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O Cura d´Ars

Por Daniel-Rops

O jovem pároco João Maria Batista Vianney não prometia sucessos retumbantes, mas ao ser nomeado para o vilarejo
perdido de Ars, o seu imenso amor a Deus transformou a fundo não apenas os seus paroquianos, mas milhões de
peregrinos da França inteira

Era ao entardecer de 9 de fevereiro de 1818, uma terça-feira. Um pastorinho de dezesseis anos,


Antoine Givre, que guardava as ovelhas na lande das Dombes, teve um encontro estranho, que
havia de recordar durante toda a vida. Ia cair a noite. Já as luzes se acendiam nas janelas das casas,
agrupadas a algumas centenas de metros, para além de um valado. Do lado da estrada de Lyon, o
rapaz ouviu um barulho e olhou: era um padre que avançava a grandes passadas de camponês; a seu
lado, uma velha de touca na cabeça; atrás deles, uma carriola vacilante, carregada de fardos e de
uma misturada de coisas, no meio das quais se via uma cama de madeira. O padre saudou o
pequeno e perguntou-lhe se ainda estava longe de uma aldeia chamada Ars. Antoine indicou com a
mão o humílimo povoado que já se ocultava no crepúsculo. “Como é pequeno!”, murmurou o
padre. E ajoelhou-se. Em silêncio, durante muito tempo, rezou, de olhos postos nas casas. Rezou
com um fervor e uma atenção extraordinários. Dir-se-ia que via coisas de que os outros não faziam
a menor idéia. Ao levantar-se, olhou para o rapaz e, com voz muito simples, disse: “Tu mostraste-
me o caminho de Ars... Um dia hei de mostrar-te o caminho do Céu” 1. Em seguida, retomou a
marcha. A capelania de Ars-en-Dombes – que não tinha mais de duzentas almas e estava
subordinada à paróquia de Misérieux, da diocese de Lyon – recebia o seu novo encarregado.

Chamava-se Jean-Marie Vianney. Nascera trinta e dois anos antes (1786), numa aldeia situada a
umas dez léguas, Dardilly, onde os pais eram gente dedicada ao campo; e gente piedosa, como
ainda havia tantos na França. Por curiosa coincidência, um dia sentara-se à mesa deles São Bento
Labre, “o anjo andrajoso”, no decurso da sua grande peregrinação. Já aos sete anos, o pequeno Jean-
Marie mostrara uma inclinação tão evidente para a oração que se falara de fazer dele frade ou padre.
Levava para os campos onde guardava algumas vacas uma imagenzinha de Nossa Senhora, que
colocava no buraco de um salgueiro para se ajoelhar diante dela. Com a Revolução, viera a grande
caça aos padres. O pequeno tivera de aprender o catecismo às escondidas e de fazer a primeira
comunhão clandestinamente, numa casa com a porta e as janelas fechadas. E o espetáculo da
resistência do clero francês à perseguição acabara de enraizar nele a vocação religiosa. Mais ainda:
uma vocação para o heroísmo, o sacrifício, a grandeza espiritual.

Infelizmente, para ser padre e ter o direito e os meios de “ganhar almas para Deus”, não basta a boa
vontade, não basta o impulso do coração: é preciso estudar, aprender latim, liturgia, teologia e tantas
coisas mais! Nesse campo, Jean-Marie Vianney mostrara-se muito decepcionante. O seu cérebro,
maravilhosamente capaz de fixar os fatos da vida prática e de penetrar nos seres, era radicalmente
incapaz de armazenar as declinações latinas e as mais elementares noções de dogmática! Se não
tivesse encontrado no seu caminho um homem para o compreender, não há dúvida de que nunca
teria chegado a vencer os sucessivos obstáculos que o separavam do sacerdócio. Nos seminários de
Verrières e, depois, no de Santo Ireneu, perto de Lyon, que fraca figura tinha feito o pobre pequeno!
Mas M. Belley velara por ele, M. Belley, pároco de Ecully, abelha operária de uma dessas equipes
de missionários que, em pleno Terror, o pe. Linsolas, vigário geral de Lyon, tivera a audácia de
fundar. Graças a Belley, Jean-Marie conseguira receber o diaconado, em 1814, e, no ano seguinte (a
13 de agosto), a ordenação sacerdotal, na capela do Seminário Menor de Grenoble, algumas
semanas depois da queda do Império. Coadjutor em Ecully, acabara de se preparar junto do seu
mestre para uma existência sacerdotal inteiramente devotada às almas e também cheia de práticas
de piedade e ascese: flagelações, jejuns, cilício. Era de Ecully que chegava, nesse entardecer
brumoso de 9 de fevereiro de 1818, à minúscula aldeia de Ars. E lá iria ficar durante quarenta e um
anos...

