico anti-
E. Prestage: Dom Francisco Manuel de Meló. Colmbra, 1914.
12) Antonio Vieira, 1608-1697.
Sermóes (15 vols.. 1679/1748): Cartas (3 vols., 1735/1746). 13) Trajano Boccalini, 1556-1613.
Edicáo das Obras Completas por J. M. Seabra e J. Q. Antunes, Ragguagli di Parnasso (1612/1613).
27 vols., Lisboa, 1854/1858. Edicáo por O. Rúa, 2 vols., Barí, 1910/1912.
Edic&o das Cartas por L. Azevedo, 3 vols., Colmbra, 1925/1928. G. Mestlca: Trajano Boccalini e la ¡etteratura crítica e politica
E. Carel: Antonio Vieira, sa vie et ses oeuvres. Paris, 1879. del Selcento. Firenze, 1878.
L. Cabral: Vieira Pregador. 2 vols. Porto, 1901. G. Si lineara!: La vita, i tempi e le opere di Trajano Boccalini.
L. Azevedo: Historia de Antonio Vieira. 2.a ed. 2 vols. Lisboa, Modena, 1883.
1931. M. Stirpe: L'opera e ü pensiero político di Trajano Boccalini
H. Cidade: Padre Antonio Vieira. Estudo Biográfico e Critico. Roma, 1920.
Lisboa, 1940. S. Natali: Trajano Boccalini. Milano, 1934.
M. C. Gotaas: Sossueí and Vieira. Washington, 1953. A. Bellonl: Trajano Boccalini. Torlno, 1940.
.

1132 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1133

aristotélico, insinúa ao deus as resolucoes mais mordazes Franca. De longe, parece figura táo barroca como Que-
contra as letras barrocas. O relator dos negocios políticos vedo; e tao rebelde como G r a d a n . Barroca é a sua erudi§áo
é Castiglione, que manda medir as cadeias espanholas da enciclopédica e confusa, em que a magia desempenha papel
Italia; achando-as grandes demais, propoe reduzi-las por importante. Barroco é o estilo abundante da sua prosa.
meio de limas francesas, inglesas, ou até turcas; e a con- Barrocas, as suas idéias políticas, teocráticas; já houve
fecgao de um mapa político da Europa torna-se difícil, por quem acreditasse que o "Estado" teocrático e meio socia-
ser impossível determinar a verdadeira longitude da Curia lista dos jesuítas no Paraguai se baseava em conceitos cam-
Romana. Boccalini é o Quevedo italiano, mais direto e panellíanos. De perto, os aspectos mudam. Como filósofo,
menos barroco. Os herdeiros imediatos da Renascenca Campanella nao é táo "moderno" quanto se acreditava, e
parecem, em comparadlo com os espanhóis contemporáneos, sobretudo nao é possível atribuir-lhe idéias deístas; Cam-
quase clássicos. Tassoni ( " ) • n a s suas Filippiche contro- panella é discípulo do último grande platónico da Renas-
gli Spagnuoli, revela eloqüéncia demosteniana; mas o Du- cenca italiana, Telésio, continuando-lhe o antiaristotelismo
que de Piemonte, ao qual se dirigiu, podía tao pouco contra algo fantástico. Expressáo do seu antiaristotelismo é a
os espanhóis como a república de Veneza, cuja protecao sua poesia, á qual amigamente se deu pouca importancia,
Boccalini procurara; o satírico nao escapou á morte, tendo e que é hoje reconhecida como a mais sincera e mais pro-
sido, provávelmente, envenenado. funda do século X V I I italiano; é poesia antimarinista,
anti-hedonista, de fundo ético:
Como fórca internacional, política e estalística, o Bar-
roco espanhol caiu, quando, no terreno ideológico, se atacou
o aristotelismo, e no terreno político, se adotou o maquia- " l o nacqui a debellar tre malí estremi:
velismo. A reuniao impossível de aristotelismo teórico e Tirannide, sofismi, ipocrisia".
maquiavelismo prático foi o problema que os espanhóis
nao souberam resolver. O maquiavelismo antiaristotélico É um programa. A ortodoxia de dominicano nao lhe im-
tornou-se a doutrina pela qual o absolutismo francés pre- pede exigir, para tornar possível a realizacao do seu sonho
parou a ascensáo de urna nova élite, a burguesía. Um pre- teocrático, a reforma moral e espiritual da Igreja. Na ver-
cusor, dos maiores, désse movimento, é Tommaso Campa- dade, Campanella está entre o iluminismo sebastianista de
nella ('•''), o italiano antiespanhol que se passou para a Vieira e as esperanzas de urna "Terceira Igreja" dos fran-
ciscanos rebeldes do século X I I I , os da "Ecclesia spiritua-
14) Oí. "Pastorals, Epopéias e Picaros", nota 31. l i s " ; Campanella nasceu na térra de Joaquim de Fiore, na
15) Tommaso Campanella, 1568-1630. Calabria A Citta del Solé, de Campanella, é urna utopia
Ci'tii del Solé (1602). eclesiástica; e é digno de nota o fato de que o século bar-
Edlcao por O. Paladino, Napoli, 1920.
Poesías, edlt. por O. Gentile, Barí, 1915. <2.* ed., Flrenze, 1939 > roco ignora, em geral, as utopias, em que é t í o fértil a
C. Dentlce D'Accadla: Tommaso Campanella. Flrenze, 1921. Renascenca e, depois, a Ilustradlo do século X V I I I . Cam-
P. Treves: La filosofía política di Tommaso Campanella. Barí, panella nem se limita á utopia; como todas as grandes fi-
1930.
M. Valed! Campanella. Roma. 1931. guras do Antibarroco, é um homem de a$ao, embora ven-
G. Flores: "La lírica del Campanella". (In: Leonardo, X/9. 1939.) cido. Após haver defendido a realizacao da teocracia pelas
L. De Caxolls Pllottl: Tommaso Campanella poeta. Milano,. armas espanholas, passou-se ao patriotismo italiano, envol-
1942.
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1135
1134 OTTO MARÍA CARPEAUX

A doutrina de Jean Bodin sofrera a influencia do maquia-


vendo-se numa conspira$ao revolucionaria, antiespanhola,
velismo antimaquiavelístico do espanhol exilado Antonio
que teve de expiar em vinte e seis anos de prisáo durissima,
Pérez. O teórico da nova conduta é Gabriel Naudé ( i n ) ,
torturado até o martirio — a ninguém podem escapar os
glorificarlo!- cínico da violencia e da fraude para fins
acentos de verdade terrível em versos como estes:
políticos; Naudé foi o intermediario entre Campanella e
"Cinquanta prigione, sette tormenti Richelieu. A luz dessas relagóes apresenta-se menos escan-
Passai, e pur son nel pondo; dalosa a mésela de maquiavelismo e misticismo na "Emi-
E dodici anni d'ingiurie e di stenti", nence grise" de Richelieu, o P é r e Joseph. O iluminismo de
Vieira e Campanella tampouco os embaracou na política
e, com naturalismo mais p u n g e n t e : prática. No século das ortodoxias despertou o sectarismo.
A relativa tolerancia religiosa na Holanda, liberta dos
"Le memora sette volta torméntate, espanhóis, permitiu, no país dos místicos pré-erasmíanos,
II sol negato agli occhi, a Renascenca da "Terceira Igreja" e dos seus ideáis reli-
I nervi stretti, e'ossa scontinoate". giosos, que táo fácilmente se transformam em ideáis polí-
ticos. A seita dos arminianos, protestando contra o predes-
Durante ésses 26 anos de martirio escreveu Campanella os tinacionismo rigoroso dos calvinistas, aproxima-se bastante
seus inúmeros tratados filosóficos e políticos, tornou-se, do pelagianismo; e éste mesmo voltará, mais tarde, como
por vias clandestinas, o conselheiro de todos os príncipe» antropología otimista dos "filósofos" da Ilustracao. Certas
antiespanhóis da Europa; sólto, enfim, foi para a F ranga, expressoes dos arminianos cheiram a unitarismo e deísmo.
que lhe parecía destinada a realizar a política universalista Nesse ambiente surgiu Hugo Grotius ( 1 7 ), grande apolo-
que a Espanha tiránica traira. Campanella nao foi um entu- gista e maior jurista. As concessoes que fez ao catolicismo,
siasta lunático. A literatura italiana nao produziu, entre no seu famoso tratado De veritate religionis christianea,
Dante e Leopardi, poesía mais verdadeira que a désse espi- tém como origem o desejo ardente da uniáo — ou antes,
rito livre, embora confuso: reuniáo — das Igrejas separadas; mas o esfórco para re-

"Quindi l'ale sicura a l'aria porgo,


Né temo intoppo di cristallo o vetro; 16) Gabriel Naudé, 1600-1853.
Considératlons politiquea sur les coups d'état (1639).
Ma fendo i cieli, e a l'ínfinito m'ergo. C. A. Sainte-Beuve: Portraits llttéraires. Vol. II.
E mentre dal mió globo agli altri sorgo, 17) Hugo Grotius, 1583-1645.
E per l'etereo campo oltre penetro, Mare liberum (1609); De veritate religionis chrístianae (1622);
Quel ch'altri lungi vede, lascio al tergo." De jure belli ac parís (1625); Annotationes a ti Vetus Testamen-
tum (1644); Annotationes ad Novum Testamentum (1641/1647);
Annales et historiae de rebus belglcis (1657).
No "globo" terrestre, porém, sobre o qual se ergueu a alma V. Van Oijen: Hugo de Groot en zijn geslacht. Haarlem, 1883.
L. Neumann: Hugo Grotius. Berlín, 1884.
do sonhador martirizado, o seu sonho político realizou-se. H. Schlueter: Die Theologie des Hugo Qrotius. Leipzig, 1919.
O ambiente francés, em que entrou Campanella, estava W. S. M. Knight: The Lite and Works of Hugo Grotius. London,
ideológicamente bem preparado para a luta antiespanhola. 1925.
,

