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IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DO BRASIL

FUNDAÇÃO EDUARDO CARLOS PEREIRA


SEMINÁRIO TEOLÓGICO REV. ANTONIO DE GODOY SOBRINHO
STAGS

SÉRGIO GINI
(PRESBITÉRIO DE MARINGÁ)

EXEGESE DO NOVO TESTAMENTO

JOÃO 1: 1-18

Trabalho apresentado para a obtenção de créditos


da disciplina Exegese do Novo Testamento, no
curso de Reciclagem Teológica (conforme o
artigo 47, § 1º da Constituição da IPI do Brasil)
com orientação do Prof. Dr. José Adriano Filho.

Londrina
2009
1

Introdução
João 1: 1-18 apresenta um prólogo em forma de hino cristológico com uma
estruturação que se difere do início dos outros evangelhos. Um prólogo que antecipa os
grandes temas que aparecerão e reaparecerão ao longo do quarto evangelho: a palavra, a vida,
a luz, a verdade, o mundo, as trevas, o testemunho, a glória, a fé, a filiação divina de Jesus, os
homens e a sua relação com Deus. O testemunho de João Batista apresentará Jesus como
profeta e protagonista da “nova terra”, muito superior a Moisés.
O quarto evangelho é tido como o Evangelho da Vida (Jo 6:35; 8:12; 11:25), da
grande revelação do amor de Deus. Apresenta preocupação menos cronológica do que
teológica dos eventos ligados a Jesus. O prólogo contém a chave da cristologia da
comunidade joanina (1:1, 14, 18): “o Verbo era Deus” (v.1). “E o Verbo se fez carne, e
habitou entre nós; e nós vimos sua glória, glória que ele tem junto do Pai como Filho único,
cheio de graça e verdade” (v.14). Jesus é o Filho de Deus que, visivelmente, manifesta as
obras do Pai pela sua vida e ação, gestos e palavras.
Propomos-nos a fazer um estudo exegético desse prólogo abordando o texto a partir de
suas dimensões literárias, teológicas e sociais, além de procurarmos entender a relevância do
mesmo para os dias atuais. Nesse trabalho, a dimensão literária envolverá a tradução do texto,
sua delimitação, forma literária e estrutura, bem como as razões desses procedimentos para o
estudo exegético. Ao analisarmos a sua dimensão teológica, nos deteremos no conteúdo dos
versículos que formam a perícope estudada, isto é, a substância que compõe e da vida ao
texto. A dimensão social será analisada a partir das circunstâncias histórico-sociais do texto,
voltando também para entender o "como" e o "porquê" dessas circunstâncias terem dado
origem à sua composição. Finalizaremos com a pergunta pela relevância do texto, entendendo
o seu sentido e a possibilidade de um ressignificado para as comunidades cristãs atuais.
Nesse trabalho exegético veremos, portanto, como João 1: 1-18 fundamenta o
cumprimento da esperança messiânica, tendo por base a encarnação do Verbo de Deus. O
texto revela também a oportunidade que todos têm de receber o Verbo e de se tornarem
“filhos de Deus” a partir de um ato de fé. Com Jesus é possível relacionar o cosmo e a
humanidade, desde que essa se aproxime da “verdadeira luz”. Jesus, o Verbo, portanto,
funciona como um despertador da inteligência divina imanente no homem e produz o
surgimento de uma consciência renovada, o segundo nascimento mencionado no célebre
diálogo com Nicodemos (João 3:2). O modo de revelação do prólogo, operando em todo o
contexto do evangelho, mostrará o sentido da vida de Jesus para o ser humano.
2

1. Texto grego e tradução de João 1: 1-18


A tradução nesse trabalho exegético visa abordar o sentido do texto em seu contexto
primeiro, buscando o significado do alvo primário, bem como o seu grau de fidelidade ao
texto original e ao leitor1. O texto de João 1: 1-18 nos guiará a um processo de comunicação
onde pretendemos examinar várias facetas do contexto em que o mesmo se desenvolveu e
quais as influências sofridas por ele. Abordaremos uma relação histórica-crítica e, embora
prefiramos o método de tradução formal, acreditamos ser válido para um entendimento
contemporâneo “o princípio do interesse pela recepção do texto”.2

1.1. Texto grego


1 2
Εν ρχ
ν λóγο̋, καì λóγο̋
ν πρò̋ τòν θεóν, καì θεò̋
ν λóγο̋. οτο̋
ν
3
ν ρχ πρò̋ τòν θεóν. πáντα δɅ α#το$ γéνετο, καì χωρì̋ α#το$ γéνετο ο#δè (ν.
) γéγονεν 4 ν α#τ+ ζω-
ν, καì . ζω-
ν τò φ0̋ τ0ν νθρẃπων? 5
καì τò φ0̋ ν τ
σκοτí6 φαíνε, καì . σκοτíα α#τò ο# κατéλαβεν.
6
Εγéνετο 9νθρωπο̋ πεσταλµéνο̋ παρà θεο$, <νοµα α#τ+ Ιωáνν̋? 7οτο̋
λθεν ε@̋
8
µαρτρíαν, Bνα µαρτρCσD περì το$ φωτó̋, Bνα πáντε̋ πστεúσωσν δɅ α#το$. ο#κ

ν κεGνο̋ τò φ0̋, λλɅ Bνα µαρτρCσD περì το$ φωτó̋. 9 Ην τò φ0̋ τò λθνóν, )
φωτíζε πáντα 9νθρωπον, ρχóµενον ε@̋ τòν κóσµον. 10 ν τ+ κóσµL
ν, καì κóσµο̋
δɅ α#το$ γéνετο, καì κóσµο̋ α#τòν ο#κ Mγνω. 11ε@̋ τà Nδα
λθεν, καì οO Nδο α#τòν
12
ο# παρéλαβον. Pσο δè Mλαβον α#τóν, Mδωκεν α#τοG̋ ξοσíαν τéκνα θεο$ γενéσθα,
13
τοG̋ πστεúοσν ε@̋ τò <νοµα α#το$, οR ο#κ ξ αOµáτων ο#δè κ θελCµατο̋ σαρκò̋
ο#δè κ θελCµατο̋ νδρò̋ λλɅ κ θεο$ γεννCθσαν.
14
Καì λóγο̋ σàρξ γéνετο καì σκCνωσεν ν .µGν, καì θεασáµεθα τ-ν δóξαν α#το$,
δóξαν T̋ µονογενο$̋ παρà πατρó̋, πλCρ̋ χáρτο̋ καì λθεíα̋.15Ιωáνν̋ µαρτρεG
περì α#το$ καì κéκραγεν λéγων,Οτο̋
ν )ν εVπον,Ο Xπíσω µο ρχóµενο̋ Mµπροσθéν
µο γéγονεν,Pτ πρ0τó̋ µο
ν.16Pτ κ το$ πλρẃµατο̋ α#το$ .µεG̋ πáντε̋ λáβοµεν
καì χáρν ντì χáρτο̋? 17 Pτ νóµο̋ δà Μωüσéω̋ δóθ, . χáρ̋ καì . λCθεα δà

1
EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento: introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos.
São Paulo: Loyola, 1994, p. 61.
2
EGGER, 1994, p. 64
3

18
Ισο$ Χρστο$ γéνετο. θεòν ο#δεì̋ \ẃρακεν πẃποτε? µονογεν-̋ θεò̋ ]ν ε@̋ τòν
κóλπον το$ πατρò̋ κεGνο̋ ξγCσατο. 3

1.2. Tradução
1
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. 2 Ele estava no
3
princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do
que foi feito se fez. 4 A vida estava nele e a vida era luz dos homens. 5 A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.
6
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. 7 Este veio como testemunha para
que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. 8 Ele não era
a luz, mas veio para que testificasse da luz, 9 a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo,
10
ilumina todo homem. O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele,
mas o mundo não o conheceu. 11 Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. 12 Mas, a
todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feito filhos de Deus, a saber, aos que
13
crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas de Deus.
14
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai. 15 João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o
de quem eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia
16 17
antes de mim. Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus
18
Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o
revelou. 4

