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HIstória da Filosofia

Volume seis
NicolA Abbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:
Ângelo Miguel Abrantes.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME VI

TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Faldo, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

VII

AS ORIGENS DA CIÊNCIA
§ 388 LEONARDO

O resultado último do naturalismo do Renascimento é a ciência.


Nela confluem: as pesquisas naturalísticas dos últimos Escolásticos
que tinham dirigido a sua atenção para a natureza, desviando-a do
mundo sobrenatural considerado desde então inacessível à pesquisa
humana; o aristotelismo renascentista, que elaborara o conceito da
ordem necessária na natureza; o platonismo antigo e novo, que
insistira na estrutura matemática da natureza; a magia, que havia
patenteado e difundido as técnicas operativas destinadas a
subordinar a natureza ao homem; e, finalmente, a doutrina de
Telésio, que afirmara a autonomia da natureza, a exigência de
explicar a natureza por meio da natureza. Por um lado, todos estes
elementos são integrados pela ciência mediante a redução da
natureza à pura objectividade mensurável: a um complexo de
formas ou coisas constituídas essencialmente por determinações
quantitativas e sujeitas por isso a leis matemáticas. Por outro lado,
os próprios elementos são purificados pelas conexões metafísico-
teológicas, que os caracterizavam nas doutrinas a que
originariamente pertenciam. Assim a ciência elimina os pressupostos
teológicos a que permaneciam vinculadas as investigações dos
últimos Escolásticos; elimina os pressupostos metafísicos do
aristotelismo em que assentavam a magia e a filosofia de Telésio.
Nesta direcção, pode dizer-se que a ciência da natureza foi
orientada pelas intuições antecipadoras de Leonardo de Vinci.

Leonardo de Vinci (1452-1519) considerou a arte e a ciência como


tendentes a um único escopo: o

conhecimento da natureza. A função da pintura é a de representar


para os sentidos as obras naturais; e por isso ela estende-se às
suas superfícies, às cores, às figuras daqueles objectos naturais de
que a ciência procura conhecer as forças intrínsecas (Tratt. della
pitt. ed. Ludwig, n. 3-7). Arte o ciência assentam ambas em dois
pilares de todo o

conhecimento verdadeiro da natureza: a experiência sensível e o


cálculo matemático. De facto, as artes,

e em primeiro lugar a pintura, que Leonardo coloca acima de todas


as artes, procuram nas coisas a proporção que as faz belas e
pressupõem um estudo directo que procura descobrir nas coisas,
mediante a experiência sensível, aquela mesma harmonia que a
ciência exprime nas suas leis matemáticas. O vínculo entre arte e
ciência não é, portanto, acidental na personalidade de Leonardo: é
fruto da faina única que Leonardo se propõe: buscar na natureza

a ordem mensurável que é ao mesmo tempo proporção evidente, o


número que é também beleza.

Leonardo exclui da pesquisa científica toda a

autoridade e toda a especulação que não tenha o

seu fundamento na experiência. "A sabedoria é filha da


experiência" (ed. Richter, n. 1150). A experiência jamais engana; e
os que se lamentam dos seus logros deveriam antes lamentar-se da
sua

ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos


seus limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a
experiência; e para evitar o erro não há outra via senão reduzir
todos os juízos a cálculos matemáticos o servir-se exclusivamente
da matemática para entender e demonstrar as razões das coisas
que a experiência manifesta (Cod. atl., fol. 154 r). A matemática é o
fundamento de toda a certeza. "Quem censura a suma certeza da
matemática padece de confusão, e nunca porá termo às
contradições das ciências sofísticas com as quais se aprende um
eterno

estridor" (ed. Richter, n. 1157). Por isso Leonardo faz seu o


autêntico espírito de Platão e a legenda que se encontrava à
entrada da Academia: "Não entre nesta casa quem não for
matemático." Ub., n. 3). A experiência e o cálculo matemático
revelam a natureza na sua objectividade, isto é, na simplicidade e na
necessidade das suas operações. A natureza identifica-se com a
própria necessidade da sua ordenação matemática. "A necessidade
é tema e inventora da natureza, é freio e

regra eterna" (Ib., n. 1135). Nestas palavras é reconhecida


claramente a essência última da objectividade da natureza: a
necessidade que lhe determina a ordem mensurável e se exprime na
relação causal entre os fenómenos. É precisamente esta
necessidade que exclui toda a força metafísica ou mágica, toda a
interpretação que prescinda da experiência e que queira submeter a
natureza a princípios que lhe são estranhos. Tal necessidade, enfim,
identifica-se com a necessidade própria do raciocínio matemático,
que exprime as relações de medida que constituem as leis. Entender
a "razão" na natureza significa entender a "proporção" que não se
encontra apenas nos números e nas medidas, mas também nos sons,
nos
pesos, nos tempos, nos espaços e em qualquer potência natural (ed.
Ravaisson, fol. 49 r ). Foi precisamente a identificação da
natureza com a necessidade matemática que conduziu Leonardo a
fundar a mecânica e a pôr em luz pela primeira vez os seus
princípios. "ó admirável e estupenda necessidade, tu compeles, com
a tua lei, todos os efeitos, por brevíssima via, a participarem das
suas causas e, com suma e irrevogável lei, todas as acções naturais
te obedecem" (Cod. ad., fol. 345 v). Ele pôde assim chegar a
formular a lei de inércia, o principio da reciprocidade da acção e da
reacção, o teorema do paralelogramo das forças, o da velocidade e
outros conceitos fundamentais da mecânica que deviam encontrar
em Galileu a sua forma definitiva- A mole imensa dos seus
manuscritos contém

10

uma soma de intuições felizes, de descobertas, de sinais


precursores nos campos mais dispares da ciência, da anatomia à
paleontologia, e testemunha a perseverança com que Leonardo
prosseguiu no

estudo da natureza, não já com o fim de a enquadrar em fórmulas


metafísicas ou teológicas ou de a vergar às operações miraculosas
da magia, mas

unicamente com o intuito de a reduzir à objectividade empírica e à


necessidade matemática.

§ 389. COPÉRNICO. KEPLER

Nikolaus Copernicus (Kopernicki) partiu do princípio pitagórico-


platónico da estrutura matemática do universo para chegar a uma
precisa formulação matemática da nova cosmologia. Nascido em
Thorn a 19 de Fevereiro de 1473, estudou na Universidade de
Cracóvia e depois em Bolonha, Pádua e Ferrara, onde se doutorou
em direito canónico (1503). Após uma segunda estada em Pádua
(1503-06), voltou à pátria, onde viveu entre os cuidados
administrativos de um canonicato e os estudos astronómicos.
Morreu em Frauenburgo a 24 de Maio de 1543. A sua obra
fundamental De revolutionibus orbium celestium libri VI, foi
publicada poucos meses depois da sua morte. Dedicada ao pontífice
Paulo IU, apareceu com um prefácio de Osiander, que limitava o
alcance da doutrina de Copérnico apresentando-a
como uma simples "hipótese astronómica", que não representava
uma renovação relativamente à concepção do mundo estabelecida
pelos Antigos. E, na
realidade, só mais tarde foi entendido o alcance

revolucionário da doutrina de Copérnico que assinala a destruição


definitiva da cosmologia aristotélica. Copérnico, de facto, mostrou
como todas as
dificuldades que esta cosmologia encontrava na explicação do
movimento aparente dos astros se resolveram facilmente admitindo
que a terra gira em torno de si mesma, em vez de a considerar o
centro imóvel dos movimentos celestes, ele reconheceu três
movimentos da terra: o diurno em torno do próprio eixo, o anual em
torno do sol e o anual do eixo terrestre relativamente ao plano da
elíptica (De rev. 1, 5). Copérnico mostrou que esta hipótese
representava uma enorme simplificação no que concernia à
explicação dos movimentos celestes e por isso era conforme ao
procedimento da natureza que tende a atingir os seus efeitos pelos
meios mais simples (Ib., 1, 10). Mostrou também como, por sua vez,
os cálculos matemáticos se simplificaram, prestando-se facilmente
a explicar a

observação astronómica.

A doutrina de Copérnico foi atacada por motivos religiosos, quer


por católicos, quer por luteranos. Um astrónomo dinamarquês,
Tycho Brahe (1546-1601), benemérito coleccionador de
observações astronómicas, sustentava que só a terra, a Dia e o sol
giravam em torno do eixo terrestre, enquanto que os outros
planetas giravam em tomo do sol. Mas das próprias observações de
Tycho Brahe, o seu amigo e discípulo Kepler tirou a mais importante
confirmação da doutrina copernicana, mediante a descoberta das
leis reguladoras do movimento dos planetas.

12

Johannes Kepler nasceu a 27 de Dezembro de


1571 em Weil, perto de Estugarda, foi professor de matemática e
assistente de Tycho Brahe e morreu em Regensburgo a 15 de
Novembro de 1630. Teve de lutar asperamente com protestantes e
católicos pelas suas ideias e só a custo logrou obter os meios para
publicar as suas obras, uma vez, teve mesmo de empregar-se para
salvar da fogueira sua

mãe, acusada de bruxaria. Na sua primeira obra, Prodronws


dissertationum cosmographicarum, continem mysterium
cosmographicum de adnúrabili proportione celestium Orbium
(1596), exaltou firmemente a beleza, a perfeição e a divindade do
universo e via nele a imagem da trindade divina. No centro do mundo
estaria o sol, imagem de Deus Padre, do qual derivariam todas as
luzes, todo o calor e toda a vida. O número dos planetas e a sua
disposição em torno do sol obedeceria a uma
precisa lei, de harmonia geométrica. Os cinco planetas constituiriam
de facto um poliedro regular e mover-se-iam em esferas inscritas
ou circunscritas ao poliedro delineado pela sua posição recíproca.
Nesta obra, ele atribuía o movimento dos planetas a uma alma
motora ou à alma motriz do sol; mas este mesmo esforço para
encontrar nas observações astronómicas a confirmação dos
filosofemas pitagóricos, ou neoplatónicos conduziu-o a abandoná-
los. Nos seus escritos astronómicos e ópticos, substituiu as
inteligências por forças puramente físicas; considera o mundo
necessariamente participe da quantidade e a matéria
necessariamente ligada a uma ordem geométrica. Permaneceu por
13

isso sempre fiel ao princípio de que a objectividade do mundo está


na proporção matemática implícita em todas as coisas. Era o mesmo
principio que animara Leonardo; e a ele se deve a descoberta
principal de Kepler: as leis dos movimentos dos planetas. As
primeiras duas leis (as órbitas descritas pelos planetas em torno do
sol são elipses de que um dos focos é ocupado pelo sol; as áreas
descritas pelo raio vector (o segmento de recta que liga o
planeta ao sol) foram publicados na Astronomia nova de 1609; a
terceira lei (os quadrados dos tempos empregados por diversos
planetas a percorrer as suas órbitas estão entre si como os cubos
dos eixos maiores das elipses descritas pelos planetas) aparece pela
primeira vez no escrito Harmoníces mundi de 1619. Foram as
observações de Tveho Brahe que permitiram a Kepler descobrir as
suas leis e corrigir assim a doutrina de Copérnico, que admitia o
movimento circular dos planetas em torno do sol. Mas a descoberta
de Kepler confirmava definitivamente a validade do procedimento
que reconhece a verdadeira objectividade natural da proporção
natural.

§ 390. GALILEU: VIDA E OBRAS

Galileu Galilei nasceu em Pisa a 15 de Fevereiro de 1564. Votando-


se a estudos de medicina, enquanto aprofundava o conhecimento
dos textos antigos em conformidade com os quais esses estudos
eram conduzidos, também

se dedicava à observação dos fenômenos naturais. Em 1583, a


oscilação de uma lâmpada na catedral permitia-lhe determinar a lei
do isocronismo das oscilações do pêndulo, Nos anos seguintes
chegou a formular alguns teoremas de geometria e de mecânica que
mais tarde deu à estampa. O estudo de Arquimedes levou-o a
descobrir a balança para determinar o peso específico dos corpos
(1586). A sua culturamatemática proporcionou-lhe a estima e
simpatia de muitos matemáticos da época e foi-lhe confiada em
1589 a cadeira de matemática na Universidade de Pisa. Permaneceu
nesta cidade três anos, durante os quais fez várias descobertas,
nomeadamente, a seguir a repetidas experiências feitas por
Campanile de Pisa, a da lei da queda dos graves. Em 1592, passou a
ensinar matemática na universidade de Pádua e aí viveu dezoito
anos, que foram os mais fecundos e felizes da sua vida. Das
numerosas invenções de vários géneros, feitas neste lapso de
tempo, a mais importante é a do telescópio (1609); esta invenção
abre a sério das descobertas astronómicas. A 17 de Janeiro de
1610, Galileu descobriu o três satélites de Jove, a que chamou
planetas medicisianos em honra dos princípios toscanos, tendo-os
anunciado no Sidereus nuncius publicado em Veneza a 12 de Março
do mesmo ano. Kepler dirigiu-lhe os seus aplausos a propósito desta
descoberta e o Grão-Duque deu-lhe o lugar, que ele desejava, de
matemático do gabinete de Pisa. Com o seu telescópio Galileu pôde
dar-se conta de que a Via Láctea é um conjunto de estrelas; pôde
descobrir os anéis de Saturno, obser15

var as fases de Vénus em torno do Sol e reconhecer as manchas


solares, as quais (como ele disse) foram o funeral da ciência
aristotélica, porque desmentiam a pretensa incorruptibilidade dos
céus. Mas, entretanto, as descobertas astronómicas levavam-no a
considerar a estrutura do mundo celeste. Numa carta ao seu aluno
Castoffi, datada de 21 de Dezembro de 1613, defendia a doutrina
copernicana. Mas esta doutrina começava precisamente então a
atrair a atenção da Inquisição de Roma, a qual move um processo
contra Galileu. Em vão o cientista se dirige a Roma procurando
evitar a
condenação da doutrina copernicana. A afirmação da estabilidade
do sol e do movimento da terra é condenada; e Galileu é admoestado
pelo cardeal Belarmino a abster-se de professá-la (26 de, Fevereiro
de 1916). Poucos dias depois, a 5 de Março, a obra de Copérnico De
revolutioniãs orbium coefestium é posta no índice. Galileu continuou
no entanto as suas especulações astronómicas. Contra o padre
jesuíta Lotario Sarsi (Horacio Grassi), autor do to Libra
astronómica ac philosophica dirigido contra o seu Discorso delle
comete (1619), Galileu publicou em Roma (1623) il Saggiatore. E
entretanto continuava a trabalhar nos Diálogos sobre os dois
máximos sistemas do mundo, o ptolemaico e o copernicano,
encorajado também pela subida ao pontificado do cardeal Barberini
(Urbano VIII), que lhe havia sempre demonstrado a sua
benevolência. O Diálogo foi dado à estampa em Fevereiro de 1632.
Mas já em Setembro Gafileu fora citado pelo papa a comparecer
perante o
16

Santo Oficio de Roma. O processo dura até 22 de Junho de 1633 e


conclui-se com a abjuração de Galileu. Tinha então 70 anos. Passou
os últimos anos da sua vida na solidão da casa de campo de Arcetrí,
perto de Florença, alquebrado pelas doenças e diminuído pela
cegueira, mas sem interromper o seu trabalho, escrevendo os
Diálogos das novas ciências e mantendo numerosa correspondência
com amigos e discípulos. Morreu a 8 de Janeiro de 1642.
As obras filosóficas mais notáveis são as já nomeadas: O
Ensaiador, os diálogos. sobre os dois máximos sistemas e os
Diálogos das novas ciências. Mas em todos os seus escritos estão
disseminadas considerações filosóficas e metodológicas.

§ 391. GALILEU: O MÉTODO DA CIÊNCIA

Galileu pretende desimpedir a via da investigação científica dos


obstáculos da tradição cultural e teológica. Por um lado, polemiza,
contra o "o

mundo de papel" dos aristotélicos; por outro, quer subtrair a


investigação do mundo natural aos Emites e aos estorvos da
autoridade eclesiástica. Contra os aristotélicos, afirmava a
necessidade do estudo directo da natureza. Nada é mais
vergonhoso nas disputas científicas, diz ele (Op., VII, p. 139), do
que recorrer a textos que amiúde foram escritos com outro
propósito e pretender utilizá-los para responder a observações e
experiências directas. Quem escolhe tal método de estudo deveria
pôr de parte o nome de filósofo, uma vez que "não

17

convêm que aqueles que deixaram de filosofar usurpem o honroso


título de filósofo". É próprio de espíritos vulgares, tímidos e servis
dirigir antes os olhos para um mundo de papel do que para o
verdadeiro e real, que, fabricado por Deus, está sempre diante de
nós para nosso ensinamento. Também não se podem, por outro lado,
sacrificar os ensinamentos directos que a natureza nos fornece às
afirmações dos textos sagrados. A Escritura Sagrada e a natureza
procedem ambas do Verbo divino, aquela como ditado do Espírito
Santo, esta como executora das ordens de Deus; mas a palavra de
Deus teve de adaptar-se ao limitado entendimento dos homens aos
quais se dirigia, ao passo que a natureza é inexorável e imutável c

nunca transcende os limites das leis que impõe aos

homens, porque não se importa que as suas recônditas razões sejam


ou não compreendidas por eles./ Por isso o que da natureza nos
revela a sensata experiência ou o que as demonstrações necessárias
nos levam a concluir, não podo ser posto em dúvida, ainda que divirja
de algum passo da Escritura (Lett. alla duchessa Cristina, in Op., V,
p. 316).

Só o livro da natureza é o objecto próprIo da ciência; e este livro é


interpretado e lido apenas pela experiência. A experiência é a
revelação directa da natureza na sua verdade, ela nunca engana:
mesmo quando os olhos nos fazem ver o pau imerso na água
quebrado, o erro não está na vista, que recebe verdadeiramente a
imagem quebrada e

reflexa, mas no raciocínio que ignora que a imagem se refracta ao


passar de um para outro meio trans18

parente (Op., 111, 397; XVIII, 248). A tarefa do raciocínio, porém,


e especialmente do raciocínio

matemático, é igualmente importante porque é a

da interpretação e transcrição conceitual do fenómeno sensível. Por


vezes, esta tarefa assume para Galileu uma importância
predominante: de modo que a confirmação experimental parece
degradar-se a simples verificação, ocasional e não indispensável, de
uma teoria elaborada independentemente dela. Diz, por exemplo,
Galileu a propósito das leis do movimento: "mas voltando ao meu
tratado do movimento, argumento ex suppositione sobre o

movimento, daquele modo definitivo; de maneira que, quando mesmo


as consequências não correspondessem aos acidentes do movimento
natural, pouco me importaria, uma vez que em nada derroga às
demonstrações o facto de não se encontrar na natureza nenhum
móbil que se mova por linhas espirais" (Ib., XVIII, 12-13).
Considerações como esta que se repelem aqui e ali nas obras de
Galileu, foram algumas vezes utilizadas para aproximar a
investigação galileica da aristotélica: tal como Aristóteles, Galileu
estaria mais interessado em encontrar as "essências" dos
fenómenos do que em descobrir as suas leis e as experiências
servir-lhe-L,m tão-só de pretexto ou de confirmação aproxiMativa
da teoria. E por certo que a experiência, ou melhor, os resultados
dela seriam, segundo Galileu, cegos, isto é, sem significado, se

não fossem iluminados pelo raciocínio, isto é, sem

uma teoria que lhes explicasse as causas. Galileu explicitamente


afirma que entender matemática19

mente a causa de um evento "supera. por infinito intervalo o simples


conhecimento obtido através de outras atestações e mesmo de
muitas reiteradas experiências" (Discorsi intorno a due nuove
scienze, -IV, § 5). Evidentemente, para Galileu só o raciocínio pode
estabelecer as relações matemáticas entre os factos da
experiência e construir uma teoria científica dos próprios factos.
Mas é do mesmo passo evidente que só a experiência pode
fornecer, segundo Galileu, o incentivo para a formulação de uma
hipótese e que as deduções que derivam matematicamente destas
hipóteses devem, por seu turno, ser confrontadas com a
experiência e confirmadas com experimentos repetidos antes de
poderem ser declaradas válidas`.<Além. disso, o raciocínio que tem
essa função é sempre o raciocínio matemático, dado que, quanto à
lógica tradicional, Galileu compartilha a opinião negativa dos
escritores do Renascimento: ela não serve para descobrir coisa
alguma mas só para saber se os discursos e as demonstrações já
feitos e experimentados procedem de maneira concludente (Ib.,
VIII, 175).

Por outro lado, a experiência não é só o fundamento, mas também


o limite do conhecimento humano...A este é impossível
alcançar a essência das coisas: deve limitar-se a determinar as suas
qualidades e as suas afecções- O lugar, o movimento, a figura, a
grandeza, a opacidade, a produção e a dissolução, são factos,
qualidades ou

fenómenos que podem ser apreendidos e utilizados para a


explicação dos problemas naturais. A experiência é purificada pelos
elementos subjectivos e

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variáveis e reduzida aos permanentes e verdadeiramente


objectivos. Galileu distingue as qualidades sensíveis que são
próprias dos corpos e aquelas que o não são porque pertencem
apenas aos órgãos dos sentidos. Não se pode conceber uma
substância corpórea senão limitada, provida de figura o de grandeza
determinada, situada num corto lugar e

num corto tempo, imóvel ou em movimento, em contacto ou não, una


ou múltiplice, mas, em contrapartida, pode-se concebê-la privada de
cor, de sabor, de som e de cheiro. Assim, quantidade, figura,
grandeza, lugar, tempo, movimento, repouso, contacto, distância,
número são qualidades próprias e inseparáveis dos corpos materiais;
enquanto que sabores, odores, cores, sons, subsistem apenas nos

órgãos sensíveis mas não são caracteres objectivos dos corpos, se


bem que sejam produzidos por estes. A objectividade reduz-se,
portanto, exclusivamente às qualidades sensíveis que são
determinações quantitativas dos corpos; enquanto que as qualidades
não redutíveis a determinações quantitativas são declaradas por
Galileu puramente subjectivas.

Isto revela o íntimo móbil da investigação de Galileu, o qual conduz


a uma extrema clareza a tese, já apresentada por Cusano e
Leonardo_ da -estrutura -matemática da realidade objectiva.
Galileu considera que o livro da natureza é escrito em língua
matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras
figuras geométricas. Por isso não se pode entender tal livro se
antes não se tiver aprendido a língua e os caracteres em que está

21

escrito (Ib., VI, p. 232). Sobro a estrutura matemática do universo,


repousa a Sua ordem necessária, que é única e nunca foi nem será
diversa (Ib., VII, p. 700). Para entender esta ordem é necessário

que a ciência se constitua como um sistema de rigorosos


procedimentos de medida. As determinações genéricas "grande" ou
"pequeno", "próximo" ou <longínquo", não captam- coisa alguma da
realidade natural: as mesmas coisas podem parecer grandes ou
pequenas, próximas ou longínquas. A reflexão científica começa
apenas quando se introduz uma unidade de medida e se determinam
relativamente a ela todas as relações quantitativas (Ib., VI, p. 263).

Galileu fundou, deste modo em toda a sua clareza o método da


ciência- assegurou a medida como o instrumento fundamental
da ciência e fez valer o ideal quantitativo como critério para
discernir na experiência os elementos verdadeiramente objectivos.
o reconhecimento da subjectividade de certas qualidades sensíveis
não significa para ele a subjectivação parcial da experiência mas a
sua objectivação perfeita e a sua redução aos caracteres que
correspondem à estrutura matemática da natureza., Galileu
subtraiu explicitamente a investigação natural a todas as
preocupações finalísticas ou antropoló gicas. As obras da natureza
não podem ser julgadas com uma medida puramente humana, em
referência àquilo que o homem possa entender ou ao que se lhe
torne útil. É arrogância, e loucura mesmo, da parte do homem,
declarar inúteis as
22
obras da natureza de que não entenda a utilidade para os seus fins.
Nós não sabemos para que serve Jove ou Saturno, nem tão pouco
sabemos para que servem muitos dos nossos órgãos, artérias ou
cartilagens, os quais nem suspeitaríamos possuir se não nos
tivessem sido mostrados pelos anatomistas. Em qualquer caso, para
julgar da utilidade ou dos efeitos deles, seria mister fazer a
experiência de tirá-los e constatar então as perturbações
rosultantes da sua falta. Mas qualquer antecipação em relação à
natureza é impossível, uma vez que os nossos pareceres ou opiniões
não lhe dizem respeito, nem
têm valor para ela as nossas razões prováveis. A subtileza da
inteligência e a força da persuasão estão deslocadas nas ciências
naturais; nelas Demóstenes e Aristóteles devem ceder a uma
inteligência medíocre, que tenha sabido aceitar algum aspecto real
da natureza (Op., VII, p. 80). Por isso qualquer discurso que nós
façamos acerca das coisas naturais ou é veríssimo ou falsíssimo; se
é falso, cumpre desprezá-lo, se verdadeiro é necessário aceitá-lo
porque não há modo de lhe fugir (Ib., IV, p. 24).
O que confirma que, não há filosofia que possa mostrar-nos a
verdade da natureza melhor do que a natureza (Ib., IV, p. 166), a
qual não antecipa a natureza, senão que a segue e a manifesta na
sua objectividade. Com a eliminação de toda e qualquer
consideração finalistica ou antropomórfica do mundo natural,
Galileu realizou completamente a redução da natureza à
objectividade mensurável e conduziu a ciência moderna à sua
maturidade.

23
§ 392. BACON: VIDA E ESCRITOS

Se Galileu elucidou o método de investigação científica, Bacon


entreviu pela primeira vez o poder que a ciência oferece ao homem
em relação ao mundo. Bacon concebeu a ciência como
essencialmente destinada a realizar o domínio do homem sobre a
natureza. O regnum hominis: viu a fecundidade das suas aplicações
práticas, de modo que podemos considerá-lo o filósofo e o profeta
da técnica.

Francis Bacon nasceu em Londres a 22 de Janeiro de 1561, sendo


filho de Sir Nicholas Bacon, ministro da justiça da rainha Elisabeth.
Estudou em Cambridge e em seguida passou alguns anos em

Paris, no séquito do embaixador de Inglaterra, onde teve ensejo de


completar e enriquecer a sua cultura. De regresso à pátria, quis
iniciar a carreira política. Enquanto viveu a rainha Elisabeth, não
pôde obter nenhum cargo 'importante, não obstante o apoio do
conde de Essex. Mas com a subida ao trono de Jaime I, Stuart
(1603), pôde gozar do apoio do favorito do rei, Lord Buckingham,
para obter cargos e honras. Foi nomeado advogado geral (1607),
depois procurador geral (1613), e, finalmente, ministro das justiças
(1617) e Lord Chanceler (1618). Como tal, presidia às principais
cortes de justiça e tornava executórios os decretos do rei. Foi,
além disso, nomeado barão de Verulam e visconde de Slo Albano.
Mas quando Jaime 1 teve de convocar em 1621 o Parlamento,
inculpou Bacon de

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corrupção, acusando-o de ter recebido ofertas de dinheiro no


exercício das suas funções. Bacon reconheceu-se culpado. Foi
condenado então a pagar quarenta mil esterlinos de multa, a
permanecer prisioneiro na Torre de Londres até que o rei o
quisesse, e foi exonerado de todos os cargos do estado (3 de Maio
de 1621). O rei perdoou a Bacon a multa e a prisão, mas a vida
política do filósofo estava acabada. Bacon retirou-se para Gorhw,
nbury e aí passou os últimos anos da sua vida, entregando-,se ao
estudo. Faleceu a 9 de Abril de
1626.

A carreira política de Bacon foi a de um cortesão hábil e sem


escrúpulos. Não hesitou em sustentar a acusação como advogado do
rei contra o conde Essex que o havia ajudado nos primeiro passos
difíceis da sua carreira, e que caíra em

seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz


pouco simpática sobre a sua

actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as


acusações de corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem
ambicioso e amante do dinheiro e

do fausto teve uma ideia altíssima do valor da ciência ao serviço


do homem. Todas as suas obras tendem a ilustrar o projecto de
uma pesquisa científica que, aplicando o método experimental em

todos os campos da realidade, faça da realidade mesma o domínio


do homem. Bacon quis tornar a

ciência activa e operante colocando-a ao serviço do homem e


considerando como seu escopo a constituição de uma técnica que
devia dar ao homem o domínio de todo o mundo natural. Quando, na

25
Nuova Atlântida, pretende dar a imagem de uma

cidade ideal, recorrendo ao pretexto, já empregado por Tomás


Moro na Utopia, da descrição de uma

ilha desconhecida, não se deteve a sonhar com formas de vida


sociais ou políticas perfeitas, mas imaginou um paraíso da técnica
onde fossem postos em prática as invenções e os achados do mundo
inteiro. E, de facto, neste escrito (que não chegou a ser concluído)
a ilha da Nova Atlântida é descrita como um enorme laboratório
experimental, na qual os habitantes procuram conhecer todas as
forças ocultas da natureza "Para estender os confins do império
humano a todas as coisas possíveis". Os numes tutelares da ilha são
os grandes inventores de todos os países; e as relíquias sagradas
são os exemplares de todas as grandes e mais raras invenções.

Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da


natureza. A sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira
vez em 1597 e depois traduzidos em latim com o título Sermones
fídeles sive interiora rerum, são subtis e eruditas análises da vida
moral e política nas quais a sapiência dos Antigos é amplamente
utilizada. Mas a sua ,principal actividade foi a que dedicou ao
projecto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar
completamente a investigação científica colocando-a numa base
experimental. O plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no
escrito De augmentis scientiarbim, publicado, em 1623, o qual
compreende: as ciências que se fundam na memória, isto é, a
história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que se fundam na
fantasia, isto é, a poesia, que se

26

divide em narrativa, dramática e parabólica (a que serve para


ilustrar uma verdade); e as ciências que se fundam na razão, entro
as quais, por um lado, a filosofia prima ou ciência universal, por
outro as

ciências particulares que concernem a Deus ou à natureza ou ao


homem. "A filosofia prima" é considerada por Bacon como "a ciência
universal e mãe das outras ciências", consistindo a sua tarefa em
recolher "os axiomas que não são próprios das ciências particulares
mas comuns a outras ciências" (De augm. séient., 111, 1). Este
conceito devia permanecer típico da interpretação da tarefa da
filosofia segundo os métodos positivistas, isto é, segundo todo o
método que faça coincidir com a ciência a totalidade do saber.

A Instauratio magna deveria dar as directivas de todas estas


ciências e devia, consequentemente. compreender seis partes: 1.a
Divisão das ciências;
2.a-Novo órgão ou indícios para a interpretação da natureza; 3 a
Fenómenos do universo ou história natural experimental para
construir a filosofia; 4 a Escala do intelecto; 5 a - Pródromos ou
antecipações da filosofia segunda; 6 a - Filosofia segunda ou
ciência activa. Deste vasto projecto Bacon &penas realizou
adequadamente a segunda parte que é precisamente o Novum
organum, publicado em 1620. As outras obras podem-se considerar
como esquissos ou esboços das outras partes: O progresso do saber
(em inglês, 1605), De sapientia veterum (1609); História naturalis
(1622)-, De dignitate et augmentis scientiarum (1623); este último
escrito representa a primeira parte da Instauratio nwgna.

27

Escritos menores, incompletos ou esboçados foram publicados após


a sua morte: De interpretatione natura e proemium (1603), Valerius
Terminus (1603); Cogitationes de rerum natura (1605); Cogitata e
visa (1607), Descriptio globi intelectualis (1612); Thema coeli
(1612). Nos últimos anos compôs e publicou também uma História de
Henrique VII.

§ 393. BACON: O CONCEITO DA CIÊNCIA E DA TEORIA DOS


ÍDOLOS

Do projecto grandioso de uma Instauratio magna que devia culminar


na Sciencia activa, isto é, numa técnica que aplicasse as
descobertas teóricas, muito pouco realizou Bacon. O que ele fez
reduz-se substancialmente ao Novum Organum, isto é, a uma

lógica do procedimento técnico-científico que é polemicamente


contraposta à lógica aristotélica, que ele achava servir apenas para
alcançar vitórias nas disputas verbais. Com a velha lógica vence-se o
adversário, com a nova conquista-se a natureza. Esta conquista da
natureza é a tarefa fundamental da ciência. "0 fim desta nossa
ciência, diz Bacon (Nov. org., Distributio operis), é o de encontrar
não argumentos mas artes, não princípios aproximativos, mas

princípios verdadeiros, não razões prováveis mas projectos e


indicações de obras". A ciência é posta assim inteiramente ao
serviço do homem; e o homem, ministro e intérprete da natureza,
opera e compreende de acordo com o que observou na ordem

28

da natureza, quer mediante a experiência, quer mediante a


reflexão: para além disto, não sabe nem

pode coisa alguma. A ciência e o poder humano coincidem: a


ignorância da causa toma impossível conseguir o efeito. Não se
vence a natureza senão obedecendo-1he, e o que na observação está
como causa, na obra vale como regra (Ib., 1, 3). A inteligência
humana tem necessidade de instrumentos eficazes para penetrar na
natureza e dominá-la: à semelhança das mãos, não pode efectuar
nenhum trabalho sem um instrumento adequado. Os instrumentos da
mente são os seus experimentos: experimentos pensados e
adaptados tecnicamente ao fim que se pretende alcançar. Os
sentidos por si só não bastam para nos fornecer uni guia seguro: só
os

experimentos são os guardiões e os intérpretes das respostas


daqueles. O experimento representa, segundo a imagem de Bacon, w
conúbio da mente e do universo", conúbio do qual se espera "uma
prole numerosa de invenções e de instrumentos aptos a dominarem
e a mitigarem, pelo menos em parte, as necessidades e as misérias
dos homens" (lb., Distr. op.).

Mas a união entre a mente e o universo não se pode celebrar


enquanto a mente permaneça presa a hábitos e preconceitos que a
impedem de interpretar a natureza. Bacon opõe a interpretação da
natureza à antecipação da natureza. A antecipação da natureza
prescinde do experimento e passa imediatamente das coisas
particulares sensíveis aos axiomas generalíssimos, e, à base destes
princípios e da sua imóvel verdade, tudo julga e encontra os
chamados

29

axionas médios, isto é, as verdades intermédias entro os princípios


últimos e as coisas. Esta é a via da antecipação, de que se serve a
lógica tradicional, via que toca apenas de raspão a experiência
porque se satisfaz com as verdades gerais. A interpretação da
natureza, ao invés, adentra-se com método e ordem na experiência
e ascende, sem saltos e por graus de sentido, das coisas
particulares aos aXiomas, chegando só por último aos mais gerais. A
vila de antecipação é estéril, uma vez que os axiomas por ela
estabelecidos não servem para inventar seja o que for. A via da
interpretação é fecunda, porque dos axiomas deduzidos com
método e ordem das coisas particulares facilmente brotam novas
cognições particulares que tornam activa e produtiva a ciência (lb.,
1, 24). A tarefa preliminar de Bacon, na sua tentativa de
estabelecer o novo órgão da ciência, é, por conseguinte, o de
eliminar as antecipações, e a tal é dedicado substancialmente o
primeiro livro do Novum organum. Este livro destina-se a purificar o
intelecto de todos os ídolos, para o que estabelece uma tríplice
crítica: (redargutio): crítica das filosofias, crítica das
demonstrações e crítica da razão humana natural, respectivamente
destinadas a eliminar os preconceitos que se radicaram na mente
humana através das doutrinas filosóficas ou através das
demonstrações extraídas de princípios errados, ou pela própria
natureza do intelecto humano. Ele quer "conduzir os homens
Perante as coisas Particulares e as suas séries e ordena, afastando-
os por algum tempo das noções

30

antecipadoras para que comecem a familiarizar-se com as coisas


mesmas" (Ib., 1, 36).

As antecipações que se radicam na própria natureza humana são as


que Bacon denomina idola tribus e idola specus: os idola tribus são
comuns a todos os homens, os idola specus são próprios de cada
indivíduo. O intelecto humano é conduzido a supor que existe na
natureza uma harmonia muito maior do que a que existe de facto, a
dar mais importância a certos conceitos do que a outros, a atribuir
maior relevância ao que, impressiona a fantasia do que ao que é
oculto e longínquo. Além de ser impaciente, quer progredir sempre
para além do que lhe é dado, e pretende que a natureza se

adapte às suas exigências. rejeitando assim tudo o

que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são
fontes de idola tribus,- e a principal fonte de tais idola é a
insuficiência dos sentidos aos quais escapam todas as forças
ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés, dependem da
educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada
qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou
a ela completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido
por certo a uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o
descobridor do magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta
toda uma filosofia. E assim, em geral, todo o homem tem as suas
propensões para os antigos ou para os modernos, para o velho ou
para o novo, paira aquilo que é simples ou para aquilo que é
complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas estas
propensões são fontes

31

de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um


antro ou uma caverna que refractasse ou desviasse a luz da
natureza.

Além destas duas espécies naturais de ídolos, existem os


adventícios ou provenientes do exterior: idola fori e idola theatri.
Os ídolos da praça derivam da linguagem. Os homens crêem impor
.a sua

razão às palavras: também sucede que as palavras retorçam e


repercutam a sua força sobre o intelecto. Nascem assim as disputas
verbais', as mais longas e insolúveis, que se podem resolver apenas
com um recurso à realidade. Os ídolos que derivam das palavras são
de duas espécies: ou são nomes de coisas que não existem ou são
nomes de coisas que existem, mas que são confusos e mal
determinados. À primeira espécie pertencem os nomes

de fortuna, primeiro móbil, órbitas dos planetas, elemento do fogo


e quejandos, os quais têm a sua origem em falsas teorias. À segunda
espécie pertencem, por exemplo, a palavra húmido, que indica coisas
diversissímas, as palavras que indicam acções como gerar,
corromper, etc., e as que indicam qualidades, como grave, ligeiro,
poroso, denso, etc. Tais são os idóla fori, 'assim chamados porque
gerados por aquelas convenções. humanas que as relações entre os
homens tornaram necessárias. o último género de preconceitos é o
idola theatri que derivam das doutrinas filosóficas ou de
demonstrações erradas. Bacon denomina-os- assim porque compara
os sistemas filosóficos a fábulas, que são como mundos fictícios ou
cenas de teatro. As doutrinas filosóficas, e por conseguinte, os
idola theatri, existem em pro32

fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as


falsas filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a
supersticiosa. Da filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles,
que procurou adaptar o mundo natural a categorias lógicas
predispostas e se preocupou mais em dar a definição verbal das
coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género empírico,
pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem
a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e
restritos experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a
que se mistura com a teologia, como acontece em Pitágoras e Platão,
e especialmente neste último, que Bacon considera mais subtil e
perigoso e ao qual não hesita em atribuir num seu escrito (Temporis
partus musculus, Opere, M,
530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado,
teólogo mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de
demonstrações erróneas. E as demonstrações são erróneas porque
se fiam demasiado nos sentidos ou abstraem indevidamente das
suas impressões ou têm a pretensão de passar de golpe dos
pormenores sensíveis aos princípios gerais.

Entre as causas que impedem os homens de se libertarem dos ídolos


e progredirem no conhecimento efectivo da natureza, Bacon coloca
em primeiro lugar a reverência pela sabedoria antiga. A este
propósito, observa ele que, se por antiguidade se entende a velhice
do mundo, o termo deveria aplicar-se ao nosso tempo, e não àquela
juventude do mundo de que os Antigos foram quase um exemplo.

33

Essa época é antiga e fundamental para nós, mas

relativamente ao mundo é nova e menor; e como é lícito esperar de


um homem antigo um maior

conhecimento do mundo do que de um jovem, assim deveremos


esperar da nossa época muito mais do que dos tempos antigos,
porque ela se foi pouco a pouco enriquecendo no curso do tempo
através de infinitos experimentos e observações. A verdade, diz
Bacon, é filha do tempo, não da autoridade. Como Bruno, ele pensa
que ela se

revela gradualmente ao homem através dos esforços que se somam


e se integram na históriaPara sair das velhas vias da contemplação
improdutiva e empreender a via nova da investigação técnico-
científica, é necessário colocarmo-nos no terreno do experimento.
A simples experiência não basta, porque procede ao acaso e sem
directivas. É semelhante, diz Bacon, (Nov. Org., 1, 82) a uma

vassoura velha, ao avançar às cegas como quem andasse de noite à


procura do caminho, quando seria mais fácil e prudente esperar pelo
dia ou acender uma luz, e assim enfiar pelo caminho. A ordem
verdadeira da experiência consiste em acender a luz, ,iluminando
desse modo a via, quer dizer, começar pela experiência ordenada e
madura, e não por experiências irregulares e desordenadas. Só
assim o experimento pode levar a vida humana a enriquecer-se de
novas invenções, a assentar as bases do poder e da grandeza
humana e a alargar cada vez mais os seus horizontes. Aliás, o
objectivo prático e técnico que Bacon atribui à ciência não a
encerra

num estreito utilitarismo. Aos experimentos que dão

34

fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão


luz (experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis,
porquanto revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).

§ 394. BACON: A INDUÇÃO E A TEORIA DAS FORMAS

A pesquisa científica não se funda só nos sentidos nem apenas no


intelecto. Se o intelecto por si não produz senão noções arbitrárias
e infecundas e se os sentidos, por outro lado, só dão indicações
ordinárias e inconcludentes, a ciência não poderá constituir-se como
conhecimento verdadeiro e fecundo de resultados senão enquanto
impuser à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao

intelecto a disciplina da experiência sensível. O procedimento que


realiza aquela exigência é, segundo Bacon, o da indução. Bacon
preocupa-se em distinguir a sua indução da aristotélica. A indução
aristotélica, isto é, a indução puramente lógica que não incide sobre
a realidade, é uma indução por simples enumeração dos casos
particulares: Bacon considera-a uma experiência pueril que produz
conclusões precárias e é continuamente exposta ao perigo dos
exemplos contrários que possam desmenti-la. Ao invés, a indução
que é a invenção e a demonstração das ciências e das artes funda-
se na escolha e na eliminação dos casos particulares: escolha e
eliminação repetidas sucessivamente sob o controle do
experimento, até se atingir a deter35

minação da verdadeira natureza do fenómeno. Esta indução procede


por isso sem saltos e por graus; quer dizer, remonta gradualmente
dos factos particulares aos princípios mais gerais e só por último
chega aos axiomas generalíssimos.

A escolha e a eliminação em que se funda tal indução supõem em


primeiro lugar a recolha e a descrição dos factos particulares:
recolha e descrição que Bacon denomina storia naturale
sperimentale, porque não deve ser imaginada ou cogitada, mas
recolhida da experiência, ou seja, ditada pela própria natureza. Mas
a história natural e experimental é tão variada e vasta que
confundiria o intelecto em vez de ajudá-lo se não fosse composta e
sistematizada numa ordem idónea. Para tal fim servem as tábuas
que são recolhas de casos ou

exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna


tais recolhas apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11,
10). As tábuas de presença serão então a recolha das instâncias
conhecidas, isto é, das circunstâncias em que uma

certa "natureza", por exemplo, o calor, habitualmente se apresenta.