1136 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1137

duzir a distancia entre os credos leva a reduzir a impor- urna das obras principáis do maquiavelismo barroco italia-
tancia das diferencas dogmáticas e, finalmente, dos pró- no: a obra anónima Opinione del come abbia a governarsi
prios dogmas. Nos seus comentarios bíblicos, Grotius chega internamente ed esternamente la República di Venezia per
a antecipagoes da exegese crítica, de modo que o apologista conservare i¡ perpetuo dominio pubblico, escrita por volta
ocasionalmente fala como s e fósse livre-pensador. A ten- de 1615, e atribuida ao P.° Paolo Sarpi ( 1 8 ), conselheiro da
dencia do seu pensamento está mesmo nessa diregáo. Gro- República de Veneza, na luta contra as reivindicagoes da
tius é o renovador do Direito internacional, a ponto de o Curia Romana. Essas reivindicagoes, relativas á jurisdigáo
seu De jure belli ac pacis eclipsar a memoria de Vitoria. eclesiástica, baseavam-se nos decretos do concilio de Tren-
A interpretagáo grotiana do Direito natural no sentido da to, que a República se recusou a reconhecer; e para cora-
liberdade dos mares serviu aos interésses políticos e co- baté-las escreveu Sarpi a famosÍBsima Istoria del Concilio
merciáis da Holanda contra o monopolio espanhol; mas os Tridentino, demonstragáo h i s t o r i o g r a f í a da tese aeguinte:
motivos désse neo-erasmismo jurídico nao sao meramente o concilio de Trento nao conseguiu a reforma neccssária
ocasionáis. Antiaristotelismo filosófico e pelagianismo teo- da Igreja, porque nao foi inspirado pelo Espirito Santo, e
lógico deviam, juntos, levar á abolicao do "Direito natural si ni dirigido pelas intrigas e maquinagoes da Curia Romana
secundario" de Sepúlveda e dos jesuítas; e disso resultará e dos jesuítas. Pelo estilo, a obra distingue-se de toda a
um pacifismo mais radical e menos religioso que o de Las outra prosa do século: nao imita a eloqüéncia sublime de
Casas. É antes o comégo do liberalismo político, corres- Lívio nem a concisáo sombría de Tácito; relata os fatos
pondente ao liberalismo jurídico e económico. Principia com rigor lógico e precisao implacável. Estilo aparente-
a distingáo entre Direito natural e Direito divino; e o fim mente impessoal, e que é, no entanto, a expressao pessoal do
será um Direito natural que já nao precisa de sangáo reli- autor: Sarpi nao foi, como os seus inimigos o pintaram,
giosa: o dos "filósofos" e da Encyclopédie. Ñas vésperas um monge ambicioso, vendido ao govérno veneziano, mas
da Revolugáo, o Abade Raynal langa ao "ancien régime" e um espirito de grande estadista e, ao mesmo tempo, um
a Igreja a acusagáo dos crimes que cometeram ñas colonias religioso austero, cheio de zélo pela verdadeira reforma da
em nome do cristianismo: a Histoire philosophique et poli- Igreja. Religiosidade e lógica nao excluem ironía e viva-
tique des établissements et du commerce dos Européens cidade; Sarpi é um grande narrador, superior, nesse aspec-
dans les deux ludes (1770/1780) baseia-se principalmente to, a todos os historiadores modernos, menos a Gibbon, com
na documentagáo de Las Casas, que serviu, assim, para fun- o qual tem em comum a ironía mordaz, a capacidade de
damentar a "leyenda negra" do liberalismo contra "a Es- retratar em poucas palavras caricaturáis um adversario,
panha da Inquisigao". É o fim de um ciclo histórico. ferindo-o mortalmente. É até superior a Gibbon pelo rigor
da documentagáo, sempre de primeira mao; é um percursor
A transformagao do antimaquiavelismo espanhol em da historiografía crítica. A perigosa mistura de documen-
ideología revolucionaria francesa operou-se através do "An-
tibarroco", conjunto complicado de motivos maquiavelís-
ticos, antiaristotélicos e místicos. Os mesmos motivos sao 18) Paolo Sarpi, 1552-1623.
capazes de aparecer em outras combinacóes, das quais as Istoria del Concilio Tridentino (1619).
mais importantes contribuíram para a génese da historio- Edlcño por O. Gambarln, 3 vols., Barí, 1935.
A. Pascolato: Fra Paolo Sarpi. Milano, 1893.
grafía crítica e da física matemática. Em 1683 publicou-se G. Getto: Paolo Sarpi. Flrenze, 1941.
1138 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATUBA O C I D E N T A I 1139

tagáo exata e ironía satírica aproxima Sarpi de B a y l e ; mas muías físicas pertencem hoje ao patrimonio intelectual do»
nao sao estas as qualidades a que o padre deveu o bom meninos de colegio; é difícil, agora, imaginar a fórca lógica
éxito da sua obra, editada inúmeras vézes e traduzida para que foi necessária para organizar aqueles experimentoa a
todas as línguas. A Istoria del Concilio Tridentino tor- condensar-lhes o resultado, táo oposto aos conceitos vigen-
nou-se arma poderosa das monarquías absolutas na luta tes da física aristotélica, em fórmulas simples e lapidare».
contra o Papado; serviu ao galicanismo francés e á luta Algo daquela fórga ainda se nos revela ñas fórmulas pre-
antijesuítica do século X V I I I . Sarpi é o sucessor, após cisas do seu estilo. Galileu, fundador da física matemática,
grande intervalo, de Marsilius de Padua, cujo Defensor nao era grande matemático; em compensacáo, possuía o
talento raro de exprimir em palavras claríssimas o conteúdo
pacis revela as mesmas tendencias, contra as exigencias
de reflexoes e fórmulas matemáticas; o Dialogo dei massi-
teocráticas e em favor do Estado leigo e absoluto. Sarpi,
mi sistemi del mondo, defesa convincente e deliciosamente
o antijesuíta, é táo antiaristotélico quanto o monge medie-
irónica do sistema de Copérnico contra os partidarios obs-
val, nominalista e partidario da "Ecclesia spiritualis". Com
tinados do geocentrismo, é urna das obras-primas da prosa
efeito, ésses anticlericalismos tém fundamento místico.
italiana, e a primeira grande obra científica escrita em urna
Poder-se-ia alegar que o pensamento religioso de Sarpi das línguas modernas; Olschki chega a ver nisso o mérito
foi racionalizado pelo cartesianismo, constituindo, assim, principal de Galileu. O grande toscano é resolutamente
urna transigáo para o cepticismo anticristao de Bayle; mas "moderno". O seu antiaristotelismo estende-se á literatura,
essa hipótese nao está certa. No pensamento de Bayle e ñas famosas Considerazioni censurou o Tasso da maneira
existe um fundo maniqueu: a verificagáo de contradigoes mais implacável, para elogiar tanto mais o poeta da sua
dialéticas na ordem do Universo. Com essa dialética, Bayle predilecao, Ariosto. Ésse amor ao poeta mais fantástico da
pretendeu conferir um sentido, se bem que contradítório, Renascenga nao deixa de surpreender num espirito táo
ao mundo atomístico dos epicureus: por intermedio de lógico. Mas é assim mesmo. Dingler advertiu que os expe-
Martel e Mersenne, conbeceu Bayle e o atomismo de Hob- rimentos físicos de Galileu nao eram o ponto de partida, e
bes e Gassendi; e ai se abre a perspectiva de outras filia- sim o resultado do seu pensamento; para inventá-los, cum-
góes importantes: Hobbes é o representante inglés do ab- pria ter urna opiniao preconcebida, antecipando o resultado
solutismo maquiavelístico; e Gassendi é o mestre filosófico das observagóes. Galileu é um pensador platónico; esta
dos "libertins" franceses, que constituem outra corrente observagáo de Koyré é bem acertada. Contudo, quando
antibarroca. Mais outras combinagoes de naturalismo anti- Galileu se confessou "aristotélico", nao o fez por mera
aristotélico e misticismo encontram-se nos comegos da hipocrisia contra-reformista; apenas, a expressao nao foi
física moderna.
Galileu ( Ift ), foi um dos espíritos mais claros de todos
os tempos. As suas descobertas astronómicas e as suas fór- EdiQáo das Obras Completas por A. Favaro, 20 vols., Firenze,
1890/1907.

19) Galileo Galilei, 1564-1642.