Fisicamente, era um corpanzil rústico, de andar pesado, rosto alongado e magro, cujas “maçãs” se
iam adelgaçando até ao queixo esguio, e em que o nariz ossudo despontava sobre uns lábios finos.
O único dado apreciável dos seus traços sem graça eram os olhos, olhos de um azul-cinzento, de
uma limpidez e uma capacidade de concentração igualmente extraordinárias. Mais tarde, quando
estiver no auge da sua celebridade, uma toleirona burgue, , sa, vinda expressamente de Paris para
admirar o grande homem, vendo-o assim, exclamará: “É só isto, o Cura d´Ars?!” Pois só isso, esse
camponês bronco, mal vestido, com uma batina remendada e esverdeada à força de uso, esse
homenzinho facilmente brincalhão e que se chamava a si próprio o burrinho ou o idiota da aldeia?!
Como não deixar desconcertada uma parisiense! E essa reputação de ignorante, de caranguejo com
orelhas de burro, que o seguia desde o seminário e que ele mesmo parecia cultivar com prazer...

Mas a verdade desse homem não estava aí. É óbvio que era exatamente o contrário desse minus
habens, desse “primário intelectual” de que falariam os redatores da Idée libre. A inteligência não se
mede só pela dose de conhecimentos livrescos que pode assimilar, e, quanto a tudo o que pertencia
à vida e não ao impresso, Jean-Marie Vianney era uma inteligência fora de série. E, sobretudo,
havia nele alguma coisa superior à inteligência: uma forma de “ver as coisas do alto”, como disse o
cardeal de Bonald, um dom de intuição que escapava a toda a lógica, mas que se revelava quase
infalível, uma grandeza que se impunha ao interlocutor mais obtuso ou mais hostil: numa palavra,
uma força soberana, a par da simplicidade mais natural e da mais autêntica humildade. “Para crer na
presença do Sobrenatural – pôde alguém dizer dele –, basta olhá-lo”. Todos os que o viram deram o
mesmo testemunho da sua irradiação espiritual, da misteriosa “aura” que rodeava o seu corpo sem
prestígio. Uma palavra resume tudo sobre a realidade profunda que o sustentava. Foi dita pelo bispo
de Belley, num dia em que alguns padres deploravam diante dele, cheios de compaixão, a
ignorância do seu confrade, a nulidade que era em matéria de teologia e de casuística: “Não sei se
ele é instruído; sei que é iluminado”.

Assim era, pois, aquele que Ars-en-Dombes ia guardar durante quarenta e um anos seguidos, aquele
que viria a identificar-se tão totalmente, tão plenamente, com essa ínfima aldeia, que iria como que
ser absorvido por ela, perder até o nome de família a favor do seu pobre título, não ficando a ser,
“tanto no futuro como no Céu”, nada mais que o Cura d´Ars 2. Quarenta e um anos, “e sempre
contra vontade” – diz a excelente Catherine Lassagne, que o acompanhou no seu presbitério.
Porque, torturado pela angústia de não ser digno da pesada missão de padre, esse humilde diante de
Deus há de fugir da paróquia pelo menos três vezes, decidido a deixar o lugar “a alguém menos
ignorante”, e serão os próprios paroquianos que o reterão, à custa de mil e uma astúcias. Quarenta e
um anos de uma vida que, aparentemente, parecerá a mais banal, a mais monótona que se possa
imaginar, mas na qual se desenrolará, num plano que já não pertence à terra, a aventura mística
mais espantosa da sua época.

