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I V UN IDADE de abertura das estradas, construção das barracas dos seringueiros e das
dependências do barracão.
Para melhor compreender como era organizado e como funcionava
o seringal, vamos adiante analisar alguns de seus elementos principais,
tendo como ponto de referência, por um lado, o seringalista, o barracão
e os seus componentes, e, por outro, o seringueiro e a colocação.
BARRACÕESE BARRACAS: Por enquanto queremos apenas ressaltar que a unidade produtiva
a que chamamos de "seringal" não se resume somente a uma extensa
o seringalcomounidadeprodutiva. área de terras, com muitas estradas de seringa, seringueiros e patrão. O
A divisãosocial seringal era um todo complexo e sua estrutura refletia, sob certos aspec-
tos, as exigências do meio e a necessidade da produção de borracha para'
e técnicado trabalho o mercado mundial. Por isso se faz necessário estudar o seu funciona-
mento interno e suas relações externas.
Antes de entrarmos no estudo espec{fico da organização e funcio-
namento do seringal, gostarramos de ressaltar uma questão fundamen-
1. Noções Iniciais tal, que você deverá relacionar com o que trata a Primeira Unidade. Re-
ferimo-nos ao novo tipo de propriedade estabeíecida com o advento do
Nas Unidades anteriores você estudou que a formação do seringal seringal.
está estreitamente vinculada ao arregimentamento da força de trabalho Como você sabe, o silvrcola que habitava essa região não conhecia
e ao financiamento, à emigração nordestina e ao aviamento. Agora você a propriedade particular da terra e a noção de lucro que lhe era estra.
estudará o seringal em sua estrutura e funcionamento, a divisão social e nha.
técnica do trabalho, enfim, o poder do patrão simbolizado na imponên- Pois bem, chegados os primeiros contingentes populacionais e a
cia do barracão e a submissão do seringueiro que, morando em toscas conseqüente implantação dos seringais, estabeleceu-se a propriedade
barracas, vivia para se escravizar, no dizer de Euclides da Cunha. particular da terra, sendo o seringalista (o patrão) o seu proprietário ex-
Para abrir um seringal não era preciso muita coisa. Conseguido o clusivo e1bsoluto, mesmo que fosse apenas de fato, já que não havia,
fornecimento de mercadorias junto a uma casa aviadora de Belém ou na região, presença jur{dico-administrativa nem da Bolrvia nem do
fvianaus, o futuro proprietário - o patrão seringalista - recrutava algu- BrasiI.
mas dezenas de trabalhadores no Nordeste, ou mesmo em Manaus e Be- E certo que não foi implantado nenhum sistema de medidas métri-
lém, e subia com eles os rios Purus ou Juruá à procura de um lugar apro- cas para estabelecer áreas definidas. A extensão da propriedade depen-
priado para a fixação da sede de seu seringal. Dava-se preferência aos lu- dia da extensão das estradas de seringas. Portanto, a propriedade de tal
gares altos, que não fossem atingidos facilmente pelas águas em tempo seringalista constitu ra-se de toda aquela área de terra alcançada pelas es-
de cheias e em cujas proximidades existisse grande quantidade de árvo- tradas de seringas que o mesmo mandava abrir. Assim sendo, o patrão
res-seringueiras. Os lugares próximos aos igarapés e lagos eram bastante tornava-se o dono único e exclusivo daquela área e de tudo que existia
procurados. sobre ela, de maneira que, se alguém pretendesse agir dentro dela, seja
Feita a sondagem e verificadas as qualidades do lugar, tratavam de de qual forma fosse: caçar, pescar, cortar madeiras, etc., teria que ter a
erigir, de imediato, um pequeno casebre com recursos da própria selva permissão do seu dono, o seringalista.
-- palha, madeira de pau roliço, paxiúba, etc. .- para a acomodação pro- Inicialmente, a terra em si não constitu{a fonte de riqueza para o
visória do patrão, dos "seus homens" e das mercadorias, as quais varia- seringalista. O que lhe interessava era a borracha para o comércio e a
vam do perfume francês ao jabá, do quinino ao rifle 44. conseqüente aquisição de lucros. Mas, para tal, fazia-se necessário esta-
Acomodado o pessoal ~ as mercadorias, dava-se in{cio ao trabalho belecer o seu dom ínio sobre toda aquela região, já que outros elementos
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da flora - além da seringueira - e da fauna também eram importantes é o armazém. Ao lado, ligado por um trapiche de paxiúba, o escritQ-
para a manutenção do seringal. rio L.,)' Em seguida, estão a casa do ... guarda-livros, a escola, o curral e,
Outro aspecto, não menos importante a ressaltar, refere-se ao sig- por último, a residência do proprietário, um bonito chalé de madeira de
nificado mercantil-capitalista atribu(do à borracha. Identificada pelo lei, cercado de varandas."
abor(gene sempre como objeto de uso, no momento da formação do se- I'Por trás, beirando o aceiro da mata, sem preocupação de arruma-
ringal, a goma elástica passou a ser mercadoria de apreciável valor co- mento, o engenho, a casa-de-farinha, a barraca do mateiro e algumas
mercial-industrial, razão pela qual se deu a ocupação. outras de trabalhadores do campo. Mais adiante, já do outro lado do
Agora já estamos em condições de examinar um por um os elemen- igarapé, o barracão de hospedagem e o paiol de inflamáveis prudente-
tos componentes do seringal: o barracão, a colocação, as estradas de se- mente isolado por uma cerca de arame farpado."
ringa e a barraca do seringueiro, próximo da qual se localizava o peque- Sede do seringal, o barracão situava-se sempre às margens dos rios
no tapiri, onde se efetuava o processo de coagulação do látex. Examina- porque essa foi, desde os primeiros tempos da ocupação, a melhor via
remos também as categorias profissionais integrantes do seringal, procu- de acesso dispon ível na região. Esse condicionamento de ordem natural,
rando posicioná-Ias quanto à divisão social e técnica do trabalho. Fe- além do condicionamento sócio-histórico, fizeram com que os desbra-
chando a Unidade, estudaremos mais detidamente aquelas que se consti- vadores dos seringais acreanos, tanto no Juruá como no Purus, Iaco e
tu(am na própria razão de ser do seringal enquanto unidade produtiva Aguiry, montassem seus negócios nas margens e não em zonas centrais,
voltada para o mercado externo: o patrão-seringalista e o trabalhador uma vez que a localização ribeirinha Ihes facilitava o recebimento de
extrator-manufatureiro (o seringueiroL mercadorias diversas e o embarque da borracha ou outros produtos.
Desta maneira, o barracão era, além de sede administrativa e co-
mercial do seringal, também a morada do seringalista e sua família, ex-
2. O Barracão: poder, vigilância, circulação da riqueza no seringal ceç-ão, é claro, para os casos de seringalistas abastados que, no auge dos
bons preços na comercialização da borracha, preferiam residir em Ma-
O aumentativo representa símbolo de autoridade, de respeito e naus ou Belém, deixando um gerente como substituto. Tal fenômeno
obediência aos que nele vivem. Antes, ele foi uma simples habitação - a ausência do seringalista na propriedade - pode ser observado, tam-
(como já nos referimos anteriormente) feita com os próprios recursos bém, no período de declrnio ocorrido em conseqüência da competição
da selva, para a comodidade imediata. da produção gum(fera na 1\1alásia.
Do sucesso da produção dependia a ampliação do barracão. Muitos Mas o barracão funcionava também como núcleo gerador, estimu-
patrões constru (ram verdadeiros cha/ets, esti 10 su (ço, ornamentados lador e executor de todo um complexo de valores (ideologia), indispen-
com mobrl ia austrfaca, alguns de dois andares, cobertos de telha fran- sáveis para a reprodução do sistema. Lá eram celebradas festas de cará-
cesa, com varanda, etc. ter profano-religioso em fins de ano, festas juninas, assim como cerimô-
Os seringais menos prósperos conservavam o estilo primitivo, cons- nias de batizado e casamento. Essas últimas aconteceram freqüentemen-
tru (am seus barracões com paxiúba, cobrindo-os com palha ou cavaco. te depois de 1920, quando passaram a ser constantes as desobrigas de
Outros, no lugar da paxiúba, usavam tábuas. sacerdotes nos seringais.
O barracão, cujo sinônimo margem contrastava com o centro, a co- De simples casarões toscos, feitos de madeira roliça e cobertos de
locação do seringueiro, não designava apenas a casa do patrão, mas o palha, alguns barracões progrediram de tal maneira que, à primeira vista,
conjunto de todas as dependências que ativavam o funcionamento do pareciam pequenos núcleos urbanos. Outros levaram anos e não conse-
seringal na margem. JOSE POTYGUARA, em Terra Calda, nos descreve guiram ter esse aspecto, pois a capacidade de produção e habilidade no
um barracão, estilo clássico do início deste século: comércio extrativista eram fatores decisivos no desenvolvimento dessas
"Num campo apertado entre a mata e o rio, a sede do seringal é sedes.
apenas um embrião de povoado, um arremedo de rua paralela ao barran- O patrão precisava ser de confiança para que as Casas Aviadoras
co. Perto do porto, o primeiro casarão de madeira, coberto de zinco,. não Ihes deixassepl faltar nada. Além do Novo Andirá, outros Seringais
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3. Colocações, estradas e barracas: onde o seringueiro
produzia e "se escravizava"