1 N. Vaccalluzzo: Galileo Galilei, letterato e poeta. Catania, 1896.
V. Fazio Allmayer: Galileo Galilei. Palermo, 1911.
L. Olschki: Galilei und seine Zeit. Halle, 1927.
A. Koyré: "Btudes galiléennes. París, 1940.
Saggiatore (1623); Dialogo dei massimi sistemi del mondo (1632); M. V. Giovine: Galilei scrittore. Genova, 1943.
Dialoghi delle nttove scienze (1638); etc.; — Considerazioni sulla R. Sponganl: Le prosa di Galilei. Messlna, 1949.
Qerusalemme Liberata (1590?, 1612?).
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1140 OTTO M A R Í A CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDEMTAL 1141

exata. O termo virtual, tao importante na dinámica de


ton, misturam-se, da maneira mais estranha, o antigo e o
Calileu, deriva da escolástica, embora nao da tomistica; e
moderno sistema do mundo, e os teólogos anglicanos, puri-
Galileu cita, ocasionalmente, os grandes nominalistas do
tanos e "independentes" abrem-se de boa vontade as influ-
século XIV, da escola de Paris, que lhe anteciparam as
encias do misticismo continental, chegando até elas na
idéias: Oresme, Buridano, Holkot, William of Heytesbury,
Roger Swineshead; o mais antigo déles é Olivi, o chefe dos pessoa de Comenius e nos livros de Boehme.
franciscanos rebeldes da "Ecclesia Spiritualis". Amos Comenius ( 21 ) é um caso notável de combinacao
antibarroca de elementos barrocos. O século X V I I I cos-
As raízes escolásticas e até místicas da física moderna
tumava esquecer as origens místicas das correntes espiri-
refletem-se, em certa "confusáo", meio científica, meio re-
tuais, para guardar apenas os resultados racionáis; e Co-
ligiosa, nos espiritos científicos do Barroco ( 2 0 ). Galileu
menius também sobrevive na memoria da humanidade ape-
parece brincar quando, ñas Due lezioni sobre Dante, pre-
nas como pai da pedagogía "natural", da "licao de coisas"
tende determinar a "situacao, forma e medida do I n f e r n o " ; em vez do "ensino de palavras", do "Orbis pictus" em vez
mas Pascal n i o brinca quando tira de observacoes astronó- das regras gramaticais; Rousseau e Pestalozzi continua-
micas conclusóes teológicas. Napier, inventor dos logarit- ram-lhe a obra. Éste sensualismo pedagógico está em re-
mos, ocupou-se com a exegese do Apocalipse; Guericke, lacáo íntima com o sensualismo epistemológico de Locke;
inventor das máquinas pneumáticas, pretendeu explicar o mas tem outros fundamentos. Locke é nominalista porque
milagre de Josué e descobrir o lugar geográfico do Inferno empirista. Comenius era nominalista porque platonista.
(desta vez nao se trata do Inferno de Dante, mas do Inferno Sonhava com urna ciencia ideal, a "Pansophia", combinacáo
da Igreja luterana); Kepler elaborou horóscopos; Newton matemática de idéias puras, lembrando-o Lullus e Leibniz.
extraiu do Apocalipse lisóes de cronología matemática. Comenius é antiaristotélico, mas nao por empirismo de
Censurar isto como "confusáo pouco científica" é um ana- cientista, e sim por escrúpulos de cristao contra a mistura
cronismo, táo grande, alias, como o outro anacronismo de escolástica da fé crista com a filosofía paga. É protestante;
salientar a fé crista d aquel es cientistas antigos, em com-
paracáo com o "ateísmo lamentável dos modernos". Na
verdade, a oposicáo dos cientistas do século X V I I á física 21) Johannes Amos Comenius (Komensky), 1592-1670.
Pansophlae Prodromus (1639); Pansophiae diatopsis (1643): Ms-
aristotélica levou-os fatalmente ao platonismo, que, ñas thodus Unguarum (1648); Scholae Ludus (1665); Opera Didácti-
épocas modernas, aparece quase sempre em formas de mis- ca (1657); Orbis sensualium pictus (1659); De bono unitatis
(1660); De Jrenlco Trenicorum (1660); etc., etc.; — Labyrint
ticismo religioso. Nao é, pois, estranho que o primeiro sveta a raj srdce [O Labtrinto do'Mundo^ (1663).
grande centro da física experimental, a Inglaterra, tenha Edlgao da Academia Tcheca. 6 vols., Praha. 1897/1902.
sido tamém o centro de um platonismo meio fantástico. EdicSo das Obras Completas por J. Kvacala, 7 vols., Praha,
1910/1923 (ainda Incompleta).
Em poetas de erudicáo enciclopédica, como Donne e Mil-
Traducao inglesa do Labirinto por J. Lutzom, London, 1905.
S. S. Laurle: Comenius and His Pedagogical Works. 2.a ed. Cam-
bridge, 1887.
20) E. A. Burtt: The Metaphy Bical Foundations of Modern Physícal J. Kvacala: Johannes Amos Comenius. Leipzig, 1892.
Science. 2." ed. New York, 1932. G. Binswaenger: Amos Comenius ais Pansoph. Stuttgart, 1904.
D. MahnJce: Unendliche Sphaere und AllmittelpunJct. Beitraege A. Novak: Jan Amos Komensky. Praha, 1920.
zur Genealogie der mathematischen Mystik. Halle, 1937. A. Heyberger: Jean Amos Comenius. Paris, 1928.
R. F . Young: Comenius in England. London, 1932.
1142 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1143

e protestante eslavo. Latinizou seu nome ero Comenius, platónica" de Cambridge ( 2 S ). Eis ai a origem do platonis-
para enquadrar-se melhor na "República de Letras" da mo entusiástico de Shaftcsbury; e será difícil dizer se o
Europa. Mas o nome de batismo era Komensky; foi bispo racionalismo cartesiano sucumbiu ao empirismo de Locke
da seita dos "Irmáos da Moravia", um dos ramos mais im- e Newton, popularizado na Franca por Voltaire, ou ao en-
portantes da "Terceira Igreja". Os "Irmáos", perseguidos tusiasmo platónico de Shaftesbury, filósofo de predilegao
e expulsos da Boémia, conservam urna cangao comovente, do pré-romantismo, de Rousseau e Saint-Pierre. Todas as
no estilo das cangoes populares eslavas, mais ou menos correntes antibarrocas desembocam no país da "pseudo-
assim: morfose burguesa", a Franga.
Na Franga, a oposicáo é representada por um grupo
"Belo é o rio, o rio Moldava, onde ficam nossas casas. de literatos e gente da alta sociedade que se opoem á fé
Bela é a cidade, a cidade de Praga, onde mora nossa e sobretudo á moral reinante: os "libertins" ( 2 4 ). A palavra
[familia. tem hoje o sentido de vida devassa e desregrada; no sé-
Nada mais de rio, nem de cidade: somos exilados; culo X V I I significava urna atitude ideológica, mésela de
Nada trouxemos senáo a Biblia e o Labirínto." heresia, cepticismo, deísmo e ateísmo, baseada, nem sem-
pre, mas as vézes, em conviegóes materialísticas, epicuréias.
Nem sempre, porém, as mais das vézes, os "libertins" tira-
A última palavra alude ao Labirinto do Mundo, romance
ram dessas conviegóes conclusóes práticas, no sentido do
alegórico de Comenius, escrito em lingua tcheca, e que
"epicurismo" vulgar, da libertinagem, na acepgáo moderna
recorda estranhamente o Criticón, de Gracián, embora este-
da palavra. Foram assim os aristócratas que se reuniram
ja mais próximo da ideologia do Pilgrim's Progress, de
no "Temple" — os Duques de Vendóme, Nevers e Bouil-
Bunyan.
lon, muitos "frondeurs", cavaleiros como Méré e Mitón, os
Em 1641 Comenius visitou a Inglaterra, convidado pelo amigos da mocidade alegre de Pascal. Méré, alias, era "rao-
Parlamento para estudar reformas do ensino. Lá, assim raliste", observador e aforista epigramático, nao de todo
como mais tarde na Suécia e na Holanda, nao se cansou de indigno de La Rochefoucauld, mas menos pessimista. O
trabalhar pela uniáo das Igrejas separadas, da qual esperava tipo do "frondeur" e diletante em letras é Bussy-Rabu-
o "Milenio"; na realidade, o irenismo de Comenius prepa- tin ( 2 6 ), especie de Retz leigo, escritor frivolo e picante,
rava o terreno para a indiferenga dogmática, assim como
o seu platonismo se antecipou ao sensualismo. Nao é éste
um caso isolado. Os livros do místico silesiano Jacob Boeh- 23) F. J. Powlcke: The Cambridge Platonists. London, 1926.
me exerceram influencia profunda na Inglaterra do século 24) T. Perrens: Lea libertina en France au XVUe siécle. Paris,
X V I I ( S 2 ) : nos quakers, nos independentistas e outros sec- 1896.
tarios, em Vaughan e Milton, e, particularmente, nos filó- F. Lachévre: Le libertinage au XVIIe siécle. 4 vols. Paris,
sofos Henry More e Ralph Cudworth, chefes da "escola 1921/1924.
26) ftoger de Rabutin. comte de Bussy, 1618-1693.
Histoire amoureuae dea Gantes (1665); Mémoires (1696).
H¡. Oérard-Gailly: Un académicien, grand seígneur et libertin
22) W. Struck: Der Ein/luss Jacob Boehmes au] die englische Lite- Au XVIIe siécle. Bussy-Rabutin, sa vie, ses oeuvres et sea amies.
ratur des 17. Jahrhunderts. Berlín, 1936. París, 1909.
V IW'f!IJ