2. Delimitação
João 1: 1-18 é uma perícope completa respeitando os vários critérios que a delimitam.
Além da unidade textual, onde os elementos internos estão ligados e concatenados, se
apresenta também como uma unidade literária autônoma, totalmente coerente, pelo fato de ser
o prólogo do evangelho. Seguindo a proposta exegética de Wegner5, fundamentaremos o

3
SCHOLZ, Vilson; BRATCHER, R. G. Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri, SP: Sociedade
Bíblica do Brasil, 2004, pp. 340-342
4
ALMEIDA, J. F. Tradução de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil. In SCHOLZ, Vilson; BRATCHER, R.
G. Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004, pp. 340-342
5
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo:
Paulus, 1998, pp. 85, 86.
4

recorte do texto, a perícope, utilizando-nos dos seus critérios.

a) Estrutura literária autônoma


O prólogo do evangelho joanino possui a estrutura de um hino, bem delimitado entre
os versos 1 e 18, reconhecível pelo ritmo e pelas anotações e inclusões que o autor faz ao
longo do mesmo. A distribuição entre hino e anotações pode ser assim compreendida: v. 1,
hino; v. 2, hino; v. 3, hino; v. 4, hino; v. 5, hino; vv. 6-8, inclusões do evangelista; vv. 9-12,
hino com alguns aumentos do evangelista; v. 13, anotações do evangelista; v. 14, hino; v. 15,
anotações do evangelista; v. 16, hino; vv. 17-18, anotações do evangelista. O v. 19 inicia
como uma forma literária de paradoxo que se apresentará ao longo daquela nova perícope:
“Quem és?”, v. 21, e “Por que batizas se não és o Cristo?”, v. 25.

b) Mudança de assunto
João 1; 1-18 está separado do novo assunto que se inicia no v. 19, onde temos a
perícope seguinte (1:19-28), quando os sacerdotes e levitas enviados pelos judeus de
Jerusalém perguntaram a João Batista: “Tu quem és?”. Essa próxima perícope demonstrará
de maneira negativa que João Batista não era o Messias revelado no prólogo.6

c) Mudança de linguagem
O hino e as anotações do evangelista, em forma de doxologia, são substituídos por
uma linguagem narrativa a partir do v. 19, enfatizando o limite da perícope.

d) Personagens
O personagem de João 1: 1 é o “Verbo”, o mesmo personagem que está no final da
perícope, v. 18, como revelação de Deus. O personagem do v. 19 é João Batista, que não é o
que foi revelado por Deus, indicando claramente uma alternância de perícopes.

e) Cesuras
Na edição utilizada para expor o texto grego, há espaços em branco que demarcam a
perícope como unidade textual. Esses espaços chamados de cesuras aparecem em João 1: 6; 1:
14 e 1: 19, servindo como critério para delimitar a perícope. Destacamos que nos versos 6 e
14 há uma integração com a perícope do prólogo o que não acontece com a do v. 19.

6
MINCATO, Ramiro. O título “Filho de Deus” em Jo 1, 29-34: estrutura e teologia da perícope. In Rev. Trim.,
Porto Alegre, Vol. 35, n. 150, Dez. 2005, p. 840.
5

Assim, o texto se apresenta de forma coesa, com as idéias ligadas verso após verso,
dando continuidade e progressão à perícope. Também é coerente, pois desenvolve um mesmo
assunto: a revelação de Deus através do Verbo encarnado, por meio de um hino e das
observações do autor.

3. Análise textual
3.1. Forma literária e estrutura de João 1: 1-18
Estudar as formas literárias exige uma combinação entre a investigação histórica e a
crítica dos gêneros literários. Berger aponta que a crítica deve ser feita levando em conta
certos critérios enquanto que a sua história deve levar em conta o seu uso, no caso específico
relacionado com a história do Oriente Médio7. Gênero literário é uma abstração lingüística
que permite associar na mesma categoria os textos que possuem forma literária semelhante
(estilo, sintaxe e estrutura). Determiná-los é de particular importância no caso de textos que
fazem parte do mundo cultural diferente do nosso. Compreender a sua estrutura também
permite a nossa familiarização com as suas disposições internas de conteúdo, a partir da
observação de suas partes exteriores, ou seja, a subdivisão, o realce e a conexão.8

3.1.1. Forma literária


É recente, conforme a exposição de Wegner, a detecção de vários gêneros, formas e
fórmulas em outros escritos do Novo Testamento, tais como hinos, credos, homologias e
parêneses9. Esses materiais eram utilizados como instrumentos litúrgicos, de prédica e de
missões, entre outros. São considerados “gêneros menores” por serem encontrados fora dos
evangelhos, mas nem por isso devem ser menosprezados. O texto de João 1:1-18 se insere
nesse tipo de gênero de tradição litúrgica, sendo considerado um hino cristológico10. É
importante frisar, entretanto, que há exegetas que preferem denominar essa perícope como
prosa lírica.11
As características poéticas de João 1: 1-18 são observáveis até mesmo na tradução
formal, o que valoriza ainda mais a estrutura poética e musical do original. Historiadores e

7
BERGER , Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998, p. 13.
8
WEGNER, 1998, p.167.
9
Op. cit., p. 213.
10
Idem, p. 214.
11
Como pode ser observado em: BARRETT, C. K. The gospel according to St. John: an introd. with
commentary and notes on the Greek text. London: SPCK, 1955, 531 p. e em LINDARS, Barnabas. The Gospel
of John. The New Century Bible Commentary. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, 648 p.
6

críticos literários do Novo Testamento têm questionado se o prólogo do evangelho de João se


trata de um hino pré-cristão, e se for assim, qual é a sua origem. Burney12 fez uma retroversão
da perícope para o aramaico e desenvolveu a forma de um hino composto em onze estrofes
binárias intercaladas com os comentários de João. O autor afirma que há um paralelismo,
principalmente no clímax do hino, com a canção de Débora no livro dos Juízes13. Para ele, o
hino está preservado nos versículos de 1-5, 10b-11, 14, 16a e 17: 14
1. No princípio era o Verbo,
E o Verbo estava com Deus.
2. E o Verbo era Deus;
Ele estava no princípio com Deus.
3. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele;
E, sem ele, nada do que foi feito se fez;
4. A vida estava nele,
E a vida era luz dos homens.
5. A luz resplandece nas trevas,
E as trevas não prevaleceram contra ela.
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para
que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era
a luz, mas veio para que testificasse da luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo,
ilumina todo homem. O Verbo estava no mundo,
6. O mundo foi feito por intermédio dele,
Mas o mundo não o conheceu.
7. Veio para o que era seu,
E os seus não o receberam.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feito filhos de Deus, a saber,
aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem, mas de Deus.
8. E o Verbo se fez carne,
E habitou entre nós.
9. E vimos a sua glória,
Glória como do unigênito do Pai.

12
BURNEY, C. F. The aramaic origin of the fourth gospel. Oxford: Clarendon Press, 1922, 188 p.
13
Cf. Juízes, capítulo 5.
14
BURNEY, 1922, pp. 40-42
7

10. Cheio de graça e de verdade,


Porque todos nós temos recebido da sua plenitude,
e graça sobre graça. João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem eu disse: o
que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia antes de mim.
11. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés,
A graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.15
Embora a idéia de uma origem aramaica para o evangelho de João tenha sido aceita
por Bultmann16, foi amplamente rejeitada pelos críticos literários pós Segunda Guerra. Mas, a
idéia básica concernente ao “hino ao Logos” manteve-se como aceitação geral, restrita às
discussões sobre quais partes da perícope pertenceriam à composição do hino e quais seriam
as acrescidas pelo evangelista, com fez Bernard17 ao afirmar que o hino não possuía apenas
estrofes binárias curtas, mas também estrofes de três versos e até mesmo versos de uma
linha18.
Como não há consenso entre a forma literária de hino ou prosa lírica, embora o
primeiro seja mais aceito, e sobre a divisão dos versos, preferimos manter nesse trabalho a
mesma formalização apresentada por Burney o que se verá também na apresentação mais
pormenorizada da estrutura do prólogo.