No seringal, a colocação, com suas estradas de seringa e a barraca


do seringueiro, constitui-se na antftese do barracão. E o centro contras-
tando com a margem. E o "mundo" do trabalho, da produção, em con-
traposição ao barracão, o "mundo" do capital, controle e circulação da
cé riqueza gerada pelo extrator-gum(fero.
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... Um seringal divide-se em várias colocações. Cada colocação, por
I sua vez, compõe-se de várias estradas de seringa, geralmente Ide 3 a 15.
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t Entretanto, a abertura de colocações e estradas de seringa não era um
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o ato isolado da dinâmica produtiva do seringal, pois o seu número diver-
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E sificava-se de acordo com a mão-de-obra disponível. Um seringal pode-
.B roso possu(a, às vezes, mais de cem colocações. Geralmente havia um
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seringueiro em cada colocação, dando conta do corte de três estradas de
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101 seringa. Todavia, era mais ou menos freqüente o caso em que uma colo-
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cação que possu ísse nove estradas poderia ser ocupada por três homens,
o isto é, o ocupante e dois meeiros.
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E As colocações mais distantes e por isso mais novas, de abertura
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mais recente, costumavam se chamar zona braba ou zona virgem.
so Quanto às estradas, verdadeiros caminhos de trabalho, podem ser
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de margens ou de centro. As primeiras são assim chamadas porque, sain-
O seringal Andirá, na década de 30, tinha a aparência de um pequeno do por um lado da barraca, o seringueiro, após fazer todo o seu percur-
núcleo urbanizado. O seu proprietário, Cel. Sebastião Dantas, tinha cré- so, sai pelo outro. As segundas precisam de um caminho (de um espi-
dito e prestfgio nas praças de Manaus e Belém.
gão), que, partindo da' barraca do seringueiro, vai se encontrar com a
estrada propriamente dita. Portanto, nesse trecho chamado espigão, o
situados no vale do Acre pareciam pequenas vilas. Eis alguns deles: Ira- seringueiro faz a sua caminhada de ida e volta, o que não acontece no
cema, Nova Esperança, Porvir Novo, Benfica, Capatará, São Lu (s do
Remanso. primeiro caso. Normalmente, as estradas acabarr adquirindo uma forma
de oito, sendo por isso batizadas de "estrada de oito", ou então tomam
Em linhas gerais, o barracão - sede do seringal - pode ser entendi- forma oval ou circunferencial. Geralmente isso acontece com as estradas
do como aquele setor do seringal que viabilizava o dom(nio do capital de margens, embora sempre tortuosas. Há também as estradas com
sobre a força de trabalho, através de mecanismos coercitivos nitidamen- manga, isto é, aquelas que possuem seringueiras fora da rota, ou cami-
te econômicos (a d(vida no barracão) ou extra-econômicos (regulamen- nho anteriormente traçado, necessitando-se, assim, fazer um desvio
tos, fiscalizações, castigos, etc.).
(uma manga) até estas. Acontece, às vezes, de uma estrada ter várias
rr.angas. Não raro ocorre uma estrada ser direta, em forma de estirão,
em linha reta, obrigando o seringueiro a fazer seu movimento de ida e
volta pelo mesmo caminho, o que leva ao desperd (cio de tempo e ao
desgaste Usico.