1144 OTTO M A R Í A CARPEAUX


HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1145
epistológrafo pouco inferior a sua prima, Madame d e Sé-
vigné. O mais importante dos libertinos aristocráticos, e Rabelais, é sua: o romance fantástico. As viagens ima-
Saint-Évremond, assumíu atitudes de critico filosófico; ginarias de Cyrano para os reinos da Lúa e do Sol apre-
pela repercussáo que teve, já pertence a outra época. sentam urna das raras utopias do século X V I I , embora com
objetivo satírico; estáo entre Morus e Campanella, inspi-
E n t r e os aristócratas-diletantes e os escritores de pro-
raram Swift e Voltaire. Porém Cyrano ficou como literato
fissao existe um grupo de libertinos, boémios fantásticos,
menor, talvez porque nao sabia decidir-se entre pensamento
com veleidades de oposicáo religiosa e social, escondendo
e arte, entre os carninhos da literatura tendenciosa e os da
as suas tendencias sob expressoes "preciosas" ou burles-
arte despreocupada.
cas. Théophile de Viau ( 2 a ) pertence a ésse grupo boémio;
em 1625 foi processado como "ateísta". O mais complexo O único artista puro entre os "libertins" é La Fon-
dos boémios é Cyrano de Bergerac ( 2 T ): os versos espiri- taine ( 2 8 ) ; a posteridade o recompensou, perdoando-lhe a
tuosos e retumbantes de Rostand simplificaram-lhe demais obscenidade dos Coates e utilizando as Fables como livro
a figura, ao gósto do grande público. Em Cyrano havia a didático. Sao as qualidades didáticas que os manuais ce-
materia de um poeta auténtico e talvez de um pensador lebram em La Fontaine: cada fábula urna pesa caracterís-
original. A sua tragedia La morí d' Agrjppine nao é de tica, boa para ser decorada; La Fontaine seria poeta aces-
um senequiano atrasado; revela a possibilidade de urna evo- sível aos meninos e, no entanto, apreciado pelos adultos;
lucáo teatral, partindo de Rotrou e independente de Cor- a leitura das Fables despertaría o senso da natureza e o
neille, e que teria levado a outro teatro, diverso do de amor aos animáis; enfim, as suas "licoes" de moral seriam
Hacine. A riqueza de pensamentos filosóficos no diálogo táo proveitosas! Elogios assim causam estranheza sobre-
lembra Chapman; segundo a lenda, alias, Cyrano fóra, tudo aos estrangeiros; a quem nao foi inculcada, desde a
j u n t o com Moliere, discípulo do epicureu Gassendi. Por meninice, a veneracáo a La Fontaine, será impossível com-
pouco Cyrano nao descobriu a comedia "endiablée" como
meio de expressao do Antibarroco; e o seu Pedant ioué nao 28) Jean de La Fontaine, 1621-1695.
deixou de ter influencia em Moliere. Mas o genio fantás- Contes (1664, 1667, 1671, 1675); Les Fables (I-VI, 1668; Vil-XI,
tico de Cyrano de Bergerac permitiu-lhe descobrir mais 1678; XII, 1694).
outra expressao que, apesar das reminiscencias de Ariosto Le Songe de Vaux (1657); Elégie aux Nymphes de Vaux (1661*;
Les amours de Psyché (1669); Discours á Madame de la Sabliére
(1684); Epitre a Huet (1687).
Edicóes por H. Régnler, 11 vols., París, 1883/1893, e por J.
26) Ci. "Poesía do Culteranismo e Teatro da Contra-Reforma", Longnon, 2 vols., Parla, 1927.
nota 40. H. Taine: La Fontaine et ses fables. Paris, 1853. (Multas edicóes.)
27) Savlnlen de Cyrano de Bergerac, 1020-1655. E. Faguet: La Fontaine. 2.a ed. Paris, 1913.
Le pedant joué (1654); Histoire comique ou Voyage dans la G. Michaut: La Fontaine. 2 vols. París, 1913/1915.
lune (1659); Histoire comique des États et Empires du soleil K. Vossler: La Fontaine und sein Fabelwerk. Heldelberg, 1919.
F. Gohln: L'art de La Fontaine dans ses fables. Paris, 1930.
(1662); La mort d'Agrippine (1653). I. Giraudoux: Les cinq tentations de La Fontaine. París, 1938.
Edlcao completa por P. L. Jacob, 2 vols., París, 1858. L . - P . Fargue: "La Fontaine". (In: Tablean de la littérature
Edicáo dos romances por F. Lachévre, París, 1933. francaise, de Corneille t Chénier. París, 1939.)
P. Brun: Savinien de Cyrano de Bergerac, sa vie et ses oeuvres. A. Siegírled: -La Fontaine, Machiavel franeáis. París, 1950.
París, 1893. E. Baudin: La philosophie morale des fables de La Fontaine.
L. -R. Leíévre: La vie de Cyrano de Bergerac. París, 1927. Neuchatel, 1951.
L. Petlt: La Fontaine et Saint-Évremond. Toulouse, 1953.
1144 OTTO M A R Í A CARPEAUX
HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1145

epistológrafo pouco inferior a sua prima, Madame de Sé-


e Rabelais, é sua: o romance fantástico. As viagens ima-
vigné. O mais importante dos libertinos aristocráticos,
ginarias de Cyrano para os reinos da Lúa e do Sol apre-
Saint-Évremond, assumiu atitudes de crítico filosófico;
sentam urna das raras utopias do século X V I I , embora com
pela repercussao que teve, já pertence a outra época.
objetivo satírico; estáo entre Morus e Campanella, inspi-
E n t r e os aristócratas-diletantes e os escritores de pro- raram Swift e Voltaire. Porém Cyrano ficou como literato
fissáo existe um grupo de libertinos, boémios fantásticos, menor, talvez porque nao sabia decidir-ae entre pensamento
com veleidades de oposicao religiosa e social, escondendo e arte, entre os caminhos da literatura tendenciosa e os da
as suas tendencias sob expressóes "preciosas" ou burles- arte despreocupada.
cas. Théophile de Viau (- 0 ) pertence a ésse grupo boémio;
O único artista puro entre oí "libertini" é La Fon-
em 1625 foi processado como "ateísta". O mais complexo
taine (-"); a posteridade o recompenaou, perdoando-lhe a
dos boémios é Cyrano de Bergerac ( 2 T ) : os versos espiri-
obscenidade dos Contes e utilizando ai Fables como livro
tuosos e retumbantes de Rostand simplificaram-lhe demais
didático. Sao as qualidades didáticas que oa manuais cc-
a figura, ao gósto do grande público. Em Cyrano havia a
lebram em La Fontaine: cada fábula urna pega caracterís-
materia de um poeta auténtico e talvez de um pensador
tica, boa para ser decorada; La Fontaine seria poeta aces-
original. A sua tragedia La moit d' Agrippine nao é de
sível aos meninos e, no entanto, apreciado pelos adultos;
um senequiano atrasado; revela a possibilidade de urna evo-
a leitura das Fables despertaría o senso da natureza e o
lucao teatral, partindo de Rotrou e independente de Cor-
amor aos animáis; enfim, as suas "licoes" de moral seriam
neille, e que teria levado a outro teatro, diverso do de
táo proveitosas! Elogios assim causam estranheza sobre-
Racine. A riqueza de pensamentos filosóficos no diálogo
tudo aos estrangeiros; a quem nao foi inculcada, desde a
lembra Chapman; segundo a lenda, alias, Cyrano fóra,
meninice, a veneracáo a La Fontaine, será impossívcl com-
junto com Moliere, discípulo do epicureu Gassendi. Por
pouco Cyrano nao descobriu a comedía "endiablée" como
meio de expressáo do Antibarroco; e o seu Pedant joué nao 28) Jean de La Fontaine, 1621-1695.
deixou de ter influencia em Moliere. Mas o genio fantás- Contes (1664, 1667, 1671, 1875) ¡ Les Fables (I-VI, 1668; Vn-XI,
tico de Cyrano de Bergerac permitiu-lhe descobrir mais 1678; XII, 1694).
Le Songe de Vaux (1657); Elégie aux Nymphes de Vaux (1661>;
outra expressáo que, apesar das reminiscencias de Ariosto Les amours de Psyché (1669); Dtscours á Madame de la Sabliére
(1684); Epttre á Huet (1687).
Edicóes por H. Rcgnier. 11 vols., Paris, 1883/1893, e por J.
Longnon, 2 vols., Paris, 1927.
26) Cf. "Poesía do Culteranismo e Teatro da Contra-Reforma", H. Talne: La Fontaine et ses fables'. París, 1853. (Multas edicóes.i
nota 40. E. Faguet: La Fontaine. 2.* ed. Paris, 1913.
27) Savlnlen de Cyrano de Bergerac, 1620-1655. G. Michaut: La Fontaine. 2 vols. París, 1913/1915.
Le pedant joué (1654); Histolre comique ou Voyage dans la K. Vossler: La Fontaine und sein Fabelwerk. Heldelberg, 1919.
lune (1659); Hístoire comique des États et Empires du soleil F. Gohin: L'art de La Fontaine dans ses fables. París, 1930.
I. Giraudoux: Les cinq tentations de La Fontaine. París, 1938.
(1662); La mort á"Agrippine (1653). L . - P . Fargue: "La Fontaine". (In: Tablean de la littérature
Edicfio completa por P. L. Jacob, 2 vols., París, 1858. francaise, de Corneille á Chénler. París, 1939.)
Edicto dos romances por F. Lachévre. Paris, 1933. A. Slegfríed: -La Fontaine, Machiavel franeáis. Paris, 1950.
P. Brun: Savinien de Cyrano de Bergerac, sa vie et ses oeuvres. E. Baudin: La phllosophie moróle des fables de La Fontaine.
Paris, 1893. Neuchátel, 1951.
L. -R. Lefévre: La vie de Cyrano de Bergerac. Paris, 1927. L. Petit: La Fontaine et Saint-Évremond. Toulouse, 1953.
.