Quando Jean-Marie chegou, Ars não passava da mais morna das comunidades cristãs. “Lá, não
gostavam muito de Deus”. Mas, logo que viram como vivia o novo cura, os paroquianos
compreenderam que alguma coisa tinha mudado. Começou por mandar restituir ao castelo os
móveis confortáveis que a piedosa Mme. des Garets tinha emprestado ao presbitério. Depois, pôs-se
a restaurar a igreja, que estava caindo aos pedaços, fazendo por suas próprias mãos “o trabalho
doméstico de Deus”. A seguir, só se falava na aldeia de que o novo encarregado da capelania de Ars
tinha um modo singularíssimo de alimentar-se: umas tantas côdeas de pão seco, uma panela de
batatas, que mandava coser cada três semanas e que ia comendo frias. Por último, as boas mulheres
que, de tempos a tempos, conseguiam penetrar na casa paroquial para cuidar dos trabalhos
domésticos, contavam que encontravam roupa ensangüentada, manchas vermelhas nas paredes... E
compreendeu-se então para que serviam as correntes que o padre mandara forjar na oficina do
ferreiro. Esses jejuns, essas penitências – que o Cura d´Ars conservará durante toda a vida – fizeram
tanto maior impressão quanto a verdade é que essa terrível ascese não impedia M. Vianney de ser de
uma delicadeza, de uma mansidão perfeitas, sem querer impor a ninguém os golpes de disciplina
que a si mesmo infligia – e que nem uma só vez deixou transparecer. Quando, porém, este ou aquele
se permitia aludir aos rigores que ele aplicava ao seu corpo, respondia com o melhor dos sorrisos
que era coisa muito apropriada para “o velho Adão” ou “o cadáver”...

Poder do exemplo: foi, indubitavelmente, por aí que Jean-Marie Vianney se impôs: primeiro, às
suas ovelhas; depois, a outras. Pouco a pouco, a paróquia transformou-se. Homens, mulheres,
crianças foram agrupados em confrarias ou obras. Abriu-se uma escola gratuita, a “Casa da
Providência”, aonde afluíram as meninas, incluindo as órfãs, as abandonadas, as desafortunadas. Os
maus hábitos, como o do baile e da taberna, contra os quais o padre era severo, foram
desaparecendo da paróquia. Para não o desgostarem, os moços e as moças menos recatados
refreavam o seu comportamento. “O respeito humano voltou-se do avesso”, e passou a ser tão
vergonhoso apanhar uma bebedeira como o era, na véspera, não beber com os outros. A igreja,
ainda ontem meio vazia, encheu-se e, como a gente dos arredores ganhou o costume de a freqüentar,
passou a ser pequena. Quem havia de prever semelhante mudança, quando, meia dúzia de anos
antes, o arcebispo encarara seriamente a hipótese de suprimir a paróquia?