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4. O dom ínio do capital: aliam-se capital financeiro privado e Estado Quando o seringueiro não tem família - e este era o caso mais freqüEm-
te - sua barraca possuía somente um-compartimento: era toda fechada,
Imponentes e alheias à vida do homem nos seringais, as casas avia- deixando um vao em seu interior, ou se fazia, em um de seus cantos,
doras monopolizavam a produção diretamente de seus escritórios em um quarto para dormir e guardar os pertences, deixando em aberto o
Manaus e Belém. A maioria dessas casas aviadiras representaram, até o restante, assoalhado ou não. Ocorria, em casos raríssimos, de a barraca
início da Segunda Grande Guerra Mundial, interesses principalmente do não ter assoalho, ou seja, o assoalho era o próprio chão.
capital europeu: ingleSes, alemães, holandeses, franceses e portugueses. Pouqu íssimas e miseráveis coisas ocupavam o interior da barraca.
Essas casas monopolizadoras da manufatura da borracha predomi- Os objetos mais freqüentes são: um cântaro (pote de barro para colocar
naram até à época da edosão da Segunda Grande Guerra Mundial água de beber), um fogão de lenha, uma rede, uma espingarda ou rifle,
(1939-45). Dali em diante dois órgãos passaram a geri-Ia: a Rubber Re- latas para guarda de comestíveis, etc. Banco e mesa faziam-se de toras
serve Development Company e o Banco de Crédito da Amazônia. En- curtas de "pau roliço" tiradas da mata.
cerrou-se, desta forma, a ação direta das casas aviadoras nos seringais e Próximo à barraca encontrava-se o tapiri (o defumador), local on- .
o monopól io passou a ser exclusivo desses órgãos. Agora, pelo novo de se defumava a borracha, geralmente todo fechado de palha e com
sistema operacional, os seringalistas passaram a receber financiamento uma pequena porta na frente.
bancário, dinheiro vivo, para tocar direto os seus empreendimentos. Re- O tapiri é uma pequena cabana geralmente fechada de palha, com
cebiam financiamento equivalente a 60% da produção pagando juros a uma única e pequena porta na frente, localizada nas proximidades da
7% ao ano. Como nos referimos anteriormente, as Casas Aviadoras fi- barraca. Ali encontra-se um defumador que, atirando espessos rolos de
nanciavam com mercadorias 100% da produção, pelo sistema de avia- fumaça, propicia a reação química do látex para o estado sólido.
mento, laços não totalmente desfeitos porque os seringalistas continua- A construção do tapiri e do defumador não exige material ou téc-
ram comprando de seus antigos patrões. Os aviadores procuraram ainda,
através das Associações Comerciais, dissuadir o governo brasileiro de tal
medida. Foi em vão o esforço.
Em síntese, a exploração creditícia emanada das Casas Aviadoras
para os seringalistas e destes para os seringueiros e, ainda, juntando-se a
esse contexto, o permanente contato do homem com a natureza no sen-
tido de vencê-Ia e transformá-Ia; a hostilidade eminente nas relações so-
ciais decorrentes da situação antagônica em que se encontravam os ho-
mens ligados ao extrativismo: patrões-seringalistas e produtores diretos
(seringueiros); o endividamento compulsório a que ambos eram subme-
tidos, a ausência de dinheiro nas transações comerciais, oisôlamento
humano que tornava a vida sem perspectiva; e, por fim, océi-ceamento
das liberdades do homem preso à produção, eram, em linhas gerais, as §..
matrizes sustentadoras do sistema de aviamento no extrativismo.
Uma estrada de seringa pode ter 130, 150 e até 200 seringueiras.
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Cortada uma estrada, ela terá que passar, no mínimo, dois dias em des- (,)
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C<:mso.Enquanto isso, cortam-se as outras. ..~
A barraca do seringueiro, geralmente localizada às margens de um ..o
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rio, lago ou igarapé, tem sua armação feita de madeira de "pau roliço", -~ r..
C()berta de palha e assoalhada com paxiúba. As vezes, as paredes tam-
b~m são feitas com paxiúba, sem janelas e somente com uma porta. o tapiri.
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nica avançada: palhas, pau roliço, fibras, barro, encontrados nas proxi-
midades da casa do seringueiro. obedecia a um critério preestabelecido nem era única e válida para to- .
dos os seringais ou todas as épocas. Feitas essas ressalvas, poderemos,
entâo, prosseguir, examinando, no interior de cada grupo, a posição de
5. Varadouros: "veias abertas" do seringal cada um dentro da unidade produtiva.
No primeiro grupo vamos examinar as funções do gerente, do guar.
da-livros, do caixeiro, do noteiro e dos fiscais.
Estreitos e tortuosos, lamacentos na época das chuvas, os varadou- O gerente é a segunda pessoa na hierarquia do seringal. Substitui o
ros são pequenas estradas, abertas a machado e terçado. Ligam o barra-
cão às colocações, as colocações entre si, um seringal a outro e os serin- patrão quando ausente, mantendo a mesma postura autoritária do serin-
gais às sedes municipais. galista, na maioria das vezes. Nos casos em que o seringalista preferia
morar nas cidades de Belém ou Manaus, o gerente tornava-se o responsá-
A distância de uma colocação para outra varia de um, dois, três e vel único e permanente do seringal.
até mais quilômetros. E o varadouro vai passando de colocação a colo- Em seguida vem o guarda-livros. Este era o responsável por toda a
cação. E através do varadouro que caminham os comboios deixando as escrituração do barracão. Cabia-lhe registrar todas as mercadorias chega-
mercadorias para os seringueiros e trazendo as pélas de borracha para o das da casa aviadora e despachadas aos trabalhadores do seringal. Na au-
barracão. Nos casos em que não seja possível a comunicação entre uma sência do gerente era ele quem o substitu ía. As vezes, quando o barra-
e outra colocação, o comboio precisa voltar para pegar o varadouro cão não tinha gerente, o guarda-livros desempenhava esse papel. A res-
principal. Esse trecho que liga o varadouro principal à colocação chama- ponsabilidade desse elemento era de grande relevância, já que lhe com-
se manga.
petia fazer as anotações falsas ou verdadeiras da conta corrente; era ele
quem dizia se um seringueiro devia ou tinha saldo, se podia tirar mais
6. A cada um segundo a lógica do sistema: a divisão social mercadorias ou não. Entretanto, suas decisões dependiam da liberação
e técnica do trabalho no seringal do gerente ou do patrão.
Aos caixeiros sobrava-Ihes, ainda, alguns poderes de decisão no
barracão. Eram eles que abasteciam os centros, pesavam as borrachas,
Além dos donos dos meios de produção (patrões seringalistas) e
cuidavam dos armazéns de víveres e dos depósitos de borracha. O grupo
dos extratores gum íferos (seringueiros), molas-mestras do sistema (veja de caixeiros constituía o "policiamento" do seringal. Com autorização
o próximo tópico), o seringal necessitava ainda de outros trabalhadores
para que o sistema se reproduzisse. para até mesmo torturar infratores, alguns desses homens aproveitavam
a legação de poderes que Ihes eram atribuídos para humilhar e perseguir
Desta maneira, e para facilitar a compreensão, podemos dividir os
seringueiros, cortando-Ihes o fornecimento de mercadorias, destruindo
que trabalhavam nos diversos setores do seringa! em quatro grupos: algumas plantações feitas por eles, proibindo o contato dos seringueiros
1.0 - os que, desde o gerente, guarda-livros, caixeiros, fiscais e noteiros, com os regatões, etc.
representavam a autoridade, a fiscalização, o controle e a repressão; O caixeiro era o homem de confiança do patrão e o segurança do
2.0 - os que eram encarregados de fazer chegar às colocações tudo seringal. Geralmente preferiam homens fortes e autoritários. Não era
aquilo de que os seringueiros precisavam, isto é, os comboieiros; 3.0 - necessário ter conhecimentos especiais. Bastava-Ihes saber escrever e fa-
aqueles que, desde o mateiro, o toqueiro (ou piqueiro) e o roceiro, ti- zer simples operações matemâticas, já que a contabilidade era atividade
nham a função de descobridores da seringueira e preparo da área onde do guarda-livros.
se daria o trabalho da extração do látex; e 4.0 - os que exerciam ativi- Aqui e ali os barracões possu íam "fiscais" que vez ou outra percor-
dades ligadas à produção de subsistência ou à execução de tarefas varia- riam as colocações verificando se o seringueiro estava usando método
das, como os caçadores, pescadores e trabalhadores do campo. Antes de correto no corte da seringueira. Uma série de normas deviam ser cum-
descrevermos e analisarmos brevemente em que consistia o trabalho pridas, como, por exemplo, o corte na árvore não podia ser desferido de
desses homens, é bom lembrarmos que esta divisão do trabalho não maneira profunda. Mas a fiscalização não se esgotava ar. Investigava-se
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se o seringueiro se ocupava de outra atividade que não o extrativismo dores de campo que se dedicam às criações (galinhas, porcos, gado,
ou se tinha pélas de borracha suficientes para sanar as d (vidas. Nos casos etc.). Limpam o campo, fazem cerca, etc. Esses últimos - os trabalha-
mais sérios esses homens traziam o seringueiro à presença do patrão pa- dores de campo - surgiram tempos depois da formação dos primeiros
ra ser penalizado ou interrogado. A presença desses indiv(duos não se seringais.
generalizava em todas as sedes. S6 as mais importantes os possu(am. De modo geral, todos eles gozavam de privilégios em relação ao se-
Jã os noteiros eram aqueles que, quase sempre chefiando os com- ringueiro. Só o fato de estarem habitando na margem jã indicava melhor
boios, anotavam as merCadorias descarregadas nas colocações, bem co- status. Notrcias dos núcleos urbanos, das grandes cidades e até mesmo
mo registravam as pélas de borracha que seriam levadas para o barracão. noticiãrio internacional chegavam até eles, apesar do atraso de meses.
Do segundo grupo, destacamos o comboieiro, aquele que, cuidan- Morar na margem era bom, particularmente para caixeiros, guarda-
do do comboio (alguns muares), transportava mercadorias (arma, ali- -livros e fiscais, pois significava estar pr6ximo do poder e dele esperar
mentação, medicamentos, etc,), semanal ou mensalmente, para o centro recompensas pelos "bons serviços" prestados.
do seringal, levando para o barracão a borracha produzida. Quando
analfabeto - e essa era a regra - o comboieiro era acompanhado por
um noteiro, cuja função já foi descrita. De qualquer modo, o comboiei- 7. Sua vontade era lei: o poder do seringalista
ro constitu(a-se num elo importante na cadeia do aviamento, pois cabia
a ele tornar viável o escoamento da produção. ... "O respeito que impõe, a di-
Vejamos agora o terceiro grupo, constitu(do pelos mateiros, to- reção que precisa dar aos negó-
queiros ou piqueiros e roceiros. cios do seringal exige-lhe ação
O trabalho desses três, cada um com função especffica, estava inti- pronta, enérgica, e explica a
mamente relacionado com a abertura e preparo das estradas de seringa aspereza. Tem que ser dinâmi-
para a produção. Encontrada a primeira seringueira pelo mateiro, o to- co, rude, talvez tirânico. Qual-
queiro faz uma pequena limpeza ao seu redor e senta-se em seu tronco, quer fraqueza, qualquer inde-
advindo-Ihe dar sua denominação - toqueiro. O mateiro vai em busca cisão pode levar a um desastre.
de outra seringueira. Encontrando-a, dá um tiro para o alto. Ouvido o O senhorio que exerce precisa
ser mantido sem hesitações.