As tábuas de ausência recolhem, ao invés, aqueles casos que são
privados da natureza em questão, embora estando próximos ou

ligados àqueles que a apresentam. As tábuas dos graus ou


comparativas recolherão, pelo contrário, aquelas instâncias ou casos
em que a natureza procurada se encontra em diferentes graus,
maiores ou

menores: o que deve fazer-se ou comparando o seu aumento e a sua


diminuição no mesmo sujeito ou comparando a sua grandeza em
sujeitos diferentes,

36

confrontados um com o outro. Formadas estas tábuas, começa o


verdadeiro e próprio trabalho da indução, cuja primeira fase deve
ser negativa, isto é, deve consistir "em excluir as naturezas que não
se encontrem em alguns casos em que a natureza dada é presente
ou se encontrem em algum caso em que ela é ausente ou cresce em
algum caso em que a natureza dada decresce ou decresce em algum
caso em que a natureza dada aumenta". A parte positiva da indução
**co~rá apenas após esta longa e difícil obra de exclusão, com a
formulação de uma hipótese promissória, acerca da forma da
natureza estudada, que Bacon, denomina "primeira vindima". Esta
hipótese guiará o desenvolvimento ulterior na pesquisa que consiste
substancialmente em pô-la à prova em sucessivas confirmações ou
experimentos que Bacon chama instâncias prerrogativas. Ele
enumera vinte e sete espécies de tais instâncias, designando-as com
nomes pitorescos (instâncias solitárias, migratórias,
impressionistas, clandestinas, manipulares, analógicas, etc.). A
,instância decisiva é a instância crucial, cujo nome

Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para


indicar as vias. O valor desta instância consiste em que, quando se
não sabe ao corto qual das duas ou mais naturezas é a causa da
natureza estudada, a instância crucial mostra que a

união de uma das naturezas com ela é segura e

indissolúvel e assim permite reconhecer nesta natureza a causa da


natureza estudada. Algumas vezes, acrescenta Bacon, instâncias
desta natureza apresentam-se por si; outras vezes, ao contrário,
devem ser

37

procuradas ou provocadas e constituem verdadeiros e próprios


experimentos (M., 11, 36).

No vigésimo sétimo e último lugar das instâncias prerrogativas,


Bacon coloca as instâncias da magia, caracterizadas pela
desproporção entre a causa material ou eficiente, que é pequena ou
insignificante, e o efeito produzido. Devido a esta desproporção, as
instâncias mágicas parecem milagres: na realidade, os efeitos
mágicos são obtidos por via puramente natural, mediante a
multiplicação das forças produtoras devida ou a estas forças
mesmas ou às forças de outros corpos (Nov. org., H, 51). Deste
modo, a magia, com todos os seus mirabolantes efeitos, foi incluída
por Bacon no plano do trabalho experimental.

Todo o processo da indução tende, segundo Bacon, a estabelecer a


causa das coisas naturais. E esta causa é a forma. Ele faz seu o
principio: vere scire est per causas scire, e aceita finalmente a
distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente
e final. Mas elimina logo a causa
final por ser mais nociva do que benéfica à ciência Ub., 11, 2). "A
pesquisa das causas finais, diz ele (De augm., 111, 5), é estéril: como
uma virgem consagrada a Deus, não pode parir coisa alguma". Bacon
não nega que se possam legitimamente contemplar os fins dos
objectos naturais e a harmonia geral do universo para se dar conta
do poder e da sabedoria de Quem o criou. Mas esta pesquisa deve
ser consagrada ao serviço de Deus, não pode ser transposta para o
plano da ciência natural, porque esta não é contemplativa mas
activa, e deve

38

descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o


mundo (Ib., 111, 4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon
considera que a
eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência
verdadeira e activa por serem concebidas como separadas do
processo latente que tendo à forma. Resta a forma, que Bacon tem
a pretensão de entender de um modo inteiramente diverso de
Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por forma é o
mais difícil problema da crítica baconiana.

Bacon insiste em primeiro lugar na tese de que só a forma revela a


unidade da natureza e permite descobrir o que nunca existiu antes
e que nunca
poderia passar pela cabeça de ninguém, e que nem os
acontecimentos naturais nem as explorações experimentais nem o
acaso poderiam alguma vez produzir. "Só da descoberta das formas,
diz ele, nasce a contemplação verdadeira e a liberdade do operam
(lb., 11, 3). Para entender o significado da forma é necessário uma
observação preliminar. Bacon distingue em todos os fenómenos
naturais dois aspectos diferentes: 1º o esquematismo latente
(Iatens schematismus), isto é, a estrutura ou a ordem intrínseca
dos corpos considerados estàticamente;
2º o processo latente (latens processus ou processus ad formam),
isto é, o movimento intrínseco dos próprios corpos, que os conduz à
realização da forma. De facto, ele distulgue (Ib., 11, 1) "o processo
latente que em todas as gerações ou movimentos parte
continuamente da causa eficiente e manifesta e da matéria sensível
para a forma inata" e o

39

"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em


movimento". E mais adiante considera o processo e o esquematismo
em dois capítulos separados, insistindo na conexão e na diversidade
dos dois aspectos da natureza (Ib., 11, 6 e 7).
Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina
do esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos
movimentos (De augm., 111, 4). A primeira doutrina é por ele
comparada ao que é a anatomia dos corpos orgânicos (Nov. org., 11,
7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio do esquematismo e o
princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma
duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função
que lhe atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que
constitui essencialmente, e portanto individua e define, um
determinado fenómeno natural; por outro lado, a lei que regula o
movimento de geração ou de produção do próprio fenómeno.
"Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno natural (lb., 11,
1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante ou a
fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a
coisa), tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é
evidente que a forma como diferença verdadeira constitui o
princípio do esquematismo, isto é, da ordem intrínseca das partes
da matéria, porque é aquilo que individua a estrutura de uma
realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte de
emanação é a lei que regula o movimento de produção de um
determinado fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do

40

termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir
um dado fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários
fenómenos. e é mais geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4):
chama forma à " Minição verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e
descreve-a. como "a coisa mesma" na sua estrutura interna (Ib., 11,
13). Por outro lado, fala das leis fundamentais e comuns que
constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem que na
natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos
puros individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa
mesma lei, a
busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de
fundamento quer ao saber quer ao operar. Esta lei, e os seus
parágrafos, é aquilo que nós designamos com o nome de forma,
especialmente porque este vocábulo é usado e se tornou familiar"
(lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados ao mesmo
tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão
aquelas leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e
constituem qualquer simples fenómeno natural, como
o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto
adaptado. Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma
coisa que a lei do calor ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se
distinguem os dois significados fundamentais da forma, como lei do
movimento e determinação do acto puro, isto é, o esquematismo
latente.

Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem
feito) a ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma.
Na reali41
dade, este significado é necessáriamente duplo em
virtude de uma distinção que Bacon claramente estabeleceu e
considerou. fundamental. Resta, porém, uma dúvida: será a doutrina
da forma tão original como o próprio Bacon a julgou e, sobretudo,
distinguir-se-á ela suficientemente da doutrina aristotélica? Não
há dúvida de que Bacon contrapôs o seu
conceito de forma ao do aristotelismo escolástico; mas a forma, tal
como ele a concebeu, como princípio estático e dinâmico dos corpos
físicos, corresponde exactamente à autêntica forma de
Aristóteles: a substância, como princípio do ser, do devir e da
inteligibilidade de todas as coisas reais (§ 73). Sem o querer e
talvez sem o saber, Bacon reportou-se directamente ao genuíno
significado aristotélico, da forma substancial. onde, porém, se
afasta de Aristóteles é na exigência, tenazmente mantida, de que a
forma seja sempre inteiramente resolúvel em elementos naturais;
isto é, que a busca e a descoberta da forma não consiste em
processos conceituais mas num processo experimental que chega,
mediante o
exame de cada caso, a determinar os elementos precisos e
operantes da estrutura interna e do processo generativo de um
dado fenômeno. Enxertou assim no tronco do aristotelismo a sua
exigência experimentalista. E isto explica a eficácia limitada e
quase nula que a sua doutrina exerceu no desenvolvimento da
ciência, a qual permaneceu inteiramente dominada pelas intuições
metodológicas de Leonardo, Kepler e Galileu, mas quase por
completo ignorou
O experimentalismo baconiano que de facto era para ela
aproveitável. O experimentalismo científico não

42

podia ser enxertado no tronco do aristotelismo; e a


teoria da índução baconiana devia falir nossa tentativa. O
experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica e com
ela a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era, como se viu
(§ 391), a matemática. É significativo que a matemática não
encontre lugar na indução baconiana. Bacon preocupou-se, é certo,
em situar a matemática na sua enciclopédia das ciências, agregando-
a umas vezes à metafísica (Advancement, 11, 82), outras vezes
à física (De augm., 111, 6, Nov. org., 1, 96); mas
não atribuiu à matemática mesma nenhuma função eficaz na
investigação científica, e afirmou explicitamente que ela "está no
termo da filosofia natural, mas não a deve gerar nem procriam
(Nov. org., H,
96). Assim, ao mesmo tempo considera que a matemática é causa de
corrupção da filosofia natural; e, aliás, (De augm., 111, 4), diz que a
astronomia foi incluída entre as matemáticas, não sem perda da sua
dignidade (non sine dignitatis suae dispendio). Na realidade, o
experimentalismo de Bacon mantém-se nos quadros da metafísica
aristotélica, e não podia fornecer à ciência um novo órgão de
investigação. Aliás, a ciência já encontrara (ou estava em vias de
encontrar) o seu órgão, que é precisamente a matemática, e era por
causa desse órgão que se desinteressava daquelas formas que
Bacon considerava como termo último da investi~ gação, e se
dispunha a considerar únicamente a ordem mensurável das coisas
naturais, isto é, as suas relações matemáticas. A grandeza de Bacon
consiste sobretudo em ter reconhecido a estreita

43

conexão entre a ciência e o poder humano e em haver sido o profeta


da técnica, isto é, da possibilidade de domínio que a investigação
científica abre ao homem no mundo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 388. Os manuscritos de Leonardo foram publicados com as
reproduções fotográficas por Ravisson-Mdllien, 6 vol. in fol.,
Paris, 1881-91; Codice atlantico, ed. Piumati, Milão, 1894-1903; 1
manoscritti e disegni di Leonardo da Vinci, publicados pela R.
Comissão Vinciana, Roma, 1923 segs.-A mais rica de todas as
selecções é de RIGHTER, The Literary Works of Leonardo da
Vinci Compiled and Edited from the Original manuscripts, 2 vol.,
Londres, 1883; 2.1 ed., 1939; Frammenti litterari e filosofici,
se'eccionados púr E. Sdlmi, Florença, 1899.-Trattato della pittura,
ed.
6udwig, Viena, 1882.

Sobre os precedentes históricos das doutrinas de Leonardo: DUI-


TEM; Êtudes sur L. de V., 3 val., Paris,
1906, 1908, 1913.-E. SOLM1; Leonardo, Florença
1900; CROCE, Leonardo filosofo, in Saggio, sullo Hegel, Bari, 1913;
GENTILE, Leonardo, in Pe"ero del rinascimento, e. IV, Florença,
1940; 1d., Il pensiero di L., Florença, 1941. C. LuPORINi, Ta mente
di L., Florença,
1953; E. GkRIN (Medioevo e renascimento, Ban, 1954, p. 311 segs.;
La cultura filosofica del renascimento italiano, FIlorença, 1961, p.
388 segs.) combate, com razões vãlidas, a tese de Duhem da
dependência de Leonardo para com Cusano, mostrando as conexões
do pensamento de Leonardo com a cultura florentina do tempo.

§ 389. O De revolutionibus de Copérnico foi publicado em


Nuremberga, 1543; outras ed.: Basileia,
1566; Amsterdão, 1617; Varsóvia, 1854; Thorn, 1991,

44

-- SCHIAPARELLI, I precursori di Copernico nell'antichità, Milão,


1873; NATORP; Die kosmolog. Reform des K. in ihrer Bedeutung fur
d. Philos., in "Press. Jahr",
49.1, p. 355 segs.

De Tycho Brahe: Opera omnia, Praga, 1611; Francoforte, 1648.

De Kepler: Prodromus, Tubi-nga, 1596, 1621; Astronomia nova,


Hedelberg, 1609; Harmonices mundi, Linz, 1619; Opera omnia, 8
vol., Francoforte, 1858-71.PRANTL nos "Atti dell'Accademia delle
scienze di Monaco", olasse de história, 1875.

§ 390. A ediç" nacional das obras de GaUleu (FlorenGa, 1890-1909)


compreende 20 vi o 20., contêm os índices, o 11.1 os documentos, os
vo,1s. 10.---18., a oorrespondência. II saggiatore encontra-se no vol.
6.O; os Dialoghi sopra i due massimi sistemi encontram-se no 7.o
vol.; os Dialoghi intorno a due nuove scienze no vol. 8., - So-bre a
vida de Galficu, as numerosas investigações de, A. FAVARO;
BANFI, Vita di C. G., Milão, 1930.

§ 391. FAVARO, G. G., Modena, 1910, GENTILE, TI pensiero dei


rinascimento, Florença; L. OUCHIU, G. und seine Zeit, Halle, 1927;
A. KOYRÉ, Études galiIéennes, 3 vdl., Paris, 1939. A interpretação
a que se faz referéncia no texto, de um Galileu aparentado com
Aristóteles, é devida precisamente a KOYRÉ. Ver uma crítica muito
equilibrada a esta interpretação: L. GEYMONAT, G. G., Turim,
1957.

§ 392. Sobre a vida de Bacon: RÉMUSAT, Bacon, sa vie, son temps,


sa phil. et son influence jusqu'à nos

jours, Paris, 1857; M. M. Rossi, Saggio su F. B., Nápoles, 1935. A


melhor ed. das obras de Bacon é a de Ellis, Speliding e Hath,
Works, 1857-59, em 5 vol.
-i2 boa ia precedente ed. de Bouillet, en 3 voL, Paris,
1834-35; Novuin org., ed. e com. de T. FowIer, Oxford,
1889; The Advancement of Learning, ao cuidado de

45

H. Morley, Londres, 1905, The New Atlantis, ao cuidado de G. C.


Moore Smith, Cambridge, 1960.

Como exemplo das frequentes desvalorizações de que tem sido


objsc,to a figura de Bacon, pode ver-se

o escrito de L. VoN LIEBIG, Ueber F. B. und die Methode der


Naturforschung, Mónaco, 1863; trad. frane.,
1866 e 1877.

§ 393. Sobre a doutrina de B.: K. -"SCHER, F. B, von V. Die


Realphil.und ihre Zeitalter, Leipzig, 1853;
2,1 ed., 1875; HEUSSLER; F. B. und seine ge.-chichtliche Steilung,
Breslan, 1889; LEVI, 11 pensiero di F. B., Turim, 1925; BROAD, The
phil. of P. B., Cambridge,
1928; FAZIO ATLMAYER, Saggio su F. B., Pa:lermo, 1928;
THEOBALD, F. B. Concealed and Revealed, Londres,
1930; M. M. ROSSI, Saggio su F. B., cit.; F. ANDERSON, The Phil.
of. P. B., Chicago, 1948; B. FARRINGTON, F. B.: Philosopher of
Industrial Science, Nova lorque, 1949, trad. ital. Turim, 1952; P. M.
SCHUHL, La pensée de B., Paris, 1949; PAOLO Rossi, F. B., Dalla.
magia alla sci"za, Bari, 1957 (esta última obra é destinada
especialmente à ilustração das relações entre o pensamento de
Bacon e o pensamento escolástico e renascentista).

§ 394. As várias interpretações da teoria das formas são expostas


e discutidas nas monogratias mais recentes; LEvi, op. cit., p. 243;
ROSsi, op. cit., p. 195 segs.

46

QUINTA PARTE

FILOSOFIA MODERNA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

DESCARTES

§ 395. DESCARTES: VIDA E ESCRITOS

A personalidade de Descartes marca a decisiva viragem do


Renascimento para a idade moderna, Os temas fundamentais da
filosofia do Renascimento, o reconhecimento da subjectividade
humana e a exigência de aprofundá-la e esclarecê-la com um
retorno a si mesma, o reconhecimento da relação do homem com o
mundo e a exigência de a resolver em favor do homem, tornam-se,
na filosofia de Descartes, os termos de um novo problema em que
são envolvidos a um tempo o homem como sujeito e o mundo
objectivo.

Renê Descartes nasceu a 31 de Março de 1596 em Haia, na


Touraine. Foi educado no colégio dos Jesuítas em La nèche, onde
permaneceu de 1604 a 1612. Os estudos que fez neste período
foram por

49

ele próprio submetidos a crítica na primeira parte do Discurso: eles


não bastaram para lhe dar uma orientação segura e revelaram-lhe a
profunda vacuidade da cultura escolástica da época. Descartes,
contudo, manteve sempre relações afectuosas com os seus mestres
jesuítas, e com um deles, o padre Marino Marsenne, correspondeu-
se e manteve relações de amizade por toda a vida. A incerteza em
que a primeira educação o havia deixado levou-o a viajar "para ler
no grande livro do mundo". Em 1618 alistou-se nos exércitos do
príncipe de Nassau, que participou na Guerra dos Trinta Anos. Era
um costume militar da época deixar aos jovens ampla liberdade, e
Descartes pôde viajar a seu
talante por toda a Europa, dedicando-se aos estudos de matemática
e de fíSica e continuando a procurar o fundamento seguro de todo o
saber humano. Em
1618 conheceu o médico holandês Isaac Beekman e desta amizade
colheu novo incentivo para prosseguir as suas investigações
matemáticas e físicas. No ano seguinte, a 10 de Novembro, numa
pequena cidade alemã, teve a grande iluminação em que fez a sua
descoberta fundamental. Foi uma verdadeira crise de entusiasmo,
que induziu o filósofo a fazer o voto de ir em peregrinação ao
santuário de Loreto. Em 1622 voltou a França e no ano seguinte
viajou ainda pela Suíça e pela Itália. Em 1628 fixou a sua residência
na Holanda. Este era então o país da liberdade e da tolerância
filosófica e religiosa, e esse foi decerto o motivo principal que levou
Descartes a instalar-se aí, se bem que também pesasse na sua
deliberação um outro motivo (que ele

50

explicitamente aduz), a saber: o de subtrair-se às obrigações


sociais que em França lhe tomavam muito tempo. Pôde, assim, nesse
país gozar aquela solidão isenta de isolamento que constituiu o ideal
de toda a sua vida.
Desde 1619, ano da "iluminação", Descartes estava de posse da
ideia central do seu método. Mas só em 1628, provàvelmente,
começou a pôr em prática a sua ideia num escrito e a redigir as
regras do método nas Regulae ad directionem ingetui que, não
obstante, não chegou a publicar em vida: elas só foram dadas à
estampa alguns anos após a sua morte. (1701). Na Holanda começou
a
compor um tratado de metafísica que será o protótipo das
Meditações; e em 1633 terminava o Tratado do Mundo, ao qual
pretendia dar o título menos ambicioso de Tratado da Luz. Mas
enquanto se preparava para publicá-lo, teve notícia da condenação
de Galileu de 22 de Junho de 1633. Como também ele aceitava, no
seu tratado, a hipótese copernicana, renunciou desde logo à sua
publicação para evitar entrar em conflito aberto com a Igreja. A
sua natureza cauta e prudente levou-o a ladear o obstáculo. Tirou
do tratado original algumas partes fundamentais e publicou em
1637 três ensaios: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria,
antepondo-lhes um prefácio que foi o Discurso sobre o Método. Em
seguida retomou o tratado de metafísica que esboçara em 1629 e
deu-lhe a redacção definitiva. Antes de publicá-lo, Descartes
mandou-o ao padre Marsenne para que ele o sobmetesse ao parecer
dos maiores filósofos e teólogos da época. Como

51

se dirigia aos doutos, a obra (diversamente do Discurso) era escrita


em latim, foi publicada no ano seguinte (1641), seguida de uma série
de Objecções a que Descartes acrescentou as suas Respostas, com
o título Meditationes de prima philosophia in qua Dei existentia et
animae immortalitas demonstranTur. Esta obra foi publicada em
francês em 1641X A matéria integral do Mundo foi depois
reelaborada por Descartes numa nova obra em que compendiava. a
sua filosofia, e que publicou em latim com o título Principia
philosophiae. A obra é composta de breves artigos seguindo -o
modelo dos manuais escolares da época, pois Descartes quis dedicá-
la precisamente às escolas onde desejava vê-la superar o ensino
aristotélico, ainda dominante. Cinco anos depois, desgostoso com a
hostilidade que a sua doutrina encontrava nos ambientes
universitário holandeses (o que havia provocado a sua Epistola ad
Gisbertum Voetium, 1643), pensava em retirar-se para França,
quando recebeu o convite da rainha Cristina da Suécia para se
dirigir a Estocolmo a fim de a instruir na sua filosofia. Encorajado
pelo seu amigo Chanut, embaixador de França junto da rainha,
Descartes partiu para a Suécia, depois de ter mandado para o prelo
o manuscrito da sua última obra As Paixões da Alma (1649). A
rainha Cristina gostava de ter as suas conversações com Descartes
às cinco da manhã; uma manhã de Fevereiro de 1650, o filósofo, ao
deixar a corte, apanhou uma pneumonia que, após uma semana de
delírio e de sofrimentos, lhe foi fatal. Os últimos escritos do
filósofo foram uma comédia

52

francesa (que se perdeu), e a letra de um balet,


O nascimento da paz, destinado a celebrar o tratado de Westfália,
cujo espírito se patenteia na seguinte quadra:

Qui voit comme nous sommes faÍtes Et pense que la guerre est
belle Ou quelle vaut mieux que la paix Est estropié de cervelle 1

Após a morte do filósofo, foram publicadas cartas ou escritos que


ele deixara -inéditos: Compendium musicae (1650); Tratado do
Homem, primeiro em latim (1662) e depois em francês (1664); O
Mundo ou Tratado da Luz (1664), Cartas (1657-67), entre as quais
se destacam as dirigidas à princesa Elisabeth do Palatinado,
Regulae ad directionem ingenii (1701); Inquisitio veritatis per lumen
naturale (A investigação da verdade através da luz natural) (1701).

§ 396. DESCARTES: A UNIDADE DA RAZÃO

O problema que domina toda a especulação de Descartes é o do


homem Descartes. O procedimento de Descartes é essencialmente
autobiográfico, mesmo
quando (como nos Princípios) tem a pretensão de no-lo expor em
forma objectiva e escolar. O seu

1 Quem vê como o homem é / E penm que é boa a guerra / Ou que


ela é melhor que a paz / Não regula bem da cabeça.

53

p~ente e o seu exemplo é Montaigne. "O meu


escopo, diz Descartes (Disc., 1), não é o de ensinar o método que
cada um deve seguir para bem conduzir a própria razão, mas tão-só
fazer ver de que modo procurei conduzir a minha". Como Montaigne,
Descartes não quis ensinar mas descrever-se a si mesmo e teve por
isso de falar na primeira pessoa.
O seu problema emerge da necessidade de orientação que ele sente
ao sair da escola de La Flèche, quando, embora tivesse assimilado
brilhantemente o saber da sua época, se dá conta de que não está
de posse de nenhum critério seguro que lhe permita distinguir o
verdadeiro do falso e que tudo o que aprendeu de pouco ou de nada
lhe serve para a vida.

O problema do homem Descartes e o problema da recta razão ou da


bona mens (isto é, da sabedoria da vida) são, na realidade, um só e
mesmo problema. Descartes não procurou senão resolver o seu
próprio problema; porém, a verdade é que a
solução encontrada por ele não vale apenas para si mas para todos
os homens, porque a razão que constitui a substância da
subjectividade humana é igual em todos os homens, uma vez que a
diversidade entre as opiniões deriva apenas dos diversos modos de
conduzi-la e da diversidade dos objectos a que se aplica. Este
principio da unidade dá razão, que é, por conseguinte, a substancial
unidade dos homens na razão, foi a primeira grande iluminação de
Descartes, a de 1619. Nas Regulae, que são, sem dúvida, o primeiro
escrito em que a iluminação é

54

referida, o filósofo afirma claramente a unidade do saber humano,


fundado na unidade da razão. "Todas as diversas ciências, diz ele,
não são outra coisa senão a sabedoria humana, a qual permanece
sempre una e idêntica por muito que se aplique a diferentes
objectos, e não recebe destes maior distinção do que recebe a luz
do sol da diversidade das coisas que ilumina "A única sabedoria
humana, a que todas as ciências se reportam, é denominada por
Descartes bona mens (Reg., 1) e é, ao mesmo tempo, a sageza pela
qual o homem se orienta na vida e a razão pela qual decide do
verdadeiro e do falso.- É um princípio simultaneamente teórico e

prático, que é a própria substância do homem.

Esta substância é, como tal, única o universal. "A faculdade de


julgar bem e distinguir o vero

do falso, que é propriamente aquilo que se chama bom senso ou


razão, é, naturalmente, igual em todos os homens", diz Descartes no
início do Discurso. Esta universalidade da razão é, sem dúvida, a
maior herança que Descartes recebeu da filosofia clássica e, em
particular, do estoicismo. Mas, enquanto que para os Estóicos a
razão é a Própria substância divina o o homem dela participa só na
medida em que Deus nele opera, para Descartes a razão é uma
faculdade especificamente humana a

que Deus oferece apenas alguma garantia, subordinada de resto ao


respeito de regras precisas. E, como faculdade humana, a razão não
opera descobrindo ou manifestando a ordem divina no mundo, mas
produzindo e estabelecendo a ordem nos conhe55

cimentos o nas acções dos homens. Descartes leva a efeito aquela


mundanização e humanização da razão que a filosofia do
Renascimento havia parcialmente iniciado. Porque para Descartes o
primeiro fruto da razão é a ciência, e, em particular, a matemática,
sobre a qual funda a descoberta do método. A razão, todavia, não
se identifica inteiramente com o seu método, mas participa da
própria natureza dos elementos sobre que o método se exerce: tais
elementos são racionais só na--medida em que possuam clareza e
evidência. A clareza e

evidência dos elementos conhecidos (isto é, das ideias) constituem


a condição preliminar de todo o

procedimento racional; e não é por acaso que o

reconhecimento desses caracteres é prescrito pela primeira regra


do método. Porque Descartes nrivi;.2gia as matemáticas que se
servem apenas de semelhantes elementos, mas tal privilégio, tem,
como

sua contraparte negativa, a rejeição de uma quantidade de noções


aproximativas, "perfeitas ou fantásticas que Descartes se recusa a
tomar em consideração porque as considera insusceptíveis de
tratamento racional. O ideal da clareza e da distinção, ou seja, o
ideal da filosofia como ciência rigorosamente conceptual, é um dos
ensinamentos cartesianos que mais poderosamente influíram na
tradição ocidental.

Este ideal, além disso, não constituía para Descartes um


empobrecimento do horizonte da filosofia ou a sua redução a uma
tarefa puramente especulativa. Como Bacon, Descartes tinha em
mira uma filosofia "não puramente especulativa mas tam56

bém prática, pela qual o homem possa tornar-se dono e senhor da


natureza". Esta filosofia deve pôr à disposição do homem
dispositivos que lhe permitam gozar sem fadiga dos frutos da
natureza e de

outras comodidades, e visar à conservação da saúde, o primeiro bem


paira o homem nesta vida. E Descartes é francamente optimista
sobre a possibilidade e sobre os resultados práticos de uma
semelhante filosofia, que, segundo pensa, poderia conduzir os

homens a ficarem isentos "de uma infinidade de doenças, tanto do


corpo quanto do espírito, e talvez mesmo da decadência da velhice"
(Disc., VI). Por isso torna públicos os resultados das suas
investigações: sabe que a sua vocação o chama ao serviço da
humanidade e que, das suas descobertas, a humanidade pode
esperar o benefício e o equilíbrio da vida.

Mas tais resultados são condicionados pela posse do método. É


necessário um método que seja fundado na unidade e na
simplicidade da razão humana e que, portanto, seja aplicável a todos
os domínios do saber e a todas as artes. A descoberta e a
justificação deste método é o primeiro escopo da actividade
especulativa de Descartes.

§ 397. DESCARTES: O MÉTODO


Descartes descobriu o seu método mediante a consideração do
processo matemático. "As longas cadeias de raciocínios tão simples
e fáceis, de que os geómetras costumam servir-se para chegar às

57

suas mais difíceis demonstrações, proporcionaram-me o ensejo de


imaginar que todas as coisas de que o homem pode ter
conhecimento se seguem do mesmo modo e que, desde que se
abstenha de aceitar por verdadeira uma coisa que não o seja e que
respeite sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da
outra, nada haverá tão distante que não se chegue a alcançar por
fim nem tão <)culto que não se possa descobrir (Disc., 11). As
ciências matemáticas encontram-se portanto já, praticamente, de
posse do método. Mas não se trata &penas de tomar consciência
deste método, isto é, de extraí-lo das matemáticas e de formulá-lo
em geral, (para o

poder aplicar a todos os ramos do saber. Tal aplicação- não seria


possível se não se tivesse previamente justificado o valor universal
do método. Cumpre, por conseguinte, justificar o próprio método e
a possibilidade da sua aplicação universal, reportando-o ao seu
fundamento último, isto é, à subjectividade do homem, como
pensamento ou razão. O facto de as matemáticas estarem já de
posse da prática do método facilitou decerto a tarefa de
Descartes, mas tal tarefa só começa verdadeiramente com a
justificação (ou fundação) das regras metódicas, justificação que
só consente e autoriza a aplicação delas a todos'os domínios do
saber humano. Descartes devia portanto: 1.'-formular as regras do
método tendo sobretudo presente o procedimento matemápico no
qual elas estariam já presentes e em acção; 2.'-fundar mediante
uma investigação científica o valor absoluto e universal do método;
3.o - demonstrar a fecundidade do

58

método nos vários ramos do saber. Tal foi de facto a sua tarefa.

Descartes define o método como o conjunto de "regras certas e


fáceis que, por. quem quer que sejam exactamente observadas, lhe
tornam impossível tomar o falso pelo verdadeiro e, sem nenhum
esforço mental inútil, antes aumentando sempre gradualmente a
ciência, conduzirão ao conhecimento de tudo o que ele será capaz
de conhecer" (Reg. IV).
O método deve conduzir o homem, de um modo fácil e seguro, não
só ao conhecimento verdadeiro, mas também "ao ponto mais alto"
(Disc., 1) a que ele pode chegar, isto é, simultaneamente ao domínio
sobre o mundo e à sabedoria da vida. Nas Regulae ad directionem
ingenii,' Descartes expusera não só as regras fundamentais mas
também as modalidades ou as particularidades da sua aplicação:
tinha assim enumerado vinte e uma regras e depois interrompera,
desencorajado, a sua obra. Na 11 parte do Discurso sobre o método
reduz a quatro as regras fundamentais.

A primeira é a da evidência. "A primeira era

a de jamais aceitar alguma coisa por verdadeira se

não a reconhecêssemos evidentemente como tal: ou seja, evitar


diligentemente a participação e a prevenção; e compreender nos
meus juízos tão-só o que se apresentasse tão clara e distintamente
ao meu
espírito que eu não tivesse nenhuma possibilidade de o pôr em
dúvida". Descartes opõe a evidência à conjectura, que é aquilo cuja
verdade não se apresenta ao espírito de modo imediato. O acto com

que o espírito atinge a evidência é a intuição. Des59

cartes entende por intuição "não o flutuante testemunho dos


sentidos ou o juízo falaz da imaginação nas suas erradas
combinações, mas um conceito da mente pura e atenta tão fácil e
distinto que nenhuma dúvida permaneça acerca do que pensamos; ou
seja, -- é precisamente o mesmo, um conceito não duvidoso da
mente pura e atenta que nasce só da luz da razão e é mais certo do
que a própria dedução" (Reg. III). A intuição é , portanto, o acto
puramente racional com o qual a mente colhe o seu próprio conceito
e se torna transparente a si mesma. A clareza e a distinção
constituem os caracteres fundamentais de, uma ideia evidente:
entendendo-se por clareza (Princ. phil., I,,
21 e 45) a presença e a abertura da ideia à mente que a considera e
por distinção a separação de todas as outras ideias de modo que ela
não contenha nada que pertença às outras., A evidência define
assim um acto fundamental do espírito humano, a intuiçãoo que
Descartes nas Regras coloca antes da dedução e a par dela, como os
dois únicos actos do intelecto. A intuição é o próprio acto da
evidência, o transparecer da mente a si mesma e a certeza inerente
a este transparecer. Veremos que a busca metafísica de Descartes
será, fundamentalmente, uma justificação do acto intuitivo.

A segunda regra é a da análise. "Dividdir cada uma das dificuldades


a examinar no maior número de partes possíveis e necessárias para
melhor as resolver". Uma dificuldade é um complexo de problemas
em que o falso se mistura com o verdadeiro. A regra implica em
primeiro lugar que um pro60
blema seja absolutamente determinado e, portanto, que seja
libertado de qualquer complicação supérflua, e, em segundo lugar,
que seja dividido em problemas mais simples que se possam
considerar separadamente (Reg., 13).

A terceira regra é a da síntese. "Conduzir os meus pensamentos por


ordem, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de se
conhecer, para pouco a pouco me elevar, como por graus, até aos
conhecimentos mais complexos,, supondo que haja uma ordem
também entre-os objectos que não procedem naturalmente uns dos
outros". Esta regra supõe o procedimento ordenado que é
próprio da geometria e supõe, outrossim, que todo o domínio do
saber seja ordenado ou, ordenável de modo análogo. A ordem assim
pressuposta é, segundo Descartes, a ordem da dedução, que é o
outro acto

fundamental do espírito humano. Na ordem dedutiva, estão primeiro


as coisas que Descartes chama absolutas, isto é, providas de uma
natureza simples e, como tais, quase independentes das outras, são,
ao invés, relativas as que, devem ser deduzidas das primeiras
através de uma série de raciocínios (Ib. 6). A exigência da ordem
dedutiva implica que, quando uma ordem semelhante não se
encontre naturalmente, ela deva ser a seu tempo cogitada; assim, no
caso de uma escrita em caracteres desconhecidos, que não revele
nenhuma ordem, se começa por imaginar uma e pô-la à prova (Ib.,
10). A regra da ordem é para a dedução tão necessária como a

evidência o é para a intuição.

61

A quarta (regra é da enumeração. "Fazer sempre enumerações tão


completas e revisões tão gerais que se fique certo de não omitir
nenhuma". A enumeração controla a análise, enquanto que a revisão
controla a síntese. Esta regra prescreve a ordem e a

continuidade do procedimento dedutivo e tende a reconduzir este


procedimento à evidência intuitiva. De facto, o controle completo
que a imaginação estabelece ao longo de toda a cadeia das deduções
faz desta cadeia um todo completo e totalmente evidente (Ib., 7).

Estas regras não têm em si mesmas a sua justificação. O facto de


as matemáticas se servirem delas com sucesso não constitui uma
justificação, porque elas poderiam ter uma utilidade prática para os
fins da matemática e serem, não obstante, destituídas de validade
absoluta e por isso inaplicáveis noutros domínios. Descartes deve,
pois, elaborar uma pesquisa que as justifique remontando à raiz
delas; e essa raiz não pode ser senão o princípio único e simples de
toda a ciência e de toda a arte: a subjectividade racional ou
pensante do homem.

§ 398. DESCARTES: O COGITO

Encontrar o fundamento de um método que deve ser o guia seguro


da investigação em todas as ciências só é possível, seguindo
Descartes; mediante uma

crítica radical de todo o saber. É necessário suspender, pelo menos


uma vez, o assentimento a todo o conhecimento Comummente
aceite, duvidar de tudo

62

e considerar provisoriamente como falso tudo o que seja


susceptível de ser posto em dúvida. Se, persistindo nesta atitude
de crítica radical, se chegar a um princípio sobre o qual não seja
possível a dúvida, esse principio deverá ser considerado
extremamente sólido e tal que possa servir de fundamento a todos
os outros conhecimentos. Em tal princípio se encontrará a
justificação do método.

A dúvida cartesiana implica dois momentos distintos: 1º


reconhecimento do carácter incerto e problemático dos
conhecimentos sobre os quais recai; 2.'-a decisão de suspender o
assentimento a tais conhecimentos e de considerá-los
provisoriamente falsos. O primeiro momento é de carácter teórico,
o segundo é de carácter prático e implica um acto livre da vontade
doutrina cartesiana do livre-arbítrio está já 4nplícita neste
segundo momento (§ 401). Evidentemente, a suspensão do juizo ou
epoché (segundo o termo dos antigos cépticos), se abole todo o
juízo que afirme ou negue a verdade de uma ideia, não abole todavia
as próprias ideias. Ela diz respeito à existência, não à essência, das
coisas. Recusar-se a afirmar a realidade dos objectos sensíveis não
significa negar as ideias sensíveis de tais objectos. A epoché
suspende a afirmação da realidade das ideias enquanto possuídas
pelo homem, mas reconhece essas ideias corno puras ideias ou

essências. O que implica uma indicação precisa do sentido em que se


move o processo da dúvida., Este processo será bem sucedido se,
reduzido mediante a epoché o mundo da consciência a um mundo de
puras ideias ou essências, se encontrar uma ideia

63

ou essência que seja a imediata. revelação de, uma

existência. E tal será o caso do eu.


1 Ora, Descartes afirma que nenhum grau ou forma de
conhecimento se subtrai à dúvida. Pode-se, é por isso se deve,
duvidar dos conhecimentos sensíveis, seja Porque os sentidos
algumas v= nos enganam, embora nem sempre nos enganem, seja
porque no sonho se têm- conhecimentos semelhantes aos da vigília
sem que se possa encontrar um critério seguro de distinção entre
uns e outros. É bem certo haver conhecimentos verdadeiros quer no

sonho, quer na vigília, como os conhecimentos matemáticos (dois


mais três são sempre cinco, quer se esteja a dormir ou acordado),
mas nem mesmo

estes se subtraem à dúvida, porque também a certeza relativa a


eles pode ser ilusória. Enquanto nada de certo se souber acerca de
nós próprios e

da nossa origem, pode-se sempre supor que o homem foi criado por
um génio mau ou por uma potência maligna que se, tenha proposto
enganá-lo fornecendo-lhe conhecimentos aparentemente certos
mas

desprovidos de verdade. Basta fazer uma tal hipótese (e pode-se


fazê-la, dado que não se sabe nada) para que mesmo os,
conhecimentos subjectivamente mais certos se revelem duvidosos e
capazes de esconder o engano. Assim, a dúvida se estende a todas
as coisas e se torna absolutamente universal.

Porém, mesmo no carácter radical desta dúvida se apresenta o


princípio de uma primeira certeza. Eu posso admitir que me engano
ou que estou enganado de todo em todo. Posso supor que não há
Deus, nem o céu, nem os corpos, e que eu

64

DESCARTES
próprio não tenho coipo. Mas para que me engane ou para que seja
enganado, para duvidar e para

WL41 9

eu que penso seja qualquer coisa e não nada. A proposição penso,


logo existo é a única absolutamente verdadeira porque a própria
dúvida a confirma. Toda a dúvida, suposição ou engano, pressuporá
sempre que eu que duvido, suponho ou me engano, exista?(A
afirmação existo será portanto verdadeira todas as vezes que a
concebo no meu espírito.

Ora, esta proposição contém também, evidentemente, uma certa


indicação acerca do que sou eu

que existo. Não posso dizer que existo como corpo, já que nada sei
da existência dos corpos, a respeito dos quais a minha, dúvida
permanece. Eu só existo como uma coisa que duvida, isto é, que
pensa. A certeza do meu existir liga-se apenas ao

meu pensamento e às suas determinações: o duvidar,


* compreender, o conceber, o afirmar, o negar,
* querer, o não querer, o imaginar, o sentir e, em geral, a tudo
quanto existe em mim e de que sou imediatamente consciente (H
Resp., Def. 1). As coisas pensadas, imaginadas, sentidas, etc. podem
não ser reais; mas é real decerto o meu pensar, sentir, etc. A
proposição eu existo significa apenas eu sou uma coisa .pensante,
isto é, espírito, intelecto, razão. A minha existência de sujeito
pensante é certa como o não é a existência de nenhuma das coisas
que penso. Pode ser que aquilo que eu percepciono (por exemplo, um
pedaço de cera) não exista; mas é impossível que não exista eu que
penso que percepciono esse objecto. Sobre esta certeza
* 65

originária, que é ao mesmo tempo uma verdade necessária, deve


fundar-se todo e qualquer outro conhecimento.

Sobre tal certeza assegura Descartes poder fundar em primeiro


lugar a validez da regra de evidência. "Tendo notado, &z ele (Disc.,
IV; d. Med.
111) que não há nada nesta afirmação: eu penso, logo existo, que me
assegure que eu diga a verdade, senão que vejo clarissimamente que
para pensar é necessário existir, julguei poder tomar por regra
geral que as coisas que concebemos de um modo claro e distinto são
todas verdadeiras". Porém, já a alguns contemporâneos de
Descartes (por exemplo, HUET, Cens. phil cartes, H, 1) esta relação
entre o cogito e a regra da evidência se apresentara problemática.
Se o princípio do cogito é aceite porque evidente, a regra da
evidência é anterior ao

próprio cogito como fundamento da sua validade: e a pretensão de


justificá-la em virtude do cogito torna-se ilusória. Mas o cogito e a
evidência serão verdadeiramente dois princípios diversos entre os

quais seja necessário estabelecer a prioridade? Será o cogito


apenas uma entre as variadíssimas evidências que a regra da
evidência garante serem verdadeiras? Na realidade, o cogito não é
uma evidência mas antes a evidência no seu fundamento metafísico:
é a evidência de que a existência do sujeito pensante tem por si
mesma, a transparência absoluta que a

existência humana, como espírito ou razão, possui no seu próprio


âmbito. A evidência do cogito é urna relação intrínseca ao ou e pelo
qual o ou se

liga imediatamente à própria existência. Esta relação


66

não recebe a sua validez de nenhuma regra mas tem o princípio e a


garantia da sua existência unicamente em si mesma. A regra da
evidência, provisoriamente deduzida da consideração das
matemáticas, nela encontra a sua última raiz e a sua justificação
absoluta; torna-se assim verdadeiramente universal e susceptível
de ser aplicada em todos os casos. Diz de facto Descartes,
respondendo a uma

objecção análoga (Lett. à Clercelier, Junho-Julho


1646, Oeuvr., IV, 443): "A palavra porincípio pode-se tornar em
diversos sentidos: uma coisa é procurar uma noção comum que seja
tão clara e

geral que possa servir como princípio para provar a existência de


todos os seres, os entia, que se

conhecerão depois; outra coisa é procurar um ser, a existência do


qual nos seja mais conhecida do que a dos outros de modo que possa
servir como
princípio para os conhecimentos.

Isto permite responder à outra questão (também ela tradicional na


crítica cartesiana), se o cogito é ou não um raciocínio. Em tal caso,
suporia uma premissa maior: "tudo o que pensa existe" o (como
Gassendi observava) não seria um primeiro princípio. O próprio
Descartes afirmou decididamente contra os seus críticos o
carácter imediato e intuitivo do cogito. E, na realidade, a
identidade entre a evidência (no seu princípio) e o cogito'
estabelece também a identidade entre o cogito e a intuição, que é o
acto da evidência. Se a intenção, como se

viu (§ 397), é o acto com que a mente se torna transparente a si


mesma, a intuição primeira e fundamental é aquela com que se toma
transparente

67

a si mesma a existência da mente, ou seja, do sujeito pensante. O


cogito, como evidência existencial originária é a intuição existencial
originária do sujeito pensante.

