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Capítulo 1

“Seja bem-vindo à Mansão do General”

Avvena é um lugar inapropriado para quem gosta de


sol e calor. Não há um único dia no ano de tempo totalmente
estável e sem chuva. É úmida, cinzenta, encardida. Nas ruas,
perambulam pessoas cabisbaixas e tristonhas. São raros os
dias festivos, e ainda assim, preenchidos de solenidades. Du-
rante séculos, Avvena foi um quartel gigantesco, e a maior
parte da população era de soldados; os que não eram militares
trabalhavam para eles, e se lhes impunha um regime de ordem
e obediência, o que acabava, enfim, sendo a mesma coisa:
todos seguiam um regime militar. Depois que as conquistas ao
território minguaram e o exército foi incumbido de proteger as
fronteiras, muito distantes do Mar, Avvena tornou-se um pólo
industrial, porque tinha algo difícil de encontrar em outras pro-
víncias: uma massa de trabalhadores obedientes, histórica e
culturalmente incapaz de exigir melhores condições de traba-
lho. Assim, Avvena passou a ser um atrativo, primeiro para as
nascentes indústrias, depois, para pessoas que viviam em situ-
ação de pobreza e miséria nas áreas rurais desta mesma pro-
víncia, que vinham em busca de trabalho – ou, pelo menos, de
um meio de sustento - e por último, para moradores de outras
grandes cidades e do interior de outras províncias ao redor do
Mar. Avvena inchou, alastrou-se pelo vale que ocupava, tomou
a região acidentada que circundava a cidade-quartel, subiu a

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montanha e hoje é um monstro cinzento, frio e empoeirado,
insensível aos seus quatrocentos mil habitantes, e nada convi-
dativa para os visitantes. Eu era um visitante, mas não fui até lá
por causa dos atrativos inexistentes da cidade. Não tive muito
tempo para me preocupar com o mau-humor do clima avveni-
no, nem prestar atenção nas chaminés quilométricas, nem nos
rostos infelizes que compunham a classe trabalhadora às seis
da manhã e às sete da noite. Fui porque tinha um grande inte-
resse na vida de um cidadão ilustre, sobre o qual estive pes-
quisando desde que aprendi a ler: General Petro Velasturvo, o
Lobo Vermelho.

Meu contato físico com Avvena começou na estação de


trens. Teria começado antes, se eu estivesse acordado, e teria
visto praticamente toda a cidade, de cima, pela janela do va-
gão: os trilhos fazem um percurso em espiral pelo perímetro da
cidade velha, pelas encostas da serra, por sobre a absurda
muralha que a circunda. Entretanto, os barbitúricos não reco-
mendados pelo médico me fizeram dormir feito um degrau das
escadarias do Farol, e só fui acordado, a muito custo, pelo
fiscal do trem, quando já estávamos parados. Fui o último pas-
sageiro a descer. Um funcionário do governo, muito prestativo
e jovem, viera buscar-me com um veículo oficial, desses carros
sofisticados que se vêem pouco na Capital. O rapaz apresen-
tou-se com muita cordialidade, e quase nenhuma formalidade.
Chamava-se Platin. Eu teria me enganado se concluísse que
todos os avveninos eram como ele. Posteriormente, descobri

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que Platin era de um lugarejo perdido na imensidão surenha, e
que era tão avesso ao modo de viver avvenino quanto eu e
outros estrangeiros. O jovem encarregou-se de carregar minha
pouca bagagem, apenas duas malas pequenas, rindo da minha
falta de cuidado com o frio que costumava fazer, e em poucos
minutos, fez propaganda de duas lojas de roupas de inverno de
conhecidos seus. Convidou-me para entrar no carro, sem ne-
nhuma formalidade especial – não que eu precisasse de qual-
quer formalidade; apenas achei aquilo estranho e divertido para
um lugar que eu sabia ser o mais antipático do mundo. Entrei
pela porta lateral, e só então percebi que havia mais alguém lá
dentro. Era uma mulher.

— É um prazer, Senhor Plumbeano. Entre. Está muito


frio aí. — e imediatamente, eu soube de quem se tratava. Era
Agatha Pietra Velasturvo, tataraneta e assistente pessoal do
General.