E, no entanto, Jean-Marie Vianney não era grande orador; o que servia aos seus ouvintes não eram
grandes trechos de eloqüência. Tinha a voz gutural; tendia a gritar; muitas vezes perdia o fio do
discurso, parava e depois retomava a palavra fosse lá como fosse; por fim, como não sabia como
acabar, cortava o sermão e descia do púlpito subitamente. Quanto à matéria dos sermões, nada tinha
de original. O mesmo se diga da catequese, que dava a crianças e adultos várias vezes por semana.
Não tinha escrúpulo em ir buscar material às coletâneas de Bonnardel, de Joly, de Billot, do pe.
Lejeune, sermonários de largo uso na época, assim como ao catecismo do campo. Copiava um
parágrafo aqui, outro acolá, harmonizava-os conforme podia; mas, sobre todo esse mosaico, punha
a sua marca, transformando as frases excessivamente bem construídas em fórmulas simples,
populares, com comparações e imagens que impressionavam o ouvinte. Por exemplo: para mostrar
a ação do pecado na alma, comparava-o a uma mancha de azeite num pano de lã: mesmo que a
lavemos dez vezes, não sai! E, ao passarem pelos seus lábios – todos os que o ouviram concordam
nisto –, esses pobres sermões ganhavam um poder de sugestão extraordinário. Podia anunciar os
castigos do Juízo Final, ou falar interminavelmente do amor de Deus pelos homens, da sua infinita
misericórdia, que encontrava sempre, como por instinto, as palavras que iam até ao fundo das
almas. E que dom de descobrir fórmulas! Pelo menos uma delas ficou a pertencer ao mais raro
florilégio do pensamento cristão. Ouvindo certo dia uma viúva que estava angustiada porque o
marido se tinha lançado ao rio e se afogara, e que tremia convencida de que ele se condenara, que
lhe respondeu o Cura de Ars? Simplesmente isto: “Entre a ponte e a água, houve tempo para o
arrependimento e o perdão”. Entre a ponte e a água...

Era assim o padre que a aldeia de Ars conservou por quarenta e um anos. O padre. E esta única
palavra diz tudo. Porque Jean-Marie Vianney não foi senão um padre, um simples padre, todo ele
entregue às almas, devorado pela sua missão, integralmente fiel à sua vocação. Nada mais que isso;
nada menos que isso. Mas esse sacerdócio, que estivera a ponto de lhe ser recusado, fê-lo ele subir a
um nível tão alto que se revelou inigualável. Nunca ninguém falou melhor que ele acerca do padre,
da grandeza da sua função, do seu papel sobrenatural. “Ah! Como o padre é qualquer coisa de
grande! O padre só poderá ser compreendido no Céu. Se o compreendêssemos neste mundo,
morreríamos – não de terror, mas de amor... Depois de Deus, o padre é tudo! Deixai uma paróquia
vinte anos sem padre: hão de adorar os animais!”
Mas também ninguém disse melhor que ele o que há de terrível para um homem em ser depositário
do poder de Deus, em ter o direito de absolver e o de fazer o próprio Deus descer à hóstia. “Como é
terrível ser padre!” – repetia muitas vezes –, e o seu rosto inundava-se de lágrimas. “Como é de
lamentar um padre quando diz missa como coisa banal... Oh!, como é infeliz um padre a quem falte
interioridade!” Um padre. Apenas padre. Aí reside o caráter extraordinário da sua aventura. Foi só
por não ter sido nada mais que padre que Jean-Marie Vianney se tornou uma glória da terra, antes
de ser um santo.

Sim. Pouco a pouco, ou melhor, bem depressa, o renome do Cura d´Ars transbordou do quadro
estreito da sua minúscula paróquia. Chamavam-no aqui, ali, acolá, para falar, para confessar. E,
sobretudo, espontaneamente, havia homens e mulheres que se lançavam à estrada, por terem ouvido
dizer que, algures nos Dombes, numa aldeia perdida, havia um padre que falava de Deus,
confessava, confortava. Menos de dez anos depois de ter chegado, a corrente de peregrinos que
afluía a Ars tomara a força de um acontecimento, não somente regional, mas nacional e
internacional. Calcula-se em 80.000, em média, os peregrinos que, ano após ano, e durante trinta
anos, se sucederam em Ars. No último ano, que foi o da morte do santo, foram para cima de
100.000. A aldeia mais que duplicou. À volta da igreja, conforme se vê nas gravuras da época,
multiplicaram-se as “pensões burguesas” e as lojas onde se vendiam objetos de devoção.

