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montanha e hoje é um monstro cinzento, frio e empoeirado,
insensível aos seus quatrocentos mil habitantes, e nada convi-
dativa para os visitantes. Eu era um visitante, mas não fui até lá
por causa dos atrativos inexistentes da cidade. Não tive muito
tempo para me preocupar com o mau-humor do clima avveni-
no, nem prestar atenção nas chaminés quilométricas, nem nos
rostos infelizes que compunham a classe trabalhadora às seis
da manhã e às sete da noite. Fui porque tinha um grande inte-
resse na vida de um cidadão ilustre, sobre o qual estive pes-
quisando desde que aprendi a ler: General Petro Velasturvo, o
Lobo Vermelho.
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que Platin era de um lugarejo perdido na imensidão surenha, e
que era tão avesso ao modo de viver avvenino quanto eu e
outros estrangeiros. O jovem encarregou-se de carregar minha
pouca bagagem, apenas duas malas pequenas, rindo da minha
falta de cuidado com o frio que costumava fazer, e em poucos
minutos, fez propaganda de duas lojas de roupas de inverno de
conhecidos seus. Convidou-me para entrar no carro, sem ne-
nhuma formalidade especial – não que eu precisasse de qual-
quer formalidade; apenas achei aquilo estranho e divertido para
um lugar que eu sabia ser o mais antipático do mundo. Entrei
pela porta lateral, e só então percebi que havia mais alguém lá
dentro. Era uma mulher.
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das heroínas de minha imaginação. Lendo a respeito da histó-
ria pessoal do General Petro, chega-se facilmente à conclusão
de que nunca confiara em ninguém, e que sempre fora asses-
sorado por um familiar. Ela, Agatha, estava como sua fiel escu-
deira desde os primeiros passos. A mim, lembrava uma diva do
rádio.
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Choveu continuamente durante toda a madrugada. O
hotel tinha um sistema de calefação eficaz e moderno, o que
me possibilitou uma noite agradável, inevitavelmente sem sono.
Dei-me o luxo de pedir que o serviço de quarto trouxesse um
bule de café e alguns biscoitos, para começar a esboçar minha
entrevista sem precisar descer ao restaurante. Enquanto espe-
rava, tentei olhar pela janela, e tudo o que vi foi a fachada da
fábrica de botas que ocupava a metade da quadra do outro
lado da rua, e duas vezes a altura do hotel. Também não se via
naquele quarteirão mais do que a luz de um poste tímido permi-
tia: uma imensa parede de tijolos, uma guarita, um contêiner de
lixo abarrotado, uns quantos gatos de rua embolados em uma
caixa de madeira que lhes servia de casa. Assim que o relógio
do alto da entrada da fábrica marcou meia-noite, um guarda
caminhou de uma esquina até a outra. Era um bovineu, e estes
sempre foram muito respeitados na infantaria do exército avve-
nino, e ainda mais respeitados na guarda municipal. Já estaria
aí o assunto para um tratado, a diferença de tratamento dado
àquela raça, começando nas caçadas da Capital, passando
pela escravatura, culminando na posição de destaque no exér-
cito e na polícia de Avvenin. Certamente trataria deles na bio-
grafia do General Petro, já que um de seus companheiros no
início da vida de soldado foi Unmonu, que veio a ser herói tanto
de seu próprio povo quanto do nosso, e que lhes garantiu a
alforria oficial e definitiva, mas não o fim do preconceito. Assim
que chegaram o café, os biscoitos e potes com geléias – os
avveninos são pouco sociáveis, mas sabem comer bem – tomei
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meu bloco e uma caneta. Esqueci-me completamente da rua,
da chuva fina, do guarda bovineu que caminhava pesada e
silenciosamente na calçada em frente, e esbocei minhas per-
guntas.
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trei-me na história de meu personagem principal. E, sim, a ideia
que eu fazia dele era a de uma entidade mitológica, e isso cer-
tamente não era culpa minha.
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to em lençóis brancos e molhados. Em um momento, tive a
nítida impressão de que Platin estava apenas mantendo o car-
ro em movimento, deixando que a máquina sozinha seguisse
pelo caminho que conhecia. Saquei o bloco e a caneta do bol-
so do casaco. Para retomar o fio de raciocínio, que perdera
assim que saí do quarto do hotel, tentei lembrar da primeira
façanha que tinha ouvido a respeito do General.
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pai contava todo tipo de história sobre ele, e que eu e meus
amigos costumávamos reproduzir em nossas brincadeiras,
amarrando toalhas e lençóis às costas como capas, e cada um
com uma “Guardiã do Mar” feita das pernas de uma cadeira
velha. Fazíamos um sorteio, todas as tardes, para decidir quem
seria o Lobo Vermelho, depois, quem seria Unmonu, seu com-
panheiro de aventuras, e, por fim, quem seriam os adversários:
príncipes delfins, lordes adormecidos, bruxos linces, guerreiros
bárbaros. E eu recordo de sempre gostar mais de interpretar os
vilões, enquanto meus amigos se estapeavam para disputar
quem seriam os heróis. Ao final da brincadeira era sempre eu,
ou melhor, o inimigo do Mar de Luna, quem tinha a pior sorte,
mas não antes de ter deixado muitos soldados caídos, ter der-
rubado o “Bovineu Invencível” e decepado uma das pernas do
Lobo Vermelho – e eu nunca tinha certeza se era a direita ou a
esquerda.
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mesma sorte: o lobo saltou em sua direção e, para impe-
dir que fugisse, abocanhou sua perna e o derrubou. O
menino teve o sangue frio de fingir-se de morto. Quando
o predador soltou sua perna para conferir se a presa es-
tava realmente abatida, Petro reagiu. Com presteza, en-
fiou as duas mãos no focinho do animal, segurando suas
mandíbulas fechadas e avançou com os dentes contra o
pescoço peludo do lobo. A fúria de Petro era tão grande
que o couro do predador rasgou-se como um trapo velho,
e músculos e veias iam-se rompendo à medida que o
menino mordia. Só depois disso é que o professor de luta
veio em seu auxílio, mas aí, o lobo, que era branco, já
estava morto, todo tingido de vermelho. A perna do me-
nino Petro teve de ser amputada. Todos, a partir daquele
dia, passaram a temê-lo e respeitá-lo. Como um pedido
de desculpas, a esposa do professor de luta fez para o
menino um casaco feito da pele do lobo, que nunca mais
pode ser alvejado, manchado de sangue para sempre.
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— Já conhece o General, Senhor Plumbeano? Digo,
já o viu alguma vez?
— Pode me chamar apenas Guinen, Platin. Só vi o
General em fotografias. Por que a pergunta?
— Porque a última vez que ele foi visto em público,
ele estava bem diferente — respondeu, enfático.
— Diferente como? — eu quis saber.
— Não precisa se preocupar. Você já vai ver. Che-
gamos. Seja bem-vindo à Mansão do General.
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