3.1.2. Estrutura
O “hino ao Logos” fica mais claro quando examinamos a sua estrutura, isto é, suas
partes constitutivas, a intenção do evangelista em enfatizar algumas doutrinas teológicas e a
expressão litúrgica que nele está contida. João 1: 1-18, enquanto uma estrutura completa que
alia o hino às observações teológicas do autor, contém um conjunto de informações que revela
o Messias que será apresentado e entrará em ação no transcurso da narrativa do evangelho
joanino.

15
Preferimos manter a tradução formal de Almeida (Revista e Atualizada) na citação de Burney para evitarmos
uma tradução livre do original em inglês. Entretanto, preservamos a forma como o autor divide o hino
cristológico.
16
Cf. BULTMANN, Rudolf. Das evangelium des Johannes. 21ª ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1986, 567 p.
17
BERNARD, J. H. et alli. A critical and exegetical commentary on the Gospel according to St. John: Critical
and Exegetical Commentary. London: Continuum International Publishing Group, 2001, 456 p.
18
Bernard aponta que nos vv. 1, 10 e 18 há versos de três estrofes curtas e que no v. 2 e v.14e há versos de uma
linha. Também omite os vv. 16 e 17 e considera que o hino termina no v. 18. Os demais versículos seriam
comentários sobre o testemunho de João Batista (vv. 6-8, 15). Para ele, os vv. 12 e 13 corrigem a afirmação de
que ninguém reconheceu o Verbo; já os vv. 16 e 17 ilustram a graça e a verdade do v. 14. Cf. BERNARD et alli,
2001, pp. 2, 19, 98.
8

A estrutura de João 1: 1-18 pode ser apresentada da seguinte forma:


Versos do hino Comentários e observações do autor
1 – O Verbo antes de todas as coisas (vv. 1-5):
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio
com Deus. Todas as coisas foram feitas por
intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito
se fez. A vida estava nele, e a vida era luz dos
homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas
não prevaleceram contra ela.
1ª interferência (vv. 6-10a): comentário
sobre quem testificaria sobre o Verbo e
onde se encontraria o Verbo.
Houve um homem enviado por Deus
cujo nome era João. Este veio como
testemunha para que testificasse a
respeito da luz, a fim de todos virem a
crer por intermédio dele. Ele não era a
luz, mas veio para que testificasse da
luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda
ao mundo, ilumina todo homem. O
Verbo estava no mundo (...)
2 – A rejeição ao Verbo (vv. 10b-11):
O mundo foi feito por intermédio dele, mas o
mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e
os seus não o receberam.
2ª interferência (vv. 12-13): comentário
teológico sobre a filiação divina de
todos quantos aceitaram o Verbo.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-
lhes o poder de serem feito filhos de
Deus, a saber, aos que crêem no seu
nome; os quais não nasceram do sangue,
9

nem da vontade da carne, nem da


vontade do homem, mas de Deus.
3 – A encarnação do Verbo – clímax (14 e 16a):
E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e
vimos a sua glória, glória como do unigênito do
Pai. Cheio de graça e de verdade. Porque todos nós
temos recebido da sua plenitude.
3ª interferência (vv. 16b e 15):
reafirmação teológica sobre a divindade
do Verbo e a manifestação da graça de
Deus.
(...) E graça sobre graça. João
testemunha a respeito dele e exclama:
Este é o de quem eu disse: o que vem
depois de mim tem, contudo, a primazia,
porquanto já existia antes de mim.
4 – Conclusão (v. 17):
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a
graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
4ª interferência (v. 18): confissão de fé
do evangelista.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus
unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou.

O conjunto dos vv. 1-5 no prólogo favorece a origem de uma composição hínica e o
sentido de unidade e coerência, bem como exige uma complementação. Por sua vez, os vv. 6-
9 fazem parte de um comentário explicativo de João e não servem como complemento do
conjunto de versos precedente. Burney ainda acrescenta neste comentário a primeira parte do
v. 10 como força de sustentação do raciocínio do autor, já que ele não se encaixaria na lógica
poética do hino.
É perceptível na estruturação literária como o v. 10b se relaciona com a descrição do
Verbo estando no princípio de todas as coisas. A mudança de raciocínio no v. 11, embora
mantenha coerência com o verso anterior, obrigará o autor a fazer uma explicação teológica
10

sobre o destino daqueles que “receberem” o Verbo, vv. 12-13.


O v. 14, escrito em primeira pessoa, diferentemente dos versos anteriores, se apresenta
como um complemento dos vv. 1-5 e dos vv. 10b-11 que clamam por um clímax. A alteração
de ordem que Burney faz, de acordo com o sentido do aramaico, e a inclusão do v. 16a deixa
a impressão de que o verso parece ser de natureza confessional, formando a confissão
responsiva da adoração da igreja, o que também foi observado por Bernard19, embora não seja
uma questão fácil de determinar. Os vv. 15 e 16b iniciam o processo confessional do autor
que será complementado no v. 18. O hino se encerra no v. 17 deixando nítido que a lei seria
superada pela graça e a verdade representadas no Messias, conforme Burney opta por
traduzir20.

3.2. Análise do conteúdo de João 1: 1-18


Analisaremos o conteúdo dos versículos que formam a perícope a partir de sua
estrutura apresentada anteriormente. Como salienta Wegner21 é o conteúdo que irá dar
vitalidade ao texto estrutural.
Como declaramos no início desse trabalho, nossa análise é guiada pelo método
histórico-crítico. Pretendemos evidenciar, de acordo com a proposta de Wegner, as
particularidades do conteúdo, identificando o eixo do texto. A importância de fazer uma
interpretação dos dados do texto a partir da realidade e do contexto vigente na época poderá
nos aclarar a intenção e opção do texto.22

3.2.1. O eixo central do texto: a encarnação do Verbo (João 1: 14, 16a)


O conteúdo de João 1: 1-18 tem um eixo central que nos é apresentado como o clímax
do hino: o v. 14 e a primeira parte do v. 16. É a partir desse eixo central que aprofundaremos
os assuntos apresentados pelo evangelista, principalmente aqueles que, à primeira vista,
seriam periféricos. A partir do v. 14 até o final da perícope temos uma construção muito
peculiar ao mundo religioso da época: o oximoro, recurso literário de juntar palavras que se
contradizem. Os primeiros treze versículos do prólogo introduzem o Verbo, seja pelo gênero
hino ou pelas observações do autor. O Verbo que era “no princípio”, “estava com Deus” e
“era Deus”. Na comunidade religiosa da época essas declarações majestosas sobre Deus eram
de fácil aceitação. Entretanto, o eixo central introduz um problema que é o divino se tornar ou