O sujeito pensante, definido pela auto-evidência existencial é,


segundo Descartes, uma substância (Disc., IV; Resp., II def. 5;
Resp., III). Descartes aceita aparentemente a noção escolástica de
substância e por ela entende o sujeito imediato de qualquer
atributo de que tenhamos uma ideia real. Mas, na realidade, tal
noção sofre nele uma metamorfose radical. A substância pensante
não é outra coisa senão o pensamento existente. A substancialidade
do ou não implica o reconhecimento de um qualquer seu
desconhecido subjectum, mas apenas exprime a intrínseca relação
pela qual o eu é evidência da sua própria existência. De modo
análogo, o carácter substancial da extensão (a que se reduz a
corporeidade das coisas) significará apenas a objectividade da
extensão relativa aos outros caracteres dos corpos, mas excluirá
todo o substracto recôndito. A substância pensante não é senão o
pensamento, enquanto existência evidente a si mesma. A aparente
aceitação por parte de Descartes do termo aristotélico-escolástico
de substância é, na realidade, uma nova definição do próprio termo,
cujo significado se exaure na intrínseca relação existencial do eu.

As considerações precedentes permitem estabelecer a


originalidade do princípio cartesiano do cogito. Descartes
indubitavelmente repetiu (se conscientemente ou não é impossível
dizê-lo) um movimento

68

de pensamento que remonta a S.to , Agostinho (§ 160), que de


Santo Agostinho o passou para a Escolástica, e foi retomado e
renovado por Campanella quase ao mesmo tempo que por Descartes
(§ 385). Mas não há dúvida de que, como o próprio Descartes
afirmou (Resp., IV), S.to Agostinho se servira do cogito para fins
bastante diversos dos dele. Ele visava ao reconhecimento da
presença transcendente de Deus no homem, e na tradição
medieval o cogito agustiniano conserva o mesmo valor. Quanto a
Campanella, viu-se que o principio vale para ele unicamente como
fundamento de uma teoria naturalística da sensação. Mas o que
torna evidente a separação radical que existe entre os precedentes
históricos do cogito cartesiano e o próprio cogito é que neste falta
o carácter problemático que mercê do cogito vem a assumir toda a
realidade diversa do eu. pela primeira vez, Descartes fez valer o
cogito como relação do eu consigo mesmo, portanto como principio
que torna problemática qualquer outra realidade e que ao mesmo
tempo permite justificá4a. Só Descartes compreendeu o pleno valor
do cogito em todas as suas implicações e o utilizou como principio
único e simples para uma reconstrução metafísica que tem como seu
ponto de partida a problematicidade do real.

§ 399. DESCARTES: DEUS

O principio do cogito não encerra o homem na

interioridade do seu eu. É um principio de abertura ao mundo, a uma


realidade que está para além do
69

eu. Certamente, à base dele, ou só estou seguro da minha


existência; mas a minha existência é a de um ser pensante, isto é,
de um ser que tem ideias.
O uso do termo ideia para indicar qualquer objecto do pensamento
em geral é uma novidade terminológica de Descartes. Para os
escolásticos ideia era a essência ou arquétipo das coisas
subsistentes na

mente de Deus (o universal ante rém). Descartes definiu a ideia


como "a forma de um pensamento, pela imediata **pe~o da qual sou
consciente de tal pensamento" (Resp., II, def. 2). Isto significa
que a ideia exprime esse carácter fundamental do pensamento
pelo qual ele é imediatamente consciente de si mesmo. Qualquer
ideia tem, em primeiro lugar, uma realidade como acto do
pensamento, e tal realidade é puramente subjectiva ou mental. Mas,
em segundo lugar, tem também uma realidade a que Descartes
chama escolàsticamente objectiva, porquanto representa um
objecto; neste sentido, as

ideias são "quadros" ou imagens" das coisas. Ora o cogito torna-me


seguro de que as ideias existem no meu pensamento como actos do
próprio pensamento, já que fazem parte de mim como sujeito
pensante. Mas não me tornam seguro do valor real do conteúdo
objectivo delas, isto é, não me diz se os

objectos que elas representam existem, ou não na realidade. Ideias


são para mim a terra, o céu, os astros e todas as coisas percebidas
pelos sentidos: como ideias, existem no meu espírito. Mas existem
realmente as coisas correspondentes fora do meu
pensamento? Este é o problema ulterior que se

apresenta à investigação cartesiana. Descartes divide

70

em três categorias todas as ideias: as que me parece haverem


nascido em mim (inatas); as que me parecem estranhas ou vindas do
exterior (adventícias); e as formadas ou encontradas por mim
próprio (factícias). Ã primeira classe de ideias pertence, a

capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras,


imutáveis e eternas das coisas; à segunda classe pertencem as
ideias das coisas naturais; à terceira, as ideias das coisas
quiméricas ou

.inventadas (Med., 111, Lett. à Mersenne, 16 de Junho de 1641,


Oeuvr., 111, 383). Ora, entre todas estas ideias não há nenhuma
diferença' se as considerarmos do ponto de vista da sua verdade
subjectiva, isto é, como actos mentais; mas se se consideram do
ponto de vista da sua realidade objectiva, isto é, das coisas que
representam ou de que não são imagens, são diferentíssimas umas
das outras.

Deste ponto de vista, podem ser examinadas para se descobrir a


causa que as produz. Ora, as ideias que representam outros homens
ou coisas naturais nada contêm de tão perfeito que não possa ter
sido produzido por mim. Mas no que se refere à ideia de Deus, isto
é, de uma substância infinita, eterna, omnisciente. omnipotente e
criadora, é difícil supor que possa eu próprio tê-la. criado. A ideia
de Deus é a única ideia em que há alguma coisa que não poderia vir
de mim próprio, na medida em que eu
não possuo nenhuma das perfeições que estão representadas nessa
ideia. Descartes afirma, em geral, que a causa de uma ideia deve
sempre ter pelo menos tanta perfeição quanto a que a ideia
representa. Por isso a causa da ideia de uma substância

71

infinita só pode ser uma **sub~ia infinita. e a simples presença em


mim da ideia de Deus demonstra a existência de Deus. Esta
demonstração cartesiana modela-se decerto **jiclas
demonstrações escolásticas fundadas sobre o princípio de
causalidade; mas, ao contrário delas, não parte das coisas sensíveis
para chegar, através da impossibilidade de remontar ao infinito, à
causa primeira; mas parte, sim, da simples ideia de Deus e ascende
imediatamente do seu conteúdo representativo à sua causa.

A prova é, assim, unicamente fundada sobre a natureza que


Descartes atribui às ideias e é típica do cartesianismo.

Em segundo lugar, posso chegar a reconhecer a existência de Deus,


mercê da mesma consideração da finitude do meu eu. Eu sou finito
e imperfeito, como é demonstrado pelo facto de que duvido. Mas se
eu fosse a causa de mim mesmo, teria concedido a mim próprio as
perfeições que concebo e que estão precisamente contidas na ideia
de Deus. É, pois, evidente que não fui criado por mim e que devo ter
sido criado por um ser que possui todas as perfeições de que eu
tenho a simples ideia. Também o ponto de partida desta segunda
prova é a

presença no homem da ideia de Deus; além disso, esta segunda


prova é fundada sobre o reconhecimento da própria finitude por
parte do homem. Descartes estabelece uma estreita conexão entre
a natureza finita do homem e a ideia de Deus. "Quando reflicto
sobre mim, diz ele (Med., IU), não somente sei que sou uma coisa
imperfeita, incompleta e dependente de outro, que tende e aspira
sem descanso

72

a algo de melhor e de superior, mas sei também ao mesmo tempo


que Aquele de que dependo possui em si todas as grandes coisas a
que aspiro e de que encontro em mim as ideias, e as possui não
indefinidamente em potência, mas na realidade, actualmente e
infinitamente, e que por isso é Deus". Não seria possível que a
minha natureza fosse tal qual é, isto é, finita mas dotada da ideia
do infinito, se o ser infinito não existisse. A ideia de Deus é, pois,
"como a marca do artífice impressa na sua obra e nem sequer é
necessário que tal marca

seja alguma coisa de diferente dá própria obra". Por outros termos,


a própria finitude constitutiva do homem implica a relação causal do
homem com Deus, relação de que a ideia de Deus é a expressão e a
revelação imediata.

Ambas as provas que acabamos de expor assumem como ponto de


partida a ideia de Deus. Mas já a Escolástica havia fornecido uma
prova que pretendia ir da simples ideia de Deus à existência de
Deus: a prova de Santo Anselmo de Aosta (§ 192). Tal prova cabia
perfeitamente na

lógica do procedimento de Descartes. E Descartes fê-la sua,


apresentando-a provida da mesma necessidade que uma
demonstração matemática. Como não é possível conceber um
triângulo que não tenha os ângulos internos iguais a dois rectos,
assim não é possível conceber Deus não existente. O ser
soberanamente perfeito não pode ser pensado privado daquela
perfeição que é a existência: a existência pertence-lhe, pois, com a
mesma necessidade com que uma propriedade do triângulo pertence
ao

73

triângulo. É evidente que esta prova diferencia-se das duas


precedentes porque considera a ideia de Deus, não em relação ao
homem e à sua finitude, mas em si mesma, o enquanto essência de
Deus. E sobre esta essência versam os esclarecimentos que
Descartes deu sobre, a prova (Resp., 1). A necessidade da
existência de Deus deriva da superabundância de ser que é própria
da sua essência. Através desta superabundância põe-se Deus a si
mesmo na existência comportando-se de algum modo para consigo
como uma causa eficiente. Conquanto não haja em Deus distinção
entre a existência e a causa eficiente (que seria absurda), a
causalidade eficiente torna de algum modo inteligível a necessidade
da sua existência. Deus existe em virtude da sua própria essência,
pela superabundância de ser, por consequência da perfeição, que o
constitui.

Como as provas da existência de Deus têm todas como ponto de


partida comum a ideia de E0eus, constituem a simples; explicação
da natureza finita do homem. No acto de duvidar e de se
reconhecer imperfeito, reporta-se o homem necessariamente à
ideia da perfeição e daí à causa dessa ideia, que é Deus. A
afirmação de Descartes de que a ideia de Deus é como a marca que
o artífice imprime na sua obra e que não é necessário que tal marca
seja algo de diverso da própria obra significa precisamente que a
pesquisa mediante a qual o homem chega à certeza de si é idêntica
à investigação mediante a qual o homem atinge a certeza de Deus.

Uma vez reconhecida a existência de Deus, o


critério da evidência encontra a sua última garantia.

74

Deus, pela sua perfeição, não pode enganar-me: a

faculdade de juízo que dele **rwebá não pode ser

tal que me induza em erro, se for aplicada correctamente. Tal


consideração tira todas as possibilidades de dúvida sobre todos os
conhecimentos que se
apresentem ao homem como evidentes. A possibilidade de dúvida
permanece, ao
invés, para o ateu; pois que, quanto menos poderoso for aquele que
ele reconheça como autor do seu ser, tanto mais poderá supor que a
sua natureza seja tão imperfeita que o engane mesmo nas coisas
que lhe pareçam mais evidentes. O ateu não poderá, pois, alcançar a
ciência, isto é, o conhecimento certo e seguro, se não reconhecer
ter sido criado por um verdadeiro Deus, princípio de toda a
verdade, que não pode ser enganador (Resp., VI, 4).)@Assim, a
primeira e fundamental função que Descartes atribui a Deus é a de
ser o princípio e o garante de toda a verdade. E, na realidade, o
conceito cartesiano de Deus é desprovido de todo o carácter
religioso. Como notará Pascal (Pensées, 556), o Deus de Descartes
não tem nada a ver com o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob, com
o Deus Cristão; é, simplesmente, o autor das verdades geométricas
e da ordem do mundo. Assim se poderia esperar que um Deus
invocado como garante das verdades evidentes estivesse de algum
modo vinculado a estas verdades; e que elas fossem reconhecidas
por Descartes como sendo independentes de Deus. Mas a doutrina
cartesiana sobre este ponto é precisamente o contrário. As
chamadas verdades eternas que exprimem a
essência imutável das coisas não são de modo algum

75

independentes da vontade de Deus: foi Deus que as

criou, como criou todas as outras criaturas. Disse Descartes:


"Perguntais quem obrigou Deus a criar tais verdades; e ou digo que
ele foi livre para fazer que não fosse verdade que todas as linhas
que partem do centro para a circunferência fossem iguais como foi
livre para não criar o inundo. E é certo que estas verdades não
estão ligadas à sua essência mais necessariamente do que outras
criaturas" (Leares à Mersennes de 27 de Maio de 1630. Cf. também
as cartas ao mesmo Mersennes de 15 de Abril e de 6 de Maáo de
1630).

Esta doutrina liga-se estreitamente, por muito que pareça


paradoxal, ao núcleo contra do cartesianismo. As verdades eternas
poderiam ser independentes de Deus se fossem para ele próprio
necessárias; e poderiam para ele ser tais que fizessem parte da
necessidade da sua natureza. Mas em tal caso a razão que nelas se
manifesta seria a Própria razão divina; e a razão humana e divina
coincidiriam, segundo o velho conceito do estoicismo. Descartes
afirma, ao invés, que a razão é uma faculdade especificamente
humana; vê em Deus antes uma potência inexaurível, isto é, uma
infinidade de entendimento; reconhece-lhe, no entanto, a mais
ampla faculdade de arbítrio mas ao mesmo tempo confia só ao
homem a responsabilidade e a razão como gula. Como a redução das
verdades eternas a decretos de Deus não é mais que a transcrição
teológica do postulado da sua imutabilidade, tal transcrição evita a
identificação da razão humana com Deus.
76

§ 400. DESCARTES: O MUNDO

Com a demonstração da existência de Deus e do seu atributo de


veracidade, as regras do método encontraram a sua confirmação
definitiva. Descartes pode, passar à terceira parte da sua tarefa
que é a de demonstrar a sua fecundidade no domínio do saber
científico. E, em primeiro lugar, a regra de evidência, agora
plenamente justificada e garantida, permite eliminar a dúvida que
havia sido levantada em princípio sobre a realidade das coisas
materiais. De facto, eu não posso duvidar de que há em mim uma
certa faculdade passiva de sentir, isto é, de receber e de
reconhecer as ideias das coisas sensíveis. Mas ela ser-me-ia inútil
se não houvesse em mim ou noutros uma faculdade activa capaz de
formar ou produzir as própria ideias. Ora, esta faculdade activa não
pode existir em mim, porque eu sou

apenas uma substância pensante, e ela não pressupõe de modo algum


o meu pensamento, já que as ideias que ela produz me são amiúde
representadas sem que eu para isso contribua, antes contra a minha
própria vontade. Daí que tenha, necessariamente, de pertencer a
uma substância diversa, a qual só pode ser ou um corpo, isto é, uma
outra natureza corpórea na qual esteja contido realmente aquilo
que nas ideias está contido representativamente, ou então o próprio
Deus, ou enfim alguma outra criatura mais nobre do que o corpo.
Mas é evidente que Deus, não sendo enganador, não me envia essas
ideias **im"tamente, nem sequer por

77

meio de qualquer criatura que não as contenha realmente. Ele


infundiu-me uma forte inclinação para crer que elas me são enviadas
por coisas corpóreas, e por isso enganar-me-ia se elas fossem
produzidas por outro. Cumpre reconhecer que há uma substância
pensante que sou eu próprio: substância divisível, precisamente
porque extensa, ao passo que o espírito é indivisível e não tem
partos. A substância extensa não possui todavia todas as qualidades
que nós percepcionamos. A grandeza, a figura, o movimento, a
situação, a duração, o número, são decerto as suas qualidades
próprias; mas a cor, o cheiro, o sabor, o sono, etc., não existem
como tais na realidade corpórea e correspondem nesta realidade a
alguma coisa que nós não conhecemos. Descartes estabelece, elo
também, a distinção entre qualidades objectivas e subjectivas, já
estabelecida por Galileu.

Pelo mesmo motivo, isto é, em virtude da veracidade divina, devo


admitir que tenho um corpo, que s-1 sente mal disposto quando
tenho dores, que tem necessidade de comer quando tenho as

sensações da fome, da sede, etc. Tais sensações demonstram que


ou não estou alojado no meu corpo

como um piloto no seu navio, mas que lhe estou tão estreitamente
ligado que formo um só todo com ele. Sem esta união eu não poderia
perceber o prazer ou a dor que me advém de tudo o que acontece
no corpo, mas conheceria as sensações de prazer ou de dor, de
fome, de sede, etc., com o puro intelecto, como coisas que não
concernem ao meu

ser. Tais sensações são, na realidade, "modos con78

fusos de pensar" que provêm da própria união do espírito com o


corpo (Med., VI). Além disso, esta união pressupõe uma distinção
real entre o espírito e o corpo, na medida em que posso pensar
existir como pura substância espiritual sem admitir em
mim nenhuma parte, ou elemento de outra natureza; e, por outro
lado, devo reconhecer no corpo caracteres (como a divisibilidade)
que a substância espiritual recusa.

Este dualismo substancial da alma e do corpo tem sido


frequentemente considerado como um dos aspectos mais
deficientes da filosofia cartesiana. Na realidade, o que há de novo
em tal filosofia é o reconhecimento da substancialidade do corpo, o

qual, na concepção tradicional (aristotélica) era considerado não


como substância mas como órgão ou instrumento da substância
alma, ou como dotado (segundo o agustianismo medieval, § 307) de
uma

substancialidade parcial ou imperfeita. Reconhecer que o corpo é


substância, significa, em primeiro lugar, para Descartes tornar
possível a consideração e o estudo do corpo como tal, isto é, sem
referência à alma ou aos seus poderes: de modo que esse
reconhecimento aparece a Descartes como a primeira condição para
o estudo científico do corpo humano e em tal sentido influi no
desenvolvimento dos estudos biológicos.

De qualquer modo, seja corno corpo humano, seja como corpo


natural, a substância corpórea tem, segundo Descartes, um único
carácter fundamental, isto é, a extensão. A matéria pode ser
concebida como sendo privada de todas as qualidades que lhe

79

possamos atribuir (peso, cor, etc), mas não como sendo privada da
extensão em comprimento, largura e profundidade: este é, pois, o
seu atributo fundamental (Princ. phil., 11, 4). O conceito do espaço
geométrico identifica-se com a extensão; é fruto da abstracção
pela qual se eliminam dos corpos todas

as suas propriedades reduzindo-as ao seu atributo fundamental


(Ib., II, II). A redução cartesiana da corporeidade à extensão é o
fundamento do rigoroso mecanismo que domina toda a física
cartesiana. Todas as propriedades da matéria reduzem-se à sua
divisibilidade em partes o à mobilidade dessas partes (lb.,, 11, 23).
O movimento das partes extensas deve ser, portanto o único
princípio de explicação de todos os fenómenos da natureza.

Descartes afirma que a causa prima do movimento é o próprio


'Deus, que ao princípio criou a matéria com uma determinada
quantidade de repouso e de movimento, e que em seguida
mantém em si, imutável, esta quantidade. Deus, de facto, é
imutável, não só em si mesmo, mas também em todas as suas
operações, visto que, exceptuadas aquelas mutações reveladas pela
experiência, que não supõem nenhuma mutação nos d~ de Deus, não
devemos supor qualquer outra variação nas suas obras (Ib., 11, 36).
Deste princípio da imutabilidade divina Descartes tira as leis
fundamentais da sua física. Da imutabilidade divina segue-se de
facto como primeira lei da natureza o princípio de inércia: todas as
coisas, enquanto simples e indivisas, perseveram sempre no mesmo
estado o só podem ser mudadas por uma causa externa (Ib.,

80

11, 37). A segunda lei, também ela derivada da imutabilidade divina,


é a de que todas as coisas tendem a mover-se em linha recta (Ib.,
11, 39). A terceira lei é o princípio da conservação do movimento,
graças à qual, no choque dos corpos entre si, o movimento não se
perde, mantendo-se a sua quantidade constante. (Ib., 11, 40).
Bastam estas três leis, segundo Descartes, para explicar todos os
fenómenos da natureza e a estrutura de todo o - universo, o qual é
uma maquina gigantesca, de que se exclui qualquer força animada ou
qualquer causa final. Tal como Bacon, Descartes acha legítimo
considerar o finalismo da natureza no domínio da ética, mas
assegura ser tal consideração "ridícula e estúpida", na física, "uma,
vez que, segundo diz (Ib., 111, 3), não duvidamos que existam, ou
existissem durante um tempo e tenham já deixado de existir muitas
coisas que nunca foram vistas ou compreendidas pelos homens, e
que por isso não lhes foram de qualquer utilidade". É por isso um
simples acto de soberba imaginar que tudo tenha sido criado por
Deus para exclusivo benefício do homem. Pela única acção destas
três leis, Descartes afirma poder explicar como se formou a ordem
actual do mundo a partir do caos. A matéria primitiva era composta
de partículas iguais em grandeza e em movimento; estas partículas
moviam-se quer em torno do próprio centro quer umas, em relação
às outras, de modo a formarem turbilhões fluidos que, compondo-se
de modos vários entre si, deram origem ao sistema solar e depois à
terra.

81

Não só o universo físico mas também as plantas e os animais e o


próprio corpo litiniano são máquinas. Para explicar a vida dos corpos
orgânicos não há necessidade de admitir uma alma vegetativa (Nu
sensitiva, mas avenas. as próprias forças mecânicas que actuam no
resto do universo. Descartes vê uma

confirmação do carácter puramente mecânico do organismo humano


na circulação do sangue, que atribui à maior quantidade de calor que
existe no coração (Disc., V). A circulação havia já sido estudada e
descrita por Harvey 1628) que indicara como sua causa a
contracção e distensão do músculo cardíaco. Mas Descartes crê
(erradamente) corrigir a explicação de Harvey, porque, segundo diz
"supondo que o coração se move do modo com,) Harvey descreve, é
preciso imaginar alguma faculdade que produza esse movimento, a
natureza da qual é muito mais difícil de conceber-se do que tudo o
que se pretende explicar com ela" (Description du corps humain, 18;
Oeuvr., XI, 243).

§ 401. DESCARTES: O HOMEM

A presença da alma racional estabelece a diferença radical entre o


homem e os animais. A união entre a alma e o corpo, que torna
possível a acção reciproca de um sobre outro, ocorre no cérebro e
precisamente na glândula pineal que é a única parte do cérebro que
não é dupla e pode por isso unificar as sensações que vêm dos
órgãos dos sentidos, que são todos duplos (Paixões, 1, 32). No

82

bratado Les passions de 1'âme, Descartes distingue na alma acções


e afecções: as acções dependem da vontade, as afecções são
involuntárias e são constituídas por percepções, sentimentos ou
emoções causadas pelos espíritos vitais, isto é, pelas forças
mecânicas que actuam no corpo (lb., 1, 27). Evidentemente, a força
da alma consiste em vencer as

emoções e deter os movimentos do corpo que as

acompanham, enquanto que a sua debilidade consiste em deixar-se


dominar pelas emoções, que sendo amiúde contrárias entre si,
solicitam a alma para aqui e para ali, levando-a a combater contra si
mesma e reduzindo-a ao estado mais deplorável. Isto, aliás, não
quer dizer que as emoções sejam essencialmente nocivas. Elas
relacionam-se todas com o corpo e são dadas à alma enquanto esta
está ligada àquele, de modo que têm a função natural de incitar a
alma a consentir e a participar nas acções que servem para
conservar o corpo e torná-lo mais perfeito. Neste sentido, a
tristeza e a alegria são as emoções fundamentais. Pela primeira, de
facto, a

alma é advertida das coisas que prejudicam o corpo e assim


experimenta ódio por o que lhe causa tristeza e o desejo de se
libertar disso. Pela alegria, ao invés, a alma é advertida das coisas
úteis ao corpo e assim experimenta amor por elas e desejo de
conquistá-las e conservá-las (Ib., 11, 137).

Ás emoções está ligado, todavia, um estado de servidão de que o


homem deve tender a libertar-se. Elas fazem quase sempre com que
o bem e o mal se representem muito maiores e importantes do que
são realmente, mas induzem a fugir de um e a

83

procurar o outro com mais ardor do que conviria (lb., 11, 138). O
homem deve deixar-se guiar, tanto quanto possível, não por elas,
mas pela experiência e pela razão, e só assim poderá distinguir, no
seu justo valor, o bem do mal, e evitar os excessos. É neste domínio
das emoções que consiste a sabedoria, a qual se obtém estendendo
o domínio do pensamento claro e distinto e separando, tanto quanto
possível, este domínio dos movimentos do sangue e dos espíritos
vitais, dos quais dependem as emoções e aos quais habitualmente
está ligado (Ib., 111, 211).

É este progressivo domínio da razão, o qual restitui ao homem o uso


total do livre arbítrio e o torna senhor da sua vontade, que
constitui o traço Saliente da moral cartesiana. Na terceira parte do
Discurso sobre o Método, antes de principiar pela dúvida a análise
metafísica, Descartes estabelecera algumas regras de moral
provisória, destinadas a

evitar que "ele permanecesse irresoluto nas suas

acções enquanto a acção o obrigava a sê-lo nos seus juízos".

Ele não fez, nem mesmo posteriormente, a exposição da sua moral


definitiva, ou seja, fundada no

método, e assim inteiramente justificada. Mas as

Cartas à Princesa Elisabeth e as Paixões da Alma permitem


determinar os limites em que a moral provisória do Discurso pode
ser considerada definitiva. A primeira regra provisória ora
obedecer às leis e

aos costumes do país, conservando a religião tradicional e


regulando-se a cada passo pelas opiniões mais moderadas e mais
afastadas de quaisquer

excessos. Com esta regra renunciava preliminarmente a toda a


extensão da sua crítica ao domínio da moral, da religião e da
política. E, na realidade, esta regra exprime um aspecto, não
provisório, mas definitivo da personalidade de Descartes
caracterizada pelo respeito para com a tradição religiosa e política.
"Tenho a religião dó meu rei", "Tenho a religião da minha alma",
responde ele ao ministro protestante Revius que o interrogava a
esse respeito. Na realidade, ele distinguia dois domínios diversos: a
vida prática e a contemplação da verdade. Na primeira, a vontade
tem a obrigação de decidir-se sem esperar a evidência; na segunda,
tem a obrigação de não decidir senão quando se alcançou a evidência
(Resp., 11). No domínio da contemplação o homem só pode
contentar-se com a verdade evidente; no domínio da acção, o
homem pode contentar-se com a probabilidade (Disc., 111). A
primeira regra da moral provisória tem assim, dentro de certos
limites, para Descartes, um valor permanente e definitivo.

A segunda máxima consistia em ser-se o mais firme e resoluto


possível na acção e seguir com constância mesmo a opinião mais
duvidosa, uma vez que houvesse sido aceita. Também esta regra é
sugerida pelas necessidades da vida que obrigam muitas vezes a
agir na falta de elementos seguros e definitivos. Mas,
evidentemente, a regra perde todo o carácter provisório se a
razão já entrou de posse do seu

método. Nesse caso, de facto, ela implica "que haja uma firme e
constante resolução em seguir tudo o que a razão aconselha
sem que nos deixemos desviar
85

pelas paixões ou pelos apetites" (Lett. à Elisabeth, 4 de Agosto de


1645, Oeuvr., IV, 265).

A terceira regra consistia em procurar vencer-se antes a si mesmo


do que a fortuna e mudar antes os pensamentos do que a ordem do
mundo. Descartes afirma constantemente que nada está
inteiramente em nossas mãos excepto os nossos pensamentos, que
dependem apenas do nosso livre arbítrio (Med., IV); ele atribui todo
o mérito e dignidade do homem ao uso que souber fazer das suas
faculdades, uso que o torna semelhante a Deus (Pass. 111,
152). Esta regra permanece a pedra angular da moral de Descartes.
Ela exprime, na fórmula tradicional do preceito estóico, o espírito
do cartesianismo, o qual exige que o homem se deixe conduzir
unicamente pela própria razão e delineia o próprio ideal Ia moral
cartesiana, o da sageza. "Não há nada, diz Descartes (Lett. à
Elisabeth, 4 de Agosto de 1645, Oeuvr., IV, 265), que nos impeça
de estarmos contentes excepto o desejo, a pena ou o
arrependimento: mas se fizermos sempre tudo o que nos dita a
nossa razão, nunca teremos nenhum motivo para nos arrependermos
mesmo que os acontecimentos nos mostrem em seguida que nos
enganámos sem culpa nossa. Nós não desejamos ter, por exemplo,
mais braços ou mais línguas do que as que temos, mas desejamos ter
mais saúde ou mais riqueza: isso acontece porque imaginamos que
tais

Z.@

coisas poderiam ser adquiridas com a nossa conduta ou que são


devidas à nossa natureza, o que não é verdadeiro das outras.
Poderemos livrar-nos desta Opinião considerando que, por ter
sempre seguido

86

o conselho da nossa razão, nada esquecemos do que estava em nosso


poder e que os infortúnios não são menos naturais para o homem do
que a prosperidade e a saúde". É este o único meio para alcançar o
supremo bem, a felicidade da vida. "Como um pequeno vaso pode
estar cheio do mesmo modo que um vaso grande, mesmo que
contenha uma menor quantidade de líquido, assim, se cada um se
entregar com satisfação ao cumprimento dos seus

desejos regulados pela razão, mesmo o mais pobre e o menos


favorecido pela fortuna e pela natureza poderá viver contente e
satisfeito, embora gozando de uma menor quantidade de bens".
(Ib., IV., 264).
O preceito estóico recebe aqui o seu significado genuíno da regra
cartesiana do pensar claro e d4stinto, regra que impõe o ter em
conta os limites das possibilidades humanas e adequar a tais limites
os desejos e as aspirações.

Que a razão humana se encontra de súbito diante da necessidade


de reconhecer os seus próprios limites, já o vira bem claro
Descartes ao considerar o problema do erro. O homem não tem
apenas uma

ideia positiva de Deus, isto é, de um ser soberanamente perfeito,


mas tem também uma corta ideia negativa do nada, isto é, daquilo
que é infinitamente alheio a toda a perfeição. Ele é posto entre o
ser

e o não-ser; considera-se que foi criado pelo ser perfeito, não


encontra nada em si que possa conduzi-lo ao erro; mas se considera
que participa do nada, enquanto não é ele próprio o ser supremo,
acha-se exposto a uma infinidade de defeitos entre os quais a
possibilidade do erro (Med., IV). Ora,

87

o erro depende, segundo Descartes, do concurso de duas causas: o


entendimento e a vontade. Com o entendimento, o homem não
afirma. nem nega coisa alguma. Mas concebe apenas as ideias que
pode afirmar e negar. O acto da afirmação ou da negação é próprio
da vontade. E a vontade é livre. Como tal, é bastante mais extensa
do que o entendimento e pode por isso afirmar ou negar mesmo o
que o entendimento não consegue perceber clara e distintamente.
Nisto reside a possibilidade de erro. Se eu afirmasse ou negasse,
isto é, usasse o meu juízo, só acerca do que o entendimento me faz
conceber com suficiente clareza e distinção e se me abstivesse de
dar o meu juízo acerca de todas as coisas que não têm clareza e
distinção suficientes, nunca poderia enganar-me. Mas, já que a
minha vontade, que é sempre livre, pode fugir a esta regra e dar
assentimento mesmo ao que não é claro e evidente, surge a
possibilidade do erro. Eu poderei adivinhar por mero acaso; mesmo
assim, terei usado mal do meu livre arbítrio. Mas poderei também
afirmar o que não é verdadeiro, e nesse caso terei caldo
imediatamente no erro. O erro, portanto, não depende de nenhum
caso de Deus, o qual deu ao

nosso intelecto a máxima extensão compatível com

a sua finitude, e à nossa vontade a máxima perfeição fazendo-a


livre. Depende apenas do mau uso

que façamos do nosso livre arbítrio, não nos abstendo do juízo nos
casos em que o entendimento não nos iluminou o bastante (Med., IV;
Pritic. Phil.,
1, 34).

88

A possibilidade do erro é fundada no livre arbítrio, como sobre o


livre arbítrio é fundada também a possibilidade da epoché, da
suspensão do juizo de que Descartes se valeu no início do seu
procedimento. Em que consiste exactamente o livre arbítrio?
Responde Descartes que consiste no seguinte (Med., IV): "que nós
possamos lazer uma

coisa ou não fazê-la (isto é, afirmar ou negar, seguir ou fugir), ou


antes tão-só nisto: que, para afirmar ou negar, seguir ou fugir às
coisas que o

entendimento nos propõe, ajamos de modo que não sintamos


nenhuma força exterior a coagir-nos". Descartes acrescenta que,
para se ser livre não é necessário que se seja indiferente na
escolha entre um ou outro de dois contrários. Tal indiferença é
antes "o mais baixo grau de liberdade" e é mais defeito do
conhecimento do que uma perfeição da vontade. O grau mais alto da
liberdade alcança-se quando a inteligência está provida de noções
claras e distintas que dirigem. a escolha o a decisão da vontade.
Neste caso, de facto, conhece-se' claramente o que é verdadeiro e
o que é bom, e não se está na situação penosa de ter de deliberar
acerca

do juizo e da escolha a fazer (Ib., IV). Na doutrina cartesiana do


livre arbítrio viu-se, algumas vezes, a oscilação entre dois conceitos
diversos e exclusivos da liberdade: a liberdade como indiferença a

actos opostos e a liberdade como determinação racional. Na


realidade, aquilo em que Descartes vê a substância da liberdade é
(como o indica o passo citado) " o agir de modo a não sentir-se
coagido por

89

existência de uma ** força exterior". A liberdade é um facto íntimo


constitutivo da consciência, de tal modo que Descartes indica como
única e fundamental testemunha dela a experiência interior (Princ.
phil., 1, 39). Ora, é evidente que, quando o homem age à base do
juizo da própria razão, age de modo a não sentir-se coagido por
nenhuma força estranha, porque a razão é ele próprio, a sua
subjectividade pensante. A liberdade é, neste caso, perfeita porque
a razão é o princípio autónomo do eu. Em virtude do cogito, que
reconheceu na razão a substância mesma do homem, o poder da
razão sobre a vontade é o poder do homem sobre as suas próprias
acções. Quando, pelo contrário, a noção evidente da razão não
surge, a vontade vê-se obrigada a decidir em estado de indiferença.
Ora, se nesta situação o homem suspende o juizo e não decide,
conforma-se mais uma vez com a razão e com a primeira das suas
regras fundamentais. Se, ao invés, decide, terá sido sempre levado
a decidir por alguma percepção obscura ou

paixão, já que a indiferença é considerada por Descartes apenas no


âmbito da razão e não no dos outros móbiles que continuam a actuar
sobre o homem. Nesse caso deverá o homem sentir-se menos livre,
porque uma força estranha à sua subjectividade racional interveio
na decisão; em alguns casos extremos, porém, a sua liberdade será
nula. Por conseguinte, em Descartes não subsistem dois conceitos
heterogéneos de liberdade, mas um só conceito: a ausência da
coacção exterior - entendendo-se por coacção exterior toda a
força estranha à subjectividade
90

racional do homem. E este conceito prende-se estreitamente com o


princípio fundamental do cartesianismo. Se esta ou aquela fórmula
adoptada por Descartes se encontra também nos textos de S.
Tomás, nem por isso a doutrina cartesiana é menos original, uma vez
que supõe o princípio da autonomia racional do homem, princípio que
não pode encontrar-se no tomísmo.

Descartes abordou o velho problema da relação entre a liberdade


humana e a preordenação divina (Pritic. phil, 1, 40-41; Lett, a
Elisabeth, Janeiro de
1646, Oeuvr., IV, 352 segs.). Se a liberdade humana é,
infalivelmente, testemunhada pela experiência interior, a
preordenação divina é uma verdade evidente, já que não se pode
conceber a omnipotência de Deus limitada ou deficiente em
nenhuma parte do mundo e, por isso, tão pouco no homem. Nos
Princípios de Filosofia, Descartes limita-se a contrapor as duas
faces do problema, aduzindo como justificação da sua aparente
inconciabilidade a finitude da mente humana. Nas Cartas à Rainha
Elisabeth. tenta, pelo contrário, uma solução. Se um

rei que proibiu os duelos, por alguma razão procede de modo que
dois gentis-homens do seu reino, que se odeiam de morte, possam
encontrar-se, ele sabe que não deixarão de bater-se e de infringir a
proibição; mas nem este seu saber, nem a vontade que ele tem de
que eles se encontrem, tirará o carácter voluntário e livre ao acto
dos dois gentis-homens, que poderão por isso ser justamente
punidos. Ora,

91

Deus, pela sua presciência o seu poder infinitos, conhece todas as


inclinações da nossa vontade, pois que elo próprio as criou; e ele
próprio cria e determina as circunstâncias ou as ocasiões que
favoreceram ou não tais inclinações. Mas nem por isso Deus quis
obrigar-nos a agir de um modo determinado. É necessário distinguir
nele "uma vontade absoluta e independente pela qual quer que todas
as coisas aconteçam tal como acontecem e uma vontade relativa,
que se relaciona com o mérito ou o demérito dos homens, pela qual
ele quer que se

obedeça às suas leis". Tem-se aparentado esta sedução (ou pseudo-


solução) cartesiana à ciência média,

com a qual, segundo Molina (§ 373), Deus prevê infalivelmente as


acções dos homens, embora sem as determinar. Na realidade,
trata-se da solução tomística que retornará também, com algumas
variantes de linguagem, com Leibniz (Teodiceia, 165).

No discurso sobre o Método, depois de ter exposto a moral


provisória, Descartes insiste na

importância que tem para o homem a escolha da ocupação a seguir


na vida, Ele próprio declara ter escolhido deliberadamente, e depois
de ter considerado a fundo as várias ocupações dos homens, a de
cientista. "Experimentara tão extremas satisfações, diz ele (Disc.,
111), desde que começara a servir-me deste método, que não julgava
poder obter outras mais doces, nem mais inocentes, nesta vida; e
descobrindo todos os dias alguma verdade que me parecia bastante
importante e comummente ignorada pelos outros homens, a
satisfação que isso me

92

dava enchia de tal modo o meu espírito que nada mais me


importava-". Todavia, no fim do Discurso, o próprio Descartes
revela-se consciente dos limites das suas possibilidades, devidos
sobretudo à brevidade da vida e à falta de um número suficiente de
experiências. Descartes partiu de princípios muito mais gerais para
explicar os fenómenos simples da natureza, mas reconhece que, as
mais das vezes, os fenómenos podem ser explicados de modos
diversos fundados nos mesmos princípios, e qual destes modos será
o verdadeiro é algo que só a experiência pode decidir. A
possibilidade de fazer experiências é, portanto, o limite da
explicação científica. "Eu vejo bem, diz ele (lb., VI), qual o caminho
a seguir, mas vejo também que as experiências, necessárias a tal
objectivo são tais e tantas que nem as minhas mãos nem as minhas
riquezas, mesmo que multiplicadas por mil não poderiam bastar para
todas; deverei contentar-me em progredir no conhecimento da
natureza no âmbito limitado das experiências que posso realizar". A
experiência é para Descartes mais a confirmação de uma doutrina
científica do que o seu ponto de partida. Nisso o seu
método difere do de Galileu, que se atém estritamente aos
resultados da experiência. O desenvolvimento ulterior da ciência
devia ser mais conforme ao método de Galileu do que ao de
Descartes. Mas a obra de Descartes, abria, por um lado, mais
amplas perspectivas à explicação mecânica do mundo natural, por
outro estabelecia, com o princípio da subjectividade racional do
homem, o primeiro pressuposto do pensamento moderno.

93

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 395 A edição fundamenta, das obras de Descartes é a de


ADAM e TANNERY; OeuVres, 12 V., Paris,
1897-1910. O 12.- volume é uma monografia de CHARLES ADAM
sobre a vida e as obras de Descartes. Quanto a edições parciais, a
única fundamental é a do Discours de la méthode, ao cuidado de
Etiène Gilson, peJo seu riquíssimo comentário histórico (2.1 ed.,
Paris,
1939). Esitá em curso de publicação a recolha completa das Cartas
ao cuidado de Adam e Milhaud, 6 vol.,
1936-56. -Algumas trad. !tal.: Discorso deil metodo e Meditazioní
filosofiche, trad. Tfigher, Bari, 1949; Le pa&,sioni delVanima e
Lettere sulla morale, trad. Garin, Bari, 1954; 11 mondo, trad.
Cantelli, Turim, 1960; L'uomo, trad. Cantellí, Turim, 1960.

§ 396. Sobre a função central que a ideia da unidade das ciências


tem no cartesianisnio: CASSIRER, Descartes, EstGcoImo, 1939, p.
39 segs. Sobre "Descartes, leitor de Montaigne": BRUNSLCHVIGG,
D. e Pascal lecteurs de Montaigne, Neuchatel, 1945.

§ 397. Sobre ométodo e, -em geral, sobre os temas fundamentais


da filos. cristã: G. GALLI, Studi cartes@ani, Turim e as seguintes
monografias: K. FiSCHER, CeSchichte der nemern Philosophie, 1, 5.a
ed., Heidelberg,
1912; LIARD, D., Paris, 2.a ed., 1903; HAMELIN, Le système de D.,
Paris, 1911; GIBSON, The Phiosophy of D., Londres, 1932;
OLGIATI, C., Milão, 1934; KEELING, D., Londres, 1934; LAPORTE,
Le racionalisme de D., Paris,
1945; M. GUÉROULT, D. selon Pordre des raisons, 2 vol., Paris,
1953.

§ 398. A tese de que o cogito é um raciocin-lo é sustentada não isó


pior alguns contemporâneos de Descartes (por ex. GASSENDI,
Objections), mas tiambém por HAMELIN, op. cit. p. 131-135; e
GALLI, op. Cit., p. 95 segs.

94

Sobre os precedentes históricoe do cogito: BLANCHET, Les


antécédents historiques du "Je Peme", donc @@e suis", Paris,
1920; e GILSON, ed. cit. do Disc., p.294 segs.

§ 399. Sobre as provas da existência de Deus:


1<-OYRÉ, Essai sur Ndée de Dieu et sur les preuves de son
existence chez Descartes, Paris, 1922.

§ 400. Sobre as doutrinas científicas de Descartes: G. MILTIAUD,


Descartes savant, Paris, 1922; LoRiA e DREYFUS-LE FoYER, in
Êtudes sur D., fascículo da "Revue de Métaphysique et de Morale",
Paris, 1937. P. MONY, Le dévelopement de Ia physique cartésienne,
Paris, 1934; R. LENOBLE, Mersenne ou Ia naissance du mécanisme,
Paris, 1943.

§ 401.' Sobre a moral cartesiana: BOUTROUX; ÉtUdes d'histoire


de Ia phil., Paris, 1891; A. ESPINAS, D. et Ia morale, 2 vol., Paris,
1925; J. SEGOND, La sagesse cartésienne et Ndéa1 de Ia science,
Paris, 1932; P. ME.S@NARD, Essa! sur Ia morale de D., Paris, 1936.

Sobre o pensamento religioso: H. GOU111ER, L(,, pensée réligieuse


de D., Paris, 1924; J. RuSSIER, Sagesse cartésienne et reZigion,
Paris, 1958.

Sobre o conceito de liberdade: GILSON, La liberté ch--- Deccartes


et Ia Théologie, Paris, 1913. A oscilação de Dwcartes na sua
doutr`na da liberdade afirmado, por GILSON foi, POÍS, admitida
por quase todos os historiadores coÈtemporâneos (GoUI-IIER,
GiBSON, KEELING, OLGIATI); S. LAPORTE, La Ziberté selon D.,
Études, cit., p. 102 segs.

Sobre a bibliografia caxtesiana: J. BOORSKH, Etat présent des


études sur D. Paris, 1937; G. LEWIS, in "Revue philosophique",
Abril-Junho, 1951.

95

II

HOBBES

§ 402. HOBBES: VIDA E OBRAS

A filosofia de Hobbes representa, em comparação com a de


Descartes, a outra grande alternativa a que . elaboração do
conceito de razão deu início no século XVII. E isso não só porque
está ligada a pressupostos materialistas e nominalísticos, enquanto
que a de Descartes está ligada a uma metafísica. espiritualista, mas
também e sobretudo porque vê na
razão uma técnica, sob muitos aspectos diversa ou
oposta à que lhe atribuíra Descartes.