tiro e marcado o rumo, o toqueiro começa a abrir uma picada (apenas
uma noção do caminho, aparando os galhos de árvores), pois a tarefa de Lança mão de recursos bárba-
melhorar o caminho até transformã-Io em estrada cabia ao roceiro. A ros, muitas vezes, para poder
conter o desenfreio natural no
operação se repete. E lã vão os dois abrindo a estrada de seringa, de for-
ambien te duro, é verdade..."
ma que a última seringueira da estrada esteja próxima da primeira, pos-
sibilitando, portanto, que o ponto de chegada seja o ponto de partida. (Arthur Cesar F. Reis,op. cit.,
Desta maneira, observamos o inter-relacionamento destas três ativida- p. 114,)
des: o mateiro procura a seringueira, o piqueiro faz o pique, ligando
uma seringueira a outra e o roceiro limpa o pique até que este fique em
condições de se caminhar. Após a execução desse trabalho, a estrada O seringalista representa a figura central do seringal.E geralmente
está pronta. trata-se de um "aventureiro" que, tendo conseguidodas casasaviadoras
Por fim, o quarto grupo é aquele formado por trabalhadores que se de Belém ou Manausum fornecimento de mercadorias, recrutou algu-
dedicavam a atividades relacionadas ao abastecimento suplementar do mas dezenas de homens - migrantesnordestinos - e veio se estabelecer
seringal, assim como a tarefas ligadas à preservação do patrimônio do se- às margens de algum rio das bacias do Juruá ou do Purus.
ringalista. São eles os caçadores e pescadores, encarregados de suprir o Homens de pouca cultura - a maioria mal sabia ler, escrever ou fa-
barracão com alimentação proveniente da própria selva. São os trabalha- zer algumas operações contábeis - muitos deles já haviam estado aqui
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como exploradores, quando abriram caminho ao povoamento. Suas ori- tados" aqueles que não obedecessem a essa norma.
gens não remontam a nenhuma tradição de riqueza. São nordestinos Homens arregimentados não só no Ceará, mas em todo o Nordeste
que perderam todas as perspectivas de vida abastada em sua terra natal. os seringueiros suportavam toda sorte de violências: subordinação po~
A forma bem particular de organização do trabalho no seringal dívida, isolamento social, além de outras sanções emanadas do barracão
tornou esses homens autoritários, arrogantes e insaciáveis em suas pre- e, ainda por cima, a brusca mudança climática a que eram submetidos.
tensões. Desejosos de .enriquecer rápido e facilmente, à custa da explo- O clima quente e úmido, acrescido de doenças endêmicas e infecciosas,
ração do trabalho forçado e ininterrupto dos extratores do látex (os se- comuns à região, completavam o quadro de sacrifício por que passaram
ringueiros), assumiram uma postura de "ser supremo" do seringal. Con- esses trabalhadores.
sideravam-se os árbitros para o estabelecimento do erro ou da verdade. O seringueiro, pela própria natureza de seu trabalho, tornou-se fi-
Castigando com surra, amarrando no "tronco" ou mandando ma- gura singular na história do trabalhador nacional. Não há nada que o as-
tar os infratores de seus interesses, em certos casos desempenhavam até semelhe a outros trabalhadores produtivos. Não tinha vínculo emprega-
o papel de "juiz de paz" daquela região (do seringal), fazendo casamen- tício do ponto-de-vista legal, mas estava subordinado a um patrão; ocu-
tos, registrando nascimentos, mortes, sentenciando pena e dando o per- pava enormes faixas de terras (as colocações), porém delas não podia
dão. Eram a cruz e a espada a um só tempo na luta contra a conta-cor- fazer uso, isto é, fazer pequenos cultivos agrícolas de subsistência, por-
rente da casa aviadora. que as normas do barracão o proibiam. A ordem vigente era produzir
A um p'atrão seringalista, na época gloriosa da borracha, não se po- mais e mais borracha. A jornada de trabalho, então, não se resumia a
dia contrariar, por mais absurdas que fossem suas deliberações. Muitos simples oito horas por dia. Era muito mais. Geralmente o seringueiro
adquiriram patentes de coronel, major, capitão e, a exemplo dos coro- punha-se de pé às duas horas da manhã, preparava o café, tomava-o, em-
néis do Nordeste, tornaram-se classe poderosa. Os "coronéis de barran- punhava os instrumentos de trabalho (faca ou machadinha) poronga, fa-
co", como eram denominados os seringalistas, mandaram e desmanda- cão e rifle) e ganhava a mata para cortar madeiras. Por volta das onze,
ram, participando mu itos deles na pol ítica e administração do Acre-Ter- terminando o "corte", comia um pouco de farofa, no mato mesmo, e
ritório. Esse era mais um aspecto do poder que detinham. Um outro era de posse de um balde ou saco encauchado (impermeável) iniciava a "co-
a imagem de nobre que procuravam ostentar. O patrão "nobre", vez ou lha" do látex. As quatro da tarde chegava à barraca e dirigindo-se à de-
outra, viajava a Belém, Manaus e até ao exterior, promovendo ou parti- fumaceira iniciava o processo de defumação das "pélas" ou "bolotas"
cipando de banquetes ou diversões proibitivas. Mas eles podiam desfru- de' borracha. Esse trabalho todo terminava por volta das vinte horas. Aí,
tar de tudo isso: possuíam crédito nas praças aviadoras e braços para o então, é que ele podia fazer higiene corporal e comer alguma coisa. Es-
trabalho nos seringais. tava preparado para o dia seguinte. Deitava-se às onze para levantar-se
às duas.
Outros preferiam o turno da noite. Entravam para o corte às 18
8. Cortar seringa, empenhar a vida: o seringueiro horas, só conseguindo ficar livres às onze horas do dia. Dormiam das
e o sistema de aviamento 13 às 17, para às 18 continuarem a rotina. Assim era por toda a safra, já
que a dívida contraída no barracão precisava ser paga. Se adoecessem, o
Nem assalariado, nem escravo, o seringueiro era o suporte de uma jeito era sarar à custa de quinino ou beberagens do mato. Do contrário,
super-exploração começada nas casas aviadoras e prolongada na materia- morriam ali mesmo - sozinhos. E foram muitos os que pereceram aco-
lização do seu trabalho, isso porque o sistema organizador da produção metidos de impaludismo, beribéri, tifo, pneumonia, picadas de cobras,
extrativista assim determinava. Manietado por dívida, o seringueiro tam- etc. Nas barracas habitadas por mais de uma pessoa, o quadro também
bém não era trabalhador livre. Seria, se pudesse abandonar um local em não era menos desagradável, pois ocorria que todos ficavam doentes ao
que estava trabalhando por outro, o que se tornava impossível tendo em mesmo tempo, sem que um pudesse ajudar o outro. Assim mesmo, no
vista que os seringalistas organizados em Associações não permitiam fim do mês, o comboio encostava para deixar mercadoria e levar borra-
saídas enquanto as dívidas não estivessem de todo sanadas. Eram "mul- cha. Deixar mercadoria... se tivesse borracha.
80 81
Claro que as endemias s6 eram mais comuns naquelas levas recém- Ano Preço do quilograma
-chegadas, nos "brabos" chamados. Depois, se aclimatados, cessavam as
doenças. Os sobreviventes, mesmo gozando de relativa saúde, não ti- 1825 220 réis
nham boas perspectivas de vida, pois iam enfrentar d(vidas acumuladas 1893/4 5 $ 240
anos ap6s anos. Uma conta infinita. O preço do quilograma de borracha 1894/5 5 $ 720
não compensava os preços dos produtos importados, acima de 100% de 1897/8 10 $ 298
seu valor real. E não havia alternativa em procurar mais barato. Primei- 1910 17 $ 800
ro, porque não ocorria moeda: o seringueiro comprava e pagava em es-
pécie; segundo, porque a borracha produzida pertencia ao seringalista A produção amazônicade borracha
que havia fornecido mercadorias. Aliás, nesse fornecimento podiam ser atingiu o seu cl(max em 1911, quan-
inclu(das até mulheres. Para os seringueiros que tinham saldo, o patrão do chegou a 44.296 toneladas.
trazia companheiras, mas cobravam. Digamos, eram debitadas na conta
do seringueiro todas as despesas de hotel e passagens feitas de Manaus A estabilidade dos preços permitiu não s6 a obtenção de lucros por
ou Belém até o destino da criatura que vinha nessas condições. Não era parte dos donos de capitais que investiam nos seringais, mas também o
uma venda da pessoa humana propriamente dita, mas uma violência a fortalecimento dos seringalistas e a conseqüente permanência dos serin-
mais cometida pelo sistema de aviamento. A mulher não era comum nos gueiros frente à produção.
primeiros decênios da existência do seringal, por isso o seringalista a im- Daí para frente, a produção internacional começou a interfe-
portava, com a condição de s6 desposá-Ia quem tivesse condições de rir negativamente nas relações comerciais internas, sujeitando o merca-
custear suas despesas. A um trabalhador doente ou que estivesse com do externo e o extrativismo à grande crise de 1912. A borracha silvestre
débito elevado isso não era permitido. perde a cotação, os preços vão por terra e a principal economia regional
Graças a uma conjuntura internacional que manteve, durante algu- começa a agonizar. Os envolvidos na produção procuravam alternativas.
mas décadas, um n (vel favorável dos preços, e à imposição de um regime Os aviadores cortavam o fornecimento pelo meio e aumentavam os pre-
de trabalho que conservava o seringueiro em "cativeiro", isto é, atrelado ços dos v(veres. O seringalista, por sua vez, usava o mesmo método em
e subjugado ao barracão pelo saldo quase sempre negativo, o que signifi- relação ao seringueiro. Patrões que não se encontravam nas sedes envia-
cava garantir com razoável regularidade a força de trabalho indispensá- vam comunicados patéticos aos seus gerentes: "Confio em você. Não
vel, foi possível conseguir níveis elevados de produção e de lucros. afrouxe no balcão: mercadoria s6 para quem tem saldo ou está tirando
O Acre conseguiu ser, nas primeiras décadas deste século, o tercei- lenha." (José Potyguara, Terra Caída.)
ro maior contribuinte tributário da União, s6 ficando atrás dos Estados Diante dessa nova conjuntura econômica, as forças concentradas
de São Paulo e Minas Gerais. A produção crescera velozmente conforme no barracão vão se deteriorando gradativamente. As normas rígidas
o planejamento daqueles que comercializavam a borracha. A produção afrouxavam. O que era antes proibido, como plantar pequenas roças,
da goma elástica na Amazônia, principalmente no Acre, atingiu, no pe- agora era permitido. Uma agricultura incipiente surgia. Todos podiam
r(odo de 1895 a 1909, a casa das 443.200 toneladas, contra 374.510 do plantar. O barracão dispunha de pouca mercadoria, estocando o essen-
mesmo produto produzido na Africa, América Central e Malásia. A he- cial à sua subsistência enquanto instituição. O trânsito de um para outro
gemonia brasileira era indiscutível até ar. A concorrência internacional seringal passou a ser livre. Começava o grande êxodo, nunca antes cogi-
- elemento integrante do capitalismo monopolista - ainda não assusta- tado. Até 1941, sa(das e entradas em seringais tornaram-se rotina. O go-
ra as firmas aviadoras e os seringalistas. verno tentou reagir para salvar a economia extrativista, porém esbarrava
Os preços do quilograma de borracha, em decorrência da não satu- nas regras impostas pelo capital internacional. O Brasil não tinha para
ração de mercados, evolu íam satisfatoriamente. Por mais de 60 anos quem vender. Até os regatões, negociantes fluviais, figura outrora detes-
não se verificou estagnação. Observe a tabela: tada pelo barracão, passaram a exercer livre comércio. Compravam e
vendiam abertamente aos seringueiros. O que não se encontrava nas
82 83