Ela não parecia um militar, pelo menos, não estava


vestida como um. Ao telefone, sua voz era melodiosa e grave,
como a das pessoas que estudam técnica vocal. Em sua pre-
sença, tive a impressão de que era uma personagem de rádio-
romance, ou ao menos, era tal qual eu imaginara, quando cri-
ança, a figura de heroínas como Semmpat de Ture ou Felixcia
Luna – com a diferença óbvia de que estas não eram humanas.
Entretanto, Agatha Velasturvo era, definitivamente, uma pes-
soa diferente, talvez dotada de uma aura não-humana como a

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das heroínas de minha imaginação. Lendo a respeito da histó-
ria pessoal do General Petro, chega-se facilmente à conclusão
de que nunca confiara em ninguém, e que sempre fora asses-
sorado por um familiar. Ela, Agatha, estava como sua fiel escu-
deira desde os primeiros passos. A mim, lembrava uma diva do
rádio.

Ao longo dos cinco quilômetros entre a estação e o ho-


tel, Agatha expôs-me a situação, de modo muito sucinto, claro
e objetivo. Em poucas palavras, agendou a primeira entrevista
para as sete da manhã em ponto do dia seguinte, durante o
desjejum do General. Deixou-me a par do estado de saúde do
herói nacional, que já avançava para a casa dos cento e vinte
anos. Deu-me também algumas explicações, sem espaço para
dúvidas, sobre como referir-me aos tritões na presença do Ge-
neral, porque este jamais acatara os acordos de paz assinados
mais de cinquenta anos antes. Tampouco considerara a Con-
federação das Cidades-Estado do Mar de Luna uma única na-
ção, e por isso, também é um assunto delicado. Por fim, quan-
do o carro já se encontrava diante das portas do hotel, Agatha
estendeu-me a mão, ao que correspondi, dando-me o aperto
de mãos mais pesado que já havia recebido na vida. “Amanhã”,
disse ela, “Platin virá buscá-lo bem cedo. Não abuse dos barbi-
túricos dessa vez”. O ângulo dos seus lábios me fez entender
que se tratava de uma piada. Talvez, o mais perto que um mili-
tar avvenino tenha chegado de uma.

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Choveu continuamente durante toda a madrugada. O
hotel tinha um sistema de calefação eficaz e moderno, o que
me possibilitou uma noite agradável, inevitavelmente sem sono.
Dei-me o luxo de pedir que o serviço de quarto trouxesse um
bule de café e alguns biscoitos, para começar a esboçar minha
entrevista sem precisar descer ao restaurante. Enquanto espe-
rava, tentei olhar pela janela, e tudo o que vi foi a fachada da
fábrica de botas que ocupava a metade da quadra do outro
lado da rua, e duas vezes a altura do hotel. Também não se via
naquele quarteirão mais do que a luz de um poste tímido permi-
tia: uma imensa parede de tijolos, uma guarita, um contêiner de
lixo abarrotado, uns quantos gatos de rua embolados em uma
caixa de madeira que lhes servia de casa. Assim que o relógio
do alto da entrada da fábrica marcou meia-noite, um guarda
caminhou de uma esquina até a outra. Era um bovineu, e estes
sempre foram muito respeitados na infantaria do exército avve-
nino, e ainda mais respeitados na guarda municipal. Já estaria
aí o assunto para um tratado, a diferença de tratamento dado
àquela raça, começando nas caçadas da Capital, passando
pela escravatura, culminando na posição de destaque no exér-
cito e na polícia de Avvenin. Certamente trataria deles na bio-
grafia do General Petro, já que um de seus companheiros no
início da vida de soldado foi Unmonu, que veio a ser herói tanto
de seu próprio povo quanto do nosso, e que lhes garantiu a
alforria oficial e definitiva, mas não o fim do preconceito. Assim
que chegaram o café, os biscoitos e potes com geléias – os
avveninos são pouco sociáveis, mas sabem comer bem – tomei

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meu bloco e uma caneta. Esqueci-me completamente da rua,
da chuva fina, do guarda bovineu que caminhava pesada e
silenciosamente na calçada em frente, e esbocei minhas per-
guntas.