19
Op. cit.
20
BURNEY, 1922, p. 42.
21
WEGNER, 1998, p. 248.
22
Op. cit., p. 259
11

se fazer carne. A revelação do clímax do hino é que o oximoro Deus/carne é o princípio para
se entender quem é Jesus, o Logos, o Verbo.
Segundo o texto, no v. 1, “No princípio era o Verbo (Εν ρχ
ν λóγο̋^, e o
Verbo estava com Deus (καì λóγο̋
ν πρò̋ τòν θεóν^, e o Verbo era Deus
(καì θεò̋
ν λóγο̋^”. Essas palavras soam como um eco de Gênesis 1:1. Para definir e
explicar Jesus o hino joanino teve de retroceder todo o caminho até “o princípio”. Antes que o
mundo existisse, o Verbo existia. João não diz nada sobre o nascimento e a infância de Jesus.
A expressão usada para apresentar Jesus é “o Verbo”. Embora João não diga que Jesus é “o
Verbo” até os vv. 14-18, o v. 1 usa a expressão para descrevê-lo: “o Verbo” ou “a Palavra”
(λóγο̋^. O Logos tinha significados diferentes para os leitores judeus e gentios. Os judeus
pensavam em “o Verbo”, ou “a Palavra”, como o poder ativo de Deus que criou e sustenta o
mundo. É nesse sentido que se fala de “Verbo” em Gênesis 1 e 2 e Isaías 55: 3, 11. Os judeus
se lembravam de que “disse Deus: haja luz; e houve luz” (Gênesis 1:3)23. Quando os gentios
ouviam a expressão “o Verbo”, pensavam na maneira como os filósofos gregos haviam usado
o termo. Viam o termo como uma força impessoal que deu ordem e sentido ao universo.
Como observou Morris, a maioria das pessoas provavelmente pensava em “o Verbo” como
muitos de nós hoje pensamos em “fissão nuclear”. Embora não sejamos capazes de dar uma
descrição detalhada da fissão nuclear, sabemos o bastante a respeito dela, tememos e
possivelmente até falamos a respeito dela24.
Ao usar “o Verbo” para apresentar Jesus, João estava fazendo alegações
surpreendentes tanto para judeus como para gentios. Esse Jesus sobre o qual ele estava
escrevendo era uma expressão da vontade de Deus, o poder criativo por trás do universo e a
força na qual subsiste toda vida, conforme Paulo escreveu à igreja de Colossos (Colossenses
1: 15-17). McLarty destaca que o quer que as pessoas pensassem quando ouviam alguém
mencionar “o Verbo”, sem dúvida reconheciam que João, no prólogo do seu evangelho,
estava fazendo uma alegação dupla sobre a pessoa que estava descrevendo. Numa rápida
sucessão há a declaração que “o Verbo estava com Deus”, “o Verbo era Deus”, “todas as
coisas foram feitas por intermédio dele” e “a vida estava nele” (1:1–4). João não estava
tentando convencer as pessoas de que Jesus era um grande mestre ou um sábio. João declara,
através do hino cristológico, que Jesus era divino, possuía a natureza de Deus25.

23
MCLARTY, Bruce. João: a jornada da fé. In A verdade para hoje, 2006.
24
MORRIS, Leon. The gospel according to John. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1971, p. 116
25
MCLARTY, 2006, p. 2.
12

“E o Verbo se fez carne” (Καì λóγο̋ σàρξ γéνετο^, v. 14. Depois de apresentar
Jesus como o Verbo Divino que era desde o princípio e através do qual todas as coisas foram
criadas, João 1:14 faz a surpreendente declaração de que o Verbo se fez carne. “Carne”
(σàρξ^ era uma palavra rude, terrena, inferior, quase grosseira para descrever o divino. Era a
maneira do hino proclamar que Jesus vivenciou a humanidade em sua totalidade. A evolução
do hino ao ponto climático é ousada quando ele expressa que o Verbo que se fez carne
“habitou entre nós” (σκCνωσεν ν .µGν^. A palavra “habitou” (σκCνωσεν^ significa
literalmente “fazer tabernáculo” ou “armar a tenda”. Transmite a idéia de que alguém fixou
residência entre nós. Além de se fazer carne e viver entre nós, Jesus também permitiu que a
sua vida fosse vista e observada. O hino expressa isto na última parte do v. 14, dizendo:
“vimos a sua glória” (θεασáµεθα τ-ν δóξαν α#το$^, “glória como do unigênito do Pai”,
(δóξαν T̋ µονογενο$̋ παρà πατρó̋^, “cheio de graça e de verdade”
_πλCρ̋ χáρτο̋ καì λθεíα̋^. “Glória” possui um rico significado nas Escrituras. Em
Êxodo 40: 34, 35 e em 1 Reis 8: 10, 11 temos dois exemplos de como o Antigo Testamento
usa a palavra “glória”, a primeira se referindo à época da peregrinação de Israel no deserto e a
segunda à época da construção e dedicação do templo de Salomão. Ambas as passagens
demonstram que “glória” é uma forma de expressar “a presença de Deus”. Dizer que a glória
de Deus estava em determinado lugar era dizer que Deus estava lá. Burney26 acrescenta a
primeira parte do v. 16 como seqüência do hino: “Porque todos nós temos recebido da sua
plenitude” (Pτ κ το$ πλρẃµατο̋ α#το$ .µεG̋ πáντε̋ λáβοµεν^. Essa plenitude se
refere a essência completa de Jesus, como o Deus encarnado e que mora com os homens. É o
ponto climático do hino. A humanidade recebeu a plenitude de Deus, a glória de Deus através
do Verbo, Jesus. Dodd refere-se a esse clímax “pleno e cheio de glória” como “a manifestação
do que Deus é, de sua natureza e presença, de modo acessível à experiência humana”.27
A conclusão do hino se encontra no v. 17: “Porque a lei foi dada por intermédio de
Moisés” (Pτ νóµο̋ δà Μωüσéω̋ δóθ^, contudo, “a graça e a verdade vieram por meio
de Jesus Cristo” (. χáρ̋ καì . λCθεα δà Ισο$ Χρστο$ γéνετο^. A expressividade
litúrgica do hino argumenta que tão maravilhosas quanto a lei de Moisés dada por Deus eram
a graça e a verdade reconhecidas em Jesus. Muito da graça divina se vê no Antigo
Testamento, e a própria Lei certamente era verdadeira. Todavia, tudo o que foi começado ou
prescrito pela Lei estaria, agora, sendo consumado e realizado em Jesus, o Verbo encarnado.
26
BURNEY, 1922, p. 42.
27
DODD, C.H. The interpretation of the fourth gospel. Cambridge: Cambridge University Press, 1958, p. 206
13

Esses excertos que fazem parte do hino cristológico na realidade apontam para dados
religiosos que são reforçados pelo evangelista ao longo da perícope. Mostram como palavras
que eram usadas pelos judeus em suas atividades religiosas ganham um significado mais
abrangente no mundo helênico, principalmente pelo conteúdo filosófico que passam a conter.

3.2.2. As observações e inclusões do evangelista: (João 1: 6-10a; 12-13; 16b.; 15 e 18)


As anotações feitas por João no corpo do hino, como explicação de seus sentidos
teológicos ou confissão de fé, nos remetem a dados culturais, religiosos e até políticos que
denotam a intenção do autor do prólogo em apresentar um Jesus divino, mas também humano
e que traria a plenitude para todos.
Após o belíssimo intróito do hino cristológico, João dedicou os três versículos
seguintes a uma explanação sobre João Batista. Aqui há um dado político/religioso
importante, pois muitos contemporâneos seus o consideravam o Cristo, o Messias. Na
perícope seguinte ao prólogo vemos um João Batista tão popular e que falava com tamanho
poder que, por vezes, teve de afirmar claramente: “Eu não sou o Cristo” (João 1:20). O autor
do evangelho trata, então, de eliminar essa confusão. Ele especifica que João Batista era uma
testemunha importante, “enviado de Deus”, mas não deveria ocupar o lugar de Jesus: “Este
[João] veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a
crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz”, vv. 7, 8. Ao
dizer que João Batista não era a luz (ο#κ
ν κεGνο̋ τò φ0̋^, o autor declara que a luz que
veio ao mundo, a verdadeira luz (Ην τò φ0̋ τò λθνóν^, ilumina todo ser humano
()φωτíζε πáντα 9νθρωπον), v. 9. As palavras “verdadeira” e “ilumina” são características
intrínsecas do Verbo “que estava no mundo” (ν τ+ κóσµL
ν), v. 10a, conforme Burney faz
questão de frisar como um acréscimo do evangelista28. Seus sentidos vão além de uma
explicação religiosa, pois se apóiam também na esperança messiânica (política) de um líder
“verdadeiro”.
“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam”, v. 11. Essa nota dramática da
rejeição dos homens ao Verbo (ε@̋ τà Nδα
λθεν, καì οO Nδο α#τòνο# παρéλαβον), que
está contida no hino, obrigou o evangelista a inserir, de acordo com McLarty29, uma
esperançosa nota de salvação para os seus leitores: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-
lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome”, v. 12. João

