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História da Filosofia

Volume doze
Nicola Abbagnano

obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.


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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME XII

TRADUÇÃO 'DE: ANTÓNIO RAMoS ROSA CONCEIÇÃO JARDIM


EDUARDO LúClõ NOGUEIRA

EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

III
BERGSON

§ 692. BERGSON: VIDA E OBRA

A obra de Bergson apresenta-se-nos, logo à primeira vista, como a


máxima expressão do espiritualismo francês, que principia com
Maine de Biran e continua numa numerosa família de pensadores
franceses contemporâneos (§ 675). No entanto, pode ser também
legitimamente incluída no quadro do evolucionismo espiritualista que
teve representantes e defensores em todos os países da Europa (§
660). Além disso, interessa-se por alguns temas da critica da
ciência e do pragmatismo.

O seu traço mais característico é, no entanto, o espiritualismo. O


tema fundamental, ou antes, o único tema, da investigação
bergsoniana, é a consciência; mas a originalidade desta investigação
consiste no facto de não considerar a consciência como uma energia
infinita e infinitamente criadora, mas

4,

@I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações,


circunstâncias ou obstáculos que podem também solidificá-la,
desagradá-la, bloqueá-la ou dispersá-la. O próprio Bergson declarou
sob este aspecto o carácter original do seu espiritualismo. "0
grande erro das doutrinas espiritualistas - disse ele (Evolution
créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que isolando a vida espiritual de
tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre a
terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se
assim não a tivessem exposto a ser confundida com o efeito de uma
miragem". As doutrinas espiritualistas opuseram o testemunho da
consciência aos resultados da ciência sem ter em conta estes
últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao invés, aceitar e
fazer seus os resultados da ciência, ter presente a exigência do
corpo e do universo material a fim de entender a vida da
consciência e assim reconduzir a consciência mesma à sua
existência concreta, que é condicionada e problemática. O
espiritualismo adquire, por isso, na sua obra um sentido novo e
tende a inserir a própria problematicidade na vida espiritual.

Henri Bergson nasceu em Paris a 18 de Outubro de 1859 e morreu a


4 de Janeiro de 1941. Foi durante muitos anos professor no Colégio
de França. A primeira obra que publicou intitula-se o Ensaio sobre
os dados imediatos da consciência (1889), que logo no título mostra
o que será o método da filosofia bergsoniana: libertar das
estruturas intelectuais fictícias a vida original da consciência para
a atingir na sua pureza. A segunda obra, Matéria e memória

(1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito.


Reporta a essência do espírito à memória e atribui ao corpo a
função de limitar e escolher as recordações para os fins da acção.
A evolução criadora (1907) é a sua obra principal, em que apresenta
a vida como uma corrente de consciência (impulso vital) que se
insinua na matéria subjugando-a, mas mantendo-se ao mesmo tempo
limitada e

condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o


riso, (Le rire) que continham também a sua doutrina sobre a arte;
constituem três colectâneas de ensaios os livros intitulados A
energia espiritual (1919), Duração e simultaneidade (1922), a

propósito da teoria de Einstein, e O pensamento e o

movente (1934). Em As duas fontes da moral e da religião (1932),


Bergson. mostrou o significado ético e religioso da sua doutrina.
Após a publicação destas obras, Bergson, que era

de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o


catolicismo, no qual viu, segundo declarou, o

complemento do judaísmo. Mas (como disse num

passo do seu testamento [19371 revelado pela sua mulher), r-


enunciou a uma expressa conversão devido à onda de anti-semitismo
que se espalhara pelo mundo. "Quis-escreveu ele-permanecer entre
os

que amanhã serão perseguidos".

§ 693. BERGSON: A DURAÇÃO REAL

O ponto de partida e o fundamento de toda a filosofia de Bergson é


a doutrina da duração real.
O próprio Bergson indicou a fonte desta doutrina, ou

pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela.


Perante a imprecisão de todas as doutrinas filosóficas, "uma
doutrina - segundo afirma (La Pensée et le Mouvant, 1934, p. 8) -
parecera-nos já fazer excepção e, provavelmente por isso,
afeiçoaramo-nos a ela desde a nossa primeira juventude. A filosofia
de Spencer visava seguir o rasto das próprias coisas e modelar-se
pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava ainda o
seu ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a
debilidade dos Primeiros princípios, mas tal debilidade parecia-rios
que derivava do facto de que o autor, insuficientemente preparado,
não pudera aprofundar as "ideias últimas" da mecânica. Ganhou-nos
o desejo de desenvolver esta parte da sua obra, completá-la e
consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí
aguardava-nos uma surpresa". A surpresa consistiu em verificar que
o tempo real, que tem um papel fundamental na filosofia da evolução
escapa às ciências matemáticas. Deste modo, a filosofia de
Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de um capítulo
particular do evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem
como a transformação do evolucionismo naturalista num
evolucionismo espiritualista, que identifica o

processo contínuo, incessante e progressivo da evolução com o devir


temporal da consciência.

A duração real é, de facto, o dado da consciência, despojado de


toda a superestrutura intelectual ou

simbólica e reconhecido na sua simplicidade originária. A existência


espiritual é uma mudança incessante, uma corrente contínua e
ininterrupta que varia

]o

permanentemente, não substituindo todo o estado de consciência


por outro, mas dissolvendo os próprios estados numa continuidade
fluída. Não existe um substracto imóvel do eu sobre o qual se
projectasse a sucessão dos estados conscientes. A duração é o

processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida


que avança. A memória não é uma

faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que


espontaneamente conserva tudo em si mesmo. Esta conservação
total é ao mesmo tempo uma criação total, uma vez que nela cada
momento, embora seja o resultado de todos os momentos
anteriores, é absolutamente novo em relação a eles. "Para um ser
consciente - diz Bergson - existir significa mudar, mudar significa
amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si
mesmo" (Evol. créat., p. 8).

A vida espiritual é, essencialmente, autocriação e liberdade, No


Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), Bergson
mostrou como toda a

discussão entre deterministas e indeterministas nasce da tentativa


de entender a vida da consciência, que é movimento e duração,
servindo-se dos esquemas extraídos do estudo da matéria, que é
extensão e

imobilidade. Não é possível reduzir a duração da consciência ao


tempo homogéneo de que fala a ciência, o qual é constituído por
instantes iguais que se sucedem. O tempo da ciência é um tempo
especializado e que perdeu por isso o seu carácter original. Nem
tão-pouco é possível falar de uma multiplicidade de estados de
consciência análoga à multiplicidade dos objectos espaciais que se
separam e se excluem uns