1146 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1147

preender urna frase como esta: "La Fontaine est notre tao sugestivos como se fóssem de Du Bellay, a ponto de o
Lucréce ou Arioste." E existem comparacoes do grande próprio Brunetiére, t i o surdo para a poesia, os admirar:
fabulista com Homero e Dante. Sainte-Beuve deu a defi-
nigao definitiva: "Le poete national." No culto nacional "Sur les humides bords des royaumes du vent."
de La Fontaine reconheceu Hazlitt o síntoma da incom-
preensáo dos franceses em relacáo á verdadeira poesia. Em La Fontaine o dominio extraordinario da lingua nao
Mas essas restricoes sao incompreensíveis. La Fon- é virtuosismo; é conseqüéncia do amor de artista a todas
taine é um grande fabulista; a fábula é, no entanto, um as coisas e todos os meios de expressSo —
género menor, baseado no processo da alegorizar em qua-
lidades de animáis as virtudes e vicios humanos, e ésse pro- "J'aime le jeu, l'amour, les livres, la musique,
cesso tem algo de racional, incompatível com o lirismo e La ville et la campagne, enfin t o u t . . . . "
até com a mesma poesia. La Fontaine pode ser considerado
poeta no sentido dos séculos X V I , X V I I I , ou até XIX, — confissao que lembra o epicurismo comprecnsivo de
épocas ñas quais a poesia compreendia tudo quanto era es- Montaigne e sitúa o poeta na atmosfera da Renascenca.
crito em versos: o lirismo, a ode, a elegía, o lied, a nar-
racao versificada, a retórica metrificada, e mesmo o epi- "Le chéris l'Ariost et j'estime le Tasse"
grama espirituoso; mas nunca no sentido da poesia "su-
«
gestiva" dos séculos X V I I e XX. O metro, em La Fon-
"Plein de Machiavel, entété de Boccace"
taine, é instrumento de estilizacao; estilizam-se a natureza
e os animáis, guardando-se as proporcoes naturais só dos
assim se apresenta La Fontaine, declarando as fontes da
homens, que sao os heróis de varias fábulas, exibindo con-
sua cultura métrica, da sua moral e dos seus enredos. Aqui-
ceitos moráis bem "naturalistas" e pouco edificantes. Ti-
lo a que se chamam, em La Fontaine, "esprít gaulois", é
nham razáo Rousseau e Lamartine em lamentar a leitura
antes o sonho idílico da Renascenca, de um Aminta francés,
das Fables na escola, censurando-lhes o egoísmo malicioso
sonhado num sécalo em que todas as frutas tinham o sabor
e o conceito utilitario da vida. Se La Fontaine tivesse um
do pecado original. O epicurismo de La Fontaine seria
sistema moral, éste se parecería ao de Gracián. Nao foi o
imaginario se o poeta nao pudesse alegar um forte argu-
"bonhomme" da lenda biográfica; foi boémio que sabia
m e n t o : os homens falam como santos, porém agem como
viver a expensas da aristocracia, um preguicoso, gozador
epicureus. E assim ele os pinta, sem violentar a verdad e,
irresponsável da vida. Brunetiére observou que a atitude
sem estilizá-los:
de La Fontaine em face da vida é a de um espectador; con-
sidera essa atitude eminentemente artística. Contudo, só
arte parsasiana se define assim, e La Fontaine é artista de " il n e faut pas
outra estirpe: um "libertin", com a única responsabilidade Quitter la nature d' un pas."
do verso eficiente. La Fontaine tem versos epigramáticos
e versos voluptuosos, versos razoáveis e versos fantásticos, De "moral",,nada, a nao ser a moral dos "moralistes"
versos barrocos, como os "Amours de Psyché", e versos imparciais e implacáveis. Entendida como licao, a moral
de La Fontaine seria a mesma de Gracián, pragmatista e

HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL MI'»


1148 OTTO M A R Í A CABPEAUX

mente sui generis: quase nao tem precursores, n l o tmn


utilitaria. Eis porque o processo de La Fontaine só super-
ficialmente se assemelha ao dos outros fabulistas: em vez nenhum sucessor digno de mencao. É a poesia do Antl-
de humanizar os animáis, animaliza os homens. O processo barroco antipoético.
é o de Balzac, seria o de Zola se éste houvesse tido o hu- O epicurismo de La Fontaine é poético, porque n l o
morismo epicureu de La Fontaine: é militante; sem essa qualidade negativa, seria poesía di-
dático-filosófica, seria realmente lucreciana. Para ÍMO
nao faltavam ás condi$óes ideológicas: ao lado do epi-
"Une ampie comedie á cent actes divers
curismo libertino existia, em boas relacóes pessoais com
E t dont la scéne est l'Univers.
ele, alias, o epicurismo filosófico. Do austero La Motín
Hommes, dieux, animaux, tout y fait quelque role".
Le Vayer ( 2 ") basta citar dois títulos de opúsculos — De
la vertu des páines e Opuscule sceptique — para se reco-
Em última análise, La Fontaine nao apresenta, ñas cente-
nhecer a díretriz do seu pensamento; e Gassendi ( s o ) é até
nas de atos da sua grande Comedia, os animáis no papel
materialista, que exercerá influencia em Hobbes e La Met-
de deuses offenbachianos e homens burlescos; os seus ho-
trie. O epicurismo "ligeiro" de Montaigne chega, enfim, a
mens e deuses sao animáis. As Fables constituem urna co-
tomar feicao sistemática. Noticias biográficas nao muito
lecáo completa e coerente de short stories, sempre espiri-
certas afirmam relagoes pessoais de Gassendi com Cyrano
tuosas porque a "libertinagem" espiritual de La Fontaine
e Moliere. Na mocidade, Moliere freqüentava, é certo, a
o eleva ácima do pessimismo inevitável do epicurismo cien-
casa de Luillier, amigo íntimo de Gassendi; algumas remi-
tífico.
niscencias de leituras de Lucrecio, ocorrentes ñas suas co-
Se a arte jamáis alcancara transfigurar a vida, a de medias, também se encontram noutras obras da época; mas
La Fontaine consegue ésse fim, até se esquecer o ponto ésse fato só prova a ampia difusáo do materialismo filosó-
de partida: as Fables transformarem-se em livro para me- fico nos círculos literarios. Contudo, nao teria sido possível
ninos. O que poderiam aprender em La Fontaine — e servir á propaganda dessas idéias por meio de urna literatura
geragdes de futuros escritores o aprenderam na sua escola de divulgacao em forma de tratados. O conformismo polí-
— é a precisao da linguagem e do verso, que Taine lhe tico e religioso do classicismo francés nao o permitiría.
elogiou: nenhuma palavra de mais, e cada palavra certa; A expressáo devia ser "moralista", escondendo o pensa-
resultado que será difícil atingir em prosa. La Fontaine é mento atrás de licoes moráis de decencia insuspeita e di-
grande poeta, conquanto num sentido diverso daquele a minuindo-lhe o alcance, pondo essas licoes na boca de per-
que hoje estamos habituados. Nao é, como parece, poesía
intelectual — a do Barroco era assim, e La Fontaine nao
era um intelectual; é poesia intelectualista, como a da Re-
2» Frangote La Motne Le Vayer, 1583-1672.
nascenca e, depois, a do século X V I I I ; poesia menos alheia Oeuvres [De la vertu des paiens; Opuscule sceptique; etc.] (1654).
do que superior ao lirismo subjetivo. Urna forma original G. Etienne: Essai sur La Mothe Le Vayer. París, 1849.
entre ode e epigrama, apresentando-se em feicáo narrativa, R. Plntard: Le Libertinage érudlt. París, 1943.
porque só assim o século X V I I a suportou. A grandeza 30) Pierre Gassendi, 1592-1655.
poética de La Fontaine só pode ser devidamente apreciada De vita et moribus Epicurt (1647).
considerando-se a solidáo histórica da sua poesia absoluta- L. Audrleux: Pierre Gassendi. Paris, 1927.
G. Hess: Pierre Gassendi. lena, 1939.
1150 HISTORIA DA LITBBATURA OCIDENTAL HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1151

sonagens de categoría social humilde. Essa forma literaria em parte editados ( 3 2 ), permitem verificar as fontes das
em que o pensamento antibarroco se divulga na Franca, improvisagóes: enredos de Plauto (Amphitruo, Pseudolus),
conquistando-a, é a comedia, ou, mais exatamente, a "alta de Teréncio (Eunuchus), de Ariosto (Suppositi); mas tam-
comedia" molieriana, que é urna criagao absolutamente ori- bém enredos espanhóis, como o Convitato di pietra, na ver-
ginal, apesar dos modelos plautinos e terencianos; criacáo sáo de Giacinto Andrea Cicognini. A improvisagao do diá-
táo original como é original a fábula lafontainiana, apesar logo impunha-se em face da grande diversidade dos dia-
do modelo esópico. Na tarefa de criar urna comedia táo letos e costumes regionais na Italia; o mesmo texto nao
nacional como a tragedia corneliana, os processos usuais agradaría igualmente na Sicilia e em Veneza. Contudo,
do classicismo falharam: Le menteur é antes um drama havia certa estandardizagáo dos chistes, respostas, de cenas
burgués. Os modelos espanhóis e da Renascenca italiana, cómicas inteiras, os lazzi, que nao era preciso modificar
dos quais se utilizaram Rotrou e Thomas Corneille, nao muito. A leitura dos cenários e lazzi editados desmente
deram resultado apreciável. A comedia antibarroca preci- os elogios que os críticos románticos teceram á "commedia
sava de certa atmosfera de irrealidade para poder movi- deU'arte": diálogo e agáo sao de grosseria incrível, em
mentar-se livremente; essa atmosfera irreal em torno de parte ordinaríssimas, sem o mínimo trago de poesía; causa
assuntos da trivialidade cotidiana reinava ñas esferas po- estranheza o estado mental dos públicos cultos que aplau-
pulares — quer dizer, nao barrocas — da literatura ita- dirán! essas exibigóes de péssimo gósto. O que nao pode-
liana, da "commedia dell'arte" ( í l ) . mos julgar é a habilidade dos atores. Representagóes po-
pulares na Italia de hoje, e certas cenas da ópera-cómica,
A lenda atribuí a invengao das famosas "máscaras" ao dáo idéia do brío inexcedível daqueles atores, do acroba-
ator e comediógrafo popular Ruzzante. Mas nao existe, tismo da declamagáo, ora rapidissima, como na conversa
nesse caso, paternidade individual; e a comedia improvi- dos populares italianos, ora parodiando as expressoes su-
sada é popular, mas nao é rústica como o teatro do Ruz- blimes da poesía barroca, e do acrobatismo, em sentido
zante. É um último produto, bastante degenerado, da co- literal, das arlequinadas. A estandardizagáo dos enredos
media renascentista, adaptada ao gósto das massas, e que e cenas levou fatalmente á estandardizagáo dos papéis, á
encontra também o aplauso dos cultos, os quais reconhecem criagáo de tipos permanentes: os modelos eram os carac-
na "commedia dell-arte" algo de Ariosto e algo de Aretino. teres da comedia plautina, modificados in infinitum para
Os "cenarios", isto é, os esbogos de enredos, que estao hoje representaren! as figuras típicas das cidades e provincias
italianas, tirando-se proveito do elemento cómico dos dia-
letos parodiados. Conhecemos, pelo menos em parte, os
31) M. Scherillo: La commedia dell'arte in Italia. Torlno, 1884. nomes dos atores que criaram as máscaras. Francesco An-
W. Smith: The Commedia delVArte. New York, 1912.
E. Del Cerro: Nel regno delle maschere. Napoll, 1914.
C. Petraccone: La Commedia delVArte. Napoll, 1927.
M. Constant: La commedia delVArte. París, 1927.
B. Croce: Sul signíficato storico e il valore artístico della Com- 32) Edlgóes de cenários:
media deU'Arte. Napoli, 1929. A. Bartoll: Scenari inediti della commedia deU'arte. Flrenze,
M. Apollonlo: Storia della Commedia deU'Arte. Milano, 1930. 1880.
K. M. Lea: Italian Popular Comedy. A Study in the Commedia Permanece inédito o volumoso manuscrito Annlbale Bersale, de
delVArte, 1560-1620. 8 vols. Oxford, 1934. dols volumes, 1700, doacao de Benedetto Croce á Biblioteca Na-
P. L. Duchartre: La Commedia delVArte. París, 1956. zionale de Ñapóles.
1152 OTTO M A R Í A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1153