i
lojas dos barracões era certo descobrir no comércio do regatão. O pró- ~

prio seringalista, dependendo da necessidade, recorria a eles. E nesse pe-


ríodo de decadência que surgem colônias agr(colas nos arredores das ci-
dades acreanas. Como muitos seringueiros vieram para a cidade, os go-
vernos do Território promoveram desapropriações dos seringais mais
próximos, distribuindo-os em lotes. Dar é que se originaram as primeiras
colônias agr(colas de Brasiléia, Xapuri, Rio Branco, Sena Madureira,
Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul.
Outras crises se sucederam conforme a oscilação da economia in-
ternacional, até que houve uma retomada na década de 40. A Segunda
Guerra Mundial, com efeito, deu novo impulso à economia extrativista.
A borracha passou a ser procurada pelas principais potências e os preços
ascenderam de modo razoável, obviamente. O capital norte-americano
em sua fase já imperialista entra decididamente no negócio. Cria-se o
banco da borracha, hoje BASA, e o seringalista passa a receber financia-
mento direto. A mão-de-obra é buscada novamente no Nordeste, só que
desta vez os trabalhadores eram contratados por empresas recrutadoras
que os intitulavam "Soldados da Borracha". A produção tomou novo As miniusinas surgiam com o intuito de manter o seringal na-
ânimo, mas não demorou a decair. O banco, que monopolizava a produ- tivo produzindo e de dar ao seringueiro uma nova perspectiva
ção, sustou o financiamento que vinha operando e os seringais entraram sócio-econômica. Os métodos utilizados para confeccionar o
novamente em colapso. Na década de 1960 alguns resistiram precaria- produto são racionalmente superiores aos usados anterior-
mente. Em 1970 a resistência acabou. Endividados, a maioria dos tradi- mente. Por outro lado, objetivam despertar no seringueiro
cionais patrões-seringalistas foi esmagada. Alguns retornaram à pobreza uma consci~ncia cooperativista.
em que viviam antes de explorar a produção de borracha, outros envere-
daram no ramo do comércio em pequenos e médios núcleos urbanos, e
uma minoria ajustou-se à nova ordem.
Aqueles que não tiveram seus bens hipotecados, venderam-nos pa-
ra os sulistas que aqui chegavam atra(dos pela desvalorização da terra e
perspectiva de implantar grandes projetos agropecuários. A produção
atual de borracha no Acre é insignificante e não tem como soerguê-Ia a
curto e médio prazos, uma vez que as seringueiras têm sido destru rdas
pelas grandes derrubadas operadas nos últimos tempos. Como forma al-
ternativa, procura-se implantar seringais de cultivo, porém o futuro des- '"
tes é incerto, porquanto ainda não se conhece a capacidade produtiva õ"
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dos mesmos. Por outro lado, esforça-se o governo, através da Sudhevea, ii:
para manter alguns seringais nativos produzindo. Para isso foram criadas :I
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as chamadas miniusinas, que congregam em torno de si vários seringuei- .o
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ros. A miniusina é uma proposta que visa oferecer melhor preço e técni- ..'"
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ca de trabalho mais modernizada, substituindo os antigos métodos de So
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produção. O látex deixou de ser defumado até trasnformar-se em pé Ias.
84 85
LEITURA COMPLEMENTAR LEITURA COMPLEMENTAR

O "BRABO" E O "SERINGUEIRO" O DEBITO DO "BRABO"

Chegamos, por fim, aos dois últimos tipos de significação na paisa- No pr6prio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a
gem social do seringal. Referimo-nos ao "Brabo" e ao ''Seringueiro'~ O dever: deve a passagem de proa até o Pará (35$000), e o dinheiro que
primeiro é o nordestino novato nas operações de extração do látex. recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do
Chegado ao seringal, desconhece as técnicas de trabalho, os segredos da transporte, num "gaiola" qualquer de Belém ao barracão longfnquo a
mata. E ainda um estranho ao meio f(sico e ao meio s6cio-econômico. que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de
Ensina-se-Ihe tudo. Necessariamente comete, nesses primeiros tempos, 800$000 para os seguintesutensfliosinvariáveis: um boiãode furo,
grandes imprudências, erra constantemente, reclama, ressente-se daque- uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um
le mundo de novidades com que se defronta. Em pouco, porém, se vai terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos,
aclimando, perdendo as hesitações, afeiçoando-se às contingências lo- duas colheres, duas xlcaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis
cais, aprendendo o que deve aprender para poder permanecer no serin- de linha e um agulheiro. Nada mais. Aftemos o nosso homem no "bar-
gal e realizar os seus sonhos de enriquecimento. Vencida essa fase de racão" senhoril, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrOo
experiência, de tomada de contacto, deixa então de ser um "brabo". lhe designará. Ainda é um "brabo", isto é, ainda nOoaprendeu o "corte
E atinge a condição ambicionada de "seringueiro". Já não mais se ate- da madeira" e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalça-
moriza com o ambiente, que desvenda, interpreta e procura dominar. do de um comboio levando-lhe a bagagem e vfveres, rigorosamente mar-
Sente-se, então, um vitorioso. Está, assim, assimilado e incorporado de cados, que lhe bastem três meses: 3 paneiros de farinha d'água, 1 saco
vez ao quadro permanente que movimenta e dá cor definitiva à paisa- de feijOo, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21
gem humana do seringal. de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de
quinino. Tudo isso lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deu um ta-
(Arthur César Ferreira Reis. O Seringale o Seringueiro. Ministério da lho de machadinha, ainda é o "brabo" canhestro, de quem chasqueia o
Agricultura - Serviço de Informação Agr(cola, Rio de Janeiro, 1953. "manso" experimentado, e já tem o compromissosério de 2:090$000.
p. 116.)
(Euclides da Cunha. Ã Margemda Hist6ria. Porto, Portugal, Editora
LelloBrasileiraS.A., 1967.pp. 24-25.)

87
86
LEITURA COMPLEMENTAR EXERcrCIO

BARRACAS E BARRACÕES 01 - Ao projetar uma abertura de um seringal, que providências, geral-


mente, eram tomadas pelo seringalista?
Barracão, aumentativo para ilustrar a condição social do proprietá-
rio, na perspectiva da arquitetura ampliada, na posição de destaque à 02 - O povoamento dos seringais acreanos não constitui o esponta-
beira do rio, diferenciando-se da barraca, uma espécie de senzala onde nefsmo dos nordestinos como insistem alguns ao tratarem da
se abriga o seringueiro propriamente dito, o extrator, casebre, paupér- questão. A corrida da borracha foi determinada por forças econô-
rimo, sustentando-se no rústico, arcabouço das paxiúbas. micas e pol rticas externas e internas asquais transcendiam à von-
Barracas e BarraclJes, na Amazônia, tiveram o mesmo sentido tade popular. Caracterize os fatores históricos determinantes do
social da casa-grande e senzala no Nordeste. Ambos traduzem a fisiono- povoamento e da conseqüente ocupação das terras do Acre.
mia e o ritmo de duas civilizaçlJes, ou melhor, de dois ciclos econômicos
primos entre si. Dessemelhantes em forma e grau, mas semelhantes na 03 - "Pois bem! Chegados os primeiros contingentes populacionais e a
essência comum do patriarcalismo, a civilização da borracha aproveitou conseqüente implantação dos seringais,estabeleceu-sea proprie-
muitas das constantes culturais daquela, naturalmente adaptando-as às dade particular da terra, sendo o seringalista(o patrão) o seupro-
realidades do meio amazônico, num interessante experimento de assi-
milação. prietário exclusivoe absoluto, mesmoque fosseapenasde fato, já
que não havia, na região, presença jurídico-administrativa nem da
. . . . . . .. . . . .. . . . . . " " . .. ... .. .. .. .. . '" .. .. . . .. . ... " " Bolívia nem do Brasil." Analise os fatores que determinaram o
surgimento da grande propriedade privada no Acre.
(Leandro Tocantins. Formação Histórica do Acre. Ed. Civilização Brasi-
leira, 1979, Vol. I. p. 156.)
04 - O seringal é uma unidade de produção. Especifique o papel sócio-
-econômico exercido pelos elementos que o compõem.