11

os estados de consciência se unificam. Todos


,,

fluída corrente da consciência, da qual não p

em distinguir a não ser por um acto de abstracção, e o tempo é, na


consciência, a corrente, da mudança, não uma sucessão regulada de
instantes homogéneos. Só o labor abstracto do intelecto e o uso da
linguagem, que se encontra intimamente ligado àquele, transformam
esta corrente contínua numa

multiplicidade de estados de consciência diversos, numeráveis e


imóveis. Sendo assim, não se pode dizer (como faz o determinismo)
que a alma é determinada por uma simpatia, por um ódio ou por
qualquer outro sentimento, como por uma força que actue sobre ela.
Tais sentimentos, quando atingem uma certa profundidade, não são
forças estranhas à alma, mas cada um deles constitui a alma inteira;
e dizer que a alma se determina sob a influência de um deles
significa reconhecer que se determina por si mesma e, que,
portanto, é livre. Além disso, a liberdade não tem o carácter
absoluto que o espiritualismo algumas vezes

lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que


provêm de uma educação mal compreendida chegam a constituir um
eu parasitário que se sobrepõe ao eu fundamental, diminuindo na
mesma medida a sua liberdade. Muitos, afirma Bergson (Essai, p.
127), vivem assim e morrem sem ter conhecido a verdadeira
liberdade. Em contrapartida, somos verdadeiramente livres quando
os nossos actos emanam da nossa personalidade inteira, quando
entre esta e aqueles existe aquela semelhança indefinível que
existe algumas vezes entre o artista e a sua obra (1b., p. 131). A
relação entre o eu e os seus actos não

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pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade


que serve para explicar os liames entre os fenómenos naturais e
tomá-los previsíveis. Os actos livres nunca são previsíveis e,
propriamente falando, não se pode dizer que o eu seja a causa
deles, dado que o eu não se distingue deles, senão que vive e se
constitui neles. A liberdade é indefinível, porque coincide com o
próprio processo da vida consciente. Defini-Ia, isto é, exprimi-Ia
numa fórmula de linguagem, significa transferi-Ia para o plano da
consideração espacial e dos objectos físicos, mas aqui não existe
senão o determinismo, porque desapareceu precisamente o que
constitui a consciência: a duração real.

§ 694. BERGSON: ESPÍRITO E CORPO

O evolucionismo espiritualista caracteriza-se, no

que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do


paralelismo (ou monismo) psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao
invés, que esta doutrina é equivalente, nos seus resultados, à da
consciência como epifenómeno dos dados físicos, própria do
evolucionismo materialista. "Quer se considere-afirma ele (Matière
et mémoire, p. 4)-o pensamento como uma simples função cerebral e
o

estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral,


quer se encarem os estados do pensamento e os estados do cérebro
como traduções em duas línguas diferentes do mesmo original,
supõe-se tanto num caso como noutro o mesmo princípio: se

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pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e


assistir ao entrecruzamento dos átomos de que é feito o córtex
cerebral ou se, por outro lado, possuíssemos a chave da
psicofisiologia, saberíamos pormenorizadamente tudo o que sucede
na consciência correspondente". Contra esta adequação ou
equivalência do psíquico e do físico é dirigida a tese que Bergson
expõe em Matéria e memória (1896). Bergson começa por rejeitar
tanto o realismo como o idealismo, no que concerne à realidade da
matéria, Apela para o "senso comum", o qual afirma, é certo (como
faz o realista) que o objecto existe independentemente da
consciência que o percebe, mas crê (como faz o idealista) que este
objecto é perfeitamente idêntico ao dado sensível. Por outros
termos, para o senso comum o objecto não é mais do que uma
imagem, mas uma imagem existente. No sistema de imagens, a que o
mundo se reduz, uma, no entanto, se apresenta com características
especiais: o nosso corpo, que é o único meio para agir sobre as
imagens. A percepção é, precisamente, o acto da inserção activa
daquela imagem que é o nosso corpo no sistema das outras imagens:
é acção, e não contemplação.

Há, portanto, uma diferença radical entre a percepção e a


recordação. Considera-se, habitualmente, que a diferença entre
estes dois elementos é apenas de grau, e que a recordação é uma
percepção menos intensa ou mais ténue. Segundo Bergson, isto é um
erro comum à psicologia materialista e à espiritualista. Entre a
percepção e a recordação existe, pelo contrário, uma diferença de
natureza. A percepção é o

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poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as


outras imagens e provoca o abalo e a readaptação; a recordação,
como sobrevivência de imagens passadas, guia e inspira a percepção
(já que se age sempre tendo por base as experiências passadas)
mas só se torna verdadeiramente actual no

acto da percepção mesma. Por consequência, a função do corpo,


interposto entre os objectos que actuam sobre ele e aqueles sobre
os quais ele actua, é a de um condutor, incumbido de recolher os
movimentos e de os transmitir, quando não os detém, a certos
mecanismos motores, determinados se a acção for reflexa,
escolhidos se a acção for voluntária. "Tudo se passa, como se uma
memória independente recolhesse as imagens ao longo do curso do
tempo, à medida que se produzem, e como se o nosso corpo, com
tudo o que o circunda, não fosse mais do que uma dessas imagens, a
última, a que obtemos a cada momento praticando um corte
instantâneo no devir em geral" (Matière et mémoire, p. 81).

Bergson distingue três termos: a recordação pura, a recordação-


imagem e a percepção, termos estes que explicam a passagem da
duração real, como puro processo espiritual, à percepção, em que a
duração se torna acção e reacção das imagens entre si. "As ideias,
as puras recordações, chamadas do fundo da memória,
desenvolvem-se em recordações-imagens cada vez mais capazes de
se inserirem no sistema motor. À medida que estas recordações
tomam a

forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais


consciente, tendem cada vez mais a confundir-se, com a percepção
que as atrai e cujo

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adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região


em que as recordações se

fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por


obra das lesões cerebrais é apenas a

interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se


actualiza" (1b., p. 140). Donde se conclui que a recordação pura (a
consciência na sua duração real) não está ligada a nenhuma parte do
corpo e é, portanto, espiritualidade independente. "0 corpo
- diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por
função essencial a de limitar, com vista à acção, a vida do espírito".
Esta função é exercida pelo corpo mediante a percepção que é "a

acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se


trata de corpos circunstantes, separados do nosso por um espaço
mais ou menos considerável, que mede a longinquidade no tempo das
suas promessas ou das suas ameaças, a percepção não faz mais do
que destroçar acções possíveis. Quando a distância decresce, a
acção possível tende a transformar-se em acção real, e quando se
torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si mesmo, a
percepção delineia, não já uma acção virtual, mas

uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte


ofendida para repor as coisas no seu lugar; e nisto consiste a
subjectividade da sensação efectiva (sentimento).

A vida espiritual transcende, pois, por todos os

lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da


acção que estão ligadas ao corpo.
O corpo representa somente o plano da acção, ao

passo que a memória pura é o plano em que o

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espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica


com a duração. Bergson. substituiu assim o dualismo de corpo e
espírito pelo dualismo da acção (ou percepção) e memória. O escopo
de L'évolution créatrice é a resolução deste dualismo.

§ 695. BERGSON: O IMPULSO VITAL


A Evolução criadora mostra-nos, de facto, como o próprio mundo da
acção e da percepção, enquanto sistema de imagens exteriorizadas
e espacializadas e, por conseguinte, objecto da inteligência e da
ciência, se constitui em virtude daquele mesmo movimento que é o
processo temporal da vida consciente. A obra tende a mostrar que,
enquanto a inteligência é incapaz de compreender a natureza da
vida, esta, como evolução espiritual, torna possível explicar a

natureza e a origem da inteligência e dos seus objectos.

Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da


consciência, à duração real. A vida é sempre criação,
imprevisibilidade e, ao mesmo tempo, conservação integral e
automática de todo o passado. Tal é a vida do indivíduo, assim como
da natureza;

mas as perspectivas de uma e de outra são distintas. Cada um de


nós, considerando retrospectivamente a sua história, verificará que
a sua personalidade infantil, ainda que indivisível, reunia em si
pessoas diversas que podiam coexistir no estado nascente, mas que
a pouco e pouco se foram tomando incompatíveis, pondo-nos cada
vez mais perante a necessi-
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dàde de uma escolha. "A via que percorremos no

tempo-diz Bergson (Évolution créatr., p. 109)está salpicada de


fragmentos de tudo o que começávamos a ser, de tudo o que
poderíamos ter chegado a ser. Nós não podemos viver senão uma
única vida; por isso devemos escolher. A vida da natureza, ao invés,
não é obrigada a semelhantes sacrifícios: conserva as tendências
que num certo ponto se bifurcaram e cria séries divergentes de
espécies que evoluem separadamente. Por outros termos, a vida não
segue uma linha de evolução única e simples. Desenvolve-se "corno
um feixe de caules" criando, pelo simples facto do seu crescimento,
direcções divergentes entre as quais se divide o seu impulso
originário. As bifurcações do seu desenvolvimento são por isso
inúmeras. Mas muitas são também as vias sem saída em relação aos
poucos grandes caminhos que ela tem aberto.

A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação,


de convergência, como se a

vida realizasse um plano preestabelecido. O finalismo, neste


sentido, é excluído; a vida é criação livre e imprevisível. Trata-se,
ao invés, de uma unidade que precede a bifurcação, isto é, da
unidade da vis a tergo, do impulso que a vai pouco a pouco
realizando.
O impulso da vida, conservando-se ao longo das linhas de evolução
nas quais se divide, é a causa

profunda das variações, pelo menos das que se transmitem


regularmente pela hereditariedade, que se adicionam e criam novas
espécies. Tudo isto, se exclui o plano preestabelecido de qualquer
teoria finalista, exclui também a hipótese de que a evolução se

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tenha dado mediante causas puramente mecânicas.


O mecanismo não pode explicar a formação de órgãos
complicadíssimos que têm, no entanto, uma função bastante simples,
como é o caso do olho. Bergson serve-se da imagem de uma mão que
atravessa a limalha de ferro que se comprime e resiste à medida
que a mão avança. A certa altura, o esforço da -mão esgotar-se-á e,
no mesmo preciso momento, as partículas da limalha ter-se-ão
justaposto e coordenado numa forma determinada: a da mão que se
detém e de uma parte do braço. Se supusermos que a mão e o braço
permaneceram invisíveis, os espectadores procurarão nas partículas
de limalha e nas forças internas da massa, a causa

da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula


mediante a acção que as partículas próximas exercem sobre ela:
esses serão os mecanicistas. Outros pretenderão que um plano de
conjunto presidiu a cada uma destas acções elementares: esses
serão os finalistas. A verdade é que há um acto invisível, o da mão
que atravessou a linalha: os inexauriveis pormenores dos
movimentos das partículas, como a

sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso,


porque é a forma global da resistência, e não uma síntese de acções
positivas elementares (É vol. créatr., p. 102-03). A acção indivisível
da mão é a do impulso vital; subdivisão do impulso vital em
indivíduos e espécie, em cada indivíduo na variedade dos órgãos que
o compõem e em

cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência


da matéria bruta (correspondente, no

exemplo citado, à limalha de ferro).

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primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à


divisão entre a planta a o animal, O vegetal caracteriza-se pela
capacidade de fabricar substâncias orgânicas com substâncias
minerais (função clorofílica). Os animais, obrigados a

andar e a procurar alimento, evoluíram no sentido da actividade


locomotora, e, portanto, de uma consciência cada vez mais
desperta. As duas tendências dissociaram-se ao crescerem, mas na
forma rudimentar implicam-se reciprocamente; e o mesmo impulso
que levou o animal a prover-se de nervos e centros nervosos,
conduziu à aquisição por parte da planta da função clorofílica (Ib.,
p. 124). Por outro lado, nem mesmo a vida animal se desenvolveu ao
longo de uma única linha. Os Artrópodes e os Vertebrados são as
linhas em que a evolução da vida animal no sentido da mobilidade e
da consciência teve maior êxito. As outras duas direcções da vida
animal, as indicadas pelos Equinodermes e pelos Moluscos, foram
ter a um beco sem saída. A evolução dos Artrópodes alcançou o seu
ponto culminante nos insectos e, em particular, nos Himenópteros, a
dos Vertebrados, no homem. Nestas duas direcções, o progresso
efectuou-se de forma diferente, pois que, na primeira direcção se
dirigiu para o instinto, na segunda para a inteligência.

§ 696. BERGSON: INSTINTO E INTELIGÊNCIA

Instinto e inteligência são tendências diferentes mas conexas e


nunca absolutamente separáveis. Não

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existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não


esteja rodeado por um halo de inteligência. Contudo, na sua forma
perfeita, o instinto pode ser definido como a faculdade de utilizar e
construir instrumentos organizados, e a inteligência como a
faculdade de fabricar instrumentos artificiais e variar
indefinidamente a sua fabricação. Originariamente, o homem não é
homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A sua característica é a
de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que dispõe mediante
instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e
contra a fome e o frio. Os instrumentos que o homem cria
artificialmente correspondem, na outra direcção da vida, aos

órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a


inteligência representam duas soluções divergentes, mas igualmente
elegantes, de um só e mesmo problema (Évol. créatr., p. 155). Mas
enquanto a inteligência se orienta para a consciência, o instinto
orienta-se para a inconsciência. Quando a natureza fornece ao ser o
instrumento que deve em.

pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve


obter, a parte reservada à escolha é extremamente débil, e por
isso a consciência será também muito débil e crepuscular. O
instinto será, portanto, consciente só na medida em que for
deficiente, isto é, só na medida das contrariedades e dos
obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na inteligência, pelo
contrário, o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a
representação e a acção. A inteligência deve, de facto, através de
mil dificuldades, escolher para o seu trabalho o lugar
21

a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente,


uma vez que cada nova satisfação criará novas necessidades. Desta
diferença fundamental derivam as outras: a inteligência é levada a
considerar as relações entre as coisas, ao passo que o instinto se
dirige às próprias coisas; a inteligência é conhecimento de uma
forma; o instinto, conhecimento de uma matéria. Esta última
característica constitui, à primeira vista, uma superioridade da
inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser
preenchida da maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento
formal é praticamente iliinitado e um poder inteligente "traz em si
o que lhe permite ultrapassar-se a si próprio". Todavia, esta mesma
característica formal priva a inteligência da capacidade de se deter
na realidade de que teria necessidade. "Há coisas -diz Bergson (1b.,
p. 165) -
que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca
poderá encontrar. Tais coisas só o instinto as encontraria; mas
nunca as procurará".