Amanheceu. Tomei o último gole de um café amargo e


frio, sem conseguir mais olhar para biscoitos. Pude ver Platin e
o carro oficial – cor-de-madeira-vermelha com detalhes em
dourado nas extremidades, nos paralamas e nos faróis diantei-
ros, luxuoso mesmo para um carro do governo – subindo a rua.
O dia não estava muito menos escuro nem menos chuvoso que
a madrugada, e Avvena não era mais simpática na claridade
pálida do dia.

Seguindo a estrada na direção sul, depois de uma se-


quência de sobes-e-desces ainda dentro do subúrbio, atraves-
samos os portões do primeiro nível de suas muralhas. Diferente
do centro da cidade, o bairro que circundava a estrada parecia
ainda não ter amanhecido, e foi um custo perceber alguma
coisa além dos muros altíssimos. Era como se a avenida per-
corresse o fundo de um canal, e o bairro ficasse para além de
suas margens. Não fosse pelas pequenas portas de metal, ao
longo de um passeio estreito, eu diria que por ali só passavam
carros. Assim, antes de chegar à zona rural, tudo o que vi da
parte mais pobre de Avennin foi uma rua espremida entre dois
algos muros de alvenaria. Seria lógico que eu tivesse pergun-
tado algo a Platin, o motorista, mas preferi ficar quieto. Concen-

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trei-me na história de meu personagem principal. E, sim, a ideia
que eu fazia dele era a de uma entidade mitológica, e isso cer-
tamente não era culpa minha.

Para o bem ou para o mal, o Lobo Vermelho era tido


como uma figura folclórica. Para seus detratores e a grande
maioria dos ativistas contrários à Confederação das Províncias,
ele era um monstro, um demônio, ou na melhor das hipóteses,
uma marionete da Imperatriz. Para seus admiradores, era um
herói lendário, capaz de proezas bélicas acima da capacidade
humana, dono de uma coleção inigualável de façanhas e o
mais importante dos humanos depois dos primeiros filhos de
Adanno. Para aqueles que permanecem céticos, e que têm
algum interesse nos fatos como eles realmente aconteceram –
como eu – Petro Velasturvo fora um militar competente, um
homem dotado de grande inteligência e poucos escrúpulos. E
eu sei que posso escrever isso assim, sem nenhum medo de
represálias, porque estas não são as minhas palavras, mas as
dele.

Eu precisava de um foco para minha entrevista. A his-


tória dele era realmente muito intensa, e havia demasiados
fatos para tão pouco tempo. Fiquei grato por ter um motorista
guiando – ainda que eu soubesse conduzir um veículo daque-
les, jamais me arriscaria a fazê-lo dentro de uma neblina tão
densa. Além do mais, não me distraí com a rica paisagem rural
de Avvena, pelo fato de parecer que o carro estava todo envol-

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to em lençóis brancos e molhados. Em um momento, tive a
nítida impressão de que Platin estava apenas mantendo o car-
ro em movimento, deixando que a máquina sozinha seguisse
pelo caminho que conhecia. Saquei o bloco e a caneta do bol-
so do casaco. Para retomar o fio de raciocínio, que perdera
assim que saí do quarto do hotel, tentei lembrar da primeira
façanha que tinha ouvido a respeito do General.

Meu pai era aficcionado por objetos históricos, um pes-


quisador entusiasta, profundamente avesso à academia e, hoje
posso admitir, à Igreja. Em uma sala construída em nossa ca-
sa, especialmente para isso, meu pai guardava sua coleção.
Não era como o museu da Universidade do Farol Púrpura, mas
sem dúvida, era um dos maiores acervos particulares da Capi-
tal. Eu, bem como os poucos amigos que tive na infância, tí-
nhamos uma simpatia enorme pelos artefatos de guerra, os
uniformes dos soldados do império, e, principalmente, as ar-
mas. Havia, dentre todas aquelas peças às quais não podía-
mos fazer nada além de olhar, uma espada; um sabre para ser
mais exato. No pedestal onde ela ficava, havia a reprodução de
um quadro da época, que retratava um oficial do Exército a
frente de uma quantidade incontável de soldados em marcha, e
esse oficial empunhava, apontando para o alto, aquele mes-
míssimo sabre. Meu pai contava que aquela não era uma peça
original, mas era uma cópia fiel da Guardiã do Mar, e que seu
dono, o homem que a empunhava, era o Lobo Vermelho, o
maior herói da guerra contra os invasores delfins. Então, meu