dreini, o primeiro e mais famoso dos atores da "commedia lismo popular e ficcao teatral cria em torno das máscaras
dell'arte", transformou o "miles gloriosus" plautino em urna atmosfera de ironía, de irrealidade; e os costumes de
"Capitán Spaventa", tipo do oficial espanhol, brutal e fan- tempos irremediávelmente passados — os trajes espanhóis
farráo; Silvio Fiorillo criou a figura parecida do "Matta- da Ñapóles barroca, as roupas da Veneza do "Settecento",
moro". Ludovico De Bianchi e Bernardino Lombardi in- da Madri dos Bourbons, da Paris do "ancien régime" —
ventaram o "Dottore", jurisconsulto bolonhés, astuto e conferem á ironia aqucle sabor de melancolía leve, que nos
charlatlo; o seu pendant imbécil é o doutor "Tartaglia", encanta nos quadros de Watteau, Tiepolo e Longhi (há um
que, para maior gáudio do público, se apresenta como gago. eco désse encontró ñas Fétes galantes, de Verlaine). Os
A vítima das intrigas é "Pantalone", comerciante venezia- contemporáneos nao sentiram, evidentemente, ésse sabor
no, burlado pela esposa e pelo amante déla; Luigi Benotti passadista. Mas, enquanto o público só se riu das gaillar-
e, sobretudo, Antonio Riccoboni, encarnaram essa figura. dises, compreenderam os artistas a fina ironia da "reali-
O criado sabido e experimentado, dono da intriga, a más- dade irreal" das máscaras. Realidade cotidiana que era
cara mais plautina de todas, é "Arlecchino", papel em que apenas o jógo da imaginacao: eis um conceito barroco.
brilharam Tristano Martinelli e o famosissimo Giuseppe Irrealidade teatral que revela os problemas serios da vida:
Domenico Biancolelli; Tiberio Fiorilli criou a figura pa- eis um ponto de vista antibarroco. E entre ésses dois polos
recida de "Scaramuccia", e as mais famosas atrizes apare- nasceu a comedia francesa.
cerán! no papel correspondente de "Colombina". Mas havia
O repertorio mais completo da "Commedia dell'arte",
também o criado burro, o "Brighella" ou "Meneghino", ví-
o de Gherardi ( 3 3 ), está em língua francesa. Com efeito:
tima das piores pancadas, consolado, enfim, pelo casamento
fora da Italia, foi Paris e centro dos improvisadores. A
com a companbeira, a "Pulcinella".
"comedie ítalienne" chegou a fazer parte da historia lite-
A posteridade nao guarda memoria certa da arte de raria francesa (**)'• suplantou as iarces parisienses, con-
atores. Porém os nomes daqueles atores italianos merecem seguiu o maior aplauso da corte e do público das rúas, man-
sobreviver na historia literaria. As máscaras da "commedia teve-se apesar da competic,áo encamisada das companhias
dell'arte" sao criacoes das mais interessantes da literatura francesas, desafiou as repetidas ordens de expulsáo (Wat-
universal. Sao bonecos de um repositorio arquivelho de teau pintou em dois quadros famosos o desespero dos "com-
comicidarle; fizeram os mesmos lazzi nos teatros de Ñapó- medianti" exilados e o júbilo dos que voltam); a "comedie
les, Veneza e Paris dos séculos X V I I e X V I I I , como já italianne" só desapareceu ñas tempestades da Revolugáo.
haviam feito nos teatros da Renascenca e nos teatros da Apesar do nome, já estava inteiramente afrancesada. No
Roma amiga; filiam-se, talvez, ao mimus grego; e deixaram cometo do scculo X V I I , Tabarin representava perto do
em toda a parte lembran$as inesquecíveis. Perde-se na dis-
tancia a grosseria dos diálogos e pancadas; continua na
memoria a verdade humana daqueles tipos, tipos muitíssimo 33) Le Théátre Italien de Qherardi. ou Recueil general de toutes les
comedies. París, 1694/1697. [Novas edlcoes: 1700. 1741.]
simples, e por isso permanentes, sempre vivos, como gente
de rúa ñas cidades italianas de hoje. Mas nunca nos ilu- 34) N. M. Bemardin: La comedie itallenne en France et les théátres
de la foire et du boulevard, 1570-1791. París. 1902.
dem: sao meros bonecos, figuras improvisadas para nos P. h. Duchartre: La comedie italienne. París. 1926.
divertirem durante duas horas. Essa mistura de natura- O. Attlnger: L'esprit de la Commedia dell'Arte dans le théátre
jrancais. Paris, 1950.
1154 OTTO M A M A CARPEAUX H I S T O R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 1155

Pont-Neuf aplaudidissimas farsas á maneira italiana, e ceses reconhecem em Moliere o próprio genio nacional; e
havia até um principio de criacáo de máscaras francesas: n e s s e caso, d i f e r e n t e d o s d e R a e ¡ n e e L a F o n t a i n e , h o u v e
Gros-Guillaume, T u r l u p i n e outros. Depois, "University s e m p r e a c o n c o r d a n c i a d e t o d a s a s o u t r a s nacóes, e m t o d o s
w i t s " tentaram a representagáo de comedias literarias pelos os t e m p o s . M o l i e r e é, q u a s e c o m o H o m e r o , o b j e t o d e a d -
farsistas franceses: Scarron apresentou o Joáelet ou Le miragáo unánime. A única restricáo q u e lhe fizeram alguns
maitre valet; Cyrano de Bergerac, o Pedant joué. Porém críticos franceses refere-se á sua linguagem, que dizem
os enredos dessas comedias, tomados de empréstimo ao d e s l e i x a d a e p r o s a i c a . N a o l h e n e g a m , c o m isso, a q u a l i -
teatro espanhol ou á comedia italiana literaria, careciam d a d e d e p o e t a , q u e t r a n s f i g u r o u e x p e r i e n c i a s h u m a n a s em
ora daquela irrealidade irónica, ora de realidade francesa. visoes verbais. Mas é verdade q u e Moliere nao parece
A gloria cronológica de ter sido a primeira comedia "seria" haver feito questao de "castigar o estilo". Procurava ape-
cabe a Les visionnaires, do poeta cristao Desmarets de nas assuntos cómicos, tomando-os onde se encontravam.
36
Saint-Sorlin ( ). É a primeira comedia de salao, com os A s p r i m e i r a s c o m e d i a s s a o farsas á m a n e i r a i t a l i a n a ; d e -
personagens ligeiramente caricaturados de um poeta de pois, Moliere se torna mais literario, adaptando comedias
versos ronsardianos e de urna dama amalucada pelos ro- latinas, d e P l a u t o e Teréncio, e a s vézes espanholas. Mas
mances heróico-galantes. É urna antevisto de Le misan- retorna sempre, e com gósto, á farsa; e Boileau nao lhe
thrope, de Les iemmes savantes. Só falta urna filosofía p e r d o o u a i n c o e r é n c i a d e d a r , e n t r e Le misanthrope e Les
segura da vida e o genio poético de Moliere. femmes savantes, as Fourberies de Scapin. Moliere é, antes
de tudo, o grande mestre do divertimento ligeiro, para os
Moliere ( 3 e ) nao se discute; nem sequer de maneira burgueses e para o povo; e só as vézes parece ter utilizado
dialética, para esclarecer-lhe origens e designios. Os fran-
a liberdade do ator cómico para improvisar algumas ver-