28
BURNEY, 1922, p. 42.
29
MCLARTY, 2006, p. 3.
14

parece ter a certeza de que o ser humano ouviria e chegaria a crer (João 20:31) e crendo,
receberia vida no nome de Jesus. Nesse sentido, o ser humano não nasceria “do sangue, nem
da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”, v. 13. A parte final do v. 16
seria, na opinião de Burney30, um complemento do evangelista ao clímax do hino: “Porque
todos nós temos recebido da sua plenitude”, v. 16a. João, em perfeita coerência de conteúdo,
acrescenta (e, καì^ “graça sobre graça” ( χáρν ντì χáρτο̋^. E complementa com o v. 15
onde explica que “João [Batista] testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem eu
disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia antes de mim”.
João conclui o prólogo, v. 18, dando um testemunho histórico à sua confissão de fé:
“Ninguém jamais viu a Deus” (θεòν ο#δεì̋ \ẃρακεν πẃποτε?^. No Antigo Testamento,
lemos sobre pessoas que acreditavam ter visto a Deus e ficaram aterrorizadas porque temiam
que quem visse a Deus morreria. João mostrou que embora essas pessoas tivessem visto
mensageiros (ou anjos) de Deus, não haviam visto a Deus exatamente. Por causa disso, João
impressiona ao afirmar que Aquele que era desde o princípio, Aquele que é Deus, “o Deus
unigênito, que está no seio do Pai” veio para revelar Deus a nós por meio de Jesus Cristo, o
Messias (µονογεν-̋ θεò̋ ]ν ε@̋ τòνκóλπον το$ πατρò̋ κεGνο̋ ξγCσατο^.
Sendo os vv. 14-18, clímax do hino e observações teológicas do autor, responsáveis
pelo desenvolvimento da perícope, podemos observá-los como elementos da confissão de fé
da igreja, como João 3: 16. Isso sublinha que a teologia do Verbo encarnado não era o produto
da genialidade do evangelista, mas um princípio fundamental de uma igreja cujo evangelho é
a definitiva exposição.

4. Análise Contextual
No prólogo do seu evangelho João teve a tarefa de ordenar de forma coerente o hino
cristológico pré-existente e suas observações pessoais, elaborando uma redação com o estilo
da tradição evangélica. Ele está a serviço de mostrar como o Verbo de Deus, encarnado, foi
reconhecido pelos seus seguidores, como atuou na terra, com sinais e prodígios e como
morreu e ressuscitou. Wegner lembra que esse trabalho não é neutro31. Há uma intenção do
redator em ordenador o seu relato, no caso, de forma diferente da dos evangelhos sinóticos. A
influência que ele recebeu da tradição evangélica e da sua própria experiência de vida,
também pesa nesse contexto. Assim, procuraremos preciso localizar João 1: 1-18 no conjunto

30
Op. cit., idem.
31
WEGNER, 1998, p. 123.
15

maior da obra, no seu contexto social e histórico, além de perguntarmos pela função do texto
no contexto em que ele está sendo utilizado.

4.1. Contexto literário teológico


Para início de análise, é importante descobrirmos a idéia central que domina todo o
evangelho de João. Isto porque a disposição dos relatos e dos discursos é comandada pelo
desenvolvimento desse tema. Ignazio de La Potterie32 destaca que o prólogo (1: 1-18), o
epílogo da vida pública de Jesus (12: 35-50) e a conclusão do evangelho (20: 30-31) indicam
claramente qual é esta grande idéia central: a revelação progressiva do Verbo encarnado, o
Messias, filho de Deus. Essa idéia entra em correspondência com a forma como a humanidade
acolhe a revelação: rejeição e incredulidade da parte de uns e aceitação e fé da parte de outros.
Considerando os critérios literários fundamentais (entre eles, os sumários, as relações
das pessoas que intervém, os anúncios e a mudança de forma literária), critérios
complementares (a topografia e a cronologia) e critérios teológicos (os temas que aparecem ao
longo da obra), a estrutura do Evangelho de João pode ser subdivida em quatro seções
maiores, apresentadas da seguinte forma:

A. João 1:1-2:11 – Introdução geral ao Evangelho


Esta parte introdutória está delimitada pela inclusão da palavra ρχ (princípio) em
1:1 e em 2:11. Mincato33 explica que como a palavra ρχ em 2:11 indica também o primeiro
sinal, significa que este sinal funciona como abertura do “Livro dos sinais”, a partir de 2:12. O
objetivo da introdução é apresentar a obra ao leitor. Nesse evangelho ela manifesta uma
finalidade claramente revelatória. O “narrador” fez entrar em cena e apresentou ao “leitor” um
enigmático Verbo, informando sua condição divina e sua função na criação e informando
também que as trevas não puderam com ele. Com a figura de João Batista, o narrador desloca
a perspectiva para o campo da história, na qual o Verbo revelará o Pai, pois “a Deus ninguém
viu”, mas o Verbo relata, isto é, revela o Pai. O nome do Verbo é Jesus Cristo, o Unigênito de
Deus.
A última frase do prólogo convida a esperar o que virá em seguida, funcionando
como um convite à leitura do evangelho. A narração apresenta, depois do prólogo, uma

32
DE LA POTTERIE, Ignazio. L'Evangelo di San Giovanni. In RINALDI, G.; DE BENEDETTI, P. (ed.).
Introduzione al Nuovo Testamento. Brescia: Morcelliana, 1971, p. 893.
33
MINCATO, Ramiro. A macroestrutura narrativa do quarto evangelho. In Teocomunicação, Porto Alegre, v.
37, n. 155, p. 49-59, mar. 2007, p.55
16

“semana inicial” com o testemunho de João Batista e a formação da comunidade de discípulos


que confessam crer no Messias/Filho de Deus (1:19-51). Em seguida, apresenta a primeira
manifestação da sua glória (2:1-11). A introdução, do ponto de vista do vocabulário da
filiação divina, abraça a temática de todo o Evangelho, ao lado dos outros títulos Cristo (3
vezes), Messias (1 vez) e Jesus Cristo (1 vez).34

B. João 2:1 - 12: 50 – O livro dos sinais


A primeira grande unidade do Evangelho de João (2:1-12:50) pode ser chamada de
livro dos sinais: vai do primeiro sinal em Caná até o de Betânia, a ressurreição de Lázaro,
explicitamente indicado como “sinal realizado por Jesus” (12:18). Os primeiros onze
versículos (2: 1-11) também estão incluídos na parte introdutória e, de acordo com
Mlakuzhyil35, formam uma “perícope-ponte” pois simultaneamente ela conclui a introdução e
introduz a primeira parte do Evangelho. Assim como o sinal da mudança de água em vinho
em Caná da Galiléia foi chamado de “primeiro sinal”, o livro dos sinais, ou primeiro livro do
Evangelho, deve começar em 2:1 e terminar em 12:50, já que a perícope (12:37-50) funciona
como conclusão.
Do ponto de vista narrativo, o livro relata os sete sinais realizados por Jesus ao longo
do ministério público, começando exatamente nas bodas de Caná (os outros sinais são: a cura
do filho do oficial do rei, 4: 46-54; a cura do paralítico do tanque de Betesda, 5: 1-18; a
multiplicação dos pães e peixes, 6: 1-14; o caminhar sobre as águas do mar da Galiléia, 6: 16-
21; a cura de um cego de nascença, 9: 1-17 e a ressurreição de Lázaro, 11: 1-43). Jesus já é
conhecido pelos seus discípulos e apresenta-se em plena atividade adulta, deslocando-se
continuamente entre a Galiléia e Jerusalém. Os sinais são somados aos gestos (expulsão dos
vendilhões do Templo, 2: 13-18), aos diálogos (com Nicodemos, 3: 1-21; com a Samaritana,
4: 1-30; com Marta e Maria, 11: 1-45), ao discurso revelatório aos discípulos (João 6), às
controvérsias com os Judeus (João 5, 7, 8, 10) e ao longo do Evangelho querem conduzir o
leitor para a realidade da fé naquele que realiza os sinais e que revela a sua “glória” por meio
deles: a glória, que se revelará definitivamente na “hora” da elevação na cruz. Aquele que
realiza os sinais é chamado insistentemente com o título “Filho”, “Filho de Deus” e “Filho do

34
MINCATO, 2007, p. 56.
35
MLAKUZHYIL, George. The Christocentric Literary Structure of the Fourth Gospel. Roma: Editrice
Pontificio Istituto Biblico, 1987, 370 p. (p. 90)
17