Tudo isto determina as capacidades e os limites da inteligência


humana. A inteligência está virada, fundamentalmente, para os fins
da vida, serve para construir instrumentos inorgânicos e só se
encontra à vontade quando tem que lidar com a matéria inorgânica.
Mas a matéria inorgânica é solidificação, imobilidade,
descontinuidade: a inteligência tende, portanto, a transformar tudo
o que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis. Por
isso o devir se lhe apresenta como uma série de dados, em que cada
um permanece a si mesmo e, portanto, imutável. Mesmo quando a
sua atenção se fixa na mu-
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dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de


estados ulteriores que terão as mesmas

características de fixidez e imobilidade. Assim, a inteligência deixa


fugir precisamente o que há de novo na evolução da vida e
caracteriza-se por uma natural incompreensão do movimento e da
vida.

Bergson define o funcionamento da inteligência como um mecanismo


cinematográfico. De facto, a

inteligência colhe instantâneos imóveis do devir e

procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas


este mecanismo deixa escapar o que é peculiar à vida: a
continuidade do devir, em que não se podem distinguir estados. Daí
que todas as

tentativas da inteligência para compreender o devir não consigam


senão transformá-lo numa série de imobilidades sucessivas, que já
nada têm da continuidade originária. Surgem então as objecções de
Zenão de Eleia contra o movimento: objecções irrefutáveis do
ponto de vista da inteligência porque fundadas na espacialização do
devir, na sua redução a uma série de imobilidades sucessivas. A
incapacidade da inteligência perante a vida é a incapacidade da
ciência, que se funda na inteligência. A ciência obtém os maiores
sucessos no mundo da natureza inorgânica, onde a duração real da
consciência é substituída por um tempo homogéneo e uniforme
(constituído por instantes iguais), que na realidade já não é tempo,
mas espaço. A este tempo espacializado é aplicável a medida
científica; ao invés, o tempo verdadeiro, a duração, não é
susceptível de medida porque não apresenta nenhuma uniformidade
e é criação contínua. Todavia, este método da

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não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à


acção; saber equivale a **Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação
dada para **J@f **etiegar a uma situação futura. Avança por
saltos, isto
é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje,
mas que nunca constituem uma continuidade. A ciência só revela os
seus limites quando procura compreender a vida. Para compreender
a vida é necessário um órgão completamente diferente da
inteligência científica. Existe tal órgão?

§ 697. BERGSON: A INTUIÇÃO


Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a
inteligência nunca se separa completamente do instinto: é possível,
portanto, um

retorno consciente da inteligência ao instinto: tal retorno é a


intuição. A intuição é um instinto que se tomou desinteressado,
consciente de si, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o
estender indefinidamente (Évolut. Créatr., p. 192). Que um tal
esforço é possível, prova-o a presença no homem da intuição
estética, que dá lugar à arte. A intuição estética, na verdade, faz-
nos captar a individualidade das coisas que escapa à percepção
comum, inclinada a reter dos objectos só as impressões úteis para
os fim da acção. Por outros termos, a intuição tira à arte aquele véu
que as exigências da acção interpõem entre nós e as coisas, véu sem
o qual todos os hoIliens poderiam entrar em comunicação imediata
com

as coisas mesmas e ser naturalmente artistas. Dado

24

que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as


etiquetas que a necessidade da prática impõe à s coisas mediante a
linguagem, o artista surge de quando em quando e caracteriza-se
pela capacidade de ver, escutar ou pensar sem se referir às
necessidades da acção. Se fosse possível um desprendimento
completo de tais necessidades, ter-se-ia um artista excelente em
todas as artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta
acidental mente só de um lado, ou seja, na direcção de um só dos
sentidos humanos; e daqui deriva a diversidade das artes, a
especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p. 160).
A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não
pode ser o órgão de uma metafísica da vida. Mas pode-se conceber
uma investigação orientada no mesmo sentido que a arte e que
tenha por objecto a vida em geral. Uma investigação deste género
será propriamente filosófica, ou melhor, constituirá o próprio órgão
da metafísica. Enquanto a

ciência tem o seu órgão na inteligência e o seu

objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão


na intuição e o seu objecto apropriado na vida espiritual. Se a
análise é o procedimento próprio do intelecto, o procedimento
próprio da intuição será a simpatia, "pela qual penetramos no
interior de um objecto para coincidir com o que ele tem de único e,
portanto, de inexprimível" (La Pensée et le mouvant, p. 205). Se a
análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica
intuitiva é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os

símbolos. Com efeito, possui de um modo absoluto

25

e infinitamente a realidade, em vez de a conhecer; coloca-se


directamente nela, em vez de adoptar pontos de vista em torno dela
e por isso a atinge para lá de toda a expressão, tradução ou
representação simbólica (Ib., p. 206).

Bergson apela continuamente para a intuição ao

longo de toda a sua investigação. A intuição revela-nos a duração da


consciência e põe-nos em guarda contra a espacialização da mesma
operada pela inteligência. É a intuição que nos torna conscientes da
nossa liberdade. É também a intuição que nos permite recuperar o
impulso vital que é a força criadora de toda a evolução biológica. Na
realidade, o

único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do


espírito por parte do espírito". Contudo, o universo material não se
apresenta opaco à intuição. Se o domínio próprio desta é o espírito,
"ela desejaria, no entanto, realizar nas coisas materiais a sua
participação na espiritualidade - e diríamos na espiritualidade, se
não soubéssemos tudo o que de humano ainda se mistura à nossa
consciência, mesmo depurada e espiritualizada" (1b., p. 37). A
intuição pode ter significados diversos e não se pode definir
univocamente. Todavia, a sua característica fundamental é que
pensa em termos de duração, isto é, de espiritualidade ou de
consciência pura. E é isto precisamente que faz dela o órgão
específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência, Bergson
não pretende estabelecer uma diferença de valor, mas somente de
objecto e de método. À ciência compete o conhecimento intelectual
da matéria; à metafísica a intuição do espírito. Uma vez

26

que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a


metafísica, hão-de ter uma superfície periférica comum: poderão
assim agir uma sobre a outra e estimular-se mutuamente.

Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma


mera análise de conceitos implícitos nas formas da linguagem e
deverá tratar da própria existência real. Mas toda a existência só
pode ser dada numa experiência. Esta experiência chamar-se-á
visão ou contacto ou percepção externa em geral, se se trata de um
objecto material; chamar-se-á intuição se se trata do espírito. Até
onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela diz Bergson
(Ib., p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este
fio vai até ao céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No
primeiro caso, a experiência metafísica relacionar-se-á com a dos
grandes místicos; e eu posso comprovar, pela minha parte, que esta
é a verdade. No segundo caso, as experiências metafísicas
permanecerão isoladas umas das outras, sem no entanto se oporem
umas às outras. Em qualquer caso, a filosofia elevar-nos-á acima da
condição humana".