35) Sobre Desmarets de Saint-Sorlin, el. "O Classicismo do Barroco",


nota 17. F . Brunetiére: "La philosophie de Moliere". (In: Étvdes critiques
Les Visionnaires (1641). sur l'hlstoire de la litterature francaise. Vol. IV. París, 1898.)
Edicáo na colecao: E. Fournler: Le Théátre franeáis O.u XVle J . - J . Weiss: Moliere. Paris, 1900.
et XVIle siécles. París, 1871. K. Mantzius: Moliere, ¡es théátres, le publie et les comédiens
de son temps. (Trad. do original dinamarqués, 1904. París, 1908.)
36) Jean Baptlste Poquelln, dit Moliere, 1622-1673. G. Laíenestre: Moliere. Paris, 1909.
L'étourdi (1655); Le dépit amoureux (1656); Les précieuses ridi- E. Faguef. En lisant Moliere. Paris, 1914.
cules (1669); Vécole des naris (1661); Les fácheux (1661); L'école H. Sée: Moliere, peintre des conditions sociales. París, 1929.
des iemmes (1662); La critique de l'École des femmes (1663); Tar- R. Fernandez: Vie de Moliere. Paris, 1929.
tuffe (1664); La Princesse d'Elide (1664); Le festín de pierre H. Heiss: Moliere. Leipzig, 1929.
(1665); L'amour médecin (1665); Le Misanthrope (1666); Le mé- V. Vedel: Moliere. KJoebenhavn, 1929.
decin malgré lui (1666); Amphitryon (1668); Georges Dandin J. Palmer: Moliere, ¡lis Life and Works. London, 1930.
(1668); L'avare (1668); Monsieur de Pourceaugnac (1669); Le R. Benjamín: Moliere. Paris, 1936.
bourgeois gentühomme (1670); Les fourberies de Scapin (1671): 0 . de Reynold: "La poésie de Moliere". (In: Le XVIle. Siécle.
Comtesse d'Escarbagnas (1672); Les femmes savantes (1672); Le Le Classique et le Baroque. Montreal, 1944.)
malade imaginaire (1673). 1. Slciltani:, Moliere. Venezla, 1947.
Edicáo por E. Despois e P . Mesnard, 13 vols., Paris 1873/1893. w. G. Moore: Moliere. A New Criticism. Oxford, 1949.
J. Clearetie: Moliere, sa vte et ses oeuvres. Paris, 1873. R. Bray: Moliere, homme de théátre. Paris, 1952.
G. Larroumet: La comedie de Moliere. 2.» ed. Paris, 1886. E. Fabre: Notre Moliere. Paris, 1952.
1156 OTTO M A R Í A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1157

dades desagradáveis; assim teria sido como que um famoso em cenas incoerentes. Com o equadramento dos persona-
bobo da corte, urna especie de Scarron menos insolente e gens em aqóes típicas — os enredos milenares da comedia
mais culto. O moralismo de Moliere ñas "altas comedias" greco-romano-européia — perdem-se os tragos da sociedade
nao difere da psicología típica dos "moralistes", nos quais contemporánea. Os nomes meio antigos bem indicam a per-
também podia aprender o elemento essencial da sua a r t e : manencia "clássica" das intrigas e personagens. Moliere
a criacáo de caracteres, de personagens completas. O pró- aperfeicoa cada vez mais o seu poder de abstragáo, che-
prio Moliere alude, em Les précieuses ridiculos e Le mi- gando a criar figuras táo puramentne essenciais como "o
santhrope, á "mania" de esbogar portraits, que apareceram avarento Harpagáo", "o hipócrita Tartufo", "o misántropo
primeiro nos romances heróico-galantes, depois, aperfei-
Alceste", "o hipocondríaco Argan". Dá, apenas, "essén-
coados, em Retz, La Rochefoucauld e Madame de Sévigné.
cias"; mas pelo seu genio dramático insuflou a essas essén-
E o famoso "esprit" de Moliere? Malicia de burgués culto
cias vida auténtica. Por isso, Moliere nao é sómente um
de Paris, ou, se quiserem, a expressáo mais alta da jocosi-
"clássico"; é realmente clássico.
dade francesa, e n c a r n a d o do "esprit gaulois". Moliere
ficaria definido como produto, embora de valor perma- Moliere é o clássico cartesiano da comedia; mas nao
nente, do momento literario e da raga, como o resultado por isso, e sim além disso, é ele o maior dos comediógrafos.
de urna equacao cartesiana. Resta explicar porque e em Nao convémaproximá-lo demais dos seus amigos literarios;
que sentido a sua arte pode ser chamada "clássica". o classicismo francés é conformista em todos os sentidos;
e Moliere nao é conformista — é até irreverente. Aos crí-
A comedia, como a encontrou Moliere, era convencio- ticos tradicionais cabia, pois, a tarefa de harmonizar o pen-
n a l : as mesmas situagoes cómicas voltaram sempre, e Mo- samento de Moliere com o do seu século; o recurso para
liere nao modificou ésse estado de coisas. As suas pegas alcancar ésse fim foi o "realismo", que o próprio Boileau
estáo equidistantes das complicagoes románticas da comedia atribuía a literatura clássica francesa e particularmente á
espanhola e dos problemas novos, inéditos, do teatro mo- literatura dramática do seu amigo. Duas expressoes voltam
derno. É Moliere, como Shakespeare, antes de tudo um sempre em Moliere, conforme a observagáo de H e i s s : "droi-
playwríght profissional; mas é maior sua sabedoria de cons- te raison" e "juste nature". O dramaturgo revolta-se contra
trugáo dramatúrgica. A intriga apresenta extrema simpli- as convengóes que violentam a natureza: preciosismo, hipo-
cidade; a comicidade resulta só da lógica implacável da crisia. a falsa ciencia dos médicos, a educagáo errada. B,
sucessao das si macees. Nesse ambiente de regularidade quando a vida nao é capaz de corrigir ésses vicios, a co-
cartesiana, como num abrégé da vida real, agem e reagem media vinga a natureza, expondo-os ao riso. Na definigáo
os personagens da "commedia dell'arte", cada um movido exata de quem ri, ñas comedias de Moliere, é até possível
por urna determinada virtude ou por um determinado vicio, completar as fórmulas tradicionais, aplicando-se a filosofía
como abstracóes "moráis": as vézes, personagens caricatu- do riso segundo Bergson: é a sociedade que corrige, rindo,
ráis, porque privados do livre arbitrio pela fórga das duas os defeitos dos seus membros associais que perderam o
manias — "máquinas", como os animáis na psicología de caminho da "droite raison" e da "juste nature". Moliere,
Descartes. A documentagáo psicológica de Moliere baseia- trabalhando para a "société" e instituindo-a como juia su-
se na observagáo do ambiente; numa das primeiras pegas, premo e inapelável dos erros humanos, é bem a mala alta
Les fácheux, os tipos observados aparecem, um após outro, expressáo daquela literatura intensamente social, qua • a
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OTTO M A R Í A CAHPEAUX
HISTORIA DA LITERATUBA OCIDENTAL 1159

literatura francesa. Suas teses nao sao, portanto, teses contra os f reíos da moral crista. Em meio á luta entre jan-
revolucionarias, nem rebeldes sequer, sao as diretrizes per- senistas e jesuítas sobre a interpretagáo do dogma do pe-
manentes da sociedade razoável: L'école des iemmes resta- cado original, Moliere nega o próprio dogma: defende a
belece o tratamento digno das mulheres em familia; Les bondade da natureza humana. É o percursor da ideología
iemmes savantes combate os exageros do culto, bem fran- da Revolugao.
cés, das letras: Harpagon é urna tese viva contra o exagero
A tese de Brunetiére, que tem o mérito de haver des-
vicioso de urna qualidade principal do caráter francés, da
truido a imagem do clássico conformista, só pode ser aceita
economía; Le Tartuf/e nao tolera as exigencias excessivas
com certas modificagoes. Moliere era libertino; menos,
do clero, mas Le malade imaginaire satiriza igualmente as
porém, como os discípulos de Gassendí do que á maneira
usurpagoes da pretensa ciencia positiva. Moliere criou
do libertino La Fontaine. Com os animáis do fabulista se
um dos personagens mais característicos do teatro francés:
parecem as suas personagens, que sao "máquinas" psicoló-
o "raisonneur", que acompanha a agao com as suas obser-
gicas, como os animáis de Descartes. Máquinas, estao su-
vagóes justas e razoáveís. O próprio Moliere é o maior
jeitas aos seus instintos associais e vicios irrazoáveis; sao
"raisonneur" da vida francesa de todos os tempos; e a
autómatos de comicidade involuntaria, que fazem rir como
"raíson" das suas "theses" parece ter surpreendente seme-
o infeliz Buster Keaton. A conclusao inevitável dessa fi-
lhanca como o "juste milieu" das opinioes de um "républi-
losofía comediográfica é o pessímismo de Moliere, pessi-
cain moderé" de 1880.
mismo melancólico á Charlie Chaplin. Mas Chaplin tam-
Um republicano moderado de 1880, Brunetiére, foi o bém faz rir, e o riso é o caminho da libertacao; liberdade
primeiro a reconhecer o erro dessa interpretacáo. Moliere dos freios que nos tornam autómatos. Ésse libertinismo de
é um mestre da "conduite", nao há dúvida. Mas também Moliere baseia-se em principios de moralista, embora de
é nutrido de experiencia humana, e só déla; e um acon- moral diversa da de um Brunetiére. É moralismo de poeta,
duta que pretende inspirar-se apenas na experiencia é "na- portanto nem sempre rigorosamente firme — como reve-
turalista", no sentido da filosofía meio libertina de Mon- lam as ambigUidades de Le misanthrope: é Alceste que
taigne; nao será conduta moral ao gósto dos "bem-pen- tem razao, ou Philinte? Moliere é artista, poeta. Mas onde
santes". Moliere era "libertin". Mesmo que as suas rela- f ica a poesía nesse autor cuja "lingua desleixada" nao pre-
coes com Gassendí pertengam ao reino da lenda, restam as tende tornar-se "poética", mas servir, exclusivamente, de
leituras de Lucrecio, as inegáveis analogías com Rebeláis instrumento dramático?
e Montaigne, e urna inconfundível tendencia epicuréia á
maneira de La Fontaine, porém milito mais combativa: Moliere é poeta, principalmente, ñas suas farsas, na
restam aínda as heresias, nao refutadas pelo desfecho bur- gaillardise exuberante de Le médecin malgré ¡ui, das Four-
lesco, de Don Juan, no Festín de pierre, comedia audaciosa beríes de Scapin, quando sai do terreno da verossimilhanga
que é a obra principal do libertinismo francés. E Le Tar- naturalista, abandonando-se ao jógo das máscaras; um
tuffe nao se dirige apenas contra os jesuítas, nem — como grande poeta, talvez, o maior désse grande género menor
outros acreditavam — sómente contra os jansenistas, mas que é a farsa, no qual é superior a Plauto e a Ben Jonso
contra a falsa e a verdadeíra devogao juntas. Moliere é Com razao Reynold fala da poesía aristofánica de Amp
naturalista num sentido rnuito exato: defende a natureza tryon e compara certa cena de La princesse d'Élide á fa¡
no Midsummcr-Night's Dream. Encontrar-se-ia ñas pró«
1160 OTTO M A R Í A CABPEAUX HlSTÓBIA DA LlTERATTiHA OciDENTAL 1161