Quem eram esses que acorriam a Ars? Vinham de todos os países, pertenciam a todas as classes
sociais. Aquele a quem os companheiros de seminário chamavam pobre de espírito, aquele de quem
alguns colegas de sacerdócio troçavam por ser intelectualmente nulo, era procurado por homens
notáveis que o vinham consultar: intelectuais de alto nível, almas comprovadamente espirituais,
como, por exemplo, o pe. Lacordaire, preocupado com o futuro da sua Ordem, ou o pe. Chevrier,
fundador, em Lyon, do Prado, ou o pe. Muard, que iria fundar os beneditinos da Pierre-qui-Vire, ou
mons. Ségur, o bispo cego, ou mons. Ullathorne, inglês convertido, discípulo de Wiseman, por este
enviado a Roma para resolver a questão do restabelecimento da Hierarquia na Inglaterra e que
parou em Ars e chegou a pensar em nunca mais sair de lá... Não havia ninguém que não se retirasse
consolado, encorajado, guiado. Ninguém que não pudesse dizer, como certo humilde vinhateiro do
Mâcon: “Vi Deus num homem”.

Esse prodigioso afluxo teve, para o Cura d´Ars, uma conseqüência penosa. A sua vida tornou-se a
vida de um forçado de Cristo, noite e dia preso a uma tarefa cuja amplitude ia além das forças
humanas. É certo que lhe tinham dado um auxiliar, que, de resto, pelo seu temperamento, foi para
ele, muita vez, ocasião de penitências suplementares... E até se constituiu um grupo de missionários
destinado a ajudá-lo. Mas era ele, só ele, quem os inúmeros fiéis queriam ver; só a ele queriam
confiar as suas misérias; só dele esperavam esperança e paz.

Então, devorado pelo zelo das almas, Jean-Marie Vianney fez-se escravo do confessionário. Nessa
pequena caixa de madeira em que no inverno gelava e no verão abafava, passava horas, dias, meses,
anos inteiros... Chegou a ficar lá dezoito horas seguidas! Também chegou a desmaiar, sufocado com
a falta de ar e o mau cheiro. Os dias eram para ele “regulados como uma pauta de música”. Pouco
depois da meia noite, ia para a igreja, de lanterna na mão. Já a multidão o esperava à porta e logo
começava o desfile. Foi preciso organizar um serviço de ordem! As mulheres eram atendidas no
confessionário, que ficava numa capela lateral. Os homens que não gostavam de ser vistos iam à
sacristia. Os padres – o próprio bispo de Belley – ajoelhavam-se por trás do altar-mor. Quer a
confissão fosse longa ou curta, a exortação do padre era sempre breve, mas bastava para que o
penitente ficasse transtornado e, muitas vezes, se retirasse de rosto banhado em lágrimas. Nesse
desenrolar atrozmente monótono de feios pecados, de impurezas grandes ou pequenas, só duas
interrupções: uma, para a missa, pelas quatro da manhã; outra, para o catecismo, às onze. E isso
durou mais de trinta anos...

Semelhante heroísmo seria ainda deste mundo? À volta desse homem de Deus, o sobrenatural
surgia em tudo. Uma coisa era certa: ele tinha o dom de ler nos corações. Bem o descobriam à sua
custa aqueles que tentavam trapacear com Deus, calar pesadas faltas, diminuir um pouco a conta
dos anos em que não se tinham confessado: com um olhar, o padre trespassava-os como um raio de
luz, e, em duas palavras, situava-os diante da triste verdade da sua miséria.
Veria ele ainda mais alguma coisa, outras realidades? Ferozmente mudo sobre este ponto, fugindo a
todas as perguntas, recusava-se a dizer se era verdade que tivera visões de Nossa Senhora, de São
João Batista, de alguns outros santos talvez, como insistentemente se dizia. “Uma impressão que
tive muitas vezes – diz um dos seus íntimos, que freqüentemente o ajudava à missa – é que ele via
aquilo que adorava”. Mas havia outro capítulo sobre o qual o santo era um pouco mais loquaz: o da
luta terrível, que, por mais de trinta anos, sustentou com o adversário, o próprio Satanás, a quem
chamava, com um termo saboroso, “le grappin” [“a fisga”], e que reconhecia ter encontrado tanta
vez que eram “como dois velhos camaradas”. Quanto aos seus milagres, dos quais o processo de
canonização consideraria uns trinta, todos eles tinham um ar de simplicidade que devemos dizer
evangélica: multiplicação do pão para o orfanato da paróquia, cura de enfermos, leituras do futuro.
Em todos eles se encontrava, como diziam os cristãos da primitiva Igreja, “o bom odor de Cristo”.