Homem” numa proporção muito maior que no resto do Evangelho. No livro dos sinais há a
grande concentração dos títulos da filiação divina de Jesus.36

C. João 11:1 – 20:29 – O livro da hora


A segunda grande unidade também se inicia com uma perícope-ponte, ou seja o
sétimo sinal, a ressurreição de Lázaro, e termina com a ressurreição de Jesus. Nessa unidade,
o “narrador” apresenta o cumprimento daquilo que os sinais significavam: o amor do Filho
que ama até o fim e comunica o seu Espírito. Essa unidade nos apresenta a “hora da conclusão
da obra e da volta ao Pai” como está revelado pelo comentário de João: “Antes da festa da
Páscoa, sabendo Jesus que sua hora tinha chegado de passar deste mundo ao Pai...” (13:1; cf.
também 17:1b)37. Mincato ressalta que o “primeiro livro” preparava o “segundo”, pois os
sinais foram narrados em vista da hora de Jesus, ou seja, a hora da paixão que é também a
glorificação, ou a hora em que se revelará plenamente (cf. 2:4, 4:23, 7:30, 8:20, 12:23,27,
13:1, 16:4, 25, 32; 17:1 e 19:14).38
A ressurreição de Lázaro tem um paralelismo com a ressurreição de Jesus: o sinal de
Lázaro é para a “glorificação do Filho de Deus”, isto é, sua exaltação na cruz (cf. 11:4).
Embora as ameaças à vida de Jesus tenham aparecido nas controvérsias contidas na primeira
grande unidade, o verbo “morrer” nunca tinha sido aplicado a Jesus antes de 11:16, quando
Tomé diz aos outros discípulos que eles deviam ir com ele para que morressem junto. Esse
paralelismo se fortalece pois é depois da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio decreta a
sentença de morte de Jesus (11:45-53). Depois dessa decisão, há a menção da proximidade da
Páscoa (11:55), em cujo contexto cronológico irá se desenvolver quase todo o resto do
Evangelho. Entretanto, o paralelismo continua com a unção em Betânia (12:1-8) que é para o
dia da sepultura de Jesus (cf. 12:7). O tema da hora está explicitamente anunciado logo após
isso: “É chegada a hora em que o filho do homem deve ser glorificado” (12: 23).39

D. João 20:30-31 – Conclusão


Do ponto de vista literário, o início da conclusão (20:30-31) é feito pela conjunção
ον (pois) que une a conclusão à bem-aventurança de Tomé (20:29), ponto culminante e final
das aparições do Cristo ressuscitado do capítulo 20. Isso é uma garantia de sua unidade.

36
MINCATO, 2007, p. 53.
37
Op. cit., idem.
38
Idem, ibidem.
39
Ibidem, p. 54.
18

Em termos de conteúdo narrativo, esses dois versículos consistem em uma compacta


unidade cristocêntrica. O acento cristológico da conclusão é sublinhado pela presença do
nome Jesus, que ocorre nos dois versículos, e pela referência “em seu nome” no final,
conforme destaca Mincato40. “Jesus fez muitos sinais” e “Jesus é o Cristo o Filho de Deus”
demonstram a conexão entre “sinais” e “revelação”, pois os sinais feitos diante dos discípulos
revelam a identidade de Jesus como Cristo, o Filho de Deus.
O caráter cristológico do Evangelho como um todo, pode ser expressado em um
paralelismo interessante entre a Introdução e a Conclusão. Vejamos:

Vocábulo Introdução - João 1:1-2:11 Conclusão - João 20:30-31


Vida 1:4 (duas vezes) 20: 31
Crer 1:7, 12 e 50 20: 31 (duas vezes)
Em seu nome 1: 12 20:31
Cristo 1: 17, 20, 25 e 41 20: 31
Filho de Deus 1: 34, 49 20:31
Sinal 2:11 20:30
Discípulos 1: 35, 37; 2: 2, 11 20:30

Apêndice – João 21: 1-25


Após a conclusão de João 20: 30-31 há ainda um relato do encontro do Senhor
ressuscitado com alguns discípulos no Mar de Tiberíades (21:1-23) e mais uma nota de
caráter editorial (21: 24-25). O capítulo 21 inicia com a expressão cronológico-literária
µετα ταντα (depois destas coisas) que serve para assinalar um novo começo.
É consenso entre os especialistas que se trata de um apêndice, que foi acrescentado
pelo redator final ou pelo próprio evangelista posteriormente. Ele não faz parte da conclusão
final do Evangelho.41

4.2. Contexto sócio-histórico


A comunidade judaica do século I estava inserida no seio do Império Romano. Suas
experiências políticas, culturais e religiosas devem ser levadas em consideração ao tentarmos
estabelecer uma chave sócio-histórica de interpretação do quarto evangelho. Principalmente
porque há uma comunidade concreta e historicamente localizada que teria dado origem a esse
40
MINCATO, 2007, p. 57.
41
Cf. BROWN, R. E. The gospel according to John. Garden City, NY: Doubleday: 1970, 1080 p.
19

evangelho e às epístolas joaninas42, denominada pela literatura especializada, hoje, como


comunidade joanina43. O termo comunidade também opera no sentido de sugerir um sujeito
coletivo como autor do quarto evangelho, no sentido de que há um conjunto de agentes
(leitores, críticos, colecionadores, intermediários, etc.) que colaboram, através de suas
oposições de visão de mundo44, para o estabelecimento e reprodução dessa obra, enfatizando
ainda mais a validade do gênero hino no seu prólogo.
A comunidade joanina teria surgido a partir de um grupo de discípulos de Jesus,
provenientes da Judéia e da Galiléia. Essa gente se aglutinou em torno de uma figura
carismática que mais tarde seria conhecida como “o discípulo amado” e que reconhecia Jesus
de Nazaré como o messias davídico45. Esse grupo esteve sob permanente suspeita, por parte
do Templo e da autoridade romana, em virtude de seu posicionamento em favor da renovação
do judaísmo, com base na tradição da Terra Prometida. Suas origens confundem-se com as de
outros grupos cristãos, tendo também suas raízes fixadas no movimento de João Batista.
A essa comunidade irão somar-se judeus de postura bastante crítica ao Templo de
Jerusalém, conforme aponta Rodrigues46. Esses discípulos trazem consigo a convicção
profunda de que a função do templo foi deturpada pelas autoridades religiosas judaicas a
partir das exigências do poder romano. Para eles, este centro de purificação oficial está
impuro por sua aliança com os opressores estrangeiros. Assim, a comunidade joanina nasce
animosa em relação ao sistema religioso oficial, numa postura de crítica aberta ao templo e à
ideologia que o sustentava. Crossan47 faz uma observação de que enquanto o episódio da
expulsão dos vendilhões do templo é narrado nos evangelhos sinóticos no contexto da reta
final do ministério de Jesus, como motivo direto de sua prisão e execução (Mt 21:12-13;
Mc11:11,15-17; Lc 19: 45-46), no quarto evangelho é encaixado na semana inaugural de seu
ministério. É possível que, por trás desse trabalho redacional, esteja a realidade histórica de
uma comunidade que se entendeu desde o início, como crítica e marginal em relação aos
centros de poder religioso.