Thomas Hobbes nasceu em Westport a 5 de Abril de 1588. Fez os


seus estudos universitários, que o decepcionaram, no Magdalena
Hall de Oxford, e dedicou-se a leituras e estudos Literários,
apaixonando-se sobretudo por Tucídides, de que fez uma tradução
(publicada. em 1629). Mas a formação de

97

Hobbes foi devida sobretudo aos contactos com o ambiente cultural


europeu que ele estabeleceu durante -as suas viagens e estadias no
continente. Estas viagens foram-lhe proporcionadas primeiro pelas
suas tarefas de tutor de um jovem conde (Wilham Cavendish) e do
filho deste, e em seguida pelos acontecimentos políticos que
tornaram por algum tempo, insegura a sua permanência na
Inglaterra. Em 1640 fazia circular entre os amigos Os elementos de
legislação natural e política nos quais sustentava a teoria da
indivisibilidade do poder soberano sem direito divino. Temendo as
reacções negativas ao seu escrito, deixou a Inglaterra e -instalou-
se em Paris, onde permaneceu até 1651. Aí entrou em contacto
com O padre- Marsenne através do qual fez chegar às mãos -de
Descartes as suas Objecções às Meditações. Já nas viagens
precedentes se apaixonara pela geometria de Eucliides, nas quais
viia o próprio modelo da ciência e tornara-se em 1636 amigo de
Galileu. Em Paris tornou-se amigo de Gassendi e frequentou os
ambientes libertinos franceses.

Em Paris, em 1642, publícou o De cive, que deveria ser a última


parte de um sistema filosófiCo que começara a elaborar em 1637.
Em 1651, após a publicação do Leviatão, ou seja a matéria, a forma e
o poder de um estado eclesiástico e civil regressou a Inglaterra,
onde publicou em 1655 o Deo Corpore e em 1658 o De homine, as
outras duas obras que constituem, como o De cive, a base teórica
do seu sistema. Os últimos anos da sua vida foram ocupados com
várias polémicas, bastante infrutuosas, entre as quais uma de
natureza teológica com o

98

bispo Bramhall e outras sobre argumentos matemáticos e


científicos, a que Hobbes era levado por uma avaliação optimista da
sua competência. Morreu em
Londres, a 4 de Dezembro de 1679, aos 91 anos.

§ 403. HOBBES: A TAREFA DA FILOSOFIA

A filosofia de Hobbes, é declaradamente, inspirada num intento


prático-político. O seu escopo é o de assentar os fundamentos de
uma comunidade ordenada e pacífica e de um governo, esclarecido e

autónomo. No capítulo 46 do Leviatão, intitulado "Sobre a


obscuridade que deriva da vã 0osofla e

das tradições. fabulosas", exige Hobbes que o filósofo civil assuma


como seu ponto de partida uma filosofia racional, em vez da velha
metafísica "fabulosa", mostrando as consequências perigosas que
tal metafísica, com a sua doutrina das "essências absolutas" ou
"formas substanciais", tem no terreno político, bem como no
domínio científico. Tal metafísica, levando a considerar a virtude e,
daí, também a obediência política como "infusa no homem" ou nele
"ins@2Íada" pelo céu, torna problemá@tica a obediência à lei e
coloca os padres, que administram essa infusão, acima do
magistrado civil. Além disso, tende a estender a **f,@rqa da lei que
é apenas "uma regra de acção" aos pensamentos e às consciências
dos homens e a inquirir sobre as suas intenções, não obstante a
conformidade das suas pa@lavras e das suas acções às leis. Ora,
"forçar alguém (a acusar-se a si mesmo de más opiniões quando as
suas acções não são

99

proibidas pela lei; é contrário à lei da natureza." E, além disso,


querer impôr a povos diversos, além da lei civil, itambém uma
determinada lei reliigiosa significa "eliminar uma liberdade legítima,
o que é o contrário, dadoutrina do governo civil". Por outros termos,
a metafísica tradicional é, segundo Hobbes, contrária à liberdade
de consciência e de tolerância, que são as verdadeiras condições da
comunidade civiil.

O filósofo que indaga os fundamentos desta comunidade não pode


por isso deixar de partir de uma filosofia que se funde únicamente
na razão: quer dizer, que exclua os erros, a revelação sobrenatural,
a autoridade dos livros e se atenha únicamente à natureza.

Deste ponto de vista, define Hobbes a filosofia como "o


conhecimento adquiriido com o raciocínio, que vai do modo como uma
coisa se gera às propriedades da coisa ou destas propriedades a
qualquer possível modo comoa coisa se gere, e que tem por fim
produzir, nos limites em que a matéria e a
força o permitam, efeitos que sejam requeridos pela vida humana".
(Lev., 46; De corp., 1, § 2).

Uma filosofia assim entendida coincide necessariamente com a


ciência; e uma ciência como a entendia Bacon, isto é, que vise a
acrescer o poder do homem sobre a natureza (De cive, 1, 5, 6). Tal
como Bacon, porém, Hobbes não nega que haja uma Philosophia
prima "da qual todas as outras filosofias devem depender", mas
atribui a esta filosofia a tarefa de "limitar os significados daqueles
apelativos ou nomes que são, os mais universais de todos,
Emitações. que servem para evitar ambiguidades e equívocos nos
raciocínios e que são comum100

mente chamadas definições, tais como: as definições do corpo, do


tempo, do lugar, da matéria, da forma, da essência do sujeito, da
substância, do acidente, da força, do acto, do finito, do infinito, da
quantidade da qualidade, do movimento, da acção, da paixão e de
todas as outras coisas necessárias para explicar as concepções do
homem que concernem à natureza e à geração, dos corpos" (Lev.,
46). Assim, a filosofia prima não tem por objecto um mundo de
"formas" ou de "essênciias" que estejam para lá das aparências
sensíveis ou corpôreas das coisas, mas tem apenas como escopo
definir os termos que podem ser utílizados na descrição das
aparências sensíveis, para evitar a ambiguidade ou os erros do
raciocínio, e não faz mais do que fornecer o aparelho conceptual da
.investigação natural.

Tal investigação é, por outro lado, a única possível que se apresenta


à razão porquanto é a única que gira em torno da realidade acessível
ao homem. Só os corpos existem, segundo Hobbes: todo o
conhecimento é por isso conhecimento dos corpos. A ~física
materialista serve a Hobbes para reduzir estatuto ao homem, à
obra do homem na natureza, o domínio do conhecimento humano.

§ 404. HOBBES: A NATUREZA DA RAZÃO

O ponto focal da filosofia de Hobbes é o seu


conceito de razão. Para Hobbes, como para Descartes, a razão é o
atributo próprio do homem; mas para Hobbes, diversamente de
Descartes, a razão não é

101
a manifestação de uma substância que só o homem possua mas uma
função que, a níveis inferiores, também os animais possuem. Esta
função é substancialmente a da previsão. Também os animais
participam desta função que lhes permite regular a sua conduta em
vista do desejo ou desígnio; também os animais são, portanto,
capazes do que Hobbes chama "experiência" ou "prudência", isto, é,
de uma certa ",previsão do futuro mediante a experiência do
passado". Mas no homem esta possibilidade de previsão, que é ao
mesmo tempo e na mesma medida possibilidade de contrôle dos
acontecimentos futuros, é de grau muito superior. De facto, os
homens não são apenas capazes de procurar as causas ou os meios
que podem vir a produzir no futuro efeito calculado. coisa que
também os animais podem fazer - mas são, outrossim, capazes de
procurar todos os possíveis efeitos que podem ser produzidos por
uma coisa qualquer; ou, por outros termos, são capazes de prever e
planear a longo prazo a sua conduta e a consecução dos seus fins
(Lev., 3). Esta capacidade só se encontra nos homens.

Mas tal capacidade requer a linguagem, que é o uso arbitrário,ou


convencional dos sinais. Um sinal é, em geral, "o antecedente
evidente doconsequente,ou, ao invés, o consequente do antecedente
quando consequências semelhantes hajam sido observadas antes"
(lb., 3). Enquanto tais, os sinaiS são naturais e não constituem
linguagem: são, antes meios com os quais o animal (e o próprio homm
enquanto animal) induz o seu semelhante a um certo
comportamento, por exemplo à pastagem ou à fuga, ao

102

canto, ao amor, etc.. Os sinais só se tornam palavras quando são


instituídos arbitràriamente para significar os conceitos das coisas
que se pensam. Neste sentido, a linguagem é definida por Hobbes
como "um conjunto de vocábulos estabelecidos arbiitràriament@-,
para significar uma série de conceitos das coisas que se pensam." E
neste sentido identifica-se a linguagem com a função do
entendimento e pode dizer-se que os outros animais carecem de
entendimento. "o entendimento, diz Hobbes, é ~a espécie de
imaginação que nasce do significado das palavras instituído
arbitrariamente" (De hom., 10, § 1). A faculdade racional do homem
identifica-se com a possibilidade de criar sinais artificiais, isto é,
as palavras. Um homem que, fosse privado de linguagem podia,
segundo, Hobbes, se posto. diante da figura de um triângulo, dar-se
conta de que os ângulos internos são iguais a dois rectos; posto,
porém, diante de outro triângülo, deveria começar de novo porque o
seu raciocínio, não passaria do caso particular. Ao invés, a criação
da palavra "triângulo" permite, graças ao seu significado, a
generalização de que "todos os triângulos ,têm os ângulos internos
iguais a dois rectos", possibilitando assim passar daquilo que é
verdadeiro aqui e agora para aquilo que é verdadeiro em todos os
tempos e lugares (Lev., 4). Neste sentido,, afirma Hobbes que "a
faculddade de raciocinar é uma consequência do uso da linguagem"
(Ib., 46); e a definição que os filósofos dão hoje do homem como
animal simbólico, exprime bem o ponto de vista de Hobbes.

103

Mas uma faculdade de raciocinar que consista essencialmente no


uso de sinais artificiais ou convencionais, item caracteres
particulares A sua actividade específica é o cálculo. Diz Hobbes:
"Por raciocínio (raciocinatio) entendo o cálculo. O cálculo consiste
em reunir várias coisas para fazer delas uma
soma ou em subtrair uma coisa da outra para conhecer o resto.
Raciocinar é a mesma coisa que adicionar e subtrair; e se se
quisesse acrescentar a estas operações também as de multiplicar e
dividi, eu não estaria de acordo porque a multiplicação é a mesma
coisa que a adição de partes iguais e a divisão é a mesma coisa que a
subtracção de partes iguais tantas vezes quanto possível. Todo o
processo do raciocínio se reduz, portanto, a duas operações
mentais: a adição e a subtracção." (De corp., 1, § 2).

Tais operações, no entanto, não concernem ,somente aos números.


"Do mesmo modo que os aritméticos ensinam a somar e a subtrair
números, assim os geómetras ensinam a somar e subtrair linhas,
figuras sólidas superficiais, ângulos, proporções, tempos,
velocidade, força, ete., os lógicos ensinam a
mesma coisa a propósito das consequências das palavras juntando
dois nomes para fazer a afirmação e duas afirmações para fazer um
silogismo e muitos silogismos para fazer umademonstração, e, da
soma ou conclusão de um silogismo, subtraem uma proposição para
encontrarem outra. Os escritores políticos adicionam pactos para
encontrar os deveres dos homens, e os advogados leis e factos para
encontrar o lícito e o ilícito nas acções dos particulares. Em suma,
em todos os campos em que há lugar para a

104

adição ca subtracção, há também lugar para a razão; e onde tais


operações não encontrem lugar, a razão nada tem a fazer" (Lev., 5).

Neste ponto de vista, a única forma lícita de que a razão, e


portanto a filosofia, pode fazer uso
é a que consiste na adição ou subtracção dos nomes; isto é, a
proposição ou enunciado. Hobbes define aproposição como o
"discurso que consta de dois nomes discurso com o qual
aquele que fala entende que o segundo nome é nome da mesma coisa
de que o primeiro énome"; de sorte que, quando se
diz "o homem é animal" entende-se que o nome "animal" pertence à
mesma coisa a que pertence o nome "homem" ou, o que é o mesmo,
que o nome "homem" está contido no segundo nome "animal" (De
corp., 3, § 2). Esta teoria da proposição é substancialmente a da
lógica nominalística e, em particulár, de Occam: os dois nomes,
ligados, na proposição, consistem na mesma coisa. Uma conexão
entre iestas três proposições constitui o silogismo; e neste campo a
propensão nominalística da lógica, de Hobbes revela-se na redução
do silogismo categórico ao hipotético. Assim, o silogismo categórico
"Todo o homem é animal; todo o animal é corpo; todo o homem é
corpo" teriam a mesma força que o silogismo hipotético "Se al-guma
coisa é homem, é -também animal; se alguma coisa é animal, é
também corpo; se alguma coisa é homem, é também corpo". (Ib.,
4, § 13).

Entendida como faculdade de calcular, a razão não é nem infalível


nem inata;. é uma capacidade que se obtém com o exercício e que
consiste em
105

primeiro lugar em -impor os nomes e em segundo lugar em possuir


um método para se passar dosconhecimentos, que são prezísamente
os nomes às asserções obtidas; mediante a ligação de uns com os
outros, aos silogismos, que são as conexões de uma asserção com
outra, até ao conhecimento de todas as consequências dosnomes
quepertencem ao sujeito em causa: conhecimento a que os homens
chamam ciência (Lev., 5). A ciência é, portanto, segundo Hobbes,
não já conhecimentos dos factos que são, ao invés, objecto dos
sentidos e da memória, mas conhecimento das consequências e da
dependência causal de um facto em relação ao outro. O
conhecimento desta dependência, com base no princípio de que
causas semelhantes produzem efeitos semelhantes, dá aos homens
a possibilidade de prever os
factos e de tirarem proveito de talprevisão.
§ 405. HOBBES: A CIÊNCIA

Ciência e filosofia coincidem perfeitamente, segundo Hobbes, e


coincidem ~bem naquela parte da filosofia. que se chama "filosofia
prima", filosofia que considera os conceitos fundamentais comuns a
todas as ciências. E o único objecto da ciência e da filosofia é -a
geração (generatio),isto, é o processo causal mediante o quall as
coisas se originam. Hobbes ínterpreta o conceito tradicional da
ciência como sendo o conhecimento das causas em sentido
restritivo, isto é como sendo o conhecimento das causas geradoras:
das causas que podem produzir a coisa considerada.

106

Dado este sentido restrito, deve excluir-se do âmbito da ciência (e


da filosofia) a teologia, já que não se pode decerto aduzir a causa
geradora de Deus; deve excluir-se também dela a doutrina dos
anjos e, em geral, das coisas incorpóreas, em que não há geração.
Estas exclusões são fundadas no princípio de que "onde não há
geração, não há também filosofia" (De corp. 1, § 8). Por um outro
motivo fundamental, isto é, porque não têm carácter raciocinativo,
são excluídas da ciência: a história, quer seja natural quer política,
a qual, por muito útil que seja a filosofia, é um conhecimento que
depende da experiência ou da autoridade, não do raciocínio; toda a
doutrina que nasce de uma inspiração ou revelação divina, porque
não é adquirida com a razão, a doutrina do culto divino, que depende
da autoridade da igreja e pertence à fé e não à ciência; e, enfim, as
doutrinas falsas ou mal fundamentadas, como a astrologia e, em
geral, as actividades diviinatórias. (lb., 1, § 8).

A concatenação das proposições no discurso científico exprime,


segundo Hobbes, a conexão, causal mediante a qual por uma causa
determinada se gera um efeito determinado. Hobbes chama a este
tipo de demonstrações, demonstrações a priori e sustenta que elas
são possíveis para os homens apenas em
relação àqueles objectos cuja geração depende do livre arbítrio dos
próprios homens (De hom., 10, § 4). São demonstráveis neste
sentido os teoremas da geometria, que concernem à quantidade.
"De facto, diz Hobbes, as causas das propriedades das simples
figuras geométricas são inerentes àquelas linhas que nós próprios
traçamos, e a génese das
107

próprias figuras depende apenas do nosso arbítrio; de modo que,


para conhecer a propriedade de uma figura, temos apenas de
considerar tudo o que concorre para a construção que fazemos ao
desenhá-la. Precisamente porque somos nós próprios que criamos as
figuras, há uma geometria, e esta é demonstrável" (lb., 10, § 5).

São além disso, susceptíveis de demonstração a priori a política e a


ética, isto é, a ciência do justo * do Injusto, ido equitativo e do
unívoco; de facto, os princípios dela, os conceitos do justo e do
equitativo e dos seus ramos, são-nos conhecidos porque nós
próprios criamos as causas da justiça, ou seja, as leis e as
convenções (1b.) Em todos esses casos podemos formular ou
aceitamos por convenção a definição da causa geradora, dado que
esta causa geradora é uma operação realizada por nós próprios; e
desta equação posta como princípio deduzimos os efeitos gerados
pela causa. Mas para as coisas naturais, que são produzidas, por
Deus e não por nós, semelhantes demonstrações a priori não são,
possíveis. São possíveis apenas demonstrações a posteriori que
ascendem dos efeitos, Isto é, dos fenómenos às causas que os
possam ter gerado. As nossas conclusões neste caso não são
necessárias mas apenas prováveis, porque um
mesmo efeito pode ter sido produzido de diversos modos (De corp.,
25 § 1). A física. é, segundo Hobbes, ciência demonstrativa no
verdadeiro sentido do termo. Ela tem, todavia, necessidade da
matemática, porquanto o seu conceito fundamental é o de
movimento, e o movimento não se pode
108

entender sem o conceito de quantidade que é próprio da


matemática. E enquanto se vale da matemática torna-se susceptível
de demonstrações a priori e pode chamar-se uma matemática mista,
em comparação com a matemática pura, que se ocupa da quantidade
em abstracto e não tem necessidade de considerar outras
qualidades. As partes da física como a astronomia, a música,
diversificam-se, pelo contrário, entre si segundo a variedade das
espécies e das partes do universo (De hom., 10, § 5).

§ 406. HOBBES: O CORPO

Como se viu, a tese fundamental de Hobbes é a de que a razão, pode


exercer-se apenas relativamente a objectos geráveis porque a sua
função é a
de determinar as causas geradoras dos objectos. A consequência
(imediata, desta tese é que, quando não se trata deobjectos gerais,
a razão não tem a possibilidade de exercer-se e, por consequência,
nesse caso não há nem ciência nem filosofia. Ora, os únicos
objectos geráveis são os corpos, ou seja, os objectos extensos ou
materiais, sendo por isso que, para Hobbes, os corpos são os únicos
objectos possíveis da razão,

Nesta última tese consiste o materialismo de Hobbes. Este


materialismo é mais um empenho ontológico do que uma doutrina de
natureza metafísica. Hobbes não afirma que fora da matéria não
haja nada e que a causalidade da matéria seja a única possível;
reconhece de facto a causalidade de Deus,
109

embora negando (como veremos) que Deus seja o


Mundo ou a alma do mundo; mas sustenta que só à matéria se
estendem os poderes da -razão humana e que, portanto, o que não é
matéria cai fora das possibilidades de investigação da filosofia e da
ciência.

Deste ponto de vista, o corpo é o único sujeito (subjectum) de que


se pode falar e de que se podem considerar as propriedades e
investigar as géneses. Hobbes sustenta em absoluto uma das teses
fundamentais dos antigos Estóicos: que só o corpo existe porque só
o corpo pode agir ou sofrer uma a~ ,(D,og. L, LII, 56). A palavra
<incorpóreo", afirma Hobbes, é destituída de significado, e mesmo
quando referida a Deus, nada exprime a não ser a fiel intenção de o
honrar com um atributo honorífico que dele afaste a grosseria dos
corpos visíveis. (Lev., 12). Na polémica com o bispo Bramhall,
Hobbes chega a dizer que asseverar que Deus é incorpóreo
equivale, a dizer que de facto não existe (Works, IV, p. 305,).

Por isso, não é certamente **meo,opórco o espírito ou o intelecto


do homem. A este respeito é significativa a crítica que Hobbes faz
ao cogito ergo sum
cartesiano. Segundo Hobbes, do "eu penso" segue-se decerto ",logo
exiisto" porque o que pensa não pode ser nada. Mas quando
Descartes acrescenta que o que pensa é "um espírI@to -uma alma,
um intelecto, uma razão" é como se dissesse, "eu estou passeando,
logo sou um passeante.Por outros termos, Descartes identifica a
coisa inteligente com a intelecção que é o acto dela; enquanto que,
segundo Hobbes, " todos

os filósofos distinguem o sujeito das suas faculdades e dos seus


actos, isto é das suas propriedades e das suas essências; já que
outra coisa é aquilo que é e
outra coisa é a sua essência. (Troisièmes objections,
11). Se se faz esta objecção, pode muito bem ser
que a coisa que pensa, isto é, o sujeito do espírito, da razão ou do
intellecto, seja alguma coisa de corpóreo; e deve ser alguma coisa
de corpóreo, porque "todos os actos parecem poder ser entendidos
apenas como uma razão corpórea ou como uma
razão de matériia" (lb., 11). O que quer dizer que todos os actos e
todas as essências podem ser expl-icados racionalmente, segundo
Hobbes, apenas mediante um processo genético que tem início num
corpo. Ao corpo, portanto, refere Hobbes todas as categorias
ontológicas. Enquanto é extenso, o corpo chama-se corpo; enquanto
é independente do nosso pensamento chama-se subsistente por si;
enquanto existe fora de nós chama-se existente; enfim, enquanto
parece estar por sob o espaço imagimário, que a razão concebe
chama-se suposto ou sujeito. Por-tanto, o corpo pode definir-se
como sendo "tudo o que não dependendo do nosso pensamento,
coincide com alguma parte do espaço". (De corp., 8, § 1). Por outro
lado, o acidente é "a faculdade do corpo pela qual ele imprime em
nós o seu conceito," (Ib., 8, § 2). E o principal acidemte do corpo é
o movimento com que se podem explicar todas as gerações dos
corpos.

Sendo assim, todas as partes da filosofia têm por objecto corpos e


a diMsão a filosofia modela-se
111

pela DIVISÃO dos corpos. Como os corpos podem ser naturais e


artificiais, A filosofia será ou filosofia natural que tem por objecto
os corpos naturais, ou
filosofia civil que tem por objecto os corpos artificiais, isto é as
sociedades. humanas. E como para conhecer as propriedades das
sociedades humanas é necessário conhecer preliminarmente as
mentes, as emoções e os costumes dos homens, a filosofia civil
dividiir-se-á em duas partes, a primeira das quais, a ética, tratará
desses argumentos e a segunda, -a política, tratará dos deveres
civis (Ib., 1. § 9).

Quanto à teologia, Hobbes exclui-a, (como se viu) do número das


disciplinasracionais. O que não quer dizer, não obstante, que
Deus seja um puro objecto de fé. Existe um trâmite puramente
racional através do qual Deus dá a conhecer ao homem a sua lei e
este trâmite é o "ditame da recta razão" (De cive, 15, § .3). Mas
por este ditame pode conhecer-se apenas que Deus existe, que não
pode ser identificado com o mundo oucom aalma do mundo e quenão
só governa o universo físico como também o género humano. Pode-
se conhecer também que não se lhe devem atribuir atributos finitos
ou que, de qualquer modo, lhe limitem a perfeição, mas só atributos
ou nomes negativos (como infinito, eterno, incompreensível, etc.) ou
indefinidos (como justo e forte, etc.), com os quais não se significa.
o que ele é, mas apenas se exprime a admiração e obediência para
com ele (lb., 15, § 14). Quanto aio resto, a noção de Deus pertence
ao domínio da fé; e ia fé faz parte da lei civil. "A religião, diz
Hobbes, não é filosofia, mias

112

HOBBES

sim lei em todas as comunidades: por conseguinte, não é para


discutir mas para cumprir (De hom.,
14, § 4).

§ 407. HOBBES: OS CORPOS NATURAIS


As partes da filosofia natural que são susceptíveis de
demonstração a priori são, segundo, Hobbes, as que trajuam dos
conceitos da lógica, os atributos comuns a todos os corpos e os
atributos geométricos dos próprios corpos (movimento e grandeza),
isto é, respectivamente a lógica, a filosofia prima e a geometria. A
física pelo contrário, segundo Hobbes, é susceptível apenas de
demonstrações a posteriori: por isso assume como ponto de partida
os fenómenos dos quais procura ascender às causas possíveis.

Para isolar os objectos da filosofia, prima, isto é, os atributos


fundamentais comuns a todos os corpos naturais, propõe Hobbes
**chminaride~te do universo todas as coisas percebidas e
considerar tão-só as imagens mentais que podem também ser
consideradas como as espécies das coisas **exwmas. Se se
efectuar esta operação fictícia, o primeiro, conceito que se
encontra é o de espaço que está ligado à própria noção gera de
alguma coisa que existe fora da alma e por isso se pode definir
como ",a imagem (fantasma) de uma coisa existente enquanto
existente" (De corp., 7, § 2). O segundo conceito é o

do tempo que Hobbes define nos mesmos termos que Aristóteles (§


79). Nem o espaço nem o tempo nem o próprio mundo podem dizer-
se: infinitos. Também neste ponto retoma as correspondentes
doutrinas

113

de Aristóteles. E bem pouco também se distinguem da tradição


aristotélica-escolástica, ou pelo menos, das alternativas que tal
tradição apresenta, o uso que Hobbes faz dos conceitos de causa e
de efeito, de potência e de facto, identidade e diversidade,
analogia, figura, das noções de recto, de curvo e de ângulo (Ib., 8-
14). Pode-se sublinhar todavia a interpretação megárica que Hobbes
nos dá do conceito de potência, afirmando, com Diodoco Crono, que
aquilo que não se verifica não é possível. "É impossível o acto para
cuja produção nunca haverá uma potência plena; porquanto, sendo
plena a potência para a qual concorre tudo o que se requere para a
produção do acto, se a potência nunca for plena fal@tará sempre
alguma coisa sem a qual o acto não se pode produzir; por isso, nunca
poderá ser produzido e será um acto impossível (Ib., 10, § 4). Desta
interpretação da potência deriva uma tese fundamental: a
necessidade de tudo o que acontece, "O acto que é impossível que
não seja é um acto necessário; portanto, qualquer acto futuro é
necessàriamente futuro, já que não deve ser impossível que seja
futuro e porque, COMO, se demonstrou, todo o acto possível se
produz algumas vezes". De modo que a proposição "o futuro é
futuro", não é menos necessária do que a proposição o homem é
homem" (lb., 10 § 5).

A teoria do movimento e da grandeza, que constitui a terceira


parte de De corpore, e que Hobbes chama "ge~rja", mas que é uma
espécie de mecânica geral, reproduz, com variações insignificantes,
concepções comuns na cultura científica do ,tempo. E a quarta parte
do mesmo escrito é a física
114
propriamente dita, em que Hobbes estuda as sensações e o
movimento dos animais, a ordenação astronóníca, ia luz, o calor, as
cores, os meteoros, o
som, os corpos e, por último, a gravidade, que, segundo Hobbes, é a
tendência que os corpos pesados têm para se mover para o centro
da terra, tendência que ele atribui não, a um "apetite" dos corpos
mas a uma certa força exercida pela própria terra (Ib., 30, § 2).

§ 408. HOBBES: O HOMEM

Ao estudar o homem, vale-se Hobbes das mesmas categorias que


adoptou ao estudar as outras coisasnaturais, principalmente as de
corpo e de movimento. A sensação não é senão a imagem aparente
do objecto corpóreo, que a produz nos órgãos dos sentidos. Quer o
objecto quer a sensação não são mais que movimentos: movimentos
são as qualidades sensíveis que existem no objecto, assim como as
sensações que tais qualidades produzem no homem. A sensação é,
portanto, um crescente entre dois movimentos: daquele que vai da
coisa ao órgão do sentido e daquele que vai do orgão da coisa ao
orgão do sentido, da coisa, que constitui a reacção ao primeiro. (De
corp., 25, § 2). Movimento é também a imaginação que conserva as
imagens dos sentidos e é, por -isso, uma espécie de inércia dos
movimentos que se originam no exteriior com a sensação (Lev., 2).
Quando no homem, ou em qualquer ~a criatura dotada de
imaginação, a actividade desta é estimulada por palavras ou por
outros sinais,
115

tem-se o intelecto que é por isso comum ao homem * a todos os


animais ca@pazes (como, por exemplo, o cão) de reagir a chamados
ou a censuras. Todavia, tem o homem a peculiaridade de um
intelecto, capaz de formar séries ou conexões, , dando -lugar a
afirmações ou negações e a outras fórmulas linguísticas, em que o
cálculo, ou a razão, consiste. (Ib., 2). Deste peculiiar intelecto já se
-vi~ os caracteres.

Tal como as sensações, as emoções originam-se dos movimentos que


provêm dos objectos externos. Enquanto que a sensação consiste na
reacção do orgão à acção do objecto, reacção que -se dirige ao
exterior, a emoção consiste numa reacção análoga que, pelo
contrário, se dirige, ao interior do corpo que a experimenta (De
hom., 11, § 1). Por conseguinte, a força de que todas as emoções
dependem é o apetite @(ou instinto) que leva a procurar o prazer e
a fugir à dor. Bem e mal são os nomes que se dão, respectivamente,
aos objectos da apetência e da aversão. Chama-se bem aquilo que se
deseja, mal aquilo que se odeia; e não se deseja. qualquer coisa por
ser um bem nem se a desama por ser um mal, mas pelo contrário,
chama-se bem a qualquer cosia que se deseja e mal à que se odeia,
O bem e o mal são coisas, relativas às pessoas, aos lugares, aos
tempos. "A natureza do bem e do mal segue a syntucchia [ =
circunstância]" (Ib., 11, § 4), diz Hobbes.

A apetência e a aversão não dependem do homem, pois são


determinadas directamente pelos objectos externos. A fome, a
sede, os desejos em geral não são voluntários. Quem deseja
qualquer

116

coisa pode decidir agir livremente mas pode deixar de desejar


aquilo que deseja (lb. 11, § 2). A própria vontade não passa de um
desejo e, como todos os desejos, é necessariamente determinada.
pelas coisas. Quando na mente do homem se alternam, desejos
diversos e opostos, esperanças e temores, e se apresentam as
consequências boas ou más de uma acção possível, tem-se aquele
estado que se chama deliberação: e o termo de deliberação, isto é,
"o apetite ou aversão última a que imediatamente se segue a

acção ou omissão da acção" é o que se chama vontade (Lev., 6). A


vontade põe termo temporariamente às dúvidas, às oscilações, às
incertezas do homem, mas estas renascem logo porque o homem não
pode alcançar um estado definitivo de tranquilidade ou de quietude.
Não existe, por isso, segundo Hobbes, um sumo bem ou um fim
último na presente vida do homem. Um fim último geria aquele que
depois do qual nada mais deveria ser desejado. Mas uma vez que o
~o se acompanha necessariamente da sensibilidade, o, homem que
tivesse alcançado o fim último não só não desejaria mais nada como
nem sequer s~ia, púT congegwnte não viveria verdadeiramente. "0
máximo dos bens, diz Hobbes, é progredir sem impedimento para
novos fins sempre. O próprio gozo daquilo que se desejou é um
desejo, isto é, o movimento da alma que goza. através das partes da
coisa de que goza. A ~ é um movimento perpétuo, que, quando não
pode progredir em linha recta, se transforma em movimento
circular" (De hom., 11, § 15).

117

Com estas últimas análises, pretendeu Hobbes -2ustrar o


mecanismo da natureza humana. Nesse mecan~0, como se 6sse, não,
há lugar para a liberdade. A liberdade é entendida por Hobbes,
como <Q ausência de todos os impedimentos da acção que não
seriam contidos na natureza. e na intrínseca qualidade do agente".
Tal definição reduz a liberdade à liberdade de acção que existe
quando a vontade não é impedida nas suas manifestações
exteriores, mas nega a liberdade do querer. Quando um homem tem
apetite ou vontade de alguma coisa de que no instante anterior não
tinha nenhum desejo, a causa da sua vontade não é a própria
vontade, mas algo de diverso, que não depende Me. A própria
vontade é, portanto, causada necessariamente por outras coisas:
enquanto consequência de causais

necessárias, as acções humanas são necessárias (Works, IV, p.


264).Hobbes, que defendeu o determinismo na sua polémica com o
bispo **BrambaM, insiste no facto de que a vontade é
intrinsecamente requerida pelas causas e motivos que lhe são
inerentes, motivos que, em última análise, se devem à totalidade da
natureza, visto que todos; os actos do e~ humano **(lineltiWa a
deliberação e a von-tade) são movimentos conexos com os
movimentos. dos objectos externos. "Dificilmente há alguma acção
que, por muito que pareça casual, não seja produzida por itudo o que
existe na natureza." (Ib., p. 267).
Sobre o mecanismo da natureza humana pretende Hobbes fundar os
princípios da sociedade civil. Só inserindo-se neste mecanismo é de
facto possível conduzir o homem a uma consciência onesta..

118

Hobbes, propõe-se a construção de uma geometria da política, isto


é, de uma ciência da sociedade humana que alcance a mesma
objectividade e necessidade que a g~ ~.. "Se, diiz ele, se
conheceissem as regras das ~ts humanas com certeza igual à
certeza com. que se conhecem as regras das grandezas em
geornetiria, a ambição e a avidez (cuja força é baseada sobre as
falsas opiniões que o viigo tem dos conceitos de idw~ e de errado)
seriam. impotentes e a humanidade gozaria um período de paz
constante que ha~ de pare= que nunca mais se

combateria a não ser por razões t=llor&tis, ou seja, paira a


mu@@tpEcação dos homens" (De cive dedicatória). Hobbes
pretende itier reunido as noções indispensáveis para a construção
de uma geometria política e por isso prossegue com confiança nessa
construção.

§ 409. HOBBES: O ESTADO DE GUERRA E O DIREITO NATURAL

São dois, segundo Hobbes "os postulados certíssimos da natureza


humana dos quais procede toda a ciência política: 1 -o desejo
natural (cupiditas naturalis) pelo qual cada um pretende gozar
exclusivamente dos bens comuns; 2 - a razão natural, (ratio
naturalis) pela qual todos fogem da morte violenta como do pior dos
males naturais (De cive, dedicatória).

O primeiro destes postulados exclui que o homem seja por natureza


um "animal político". Hobbes não nega, a este respeito, que os
homens tenham necessi119

dade uns dos outros ("Assim como as crianças têm necessidade da


ajuda de outrem para viverem, assim os adultos precisam dos
outros para viver bem", diz ele); mas nega que os homens tenham
por natureza um instinto que os leve à benevolência e à concórdia
recíprocas. O objectivo polémico da sua

crítica da velha definição do homem como animal político é,


provàvelmente, a interpretação que dela havia dado Grócio: segundo
este, mesmo que os homens não trouxessem nenhuma utilidade ao
viver comum deveriam igualmente aceitá-lo por uma exigência @a
própria razão natural (§ 348). Por outros termos, o que Hobbes
nega é a exigência de um

amor natural do homem pelo seu semelhante. "Se os homens chegam


a acordo para comerciar, diz ele, cada um interessa-se não pelo
sócio mas pelos seus próprios bens. Se, por dever de oficio, nasce

entre elos uma amizade formal, que é mais temor recíproco do que
amor, talvez nasça uma facção, nunca a benevolência. Se se
associam por prazer ou a fim de se divertirem, cada um compraz-se
sobretudo naquilo que excita o riso para se sentir superior (como é
próprio da natureza do ridículo) em

relação à fealdade ou doença de outrem". Portanto, não é a


benevolência, segundo Hobbes, a origem das maiores e mais
duradouras sociedades, mas apenas o temor recíproco.

A causa deste temor é, em primeiro lugar, a igualdade natural entre


os homens pela qual todos desejam a mesma coisa, isto é, o uso
exclusivo dos bens comuns. Em segundo lugar, é a vontade natural
de se prejudicarem mutuamente, ou mesmo o anta120

gonismo, que deriva do contraste das opiniões e da insuficiência do


bem. O direito de todos a tudo, que é inerente à igualdade natural,
e a igualmente natural vontade de se prejudicarem mutuamente
fazem com que o estado natural seja um estado de guerra
incessante de todos contra todos. Neste estado, nada há de justo:
a noção do direito e do errado, da justiça e da injustiça, nasce onde
há uma lei e a lei nasce onde há um poder comum: onde não há nem
lei nem poder falta a possibilidade da distinção entre o justo e o
injusto. Cada um tem direito a tudo, incluindo a vida dos outros (Ib.,
1, § 14, Lev., 13). Este "direito" não tem, obviamente, nada a ver
com a lei natural, que, como veremos, consiste antes na eliminação
ou, pelo menos, na

radical limitação daquele. É antes um instinto natural insuprimível,


pois que, nota Hobbes, "cada um

é levado a desejar aquilo que para si é um bem e a fugir do que para


si é o maior de todos os males naturais, que é a morte; e isto com
uma necessidade por natureza não menor do que aquda com

que a pedra é impelida para baixo" (De cive, 1, § 7). Mas este
instinto natural não é, dadas as circunstâncias, contrário à razão,
porque não é contrário à razão tudo fazer para sobreviver. E já que
o direito em geral é precisamente "a liberdade que cada um tem de
usar das faculdades naturais segundo a r~ razão" (lb., 1, § 7), assim
o instinto que leva cada homem a fazer tudo o que está em

seu poder para se defender e prevalecer sobre os

outros, pode bem chamar-se um direito, enquanto o homem,


obedecendo ainda à razão, não haja
121

encontrado outro instrumento mais eficaz e mais cómodo para a


própria sobrevivência. Todavia, é precisamente do exercício
inevitável deste direito que resulta a condição de contínua guerra
de todos contra todos. Esta condição (que por isso não deriva de
uma malvadez inata nos homens) não pode todavia realizar-se e
estabilizar-se de modo total porque coincidiria Obviamente com a
destruição total do género humano. Disto se podem encontrar
exemplos parciais em algumas sociedades, como se podem encontrar
confirmações do temor que o homem tem dos outros homens em
certos comportamentos habituais ou quotidianos como o de se
armar quando viaja em região pouco conhecida ou o de fechar a
porta da casa a cadeado mesmo quando está protegido pela lei e
pelos agentes públicos. De qualquer modo, a simples ameaça
potencial do estado de guerra impede a actividade industrial ou
comercial, a agricultura, a navegação, a construção de casas, e em
geral a arte e a ciência, e põe o homem ao nível de um animal
solitário embrutecido pelo temor e incapaz de dispor do seu tempo
(Lev., 13; De cive,
1, § 13). Se o homem fosse destituído de razão, a condição de
guerra total seria insuperável e o embrutecimento ou a destruição
da espécie humana seria o princípio e o fim da sua história. Mas a
razão humana é, como se viu, a capacidade de prever e de prover,
mediante um cálculo consciente, às necessidades e às exigências do
homem. É assim * razão natural que sugere ao homem a norma ou *
princípio geral de que decorrem as leis naturais do viver comum,
proibindo a cada homem fazer

122

o que causa a destruição da vida, ou lhe tira os meios de a evitar, e


deixar de fazer o que serve

para conservá-la melhor (Lev., 14). Este princípio é, portanto, o


fundamento da lei natural.

Como se vê, a lei natural de que fala Hobbes nada tem a ver com a
ordem divina e universal nos termos em que a conceberam os
Estóicos, os Romanos e toda a tradição medieval. Para Hobbes,
como para Grócio e para todo o subnaturalismo moderno, a lei
natural é um produto da razão humana. Mas a razão humana, que
para Grócio é ainda uma actividade especulativa ou teórica capaz de
determinar de modo absolutamente autónomo, isto é,
independentemente de todas as condições ou circunstâncias e da
própria natureza humana, o que é bem ou mal em si mesmo é, pelo
contrário, para Hobbes. uma actividade sujeita ou condicionada
pelas circunstâncias em que opera, uma calculadora capaz de prover
as circunstâncias futuras e de exercer as escolhas que sejam mais
convenientes em

tais condições. Assim, a "naturalidade" do direito significa, para


Hobbes como para a tradição do direito natural, a "racionalidade"
de tal direito. Mas esta racionalidade é estritamente correlativa do
significado que para Hobbes tem a "razão" como faculdade de
previsão e de escolhas oportunas.

Portanto, as normas fundamentais do direito natural destinam-se,


segundo Hobbes, a subtrair o homem ao jogo espontâneo e
autodestrutivo dos instintos e a impor-lho uma disciplina que lhe
proporcione pelo menos uma segurança relativa e a

123

possibilidade de se dedicar às actividades que tornam cómoda a sua


vida. Por conseguinte, a primeira norma é a seguinte: "Procurar
obter a paz enquanto se tem a esperança de obtê-la; e, quando não
se

pode obtê-la, procurar servir-se de todos os benefícios e vantagens


da guerra" (L£v., 14; De cive,
2, § 2). Desta lei fundamental derivam as outras, a primeira das
quais é esta: "O homem, espontaneamente, desde que os outros o
façam também e durante o tempo que achar necessário para a sua

paz e defesa, deve renunciar ao seu direito a tudo e contentar-se


em ter tanta liberdade relativamente aos outros quanta a que ele
próprio reconheça aos

outros relativamente a sã" (De cive, 2, § 3; L--V., 14). Esta segunda


lei não é, nota Hobbes, senão o próprio preceito evangélico: não
fazer aos outros aquilo que não queres que te façam a ti. Sa
significa o

abandono ou a transferência do direito ilimitado a tudo e por isso


permite sair do estado natural, isto é, da permanente guerra de
todos contra todos, e implica que os homens firmem entre si pactos
mediante os quais renunciem ao seu direito originário ou o
transfiram a pessoas determinadas. Mas, obviamente, os pactos,
para o serem, devem ser

mantidos: de modo que a segunda lei natural é precisamente a que


diz que "é necessário respeitar os pactos, isto é, observar a palavra
dada" (L£v., 15; De cive, 3, § 1).

A seguir Hobbes enuncia outras 18 leis naturais (que são ao todo


20), nomeadamente: 3 a, a que proíbe a ingratidão; 4.a, a que
prescreve o ser útil aos outros; 5.a , a que prescreve a
misericórdia,

124

6 a, a que limita as penas ao futuro; 7 a que condena as injúrias;


8.a, a que condena a soberba;
9-8, a que prescreve a moderação; 10.a , a que é contra a
parcialidade; 1 1..a , a que diz respeito às propriedades comuns;
12.a, a que trata das coisas * dividir à sorte; 13.a a que trata da
primogenitura * do direito do primeiro ocupante; 14 a a que diz
respeito à incolumidade dos medianeiros; 15.a a que concerne à
instítuição dos árbitros; 16.1,, a que prescreve que ninguém é juiz
da sua própria causa;
17.11, a que proibe aos árbitros aceitarem dádivas dos litigantes;
18.11, a que prescreve o recurso a testemunhas para a prova dos
factos; 19.a , a que proibe firmar pactos com o árbitro; 20
a, a que condena tudo o que impede o uso da razão (De cive, I11;
Lev., 15). Estas leis naturais são também leis morais e constituem,
segundo Hobbes, "a súmula da filosofia moral". São leis enquanto
prescrições da razão: são-no também como fórmulas expressas em
palavras, como as que se encontram nas Sagradas Escrituras, como
preceitos de vida promulgados por Deus.