05 - Num primeiro momento os seringais eram abastecidos pelas Casas


Aviadoras. Após sofrerem sérias crises econômicas, os mesmos
passaram a ser financiados pelo Banco da Borracha(BASA), cria-
do para esse fim. Identifique as causas que proporcionaram as
mudanças no sistema de financiamento dos seringais.

06 - Com o passar dos anos nem as Casas Aviadoras nem o BASA


evitaram a insolvência total da economia extrativista, e, tanto
os seringueirosquanto os seringalistas,chegaram à décadade 70
na mais extrema miséria. Explique o porquê dessa situação.
88 89
07 - Leia atentamente o texto "O Débito do Brabo" (leitura comple- V UNI DADE
mentar) e evidencie o grau de endividamento do trabalhador ex-
trativista desde o seu recrutamento em sua terra de origem até o
momento de sua fixação no seringal.

DEMARCANDO AS FRONTEIRAS:
da Bula Intercoetera ao
Tratado de Ayacucho

1. Noções Iniciais

Formados os primeiros seringais, um problema complexo precisava


ser resolvido: o da legitimidade das posses. Nesta Unidade, convidamos
você a conhecer o mundo das tierras non descubiertas e analisar a ques-
tão das linhas fronteiriças, à luz do processo histórico.
Assim, você poderá observar que a demarcação definitiva da linha
fronteiriça que separa o Acre atual de seus vizinhos bolivianos e perua-
nos tem suas origens remotas a partir do momento em que Espanha e
Portugal disputaram a partilha do mundo entre si.
A anexação do Acre ao Território Brasileiro encerra uma história
secular de conqu ista territorial deste pa ís.
Situado no noroeste do Brasil e sudoeste da Amazônia, o Acre
tornou-se o Estado brasileiro mais próximo do Oceano Padfico, com
uma distância de 800 quilômetros. Sua superfície soma um total de
152.589 km2, o que representa 1,79% do território nacional, sendo
ocupada por uma população de 301.605 habitantes - segundo o censo
de 1980. Limita-se ao Norte com os Estados do Amazonas e Rondônia;
a Sudeste com a Boiívia; e a Sudoeste com o Peru. E banhado pelas ba-
cias do Juruá e do Purus - rios que nascem no Peru e correm paralela-
mente em direção nordeste, atravessando a região, indo desembocar no
rio Amazonas, já no Estado amazonense. Os demais rios que formam
essas bacias (seus afluentes) também correm em direção nordeste, con-
trapondo-se à disposição da linha geopoHtica, que toma o sentido
Leste-Oeste.
Essa imensa planície - em algumas regiões, principalmente na de
Cruzeiro do Sul, prevalecem as formas onduladas - é coberta por vege-
90 91
tacão de floresta latifoliada perene, o que contribui para a existênda
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2. A partilha do mundo: a Bula Intercoetera e o Tratado de Tordesilhas

Esta área de 152.589 km2, que hoje constitui o Estado do Acre,


tornou-se definitivamente brasileira com o ajuste diplomático assinado
entre o Brasil e a Bolrvia, a 17 de novembro de 1903, na cidade de Pe-
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No entanto, para melhor compreendermos o exposto acima, neces-

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assinar um acordo (Tratado de Tordesi lhas) a 07 de junho de 1494, que
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r a oeste do Arquipélago de Cabo Verde.
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Este novo acordo: "... deixou que os portugueses pusessem um pé
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Realmente, como você pode observar no mapa, a linha de 1493
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lhe interessava era terra; terra que, de certa forma, lhe proporcionasse
riqueza.

3. Embusca de riquezas e garantindo a posse: os Tratados Coloniais


Desde há muito Portugal percebera que "navegar era preciso", tra-
tando de lançar seus marujos ao mar, em busca de especiarias nas i"ndias
e de mão-de-obra (escravos) na Costa Africana. E agora, este pedaço de
92
93
terra - e que bom pedaço - na Sul-América iria lhe proporcionar maté- os (ndios Guiena, até a boca mais ocidental do Japu rá que deságua
rias-primas que poderiam ser comercializadas, inicialmente, com a Ho- nele pela margem setentrional."
landa, depois com a Inglaterra, principalmente. Pouco a pouco, os por- (Serzedello Corrêa. "Ligeiro estudo sobre a ocupação Paravicini no
gueses foram avançando em direção ao coração da Sul-América. Os ban- Acre: limites, navegação e comércio com a Boi(via" in O Rio Acre.)
deirantes no Sul e as incursões fluviais no Norte foram, gradativamente, As linhas foram estabelecidas no papel. Entretanto, embora já ti-
completando a conquista e esticando o Meridiano de Tordesilhas. vessem apreciável conhecimento dos rios Javari e Madeira - o que era
O extrativismo predat6rio empurrava cada vez mais os portugueses de fundamental importância para o estabelecimento das demarcações -
em direção ao poente. E quando do convênio de paz entre as duas co- Portugal e Espanha não se acanharam em afirmar:
roas (1668), a ocupação portuguesa já havia ultrapassado de muito a li- "... quanto ao espaço intermédio e deserto, confessamos de ambas
nha tordesilhana. A Amazônia se convertia em significante fonte de ri- as partes que estamos todos às cegas."
queza para Portugal, a4ferida pela comercialização das "Drogas do (Craveiro Costa. A Conquista do Deserto Ocidental. p. 10.)
Sertão". Insistia-se, contudo, no caráter transit6rio dos acordos, aguardan-
Preocupada com esse avanço em direção ao Pacrfico, a Espanha do-se indefinidamente o pronunciamento final das comissões demarca-
protestou, exigindo que fosse respeitada a linha de 1494. Das longas e tórias. Assim, amarelavam-se os papéis, jamais definitivamente legitima-
difrceis negociações diplomâticas resultou o Tratado de Madri, assinado dos. Até mesmo o Acordo de Badaj6s (firmado a 6 de junho de 1801),
a 13 de janeiro de 1750. que estabelecia princ(pios de boa vizinhança entre as duas Coroas, nada
Esse Tratado, inspirado na pretensiosa frase lusitana: "A TERRA resolveu sobre a questão. No dizer de Araújo Lima, o Tratado de Bada-
NAO PERTENCE A QUEM A DESCOBRE, MAS A QUEM A OCU- j6s "acabou (,.,) de mergulhar no abismo do esquecimento, a cuja beira,
PA", proporcionou a Portugal a ampliação do territ6rio já ocupado no aliás, fora concebido."
Continente Americano.
Em 12 de fevereiro de 1761, um novo acordo, o Tratado de Prado,
anulava todas as decisões tomadas em Madri, de forma que tudo voltou 4. "Tierras non descu biertas", mas ricas em borracha:
a ser como era em 1494. o Tratado de Ayacucho
Segmentos importantes da classe dominante portuguesa - particu-
larmente aqueles radicados no Brasil - ficaram revoltados com a postu- A questão demarcat6ria seria reaberta a partir de 1837, agora não
ra de seu Monarca ao aceitar esse acordo. Mas logo um novo Rei assu- mais entre duas monarquias européias, mas sim entre dois pa(ses latino-
miu a Coroa Portuguesa e a Espanha viu-se obrigada a aceitar quase que americanos em formação. Por um lado o Brasil-Império e por outro a
totalmente o que estabelecia o acordo de 1750, alterando-se apenas al- República da BoHvia.
guns limites no Sul. Tratava-se do Tratado de Santo IIdefonso, assinado Três foram os fatores que contribu(ram decisivamente para que as
em 10 de outubro de 1777. conversações diplomáticas em torno das linhas divis6rias fossem reativa-
Tanto o Tratado de Madri, como o de Santo Ildefonso, no que se das: a legislação brasileira sobre Sesmarias, a franquia do rio Amazonas
refere aos limites que interessavam à questão do Acre, prescreviam: à navegação internacional e a determinação boliviana relativa à explora-
"Baixará a linha pelas àguas desses dois rios: Guaporé e Mamoré, já ção do potencial econômico das tierras non descubiertas.
unidos com o nome de Madeira, até a paragem situada em igual Examinemos melhor os três fatores citados.
distância do Rio Maranon ou Amazonas e da boca do dito Mamo- A legislação brasileira sobre Sesmarias, elaborada em 1837, pre-
ré; e deste àquela paragem continuará por uma linha leste-oeste até tendia tornar clara e disciplinar a questão das terras devolutas, procu-
encontrar a margem oriental do Rio Javari, que entra no Maranon rando, desta forma, resolver antigos litrgios. Tal legislação atingia em
pela sua margem austral; e baixando pelo alveo do mesmo Javari cheio importante parcela da ârea litigiosa entre a Boi(via e o Brasil. A
até onde desemboca no Maranon ou Amazonas, prosseguirá águas República vizinha protestou, mas a diplomacia brasileira conseguiu si-
abaixo deste rio a que os Espanhóis costumam chamar Orellana, e lenciá-Ia.
94 95