42
Cf. VASCONCELLOS, P. L. Impressões sobre os caminhos na leitura mais recentes do Evangelho (e Cartas)
de João. In Revista de Cultura Teológica, n. 15, 1996, pp. 77-84.
43
O estudo da existência dessa comunidade é apresentado na obra de BROWN, R. E. A comunidade do discípulo
amado. São Paulo: Paulus, 2003, 216 p. A utilização desse termo nesse trabalho seguirá a sua orientação.
44
Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, pp. 290, 291.
45
CULLMANN, Oscar. The Johaninne circle: its place in Judaism, among the disciples of Jesus and in early
Christianity. A study in the origin of the Gospel of John. Londres: SCM Press, 1976, 124p.
46
RODRIGUES, M. P. “Um pecador quer nos ensinar?”: Religião e Poder no episódio do Cego de Nascença.
Dissertação de Mestrado. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003.
47
CROSSAN, J. D. Quem matou Jesus?: as raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus.
Rio de Janeiro: Imago, 1995, pp. 79-81
20

Essa postura crítica em relação ao templo tem sua contrapartida na superação das
barreiras que poderiam impedir a comunhão de mesa entre cristãos judeus e cristãos
samaritanos. A comunidade joanina abre-se para acolher discípulos samaritanos. Esta
presença samaritana traz à comunidade uma revolução cristológica, ao introduzir um novo
conceito messiânico, pautado numa tradição mosaica e não davídica. Os samaritanos
introduzem na comunidade joanina uma nova hermenêutica do fato Jesus, partindo de suas
próprias expectativas messiânicas. Ao invés de figurá-lo a partir do modelo corrente de Davi,
ou do Filho de Davi, impensável para seus padrões culturais e religiosos em virtude da secular
rivalidade entre Norte e Sul, recorrem ao Profeta anunciado por Moisés e configurado a ele
(Jo 1:21; 6:14; 7:40; cf. Dt 18:15s). O messias samaritano seria alguém que viria da parte de
Deus ao mundo para revelar a palavra divina a Israel. Identificar Jesus com o Profeta
semelhante a Moisés abre uma grande perspectiva teológica para a comunidade joanina. Está
aberto o caminho para compreender Jesus como o pão descido do céu para dar vida ao mundo,
como no passado Moisés alimentara o povo no deserto com o pão descido do céu (Jo 6: 33). A
contribuição dos samaritanos pode ter sido um dos pontos de partida dessa literatura tão
original no seio do cristianismo primitivo.
A acolhida desse grupo tradicionalmente excluído – que pode ter instigado a acusação
de impureza por parte de seus opositores - deu à comunidade joanina um perfil novo em
relação à comunidade judaica em geral48. Apresentam-se aqui as linhas gerais que
terminariam por se impor e criar fissuras incuráveis entre a comunidade joanina e o judaísmo
formativo, logo após a Guerra Judaica. Além disso, a compreensão de Jesus como o messias
preexistente descido do céu e portador da palavra de Deus causa um choque teológico com os
fariseus e, na medida em que estes passam a ocupar a liderança nas sinagogas, resulta da
expulsão dos cristãos joaninos (Cf. Jo 9: 22; 16:2). Entre os anos 80 e 100 essa comunidade
possivelmente teria se mudado para a Ásia Menor, em virtude das perseguições aos
seguidores de Jesus, na Palestina. De acordo com Brown49, essas informações podem ser
aduzidas dos estratos mais antigos da literatura joanina e das tradições orais neles
conservadas.
A comunidade joanina parece ter uma visão bastante crítica em relação às
comunidades cristãs apostólicas, embora não se considere a única intérprete verdadeira da
herança cristã50. Foi nesse contexto de tensão entre os grupos eclesiásticos que teria se dado a

48
RODRIGUES, 2003, p. 33.
49
BROWN, 2003, p. 25s.
50
Op. cit., pp. 11-15
21

redação principal do quarto evangelho, cujo objetivo seria explicitar aos cristãos joaninos e
não-joaninos os principais pontos de sua cristologia, eclesiologia, escatologia e ética
peculiares. Provavelmente entre os anos 100 e 120, a comunidade deve ter se dividido devido
às controvérsias internas que são explícitas pelas três epístolas de João. Uma ala estaria ligada
ao autor das epístolas e que insiste no resgate dos pontos doutrinais em comum com a tradição
apostólica, o que, segundo Brown, significaria uma revisão dos conceitos joaninos relativos à
cristologia, à eclesiologia, à escatologia e à ética. O outro grupo é o que polemiza com o autor
das epístolas e que radicaliza o pensamento joanino em detrimento da tradição apostólica.
Esses dois grupos comandaram a possível dissolução da comunidade joanina, na qual
o grupo próximo às comunidades apostólicas juntou-se a elas, enquanto os joaninos radicais
caminharam para uma fusão com os movimentos gnósticos do II século51. Ambos levaram
consigo o quarto evangelho, mas é interessante notar que, enquanto os gnósticos acolheram-
no de pronto, os apostólicos somente o fizeram no fim daquele século, e na dependência de
sua atribuição ao apóstolo João, filho de Zebedeu.
Por fim, devemos considerar a área siro-palestina como o espaço sócio-político de
engendramento do quarto evangelho e reconhecer que a situação político-religiosa de sua
gestão é o embate com a sinagoga em seu afã de uniformização do judaísmo pós-guerra.
Nesse sentido, é natural a conclusão de que o marco cultural do evangelho seja procurado
entre tendências culturais judaico-cristãs geograficamente próximas. São importantes para a
compreensão do quarto evangelho, pois, tanto o judaísmo formativo como certas correntes
religiosas alternativas, tais como a apocalíptica, a tradição samaritana, o essenismo, a tradição
batista e as tradições jesuânicas que se estabilizaram literariamente em escritos como os
evangelhos canônicos e o Evangelho de Tomé.52

4.3. O texto e sua função no contexto


O prólogo (João 1: 1-18) possui quatro importantes funções narrativas dentro do
contexto já estudado: interativa, intertextual, intratextual e introdutória53. A primeira,
interativa, consiste em estabelecer um vínculo entre leitor e texto; para isto a instância autoral
serviu-se de um hino tradicional e aceito na comunidade joanina. Essa instância autoral deixa-
se ver na primeira pessoa do plural nos vv. 14 e 16, além de infundir confiança no leitor
enquanto voz narrativa que conhece os mistérios supratemporais.

51
BROWN, 2003, pp. 20-23
52
RODRIGUES, 2003, p. 41
53
ZUMSTEIN, Jean. Le Prologue, seuil du quatrième évangile. In Recherches de Science Religieuse n. 83/2.
Paris, 1995, p. 217-239
22

Com a função intertextual, o prólogo evoca o mundo cultural e religioso de seu


auditório potencial, fazendo ressoar em traços iniciais a temática da criação, da sabedoria e da
revelação. Se apresenta de forma intimamente relacionada com a confissão de fé da
comunidade joanina.
A função intratextual consiste em situar os elementos constitutivos do mundo do
relato: apresenta-se a verdadeira identidade de Jesus como Verbo, o Logos em relação a Deus,
ao mundo, a João Batista, ao grupo hostil e ao grupo crente. O argumento central é
soteriológico, não episódico. Os temas teológicos do hino se apresentam em sua forma clara e
transparente: vida, luz, trevas, glória, crer, mundo, etc.. A intenção da narração consiste em
ajudar o leitor a transitar de uma fé vacilante para uma fé mais sólida e acabada.
Finalmente, a função introdutória do prólogo quer despertar a curiosidade do leitor
para que o que aconteceu desde os dias de João Batista (1: 19-36) até o dia em que o Senhor
Jesus passou para a glória do Pai (20: 17; cf. At 1:21-22).

5. Síntese do significado
O autor do quarto evangelho, nesse belo hino cristológico, fala-nos solenemente que
no princípio (Εν ρχ ) era o Verbo (λóγο̋), que estava com Deus e era Deus. “O Verbo” é
um título singular aplicado à pessoa de Jesus, que aparece de forma absoluta somente neste
texto. Trata-se de um título elevado e solene usado no ambiente litúrgico da comunidade
joanina. O seu conteúdo teológico é muito próximo do da Sabedoria, que o Antigo
Testamento apresenta como mediadora da criação e da salvação ( Cf. Prov. 8: 22, 24-36). Ela
é muitas vezes personificada juntamente com a Palavra, fato que abre caminho à apresentação
que o prólogo nos faz do Verbo que “era Deus”54.
A Palavra poderosa de Deus, que é e faz ser, encontra em Jesus Cristo a sua plena
expressão quando Ele vem à terra. Como nos diz o v. 1, num paralelismo que se pode
estabelecer com o v. 14, o Verbo, que “era” no princípio, “fez-se…”; Ele, que “estava” com
Deus, “habitou” entre nós; Ele, que “era” Deus, “fez-se” carne (homem)55. Fazendo-nos
recuar à primeira criação, o Evangelho de João ajuda-nos a ver a ação do Verbo como uma
nova criação.
Jesus Cristo, Verbo de Deus feito homem, não é mais um profeta como os outros, nem
como Moisés, o profeta por excelência na cosmovisão samaritana, nem como João Baptista, o
maior entre os nascidos de mulher (Mt 11: 11), mas é a Vida e a Luz que o Pai enviou ao