§ 410. HOBBES: O ESTADO

O acto fundamental que marca a passagem do estado natural ao


estado civil é aquele que é efectuado em conformidade com a
segunda lei natural: isto é, a estipulação de um contrato mediante o
qual os homens renunciam ao direito ilimitado do estado natural e o
transferem a outros. Esta transferência é indispensável a fim de
que o contrato possa consti125

tuir uma defesa estável para todos. Só se cada homem submeter a


sua vontade a um único homem ou a uma única assembleia. e se
obrigar a não resistir ao indivíduo ou à assembleia a que se
submeteu, se obterá uma defesa estável da paz e dos pactos de
reciprocidade em que ela consiste. Desde que esta transferência é
efectuada, tem-se o estado ou sociedade civil, dito também pessoa
civil, porque, conglobando a vontade de todos, pode considerar-se
uma só pessoa. Pode dizer-se assim que o estado é "a única pessoa
por cuja vontade, em virtude dos pactos firmados reciprocamente
por muitos indivíduos, se deve regular a vontade de todos estes
indivíduos: daí que se possa dispor das forças e dos haveres dos
particulares para a paz e para a defesa comum" (De cive, 5, § 9).
Aquele que representa esta pessoa (que pode ser indivíduo ou
assembleia) é o soberano e tem poder soberano; todos os outros
são súbditos. "Isto, diz Hobbes, é a origem daquele grande Leviatão
ou, para usar de maior respeito, daquele Deus imortal ao qual
devemos paz e defesa: de modo que, pela autoridade que lhe é
conferida por todos os homens da comunidade, tem tanta força e
poder que pode disciplinar, com o terror, a vontade de todos, com
vista à paz interna e à ajuda recíproca contra os inimigos externos"
(Lev., 17).

A teoria hobbesiana do estado é uma característica típica do


absolutismo político. Hobbes, de facto, insiste em primeiro lugar na
irreversibilidade do pacto fundamental. Uma vez constituído o
Estado, os cidadãos não podem dissolvê-lo negando-lhe o seu

consenso: o direito do Estado nasce, com efeito,

126

dos pactos que os súbditos estabelecem entre si e com o Estado,


não de um pacto entre os súbditos e o Estado que poderia ser
revogado por parte dos primeiros (Lev., 18-, De cive, 6, § 19). Em
segundo lugar, diz Hobbes, o poder soberano é indivisível no
sentido em que não pode ser distribuído entre poderes diversos
que se limitem reciprocamente. Segundo Hobbes, tal divisão não
garantiria sequer a liberdade dos cidadãos, porque se os poderes
divididos agissem de acordo essa liberdade sofreria e, se fossem
discordes, depressa se chegaria à guerra civil (De cive, 7, § 4). Em
terceiro lugar, pertence ao Estado, e não aos cidadãos, o juízo
sobre o bem e sobre o mal: uma vez que a regra que permite
distinguir entre bem e mal, entre justo e injusto, etc., é dada pela
lei civil e não pode ser confiada ao arbítrio dos cidadãos. Se isto
acontecesse, a obediência ao Estado seria condicionada pela
variedade dos critérios individuais e o Estado dissolver-se-ia (lb.,
121, § 1). Em quarto lugar, faz parte da soberania a prerrogativa de
exigir obediência a ordens reputadas injustas ou criminosas; e em
quinto lugar, a própria soberania exige que se exclua a legitimidade
do tiranicídio (lb., § 2, 3). Mas o traço mais característico do
absolutismo de Hobbes é a sua negação de que o Estado esteja de
qualquer modo sujeito às leis do Estado, tese que ele defende.

o argumento de que o Estado não se pode obrigar nem para com os


cidadãos, cuja obrigação é unilateral e irreversível, nem para
consigo próprio porque ninguém pode contrair uma obrigação senão
para com outro (Ib., 121, § 4).

127

Tudo isto, porém, não significa que a teoria política de Hobbes não
ponha alguns limites à acção do Estado. Nem mesmo o Estado pode
ordenar a

um homem que se mate ou se fira a si próprio, ou mate ou fira uma


pessoa que lhe seja querida, que não se defenda ou não tome
alimentos, deixo de respirar ou fazer qualquer outra coisa
necessária à vida; nem pode ordenar-lho que confesse um

delito porque ninguém pode ser coagido a acusar-se

a si próprio (Lev., 21, De cive, 6, § 13). No que se

refere a todas as outras coisas, o súbdito só é livre naqueles


domínios em que o soberano se tenha esquecido de
regulamentar mediante a lei; por isso, a sua liberdade em diversos
lugares e tempos é maior ou menor consoante os critérios
seguidos pelo Estado Soberano. O Estado, pelo contrário, é sempre
livre porque não tem. obrigações e é uma espécie de "alma da
comunidade", uma vez que se esta alma se afastasse do corpo, os
seus membros deixariam de receber movimento dela (Lev., 21). Do
mesmo modo que a alma da comunidade, o Estado também congloba
em si a autoridade religiosa e não pode reconhecer uma autoridade
religiosa independente: portanto, a Igreja e o Estado coincidem. A
diversidade entre Estado e Igreja é, por isso, puramente verbal,
segundo Hobbes. "A matéria do Estado e da Igreja é a mesma, são
os mesmos homens cristãos, e a forma que consiste no legítimo
poder de convocá-los é também a mesma, dado que os cidadãos são
obrigados a apresentar-se onde quer que o Estado os convoque. Por
isso se chama

128

Estado enquanto consta de homens e Igreja enquanto consta de


cristãos" (De cive, 17, § 21). Com esta última identificação, deu
Hobbes a última demão à teoria absolutista do Estado.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 402. Hobbes: The Elements of Law, Natural and Politic (,ed.


Tormies, segundo os manuscritos), Londres, 1889; Elementorum
philosophiae sectio tertia de cive, Paris, 1642; Leviathan, Londres,
1651; Elem. phil. sectio prima de corpore, Londres, 1655; Elem. phil.
sectio, secunda de homine, Londres, 1658; The Qestions Concerning
Liberty, Necessity and Chance (polémica com o bispo Brarnha.11),
Londres, 1656.

Edições completas das obras: em latim, Opera philosophica,


Amsterdão, 1668; Works, Londres, 1750; Opp. philosophica, ed.
Molesworth, 5 vol., Londres,
1839-45; English Works, ed. Molesworth, 11 vol., Londres, 1839-45.

Leviatham, ed. W G. Pogson Smith, Oxford, 1909; ed. M. Gakeshott,


Oxford, 1946; trad. ital. Vinciguerra, Bari, 1911-12; R. Giammanco,
Turim, s. a.; Opere politiche di T. H. ao cuidado de N. Bobbio, I, De
cive, dialogo fra un filosofo e uno studioso, del diritto commune
d'Inglhilterra, Turim, 1959 (com bibl.).

Sobre as obras: G. SORTAIS, La phil. moderne d6puis Bacon


jusqu1à Leibniz, II, Paris, 1922, p. 298 segs.

§ 403. Sobre a doutrina: TõNNIEs, T. H., Estugarda, 1896; LEMIE


STEPHEN, H., Londres, 1904; TAYLOR, T. H., Londres, 1908; P.
BRANDT, T. H.'s Mechanical Conception of Nature, Londres, 1928:
A. LEvi, La fil. de T. H., Milão, 1929; B. LANDRY, H., Paris,
1930; J. LAIRD, H., Londres, 1934; VIANo, ALEssio, DAL PRA,
WARRENDER; POLIN; 130P1310, CATTANEO,

129

GARIN, in. "Rivista critica di atoria deà-la filosofiw,


1962, 4.
§ 406. A interpretação metodológica do materialismo de Hobbes,
no sentido do neokantismo, foi iniciada por P. NATORP, Des cartes
Erkenntnistheorie, -qaxburg, 1882, p. 144 segs. Sobre esta ver
especialmente: R. MNIGSWALD, H. und die Staatsphi.",osophie,
München, 1924; CASTRER, D" Erkenntnisproblem, II, Berlim, 1922,
p. 46 segs.

§ 409. Sobre o pensamento político: L. STRAUSS, The political


Philosophy of H., OxfoTd, 1936, 2., ed., Chicago, 1952; R. POLIN,
Politique et philosophie chez T. H., Paxis, 1953, que é a obra
fundamental; H. WAR- RENDER, The Political Philosophy of H.,
Oxford, 1957.

Bibliografia in "Revue Internationale de PhilosopMe", 1950; A.


PACCHI; en "Pivista critica di storia della filwofia", 1962, 4.

130

III

A LUTA PELA RAZÃO

§ 411. RACIONALISMO E CARTESIANISMO

A filosofia de Descartes pode ser considerada sob dois aspectos


diversos. Sob um primeiro aspecto, é uma técnica racional que
procede de modo autónomo e geometricamente, isto é, utilizando
apenas as ideias claras e distintas numa ordem rigorosa. Sob este
aspecto, é em primeiro lugar o empenho em realizar a autonomia da
razão empregando a

técnica desta em todos os campos em que a sua aplicação é possível;


e, em segundo lugar, é o empenho em respeitar as exigências
internas desta técnica, pondo de lado o que não pode ser reduzido a
ideias claras e distintas e à ordem de tais ideias. Sob o outro
aspecto, pelo contrário, a filosofia de Descartes é um conjunto de
doutrinas metafísicas e

131

físicas que concernem principalmente à dualidade das substâncias


(alma e corpo), às provas da existência de Deus, à espiritualidade e
à liberdade da alma, à mecanicidade da substância extensa, e
portanto do mundo vegetal e animal.

O próprio Descartes parece empenhar-se mais no

sucesso deste segundo aspecto da sua filosofia do que no primeiro,


talvez porque o sucesso do primeiro lhe parecia garantido. Todavia,
foi precisamente o primeiro aspecto da sua filosofia que lhe
assegurou a eficácia histórica e fez dela a protagonista das
disputas filosóficas do século XVII. Por este aspecto, de facto, o
cartesianismo surge como o

episódio capital dessa luta pela razão que se pode considerar o


característico da cultura filosófica do século XVII. Esta luta tende
a fazer prevalecer a

razão, e a sua autonomia de juízo, não só no domínio científico como


nos domínios moral, político e religioso, e tende, paralelamente, a
esclarecer o próprio conceito de razão. Sobre o primeiro ponto, tal
luta vai muito além dos intentos de Descartes, que se recusara a
estender a investigação racional para lá das fronteiras da ciência e
entendera a sua filosofia como uma substancial confirmação da
metafísica, da moral e da religião tradicionais.
Sobre o segundo ponto, o cartesianismo constitui apenas uma das
alternativas que a luta pela razão suscita: precisamente, a que vê na
razão uma força única, infalível e omnipotente que como tal não tem
necessidade de nada, salvo de si, para se

organizar e exercer o seu poder orientador. Frente a esta


alternativa delineia-se, a partir de Gassendi e

132

de Hobbes, uma outra, para a qual a razão é uma força finita ou


condicionada, cuja esfera de acção se circunscreve aos vários
campos da sua actividade e que em cada um destes campos é
subjacente a limites ou a condições diversas. Ambas estas
alternativas compartilham o ideal geométrico da razão e

vêem nos Elementos de Euclides o maior monumento antigo desta e


na ciência galilaica a sua mais recente expressão. Além disso, uma e
outra alternativa reconhecem na razão o único guia autónomo do
homem e procuram por isso fazer valer os ensinamentos desta no
próprio domínio da fé religiosa. Sob muitos aspectos, no entanto, o
seu contraste é radical.

Inspiram-se fundamentalmente no cartesianismo, além de Espinosa


e de Leibniz (o primeiro dos quais, no entanto, acusa fortemente a
influência de Hobbes nas suas doutrinas políticas), uma plêiade de
pensadores e cientistas que amiúde polemicaram contra Descartes
no campo das suas doutrinas específicas e especialmente sobre a
mecanicidade dos corpos viventes, sobre a relação entre alma e
corpo, sobre a relação entre Deus e o mundo e outros temas
similares. Algumas vezes, estes pensadores e cientistas
proclamavam-se "anticartesianos", como anticartesianos foram sob
muitos aspectos, Espinosa e
Leibniz; mas a herança capítal de Descartes nem por isso se
perdera. A verdadeira acção anticartesiana foi aquela que viu no
cartesianismo a ponta extrema do racionalismo invasor e que
portanto lhe opôs a

tradicional escolástica que permanece dominante ainda por muito


tempo nas universidades europeias

e nos colégios dos religiosos. De facto, à excepção

133

das universidades holandesas, em que Descartes encontrou


frequentemente expositores e sequazes [em Utrecht ensinou um
dos seus primeiros alunos, Henry le Roy ou Regius (1598-1679)], as
universidades europeias pouco ou nada sofreram o influxo do
cartesianismo. Em França, a Sorbonne não lhe abriu as portas
porque o ensino das novas doutrinas havia sido proibido pelo
Parlamento de Paris, em 1625. Por vezes, no entanto, o
cartesianismo penetrava nos baluartes da velha escolástica como
objecto de refutação; outras vezes, também, a refutação
restringia-se a esta ou àquela doutrina enquanto que outras eram
acolhidas. A literatura anticartesiana da segunda metade do século
XVII é rica de refutações, de críticas, de rectificações e de
aceitações parciais que, no seu conjunto, demonstram a importância
crescente que o cartesianismo assumia na cultura da época. Ele
começava também a constituir um outro fenómeno característico
deste século, a escolástica ocasionalista, e era utilizado pelo
jansenismo, como uma defesa da espiritualidade religiosa, situada
para lá da razão cartesiana, num domínio inacessível a ela.

Por outro lado, o racionalismo não cartesiano dava lugar a outro


fenómeno característico do século, o libertinismo erudito, que
utilizava, para a crítica das crenças religiosas tradicionais, motivos
extraídos do Renascimento italiano, e encontrava na obra de
Gassendi a sua principal expressão filosófica. A obra de Hobbes
pode ser considerada, no seu conjunto, como a primeira formulação
rigorosa do conceito da razão finita, conceito que, retomado por
Locke,

134

devia constituir o fundamento do empirismo e do iluminismo


setecentista.

Relativamente independente destas duas alterna. tivas (contra as


quais, todavia, ocasionalmente polemizou) foi o neoplatonismo inglês
que se inseriu na luta pela razão com a sua defesa do racionalismo
religioso, defesa cujos instrumentos vai buscar ao

platonismo do Renascimento italiano.

§ 412. A ESCOLÁSTICA CARTESIANA: O OCASIONALISMO

Todos os grandes movimentos do pensamento da Idade Moderna


são acompanhados por uma forma de escolástica, isto é, pela
tentativa de os utilizar para uma justificação da fé religiosa. Como
período histórico, a Escolástica tem o seu termo em meados do
século XIV quando, com o humanismo e o Renascimento, se iniciou a
Idade Moderna. Porém, como forma de filosofia, a escolástica não
tem época determinada. Assim como a escolástica medieval consiste
essencialmente na utilização da filosofia antiga para justificação e
sistematização das crenças, cristãs, assim também é escolástica a
utilização de uma filosofia qualquer para o mesmo fim. A escolástica
cartesiana é o ocasionalismo: ela vale-se da filosofia e da linguagem
de Descartes assim corno a

escolástica medieval se valia da filosofia e da linguagem dos


neoplatónicos ou de Aristóteles.

O problema de que se origina a escolástica cartesiana é o das


relações entre alma e corpo. Descar135

tes considerara a alma e o corpo como duas substâncias diversas e


admitira como um facto, mas sem lhe dar explicação, a acção de
uma substância sobre outra. Esta acção recíproca das duas
substâncias fora declarada impossível pelo cartesiano francês Louis
de la Forge no seu Tratado do espírito do homem (1666), em que
fora estabelecida a distinção entre as causas principais e as causas
ocasionais da acção recíproca. O movimento dos corpos era

considerado como "causa ocasional" da sensação correspondente,


enquanto que a causa verdadeira e principal ora atribuída à acção de
Deus. Uma doutrina análoga era defendida por Géraut de Cordemoy
(1620-84) e pelo cartesiano alemão Johann Clauberg (1622-1665).
Mas o ocasionalismo encontrava a sua melhor formulação por obra
de Ceulinex.

Arnold Ceulinex, nascido em Antuérpia, em 1627, falecido em 1669,


foi autor de numerosas obras, das quais só algumas foram
publicadas durante a

sua vida. Foi editada em 1662 uma Mágica e em


1664 uma Ética; as suas obras póstumas foram Physica Vera e
Metaphysica Vera, publicadas respectivamente em 1688 e em 1691.

Geulinex parte do princípio de que o homem não é autor do que


ocorre de um modo que ele não chega a compreender (quod nescis
quomodo flat id non facis). Ora, eu não conheço o modo como a
minha vontade produz o movimento do meu corpo ou como o meu
corpo produz os movimentos dos outros corpos: isto é sinal de que
eu sou o espectador, não o actor deste movimento. Por outro lado, e
pelo mesmo motivo, o corpo não é a causa das sensa136

ções que se verificam na consciência. Deve-se então reconhecer que


o acto da vontade, a que se segue o movimento do corpo, a mutação
do corpo a que se segue a sensação no nosso espírito, são apenas
causas ocasionais desse movimento e dessa sensação, e que a causa
verdadeira é, pelo contrário, o próprio Deus. Daqui deriva o nome de
ocasionalismo, dado à teoria. Não é o corpo a causa das sensações,
nem a vontade é a causa dos movimentos corpóreos. Deus produz,
directamente, na alma, a sensação por ocasião de uma modificação
corpórea ou o

movimento corpóreo por ocasião de uma volição da alma. A única


causa verdadeira é Deus; as outras são apenas ocasiões. Esta
doutrina tem um alcance religioso imediato porque tira ao homem
toda a possibilidade de acção no mundo e atribui a Deus todo o
poder. O homem não é verdadeiramente uma

realidade, uma substância, segundo Geulincx, mas somente o modo


da substância, que é Deus. O nosso corpo é um modo do infinito e
indivisível corpo,

como o nosso espírito é um modo do espírito infinito. Por isso o


homem não pode fazer nada e deve limitar-se a ser o espectador do
que Deus opera nele. A sua virtude fundamental deve ser a
humildade, a qual inevitavelmente o conduz ao conhecimento de si.

Encontra-se o mesmo carácter limitativo e negativo em relação ao


homem na teoria do conhecimento de Geulincx, segundo a qual o
único conhecimento corto é para o homem o reconhecimento de que
as coisas não são em si mesmas coisas como elo as conhece. Deste
ponto de vista, as percepções

137

sensóreas são puramente subjectivas e o próprio conhecimento


evidente fica apenas à superfície das coisas, a fim de que nós,
necessariamente, possamos apreender das coisas só o que entra nas
categorias do nosso pensamento. O homem só pode adquirir uma
ciência corta das suas próprias acções e

paixões (amor, ódio, afirmação e negação), ao passo que deve


reconhecer a Deus a sapiência infinita e a ciência de tudo o que
existe, desde o movimento e os corpos até ao espírito e ao próprio
homem (Metaph. vera, 111, 6). O ocasionalismo iria encontrar a sua
melhor formulação na teoria da "visão em Deus" de Malebranche.

§ 413. MALEBRANCHE: RAZÃO E FÉ

Nicolas Malebranche nasceu em Paris em 1638 e foi desde 1660


padre da Congregação do Oratório, congregação fundada pelo
cardeal Berulle, amigo de Descartes, com o fim de promover a
elaboração científica da doutrina da Igreja. Os estudos do
Oratório eram orientados mais para Sto. Agostinho do que para S.
Tomás e quando, em 1668, Malebranche, leu o Tratado do Homem
de Descartes, pareceu-lhe ter descoberto uma via que, conjugando-
se com o agustianismo, lhe podia permitir a defesa

e a ilustração da verdade da fé. Em 1674-75 publicava a sua obra


fundamental Procura da verdade,

e em seguida, as Conversações cristãs (1676); o Tratado da


Natureza e da Graça (1680), o Tratado

138

de Moral (1683); as Meditações cristãs e metafísicas (1683); os


Diálogos de um filósofo cristão e de

um filósofo chinês sobre a natureza de Deus (1708). Além destes,


são notáveis os escritos polémicos de Malebranche contra Arnauld,
que havia criticado a sua doutrina no livro Sobre as verdadeiras e
falsas ideias. Malebranche faleceu a 13 de Outubro de
1715, depois da visita de Berkeley, que fatigara e

irritara o filósofo já velho (77 anos) e enfermo.

Malebranche atribui à razão o mesmo valor absoluto que Descartes


lhe conferira. "A razão de que eu falo, diz ele (Traité de Mor., 1, 2)
é infalível, imutável, incorruptível. Ela deve ser sempre soberana. O
próprio Deus a segue". Os lamentos sobre a corrupção da razão
humana, sobre a debilidade que a toma sujeita ao erro, baseiam-se
num equívoco: é necessário habituarmo-nos a distinguir a

luz das trevas ou das falsas luzes, isto é, a recorrer a verdadeira


razão, a razão cartesiana da evidência necessária, da imaginação
e do verosímil. "A evidência, ou seja, a inteligência, é preferível à
fé. Porque a fé há-de passar, mas a inteligência subsistirá
eternamente". A fé é um bem porque conduz a inteligência e porque
sem ela não se podem alcançar certas verdades, necessárias à
virtude e à felicidade eterna. Mas a fé sem a inteligência não torna
o homem virtuoso, uma vez que não o ilumina nem o conduz à
verdade. Deste modo, a razão cartesiana assume em Malebranche
um significado religioso e torna-se no instrumento mais adaptado
para a ilustração e defesa da verdade religiosa. Male139
branche é plenamente consciente do carácter escolástico da sua
filosofia. O problema que ele se propõe é o de conciliar as
exigências da razão com os dogmas teológicos, e ele, põe em
confronto este problema com o da física, que pretende estabelecer
o acordo entre a razão e a experiência. "Os que estudam a física
não raciocinam nunca contra a experiência mas também não
concluem nunca pela experiência contra a razão. Hesitam quando
não vêem o meio de passar de uma a outra; hesitam, digo, não sobre
a certeza da experiência nem sobre a evidência da razão, mas sobre
o meio de conciliar uma com a outra, Os factos da religião, ou os
dogmas estabelecidos, são as minhas experiências em matéria de
teologia. Mas eu ponho-as em dúvida e assim me regula e conduz a
inteligência. Mas, quando, procurando segui-las, sinto que vou contra
a razão, detenho-me de súbito, sabendo bem que os dogmas da fé e
os princípios da razão devem estar de acordo na verdade, qualquer
que seja a oposição com que se apresentem ao meu espírito" (Entr.
sur

Ia mét., 14). O ponto de vista aqui expendido de um

acordo intrínseco e essencial entre a fé e a razão é o mesmo de S.


Tomás, mas a novidade é que a

razão de que fala Malebranche não é a aristotélica (de que falava S.


Tomás) mas a cartesiana.
O método, as regras, os problemas da razão são, segundo
Malebranche, os que Descartes esclareceu. E daí que Malebranche
peça ao cartesianismo a resposta ao problema escolástico do acordo
entre razão e fé.

140
§ 414. MALEBRANCHE: A VISÃO EM DEUS

A utilização dos pontos de referência fundamentais da filosofia


cartesiana para a construção de uma filosofia escolástica devia
incluir uma reelaboração desses pontos de referência. Os aspectos
originais da filosofia de Malebranche reduzem-se a uma
reelaboração desse género.

Malebranche aceita o princípio fundamental da filosofia cartesiana:


o objecto imediato da consciência é a ideia. O homem não conhece
directamente e em si mesmos os objectos que estão fora dele: só
os conhece através dos trâmites das ideias. Ora as ideias são,
segundo Malebranche, "seres reais" e, além disso "seres
espirituais" assaz diferentes dos corpos que representam e
superiores a esses

corpos, tanto quanto o mundo inteligível é mais perfeito do que o


mundo material. Porém, mesmo que elas fossem seres pequeníssimos
e desprezíveis, nunca poderiam ser produzidas nem pelas coisas
exteriores (segundo a doutrina aristotélica que faz da ideia a
espécie impressa da própria coisa na

alma) nem pela alma. Produzir as ideias significa criar, e nenhuma


criatura, nem mesmo o homem, tem o poder de criar. Malebranche
nega terminantemente que o homem participe, sob este aspecto, da
natureza de Deus. Afirma, de acordo com o ocasionalismo, que a
única verdadeira causa de tudo o que acontece é Deus e que o
homem toma por causas as ocasiões de que a vontade divina se
serve para levar a efeito os seus decretos. É uni

141

prejuízo crer que uma bola em movimento que se choca com ou-tra
seja a verdadeira e principal causa do movimento que lhe comunica;
ou que a vontade da alma seja a verdadeira e principal causa do
movimento do braço. Este prejuízo assenta no facto de que a bola é
sempre posta em movimento pelo choque com outra bola e que os
nossos braços se movem todas as vezes que o quisermos. Mas este
facto é explicado de modo completamente diverso. Significa apenas
que, na ordem da natureza, certos factos são necessários a fim de
que ocorram outros, embora não sejam a causa destes outros. O
embate das duas bolas é apenas a ocasião para o autor do
movimento da matéria executar o decreto da sua vontade
comunicando à outra bola urna parte do movimento da primeira. E
assim a nossa vontade de mover o braço ou de rememorarmos
determinadas ideias é apenas urna ocasião de que Deus se

serve para levar a efeito o seu decreto correspondente (Rech. de la


vér., 111, 11, 3).

Consequentemente, a tese de Malebranche é a de que a alma


humana vê directamente em Deus a causa de todas as coisas. Em
primeiro lugar, de facto, é necessário que Deus tenha em si a ideia
de todos os seres que criou, de outro modo não o poderia ter
criado. Em segundo lugar, Deus está intimamente unido às nossas
almas pela sua presença, de modo que se pode dizer que ele é o
lugar dos espíritos, do mesmo modo que se diz que o espaço é o
lugar dos corpos. Daí que o espírito possa ver em Deus as obras de
Deus, no caso de Deus lhe querer revelar aquilo que em si existe
(lb., 111, 11, 6). Aqui se vê

142

como Malebranche concilia a tese cartesiam de Deus garante da


verdade das nossas ideias com a tese agustiniana da presença de
Deus no homem como
luz e guia da sua razão. As ideias são eternas, imutáveis,
necessárias: portanto, só podem encontrar-se numa natureza
imutável. Deus vê em si mesmo a extensão inteligível, o arquétipo da
matéria de que o mundo é formado e em que habitam os nossos

corpos; o nós vemo-la nele, porquanto os nossos

espíritos habitam na região universal, na substância inteligível que


encerra as ideias de todas as verdades que descobrimos, seja em
consequência das leis gerais que regulam a união do nosso espírito
com a razão absoluta, seja em consequência das leis gerais que
regulam a união da nossa alma com o nosso corpo (Entr. sur Ia
méth., 1, 10).

Isto constitui a primeira prova fundamental da existência de Deus.


Deus deve de facto conter a ideia da extensão infinita e ser o
arquétipo de uma infinidade de mundos possíveis, Mas o ser infinito
e perfeito implica necessariamente a própria existência; e a
proposição "há um Deus" é a mais clara de todas as proposições que
afirmam a existência de qualquer coisa e tem a mesma certeza que
o princípio: eu penso, logo existo (Ib., 2).

É verdade que nós não vemos Deus em si mesmo mas apenas em


relação com as criaturas materiais, isto é, só enquanto a substância
de Deus pode participar delas ou ser representada por elas.
Contudo, a visão que nós temos de Deus é a única fonte do nosso
conhecimento e a única força da nossa razão. Malebranche tira todo
o partido possível

143

da reconhecida incapacidade das criaturas para criar, para produzir


e agir de outro modo que não seja como passivos instrumentos de
um decreto de Deus. Não há qualquer relação de casualidade entre
o corpo e o espírito, nem entre um corpo e outro ou entre um
espírito e outro. "Nenhuma criatura pode agir sobre outra por uma
eficácia que lhe seja própria". A união entre a alma e o corpo é
fruto de um decreto divino, de um decreto imutável, que nunca fica
sem efeito. Deus quis e quer incessantemente que as diversas
modificações dó cérebro humano sejam sempre seguidas por
pensamentos diferentes do espírito que lhe está unido; e

só esta vontade constante e eficaz do criador estabelece a união


das duas substâncias. Deus, porém, não exerce a' sua vontade
desordenadamente, mas segundo uma ordem que ele próprio
estabeleceu que é w ordem dás causas ocasionais (Ib., 7). @ Este é
o motivo mais forte, segundo Malebranche, para reconhecer a
realidade das coisas, de que o nosso. espírito não tem conhecimento
directo já que nada. conhece imediatamente a não ser ideias.
Malebranche repete, a propósito da existência de uma realidade
exterior às ideias, à argumentação cartesiana de que, se aquela
realidade não existisse, a nossa tendência para crer nela seria falaz
e Deus teria assim permitido que nós vivêssemos num perfeito
engano Mas' é evidente que esta argumentação cartesiana perdeu
muito do seu valor do ponto de vista de Malebranche. Se o homem
vê todas as suas ideias em Deus, a verdade destas ideias não
consiste na sua correspondência a uma realidade

144

MALEBRANCHE

e i mente em serem elas parlies ou xtenor, mas única


elementos daquela extensão inteligível que subsiste na razão divina.
Do ponto de vista de Malebranche, as ideias para serem
verdadeiras, não têm necessidade de terem um objecto exterior,
porque a verdade delas é garantida pelo facto de os arquétipos
subsistirem na razão divina. Daqui deriva a mais acentuada
problematicidade que a afirmação da realidade externa tem em
Malebranche relativamente a Descartes. Segundo Malebranche, a
cidade exterior não possui uma evidência total, similar à que
concerne à existência de Deus e do nosso espírito. Além disso, a
existência do mundo não é necessária relativamente a Deus, mas
depende de um decreto divino livre e indiferente. Por isso só Deus a
pode garantir; e para nos convencermos da existência dos corpos
"há que demonstrar não só que há um Deus e que Deus é veraz, mas
também que Deus nos

garantiu que efectivamente nos criou" (Rech. de la vér., VI, écl.).


Mas esta prova de facto, segundo Malebranche, está feita, porque
a fé, efectivamente, ensina-nos que Deus criou o mundo corpóreo.

O carácter problemático que a crença na realidade exterior


conserva em Malebranche e que é eliminado apenas com um
explícito apelo à fé, levou a pensar certos críticos antigos e
modernos que o

desenvolvimento lógico da tese de Malebranche deveria conduzir à


negação da realidade dos corpos externos, como se encontra em
Berkeley Q 465). Mas tal conclusão é, na realidade, contrária à
lógica do pensamento de Malebranche. O apelo à fé faz parte
essencial desta lógica, que visa stibstandal145

mente esclarecer os princípios da própria fé, utilizando a


problemática cartesiana; e neste caso o apelo à fé é servido por
uma razão filosófica conexa à própria natureza do ocasionalismo.
Diz Malebranche: "Se bem que se possa formular contra a
existência dos corpos objecções que parecem insuperáveis,
principalmente para os que não sabem que Deus deve agir em nós
por meio de leis gerais, eu não creio que ninguém possa alguma vez

duvidar delas seriamente" (Entr. sur la mét., 6, 7). Aqui está


indicado o motivo fundamental que garante a realidade dos corpos
externos. A ordem e a
sucessão das ideias no homem seguem as leis gerais que não teriam
sentido nem valor se se prescindisse da ordem e da sucessão das
coisas a que as ideias se referem. Se Deus torna visíveis ao homem
as simples ideias segundo uma ordem estabelecida imutàvelmente,
essa ordem concerne também aos objectos de tais ideias- e por isso
pressupõe a realidade desses objectos. As leis da acção divina
implicam as causas ocasionais; se as causas ocasionais das ideias
faltassem por completo, a acção divina, suscitadora das ideias, não
teria uma lei e seria em absoluto arbitrária. O que é contrário a um
ponto essencial do pensamento de Malebranche.

§ 415. MALEBRANCHE: AS VERDADES ETERNAS

Trata-se de um ponto capital que estabelece uma

nítida diferença entre a doutrina de Malebranche e a de Descartes


e demonstra a diversidade de inspi146

ração e de finalidade das duas doutrinas. Para Descartes, as


verdades e as leis eternas são garantidas por Deus, uma vez que são
decretos livres do seu arbítrio (§ 399). Para Descartes, Deus não é
um princípio religioso, mas um princípio filosófico: ele não tem outra
função que não seja a de garantir a imutabilidade das verdades
eternas e dos princípios fundamentais da natureza. Descartes é
movido predominantemente pelo interesse filosófico e científico, e
recorre a Deus unicamente a fim de encontrar na sua vontade
imutável uma garantia dos princípios da filosofia e da física. Daí que
afirme que tais princípios são livros decretos de Deus e como

tais imutáveis. Em Malebranche, pelo contrário, predomina o


interesse religioso: o objecto da sua

filosofia não consiste em encontrar garantias para os

princípios científicos e filosóficos, mas antes em conduzir o homem


a uma clareza racional no tocante a Deus e às verdades da fé. Por
isso Malebranche teve de inverter a tese de Descartes: não é a
vontade de Deus que garante ao homem a verdade dos princípios e
das verdades eternas, mas antes as verdades eternas que revelam
ao homem a vontade divina nas suas regras necessária. Assim se
explica o paradoxo de que para o racionalista Descartes as
verdades eternas sejam decretos arbitrários de Deus, ao @passo
que para o pio Malebranche são independentes de Deus e regras da
sua actividade.

A crítica que Malebranche faz às teses de Descartes sobre este


ponto consiste em mostrar que ela não garante nem a ciência nem a
religião. Se as verdades e as leis fossem estabelecidas só

147

por um acto livre da vontade criadora de Deus, se, numa palavra, a


razão que o homem consulta não fosse necessária, não poderia
haver verdadeira ciência. Já não haveria diferença entre uma
verdade eterna (,por exemplo, que duas vezes quatro é igual a oito e
que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois rectos) e uma
qualquer proposição dotada de verdade apenas aparente. O recurso
à imutabilidade do decreto divino não basta, já que se

a vontade de Deus é livre para estabelecer verdades deste género,


tais verdades permanecem privadas de uma intrínseca necessidade.
"Eu não posso conceber, diz Malebranche, a necessidade na
indiferença, não posso conciliar entre si duas coisas tão opostas".
Além disso, a tese cartesiana tira à religião o seu

melhor fundamento. "Se a ordem e as leis eternas não fossem


imutáveis por necessidade da sua própria natureza, as provas mais
claras e mais fortes da religião seriam, ao que me parece,
destruídas no seu próprio princípio, assim corno a liberdade e as
ciências mais sólidas... Como se poderá provar que é uma desordem
que os espíritos estejam sujeitos aos corpos, se não se tiver uma
ideia clara da ordem e da sua necessidade e se não se souber que o
próprio Deus é obrigado a segui-la pelo amor necessário que dedica
a si mesmo?" (Rech. de Ia vér., X séc.). Este último argumento é
para Malebranche decisivo. Descartes preocupara-se em
estabelecer o carácter necessário das verdades eternas apenas
relativamente ao homem e considerara por isso suficientemente
garantido este carácter da imutabilidade de Deus. Mas se aquelas
verdades (pensa Malebranche)

148

não são também necessárias em relação a Deus, não oferecem


nenhum meio para chegar até ele e para se dar conta da vontade
divina no que respeita à ordem que Deus entende que seja
respeitada pelos homens. Se, ao invés, essas verdades são para o
próprio Deus necessárias, oferecem a melhor via para chegar a
Deus e para se dar conta claramente das suas vontades no que
respeita ao homem. A preocupação que domina Malebranche neste
ponto crucial é portanto religiosa, ao passo que a preocupação que
dominava Descartes ora filosófica e científica. Por outros termos, a
tese de Descartes levava ao agnosticismo perante os desígnios de
Deus que concernem ao homem, isto é, perante os problemas
religiosos. A tese de Malebranche conduz à justificação absoluta da
ordem do mundo e da atitude religiosa que nela assenta. Segundo
Descartes, Deus poderia ter construído o mundo de um outro modo
qualquer e o mundo teria sido igualmente admirável: o que quer
dizer, nota Malebranche, que o

Mundo de modo algum é admirável. Segundo a

tese de Malebranche, Deus devia construir o mundo como o


construiu, porque só desse modo ele realiza da melhor maneira a
finalidade que Deus se propunha. Qual é essa finalidade?

Deus criou o mundo "para se conceder uma honra digna de si". Como
um arquitecto se compraz na obra que fez cómoda e bela, assim
Deus goza da beleza do universo, o qual traz em si os caracteres
das qualidades de que se gloria, das qualidades que estima e ama
(Ib., IX séc.). Assim o mundo se justifica do ponto de vista divino
porque é a obra

149

em que Deus se reflecte a si mesmo, e de que ele se honra. E esta


justificação é possível precisamente porque as verdades eternas
sobre as quais se funda a ordem do mundo não são indiferentes a
Deus, mas obrigatórias tanto para ele como para o homem. A
inversão do procedimento cartesiano realiza, no pensamento de
Malebranche, uma justificação religiosa que era total mente
estranha ao pensamento de Descartes.

Da soberania do criador sobre as suas criaturas derivam as regras


da moral, os deveres do homem para com Deus. O poder divino faz
ser e conserva
o homem criando-o de instante a instante; ilumina-o com a sua luz e
actua nele, condu-lo incessantemente para o bem, de sorte que a
primeira e fundamental norma do homem é o amor para com Deus
que é, pois, também amor para consigo mesmo. Assim Malebranche
faz falar o Verbo nas Méd. crét. (XII, 5): "É o -meu poder que faz
tudo, tanto o bem como o mal. As causas naturais não são senão
causas ocasionais, as quais determinam a eficácia das leis que eu
estabeleci para agir sempre de um modo digno de mim. Por isso
deves só amar-me a mim, já que ninguém além de mim produz em ti
os prazeres que experimentas em tudo o que ocorre no teu corpo".

Um contemporâneo de Malebranche, Dortous de Mairan (1678-


1771), com que Malebranche manteve uma correspondência
filosófica, põe a Malebranche o dilema entre o espinosismo e o
imaterialismo. Se nós só vemos em Deus a extensão inteligível, isto
é, uma pura ideia que não tem qualquer objecto ou

150

realidade correspondente nem em Deus nem fora de Deus, tem de


se concluir que os corpos não existem de facto e que a revelação
nos engana quando fala da existência deles. Para fugir a esta

conclusão não se tem de admitir que a extensão existe como


realidade no próprio Deus, como atributo deste, que é a tese de
Espinosa. Malebranche responde a este dilema reportando-se à sua
doutrina da visão em Deus. Nós vemos em Deus as ideias de que o
próprio Deus se serviu como arquétipos da sua criação. Não
conhecemos por isso com absoluta certeza a existência dos corpos
que Deus criou em conformidade com arquétipos, mas podemos
estar seguros da sua existência pela própria revelação de Deus. Por
outro lado, a visão em Deus supõe a diversidade absoluta entre o
Deus o os entes criados, sejam eles arquétipos ou corpos. E, na
realidade, nada é mais estranho a Malebranche do que a tese
panteísta de Espinosa, segundo a qual toda a realidade é um modo
ou uma manifestação de Deus. Malebranche mantém-se fiel à
transcendência de Deus relativamente ao mundo, e a sua "visão em
Deus" não é mais que a tese do agustianismo tradicional, repensada
no plano do racionalismo cartesiano.

§ 416. ARNAULD E A LóGICA DE PORT-ROYAL

A escolástica ocasionalística não foi a única utilização religiosa do


cartesianismo. Uma utilização para o mesmo fim, porém mais livre e
mais ajus-

tada aos seus princípios, encontrou-a o cartesianismo no âmbito do


jansenismo por obra do seu maior representante, Antoine Arnauld
(1612-1694), a quem ainda o cartesianismo deve a forma
institucional que debalde o seu fundador lhe procurara dar.

Os jansenistas, como se verá, (§ 420), viam no agustianismo a fonte


da sua doutrina sobre a graça; Arnauld procura conciliar o
cartesianismo com o agustianismo. Esta conciliação, porém, não
assume para ele a forma que recebeu na doutrina de Malebranche,
isto é, uma escolástica em que o cartesianismo, convenientemente
modificado, é utilizado para uma defesa das verdades religiosas.
Arnauld aceita todas as teses do cartesianismo preocupando-se em
mostrar a coincidência do princípio cartesiano do cogito com a
posição fundamental de S.to Agostinho. Esta é, de facto a
substância das Quartas objecções (1641) às Meditações de
Descartes. O cartesianismo, segundo Arnauld, abrange o

domínio inteiro do conhecimento que o homem pode conseguir com


os seus meios naturais: para lá deste domínio, a fé, como o próprio
Descartes dissera, pode ter livre curso, Arnauld é por isso hostil à
tentativa de Malebranche de fazer intervir Deus a cada passo no
curso das operações cognitivas do homem; e a sua teoria do
conhecimento é formulada em nítida antítese com a de Malebranche
contra o qual se dirige polemicamente o escrito em que ela vem
exposta: Sobre as verdadeiras e falsas ideias (1683). Se o
conhecimento é para Male5ranche uma visão em Deus, para Arnauld
é a per152

cepção imediata de um objecto. A ideia é, segundo Arnauld,


precisamente tal percepção. Não é uma imagem no sentido em que
um quadro representa o original ou uma palavra falada ou escrita
representa um pensamento, mas é imagem no sentido em que é a
coisa mesma representatívamente ou objectivamente presente no
espirito. Por seu turno, * espírito, ao perceber o objecto, percebe-
se também * si mesmo: é por isso consciência no sentido cartesiano
ou reflexão no sentido lockiano. (Des vraies et des fausses idées,
V).

Este ponto de vista, que seria felizmente retomado por Locke, é o


fundamento da Lógica de Porto Real ou arte de pensar que Arnauld
escreveu

em colaboração com outro pensador de Port-Royal, Pierre Nicole


(1625-95) e foi publicada em 1662. Trata-se de uma obra que teve.
uma influência imensa sobre a lógica e sobre a gnoseologia
subsequentes e

que constitui a mais perfeita codificação da filosofia cartesiana.


Como a lógica tradicional e, em particular, a nominalística. (a única
ainda viva na época), a lógica de Port-Royal tem em primeiro lugar
um

escopo normativo; mas diversamente da lógica tradicional, este


propósito normativo incide sobretudo na invenção ou na descoberta,
mais do que na

sistematização dos conhecimentos. Assim se toma nota da critica


que os escritores do Renascimento e especialmente Ramus (§ 342)
tinham feito à lógica tradicional, denunciando-lhe a esterilidade.
Mas a diferença, fundamental entre esta lógica e a tradicional
reside no objecto que ela toma em cons;.de153

ração. A lógica tradicional tinha por objecto os

termos ou os sinais, isto é, as palavras com os

seus significados e as relações entre estes significados. A lógica de


Port-Royal ao invés, tem por objecto as operações do espírito: mais
precisamente, do espírito enquanto pensamento, quer dizer,
actividade cognitiva ou teorética. Estas operações são quatro: o
conceber, que é a Alusão das coisas que se apresentam ao espírito e
dá lugar à ideia; o

julgar, que consiste em unir ou desunir as ideias conforme


concordem ou não entre Si: a união constitui a proposição
afirmativa, a desunião a proposição negativa; o raciocinar, que
consiste em formar uni juizo partindo de outros juízos; e, enfim, o

ordenar, que consiste em dispor diversos juízos e

raciocínios segundo um método (Logique, Discurso, 1).