§ 698. BERGSON: GÉNESE IDEAL DA MATÉRIA

A recusa de Bergson em admitir qualquer diferença de valor entre a


metafísica e a ciência e a sua afirmação de que a metafísica e a
ciência se distinguem unicamente pela diversidade dos seus objec-

27

tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo
irredutível, isto é, que a matéria e o espírito constituam duas
realidades últimas, ainda que em mútuo contacto e com mútuas
possibilidades de aproximação e de inserção. Porém, a Evolução
criadora tem, entre as suas partes mais significativas, uma "génese
ideal da matéria" que é uma tentativa para explicar a matéria
mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do impulso
vital, que é pura espiritualidade.

A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o


resultado do encontro e da luta entre o espírito e a matéria. "Tudo
se passa como se uma ampla corrente de consciência tivesse
penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de uma
enorme, multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem.
Ela impeliu a matéria para a organização, mas o seu movimento foi a
um tempo infinitamente atrasado e infinitamente dividido" (Évol.
créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a
materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção
virtual do impulso, como aparição da extensão e da divisão dos
entes e como inversão da ordem vital na ordem estática da matéria,
é, de algum modo, presente à própria consciência humana. "Quanto
mais tomamos consciência do nosso progresso na pura duração - diz
Bergson. (1b., p. 219-20) -tanto mais sentimos as

diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a


nossa personalidade concentrar-se num ponto, ou melhor, numa
ponta, que se insere no futuro, acutilando-o sem tréguas. Nisto
consistem a

28

vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de


agirmos. Neste mesmo acto, o

nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se


recolhia em si mesmo no impulso indivisível que nos comunicava,
decompõe-se em mil recordações que se exteriorizam umas em
relação às outras. Renunciam a interpenetrar-se à medida que se
solidificam. A nossa personalidade desce assim na direcção do
espaço". A materialidade é, portanto, um movimento, ou melhor, uma
suspensão virtual do movimento ou um obstáculo ao movimento que
se encontra na própria consciência.

Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela


vertente pela qual a matéria desce". Se a vida fosse pura
consciência, e, por maioria de razão, se fosse supraconsciência,
seria pura actividade criadora (Evol. créat., p. 267). Mas o limite da
sua criatividade é-lhe intrínseco: o seu movimento para a
frente complica-se com o seu movimento para trás, e este
movimento para trás, a dispersão da vida, a

solidificação que procura deter o fluxo criador, é a

imaterialidade. "Na realidade, a vida é um movimento, a


materialidade é o movimento inverso, e cada um destes dois
movimentos é simples, uma vez que a matéria que forma um mundo é
um fluxo indiviso, como indivisa é a vida que a atravessa, recortando
nela os seres vivos, Destas duas correntes, a segunda opõe-se à
primeira; não obstante, a primeira obtém alguma coisa da segunda:
daí resulta aquele modus vivendi que é, precisamente, a
organização" (Ib., p 271). A organização biológica, toma, para os
nossos, sentidos e para a nossa inteligência, a forma de

29

partes extrínsecas umas às outras no tempo e no espaço, porque


fechamos os olhos à unidade 1) impulso que, através das gerações,
une os órgãos aos órgãos, os indivíduos aos indivíduos, as espécies
às espécies, e faz de toda a série dos vivos uma única onda que
corre através da matéria. Mas assim que, mediante a intuição,
estalamos o esquema solidificado da inteligência, tudo se põe de
novo em movimento e se resolve no movimento. Este movimento é
continuado na natureza unicamente pelo homem, já que, em toda a
parte, salvo no homem, a consciência se viu bloqueada e impedida de
chegar à sua

forma. Só o homem continua o movimento criador do impulso vital e


o continua nas manifestações que lhe são próprias: a moral e a
religião.
§ 699. BERGSON: SOCIEDADE FECHADA E SOCIEDADE ABERTA

Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é


pura actividade criadora. O antagonismo de movimentos que a
intuição descobre na consciência do eu e que se volta a encontrar na
vida como contraste entre impulso vital e materialidade, domina
também o mundo social. As sociedades humanas que historicamente
se formaram e se formam são sociedades fechadas, nas quais o
indivíduo actua unicamente como parte do todo, e que deixam uma
margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social modela--se
pela ordem física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade
absoluta das
30

leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela


sociedade: automaticamente obedece às regras desta e conforma-
se aos seus ideais. A sociedade é a fonte das obrigações morais.
Estas não são, como queria Kant, exigências da pura razão, mas
hábitos sociais que garantem a vida e a solidez do corpo social. A
razão entra nestas obrigações só para ditar as modalidades do seu
exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da
sociedade existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único
fundamento da obrigação moral. O que na outra grande linha da
evolução animal a natureza realizou mediante o instinto, dando
origem à colmeia e ao formigueiro, na linha da inteligência realizou-
o mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma certa latitude à
escolha individual, e, portanto, todo o hábito moral tem uma certa
contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de contrair
hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto
(Deux sources, p. 21).

Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma


sociedade fechada, existe a moral absoluta, a dos santos do
cristianismo, dos sábios da Grécia, dos profetas de Israel, que é a
moral de uma sociedade aberta, Esta moral não corresponde a um
grupo, mas a toda a humanidade. Tem por fundamento uma emoção
original, e continua o esforço gerador da vida. A moral da obrigação
é imutável e tende à conservação; a moral absoluta está em
movimento e tende ao progresso. A primeira exige a
impersonalidade, porque a conformidade a hábitos adquiridos; a
segunda corresponde ao apelo

31

de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral


ou um dos seus imitadores, ou também a da própria pessoa que age.
A estas duas morais distintas correspondem dois tipos diversos de
religião.

§ 700. BERGSON: RELIGIÃO ESTÁTICA E RELIGIÃO


DINÂMICA

O nascimento das superstições religiosas é explicado por Bergson.


mediante a função fabuladora. As superstições têm, de facto, um
carácter fantástico, mas não podem ser reduzidas à fantasia que
actua nos inventos científicos e nas realizações artísticas. A função
fabuladora nasce no curso da evolução por uma exigência puramente
vital. A inteligência, que é o instrumento principal da vida humana (a
qual, como se viu, se rege somente enquanto é capaz de fabricar
instrumentos artificiais), ameaça voltar-se contra a própria vida. O
ser dotado de inteligência é levado, de facto, a pensar apenas em si
mesmo

e a desprezar os seus laços sociais. A religião é a

reacção defensiva da natureza contra o poder dissolvente da


inteligência: os seus mitos e superstições servem para impelir o
homem para os seus semelhantes, subtraindo-o ao egoísmo em que a
inteligência o faria cair. Além disso, a inteligência mostra
claramente ao homem a sua natureza mortal, e isso representa para
uma mentalidade primitiva um segundo perigo, contra o qual a
religião reage com a crença na imortalidade e com o culto dos
mortos. Em ter-
32

BERGSON

ceiro lugar, a inteligência faz perceber claramente ao

homem a imprevisibilidade do futuro e, portanto, o

carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião


exerce também aqui unia função defensiva, dando ao homem o
sentido de uma protecção sobrenatural, que o subtraia aos perigos
e à incerteza do futuro. Finalmente, a religião fornece mediante as

crenças e as práticas mágicas a possibilidade de crer numa


influência do homem sobre a natureza muito superior à que o
homem pode efectivamente alcançar mediante a técnica.