~ "-
Em 1844, a BoHviatentou franquear o rio Amazonasà navegação numerosa para concretizar tal projeto. Primeiro, porque grande parte da
internacional, contando com o apoio dos Estados Unidos, levando o Im- população boliviana fora dizimada na Guerra do Pac(fico. Segundo, por-
perador D. Pedro II a protestar veementemente. A BoHvia recuou, mas que não se podia deslocar os trabalhadores das minas, sem provocar pre-
em troca exigiu que fossem recomeçadas as conversações demarcatórias ju(zos a tal atividade - base de sua economia. Ademais, os (ndios boli-
propostas pelo Tratado de Santo IIdefonso. Essa insistência iria perdu- vianos, acostumados com o clima dos altiplanos, não se adaptariam fa-
rar até 1867, quando a assinatura de um acordo solucionaria, tempora- mente a esta região de clima tropical. Acrescente-se a esses obstáculos a
riamente, a questão. precariedade de recursos financeiros e técnicos próprios, além da especi-
Deste modo, cedendo às pressões da BoHviae dos Estados Unidos, ficidade de interesses dos investidores e dirigentes pol (ticos.
o Brasil assinava a 7 de dezembro de 1866 um tratado, segundo o qual a Certo é que, apesar de o Governo ter eliminado todo e qualquer
navegação do rio Amazonas estaria: imposto pessoal de quem fosse trabalhar no Acre, o contingente migra-
"... aberta, desde o dia 7 de setembro de 1867, aos navios mercan- tório boliviano para esta região foi insignificante.
tes de todas as nações, (,..) até à fronteira do BrasiL" Quanto ao processo de ocupação do lado brasileiro, desde há mui-
(Craveiro Costa. A Conquista do Deserto Ocidental. p. 16.) to, as bacias do Juruá e Purus não se constitu(am mais em mistério para
Deve-se ressaltar, no entanto, que a decisão do governo imperial rijos e destemidos trabalhadores nordestinos. Aos poucos, um contin-
brasileiro em abrir o rio Amazonas à navegação internacional não foi gente apreciável de trabalhadores empobrecidos, estimulados pela pro-
conseqüência única ou especial das pressões bolivianas. Deve-se levar em paganda enganadora do enriquecimento fácil, foi ocupando esta região,
~onsideração que, estando em guerra com o Paraguai, não interessava ao não lhe importando lIonde terminava o Brasil". Concomitantemente, o
governo brasileiro desconsiderar totalmente as pretensões bolivianas, Estado do Amazonas passou a jurisdicionar toda a região ocupada, sem
pois um IIcochilo diplomático" poderia levar a Boi(via a aliar-se ao ini- se preocupar com uma questão tão importante como a cessão de títulos
migo do Prata. definitivos em território boliviano, tudo isso, entretanto, sem nenhum
Mas, por que a Bol(via estava tão interessada em estabelecer os planejamento, pois o que interessava prioritariamente ao Estado do
seus limites nesta região, considerada em seus mapas como terras não- Amazonas era o aspecto tribu1ário. Veja o que diz Peregalli:
-descobertas? "Os trabalhadores brasilei ros ocuparam e colonizaram territórios
Desde a primeira metade do século XIX, a borracha era matéria- além das fronteiras estabelecidas nos acordos internacionais. Mas este
-prima ambicionada pelas indústrias da Europa e, posteriormente, dos processo não foi planejado pelo Estado, pelo contrário, o Estado se
Estados Unidos. As pesquisas vinham demonstrando sua viabilidade e aproveitou deste deslocamento de sobrevivência para incorporar novas
importância no mercado consumidor mundial. E aqui - na região entre regiões."
o Madeira e o Javari - encontrava-seo habitat natural das árvoresque Como resultado dos esforços no sentido de harmonizar todos estes
jorravam leite. Por isso, mesmo não dispondo de quantidade de braços interesses, foi assinado, a 27 de março de 1867, o Tratado de Aya-
suficientes e adequados para a ocupação econômica da região, intentou cucho.
a Boi(via, pelo menos, obter o reconhecimento da área como definitiva- Tal tratado estabelecia que: "Deste rio (Beni, na sua confluência
mente sua. com o Madeira), para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada
Por que a Boi(via não ocupou logo esta região, a exemplo do que da sua margem esquerda, na latitude 10020', até encontrar as nascentes
fez o Brasil? do Javari." Entretanto, o artigo 11.0 do tratado ressalvava que "se o Ja-
Desde o in(cio de sua colonização pelos espanhóis, a Bolrviavol- vari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a
tou-se primordialmente para a extração de minérios que, pela sua abun- fronteira, desde a mesma latitude, por uma reta a buscar a origem prin-
dância e concentração numa pequena extensão territorial, desestimulou cipal do Javari."
o adentramento de seus exploradores em direção ao coração da Sul- Por este acordo diplomâtico o Brasil anexava nada mais nada me-
-América. Ouando o governo boliviano se deparou com a necessidade nos do que 160.000 km2. Além do mais, neste, como em outros trata-
de ocupar o Acre, não contou com uma população suficientemente dos assinados entre os pa(ses vizinhos, prevalecia o prindpio do uti pos-
96 97
sidetis. Como nos tratados de 1750 e 1777, a acordância definitiva fica-
ria aguardando o resultado das pesquisas das comissões demarcatórias a
serem constituídas pelas duas nações.
TRATADO DE AYACUCHO

5. A assinatura do tratado de Ayacucho e suas repercussões no Brasil

Diante da morosidade brasileira em nomear as Comissões demarca-


tórias, a Bolívia insistia para que fossem agilizadas as atividades. O go- 01
verno boliviano tinha consciência do perigo que representava a imigra-
ção nordestina para a região em litígio. O mesmo não acontecia com o
Brasil, pois a demora lhe favorecia na medida em que o processo migra-
tório criava condições para que, no futuro, pudesse reivindicar a posse
'-" da região.
'-'-
'-'- O governo brasileiro não "encontrava tempo" para refletir sobre
'-" esses problemas. Estava mais preocupado em reprimir os movimentos
republícanos e abolicionistas que agitavam todo o país do que em traçar
uma linha que, simplesmente, reconheceria a propriedade de uma vasta
extensão territorial ao seu vizinho boliviano.
Em 1870 houve a primeira tentativa para a demarcação da linha
leste-oeste. Chefiava a comissão brasileira o Visconde de Maracaju, que
paralisou os trabalhos onde começa o rio Javari. Substituiu-o o Barão de
Parima, que em 1878 encerrou sua missão sem chegar a nenhum resul-
tado.
Em 19 de fevereiro de 1895, decorridos dezessete anos após a rea-
lização dos últimos trabalhos - o Brasil em pleno regime republicano -
foi criada uma comissão mista, presidida pelos coronéis Thaumaturgo
de Azevedo e José Manuel Pando, ambos representantes dos governos
brasileiro e boliviano respectivamente.
Ao serem retomadas as pesquisas, logo surgiu um impasse: Thau-
maturgo de Azevedo recusou-se a aceitar o acordo de 1867, principal-
mente no que se referia às nascentes do rio Javari. Argumentava o cor~
LINHA DO TRATADO nel que, se o Brasil aceitasse o disposto naquele instrumento diplomáti-
co, perderia toda uma imensa área de terras, já conquistadas e explora-
das por brasileiros.
Este brado de alerta foi muito bem recebido, particularmente, pe-
los setores ligados ao comércio da borracha - as Casas Aviadoras - e,
Font.. ATLAS HISTÓRICO O.OeRA.,CO - M.c
naturalmente, pelos governos do Amazonas e Pará que, com veemência,
insistiam para que se respeitasse o princípio do uti possidetis.
Entretanto, não houve a mesma receptividade na Chancelaria
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brasileira. O coronel foi advertido e lembrado de que sua missão deveria te, conseqüênciado alarme dado pelo então coronelJosé ManuelPando
restringir-se ao reconhecimento e estabelecimento de um ponto de limi- que, em 1894, cumpria pena de ex(lio na regiãodo rio Benipor ter ten-
tes entre o Brasil e a Bolfvia. Não restou a Thaumaturgo sentio demitir- tado um golpe contra o govemo de seu pa(s. Esse militar, ao percorrer
se do cargo, sendo substitu(do por Cunha Gomes. Com ordens expressas seringaiscom o objetivo de elaborar coordenadasgeográficas,observara
do governo federal para que "efetuasse imediatamente a reexploração a presença maciçade brasileirosàs margensdo rio Acre.Sabedor do que
do rio Javari", o novo Comissário aceitou as latitudes 10020'. este fato representavaem relação ao cumprimento do estabelecido em
Em 23 de setembro de 1898 assinava-se um protocolo pelo qual o AyacuchOe ciente das repercussõesnegativasocorridas em vários pon-
Brasil reconhecia que o território, antes litigioso e agora demarcado pela tos do Brasil,Pando escreveuminuciosorelatório,enviando-oàs autori-
Linha Cunha Gomes, era "incontestavelmente boliviano". dades bolivianas.Tal ação, além de lhe valer a anistia por "serviço de
Um mês após a assinatura deste protocolo, o governo do Amazo- patriotismo", contribuiu para que a diplomaciaandina acelerasseos en-
nas recebia um telegrama da Chancelaria brasileira, que enfaticamente tendimentos com o Brasil.Surge dar o Tratado de 1895, a que já se fez
dizia: referência,também denominado Medina-Carvalho.
"... Podeis concordar no estabelecimento do posto aduaneiro do Os temores bolivianos eram compreensíveis,pois no decorrer de
Acre ou Aquiri, em território incontestavelmente boliviano, isto é, 1898 a área banhada pelos rios Acre, laco e Purus encontrava-setrans-
acima da linha tirada do Madeira ao Javari, na verdadeira latitude formada em munic(pio amazonense - o munic(piode Floriano Peixoto.
determinada pelo CapoTen. Cunha Gomes." Com o desmembramento dos Estados do Pará e Amazonas,que forma-
Apesar da indecisão do Congresso Nacional quanto à aprovação do vam o Grão-Parã, governo, imprensa e comércio centraram suas aten-
referido protocolo, não havia mais esperanças para seringalistas, aviado- ções sobre a região do Acre, contribuindo para reforçar, não somente a
res e governos regionais no sentido de obterem o atendimento de suas ocupação institucional, mas também favorecer,cada vez mais, a ação da
reivindicações. A solução viria pelas armas. Um "exército" de seringuei- iniciativa privada. Com o pequeno lugarejo - anteriormente chamado
ros comandados pelos "coronéis de barranco" em luta contra as tropas Antimari - transformado em munic(pio de sua jurisdição, o governo
regulares do exército boliviano forçaria a criação de condições para a amazonense dispunha de espaço razoávelpara influir nas questões perti-
demarcação definitiva. nentes ao Acre.