Deste modo, a lógica vinha assumir aquele carácter (corno hoje se


diz) mentalístico, pelo qual as operações que ela considera são actos
ou actividades do espírito pensante, carácter este que ela
conservou por muito tempo até ao surgir da nova lógica matemática
cerca de meados do Oitocentos. E, por outro lado, o espírito ora
concebido corno actividade que une ou divide um certo material,
mas que sobretudo o une, ordenando-o segundo certos
procedimentos ou esquemas. Este conceito do espírito, que estava
decerto implícito na filosofia de

Descartes e que a lógica de Port-Royal tornou explícito é o mesmo


que será retomado por Locke, e, através dele, pelo empirismo
inglês, por Kant e por

154

grande parte da filosofia oitocentista. Num sentido estritamente


derivado dele, Kant dirá que a actividade do espírito é actividade
sintética.

§ 417. GASSENDI

A primeira tentativa para opor ao conceito cartesiano da razão um


conceito que tivesse em conta

os limites que ela encontra nos vários campos em

que deve exercer-se, é a de Gassendi. A instância que Gassendi


opõe ao cartesianismo é a antiga, renascentista, do cepticismo. O
cepticismo foi a característica dominante daquela corrente
libertina em que se insere a obra de Gassendi; mas para o próprio
Gassendi foi apenas o instrumento para limitar as

pretensões da razão, e por outro lado, para reconduzir à razão as


crenças religiosas tradicionais.

Pierre Gassendi (nascido a 22 de Janeiro de 1952 e falecido a 24


de Outubro de 1655), foi padre e

cónego de Dijon, professor de filosofia na Universidade de Aix e


de matemática no Colégio Real de Paris. Inspirando-se em Charron
(§ 344), assumiu Gassendi uma atitude crítica e céptica em
relação a todas as principais tendências filosóficas do seu

tempo, a saber: a escolástica aristotélica, contra a qual escreveu


Exercícios paradoxais contra Aristóteles (1624); o ocultismo e a
magia, que criticou na pessoa de Fludd (Epistolica dissertatio in qua
praec7pua princi .pia philosiphiae Fluddi deteguntui [16301); e o
cartesianismo, contra o qual formulou as Quintas objecções às
Meditações, reiteradas numa
Disquisitio metaphysica seu dubitationes et instantiae

155

adversus Renali Cartesii nwtaphysicam (1644). Entretanto, vinha-se


interessando cada vez mais pela filosofia de Epicuro e os frutos
deste interesse foram o De vita et moribus Epicuri (1647), as
Aninwdversiones in decimium librum Diogenis Iaertii (1649), o
Sywagma philosophiae Epicuri (1649), e um volumoso Syntagma
philosophicum que veio a lume postumamente (1658).

Uma defesa da religião no sentido de uni expedit credere (não de


urna escolástíca), assim se pode definir o escopo principal da
actividade filosófica de Gassendi. Para esta defesa, não
considerava útil nem o aristotelismo (que era ainda utilizado pela
filosofia académica) nem o cartesianismo (que seria utilizado por
Malebranche e Arnauld), porquanto contra ambas estas doutrinas
Gassendi considerava prevalecentes as instâncias cépticas que lhe
minavam os fundamentos. A tais instâncias resistia, segundo
Gassendi, a alternativa materialista, em que, portanto, havia que
assentar a possibilidade da fé religiosa. Daí a tarefa que Gassendi
assumiu relativamente a Epicuro, a qual consiste em libertar (como
diz o título completo do Synlagma) a filosofia de Epicuro de tudo o
que é contra a fé cristã. Para tal fim contribuiu Gassendi com uma
série de correcções aos fundamentos da filosofia epicurista.
Epicuro considerava os átomos como inegáveis e incorruptíveis:
Gassendi considera-os como tais só no que respeita às forças
naturais mas afirma que foram criadas por Deus e podem ser por
ele aniquiladas. Epicuro sustentava que o movimento é inerente aos
átomos e por isso é eterno; Gassendi afirma

156

que o movimento e a força, que é a causa dele, derivam de Deus.


Epicuro asseverava que a ordem do mundo é uma ordem mecânica,
devida ao movimento dos átomos e às suas acções causais; Gassendi
assevera que é uma ordem finalísta, querida por Deus e governada
pela sua providência. Epicuro assegurava que a alma é composta por
átomos e

por isso corpórea e mortal; Gassendi admite, além da alma


vegetativa e sensível que é corpórea, uma

alma intelectiva que é uma substância imortal e incorpórea e para a


qual as imagens sensíveis são apenas " ocasiões" para se ascender
ao entendimento das coisas que nada têm a ver com o mundo
sensível (Obra, II, p. 447). Epicuro dissociara a crença na divindade
de toda e qualquer consideração física; Gassendi considera possível
chegar a conhecer a existência de Deus a partir da consideração do
finalismo, com base no principio de que "toda a ordem supõe um
ordenador".

Como se conclui destas simples anotações, Gassendi falhou.


inteiramente como restaurador do materialismo epicúreo. E, não
obstante as exigências empiristas e experimentalistas que ele
amiúde apresentou, falhou também inteiramente como conciliador
da nova ciência com a metafísica materialista. A nova ciência tinha
de facto como condição negativa a eliminação do finalismo, sobre a
qual insistiam igualmente Galileu e Bacon, Descartes, Hobbes e
Espinosa; e como condição positiva o

reconhecimento da função da matemática na interpretação da


natureza, reconhecimento esse que não se encontra na filosofia de
Gassendi. Mas não

157

foram estas, como se disse, as tarefas que tal filosofia assumiu. Na


sua parte sistemática pretendeu ela ser a conciliação da concepção
atomística do mundo com a religião. E na sua parte polémica foi a
defesa de certas exigências que se revelaram particularmente
fecundas nas suas filiações históricas. A Descartes que (muito
erradamente, como se viu) lhe dava na sua resposta o apelativo de
"carne", Gassendi respondia assim: "Chamando-me carne, vós não me
tirais o espírito, e chamando-vos eu espírito, vós não abandonais a
vossa carne. Basta para tanto permitir-vos falar de acordo com o
vosso

génio. Basta que, com a ajuda de Deus, eu não seja de tal modo
carne que deixe de ser espírito e que vós não sejais de tal modo
espírito que deixeis de ser carne; de modo que nem vós nem eu
estamos abaixo nem acima da natureza humana. Se vós vos
envergonhais da humanidade, eu não me envergonho dela" (Ib., III,
p. 864). Esta reafirmação da natureza humana nos seus limites e
nas suas imperfeições não é, para Gassendi, um puro motivo
polémico: implica, ao invés, para ele o reconhecimento do valor da
experiência, dos limites da razão, e

portanto do carácter descritivo ou, como ele diz, "histórico" da


ciência e da validade do conhecimento provável.

O primeiro escrito de Gassendi, os Exercícios paradoxais contra


Aristóteles, apela, contra a metafísica aristotélica, para o
empirismo nominalista e

sobretudo para Occam, repetindo as doutrinas fundamentais do


filósofo inglês, principalmente a doutrina do conhecimento intuitivo
que está na base

158

da gnoseologia de Occam. Deste ponto de vista, a ciência não é


pesquisa ou determinação das essências mas descrição ou, como diz
Gassendi, "história" dos acontecimentos naturais tais como são
atingidos pelo conhecimento sensível. No próprio epicurismo vê ele
uma defesa dos direitos da experiência e, por conseguinte, do
procedimento indutivo r,

contra o dedutivo, da razão problemática, que se

vale de premissas prováveis ou verosímeis, contra a razão


dogmática que pretende valer-se apenas de premissas necessárias,
e da origem empírica de todas as ideias contra o inatismo
racionalista (Syntagnw, 1, p. 92 segs.). Com estes instrumentos à
disposição, o homem, segundo Gassendi, não pode avançar para lá
dos fenómenos cujo círculo constitui o limite dos seus
conhecimentos: mas com isto não se pretende negar as substâncias
que estão por sob ou para lá dos fenómenos cujo conhecimento é
reservado a Deus como aquele que é seu autor. Para o homem, ao
invés, o conhecer e o fazer coincidem nos limites da experiência
sensível, nos quais pode compor e decompor, com os instrumentos
preparados pelas várias ciências, os corpos naturais e assim dar
conta da construção total da máquina do mundo (Ib., I, p. 122 b
segs.).

Com estas doutrinas, com o tom genericamente céptico das suas


considerações, (deduzidas amiúde de Charron), com a via
prudentemente aberta para uma integração sobrenatural, graças à
fé, dos conhecimentos naturais do homem, com urna ética que
defende igualmente o prazer mundano (considerado como ataraxia)
e a felicidade ultramundana, a figura

159

de Gassendi é uma boa imagem das tendências, das aspirações e das


confusões conceptuais de uma

larga parte da cultura filosófica do seu tempo.


O libertinismo aceitou o materialismo de Gassendi sem as
correcções que o filósofo lhe veio trazer. Outras teses de
Gassendi passaram para Hobbes, e Locke e encontraram por obra
deles aquela formulação rigorosa que as devia tornar eficazes na
história da filosofia. Mas no seu domínio próprio Gassendi foi
sobretudo um erudito, um literato e um retórico, e não era sem
alguma razão que Descartes, em resposta às suas objecções, dizia:
"Continuais a divertir-vos com os artifícios e os truques da
retórica, em vez de nos dardes boas e sólidas razões" (Resp., V,'1).

§ 418. O LIBERTINISMO

A palavra "libertino" permaneceu no uso corrente apenas com o


sentido de dissoluto" ou "vicioso": uma conotação que lhe vem dos
opositores polémicos do libertinismo que (nem sempre de boa fé e
na esteira dos escritores medievais) consideraram indissolúveis
cepticismo religioso e imoralidade e interpretaram a tese de que o
prazer é o bem como; uma indicação da conduta moral dos seus
defensores. Na realidade, "libertino" significou no século'XVII
"livre pensador e por libertinismo, nesse século, deve entender-se o
conjunto das doutrinas ou das atitudes que foram próprias,
especialmente em França, de literatos, magistrados, polí160

GASSENDI

t;cos filósofos e moralistas a que se deve a crítica das crenças


tradicionais e por isso a preparação ou o início da explosão
iluminista. Esta crítica. foi em boa parte subterrânea, quer dizer,
não se cingiu apenas aos escritos, mas estendeu-se também às
conversações e discussões privadas das quais, no
entanto, permanecera traços na rica literatura anónima ou
clandestina do tempo. E foi, além disso, sempre exercida com o
pressuposto de que devia permanecer apanágio de poucos, para não
pôr em perigo, com a sua difusão, instituições ou costumes
considerados indispensáveis à ordem social e ao governo político.
Neste ponto, o libertinismo, enquanto se liga à cultura do
Renascimento, está em antítese com o iluminismo que tem como
programa a difusão da verdade entre todos os homens.

O libertinismo não é uma filosofia ou um corpo coerente de


doutrinas, mas um movimento cultural compósito que uti@liza e faz
suas, como instrumentos de crítica ou de libertação, doutrinas de
diversa ascendência. Filosoficamente, o libertinismo é importante
como episódio da luta pela razão que domina a filosofia dos séculos
XVII e XVIII, um episódio que se liga ao predomínio político que o
catolicismo conquistara nos países latinos, com o seu cortejo de
condenações e de intolerâncias.
Já se disse que Gassendi pertence aos círculos libertinos de Paris,
mas foi sobretudo com François de la Mothe le Vayor (1588-1672),
Gabriel Naudé (1600-53) e Elie Diodati, um dos quatro grandes
eruditos que constituem o centro de atracção do libertinismo
francês. Estes amigos de Gassendi foram

161

mais literatos do que filósofos: não partilharam o

interesse religioso de Gassendi, mas partilhavam com

ele, e em dose importante, a sua atitude céptica.

Uma figura característica do libertinismo foi a

de Savinien de Cyrano, conDek@ido como Cyrano de Bergerac


(1619-55), autor de uma comédia intitulada Le pédant joué,
representada em 1645, de uma tragédia La mort d'Agrippine,
representada em 1654, e de dois romances filosóficos (os primeiros
do género) intitulados Os estados e os impérios da lita (1657) e os
Estados e os impérios do sol (1662). Cyrano inspira-se sobretudo
em Campanella, que ele conhecera e frequentara em Paris, e dele
recolhe o princípio da universal animação das coisas. "Representai-
vos, diz ele, o universo como um grande animal: as estrelas são
mundos neste grande animal e

são, por sua vez, grandes animais que servem de mundos a outros
seres, por exemplo, nós, aos cavalos, etc.; e nós, por nossa vez,
somos mundos em relação a certos animais incomparavelmente mais
pequenos do que nós como certos vermes, os piolhos, os insectos;
estes são ainda a terra de outros animais mais imperceptíveis, de
modo que cada um de nós em particular aparece como um mundo
grande a estes pequenos seres. Talvez a nossa carne, o nosso
sangue, os nossos espíritos não sejam mais do que um tecido de
pequenos animais que se reagrupam, nos emprestam o seu
movimento e, deixando-se cegamente conduzir pela nossa vontade
que lhes serve de guia, nos conduzem a nós próprios e produzem
todos juntos aquela acção a que chamamos vida" (Ies états et
empires de Ia lune, p. 92-95).

162

O universo é assim um grande animal e todas as


suas partes são, por seu turno, animais compostos de animais mais
pequenos. Os mais pequenos destes animais são os átomos: assim, o
atomismo epicurista se combina com o pampsiquismo renascentista
italiano. Mas trata-se de um atomismo não expurgado do ponto de
vista cristão como o de Gassendi. Os átomos são eternos. A sua
disposição deve-se às forças que os animam e não obedece a um
desígnio providencial. A alma é composta de átomos, conhece só
através dos sentidos e é mortal. Os milagres não existem. Trata-se,
como se vê, de filosofemas que não têm nenhuma originalidade mas
que são empregados, em obras em que a derrisão e a sátira do
mundo contemporâneo assumem uma parte importante, como
instrumentos de destruição dos pilares conceptuais desse mundo.

Ainda mais radicais são as negações contidas numa vasta obra


intitulada Theofrastus redivivus, composta provavelmente em 1659.
Aqui todos os

temas subterrâneos do libertinismo estão claramente expressos


com extrema nitidez. Deus não existe, a

menos que se queira indicar com o nome de Deus o sol, que dá vida e
calor a todas as coisas e que, juntamente com os outros astros,
dirige o destino dos seres vivos. O Deus dos teólogos é uma mera
entidade racional: o Deus do povo é apenas a expressão do temor
humano. A religião não passa da invenção de um legislador para
refrear os homens

e os poder governar; e, a este propósito, o autor do escrito retoma


a velha tradição dos três impostores, atribuindo-a ao imperador
Federico da Suécia.

163

Todas as religiões têm por isso o mesmo valor e @;ã@_, igualmente


boas, isto é, igualmente úteis do ponto de vista político. Quanto ao
homem, é um animal entre outros, e como toda a espécie animal
possui uma faculdade peculiar, assim o homem tem a da palavra
interior e do discurso, já que a "razão não é outra coisa do que o
discurso com o qual discernimos o verdadeiro do falso e o bem do
mal". Deste ponto de vista, entender, raciocinar e sentir são a
mesma coisa. A conduta do homem é dirigida, como a de qualquer
outro animal, pelo seu

desejo de se conservar, tal é a lei da natureza que é revelada à


experiência, No que se refere à sociedade, a primeira lei é não
fazer aos outros o que não quererias que te fizessem a ti. As outras
leis derivam das tradições que se formam nas diferentes
sociedades humanas e que levam a julgar as

acções segundo se conformam ou não aos costumes tradicionais.

Através da obra de Fontenelle e de Bayle, o

libertinismo prosseguirá com o iluminismo, purificando-se dos seus


elementos mais grosseiros ou fantásticos e renegando o seu
carácter de seita ou de contra-religião subterrânea. Mas a fim de
que o

iluminismo alcançasse, com a sua maturidade, a

posse de meios conceptuais adequados, devia, por um

lado, fazer sua a obra de Locke, na qual muitos temas


renascentistas e libertinos encontraram a sua clareza racional; e,
por outro, extrair de Newton uma concepção da natureza que
deixasse definitiva mente de parte as velhas especulações do
animismo e da magia.

164

§ 419. O PLATONISMO INGLÊS

Uma boa parte da filosofia inglesa permanece, até ao aparecimento


da obra de Locke, estranha à influência do cartesianismo. Mas nem
por isso permanece estranha à luta pela razão que é a insígnia da
filosofia no ~o XVII, sendo o terreno preferido, sobre que conduz
esta luta, o da religião.
O objectivo da luta é libertar a religião da superstição das
superstruturas inúteis e das crenças irracionais e reduzi-la ao seu
núcleo necessário e necessariamente racional: núcleo idêntico em
todas as religiões para que a ele os homens possam chegar
unicamente mercê das forças da razão, independentemente de
qualquer revelação. Boa parte do pensamento filosófico inglês deste
século dedica-se por isso à construção de uma "teologia racional, ou

melhor, à descoberta de uma religião racional fiel aos podem


naturais do homem e portanto também "natural". Esta religião foi
também, em seguida, denominada deísmo.

Como fundador do deísmo inglês (que no entanto tem na Utopia de


Thomas More um precedente importante) costuma-se considerar
Edward Herbert de Cherbuiry (1583-1648), autor de unia obra
intitulada De Veritate, prout distingui a revelatíone, a verisinúle, a
possibili et falso (1624) assim como de escritos menores: De causis
errorum (1624); De religione laici (1624); De religione Gentíliwn
(póstumo,
1663) e de uma autobiografia, também edição póstuma (1764).-0
intento de Herbert é, declaradamente, o de Ísolar nas várias
tradições refigio165

sas (entre as quais considera também a pagÉi), o

núcleo racional de uma religião única e universal Para a descoberta


deste núcleo vale-se Herbert de conceitos estóicos e neoplatónicos
e, em primeiro lugar, da noção de um único instinto universal que
presidiria tanto à formação dos minerais, das plantas, dos animais
como ao pensamento e à conduta dos homens. Este instinto é o solo
que a Sapiência divina imprimiu em nós e graças ao qual podemos
distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal. Sobre ele assentam
as verdades inatas ou noções comuns, as quais são independentes da
experiência dos objectos (como a faculdade da vista é
independente da vista deste ou daquele objecto), e que são as
condições da própria experiência. "0 espírito diz Herbert, não é
uma tábua rasa mas um livro fechado, o qual embora se abra sob a
acção dos objectos externos, só em si mesmo encerra o conteúdo
inteiro do saber". As noções comuns dão-nos os

princípios gerais de todo o saber, noções que condicionam as


verdades deste, e ao mesmo tempo fornecem os artigos da religião
natural que é própria de todos os homens enquanto tais. Segundo
estes artigos há um ser supremo, que deve ser adorado por todos,
que comina a pena pelo mal cometido e estabelece o prémio ou
castigo numa vida futura. Estes artigos fundados na religião, que é
uma em todos os homens, tornam possível uma Igreja universal, uma
unidade religiosa superior à particularidade dos vários cultos; e
oferecem ao mesmo tempo o critério para discernir o que há de
verdadeiro nos sistemas dogmáticos das várias religiões.

166

A defesa de uma religião racional ou de uma racionalidade religiosa


é o móbil principal das especulações dos filósofos pertencentes à
escola de Cambridge. Esta escola representa um renascimento do
platonismo, e como o platonismo italiano do Renascimento (a cujas
figuras, e esp~ ente a Ficino, estreitamente se vincula), vê ela no
platonismo a única originária concepção religiosa do universo: essa
concepção que, permanecendo substancialmente única na
multiplicidade da fé e das filosofias, assegura a paz religiosa do
género humano, isto é, o fim da intolerância teológica.

O mais notável dos platonistas de Cambridge é Ralph Cudwor(h


(1617-1688) cuja obra fundamental é O verdadeiro sistema do
universo (1678). A posição de Cudworth determina-se
polemicamente: em antítese com o materialismo de Hobbes que é
interpretado como ateísmo típico. Segundo Cludworth, a

verdadeira distinção entre teísmo e ateísmo pode-se estabelecer


apenas à base das suas respectivas doutrinas gnoscelógicas. O
pressuposto do ateísmo é que a coisa produza o conhecimento e não
o conhecimento a coisa e portanto o espírito seja não o Senhor mas
o criado do universo (The True Intellec. .ad tual System of the
Utdverse, 1, 4). Ora, tal pressuposto é falso, segundo Cudworth: o
conhecimento não deriva da coisa mas precede-a. O homem não
ascende das coisas singulares ao universal, mas, pelo contrário,
tendo em si próprio os universais, desce a aplicá-los às coisas
simples; de modo que o conhecimento não vem após os corpos
particulares como

se fosse qualquer coisa de secundário e derivado

167

deles, mas precede-os e é prolífero em relação a

eles. o pressuposto do conhecimento é a presença no intelecto


humano das eternas essências das coisas. Essas eternas essências
não têm uma realidade substancial fora do intelecto. Elas implicam
apenas que "o conhecimento é eterno e que há um eterno espírito
que compreende as naturezas inteligíveis e as ideias das coisas,
quer elas existam realmente, quer sejam apenas inteligíveis; e
compreende outrossim as suas relações necessárias e todas as
verdades imutáveis que lhes concernem" (Ib., 1, 5). Cudworth
sustenta que estas eternas essências são inatas nos

homens o que as verdades eternas, e portanto inatas, são também


os princípios morais que têm a mesma

necessidade que as verdades matemáticas. E aplica esta tese numa


crítica à doutrina calvinista da predestinação, segundo a qual Deus
condena os homens ao ~o ou à salvação segundo o seu exclusivo
bemplácito. O bem e o mal como eternas essências fazem parte de
Deus e determinam as suas decisões. Nem Deus é de algum modo
limitado pelas normas

do bem e do mal, porquanto não se pode dizer ser


limitado por aquilo que essencialmente o constitui (Ib., IV, 6).

A Par de Cudworth é notável entre os representantes da escola de


Cambridge Henry More (1614-87), cujas especulações sobre o
espaço o próprio, Newton fez suas. No seu Manual metafísico
(Enchiridium metaphysicum, 1679), More concebe a
extensão espacial como o fundamento de todas as relações que se
estabelecem entre os objectos corpóreos, porém como algo imóvel,
infinito,

168

eterno, que penetra todas as coisas e é de todas distinta. O


fundamento deste eterno e imutável espaço é Deus, uma vez que só
a ele podem ser

referidos os predicados absolutos (uno, simples, eterno, imóbil,


etc.) que são referidos ao espaço. "0 objecto espiritual, diz More, a
que nós chamamos espaço, é apenas uma sombra evanescente que a
verdadeira e universal natureza da ininterrupta presença divina
produz na débil luz do nosso intelecto, até que estejamos à
altura de a ver

com olhos despertos e bastante mais de porto" (Ench. nwt., 1, 8). A


extensão percebida pelos sentidos é o símbolo da realidade
inteligível que se

oculta por detrás dela. A matemática que considera o puro esquema


espacial dá já um passo do símbolo para a realidade inteligível. O
passo ulterior e definitivo, é dado pela filosofia que na realidade
inteligível do espaço reconhece o próprio Deus.

Além de Cudworth e de More, devem recordar-se entre os filósofos


pertencentes à escola de Cambridge, Benjamim Whicheote (1609-
83), John Smith (1618-1652) e especialmente Nathaniel Culversvel
(falec@Ído provàvelmente em 1650 ou 51) e autor de um Discurso
sobre a natureza da luz, publicado postumamente em 1652. É
significativa nesta obra a tese da identidade entre lei divina e lei
natural. A lei natural, revelada ao homempela razão, não é mais do
que a
aplicação e a adaptação da lei eterna de Deus à natureza particular
do homem; por isso o homem a traz impressa em si próprio.
"Existem gravados e

impressos no ser do homem alguns princípios claros e indeléveis,


algumas noções primas e alfabéticas,

169

mediante cuja combinação o homem formula as leis da natureza"


(Discourse, § 7). Assim, uma vez mais o velho conceito estóico-
neoplatónico da razão é utilizado para uma defesa da racionalidade
da fé.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 411. Sobre o cartesianismo: BOUILLIER, Hi-StotrP de Ia


philosophie cartésionne, Paris, 1863; SAISSFT, Précurseurs et
disciples de Descartes, Paris, 1862; G. SoizTAIN, La philosophie
moderne depuis Bacon jusqu'à Leibniz, Paris, 1922.

§ 413. De Malebranche: Oeuvre8, Paris, 11 vol.,


1712; Oeuvres, ed. Genoude e I~doueix, 2 vol., Paris,
1837; Oeuvres, ed. Simon, 2 vol., Paris, 1842; uma nova ed. das
obras completas foi iniciada com a publicação dos primeiros dois
livros da Recherche ao cuidado de Schrehker, Pai4s, 1938.
Numerosas edições parciais recentes da editora Vrin de Paris.
Correspondence avec J. J. Dortous de Mairan, ao cuidado de J.
MORE;AU, Paris, 1947. Bibliografia de A. DrL NOCE; in M. nel
terzo centenário della nascita, Mlano, 1938@

§ 414. 0LLP-LAPRUNE; La phil. de M., 2 vol., Paris, 1870-72; 1-1.


JoLY, M., Paris, 1901; J. VIDGRAIN, Le christianisme dans Ia phil.
de M., Paris, 1923; DELBOS, Étude sur Ia phil. de M., Paris, 1924;
M. G0UMER, La phil de M. et son expérience religieuse, Paris 1926;
R. W. CHURCE, A Study in the Phil. of M., Londres, 1931: A. DEL
NOCE, in "Rivista di filos. neo-scolastica", 1934 e 1938; GuÉROULT,
M.. 3 V&., ParJ.13,
1955-59.

§ 416. De Arnauld: Oeuvres, 43 vol., Lausana,


1775-84; Lettres, 9 vol., Naney, 1729; Omures philosophiques, ed.
Jourdan, Paris, 1843, ed. Simon, París,
1843.

170

OLU-LAPRuNF; La phil, de Malebranche, H, Paris,


1870; DELBOS, Êtudes de Ia phil. de Malebranche, Paris,
1924, cap. IX-X; A. DEL NOCE, lu "Rivista di ftl. neo-seõlwtica",
1937, supl.; LAPORTE, La doetrine de Port-Royal, 4 vol., 1923-52.

§ 417. De Gassendi: Opera, ed. Sorbière, Lyon,


1658; Florença, 1727; F. THOMAS, La philosophie de G., Paris,
1889; G. S. BRETT, The Phil of G., L,,>ndres, 1908; G. HEss, P. G.
Iena, Leipzig, 1930; P. G., Sa vie et son oeuvre, 1592-1655, vol.
colectivo, Paris, 1955; Actes dt& Congrès du Tricentenaire de P. G.,
vol. co'ectivo, Dinnie, 1957; T. GREGORY, Scetticismo ed
empirismo, Studio su G., Bari, 1961.
§ 418. Sobre o dibertinismo: CHARBONNEL, La p~ée italienne et le
courant libertin, Paris, 1917; R. PINTARD, Le libertinage érudit
dans Ta première maitM du &iécIe XVII, Paris, 1943; J. S. SPINK,
French Pree-Thought from Gassendi to Voltaire, L-j@ndres, 1960.
Para a bibliografia. ver especialmente o livro de Pint&rd.

De Cyrano, L'histolre comique des Êtats et Empires de Ia Lune et


du Saleil, ao cuidado de C. METTRA e J. SuyEux, Paris, 1962. Sobre
Cyrano e sobre Theofrastus redivivus: SPINK, op. cit, cap. III e
IV.

Sobre a passagem para a era do iluminismo: P. HAZARD, La crise de


Ia conscience européenne (1680-1715), Paris, 1935.

§ 419. De Herbert: De veritate, Paris, 1924; De religione laici, ed.


H. R. Hutcheson, New-Haven-Londres, 1944. - RÉmuSÁT, Lord H. d.
C., Sa vie et ses oeuvres, Paris, 1853; M. M. Rossi, La vita, le opere
e i tempi di E. H. d. C., 3 vol., Florença, 1947.

Sobre os Platónicos de Cambridge: J. TULLOCH, Rational Theology


and Christian Philosophy in the Seventeenth Century, 2 vol.,
Londres, 1872; F. H. POWICKE, The Cambridge Platonist, Londres,
1926; CASSIRER, Die ptatonische Renaissance in England und die

171

Schule von Cambridge, lápsia, 1932, J. H. MUIRMEADI The


Platonic Tradition in Anglo-Saxon Philosophy, Londres, New York,
1931. Uma antologia dos escritos de Whicheote, Smith, Culverwel e
CAMPAGNAc, Th6 Cambridge Platonists, Londres, 1901.

Sobre Cudworth: J. A. PAF~0RE, R. C., ClPI-1bridge, 1951, com bibl,


Sobre More: P. R. ANDERSON, H. M., New York,
1933.

172

IV

PASCAL

§ 420. PASCAL E PORT-ROYAL

Na luta pela razão, em que se resume a tarefa da filosofia no século


XVII, a voz de Pascal constitui uma nota discordante. E não porque
ele pretenda defender com os meios tradicionais as crenças
tradicionais: a figura de Pascal não se pode confundir na multidão
daqueles que insistiam nas

velhas posições da metafísica escolástica ou defendiam as velhas


instituições e crenças opondo à razão o peso e a autoridade da
tradição. Pascal aceita e

faz seu o racionalismo no domínio da ciência, embora reconhecendo


os limites que a razão encontra também nesse domínio; mas não
afirma que o

racionalismo se possa estender à esfera da moral * da religião.


Pascal sustenta que, nesse campo, * primeira e fundamental
exigência é a compreen173

são do homem como tal, e que a razão é incapaz de chegar a essa


compreensão.
Blaise Pascal nasceu em Glermont a 19 de Junho de 1623. Os seus
primeiros interesses encaminham-no para a matemática e para a
física. Aos dezasseis anos compôs o Tratado das secções cónicas;
aos dezoito inventou uma máquina calculadora; em

seguida, fez numerosas experiências sobro o vácuo, (descritas no


Tratado sobre o peso da massa de ar

e no estudo Sobre o equilíbrio dos líquidos), que se

tornaram clássicas. Mesmo quando a vocação religiosa decidiu do


rumo da sua vida, o interesse pela ciência não o abandonou: a teoria
da roulette, o cálculo das probabilidades e outras invenções
ocuparam-no nos anos da plena maturidade. Em 1654 a

vocação religiosa torna-se clara nele. Num escrito (23 de Novembro


de 1654) que foi encontrado depois da sua morte cosido à roupa,
deixou-nos o documento da iluminação que se fez no seu espírito.
Eis algumas frases desse documento:

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob. Não dos fi16sofos


e dos cientistas.

Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.

Deus de Jesus Cristo.

A partir desse momento, Pascal começou a fazer parte dos


solitários de Port-Royal, entre os quais havia uma sua irmã que lhe
era extremamente

querida, Jaqueline. A abadia de Port-Royal havia sido reconstruída


em 1636 pelo Abade Saint Cyran (1581-1643) sob a forma de uma
comunidade reli174

giosa, privada de regras determinadas, cujos membros se


dedicavam à meditação, ao estudo e ao ensino. Com Antônio Arnauld
(§ 416) as ideias do bispo Cornélio Jansénio afirmaram-se
decisivamente entre os solitários de Port-Royal. O Augustinus
(1641) de Jansénio é uma tentativa de reforma católica mediante
um retorno às teses fundamentais de Santo Agostinho, sobretudo à
da graça. Segundo Jansénio, a doutrina implica que o pecado original
tirou ao homem a liberdade do querer e o tornou

incapaz do bem e inclinado necessariamente ao mal. Deus só


concede aos eleitos, pelos méritos de Cristo, a graça da salvação.
Os eleitos são portanto poucos. disseminados em todo o mundo; e
são tais unicamente pela graça salvadora de Deus. Estas teses eram
contrapostas por Jansénio ao relaxamento da moral eclesiástica,
especialmente a jesuítica, segundo * qual a salvação está sempre ao
alcance do homem, * qual, se vive no seio da Igreja, possui uma
graça suficiente, que o salva se for auxiliada pela boa vontade. Era
esta a tese do jesuíta espanhol Molina (§ 373), tese que os jesuítas
tinham escolhido para fundamento do seu proselitismo, com o
intuito de conservar no seio da Igreja o máximo número de pessoas,
mesmo aquelas dotadas de escassa religiosidade interior. Contra
esta tese, o jansenismo preconizava um rigorismo moral e religioso
alheio a todo o compromisso, fazendo depender a salvação apenas
da acção eficaz da graça divina reservada a raros.

O jansenismo suscitava uma viva reacção nob

ambientes eclesiásticos e a 31 de Maio de 1653 uma bula de


Inocêncio X conJenava a doutrina do Augus175

tinus de Jansénio. Arnauld e os sequazes de Jansénio aceitaram a


condenação das cinco proposições, mas negaram que, na realidade,
elas pertencessem a Jansénio e se encontrassem na sua obra; por
isso sustentaram que a condenação não respeitava à própria
doutrina de Jansénio. Passados alguns anos, a disputa foi retomada
na Faculdade Teológica de Paris, e nela interveio Pascal. A 23 de
Janeiro de 1656, publicou Pascal, com o pseudónimo de Luis de
Montalto, a sua Primeira carta a um provincial por um dos seus
amigos acerca das disputas actuais da Sorbonne; e a esta seguiram-
se outras dezassete cartas, a última das quais tem a

data de 24 de Março de 1657.

As Cartas provinciais de Pascal são uma obra-prima de


profundidade e de humorismo e constituem um dos primeiros
monumentos literários da língua francesa. Nas primeiras cartas
bate em brecha a doutrina molinista. "Mas, enfim, padre, tal graça
concedida a todos os homens é suficiente? Sim, diz ele. E, no
entanto, não tem efeito sem graça eficaz? - Isso é verdade, diz ele.
- todos os homens têm a suficiente, continuei eu, e nem todos têm a
eficaz? - É verdade, diz ele. - Isso equivale a dizer, digo-lhe eu, que
todos têm bastante graça e que no entanto não têm bastante; quer
dizer que tal graça basta, conquanto de facto não baste; o

que é o mesmo que dizer que ela é suficiente de nome e insuficiente


de facto". A partir da quinta carta as críticas de Pascal visam as
praxes dos jesuítas, a sua conduta acomodatícia de estenderem os
braços a todos: põem em regra facilmente a

176

consciência dos pecadores mediante uma casuística emoliente, vão,


por outro lado, melindrar as almas verdadeiramente religiosas com
os seus severos directores. Mas já que as almas religiosas são
raras, "eles não precisam do muitos directores severos para as

conduzir. Têm-nos poucos para os poucos, enquanto que a multidão


dos casuístas complacentes se oferece à multidão daqueles que
procuram a complacência" (Lett., V). Na última carta, Pascal retoma
a doutrina agustiniana da graça. Entre os dois pontos de vista
opostos, o de Calvino e o de Lutero, segundo os quais. não
cooperamos de modo nenhum para obter a nossa saúde, e o do
Molina, que não quer reconhecer que a nossa cooperação se deve à
própria força da graça, cumpre, segundo Pascal, reconhecer, como
S.to Agostinho, que as nossas

acções são nossas por causa do livre arbítrio que as produz; o que
elas são tamb6m de Deus, por causa da graça divina, a qual faz, não
obstante, com que o nosso arbítrio as produza. Assim, como

S.to Agostinho diz, Deus leva-nos a fazer o que lhe aprouve,


fazendo-nos querer o que poderemos não querer de facto. Nesta
doutrina, Pascal vê a verdadeira tradição da Igreja, de S.to
Agostinho a S Tomás e a todos os tomistas, assim como o
verdadeiro significado do jansenismo.

Enquanto publicava as Cartas e se aplicava ao

seu trabalho científico, ia Pascal trabalhando numa Apologia do


Cristianismo que deveria ser a sua grande obra. Mas não chegou a
terminar o seu trabalho. A sua saúde, frágil desde a infância,
tornava-se cada vez mais débil: morreu a 19 de Agosto de

177

1662, aos 39 anos. Os fragmentos da sua obra apologética foram


recolhidos e ordenados pelos seus
amigos de Port-Royal e publicados pela primeira vez em 1669 com o
título de Pensamentos.

§ 421. PASCAL: LIMITES DA RAZÃO NO CONHECIMENTO


Científico

Descartes abrira à razão humana todas as vias e todos os domínios


possíveis; Pascal, ao invés, reconhece-lhe os limites. Fora da razão e
das suas possibilidades, encontra-se, segundo Pascal, o mundo
propriamente humano, a vida moral, social e religiosa do homem.
Mas também no mundo da natureza, onde a razão é árbitra, o seu
poder encontra um duplo limite.

O primeiro limite é a experiência. A experiência não vale, corno


sustentava Descartes, só para decidir qual das diversas explicações
possíveis, que a

razão apresenta de um dado fenómeno, é a verdadeira: ela é


também o ponto de partida e a norma

das explicações racionais. Diz Pascal no Prefácio ao tratado do


vazio (um fragmento de 1647): "Os segredos da natureza estão
ocultos, se bem que ela actue sempre, nem sempre se lhe
descobrem os efeitos: o tempo restabelece-os de época para época
e, conquanto ela seja em si mesma sempre igual, nem sempre é
igualmente conhecida. As experiências que no-los tornam
inteligíveis multiplicam-se continuamente e, uma vez que estas
constituem os únicos princípios da física, as consequências

178

multiplicam-se proporcionalmente". As experiências constituem


assim, "os únicos princípios da física"; mas a elas cabe também o
controle das hipóteses explicativas. Quando se formula uma
hipótese para encontrar a causa de muitos fenómenos, podem-se
dar três casos, segundo Pascal: ou da negação da hipótese se infere
um absurdo manifesto, e então a hipótese é verdadeira e
comprovada: ou um

absurdo manifesto decorre da afirmação dela, e

então a hipótese é falsa; ou então não se pôde ainda derivar um


absurdo nem da sua afirmação nem da sua negação, e então a
hipótese permanece duvidosa. Deste modo, acrescenta Pascal, "para
verificar se uma hipótese é evidente não basta que dela se sigam
todos os fenómenos, enquanto que, pelo contrário, para nos
assegurarmos da falsidade de uma hipótese basta que dela decorra
algo de contrário a um só dos fenómenos" (Carta ao padre Noel, de
29 de Outubro de 1647). Nesta atitude, Pascal está bastante mais
próximo de Galileu do que de Descartes; e é uma atitude que
permite a

Pascal reconhecer que a experiência é um primeiro limite daquela


razão que Descartes considerava suficiente em si mesma.

O outro limite da razão no campo das ciências é determinado pela


impossibilidade de deduzir os primeiros princípios. Os princípios que
constituem o fundamento do raciocínio escapam ao raciocínio, o qual
não os pode demonstrar nem refutá-los. Os cépticos que procuram
confutá-los não o conseguem. A impossibilidade em que- a razão se
encontra de os demonstrar prova, segundo Pascal, não a incerteza
desses

179
princípios, 1na@ @ debilidade da razão. E, de facto, o c
'onhecimet't0 desses princípios primordiais (o espaço, o
ter@P0@ o movimento, os números) é segui, como o @@0 é
nenhum dos conhecimentos que os nossos raciocínios nos dão.
Somente, trata-se de uma se-guran,, que tais princípios vão
buscar
10 IraçãO e ao instinto não à razão. O coração sente que há três
dimensões no espaço, que os números são jIIfi@jtos; em seguida, a
razão demonstra que não existem dois números quadrados de que
um seja o duplo , outro, etc. Os princípios sentem-se, as
ProPosições concluem-se; umas e outras têm a mesma certeza, mas
obtida por vias diversas. E é inútil e ridículo que a razão peça ao
coração as provas dos seis primeiros princípios, do mesmo modo
que seria ridículo que o coração pedisse à razão o sentimento de
todas as proposições que ,existem. Melhor teria sido para o
homem conhecer tudo mediante o instinto e o sentimento. Mas a
natureza recusou_lhe tal privilégio: deu-lhe Poucos
conhecimentos dessa espécie, e todos os outros os tem de adquirir
pelo raciocínio (Pensées, ed. Brunschvigg, 282).

No Mesmo domínio que lhe é próprio, o do conhecimento da


natureza, a razão encontra portanto limites, e tais limites são os
próprios limites do homem* Todavia> no âmbito destes limites, a
razão é árbitra. Pascal rejeita do domínio do conhecimento natural
toda , intrusão metafísica ou teológica. Onde a razão
demonstra a sua total e congénita incapacidade é no domínio do
homem.

180

422. PASCAL: A COMPREENSÃO DO HOMEM E O ESPIRITO DE


FINURA
"Tinha-me entregue longo tempo ao estudo das ciências abstractas,
mas a escassa comunicação que dai se pode extrair havia-me
desgostado. Quando iniciei o estudo do homem, vi que as ciências
abstractas não são próprias do homem e que eu, progredindo nelas,
me afastava da minha condição mais do que os outros ignorando-as.
Perdoei aos outros que as conhecessem pouco; julguei contar com
muitos companheiros para o estudo do homem, que é o estudo que
lhe é verdadeiramente próprio. Mas enganei-me: são ainda em
menor número do que os que estudam a geometria" (144). Estas
palavras de Pascal exprimem a sua atitude fundamental. Pascal
empenha-se no estudo do homem pela necessidade da comunicação,
que não é apenas comunicação com os outros, mas também
comunicação consigo, isto é, clareza e sinceridade consigo próprio.
O homem, que foi feito para pensar, devia começar a pensar em si
próprio (146). Mas tal não acontece e procura-se de preferência a
ciência das coisas exteriores. Ora, esta ciência não pode consolar o
homem da ignorância da vida moral, no

momento da aflição, enquanto que a ciência dos costumes o pode


consolar da ignorância das ciências exteriores (67). O homem deve
portanto começar por si, a sua tarefa essencial e primeira é a de
conhecer-se a si mesmo. Mas para tal tarefa a razão não serve de
nada. Como guia do homem, a razão é débil. inútil e incerta. Ela
submete-se facilmente

181

à imaginação, ao costume, ao sentimento. Todo o raciocínio neste


campo se reduz a ceder ao sentimento. A fantasia e o sentimento
impelem o homem para extremos opostos; e a razão, que deveria
instituir a regra, é flexível em todos os sentidos e incapaz de a
instituir (274). Nada existe, portanto, de tão conforme à razão
como o desconhecimento da razão(272), desconhecimento que é ao
mesmo

tempo um reconhecimento, o reconhecimento de uma outra via de


acesso à realidade humana que é o coração. O coração, diz Pascal,
tem razões que a razão desconhece (277): entender e fazer valer
as razões do coração é a tarefa do espírito de finura.

O antagonismo entre a razão e o coração, entre o conhecimento


demonstrativo e a compreensão instintiva é expresso por Pascal
como um antagonismo entre o espírito de geometria e o espírito de
finura. No espírito de geometria os princípios são palpáveis, alheios
ao uso comum e difíceis de ver, mas, uma vez vistos, é impossível
que não fujam. No espírito de finura os princípios estão no uso
comum, perante os olhos de todos. Não é necessário dar voltas à
cabeça nem usar de quaisquer esforços para os ver, mas é
necessário ter boa vista porque são tão subtis e tão numerosos que
é quase impossível que algum não escape,. As coisas relativas à
finura sentem-se mais do que se vêem; requer-se um esforço
imenso para as fazer sentir aos que não as sentem por si e não se
podem demonstrar completamente porque não se conhecem Os seus
princípios como se conhecem os da geometria. 182

O espírito de finura vê o objecto de um


lance e de um só golpe de vista, e não através do raciocínio (1). -
Pode-se exprimir exactamente a diferença estabelecida por Pascal
entre espírito de geometria e espírito de finura, dizendo que o
primeiro raciocina, enquanto que o segundo compreende. Claro que
para fundar ou rejeitar devidamente um raciocínio geométrico se
requer também um certo grau de finura, isto é, de compreensão;
mas é também evidente que o espírito de finura tem como seu

objecto próprio o mundo dos homens, ao passo que o espírito


geométrico tem como objecto próprio o mundo exterior. A
eloquência, a moral, a filosofia, fundam-se no espírito de finura,
isto é, na compreensão do homem, e quando dele prescindem,
tomam-se incapazes de atingir os seus objectivos. Por isso a
verdadeira eloquência se ri da eloquência geométrica, a verdadeira
moral ri-se da moral geométrica; e o 1@r-se da filosofia torna-se a
verdadeira filosofia (4). Apenas o espírito de finura (o juízo, o
sentimento, o coração, o instinto) pode compreender o homem e
realizar uma eloquência ,persuasiva, uma moral autêntica e uma
verdadeira filosofia. O homem não pode conhecer-se como

objecto geométrico, não pode comunicar consigo mesmo e com os


outros mediante uma cadeia de raciocínios. A razão cartesiana
encontra-se no mundo humano completamente deslocada. Este
reconhecimento é o verdadeiro início da compreensão do homem.
"Rir-se, da filosofia é verdadeiramente filosofar".