Uma religião assim constituída é, segundo Bergson, infra-


intelectual. É, em geral, a reacção defensiva da natureza contra o
que há de deprimente para o indivíduo e de dissolvente para a
sociedade no exercício da inteligência. É, pois, uma religião natural
no sentido de que é um produto da evolução natural. Mas a par
desta religião estática, a religião dinâmica constitui a forma supra-
intelectual da religião, que retoma e continua directamente o
impulso vital originário. Bergson identifica a religião dinâmica com o
nústicismo.
O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e
genial. Mas ele apela para algo que existe em todos os homens; e
mesmo quando não chega a comunicar aos outros homens a sua força
criadora, tende a subtraí-los ao formalismo da religião estática e
produz assim numerosas formas inter- .. ~..=- "0 resultado do
misticismo - diz Bergson (Deux Sources, p. 235) -é uma tomada de
contacto e, por consequência, uma coincidência par-
33

com o esforço criador que a vida manifesta,

é de Deus, se não é Deus mesmo".


O misticismo antigo, tanto o platónico como o

oriental, é um misticismo da contemplação: não acreditou na


eficácia da acção humana. o misticismo completo é o dos grandes
místicos cristãos (5. Paulo, Sta. Teresa, S. Francisco, Joana de
Are), para os quais o êxtase não é um ponto de chegada, mas o

ponto de partida de uma acção eficaz no mundo.


O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um
amor que não conhece problemas nem mistérios, porque continua a
obra da criação divina (Ib., p. 251). A experiência mística fornece a

única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os


místicos não só cristãos, mas também pertencentes a outras
religiões, é "o sinal de uma identidade de intuição, que se pode
explicar do modo mais simples pela existência real do Ser com o
qual crêem estar em comunicação" (ib., p. 265). A experiência
mística leva a considerar o universo como o
aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar. "Deus
é amor e é objecto de amor: aqui está todo o misticismo". (1h., p.
270). Só o amor justifica a multiplicidade dos seres vivos e,
portanto, a realidade do próprio universo, requerido pela existência
de seres distintos entre si e por Deus. Bergson aceita francamente
uma concepção optimista do mundo". "Existe um optimismo
empírico-diz ele (1b., p. 280) - que consiste simplesmente em
verificar dois factos: em primeiro lugar, que a humanidade julga boa
a vida no seu conjunto porque está ligada a ela, em segundo lugar,
que existe uma alegria sem

34

mescla, situada para já do prazer e da dor, que é o

estado de alma definitivo do místico".

Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os
males sociais e morais de que sofre a humanidade. A técnica
moderna, estendendo, a esfera da acção do homem sobre a
natureza, tem de certo modo engrandecido desmedidamente o
corpo do homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento
de alma, e a mecânica exigiria uma mística" (Ib,, p. 355). Os
problemas sociais e políticos internacionais que nascem desta
desproporção poderiam ser eliminados por um renascimento do
misticismo. Neste caso, a mecânica que curvou ainda mais a
humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se endireitar e
olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso planeta
"a função essencial do universo, que é uma máquina de fazer
deuses" (1b., p. 343).

A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte


mais débil de toda a obra de Bergson, e é também aquela em que a
elegância imaginativa do estilo do filósofo se transforma
abertamente em ênfase e oratória. A identificação da religião
autêntica com o misticismo não poderia ser

aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria


identidade, em que Bergson insiste, das experiências místicas
procedentes de religiões diversas é fortemente suspeita. Na
realidade, o misticismo, como o entende Bergson, tem um
pressuposto panteísta: a identidade substancial do homem e de
Deus. O homem, enquanto constituído na sua essência por um
impulso vital super-individual e sobre-hu-

35

~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na


sua natureza espiritual, senão um ou uma manifestação do divino ou
de Deus. Mas a relação de íntima comunhão entre o homem e Deus,
a firmeza e a estabilidade da comunicação postulada pelo
misticismo tal como Bergson o entende, elimina de um golpe a vida
religiosa. Nenhuma religião, e muito menos o catolicismo para o qual
iam as simpatias de Bergson nos últimos anos, poderia considerar o
universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens iguais
a estes deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um
panteísmo romântico para o qual o finito é manifestação e revelação
do infinito e a individualidade do homem se dissolve ou parece
inconsistente e a sua liberdade se identifica com a espontaneidade
criadora da força cósmica.

§ 701. BERGSON: O POSSÍVEL E O VIRTUAL

As categorias metafísicas que Bergson explicitamente elucidou e


estabeleceu como base da sua investigação inspiram-se
precisamente neste panteísmo romântico. Por isso se prestam a
justificar a filosofia de Bergson só naqueles aspectos em que ela é
redutível a um tal pensamento, mas não os outros, talvez mais vivos,
pelos quais a filosofia bergsoniana se insere no círculo da filosofia
contemporânea.

A categoria que preside à duração real (na variedade das suas


manifestações) é a própria realidade, é a criação. Bergson define
esta categoria como "a

36

novidade imprevisível" da evolução universal, enquanto é sempre


evolução espiritual e que, por isso, se revela directa e
imediatamente na consciência. A ideia de criação não é mais do que
a percepção imediata que cada um de nós tem da sua própria
actividade e das condições em que ela se exerce. "Dêem-lhe o nome
que quiserem - diz Bergson (Pensée et Mouv, p. 118-19 -, ela é o
sentimento que temos de ser criadores das nossas intenções, das
nossas decisões, dos nossos actos, e, por consequência, dos nossos
hábitos, dos nossos caracteres, de nós mesmos. Artífices da nossa
vida, e também artistas, quando queremos sê-,lo, trabalhamos
continuamente com a matéria que nos oferece o passado e o
presente, a hereditariedade e as circunstâncias, a fim de
plasmarmos uma figura única, nova, original, imprevisível como a
forma que o escultor imprime ao barro".

Esta simples verificação imediata, elimina, segundo Bergson, todos


os problemas da metafísica e da teoria do conhecimento, uma vez
que elimina o

problema do ser (e do nada) e o da ordem (e da desordem). O


problema da metafísica consiste em perguntar-se porque é que
existe o ser, porque é que Z,

existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia


não existir nada. Ora, este problema é puramente fictício, porque
se baseia no uso arbitrário do termo nada, que só tem sentido no
seu

terreno, precisamente o do homem: o da acção e da fabricação.


"Nada" designa a ausência do que buscamos, do que desejamos ou do
que esperamos, mas

não designa positivamente nada do que percebemos

37

ou pensamos. que é sempre um "pleno", nunca um

"vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer


que o que existe não nos interessa e que estamos interessados no
que já não existe ou poderia ter existido. De modo que a ideia do
nada está ligada à de uma supressão real ou eventual e, por
conseguinte, à de uma substituição. Ora, a supressão, enquanto
substituição, nunca pode ser total, uma vez que nesse caso não seria
substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A
ordem torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que
ela existe em lugar da desordem, e implica portanto, como
problema, a legitimidade da ideia da desordem. Mas esta ideia
significa simplesmente a ausência da ordem procurada; e é
impossível suprimir, mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer
surgir dela outra. O problema fundamental da gnoseologia revela-
se, como o da metafísica, um problema fictício derivado do uso
arbitrário das palavras.