54
SEGALLA, Giuseppe. Giovanni. Roma: Edizioni Paoline, 1986, p. 136
55
SEGALLA, 1986, p. 143
23

mundo, que “veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (v. 11). Ele é o Filho de
Deus, o único que na terra pode dizer “Eu sou”, como Javé no Sinai (Cf. Ex 3: 14; Is 43: 10;
Jo 6: 20; 8: 24, 28, 58; 13: 19; 18: 5, 8). Como Filho que é, também permite que nós
participemos da sua filiação56: “a quantos o receberam, aos que nele crêem, deu-lhes o poder
de se tornarem filhos de Deus” (v. 12).
A filiação divina de Jesus é uma das formas mais importantes da sua revelação.
Apresentando-se como Filho de Deus, Ele pretende mostrar que vem para cumprir todas as
promessas de Javé no Antigo Testamento. Contudo, ao utilizar tal forma de se identificar, dá
um passo até aí inconcebível para os judeus: equiparar-se a Deus, tratando-o como Pai e
considerando-se seu Filho (Cf. Jo 8: 59; 10: 31-33, 39). A Revelação de Deus atinge assim o
seu auge na pessoa de Jesus Cristo, como testemunham as palavras do evangelista, v. 18: “A
Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigênito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem
o deu a conhecer”. É este o Verbo encarnado que vem iniciar a nova criação, instaurar a nova
aliança, dar-nos a Vida em abundância (Cf. Jo 10:10; 1:4).

6. Releitura
Ao pretender fazer uma releitura de João 1: 1-18 devemos entender que o texto possui
uma reserva de sentido que depende do próprio texto e da vida que orienta a pergunta por
esse sentido57. Da mesma maneira, essa interpretação se submete às nossas próprias práticas
sociais e influências históricas e culturais, que, com certeza, estarão diametralmente opostas
ao sentido que era dado pela comunidade joanina.
Entendemos o hino cristológico a partir do seu fim e alvo, ou seja, a partir do anúncio
da encarnação no v.14. A palavra encarnação, tão carregada pela prática religiosa durante
séculos, envolve um escândalo no contexto antigo: naquela cosmovisão, carne significava a
região da mortalidade, da dor e da submissão aos instintos sexuais. É uma esfera para ser
evitada e até desprezada. Em vez disso, o hino declama a encarnação do λóγο̋ como ponto
central da presença de Deus na terra (“habitou entre nós”). As expressões paradoxais, ligando
o Espírito ao corpo, cobram um alto preço do uso da linguagem. No v. 13, a instância autoral
vê-se numa dificuldade em distinguir o termo “carne”. A dogmática evangélica tem preferido
o termo “hominização” em vez de “encarnação”.

56
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré. Lisboa: Esfera dos Livros, 2007, p. 428
57
CROATO, J. S. Hermenêutica Bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. São
Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 45.
24

Lidos a partir da encarnação, os vv. 1-4 aparecem numa outra luz: não se trata de
especulações sobre relações divinas antes da criação, mas da origem e legitimação do λóγο̋:
para ser o Salvador, ele é antes o criador, v.3. A salvação não acaba com o cosmos, mas o
restitui. Ainda mais atrás, Ele era “no princípio”. Estas palavras são uma referência ao início
do Antigo Testamento, ao relato da criação e confessam a prevalência do λóγο̋ sobre o nada
que confessaria: “No princípio era o caos.”
A tradução do termo λóγο̋ reveste-se de um significado crucial na cosmovisão da
comunidade joanina. Esse Logos tem duas raízes: a palavra hebraica dabar, do Antigo
Testamento: palavra viva que cria o acontecimento pronunciado. Comparando os profetas e
Gênesis 1 vemos que Deus cria pela sua palavra. A palavra é oral, é voz pronunciada e ato
criativo no tempo concreto. A raiz grega tem quatro significados: o ato de falar, especialmente
palavra e discurso; o cálculo; a relação racional; a razão e entendimento. Em nossa releitura, a
tradução formal “Verbo” ou a dinâmica “Palavra”, para sublinhar o aspecto oral, são as únicas
possíveis.
No prólogo do Evangelho de João, a palavra não precisa de mais explicação, porque se
refere ao mistério que une o mundo, o alvo do desejo humano infinito de conhecimento e
salvação, a figura humano-divina da mediação. O termo λóγο̋ é assim a confluência entre o
pensamento hebraico e grego – unindo palavra/ação com a razão como princípio unificador e
compreensivo da filosofia clássica. A mensagem do Evangelho será que toda a sabedoria e
todo o pensamento se reencontram em Jesus Cristo.
Depois de o hino ter celebrado “luz” e “vida”, vv. 4 e 9, e depois de ter anunciado a
tragédia da não-compreensão e recusa do Verbo - a profunda irracionalidade humana -, ele
termina com uma forte vertente antropológica anunciando a existência humana plena:
“...vimos a Sua gloria, ...cheia de graça e verdade” (v. 14) “...da sua plenitude todos nós
recebemos graça sobre graça.” (v.16). Parece impossível, numa situação sócio-cultural e
religiosa de repressão, crise e miséria, ouvirmos estas palavras tão belas sobre destino e
possibilidade do Homem. Na fé, esta realização espiritual humana é desejo, ilusão, ideal ou
utopia?
O hino não aponta para uma resposta individual, mas para um Todo, seja na
comunidade, seja na humanidade. É evidente que, ao falar de Deus pelo Logos/Verbo/Palavra,
a humanidade não está mais expropriada, mas, sim, apropriada do seu Ser mais nobre e
verdadeiro.
25

Conclusão
O prólogo do Evangelho de João é um dos textos mais belos da literatura universal.
Como o texto é um hino confessante, inserido no contexto do Evangelho, não podemos
considerá-lo uma revelação abstrata, mística, desligado da história da comunidade. O fato é
que o evangelista reconhece implicitamente que o mundo assim como está não corresponde ao
mundo como o Verbo o havia criado (Jo 1: 1-3). “Ele veio para o que era seu, e os seus não o
acolheram” (Jo 1: 11). O “Verbo”, e Deus por meio dele, não se faz conhecer simplesmente
na criação, mas na sua missão encarnada e salvífica (Jo 1: 14). Como expressar tudo isso?
Não era suficiente um processo de automanifestação de Jesus. Por isso é preciso, como o
Evangelho o demonstra logo no primeiro capítulo, na perícope seguinte, ir a Jesus, ouvir sua
palavra, permanecer com ele.
Conhecer Jesus e permanecer com ele significa conhecer Deus e permanecer com
Deus. A imagem simbólica dos títulos comunica aos leitores que em Jesus cumpre-se
definitivamente a “hora” da salvação na morte na cruz e a volta ao Pai. Jesus é o “revelador”
do Pai, é o “símbolo” do Pai. Como tal, a escatologia se realiza no presente histórico. A figura
do Filho do Homem, que mantém conotações messiânicas, é símbolo da vitória do povo de
Israel. A salvação está num agir histórico, o agir que constrói na terra o Reino de Deus. O
hino do prólogo não quer simplesmente relatar os fatos brutos. O hino quer pôr em destaque
seu significado.
O modo de revelação do prólogo, operando em todo o contexto do evangelho, mostra
fundamentalmente o sentido da vida de Jesus. Quem creu nele teve o poder de se tornar filho
de Deus, num determinado contexto da história. É no contexto histórico complexo de hoje que
devemos seguir Jesus. Não haverá evangelização, se esta não se encarnar. A imagem de
“Filho de Deus” e “Filho do Homem”, portanto, confirma a visão da escatologia presente no
quarto evangelho, com a antecipação do futuro no presente, o que valoriza o mundo de baixo,
pois é este mundo que Deus tanto amou, a ponto de mandar seu Filho único para salvá-lo (Jo
3, 16).
26

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