183

§ 423. PASCAL: A CONDIÇÃO HUMANA

Toda a investigação de Pascal é uma análise da condição do homem


no mundo. Pascal continua a obra de Montaigne: para ele, tal como
paira Montaigne, o homem é o único tema da especulação filosófica
o esta especulação determina-o incessantemente nos seus
procedimentos. Pascal reprova a

Montaigne "o ter complicado tanto as coisas e ter falado demasiado


de si" e diz que o que ele tem de bom pode ser adquirido
dificilmente. O filosofar de Pascal é uma continuação directa do
filosofar de Montaigne, mas uma continuação que tem por fim,
último a fé. ao passo que Montaigno tinha por fim último a filosofia.
Toda a obra de Pascal é a tentativa de alcançar a clareza no
tocante ao próprio. destino do homem: uma clareza, não objectiva
nem racional, mas subjectiva e empenhada, de modo a constituir o
homem naquilo que ele verdadeiramente deve ser.

Como parte da natureza, o homem está situado entre dois infinitos,


o infinitamente grande e o infinitamente pequeno e é incapaz de
compreender seja um, seja outro. Ele é um nada em relação ao

infinito, um todo em relação ao nada, um intermédio entre o todo e


nada. Infinitamente longe de compreender os extremos, o fim dos
fins e o princípio deles estão-41he ocultos num segredo
impenetrável. É igualmente incapaz de ver o nada donde veio e o
infinito em que está mergulhado.

Esta condição do homem determina toda a sua

natureza. Nós somos qualquer coisa, mas não somos

184

PASCAL

tudo: o que temos do ser esconde-nos o conhecimento das primeiras


origens que nos radicam no nada, e o pouco que possuímos do ser
oculta-nos a vista do infinito. A nossa inteligência ocupa, na

ordem inteligível das coisas, o mesmo lugar que o

nosso corpo tem na extensão da natureza. Todas as nossas


capacidades são limitadas por dois extremos, para além dos quais as
coisas nos escapam porque estão demasiado acima ou demasiado
abaixo delas. Os nossos sentidos não percebem nada de extremo: e
demasiada juventude ou demasiada velhice tornam o espírito
trôpego, e o mesmo faz a demasiada ou a pouca instrução. As coisas
extremas são para nos como se não existissem, e nós somos
relativamente a elas como se não existíssemos: elas fogem-nos e
nós a elas. Assim o nosso verdadeiro estado toma-nos incapazes de
sabermos com

segurança e de ignorarmos em absoluto. Movemo-nos num mar


vasto, sempre incertos e ondulantes, atirados de um extremo para
outro. Seja qual for o termo a que nos agarremos para nos
mantermos firmes, ele rompe-se e larga-nos; e se nós o seguimos,
escapa-se-nos e foge numa fuga eterna. Tal é o

estado que nos é natural e que é todavia o mais contrário à nossa


inclinação: ardemos do desejo de encontrar um assento estável e
uma base última, para sobre ela edificarmos, uma torre que se eleve
ao infinito. Mas hoje o nosso fundamento rui e a terra abre-se até
aos abismos (72).

Nestes termos define Pascal a condição de instabilidade que é


própria do homem e pela qual ao

mesmo tempo o ser e o nada fogem ao homem, de

185

modo que ele se encontra por cima do nada, pelo menos tanto quanto
se encontra por sob o ser.

A posição do homem é entre o ser e o nada: é, inevitavelmente, uma


posição de incerteza e de instabilidade. A função do pensamento é a
de fazer-lhe reconhecer claramente essa posição.

O pensamento é decerto a única dignidade própria do homem. Por


isso só o homem está acima do resto do universo; e mesmo que o
universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que o que o
mata, pois ele sabe, que morre e sabe a vantagem que o universo
tem sobre ele, ao passo que o universo nada sabe (347). E todavia o
pensamento não serve para nada se não fizer compreender ao
homem a sua miséria. A grandeza do homem consiste unicamente em
reconhecer-se miserável: uma árvore não pode reconhecer-se
miserável (397). É perigoso mostrar ao homem que ele é demasiado
igual aos animais, visto que os animais não podem resgatar-se da
miséria, pois não se apercebem dela. É perigoso também mostrar-
lhes demais a sua grandeza porque isso equivaleria a fazê-los
esquecer que ela consiste unicamente no saber recordar a sua
própria miséria. E ainda será mais perigoso deixá-los ignorar uma e
outra coisa. É preciso que ele não julgue ser igual nem aos animais
nem aos anjos (418). Se o homem pretende ser anjo, será na
realidade animal (358). Por isso, se o homem se vangloria é
necessário rebaixá-lo, se se rebaixa é necessário exaltá-lo e
sempre contradizê-lo a fim de que compreenda que é um monstro
incompreensível. "Eu censure igualmente, diz Pascal, os que

186

decidem louvar o homem e os que decidem censurá-lo, assim como


os que resolvem distrair-se. Eu só posso aprovar os que procuram
gemendo" (4211). Assim, a primeira aproximação da natureza do
homem faz-nos compreender a sua incompreensibilidade, revela-nos
a sua originalidade absoluta que o faz não ser nem anjo nem animal.
Mas o reconhecimento desta originalidade é difícil: só se alcança no
termo de uma busca que faz sofrer e

gemer. Por isso os homens recalcitram, tentam de todos os modos


desviar o olhar de si e da sua natureza, e procuram divertir-se.

§ 424. PASCAL: O DIVERTIMENTO


"Os homens, não tendo podido destruir a morte, a miséria, a
ignorância, acharam melhor não pensar, para serem felizes" (168).
Tal é o princípio que Pascal denomina divertimento (divertissement),
isto é, a atitude que recua perante a consideração da sua própria
condição e procura por todas as formas distrair-se dela mediante
as ocupações incessantes da vida quotidiana. Nada é tão
insuportável ao

homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem nada que
fazer, sem divertimento, sem ocupação. Sente então o seu nada, o
seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua
impotência, o seu vazio. Imediatamente sair-lhe-á do fundo da alma
o tédio, a disposição sombria, a perfídia, a

tristeza, o desgosto, o despeito, o desespero (131).


O valor fundamental de todas as ocupações é que

187

elas distraem o homem da reflexão sobre si e a sua condição. De aí


que o jogo, a conversação, a guerra, os cargos elevados sejam tão
procurados. Estas coisas não são procuradas com o intuito de
alcançar a felicidade, nem se julga verdadeiramente que a

verdadeira beatitude consista no dinheiro que se

pode ganhar ao jogo ou na lebre que se persegue numa caçada: são


coisas que não se quereria que nos fossem oferecidas. Não se busca
o uso tranquilo e adamado das coisas, que nos faz ainda pensar na

nossa desgraçada condição, não se procuram os


perigos da guerra e as fadigas dos empregos, mas

busca-se o tumulto que nos desvia do pensar naquela condição e nos


distrai (139). Nós não procuramos nunca as coisas, mas a busca das
coisas. Assim, nas comédias, as cenas alegres nada valem e nada
valem as misérias extremas sem esperança, os amores brutais, os
cruéis rigores (135). Não se

poderia aliviar o homem de todas as ocupações de que está


sobrecarregado desde a infância sem lhe fazer sentir
imediatamente o peso da sua miséria. Se fosse substraído aos seus
cuidados, ver-se-ia a si mesmo, pensaria naquilo que é, donde vem,
para onde vai. Por isso nunca está bastante ocupado; e, depois de
haver terminado o seu trabalho, se dispõe de um pouco de tempo
para repousar, aconselha-se-lhe que se divirta, que brinque e se
ocupe sempre durante todo o tempo (143).

Mas o divertimento não é a felicidade. Como procede do mundo


exterior, torna o homem dependente e sujeito a ser perturbado por
mil acidentes que constituem as suas inevitáveis aflições (170). E

188

assim a única coisa que o pode consolar das suas

misérias é a maior das suas misérias. Sem o divertimento cairíamos


no tédio, e o tédio levar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para
lhe fugir. Mas o divertimento torna-se agradável e assim nos
extravia e nos faz chegar insensivelmente à morte (171). O
divertimento não é a alternativa própria e digna do homem. O
homem não deve fechar os

olhos perante a sua miséria porque desse modo renuncia ao seu


único privilégio e à sua dignidade: a de pensar. Não se oferece
portanto verdadeiramente ao homem outra alternativa senão o
reconhecimento explícito da sua condição indigente e

miserável; e tal reconhecimento põe-no directamente em face de


Deus.

§ 425 PASCAL: A FÉ

O homem não pode reconhecer-se no seu não ser senão em


referência ao ser; não pode reconhecer-se no seu erro, na sua
dúvida, na sua miséria, senão em relação, à verdade, ao bem e à
felicidade.
O reconhecimento da própria miséria é o início de uma busca
dolorosa (buscar gemendo), que o leva à fé. A fé é , para Pascal, uma
atitude total que envolve todos os aspectos do homem até às suas

raízes. O problema da busca é o de realizar a fé, ou antes, de se


realizar na fé e mediante a fé. Todas as actividades humanas devem
ser orientadas paira esta busca.

189

A fé não é uma evidência nem uma certeza inabalável nem uma


posse certa. A condição humana exclui tais coisas. Se o mundo
existisse para instruir o homem acerca de Deus, a sua divindade
esplenderia por toda a parte de um modo incontestável, mas ele
subsiste apenas graças a Jesus Cristo e para Jesus Cristo, isto é
para instruir os homens

acerca da sua corrupção e da sua redenção. Isto não revela,


portanto, nem uma exclusão total nem uma presença manifesta da
divindade. Se o homem visse no mundo bastantes sinais da
divindade, julgaria possuí-la e não se daria conta da sua miséria. Se
o homem não visse nenhum sinal da divindade, não saberia o que
perdeu e não aspiraria a reconquistá-la. Para conhecer o que
perdeu, deve ver e não ver: e tal é, precisamente, o estado em que
se encontra na natureza (556). Todas as coisas instruem o homem
acerca da sua condição; mas não é verdade que tudo revele Deus,
nem é verdade que tudo esconda Deus. É verdade ao mesmo tempo
que ele se esconde daqueles que o tentam e se revela aos que o
procuram, porquanto os homens são todos indignos de Deus e ao
mesmo tempo capazes de Deus: indignos na sua corrupção, capazes
pela sua natureza originária (557). Tentar a

Deus significa pretender chegar a ele sem a humildade da busca:


Deus só se revela àqueles para quem a própria fé é busca.

Mas trata-se de uma busca que não concerne exclusivamente à


razão do homem. Não se pode alcançar a fé mediante
demonstrações e provas. As

190

provas que se dão da existência de, Deus, partindo das obras da


natureza, só podem valer para quem já possua a fé, mas não podem
produzir a

fé em quem ainda a não conhece (242). Por vezes, a prova é o


instrumento da fé que o próprio Deus infunde no coração mas, de
qualquer modo, a fé é diferente da prova. A prova é humana, a fé é
um dom de Deus (246). Ainda quando a prova servisse, serviria
apenas no momento em que alguém a vê: uma hora depois recearia
ter-se enganado (543). De qualquer modo, nenhuma prova pode
impor outra conclusão que não seja a existência de um Deus autor
das verdades geométricas e da ordem dos elementos, mas esse é o
papel que atribuem a Deus os pagãos e os epicuristas. O Deus dos
cristãos também não é um Deus que exerça

a sua providência sobre a vida e os bens dos homens para conceder


longos anos felizes aos que o adoram: esse é o papel que lhe
atribuem os

hebreus. O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob, o


Deus dos cristãos é um Deus de amor e de consolação, é um Deus
que enche a alma e o coração dos que ele possui e lhes faz sentir
interiormente a miséria que são e a sua misericórdia infinita (556).

A um Deus semelhante não se chega através da razão: todavia, o


homem deve decidir-se: não pode diferir o problema ou permanecer
neutral perante as suas soluções. Deve escolher entre o viver como

se Deus existisse e viver como se Deus não existisse; não pode


Subtrair-se a esta escolha, por191

quanto não escolher é ainda uma escolha: a escolha negativa. Se a


razão não o pode ajudar, impõe-se4he que considere qual a escolha
mais conveniente. Trata-se de um jogo, de unia aposta, em que é
necessário considerar, por um lado, o valor da aposta, por outro, a
perda ou a vitória eventual. Ora, quem aposta pela existência de
Deus, se ganha, ganha tudo, se perde, nada perde: cumpre,
portanto, apostar sem hesitar. A aposta já se justifica quando se
trata de uma vitória finita e pouco superior ao valor da aposta; mas
torna-se tanto mais conveniente quanto a vitória é infinita e
infinitamente superior ao valor da aposta. Não quer isto dizer que a
infinita distância entre a certeza do que se aposta e a incerteza do
que se pode ganhar tome igual o bem finito que se arrisca. e que é
certo ao infinito que é incerto. Todo o jogador arrisca o certo para
ganhar o incerto; e arrisca pela certa o infinito para ganhar
incertamente o

finito sem pecar contra a razão. Num jogo em que existem iguais
probabilidades de vencer ou de perder, arriscar o finito para
ganhar o infinito é evidentemente uma medida da máxima
conveniência.

Pascal reconhece, todavia, que não se pode crer

por imposição e que, mesmo reconhecendo o valor destas


considerações, se pode sentir as mãos ligadas e a boca muda,
incapaz de crer. Mas, nesse caso, a impotência de crer deriva
apenas das paixões. É necessário que a pessoa se esforce por se
convencer, não aumentando as provas de Deus, mas

192

diminuindo as paixões; é preciso assumir as atitudes exteriores da


fé e empenhar na fé a máquina homem (233). O homem é de facto,
segundo Pascal, autómato, pelo menos tanto quanto é espírito. Daqui
deriva o valor da tradição ou costume que, justamente, a religião
põe a par da razão e da inspiração como as três vias da fé (245). A
tradição determina o homem enquanto é máquina e arrasta

o seu espírito sem que ele de tal se aperceba. Uma vez que o
espírito viu onde está a verdade, precisa de adquirir uma crença
mais fácil, que elimine o contínuo retorno da dúvida, ou seja o

hábito de crer e de manifestar nos actos exteriores a crença. A


verdadeira fé, a fé total mobiliza não só o espírito mas o autómato
que existe no homem (252). Daqui deriva a importância dos actos
exteriores da fé. É necessário ajoelharmo-nos, rezar
com os lábios, etc. (250). É necessário fazer tudo como se se
cresse: tomar água benta, mandar dizer missa, etc. Isto vos
levará a crer, diz Pascal, pois fará calar o vosso espírito (vous
abêtisera) (233).

Decerto que a fé implica um risco; mas o que é que não implica um


risco? Nada, na realidade, é certo: e há mais certeza na religião do
que na

espera do amanhã. Não é certo, de facto, que veremos o amanhã,


mas é certamente possível que não o vejamos. Não se pode dizer
outro tanto da religião. Não é certo que ela exista, mas quem
ousaria dizer que é certamente possível que ela não exista (234). A
fé não elimina o risco mas torna-o aceitável. E o risco não inclui a
ameaça: o benefício da fé alcança-se já nesta vida (233).

193

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 420. A -ed. fundamental das obras de Pascal é a que foi


@confiiada ao cuidado de Brunschvigg, Boutroux e Gazier, Oeuvres
compZètes, 14 vol., Paris,
1904-14.-A ;ed. de uso mais comum é Pensées et Opuscules, ed.
Brunschvigg, Paris, 1897, (muitas ed. suc~vaz).

Trad. italianas: Pensieri, de M. F. Seitacca, Turim,


1956; Le provinciali, de G. Preti, Milão, 1945; Tratatto sulllequilibrio
dei liquidi, de F. Nicoló Di-Casella, Turim, 1958; Opuscoli e scritti
vari, de G. Preti, Bar!, 1959.

Sobre textos pascalianos, Recherches pascaliennes, Paris, 1949;


Histoire des Pensées de P., Paris, 1954; MAIRE, Bibliographie
générale des omvres de P., 5 vol., Paris, 1925-27 (até 1925).

Sobre Pascal e Port-Royal: GAZIER, Port-Royca au

XVII sicèle, Paris, 1909.

§ 421. BOUTROUX, P., Paris, 1900; BRUNSCHVIGG, P., Paris,


1932.-BLONDEL; BRUNSCHVIGG; CHEVALIER; H~DING;
LAPORTE; RAUGII, DE UNAMUNO; in "Revue de Métaph. et de
Mor.".

CHEVALIER, Pascal, Paris, 1922, apresenta Pascal na figura


convencional de um santo. Muito unilateral o ensaio de CHESTov, La
nuit de Gethsémani, Paris,
1923; SERINI, P., Turim, 1942; J. MESNARD, P., L'Homme et
Voeuvre, Paris, 1951; H. LEFEBVRE, P., Paris, 1949-54-, J.
STE1NMANN, P., Paris, 1954

194

ESPINOSA

§ 426. ESPINOSA: VIDA E ESCRITOS

O cartesianismo, antes de ser um corpo de doutrinas, é o empenho


em se servir da autonomia da razão e respeitar a técnica que lhe é
intrínseca, quer dizer o método geométrico. Os grandes sistemas.
filosóficos do século XVII respeitavam este emipenho, embora
modificando-o ou abandonando os princípios basilares da metafísica,
e da física de Descartes e, por vezes, como o fez Leibniz,
renovando parcialmente o próprio conceito do método geométrico.
A figura de Espinosa, na sua personalidade de homem e de filósofo,
está toda firmada neste empenho. Todavia, o interesse de Espinosa,
como o de Hobbes, não é fundamentalmente gnoseológico ou
metafísico, mas moral, político e religioso.

195

Baruch (Benedetto) de Espinosa nasceu em Amsterdão a 24 de


Novembro de 1632 de uma família hebraica que foi obrigada a
abandonar a Espanha em vista da intolerância religiosa deste país.
Foi educado na comunidade israelita de Anisterdão, mas em 1656
foi por ela excomungado e expulso devido a "heresias praticadas e
ensinadas". Alguns anos

depois, abandonou Amsterdão e instalou-se primeiro na aldeia de


Rijnsburg junto de Leida e depois em

Haia, onde passou o resto da sua vida. Em observância ao preceito


rabínico que prescreve que todo o

homem deve aprender um trabalho manual, aprendera a arte de


fabricar e polir lentes para instrumentos ópticos. Este mester
permitiu-llhe suprir suficientemente às suas limitadas necessidades
e deu-lhe uma certa fama de óptico que procedeu a

sua celebridade de filósofo. De saúde débil, cioso da sua


independência espiritual, Espinosa levou vida modesta e tranquila.
Quando um seu aluno e amigo, Simão De Vries, lhe quis dar de
presente dois mil. florins, ele recusou; e quando, mais tarde, o
mesmo De Vries lhe quis assegurar uma pensão de 500 florins,
Espinosa afirmou que era demais e não quis aceitar mais de 300.

A primeira obra a que Espinosa lançou mãos foi um Tractatus de


deo et homine eiusque felicitate (conhecido então com o nome de
Breve tratado) que se perdeu e foi reencontrado e publicado por
meados de Oitocentos. Neste escrito podem já distinguir-se com
clareza as duas componentes da filosofia de Espinosa, a
neoplatónica e a cartesiana, como também o interesse fundamental
desta filo196

sofia, que recai na vida moral, política e religiosa. A componente


neoplatónica é evidente no conceito de Deus como causa única,
directa e necessária de tudo o que existe; a componente cartesiana
é evidente no conceito de substância e dos atributos; a

esta obra falta no entanto a interpretação da necessidade natural


ou divina como necessidade geométrica.

Em 1663, foi publicado o único, escrito de Espinosa a que ele deu o


seu nome, Renati Cartesi Principia philosophiae. Cogitata
metaphisica. O escrito era, na origem, um sumário dos Princípios de
fil~ia de Descartes, que Espinosa. compusera para um seu aluno. A
podido de alguns seus amigos, o escrito foi publicado com o
apêndice dos Pensamentos metafísicos em que vêm apontadas as

divergências entre o autor e Descartes. Em 1670, apareceu anónimo


o Tractatus theologico-politicus que se destinava a demonstrar que
"numa comunidade livre deveria ser permitido a cada um pensar o
que quiser e dizer o que pensa". O livro foi logo condenado pelas
igrejas protestante e católica e Espinosa teve de impedir a
publicação de uma tradução holandesa para evitar que fosse
proibido na Holanda. Havia vários anos que trabalhava na sua obra
fundamental, a Ethica ordine geometrico demonstata que em 1674
estava concluída e começava a circular em manuscrito entre as mãos
dos amigos. Espinosa preteriu a publicação da obra, pois teria
imediatamente provocado a condenação; de modo que só foi
publicada depois da

197

sua morte, em 1677, num volume de Obras póstumas que


compreendia, além da Ethica, um Tractatus politicus, um Tractatus
de intellectus emendatione, ambos inconclusos, e um certo número
de Cartas. Só muito mais tarde (1852), foi encontrado e publicado o
Breve tratado sobre Deus e sobre o homem e a sua felicidade na
tradução holandesa.

A 21 de Fevereiro de 1677, Espinosa morria com 44 anos, de


tuberculose. A sua vida foi a de um homem livre, sem paixões,
dedicado exclusivamente à filosofia e alheio a todas as atitudes
heroicizantes ou retóricas. Mas, logo após a morte, a sua própria
figura de homem foi envolvida na condenação unânime que sofreu a
sua filosofia, considerada como puro e simples "ateísmo". O
núcleo desta filosofia estava condensado na tese de que Deus é "o
conjunto de tudo o que existe" (cfr., por ex., Malebranche,
Entretiens de métaphysique,
1688, IX) e o atributo mais benévolo que se lhe dirigia era o de
"miserável". Já Pedro Bayle, nos Pensamentos sobre o cometa
(1682), defendendo a
tese de que se pode ser atéu e de costumes perfeitos, asseverava
ser esse o caso de Espinosa. Mas nem por isso renunciava a
considerar e a criticar a doutrina de Espinosa exclusivamente sob o
aspecto do ateísmo. óbviamente, uma interpretação do espinosismo
que fugisse à polémica religiosa só podia fazer-se quando a doutrina
de Espinosa fosse abordada nos seus conceitos filosóficos
fundamentais. E tal só ocorreu com o romantismo que, a partir de
Fichte, viu na substância espinosana o próprio Infinito na sua
expressão objectiva.
198

§ 427. CARACTERISTICAS DO ESPINOSISMO

Descartes reduzira a um rígido mecanismo, a

Lima ordem necessária, o mundo inteiro da natureza; mas excluíra o


homem enquanto substância pensante. A substância extensa é
mecanismo e

necessidade, segundo Descartes, mas a substância pensante, a


razão humana, é liberdade, e como tal potência absoluta de domínio
sobre a substância extensa. Espinosa fixou a sua atenção sobretudo
no homem, na sua vida moral, religiosa, política, e a sua tentativa
consistiu em reduzir toda a existência humana à mesma ordem
necessária que Descartes reconhecera apenas no mundo da
natureza. Necessidade e liberdade, mecanismo e razão distinguem-
se e opõem-se, segundo Descartes; identificam-se, segundo
Espinosa.

Espinosa pretende assim restabelecer a unidade do ser que


Descartes cindira com a separação das substâncias o que lhe havia
sido ensinada pela tradição neoplatónica ainda viva na comunidade
judaica em que se formara. A realidade, a substância, é uma só,
única é a sua lei, única a ordem que a

constitui. A característica fundamental do pensa. mento espinosano


é a síntese que ele realizou entre concepção metafísico-teológica e
a concepção científica do mundo. A sua filosofia parte da noção da
natureza e, da perfeição de Deus, mas chega a

uma concepção do mundo que apaga todas as exigências da ciência


física. A tradicional teologia e a nova ciência da natureza fundem-
se intima199

mente na obra de Espinosa. O ponto de fusão, o

conceito central que a torna possível é o da substância. Descartes


distinguira (Prine. phil. 1, 51) três substâncias, a pensante, a
exterior e a divina, mas tivera de reconhecer que o termo
substância possui um significado diverso consoante é referido a
Deus ou às substâncias finitas; porque enquanto referido a Deus
significa uma realidade que para existir não tem necessidade de
nenhuma outra realidade, referido à alma e às coisas significa uma
realidade que para existir somente tem necessidade de Deus. Mas
para Espinosa só existe um significado autêntico do termo, que é o
que ele tem referido a

Deus. Não há outra substância, isto é, outra realidade independente


que não seja o próprio Deus. Deus torna-se então a origem, a fonte
de toda a realidade, a unidade absoluta (no sentido neoplatónico), a
única fonte donde pode brotar a multiplicidade das coisas
corpóreas e dos seres pensantes. Deste modo, reconduz Espinosa à
unidade neoplatónica e à ordem necessária em que a substância se
manifesta os aspectos da realidade que Descartas distinguira e
separara. Sobretudo procura reconduzir a ela o mundo humano: as
paixões e a razão do homem e tudo o que nasce das paixões e da
razão: a moralidade, a religião e a vida política. Daí que tenda a
anular toda a separação e distinção entre a natureza e Deus e a
identificá4os, como já fizera Giordano Bruno (§ 380), a

considerar os decretos de Deus como leis da Natureza e


reciprocamente, a retirar à acção de Deus todo o carácter
arbitrário e voluntário e, por isso,

200
recusando todo o carácter finalista da ordem do inundo; por último,
a identificar a Natureza e Deus com a ordem geométrica do mundo.
Porém, ao mesmo

tempo Espinosa. pretende que esta filosofia da necessidade sirva à


liberdade do homem e, por isso, coloca essa liberdade não no livre-
arbítrio mas no reconhecimento da ordem necessária,
reconhecimento em virtude do qual o homem deixa agir em si mesmo
a necessidade da ordem divina do mundo.

§ 428. ESPINOSA: A Substância

Em De intellectus emendatione, obra que deixou inconclusa porque


os pensamentos que aí esboçara haviam encontrado a sua expressão
definitiva na

Ética, mas que se apresenta como uma espécie de Discurso sobre o


método, declara Espinosa qual é o escopo do seu filosofar. Esse
escopo é o

conhecimento da unidade da mente com a totalidade da natureza.


Para a obter, é necessário que o homem ao mesmo tempo se,
conheça a si mesmo e conheça a natureza, que se aperceba das
diferenças, das concordâncias e das oposições que subsistem entre
as coisas, a fim de que veja aquilo que elas lhe permitem ver e qual
é a sua própria natureza e o

seu próprio poder de homem (Op., ed. Van Vloten e Land, 1, p. 9).
Com vista a isso, o único conhecimento utilizável é aquele género de
percepção em
que o objecto é percebido só através da sua essência ou através da
noção da sua causa próxima, enquanto que são inutilizáveis os outros
tipos de

201

percepção, tais como a simbólica, a produzida por uma experiência


acidental e a deduzida inadequadamente de um certo efeito. O
conhecimento que é necessário ao homem é o que se adequa
plenamente à ideia do objecto e tem por isso em si a garantia
necessária da sua verdade. O problema do método é o problema da
via que leva a um

conhecimento desse género. O método não é, segundo Espinosa, a


procura de uma garantia da verdade que decorra da aquisição das
ideias, mas é antes a via para procurar na ordem devida a própria
verdade, isto é, a essência objectiva das coisas. Espinosa define por
isso o método como conhecimento reflectido ou ideia da ideia. E
uma vez que não pode dar-se a ideia da ideia se antes não se deu a
ideia, o método será a via através da qual a mente deve dirigir-se
para alcançar a norma

de uma dada ideia verdadeira. Mas de que ideia verdadeira já dada


deverá o método procurar a

norma? Evidentemente, da ideia mais excelente entre todas, que é a


do ser perfeitíssimo. O melhor método será, portanto, o que mostra
como a mente se deve orientar para descobrir a norma da ideia do
ser perfeitíssimo (Op., 1, p. 12).

Deste modo, já a determinação do método em De intelectus


emendatione levava Espínosa a pôr no centro da sua doutrina a
concepção do ser perfeitíssimo, ou seja, de Deus. E é tal concepção
o
ponto de partida da Ética, cujo primeiro capítulo se intitula "Deus".
Espinosa concebe Deus como a única substância que existe em si e é
concebida por si, isto é., que para existir não tem necessidade

de nenhuma outra realidade e que para ser concebida não necessita


de nenhum outro conceito. Tal substância é causa de si mesma, no
sentido de que sua essência implica a sua existência e que não pode
ser concebida senão como existente. Ela é infinita, uma vez que não
há nenhuma outra substância que a limite, e consta de infinitos
atributos; entendendo por atributo o que o intelecto dela percebe
como constitutivo da sua essência. Devido a esta infinidade dos
atributos, isto é, da essência divina, devem derivar de Deus
infinitas coisas de infinitos modos: de sorte que, enquanto Deus não
é causado por nada e é causa sui, é causa eficiente de tudo o que
existe. Cada coisa existente é portanto um modo, isto é, uma
manifestação de Deus. Natura naturante é a própria substância,
isto é, Deus, na sua essência infinita; natura naturata são os modos,
quer dizer, as manifestações simples da essência divina.

Destas teses fundamentais decorre que nada pode existir fora de


Deus e nada pode existir senão como

um modo de Deus. Mas Deus não produz os infinitos modos


mediante uma acção criadora arbitrária ou voluntária. Tudo procede
de Deus devido unicamente às leis da sua natureza e a liberdade da
acção divina consiste precisamente na sua necessidade, quer dizer,
na sua perfeita conformidade com a natureza divina. Por via desta
necessidade nas coisas não há nada de contingente, isto é, nada
existe que possa ser diverso daquilo que é. Tudo é necessário
enquanto é necessariamente determinado pela necessária natureza
de Deus. As coisas

203
não poderiam ter sido produzidas por Deus de outra maneira ou
noutra ordem diferente daquela por que foram produzidas. Deus
não tem vontade livre ou

indiferente. A sua potência identifica-se com a sua

essência e tudo aquilo que ele pode, existe necessariamente.

§ 429. ESPINOSA: A NECESSIDADE

Espinosa conclui a primeira parte da sua Ética com uma negação


categórica da vontade humana. Nada existe no mundo que não
derive de um aspecto necessário de Deus e que portanto não seja
intrinsecamente determinado. O homem julga-se liberto porque é
consciente da sua vontade mas ignora a

causa que a determina, ora esta causa é o Próprio Deus, que


determina a vontade humana, como todos os outros modos de ser,
necessariamente. Nenhuma diferença existe sob esse aspecto
entre o homem e a natureza. Tudo é necessário num como noutra. A
propósito disto, Espinosa faz uma crítica radical ao finalismo,
crítica cuja conclusão é assaz simples: não existem fins nem para o
homem, nem para a

natureza. Admitir na natureza causas finais é um prejuízo devido à


constituição do intelecto humano. Os homens pretendem todos agir
com vista a um

fim, isto é, a uma vantagem ou a um bem que desejam obter. E uma


vez que encontram à sua disposição um certo número de meios paira
obterem os seus fins (por exemplo, os olhos para ver, o sol para
iluminar, as ervas e os animais para se alimentarem, etc.) são
levados a considerar as coisas

204

naturais como meios para a obtenção dos seus fins. E como sabem
que tais meios não foram produzidos por si próprios, julgam que
foram destinados ao uso deles por Deus. Assim nasce o preconceito
de que a divindade produz e governa as coisas para uso dos homens,
para ligar os homens a si e para ser honrada por eles. Mas, por
outro lado, os homens observam que a natureza lhes oferece não só
facilidades e comodidades, mas também incomodidades e
desvantagens de toda a espécie (doenças, terremotos, intempéries,
etc.); e crêem então que estes infortúnios derivam de não terem
venerado devidamente a divindade que por isso se encoleriza. E,
posto que a experiência de todos os dias denuncie e mostre com
infinitos exemplos que as vantagens e os danos se distribuem
igualmente por pios e ímpios, os homens, em vez de abandonarem o
seu preconceito, preferem recorrer a outro

preconceito para escorar o primeiro; e admitem que o

juizo divino supera em larga medida o do homem. Isto, nota


Espinosa, teria bastado para que a verdade se ocultasse
eternamente ao género humano, se a matemática (a qual concorre
não aos fins mas somente às essências e às propriedades das
figuras) não houvesse mostrado aos homens uma outra norma da
verdade. Além da matemática, outras causas fizeram com que os
homens se apercebessem destes preconceitos vulgares e fossem
reconduzidos ao verdadeiro conhecimento das coisas.

Esta análise explicativa. dos preconceitos que se

formam nos homens em virtude das tendências constitutivas da sua


natureza, aparenta Espinosa com

205

os empiristas ingleses. A ela se segue a crítica das causas finais.


Esta doutrina considera como causa o que é efeito, e vice-versa:
põe depois o que na natureza está antes e torna imperfeito o que é
perfeitíssimo. É, de facto, perfeitíssimo o efeito que é produzido
imediatamente por Deus, imperfeito o

que, para ser produzido, tem necessidade de causas

intermédias. Evidentemente, se tais coisas fossem feitas por Deus


como meios para obter um certo

fim, seriam menos perfeitas do que as outras. Mas a doutrina das


causas finais não só tira a perfeição ao mundo, como tira também a
perfeição a Deus. Se Deus agisse para um fim, necessariamente
quereria algo de que careceria. Espinosa afirma a este

propósito, não ser válida a distinção teológica entre o "fim de


indigência" e o "fim de assimilação". Se Deus não pôde criar senão
tendo-se a si próprio em vista, na realidade criou tendo em vista
algo de que carecia. A concepção finalista do mundo não passa de
um produto da imaginação: consiste na tentativa de explicar o
mundo mediante noções como o bem, o mal, a ordem, a confusão, o
calor, o frio, o belo, o feio, as quais não exprimem senão o modo
como as coisas impressionam os homens e

não têm valor objectivo nem podem de modo algum valer como
critérios para entender a realidade mesma. Uma vez mais, a
correcção de tais preconceitos faz-se na matemática, na qual já não
valem as valorizações individuais e que por isso subtrai o homem aos
prejuízos da imaginação. A perfeição das coisas, diz Espinosa (Et.,
1, ap., Op., 1, p. 61) deve ser valorizada apenas pela natu206

reza e potência delas, e as coisas não são mais ou menos perfeitas


conforme agradem ou ofendam os sentidos dos homens ou conforme
convenham ou repugnem à natureza humana. Não se procure por isso
saber de :onde emanam as perfeições da natureza, dado que toda a
natureza decorre necessariamente da essência de Deus. Não
existem imperfeições na natureza. As leis da natureza divina são
tão amplas que bastam para produzir tudo o que pode ser concebido
por um intelecto infinito. Do ponto de vista deste intelecto infinito
e não já do ponto de vista dos indivíduos e empíricas valorizações
humanas, é que cumpre colocar-se para entender verdadeiramente a
natureza do universo em relação com a sua causa necessária e
necessitante, que é Deus. E o apelo à matemática evidencia a

norma que, segundo Espinosa, deve seguir a autêntica reflexão


sobre o mundo. Ela deve visar exclusivamente à ordem necessária
em virtude da qual as coisas, como modos da substância divina, se
deixam deduzir necessariamente dela.

§ 430. ESPINOSA: A ORDEM GEOMÉTRICA

A substância divina é a primeira e única realidade; o o conhecimento


de Deus o primeiro e único conhecimento verdadeiro. Estas teses
fundamentais do espinosismo põem imediatamente em evidência o
problema da substância. É este, na realidade, o único problema do
espinosismo porque os outros se reduzem a ele, assim como todos
os aspectos

207

da realidade se reduzem para Espinosa a modos ou manifestações


da substância. E é um problema cuja solução pode resultar apenas
de uma vista total e completa da doutrina de Espinosa, mesmo nos
seus

aspectos éticos, políticos e religiosos. Porém, uma vez

que o exame deste aspecto resultaria extremamente frágil e


incerto sem uma preliminar solução do problema da substância, é
melhor defrontar neste ponto o problema mesmo, optando por pôr à
prova, na

subsequente exposição da doutrina, a solução entrevista. . A


primeira e mais evidente característica da substância
espinosana é que ela é a coincidência e a identidade da Natureza
com Deus. Já no Breve Tratado teológico-político, começando a
tratar da profecia (isto é, da revelação de Deus aos homens),
Espinosa põe imediatamente a par dela o conhecimento natural:
também ele é divino, "porque a natureza de Deus, enquanto dela
participamos, e os decretos dele quase a ditam a nós". A
identificação da natureza com Deus leva-o a negar o milagre,
O milagre assenta no prejuízo de que a natureza e Deus são duas
potências numericamente distintas e

que a potência de Deus é a de um soberano sobre o seu reino.


Espinosa afirma que "as leis universais da natureza são s@>mente
decretos' de Deus que emanam da necessidade e da perfeição da
natureza de- Deus". Por isso, se na natureza ocorresse algo de
contrário às leis naturais, isso seria necessariamente contrário ao
decreto, ao intelecto e à natureza divinas. E se alguém afirmasse
que Deus poderia agir contra as leis da natureza, admitiria que Deus
pode208

ESPINOZA
ria agir contra a sua própria natureza. Em conclusão, "a virtude e a
potência da natureza são a própria virtude e potência de Deus e as
leis e regras da natureza os próprios decretos de Deus". Não
subsiste portanto o milagre como uma suspensão das leis da
natureza, como se ele não a houvesse sabido criar bastante potente
e ordenada para que servisse em todos os casos aos seus desígnios.
O chamado milagre é apenas um acontecimento ou um facto cuja
causa natural nos escapa, porque é fora do comum ou porque
simplesmente aquele que o

narra o não sabe ver. (Tract. teol.-pol., 6). A crença nos milagres
pode conduzir ao ateísmo, porquanto conduz a duvidar da ordem que
Deus estabeleceu para a eternidade mediante as leis naturais.

Destes textos do Tratado teológico-político e do primeiro livro da


Ética (já exposto no § 428) resulta que a identidade da natureza de
Deus se realiza no âmbito de um conceito que a ambos compreende
e que é o da ordem necessária. E a primeira característica desta
ordem necessária é que ela não coincide com a ordem reconhecida e
posta em vigor pela razão humana. ""A natureza, diz Espinosa (lb.,
16), não se restringe às leis da razão humana, as quais tendem
apenas à utilidade e à conservação dos homens, mas estende-se, a
infinitas outras leis que concernem à ordem eterna da natureza
inteira de que o homem é apenas uma parcela". O que na

natureza nos parece ridículo, absurdo, mau, é tal só pela nossa


valorização, pois ignoramos em parte a ordem e a conexão máxima
da totalidade da natureza e julgamos apenas do ponto de vista da
nossa

209
humana razão. O mal é-o não em relação à ordem e às leis da
natureza universal mas apenas relativamente às leis da nossa
natureza. Espinosa pretende superar o ponto de vista da razão
humana e colocar-se no ponto de vista da ordem necessária. Ele
declara não reconhecer nenhuma diferença entre os homens e os
outros indivíduos da natureza nem entre os homens dotados de
razão e os que ignoram * verdadeira razão, e entre os fátuos, os
delirantes * os sãos. "De facto, seja o que for que um ser

faça segundo as leis da sua natureza, fá-lo por um

seu sumo direito, isto é, porque é determinado a

fazê-lo pela natureza e não poderia fazer de outro modo". De sorte


que o direito natural que para Grócio (§ 348) era a norma da razão,
é para Espinosa definido exclusivamente pela necessidade, pela qual
precisamente entra na ordem natural. "Por direito e instituição
natural não entendo outra coisa senão as regras da natureza de
cada indivíduo, segundo as quais o concebemos naturalmente
determinado a existir e a actuar de um certo modo" (Ib.,
16; Tract. pol., 2, 18).

Destas considerações se pode concluir que para Espinosa a


substância como identidade da natureza com Deus, é a ordem
necessária do todo. Veremos que esta tese também torna inteligível
e clara a gnoseologia e a ética de Espinosa. Entretanto, é evidente
que ela exclui as duas teses opostas, que entraram em campo sobre
a interpretação historiográfica do espinosismo (e que foram
protagonistas de uma famosa polémica), embora justificando estas
teses na parcial verdade que contêm. A substância

210
espinosana não é decerto razão, dado que a razão

tem, segundo Espinosa, um campo bastante restrito, designando a


ordem que tem o seu centro naquela parte da natureza que é o
homem. Por outro lado, todavia, é verdade que a substância, como
ordem necessária, é norma da razão e é em geral o princípio a
que ela deve adequar-se nas suas valorizações para chegar ao
terceiro género de conhecimento, isto é, ao conhecimento
pleno e perfeito (§ 43 1).

Em segundo lugar, a substância não pode ser considerada como


causa (segundo a outra das duas interpretações fundamentais),
porque a causa deixa fora de si aquilo de que é causa; e a substância
é ao mesmo tempo naturante e natureza naturada, porquanto, como
ordem necessária, compreende ao

mesmo tempo o necessitante e o necessitado, o atributo e os


modos, o uno e o multíplice. Por outro lado, implica um elemento
dinâmico e generativo que foi obscurecido pelo conceito de causa.
Como se pode adequadamente exprimir este elemento?

Estamos aqui perante a última determinação fundamental da


substância espinosana. Para esclarecer a dependência dos modos
simples da substância, podia Espinosa valer-se dos dois modelos
tradicionais: a doutrina da criação e a doutrina da emanação. Ele
excluiu formalmente a doutrina da criação, porquanto, como se viu,
assenta na impossível redução do modo de agir da substância ao
modo de agir do homem. A criação suporia intelecto, vontade,
arbítrio, escolha, coisas que, segundo Espinosa, não têm sentido
quando referidas à substância

211
divina. Mas a exclusão da doutrina da criação significará que ele
tenha aceite a doutrina da emanação? Na doutrina de Espinosa, não
há vestígios de tal aceitação, que teria feito da sua doutrina a
exacta repetição da doutrina de Bruno. É preciso não esquecer que
entre Espinosa e Bruno se encontram Galileu, Descartes, Hobbes: é
a primeira formação da ciência, inteiramente polarizada em torno
do principio da estrutura matemática do universo. Assim se explica
por que é que a matemática é explicitamente invocada por Espinosa
como salvação dos preconceitos (Et., 1, ap.), assim como se explica a

forma da sua obra máxima. A ordem necessária, constitutiva da


substância, é unia ordem geométrica. Este esclarecimento
estabelece imediatamente a originalidade do espinosismo em
relação a todas as formas de emanatismo. A substância espinosana
não é a

Unidade inefável da qual brotam as coisas por emanação, conforme


a doutrina tradicional do neoplatonismo. Nem é tão-pouco a
natureza infinita que pela sua superabundância de poder gera
infinitos mundos, segundo o naturalismo de Giordano Bruno. Da
substância divina brotam os modos particulares como da geometria
brotam os teoremas, os corolários, os lemas. A forma exterior da
Ética não é ditada a Espinosa por um preconceito matemático, que
ele tivesse extraído de Descartes, nem do desejo de macaquear, na
ordem formal da exposição, o

rigor do procedimento matemático, mas da convicção inabalável de


que a ordem geométrica é a substância mesma das coisas, isto é,
Deus. A necessidade intrínseca da natureza divina é uma necessi212

dade geométrica, similar àquela pela qual as proposições


particulares da geometria se concatenam e se soldam no seu
conjunto. Espinosa quis reproduzir na ordem da sua exposição a
própria ordem da necessidade divina. Nesta ordem, a multiplicidade
dos modos não contradiz a unidade porque a

unidade é a própria conexão dos modos e os modos realizam no seu


ser e no seu agir a ordem unitária. "Qualquer que seja o modo como
concebamos a natureza, diz Espinosa (Et., H, 7, escol.), sob o

atributo da extensão, ou sob o atributo do pensamento, ou sob


qualquer outro, sempre encontraremos uma ú nica e mesma ordem,
uma única e mesma conexão de causas, isto é, uma única e mesma
realidade". Esta ordem, esta conexão, esta realidade, é o Deus sive
natura, a Substância.