A glória humana acompanhou essa glória celeste, singularmente manifestada na terra. Os peregrinos
de Ars difundiam-na ao longe e ao largo, de modo que vinham pelas estradas das Dombes curiosos,
até descrentes, que, na maior parte dos casos, de lá voltavam adivinhados, confusos, demudados. A
imprensa falava. Nas lojas próximas da igreja, vendiam-se estampas com a figura do santo cura, o
que bastava para o fazer zangar-se: “É o meu carnaval”, dizia ele, mostrando-as. Pôs no olho da rua
o escultor que teve a imprudente audácia de lhe pedir licença para fazer a sua estátua. Quando o
bispo lhe enviou a murça de cônego honorário, o santo agradeceu-lhe muito amavelmente, mas logo
vendeu o inútil ornamento e pôs o dinheiro ao serviço dos pobres. Quanto à Legião de Honra que o
sub-prefeito de Trévoux conseguiu para ele, recusou-se evidentemente a colocá-la ao peito e
imediatamente a deu de presente, visto que era um objeto sem valor comercial e inútil para as suas
obras de caridade. Nada lhe iria faltar para entrar na lenda em vida. Nada: nem sequer a ácida inveja
de alguns dos seus confrades, ou a gritaria daqueles a quem incomodava, ou até as cartas anônimas
e as injúrias. A todos os ataques respondia afirmando que os piores tratamentos eram ainda suaves
demais para um asno e um pecador da sua laia, o que deixava envergonhados os cínicos.

Nos últimos dias de julho de 1859, a morte, cuja chegada anunciara, veio arrancá-lo por fim à sua
tarefa sem medida. Morreu na noite de 3 de agosto, de olhos voltados para o Céu, “com uma
expressão extraordinária de fé e de felicidade”, no dizer de uma testemunha. E logo acorreram
multidões, massas imensas de gente, em que se misturavam os ricos e os pobres, entre eles o novo
bispo de Belley, que se deslocou a pé desde Meximieux, a quarenta quilômetros, “sem fôlego,
comovido, rezando em voz alta”. Ars bem sabia que tinha acabado de perder um santo3.

(1) Antoine Givre morreu algumas semanas depois do Cura d´Ars.

(2) Ars foi erigida em paróquia em 1821. Em 1823, integrou-se na diocese de Belley, quando esta
foi reconstituída.
(3) João Maria Vianney foi proclamado Venerável por Pio IX (1872), beatificado por São Pio X
(1905) e canonizado por Pio XI (1925), que o declarou Padroeiro de todos os párocos do mundo em
1929.

Daniel-Rops
Pseudônimo literário de Henri Petiot. Nasceu em Épinal, em 1901, e faleceu em Chambéry, em 1965. Foi professor de
História e diretor da revista Ecclesia (Paris), e tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de historiografia
que publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes O povo bíblico (1943), Jesus no seu tempo (1945) e
os onze tomos desta História da Igreja de Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de literatura
infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte, onde está a tua vitória? (1934) e A espada de fogo
(1938). Foi eleito para a Academia Francesa em 1955.

Fonte: HI-VIII - A Igreja das Revoluções (I). Quadrante. São Paulo:2003. Págs. 750-758.
Tradução: Henrique Ruas
Link: http://www.quadrante.com.br/

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