prias farsas o segrédo da sua "filosofía"? Moliere zombou mite essa vitória do adversario, pode admiti-la porque j á
do Monsieur de Pourceaugnac e da Comtesse d'Escarbag- se trata de outra sociedade, nao libertina, mas que também
nas, personificacoes do orgulho aristocrático. Mas em Le já nao é barroca: Philinte, o "razoável", é o representante
bourgeois gentUhomme também ataca, de maneira bem da burguesía futura; nao o burgués barroco, tímido, Dandin
barroca, o burgués que pretendeu atravessar as fronteiras ou Orgon, mas o novo dono do mundo. O verdadeiro ini-
entre as classes da sociedade; e no Geoige Dandin é o bur- migo é T a r t u f o ; porque representa a mais formidável das
gués ultrajado pelos novos parentes aristocráticos urna ideologias antiburguesas. A peca Taituífe é o protesto
personagem tragicómica. Nao é possível Moliere ter to- contra a i n t e r v e n g o da religiáo na vida particular. Moliere
mado o partido da aristocracia contra a burguesía; a sua aspira — como "libertin" — á separacáo entre a religiáo e
atitude antiburguesa é a do boémio, do libertino-poeta, do a vida. A burguesía francesa, superando a luta entre je-
inimigo da ascese para fins económicos. A sua atitude é suítas e jansenistas, realizou-lhe o programa. Desde entáo,
comparável ao antipuritanismo alegre de Shakespeare, em celebra-se Moliere, o moralista. Mas pensa-se menos no "li-
Twelfth Night. Dois elementos farsistas sao táo perma- bertin" Moliere, que desafiou em Festín de pierre a moral
nentes em Moliere que também se encontram na sua "alta crista; e no poeta cu jo mundo compreende a alegría far-
comedia": a sátira contra as "précieuses" e a hostilidade sesca de Scapin, a grandeza demoníaca dos falsos médicos
aos médicos. O elemento comum nessas reacoes contra a de Argan e a melancolía de agonizante do próprio Argan.
poesia aristotélica do Barroco e contra a ciencia aristoté-
lica da medicina de entáo é o antiaristotelismo. Moliere Moliere é um resultado táo definitivo como La Fon-
nao é moralista em luta contra elementos associais; é far- taine. Nao era possível continuar o seu caminho; o teatro
sista em luta contra o "espirito objetivo" da sua época. As teria de voltar á farsa pura, ou entáo progredir na atitude
suas farsas mais inverossímeis revelam irónicamente a ir- revolucionaria. Os contemporáneos e sucessores imediatos
realidade, nao da sociedade, mas da sua própria posicao de de Moliere ( 37 ) sao farsistas; sao mais "italianos" do que
pensador e homem de ac.áo, reduzido a comediante — ati- ele; porém menos poetas. O que devem ao mestre é quase
tude chaplinesca. O que é o romance de cavolaria em Cer- só a coragem de apanhar assuntos do ambiente e da atua-
vantes, a sátira barroquíssima em Quevedo, o conceptismo lidade; e fizeram-no com éxito considerável. O Crispin
em Gracián, é, em Moliere, a farsa meio melancólica, a alta
"commedia deH'arte": é o ponto de partida, mas também o
ponto final da sua arte, entre Les précieuses ridiculos e 37) Comediógrafos contemporáneos e sucessores imediatos de Moliere:
No61 Le Bretón de Hauteroche, 1617-1707.
Le Malade imaginaire; sao os divertimentos cómico-melan- Crispin médecin (1674). •
cólicos désse Dom Quixote francés que se chama Alceste. Edme Boursault, 1638-1701.
La Comedie sans titre ou Le Mercure Galant (1683); tsope
á la ville (1690); Ésope a la cour (1701).
A arte de Moliere serve para desmascarar as ideologias Michel Boyron dlt Barón, 1653-1729.
da sua época. É, nesse sentido, arte "anti-social". A co- L'Homme a bonnes fortunes (1686).
media torna-se tragedia quando a sociedade se torna vito- David Augustin de Brueys, 1640-1723, e Jean Palaprat. 1660-1721.
Le grondeur (1691); L'important (1693); Le bourru (1708).
riosa: em Le misanthrope. A chamada ambigüidade da Edicáo de 4>e;as escomidas em V. Fournel: Les contemporaini d*
pega revela-se como conseqüéncia da atitude antibarroca Moliere, 3 vols.. Parts (1863/1875).
em pleno Barroco. O grande espirito livre de Moliere ad- V. Fournel: Le Thé&tre du XVIIe siécle. La comedie. ParU,
1892.
,!tW'

1162 OTTO M A M A CARPEAUX HISTORIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1163

médecin, de Le Bretón de Hauteroche, é digno pendant teatral; o que lhe importa é a coeréncia dramática das suas
das melhores farsas antimédicas de Moliere; só recente- situagóes, mas de modo nenhum a coeréncia com a reali-
mente se chamou a atengao para ésse comediógrafo fan- dade. Transforma a vida em danga frenética de paixóe»
tástico, "libertin" que sobreviveu ao libertinismo da Fronde sem conseqüéncias. Será o farsista da libertinagem da Ré-
para viver até os coméeos do libertinismo da Régence. gence, assim como Moliere fóra o farsista da libertinagem
Boursault é um farceur espirituoso, mas superficial; revela após a F r o n d e ; nenhum dramaturgo nao italiano estéve
toda a distancia entre a farsa de Moliere e o vaudeville. mais perto da "commedia dell'arte" do que Regnard, por-
Barón, mais ambicioso, tem algo da melancolía escondida que lhe falta o senso moral. A sociedade que Moliere ata-
de Moliere, mas sem os mesmos motivos profundos. Brueys cara, já nao existe, ou antes, já abandonou sua ideología.
e Palaprat sao simples vaudevillistes; basta dizer que Fa- Regnard é o comedista de urna decadencia social; mas
guet os achou excelentes, para reconhecé-los como pre- também revela o requintado gósto literario das sociedades
cursores de um teatro que alegará pretensoes literarias a em decomposígao.
fim de servir apenas ao divertimento ligeiro.
O único comediógrafo que continuou a linha antiideo-
Regnard ( 38 ) é o mais famoso dos comediógrafos pós- lógica de Moliere foi Dancourt. Mas, apesar das veleidades
molierianos; o único que se mantém ao lado de Moliere, satíricas, é conformista; por isso, pode tornar-se realista.
se bem que em posigao inferior. Regnard merece essa aten- O Antibarroco já nao é "anti", porque o Barroco acabara.
gao da posteridade, embora possua grandes qualidades lite-
rarias ou poéticas. É, porém, um farsista excelente. Nao
se imaginam situagóes mais cómicas do que no Légataire
universa!; o enredo é quase a inversao do Volpone, de Ben
Jonson, mas a comedia é muito mais alegre, porque Reg-
nard nao conhece as preocupagóes satíricas do inglés. Pre-
tende apenas divertir — nessa limitagáo reside a sua fórga
— e o seu ambiente de jogadores, mulherengos e dissipa-
dores oferece-lhe os assuntos mais ricos para farsas abun-
dantes de comicidade. Regnard é um mestre da técnica

38) Jean-Fransois Regnard, 1655-1709.


Le Joueur (1696); Le distrait (1697); Démocrite (1700); Lei
folies amoureuses (1704); Les Ménéchmes (1705); Le Légataire
untversel (1708).
Edi?áo por E. Foumler, 2 vols., París, 1874/1875.
C. - A . Salnte-Beuve: Causerles du Lundt. Vol. VH.
J. - J. Welss: "Eloge de Regnard". (In: Essais sur l'hístolre de la
littérature francaise. Paris, 1865.)
P. Toldo: "Étude sur le théatre de Regnard". (In: Revue d'his-
toire littéraire, 1903/1905.)
J. Quyot: Le poete Regnard en son cháteau de Grillon. París,
1907.
Í N D I C E D O V O L U M E II

PARTE V

BARROCO E CLASSICISMO

Capitulo I

O Problema da Literatura Barroca

Capitulo II

Poesía e Teatro da Contra-Reforma

Capítulo III

Pastorais, Epopéias, Epopéia Herói-Cómica e Ro-

mance Picaresco

Capitulo IV

O Barroco Protestante

Capítulo V

Misticismo e Moralismo

Capítulo VI

Antibarroco 1

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