§ 431. ESPINOSA: PENSAMENTO E EXTENSÃO

Do conceito da substância como ordem geométrica necessária do


todo decorre imediatamente que, por muito diversos e infinitos que
sejam os atributos da substância, isto é, os aspectos da essência
divina, devem todos apresentar no seio deles a mesma ordem e a
mesma conexão dos modos em que se manifestam. Ora pensamento
e extensão são, segundo Espinosa, dois atributos de Deus; as ideias
são modos do pensamento, os corpos mo-dos da extensão. A ordem
e o nexo das ideias devem ser pois idênticos à ordem e ao nexo das
coisas (Et.,
11, 7). Isto implica que, a fim de que se considerem

213

as coisas como modos do pensamento, é preciso explicar a ordem


causal da natureza somente pelo atributo do pensamento; e
enquanto se consideram as coisas mesmas como modos da extensão
deve-se explicar esta ordem só pelo atributo da extensão. Por
outros termos, importa procurar a causa de uma ideia noutra ideia,
e a causa destoutra numa outra ainda, e assim até ao infinito; e isto
é válido também para os corpos, que são modos da extensão. Nunca
se encontrará, portanto, uma ideia que seja causa de um corpo ou
um corpo que seja causa de uma ideia: a causalidade concatena os
modos só na unidade do próprio atributo. Além disso, nunca

se encontrará a casualidade divina senão sob a forma da


causalidade finita dos modos particulares, uma

vez que os modos não são senão Deus e Deus não é senão os modos
(Ib., 11, 9).

Espinosa pretende aplicar estes principios "à cognição da mente


humana e da sua beatitude"; e por isso procura explicar por eles a
natureza e o funcionamento da mente humana. A mente humana é
parte do infinito intelecto de Deus; é uma ideia, um modo do
atributo do pensamento. Mas é uma

ideia de uma coisa existente, de um objecto real. Esta coisa


existente, este objecto real cuja ideia é a alma humana, é o corpo,
que é um modo da extensão. O homem consta portanto de mente e

corpo. E uma vez que o corpo é o objecto da ideia da mente, esta


terá a ideia também de todas as modificações que são produzidas
no corpo pelos outros corpos. Assim, a ideia que constitui a alma
humana não é una mas multíplice, já que implica

214

as ideias de todas as modificações que o corpo, seu objecto, sofre,


e por isso igualmente das dos outros corpos enquanto modificam o
próprio corpo. Daí que a mente humana considere como existente
em acto não só o corpo que ela tem por objecto, mas também os
corpos exteriores que sobre ela actuam (lb., 11, 17). A mente não
conhece os corpos exteriores senão por meio das ideias das
modificações do próprio corpo, e estas ideias são sempre confusas,
porque não são situadas e reconhecidas na ordem necessária da sua
derivação de Deus (da qual são modos) e portanto são, diz Espinosa,
"consequências sem premissas" (lb., 11, 28). O carácter confuso e
inadequado das ideias não lhes tira todavia a necessidade, porque
também as ideias inadequadas e confusas são modos de Deus e
participam da sua absoluta necessidade. E uma vez que o erro

consiste precisamente nas ideias inadequadas e confusas, também o


erro é necessário e entra como tal na ordem do todo.

Mas nesta ordem entra também, naturalmente, a verdade e o


conhecimento adequados. Espinosa distingue a este propósito três
géneros de conhecimento. O conhecimento do primeiro género é a

percepção sensível e a imaginação. A consciência do segundo género


é a das noções comuns e universais que são o fundamento de todos
os raciocínios; e

este segundo género de conhecimento é a razão.


O terceiro género de conhecimento que Espinosa denomina ciência
intuitiva é aquele que parte da ideia adequada de um atributo de
Deus para o conhecimento adequado das manifestações ou dos

215

modos dele. Só o conhecimento do segundo e do terceiro género os


habilita a distinguir o verdadeiro do falso. Só ele, com efeito, tira a
ideia do seu isolamento e a li,,a às outras ideias, situando-@ ordem
necessária da substância divina. Ora se uma ideia é concebida nesta
ordem necessária ou, como Espinosa diz, sob o aspecto da
eternidade (sub specie aeternitatis), ela é necessàriamente
verdadeira, porque necessàriamente corresponderá ao seu objecto
corpóreo, dado que a ordem das ideias e dos objectos é uma só.
Consequentemente, considerar as

ideias na sua verdade significa considerar as coisas como


necessárias, porquanto significa remontar com a razão à ordem
imutável em que todas as coisas, ideias ou corpos, surgem como
necessária. manifestação de Deus (Ib., 11, 14). De modo que também
a análise da mente a que Espinosa procede no segundo livro da Ética
chega à mesma conclusão da consideração metafísica de Deus que o
filósofo estabelecera na primeira parte. No termo da segunda
parte, depois de ter afirmado a identidade da vontade com o
intelecto do homem e de ter negado que uma e outra sejam alguma
coisa fora das volições e

ideias particulares, Espinosa expõe as vantagens que resultam para


o homem das teses que afirma haver demonstrado. A primeira
vantagem fundamental é a de que o homem, convencendo-se de que
age apenas conforme o querer de Deus, tranquiliza

o seu espírito no reconhecimento da vontade a que está sujeito e


abandona a pretensão de que Deus o recompense pela sua virtude.
Além disso, o homem começa a fazer face às vicissitudes da
fortuna, por216

quanto se convence de que todas as coisas, mesmo as


aparentemente mutáveis, derivam da essência divina pela mesma
necessidade com que da essência do triângulo resulta serem os seus
ângulos iguais a dois rectos (Op., 1, p. 116). Começa assim a tornar-
se

evidente a atitude de que a obra de Espinosa nasce


e que ela tende a sugerir e a consolidar no homem: uma atitude de
tranquila aceitação do curso das coisas, considerado, mesmo nos
mínimos pormenores, inevitável e necessário.

§ 432. ESPINOSA: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE DO HOMEM

Esta atitude inspira o estudo das emoções nas últimas partes da


Ética. Iniciando este estudo, declara Espinosa que ele considera as
emoções não como coisas que estão fora da natureza, mas como
coisas naturais e sujeitas às leis comuns da natureza. Espinosa está
convencido de que a natureza

é sempre a mesma, que as suas leis valem em todos os campos,


inclusivamente para o homem, que portanto nada é possível
entender do homem e das suas emoções senão à base destas leis. É
necessário tratar de modo geométrico as acções e os desejos dos
homens, "tal qual como se se tratasse de linhas, de planos e de
corpos".

Sobre esta base construiu Espinosa a sua geot@7,etr,;(1 das


emoções que é ao mesmo tempo a análise da escravidão e da
liberdade humana, dado que considera o poder das emoções sobre o
homem

217

e o poder do homem sobre as emoções. Tal análise baseia-se num


reduzido número de princípios, que não são propriamente do homem
mas pertencem a todos os entes em geral. O princípio fundamental
é o de que cada coisa tende a manter o seu próprio ser e que este
esforço (conatus) de autoconservação constitui a essência actual da
coisa mesma (Et., M,
6-8). Quando este esforço se refere só à mente chama-se vontade;
quando se refere ao mesmo tempo à mente e ao corpo chama-se
apetite. O apetite é a

própria essência, do homem, de cuja natureza derivam


necessariamente todas as acções que sorvem para a sua
conservação e que por isso mesmo são pelo apetite necessariamente
determinadas. Quando o apetite é consciente de si denomina-se
cupidel, (cupiditas). Daí decorre, segundo Espinosa, que o

homem não tem em vista, quer, deseja ou cobiça uma coisa porque a
tem em vista, a quer, a deseja

e a cobiça (Ib., 111, 9, esc.).

Deste instinto do homem, instinto que não tem outro fim senão a
conservação do próprio ser, derivam as emoções fundamentais. Por
emoção entende-se, segundo Espinosa, a passividade da mente que
consiste na inadequação e confusão das ideias. A mente sofre
quando possui ideias inadequadas e

confusas; age quando possui ideias adequadas. A ideia adequada é a


ideia que se sabe claramente ser derivada de Deus e de que se
conhecem por isso os feitos que derivam claramente dela enquanto
é um modo da essência divina. Quem tem uma ideia adequada realiza
por isso necessariamente alguma coisa (lb., 111, 1). Posto isto, as
emoções

218

fundamentais são a alegria e a tristeza. A alegria é a emoção


conexa à conservação e ao aperfeiçoamento do próprio ser, a
tristeza é a emoção conexa a uma diminuição dele. Quando alegria e
tristeza são acompanhadas pela ideia de uma causa externa que a
produz, dão origem ao amor e ao ódio, emoções pelas quais o homem
procura o que lhe proporciona alegria e foge àquilo que lhe
proporciona tristeza (lb., 111, 13, esc.). Destas emoções
fundamentais procedem todas as outras, as quais, de facto,
Espinosa deduz geometricamente, sem estabelecer entre elas
nenhuma distinção moral mas considerando-as todas, quer sejam
chamadas boas ou más, como manifestações naturais e necessárias
do homem, portanto do próprio Deus que no homem é e age. Sobre
esta noção das emoções se funda a sua análise da escravidão
humana.

Espinosa corrobora a este propósito a relatividade e a


insignificância das valorizações humanas. A natureza não tem
nenhum fim, mas age apenas por uma necessidade intrínseca. Os
conceitos de perfeição ou de imperfeição não têm significado para
ela: são conceitos humanos, que o homem constrói comparando
entre si coisas do mesmo género e da mesma espécie. Isto aplica-se
igualmente aos conceitos do bem e do mal. Uma mesma coisa pode
ser boa ou má ou mesmo indiferente: a música, por exemplo, é boa
para o melancólico, má para quem está de luto, nem boa nem má para
o surdo. Sendo assim, com as palavras perfeição e imperfeição não
se pode indicar outra coisa senão a realidade e a irrealidade. Pode
dizer-se que

219

uma coisa adquire unia perfeição maior apenas no

sentido de que aumenta o poder de agir que está implícito na sua


essência. Para o homem, por exemplo, a perfeição constituirá no
passar do conhecimento inadequado e confuso, pelo qual é passivo,
ao conhecimento adequado, pelo qual se torna activo e liberto.
Este ponto de vista faz do mal e do bem valores que são tais
unicamente em relação com a

natureza própria do homem, isto é, do instinto ou

desejo fundamental que o constitui. E uma vez que este instinto visa
a autoconservação, o bem será aquilo que serve a tal conservação, o
mal aquilo que a perjudica (Ib., IV, 8). Deste modo o bem é
identificado ao útil, e a busca do útil torna-se a forma fundamental
da razão. "A razão, diz Espinosa" (Ib., IV, 18, esc.), nada exige
contra a natureza; mas ela mesma exige que cada um se ame

a si próprio e procure o bem próprio, que verdadeiramente seja tal,


e deseje tudo o que verdadeiramente conduz o homem a uma maior
perfeição; e, de um modo absoluto, que cada um se esforce, no que
lhe, diz respeito, por conservar o seu próprio sem. A virtude não é
portanto algo diverso da natureza e, ainda menos, oposto a ela. É a
própria tendência natural para a autoconservação. Mas como no
homem tal tendência natural actua tanto mais eficazmente e melhor
quanto se vale da razão, que é precisamente a busca do útil, assim a
virtude humana está essencialmente ligada ao uso

da razão. Por isso Espinosa diz que o bem ou o mal para o homem são
verdadeiramente aquilo que

220

permite entender e aquilo que impede de entender Ub., IV, 26). E


visto que o mais alto objecto que o homem pode entender é Deus, o
sumo bem da mente humana é o conhecimento de Deus (lb., IV, 28).

Seguir a razão significa para o homem ser activo, quer dizer ter
ideias adequadas. A emoção, ao invés, é uma ideia confusa; e a
emoção não é nunca um absoluto poder do homem porque o

homem é uma parte da natureza e as suas emoções são


determinadas também pelas outras partes da natureza. Sucede,
assim, que uma emoção não pode ser reprimida ou destruída senão
por uma

emoção contrária e mais forte e que o próprio conhecimento do bem


ou do mal não pode reprimir nenhuma emoção senão na medida em
que se torna ele próprio emoção, e emoção mais forte do que as
outras (Ib., IV, 14). Espinosa analisa as emoções com o intuito de
descobrir quais delas são conformes à razão e portanto próprias do
homem livre. Existem emoções que por si mesmas são sempre boas,
como a alegria, a jovialidade; outras que são em si mesmas más,
como a tristeza, a melancolia, o ódio; outras que são boas ou más,
conforme a sua mistura, como o amor e o desejo.
Consequentemente, o homem que vive de acordo com a razão não
responde ao ódio com o ódio, ao desprezo com o desprezo, etc., mas
opõe o amor

e a generosidade a essas emoções más. "Quem sabe bem, diz


Espinosa (Ib., IV, 50, esc.) que tudo deriva da necessidade da divina
natureza e acontece segundo as leis e as regras eternas da
natureza,

221

decerto nunca encontrará nada que seja merecedor de ódio, de riso


ou de desprezo, nem terá compaixão de ninguém; mas, no que lhe
compete, a

virtude humana esforçar-se-á por agir bem, como se, diz, e por ser
alegre. É de acrescentar que quem facilmente se deixa possuir pela
compaixão e se

comove com a miséria e as lágrimas de outros, muita vezes faz


coisas de que se arrepende; seja porque, pelo impulso da emoção,
não fazemos nada que saibamos verdadeiramente ser bom, seja
porque somos enganados facilmente pelas falsas lágrimas. E aqui eu
falo expressamente do homem que vivo tendo por guia a razão.
Visto que não é induzido nem pela razão, nem pela compaixão a dar
ajuda aos outros, é justamente considerado desumano por parecer
dissemelhante do homem." Neste passo tão característico de
Espinosa patenteia-se o modo como ele entende substituir a emoção
pela razão como guia do homem e como entende a razão como a
recta consideração do útil religando-a assim ao impulso da
autoconservação e

dando-lhe por isso o fundamento e a corporeidade da emoção. Por


conseguinte, condena aquelas emoções que não se deixam
transformar pela razão: a

compaixão (como se viu) e depois a humildade, o arrependimento, a


soberba e a abjecção, e, enfim, o temor e, em particular, o temor
da morte. A este respeito afirma Espinosa que o homem livre em
coisa alguma pensa menos do que na morte, e a sua sapiência é uma
meditação não da morte, mas

da vida (lb., IV, 67). O pensamento da morte 'surge a Espinosa como


temor da morte e portanto

222

como estranho a quem deseja "agir, viver, conservar o seu próprio


ser tendo por base a busca do seu próprio bem". Também na
consideração da escravidão humana, Espinosa é optimista. O mal é
uma ideia inadequada porque é a própria tristeza que corresponde à
passividade e à imperfeição do homem. Donde se segue que a mente
humana não teria noção do mal, se tivesse apenas ideias adequadas
(Ib., IV, 64, cor.) e que não haveria distinção entre bem e mal se o
homem nascesse livre e permanecesse livre, uma vez que quem é
livre tem apenas ideias adequadas. Espinosa nota logo que a
hipótese não é verdadeira, mas o tê-la formulado revela a sua
convicção íntima de que o

estado de escravidão do homem, que é ao mesmo

tempo o de queda ou de decadência no erro, é provisório e


destinado a ser vencido e superado. Esta vitória, com efeito, é
celebrada na quinta parte da Ética.

O homem que domina as emoções, o homem livre, é aquele que,


tendo compreendido a natureza das emoções, é capaz de agir
independentemente delas. A emoção faz agir o homem com mira na
alegria e na tristeza, mas a alegria e a

tristeza servem na realidade para o conservar e revigorar no seu


ser e dar-lhe uma maior realidade e perfeição. Ora o homem pode
fazer isto também independentemente da alegria e da tristeza,
agindo com vista ao útil. Nesse caso abrir-se-á diante dele a vida da
razão e da liberdade. O homem compreenderá as suas próprias
emoções e na medida em que as compreender deixará de ser
escravo delas. Uma

223

emoção é, de facto, uma ideia inadequada e confusa que a mente


pode levar à adequação e à distinção subtraindo-se assim à
passividade que ela implica (Ib., V, 3). Mas compreender
adequadamente uma razão significa compreender a sua necessidade,
pela qual é natural e inevitável. O reconhecimento desta
necessidade é a primeira condição do domínio humano sobre as
emoções. Chora-se menos

por um bem perdido quando se sabe que a perda é inevitável; não


se lamenta um menino que não sabe falar nem raciocinar porque se
sabe que essa

condição é inevitável e natural. E assim todas as emoções diminuem


o seu poder sobre o homem à medida que o homem descobre a
natural necessidade delas. E visto ser a razão, com o seu terceiro
género de conhecimento, que faz descobrir tal necessidade, deve o
homem fiar-se na razão para alcançar a liberdade das emoções. O
terceiro género de conhecimento leva a descobrir de facto cada
coisa particular como manifestação necessária da essência divina.
Mas a contemplação desta necessidade é a contemplação do próprio
Deus. A liberdade humana, na medida em que assenta no
conhecimento da necessidade natural das emoções, e em geral de
tudo o que existe, funda-se no conhecimento de Deus. Espinosa
chama amor intelectual de Deus à alegria que nasce do
conhecimento daquela ordem necessária que é a própria substância
de Deus (Ib., V, 32). O amor intelectual de Deus é eterno e é parte
do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo (Ib., V, 36). Este
amor é a própria beatitude humana e o ponto mas alto que a
liberdade humana

224

pode alcançar. Este conceito revela claramente o último pensamento


de Espinosa, pelo que respeita a Deus e ao conhecimento adequado
do homem (conhecimento do terceiro género). Deus é a ordem
geométrica necessária do universo; o conhecimento de cada coisa
particular como elemento ou manifestação necessária desta ordem
é por conseguinte contemplação de Deus e amor intelectual dele.
O ideal geométrico de Espinosa assume a terminologia do misticismo
neoplatónico mais nada perde do seu rigor metafísico. Falando de
"ciência intuitiva", Espinosa não quis indicar outra coisa senão a
visão matemática que descobre imediatamente os

liames necessários entre as duas proposições. Tal como o misticismo


de Giordano Bruno, era na realidade um naturalismo, visto que o alvo
dele não era a Unidade transcendente mas o princípio imanente da
natureza, assim o misticismo de Espinosa é, na realidade, uma
metafísica geometrizante, para a qual o fim da união mística não é
outro do que a

estrutura matemática do universo que se reconheceu como sendo a


substância última das coisas.

§ 433. ESPINOSA: O DIREITO NATURAL

COMO NECESSIDADE

Quando Espinosa delineou na Ética a figura do homem livre,


enunciou, entre outros traços seus, a sua tendência para viver com
outros homens no âmbito do Estado. E, de facto, segundo Espinosa,
os homens têm temperamentos diversos e contrastantes enquanto
são agitados por emoções. Mas

225

quando elegem a razão para guia, visam necessariamente ao que é


essencial à natureza humana e é por conseguinte idêntico em todos.
Daí que quanto mais cada homem procura a sua conveniên. cia, tanto
mais os homens são semelhantes entre si e podem ser úteis uns
aos outros (Ét., IV, 35).
O homem livre reconhece assim a utilidade da vida associada e
livremente (e não já por temor) se conforma com as suas leis (Ib.,
IV, 73). Pode-se aperceber aqui o fundamento que Espinosa
pretende dar à vida associada dos homens. Este fundamento não é
o dever ser mas o ser: não são virtudes ou qualidades excelentes e
fantásticas, de que os homens deveriam ser dotados e não são, mas
sim as própria paixões e virtudes humanas tal como na realidade se
encontram. Iniciando o seu Tratado político, Espinosa condena os
filósofos que exaltaram no homem "uma. natureza que não existe de
facto" e cobriram de opróbio a natureza que realmente existe; e
declara, pela sua parte, querer considerar a natureza humana tal
como ela é e as emoções humanas não já como vícios mas como
propriedades que dependem da natureza do homem assim como da
natureza do ar dependem o calor, o frio, a tempestade, etc.,
"fenómenos, nota Espinosa (Tract. pol., 1, 5), que, embora nocivos,
são todavia necessários e têm causas determinadas, através das
quais nós procuramos entender a natureza deles". Este realismo
político aproxima Espinosa de Hobbes, como o aproxima dele a
intenção expressa de considerar com o método geométrico as
relações humanas que dão origem às comunidades

226

políticas. Mas Espinosa afasta-se de Hobbes e do jusnaturalismo


moderno ao reter as normas de direito natural fundadas não já na
razão humana, ruas na ordem necessária do mundo. Com efeito,
segundo Espinosa, o direito natural emana do poder de Deus; e
assim ele retoma a noção de direito natural que era própria dos
estóicos, do direito romano e da filosofia medieval.

As coisas naturais não têm em si próprias, na


sua essência, o princípio da sua existência e da sua conservação.
Este princípio é o próprio Deus. Donde se segue que a potência pela
qual as coisas naturais existem e operam é a própria potência
eterna de Deus. Ora Deus tem direito a tudo e o seu direito não é
outro senão o seu próprio poder enquanto é absolutamente livre;
por conseguinte, todas as coisas naturais têm por natureza tanto
direito quanto têm o poder de existir e de actuar, e isto porque a

potência de uma coisa natural qualquer não é mais do que a potência


de Deus que é livre em sentido absoluto. Espinosa entende então
por direito natural "as próprias leis ou regras naturais segundo as
quais todas as coisas ocorrem, isto é, o próprio poder da natureza.
O direito natural de toda a natureza e, consequentemente, de cada
indivíduo estende-se tanto quanto o seu poder. Tudo o que um
homem faz segundo as leis da sua natureza fá-lo por sumo

direito de natureza e tem sobre a natureza tanto direito quanto o


seu poder vale." (Tract, pol., 24). Estas expressões do Tratado
político são apenas verbalmente diversas das que Espinosa
empregara no Tratado teológico-político para definir o direito

227

natural. "Por direito e instituição de natureza, havia ele dito


(Tractatus teol--pol., 16), não entendo outra coisa do que as regras
da natureza de cada indivíduo, segundo as quais o concebemos
naturalmente determinado a existir o a actuar de um certo modo".
E acrescentava que "a natureza absolutamente considerada tem o
sumo direito sobre tudo o que pode, isto é, o direito de natureza
estende-se até onde se estende a sua potência". A potência da
natureza identifica-se de facto com a potência de Deus. No
pensamento de Espinosa, o direito de natureza não é portanto senão
a meessidade da acção divina. Assim substitui Espinosa o conceito
da racionalidade do direito natural, sustentado pelo jusnaturalismo,
pelo conceito da necessidade de tal direito, ligando assim o direito
natural à ordem necessária do todo, ou seja, à substância divina.

Ora se a natureza humana fosse tal que os homens vivessem apenas


segundo os preceitos da razão e não procurassem mais nada, o
direito natural próprio do género humano seria determinado só pelo
poder da razão. Mas os homens são guiados mais pela cega cupidez
do que pela razão e portanto o poder natural dos homens, quer
dizer o

direito, não deve ser definido pela razão mas pelo instinto, pelo qual
os homens são determinados a agir e pela qual tendem à sua própria
conservação. Certamente, este instinto não se origina na razão e,
por conseguinte, é mais paixão do que acção. Mas do ponto de vista
do direito natural, isto é, do poder universal da natureza, não é
possível reconhecer nenhuma diferença entre as tendências que

228

são geradas pela razão e aquelas que têm outras causas, pois que
umas e outras são efeitos da natureza e manifestam a força natural
pela qual o

homem tende a conservar o seu próprio ser. Uma vez mais Espinosa
declara a este propósito que "o homem, quer seja sapiente ou
ignorante, é parte da natureza e tudo aquilo por que é determinado
a agir deve ser referido ao poder da natureza enquanto é definida e
limitada pela natureza deste ou daquele homem particular.
Portanto, tudo o que o homem faz, quer guiado pela razão, quer
guiado pela cupidez, é conforme às leis e às regras da natureza,
quer dizer ao direito natural (Tract. pol., 2, 5; Tract. teol.-pol., 16).
O direito natural, sendo expressão da necessidade da natureza,
supõe que o homem não é livre, ou, o que é o mesmo, que é livre
apenas no sentido de ~r existir e agir segundo as leis da sua própria
natureza. O direito natural sob o qual os

homens nawm e vivem a maior parte do tempo não proíbo senão


aquilo que o homem não descia e

não pode fazer; não elimina, portanto, as contendas, os ôdios, os


enganos e em geral tudo aquilo a que o instinto impele o homem.
Daqui deriva que cada homem é por direito outro enquanto está sob
o

poder de outros e que está no seu direito enquanto pode repelir


toda a violência, punir segundo o seu critério o dano que lhe fizeram
e, numa palavra, viver a seu talante. Mas esta condição determina
aquela que já Hobbes denominara guerra de todos contra todos. O
homem não pode defender-se sózinho e o seu direito natural sobre
tudo é tornado

229

nulo e fictício pela hostilidade dos outros. Se. além disso, se


considera que os homens nem sequer podem prover às suas
necessidades sem uma ajuda recíproca, vê-se logo que o direito de
natureza do género humano implica que os homens tenham direitos
comuns e que procurem viver segundo um

acordo comum. E como quanto mais os indivíduos se associam tanto


mais cresce o seu poder e portanto o direito deles, assim a sua
associação determina um direito mais forte que pertence àquilo que
se chama governo (Tract. Pol., 2, 17). O surgir de um direito comum,
devido à instituição de um governo, isto é, de uma multidão
organizada, faz nascer as valorizações morais que fora dele não têm
sentido. Tal como Hobbes, afirma Espinosa que tais valorizações
apenas se justificam no âmbito de uma comunidade organizada, a
qual condena e pune como sendo pecado qualquer transgressão às
normas que estabeleceu. A justiça e a injustiça nascem

assim por obra do direito comum. A origem destas valorizações


nada tem a ver com a razão. Todavia, uma vez que um governo deve
sempre fundar-se na

razão e que, por outro lado, a razão nos ensina a desejar uma vida
pacífica e honesta, o que só pode efectuar-se no âmbito do Estado,
assim se pode chamar pecado aquilo que vai contra os ditames da
razão (Ib., 2, 21). Mas a coincidência entre a racionalidade e as
normas de direito comum é parcial e acidental, segundo Espinosa.
As normas do direito comum têm a mesma validez que as normas de
direito natural: só são válidas enquanto necessárias, nada mais. De
facto, o direito do

230

governo não é mais, para Espinosa, do que o próprio direito de


natureza, determinado no entanto não pelo poder do particular mas
do da multidão guiada por uma única mente. Como o indivíduo no
estado natural, assim o Estado tem tanto direito quanto o poder
que tiver. O direito do Estado limita o poder do indivíduo mas,
propriamente falando, não anula o seu direito natural, porquanto
tanto no

estado de natureza como na sociedade o homem age segundo as leis


da sua natureza e visa à sua própria conveniência de modo que, em
ambas as condições, só pela esperança ou pelo medo é movido * agir
ou a não agir. A diferença fundamental entre * estado de natureza
e o estado civil é que neste último todos temem as mesmas coisas e
para todos há uma única garantia de segurança e um único modo de
viver: porém, isto não tira ao indivíduo a faculdade do juízo (Ib., 3,
3). As vantagens do estado civil são tais, porém, que a 'razão
aconselha cada um a submeter-se às suas leis; e mesmo aquilo que
tais leis podem ter de contrário à razão é compensado por aquelas
vantagens. Intervém neste caso a lei da razão que prescreve a
escolha do menor de dois males (Ib., 3, 6).

Espinosa não afirma no entanto, como Hobbes, que o direito do


Estado seja absoluto, quer dizer ilimitado. Como todas as outras
coisas naturais, o Estado não pode existir e conservar-se se não se
conformar às leis da própria natureza. O limite da sua acção é
portanto determinado por aquelas leis sem as quais ele cessa de ser
"estado".
O Estado, diz Espinosa, peca quando faz ou tolera

231

coisas que podem causar a sua ruina; peca no sentido em que os


filósofos e os médicos dizem que peca a natureza, isto é, no sentido
de que age contra a ditame da razão. Por outros termos, o Estado
está submetido a leis no mesmo sentido em que o

homem está submetido no estado natural: no sentido de que é


obrigado a não se destruir a si próprio (lb., 4, 5). Tanto para o
Estado como para o

indivíduo, portanto, a melhor regra será a que se fundar sobre os


preceitos da razão que são os únicos que garantem a sua
conservação. E uma vez que o fim do Estado é a paz e a segurança
da vida, assim a lei fundamental que limita a acção do Estado deriva
desta sua intrínseca finalidade, sem a qual ele não alcança o fim
para que nasceu, isto é, a sua própria natureza.

Por outro lado, a vida do Estado é de qualquer modo garantida pela


própria natureza do homem. Os homens unem-se para formar uma
comunidade política, na qual constituam como que uma alma só, não
por um impulso racional, mas por alguma paixão, como a esperança e
o temor. E visto que todos têm medo do isolamento, já que ninguém
tem forças bastantes para se defender e obter as coisas
necessárias à vida, daí se segue que todos desejam naturalmente o
estado social e que não é possível que os homens o destruam alguma
vez por completo. Nem mesmo das desordens intestinas pode
jamais nascer a completa dissolução do Estado, como sucede com as
outras associações, mas tão-só uma mudança de forma (Ib., 6, 1).

232

§ 434. ESPINOSA: A RELIGIÃO COMO OBEDIÊNCIA

É sobre o reconhecimento dos limites do Estado que se funda a


defesa que Espinosa faz da liberdade filosófica e e religiosa do
homem. O Tratado teológico-político visa explicitamente a subtrair
o homem à escravidão da superstição e a restituí-lo à sua liberdade
de pensamento. Espinosa analisa criticamente nessa obra todo o
conteúdo da Bíblia a fim de demonstrar que o que ela ensina
concerne à vida prática e ao exercício da virtude, mas de modo
algum à verdade. A revelação de Deus aos homens teve a finalidade
de estabelecer as condições daquela obediência a Deus em que
consiste a

fé. Espinosa realiza nesta análise uma definição da fé que a coloca


completamente para lá do verdadeiro e do falso, porque a reduz a
um acto prático de obediência. "A fé, diz Espinosa (Tract. teol.-pol,
14), consiste em ter, em relação a Deus, aqueles sentimentos sem os
quais se perde a obediência a Deus e que decorrem
necessariamente de tal obediência". A fé não é, portanto, senão a
totalidade dos sentimentos ou das atitudes que condicionam a
obediência à divindade. "Quem não vê, diz Espinosa (lb., 14) que o
velho e o novo Testamento não são mais que uma disciplina da
obediência e que não tendem senão a que os homens sinceramente
obedeçam? Moisés não procurou convencer os Israelitas por meio
da razão, mas procurou obrigá-41os com a aliança, os juramentos e
os benefícios; e para que observassem a lei, ameaçou-os com

233

as penas e estimulou-os com os prémios: meios que nada têm a ver


com a ciência e apenas visam à obediência. A doutrina evangélica
não contém nada mais do que a simples fé, ou seja, o crer em

Deus, o honrá-lo ou, o que é o mesmo, obedecer-lhe". O único


preceito que a Escritura ensina é o amor pelo próximo, de modo que
à base da Escritura ninguém está obrigado a crer senão no que é
absolutamente necessário para obttemperar a este preceito.

A redução da fé à obediência evita, segundo Espinosa, todo o perigo


de dissídio religioso porque reduz a fé religiosa a um reduzido
número de pontos basilares que exprimem precisamente as
condições necessárias e suficientes da obediência. Estes pontos
constituem os dogmas da fé universal e os princípios fundamentais
de toda a Sagrada Escritura. São os seguintes:

LO Existe um Deus, isto é, um ente supremo, sumamente justo e


misericordioso, modelo de vida verdadeira. Quem não sabe ou não
crê que existe Deus não pode obedecer-lhe nem reconhecê-lo como
juiz.
2.1'-Deus é único. Ninguém pode duvidar de que também esta é uma
condição absoluta da devoção, da admiração e do amor por Deus,
visto que estas coisas nascem apenas da convicção da excelência de
um ser acima de todos os outros.

3.o - Deus está presente em toda a parte e tudo conhece. Se se


julgasse que algumas coisas lhe esca234

pam ou se se ignorasse que ele vê tudo, poder-se-ia duvidar da sua


justiça ou ignorá-la.

4.'-Deus tem o supremo direito e domínio sobre todas as coisas e


faz tudo, não por constrição, mas por seu absoluto beneplácito e
por graça singular. Todos de facto têm o dever de lhe obedecer,
mas ele não tem qualquer obrigação seja para com

quem for.

5'.-0 culto de Deus e a obediência para com

ele consistem apenas na justiça o na caridade, ou seja, no amor do


próximo.

6.'-Salvam-se apenas os que, vivendo deste modo, obedeçam a Deus;


os outros que vivem sob o império dos prazeres perdem-se. Se os
homens não crêem nisto firmemente, não têm nenhuma razão para
crer em Deus em vez de se entregarem ao prazer.

7.*-Finalmente, Deus perdoa os pecados aos

que se arrependem. Não há ninguém que não peque; se portanto não


houvesse a fé na remissão dos pecados, todos desesperariam da sua
salvação e

não teriam razão para crer na misericórdia de Deus. Pelo contrário,


aquele que crê firmemente que os

pecados dos homens são remidos por Deus arde de amor por ele e
por isso verdadeiramente conhece Cristo segundo o espírito, e
Cristo é nele.

A redução da fé à obediência e do conteúdo da fé às condições


indispensáveis da obediência torna impossível o conflito entre fé e
razão. Entre a fé

ou a teologia, de um lado, e a filosofia, do outro, não há, segundo


Espinosa, nenhuma relação e

nenhuma afinidade. O escopo da filosofia é a ver235

dade, o escopo da fé a obediência. O fundamento da filosofia são as


noções comuns que devem ser procuradas apenas na natureza. O
fundamento da fé são as histórias e a língua que devem ser
procuradas apenas na revelação e na Sagrada Escritura. A fé
permite assim a cada um a máxima liberdade de filosofar, de modo
que cada um pode, sem culpa, pensar o que quiser acerca de
qualquer coisa. Heréticos cismáticos são os que ensinam opiniões
destinadas a criar obstinações, ódios, iras e contrastes; fiéis sãos
os que aconselham, com todas as forças da sua razão e com todas
as suas faculdades, a justiça e a verdade. A religião todavia não é
para Espinosa um estado natural. Nenhum homem sabe por natureza
ser obrigado a obedecer a Deus e nem mesmo a religião pode
conduzi-lo a isso, mas só a revelação confirmada pelos sinais.
Anteriormente à revelação ninguém é obrigado a obedecer ao
direito divino, uma vez que não pode deixar de ignorar o que não
existe ainda. O estado natural] não se confunde com o estado de
religião, mas deve ser concebido como sendo desprovido de religião
e de leis, por conseguinte sem pecado e sem injustiça (Ib., 16).

§ 435. ESPINOSA: A LIBERDADE DA INVESTIGAÇÃO

A análise que Espinosa faz da organização política e da religião, tem


como único fim defender e

garantir ao homem a liberdade da investigação científica. O Estado


não pode privar os homens de

236

todos os seus direitos, até ao ponto de eles nada poderem fazer


sem a vontade dos que governam. Em qualquer comunidade política,
o homem conserva uma parte dos seus direitos; e o direito mais
cioso o menos transferível é a faculdade de pensar o de julgar
livremente. Sobre esta faculdade não é possível exercer qualquer
forma de coacção. Os governos podem fazer calar a língua dos
homens, mas não o seu pensamento. É preciso por isso incluir entre
os governos violentos o que pretende exercer uma coacção sobre o
pensamento o prescrever a cada um o que deve ter por verdadeiro e
por falso

e as opiniões por que deve ser movido na sua devoção a Deus. "0 fim
do Estado, diz Espinosa (Tract.-teoUpol., 20) não é o de
transformar os homens, seres racionais, em animais ou em
máquinas, mas, pelo contrário, o de garantir que a mente e o corpo
deles desempenhem com segurança as suas funções, que se sirvam
da livre razão e não se combatam com ódio, ira ou engano nem se
defrontem com espírito de inquidade". O fim do Estado é, de facto,
a liberdade,
E assim este filósofo da necessidade, que conceber um Deus, a sua
acção criadora e o seu governo no mundo, como uma viva geometria
infalível, não teve outro escopo na sua obra especulativa senão o de
garantir ao homem a liberdade das emoções, a liberdade política e a
liberdade religiosa. Como a procura desta liberdade pode inserir-se
e justificar-se num mundo geometricamente determinado, onde
tudo o que existe deve existir em virtude de uma necessidade que
não conheça excepções, eis

237

o grande problema da filosofia de Espínosa. Como num mundo


espinosano reduzido ao denominador comum da necessidade
geométrica (que é o próprio Deus), poderia nascer, viver, pensar
Espinosa, é decerto o maior paradoxo do espinosismo. Decerto que a
liberdade do homem frente ao mundo consiste, para Espinosa,
essencialmente, no reconhecimento da necessidade. Tal é,
indubitavelmente, o significado do amor intellectualis Dei. Mas o
reconhecimento da necessidade não é ele mesmo, quando existe,
geometricamente determinado? O ideal da razão que despontara no
mundo moderno com Grócio o Descartes encontrou em Espinosa uma
das suas primeiras determinações típicas: a razão como
necessidade. Encontrará em Leibniz a outra: a razão como
liberdade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 426- 4s mais completas edições das obras de Espínosa são: B. de


S. Opera quotquot reperta sunt, ao cuidado de J. van Vlaben e J. P.
N. Land, 1." ed., Hagae, 1882-83; 2.1 ed. -em 3 voL, 1895; 3., ed. em
4 vol., 1914; e a ed. ao cuidado de Gebharclt, 4 vol., Heldelberga,
1923.
Trad. italianas: Breve trattato, de G. Semerari, Florença, 1933; de
O. Bianca, Turim, 1942; Ethica, d@" E. Troilo, Milão, 1914; de S.
Giametta, Tuxim, 1959; de G. Durante, Florença, 1960; Tractatus
theologicus-politicus de S. Casellato, Veneza, s. a.; Tractatus
politicus, de A. Meozi, Lanciano, 1918, de D. Formaggio, Turim,
1950; de A. Droetto, Turim, 1958; Epigtolario, de A. Droetto Turim,
1951.

238

Bibliografia: W. MEIJER, Spinozana, Efeldelberga,


1922.

L. BRUNSCi-IVIGG, S., Paris, 1894, 19062; F. POLLOCK, S., Hís


Life and Philosophy, Londres> 1899, 19122; DELBOs, Le spinozisme,
Paxis, 1906, CASSIRER, Erkenntnissproblem, 11, p. 74 segs.; A.
GUZZQ, Il pewiero di S., Florença, 1924; "EUD£NTIIAL-
GEBHARDT, S, SCin Leben und seine Lehre, Heidelberga, 1927;
DUNIN-BoRi@.owsKI, S., 4 vol., Müwteri, W., 1933-36.

§ 428. A polémica a que se alude é a que f oí travada entre J. E.


ERDMANN; Versuch ~er Wisse-nsch, Darstellung der Gesch. der
neuerr Phil, Leipzig,
1836 e Grundiss der Geschíchte der Phil, 1834-53, e K. FiscHER,
Gesch. der ncuern PU., 11, Sp.s. Leben, Werke und Lehre, 5., ed,
Heidelberga, 1909; solgre a

obra: DELBOS, Le Vroblème moral dans Ia phil. de S., Paris, 1893;


EUSOLT, Die Grundzüge der Erkenntnistheorie und Metaphysie, s.
s., Berlim, 1875; SPAV£NTA, Seritti filosofici, Nápoles, 1900.

As interpretações mais recentes: L. S., Londres, 1929; H.


A. WOLFSON, The ph@losophy of S. Unfolding the Datent
Processes of M8 Reasoning, Cambridge, Maw, 1934; S.
HAMPRSIRE, S., Elarmondsworth, 1951; C. 11. R, PARKINSON, W
s,, Theory of KnowIedge, Oxford, 1954; H. F. HALLPT, B. de S.,
Londres, 1957.

239

ÍNDICE
VII- AS ORIGENS DA CIÊNCIA ... ... ... 1

§ 388. L~ardo ... ... ... ... ... ... 7 § 389. Copérrxioo.
Xepler ... ... ... ... 11 §390. Galileu: Vida e Obras ... ... ...
14 §391. Galileu: o método da ciência ... 17 §392. Racori.
Vida; e Escritos ... ... 24

393. Baoon:'c@ conceito da ciência, e da

teor-ia dos ídolos ... ... ... ... 28


394. Bacon: a indução e a twaia das

formes ... ... ... ... ... ... 35 Nota bibliográfica, ... ... ... ...
44

QUINTA PARTE

FILOSOFIA MODERNA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

1-DESCARTES ... ... ... ... ... ... 49

§395. Vida e Escritos ... ... ... ... 49 §396. A unidade


da razão ... ... ... 53 §397. - O M46-todo ... ... ... ... ...
57 §398. @ O Cogito .. . ... ... ... ... ... 62 §399. Deus ... ...
... ... ... ... ... 69 §400. -0 Mundo ... ... ... ... ... ... 77 §401.
O Homem .. . ... ... ... - 82

Nota bibliogTã£ica ... ... ... ... 93

241

11 - HOBBES

97

§ 402.

... ... ... ... ... ...

Vida e Obras ... ... ...

97

§ 403.

A tarefa da filosofia ... ... , ,

93

§ 404.

A natureza da razão ... ...

101
§ 405.

A Ciência ... ... ... ...

106

§ 406.

O corno ... ... ... ...

109

§ 407.

Os corpos naturais ...

113

§ 408

O Homem

115

§ 409.

O estado de guerra e o direlto

natural

119
§ 410.

... ... ... ...

O Estado ... ... ... ... ... ...

125

Nota bibliográfica ... ...

129

A LUTA PELA RAZÃO ... ... ... ...

131 1

§ 411.

Racionalismo e carteslanismo, ...

131

§ 412.

A escolástica c&rtesiana: o ocasionalismo ... ...

135

§ 413.

Malebranche: Razão e Fé ... ...

138
§ 414.

Malebranche: a visão em Deus ...

141

§ 415.

Malebranche: as verdades eternas

146

§ 416.

Arnauld e a lógica de Port-Royal

§ 417.

Gassendi ... ... ... ... ... ...

155

§ 418.

O Ilhertinismo ... ... ... ... ...

160

§ 419.

COnIPOsto e inipr,,,o. Para a EDITORIAL pRES.ENC4


na Tipografia N....

Porto

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