6. O ponto de vista boliviano:efetivar a ocupação

Desde há muito a Boi(via temia pela concretização da ocupação


brasileira na região dos altos rios da Amazônia. Já em 1886, proferindo
conferência na Sociedade de Geografia, assistida, inclusive, pelo impera-
dor D. Pedro 11, D. Juan Velarde, então ministro assistente do governo
boliviano no Rio de Janeiro, deixava clara sua preocupação, pois dizia:
"... O Aquiri ainda não foi encontrado, porém, em breve a( chega-
rão os infatigáveis pioneers que com nome de seringueiros vão em
procura do rico produto...".
Na verdade a suspeição do ministro tem demasiado sentido, mas é
historicamente atrasada, na medida em que nessa data os pioneers já
estavam no Aquiri. .
A assinatura do Acordo Diplomáticode 1895 fora, em grande par-
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LE.ITURA COMPLEMENTAR LEITURA COMPLEMENTAR

TRATADO DE AVACUCHO O MARCO DA POSSE

." O aft. 11.0do tratado- o mesmoque contém a descripçlioda Em 1867, a Bol(via insiste, com decidida energia.
fronteira, (...) - abre com o seguinte preâmbulo: Acha-se o Brasil em guerra com a República do Paraguai. E o mo-
"Sua Magestade o Imperador do Brasil e a República da BaIl'o. mento é, pois, excepcionalmente oportuno para o governo do tirano
via concordam em reconhecer como base para a determinação Melgarejo "sugerir" a conveniencia de ajustar, com a "poss(vel brevi-
da fronteira entre os seus respectivos territórios o uti posside- dade", a questlio dos seus limites, ainda sujeita a controvérsias.
tis e, de conformidade com este princ(pio, declaram e defi- Em semelhante conjuntura, o Império compreende a gravidade da
nem a mesma fronteira do modo seguinte:" contingência, que pode até custar a agregaçlio do exército boliviano às
O princ(pio a que o tratado obedeceu foi, pois, o do respeito à hostes guerreiras de Solano Lopez.
posse. Ora, a posse dessa região era e sempre foi portugueza; passou a Haja, pois, o encontro de diplomatas, tão desejado pela Boi(via.
ser e sempre foi brasileira;posse mansa e paclfica; posse real e effectiva, A discusslio é rápida, como impõem as circunstâncias. E o resulta-
traduzida no estabelecimento de frades jesuftas; na exploração de ban- do concretiza-se no Tratado de Ayacucho, firmado em La Paz, aos 27
deiras paulistas no século passado; nas viagens e explorações de brasilei- de março de 1867.
ros neste século; na sua fix ação alli; na creação da indústria da borracha, Bom ou mau?
da navegação e do comércio... Computando as vantagens imediatas, o Brasil sa(a realmente lesa-
do. Porque, a nlio ser que demarcações rigorosas viessem a contraditar o
(SerzedelloCorrêa. "Ligeiro estudo sobre a ocupaçãoParavicinino Rio
que já fora estabelecido sobre as nascentes do rio Javari,ficariamper-
Acre: limites, navegaçãoe comércio com a Boi(via", in O Rio Acre. Rio
de Janeiro, CasaMont' Alverne, 1899.) tencendo à Bolfvia todos os muitos milhares de léguasquadradasque
hoje integram o Territóriodo Acre. Sem falarda circunstância,intima-
mente ligada aos entendimentos preliminares desse Tratado, de que
poucos meses antes - cedendo à dominadora influencia liberal de Tava-
res Bastos, à pressão demonfaca da campanha movida na América pelo
geógrafo /V/aurye à polftica das grandes iniciativas mercantis de Mauá.

(Cláudio de Araújo Lima. Plácido de Castro: Um Caudilho Contra o


Imperialismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1973. pp. 15-16.)

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e os do próprio Javari, como Itecuaí, já navegado por vapores em mui-
tOSdias de viagem.
Nestas condições, penso que podeis apresentar ao ministro bolivia-
no o alvitre de ser descoberta a verdadeira origem do Javari, e, uma vez
LEITURA COMPLEMENTAR reconhecida, ali se colocar o último marco da fronteira com a Bolfvia.
, .., ., . .. .. .. . ... ., .. . . . . ... .. . .. . ... .. . ... .. . . . . .. ..
THAUMATURGO RECUSA O TRATADO DE AYACUCHO (CraveiroCosta. A Conquista do Deserto Ocidental: subst'dios para a
história do Território do Acre. São Paulo, Ed. Nacional, 1973.pp. 15-
Logo, nUo sendo conhecida até hoje a verdadeira origem principal 16.)
do Javari, sabendo-se, entretanto, positivamente, que ela se estende aci-
ma do último marco à margem esquerda desserio, aos 6059' 29", 51at.
S e 740 6' 26", 6710ng. O. G., tomando-se como nascente verdadeira a
lat. S. JO l' 17" 5 e long. O. G. 740 8' 27" 7, determinadas pela segun-
da comissão demarcadora com o Peru, a mim parece que o governo nUo
tem o dever de aceitar como nascente principal do Javari o referido
ponto. Antes, para cumprir a letra do tratado, e não sancionar oficial-
mente um erro geográfico no seu próprio território, deve mandar desco-
brir a nascente principal desse rio para af ser colocado o último marco
da fronteira com a Bolfvia."
... .. ... ... .. . ... .. . . .. " .. . . ... ... .. . . .. .. ....
"Aceitar o marco do Peru como o último da Bolfvia, devo infor-
mar-vos que o Amazonas irá perder a melhor zona de seu território, a
mais rica e a mais produtiva; porque, dirigindo-se a linha geodésica de
1(JJ 20' a 7' e 17",5 ela será muito inclinada para o norte, fazendo-nos
perder o alto rio Acre, quase todo o laco e o alto Purus, os principais
afluentes do JurutJ e talvez os do Juta( e do próprio Javan~'os rios que
nos dão a maior porção de borracha exportada e extraÚ:Japor brasilei-
ros. A área dessazona é maior de 5.870 léguas quadradas. Toda essazo-
na perderemos, alitJs, explorada e povoada por nacionais e onde já exis-
tem centenas de barracas, propriedades leg(timas e demarcadas e serin-
gais cujos donos se acham de posse há alguns anos, sem reclamaçUo da
Bolt'via, muitos com tl'tulo provisório, só esperando a demarcaçUopara
receberem os definitivos. Portanto, a serem executadas as instruçOes
que me destes, terá o A mazonas que perder 46% da produçUo da borra-
cha ou, anualmente, 2.610:960$600, no caso da linha de limites nUo
abranger os afluentes do rio Juruá; ou, se abranger, a perda será de 68%
e a renda desfalcada de 3.859:680$000 e maior ainda será o preju(zo e
desfalque na renda, se a mesma linha nUo salvar os afluentes do rio Juta(
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