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pai contava todo tipo de história sobre ele, e que eu e meus
amigos costumávamos reproduzir em nossas brincadeiras,
amarrando toalhas e lençóis às costas como capas, e cada um
com uma “Guardiã do Mar” feita das pernas de uma cadeira
velha. Fazíamos um sorteio, todas as tardes, para decidir quem
seria o Lobo Vermelho, depois, quem seria Unmonu, seu com-
panheiro de aventuras, e, por fim, quem seriam os adversários:
príncipes delfins, lordes adormecidos, bruxos linces, guerreiros
bárbaros. E eu recordo de sempre gostar mais de interpretar os
vilões, enquanto meus amigos se estapeavam para disputar
quem seriam os heróis. Ao final da brincadeira era sempre eu,
ou melhor, o inimigo do Mar de Luna, quem tinha a pior sorte,
mas não antes de ter deixado muitos soldados caídos, ter der-
rubado o “Bovineu Invencível” e decepado uma das pernas do
Lobo Vermelho – e eu nunca tinha certeza se era a direita ou a
esquerda.

Havia dezenas de versões explicando a razão de o


General Velasturvo usar uma perna mecânica, e a maior parte
delas era, no mínimo, fantasiosa. A minha preferida era esta:

Numa tarde de inverno, Petro e seus colegas praticavam


luta no pátio da escola, quando foram surpreendidos por
um lobo selvagem. Eles ainda não o haviam percebido
porque era um lobo branco, e se esgueirou na neve até
chegar perto o suficiente para atacar de surpresa. Os ou-
tros meninos fugiram apavorados, mas Petro não teve a

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mesma sorte: o lobo saltou em sua direção e, para impe-
dir que fugisse, abocanhou sua perna e o derrubou. O
menino teve o sangue frio de fingir-se de morto. Quando
o predador soltou sua perna para conferir se a presa es-
tava realmente abatida, Petro reagiu. Com presteza, en-
fiou as duas mãos no focinho do animal, segurando suas
mandíbulas fechadas e avançou com os dentes contra o
pescoço peludo do lobo. A fúria de Petro era tão grande
que o couro do predador rasgou-se como um trapo velho,
e músculos e veias iam-se rompendo à medida que o
menino mordia. Só depois disso é que o professor de luta
veio em seu auxílio, mas aí, o lobo, que era branco, já
estava morto, todo tingido de vermelho. A perna do me-
nino Petro teve de ser amputada. Todos, a partir daquele
dia, passaram a temê-lo e respeitá-lo. Como um pedido
de desculpas, a esposa do professor de luta fez para o
menino um casaco feito da pele do lobo, que nunca mais
pode ser alvejado, manchado de sangue para sempre.

Eu ri sozinho no banco de trás do carro. Como aque-


las historietas eram marcantes para as crianças! Era bem
provável que, se eu perguntasse para qualquer um dos
meus amigos de infância, eles teriam lembrado desta, “O
menino e o lobo branco”, talvez com as mesmas palavras.
Percebendo que eu ria – devo até ter falado sozinho, em voz
alta – Platin olhou-me pelo espelho, devolvendo-me o sorri-
so.

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— Já conhece o General, Senhor Plumbeano? Digo,
já o viu alguma vez?
— Pode me chamar apenas Guinen, Platin. Só vi o
General em fotografias. Por que a pergunta?
— Porque a última vez que ele foi visto em público,
ele estava bem diferente — respondeu, enfático.
— Diferente como? — eu quis saber.
— Não precisa se preocupar. Você já vai ver. Che-
gamos. Seja bem-vindo à Mansão do General.

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