Estas análises, que Bergson desenvolveu amplamente na Evolução


criadora e repetiu e confirmou depois, mais recentemente (Pensée
et Mouv., p. 122 sgs.), figuram entre as mais merecidamente
famosas da filosofia contemporânea, mas não serviam para o fim
que ele pretende atingir, isto é, a geração do problema da
metafísica ou da metafísica como problema. Com efeito, tais
análises não conduzem à eliminação do nada e da desordem, mas
somente à definição destes como nulidade possível do ser e da
ordem, ainda que seja só no sentido da possível substituição deles
por um ser ou por uma ordem em que o homem não esteja
interessado. Estas anã-
38

lises deveriam, portanto, ser completadas com uma

análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se


encontra nas obras de Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre
o possível no sentido de "virtual", no sentido da potencialidade
aristotélica e ignorou simplesmente ou passou em silêncio o seu
significado próprio de problemático. O possível, segundo Bergson, é
apenas "a miragem do presente no passado": à medida que a
realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e nova, a sua
imagem reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade
mesma passa deste -modo a ser possível, mas precisamente no
momento em que se torna realidade:

a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a


(Ib., p. 128). Por outras palavras, o possível é, para Bergson, a
sombra virtual que a realidade, autocriando-se, projecta no próprio
passado. Esta sombra virtual não tem, evidentemente, nada a ver
com o sentido concreto da possibilidade presente, mesmo
emotivamente, em toda a experiência ou

situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia


de Bergson que pôs em luz na Evolução criadora o bloqueamento e a
dispersão do impulso vital em muitas das suas direcções e
correntes, e exprimiu nas páginas finais das Deux sources as

suas preocupações pela sorte do homem no futuro. Isto implica,


indubitavelmente, o reconhecimento de uma radical incerteza,
instabilidade e insegurança de desenvolvimento da experiência
humana, que aliás se encontra ensombrada pelo carácter de
"imprevisibilidade" que Bergson lhe atribui. Pode dizer-se que a
experiência mística subtrai o homem a esta condi-
39
ção (e à categoria da possibilidade que filosoficamente a exprime)
para o vincular a uma certeza em que já não subsistem problemas
nem dúvidas sobre o futuro. Mas a consecução e a consolidação da
experiência mística, que vem a ser para o homem senão uma
possibilidade a que agarrar-se, um problema a resolver?

A filosofia de Bergson rompe, nalguns pontos essenciais, o quadro


da necessidade romântica em

que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto,


encontra a sua continuação e o seu enriquecimento no pragmatismo
contemporâneo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 692. Passagens do testamento de B. em A.

BÉGUIN e P. THÉVENAZ, H.B., Neuchâtel, 1941. Sobre a


bibliografia: A Contribution to a Bibliography of H.B., Nova Iorque,
1913; e "Revue Internationale de Philosophie", 1949, n. 10.

Alguns escritos menores de Bergson encontram-se recolhidos em


Ècrits et Paroles, ao cuidado de R. M. MOSSÉ-BASTIDE, Paris,
1957.

Sobre as relaçõe:s de B. com Maine de Biran: H. GAUBIER, in


Études bergsoniennes, 1, 1948.

J. BENDA, Le Bergsonisme ou une philosophie de Ia mobilité, Paris,


1912; R. BERTHELOT, Le pragmatisme chez Bergson, Paris, 1913; F.
KOLGIATI, La filosofta di R., Turim, 1914; J. MARITAIN, La
philosophie bergsonienne, Paris, 1914; LE ROY, Une philosophie
nauvelle, Paris, 1914; H. H~DING, La philosophie de R., Paris,
1916; F. D'AMATO, 11 pensiero di E.B., Città di Castello,
1921; THIBAUDET, Le Bergsonisme, Paris, 1923; J. CHEVALIER,
B., Paris, 1929; JANNÉLÉVITC11, B., Paris, 1931;

40

A. METZ, Bergson et le Bergsonisme Paris, 1933; G. SANTAYANA,


II pensiero americano e aZtri saggi, Milão,
1939, p. 191-248; E. LF, Roy, B. RoMEYER, P. KUCHARSKI, A.
FOREST, P. D'AUREc, A. BRÉMOND, A. RICOEUR, Bergson et le
Bergsonisme, in "Archives de philosophie", V. XVII, e. 1; V. MATI-
IIEU, R., II profondo e Ia sua espressione, Turim, 1954 (com bibl.).

§ 693. J. DELHOMME, Durée et vie dans Ia phitosophie de


Bergson, in Êtudes ber98oniennes, 11, 1949; E. BR£HIER, Images
plotiniennes, images bergsoniennes, in Êtudes bergsoniennes, E,
1949, V. MATMEU, op. Cit.
§ 696. L. HUSSON, L'intelectualisme de, Bergson, Paris, 1947.

§ 697. J. SEGOND, L'intuition bergsonienne, Paris,


1923; R. M. MossÉ-BASTIDE, L'intuition bergsonienne, in "Revue
philosophique", 1948, p. 195-206; F. DELATRIZE, Bergs,on et
Proust, in Études bergsoniennes, 1, -1948.

§ 700. CARBONARA, in "Logos", Nápoles, 1934; H. IVIAVIT, Lex


mesisage de Bergson, in "Culture humaine,>,
1947, p. 491-501; H. SUNDIN, La théorie bergsonienne de Ia
religion, Paris, 1948.

41

IV

O IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO

§ 702. CARACTERISTICAS DO IDEALISMO

O termo "idealismo" é empregado ordinariamente num sentido


gnoseológico e serve, portanto, para designar toda a doutrina que
reduza a realidade a "ideia", isto é, a sensação, a representação, a
pensamento, a dado ou a elemento de consciência. Neste sentido, o
idealismo é o aspecto comum de doutrinas diversas e díspares e
pode servir igualmente para caracterizar, por exemplo, a doutrina
de Berkeley ou de Hume e a de Schelling ou de Hegel. Além disso,
muitas correntes da filosofia contemporânea são, neste sentido,
igualmente idealistas: o espiritualismo e o neocriticismo, o
transcendentalismo in- ,-lês e norte-americano, o idealismo italiano,
a filosofia

43
da acção e grande parte da fenomenologia. Este idealismo
gnoseológico é o dominador comum de todas as filosofias
antipositivistas que caracterizaram os últimos decénios do século
passado e os primeiros do nosso; enquanto que o seu oposto, o
realismo, foi,

no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu


uma certa importância e significação. Neste sentido, portanto, a
palavra idealismo não se presta para indicar nenhuma orientação
histórica determinada mas apenas uma doutrina gnoseológica que,
sendo comum a orientações diversas, não caracteriza
historicamente nenhuma.

Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido


especificamente histórico, ou seja, no sentido de uma orientação
que principia com a

chamada "filosofia clássica alemã" e pretende demonstrar a


unidade ou a identidade de infinito e finito, de espírito e natureza,
de razão e realidade, de Deus e mundo. Neste sentido, só poderão
ser compreendidos sob a rubrica "idealismo" aqueles movimentos
que se vinculam estritamente às teses fundamentais do idealismo
clássico alemão, isto é, o idealismo inglês e norte-americano e o
italiano. A característica principal deste idealismo, tal como se
verifica nas demais orientações, reside na maneira como entende e
pratica a filosofia: consiste essa maneira em mostrar a unidade
entre o infinito e o finito, quer partindo do infinito, quer partindo
do finito, mas, de qualquer modo, mediante procedimentos
puramente "especulativos" ou "dialécticos".

44
§ 703. AS ORIGENS DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE-
AMERICANO

O idealismo inglês e norte-americano visa a mostrar a unidade entre


o finito e o infinito partindo do primeiro; ou, como também se pode
dizer, por via negativa, isto é, mostrando que o infinito, pela sua

intrínseca irracionalidade, não é real ou é real na medida em que


revela e manifesta o infinito, que é a

verdadeira realidade, e postulando portanto a resolução final do


finito no infinito.

As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas


por uma verdadeira floração romântica que se verifica na
Inglaterra e na América pouco antes dos meados do século XIX. Em
Inglaterra, os poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e

William Wordsworth (1770-1850) inspiraram-se, nas suas poesias (e


o primeiro também em ensaios literários e filosóficos) no idealismo
de Schelling. Simultaneamente, o idealismo encontrava na
Inglaterra e

na América dois expositores e defensores que o revestiam de uma


forma brilhante e popular, embora superficial e enfática: Carlyle e
Emerson.

Tomás Carlyle (1795-1881), depois de alguns ensaios e estudos em


que se preocupava em dar a conhecer ao público inglês a literatura
romântica alemã, publicou o Sartor resartus, que é ao mesmo tempo
uma sátira alegórica da sociedade contemporânea e a expressão dos
seus princípios filosóficos. Num trabalho histórico, A revolução
francesa (1837), exaltou liricamente as grandes figuras dessa
revolução; e na obra Os heróis (1841) concebeu a história como

45

o campo de acção das grandes personalidades e estudou diversas


manifestações do heroísmo humano. Em numerosos ensaios
posteriores dirigiu uma crítica mordaz à sociedade mecânica
exaltando liricamente, em oposição a ela, o ideal de uma vida
espiritual domina-da pela vontade e pelos valores morais. Em Sartor
resartus, o universo é um vestido, isto é, um

símbolo ou uma aparição do poder divino que se

manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle


exalta o mistério que envolve "o mais estranho de todos os mundos
possíveis". O universo não é um armazém ou um fantástico bazar,
mas o místico templo do espírito. A segurança de que a

ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O


milagre que viola uma suposta lei da natureza não pode ser, em
compensação, a acção de uma lei mais profunda, que vise pôr a força
material ao serviço da energia espiritual? Na realidade, todas as
coisas visíveis são sinais ou emblemas: a matéria só existe para o
espírito: não é mais do que a encarnação ou a representação
exterior de uma

ideia. No mundo da história, o poder divino manifesta-se naquelas


grandes personalidades a que Carlyle chama heróis. Os heróis são
"os indivíduos da história universal" de que falava Hegel, ou seja, os
instrumentos da providência divina que domina a história, E tudo o
que na história humana encerra de grande e de duradouro é devido
à sua acção.
Quase ao mesmo tempo Relph Waldo Emerson (1803-82) arvorava-
se na América em defensor do "transcendentalismo", ou seja, de um
idealismo panteísta de cunho hegeliano. Tal concepção surge pela

46

primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois


defendida em numerosos Ensaios. A sua obra Homens
representativos (1850) reduz (como os

Heróis de Carlyle) a história à biografia dos grandes homens. A


convicção fundamental de Emerson é que em toda a realidade actua
uma força superior que ele denomina de Super-alma ou Deus. A
única lei do homem consiste em conformar-se com esta força. O
próprio mundo é um símbolo e um emblema. A natureza é uma
metáfora do espírito humano e os

axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética.
Mas o espírito humano é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz
Emerson (Nature, ed. 1883, p. 68), -procede do mesmo espírito de
que procede o corpo do homem: é uma inferior e mais remota
encarnação de Deus, uma projecção de Deus no inconsciente. Mas
difere do corpo num aspecto importante: não está como o corpo,
sujeito à vontade humana. A sua ordem serena é inviolável para nós.
Ele é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino,
é um ponto fixo em

referência ao qual podemos medir os nossos erros.

Assim que degeneramos, o contraste entre nós e a

nossa casa torna-se mais evidente, e nós tornamo-nos estranhos na


natureza ao afastarmo-nos de Deus". Emerson pode afirmar sobre
esta base a identidade romântica entre filosofia e poesia: uma e
outra descobrem no mundo a sua força oculta, a Super-alma que o
domina. A Super-alma é o espírito de verdade que se revela no
homem, como um olho que vê através de uma janela aberta de par
em par. É o

47

fundamento da comunicação entre os homens, que só é possível


sobre a base de uma natureza comum e impessoal, de Deus mesmo.
É, enfim, a força, que actua no génio e nos homens a quem a
humanidade deve os seus maiores progressos (Essays, ed. 1893, 1, p.
270). A liberdade humana não consiste, pois, em fugir ao mundo e à
necessidade que o domina, mas sim em reconhecer a racionalidade e
a perfeição desta necessidade e em conformar-se a ela.

A verdadeira especulação idealista inicia-se em

Inglaterra com a obra de Jacob Hutchinson Stirling (1820-1909), O


segredo de Hegel (1865), obra muito pouco original, dedicada à
exposição e à defesa do sistema hegeliano. O segredo de Hegel é,
segundo Stirling, a estreita relação de Hegel com a de Kant, de que
a primeira é a legítima e necessária consequência. Stirling via o
ponto basilar do hegelianismo na redução de toda a realidade ao
pensamento infinito de Deus, de que o próprio homem é um aspecto
ou um elemento.

A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao


filósofo Tomás Hill Green (1836-82). Green é autor de duas longas
Introduções às duas partes do Tratado da natureza humana de
Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à ética (1883), que é a
sua obra principal, e de outros ensaios menores. A Hume e, em
geral, ao empirismo, Green objecta que é impossível reduzir a
natureza

a um conjunto de percepções ou ideias e que é impossível entender


a conexão que tais percepções ou

ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser


reconhecida na sua singularidade

48

por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se


distingue no próprio acto do reconhecimento; e toda a conexão ou
sucessão de ideias só o é para uma consciência, que não é em si
mesma conexão ou

sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que


reconhece uma ideia ou a relação entre várias ideias, não pode ser,
por sua vez, uma ideia, porque isto implicaria que uma ideia fosse,
ao mesmo tempo, todas as outras. E não pode ser um composto de
sensações ou de ideias porque as ideias na consciência se sucedem
umas às outras, e a sucessão não pode constituir um composto. É
necessário, portanto, que o sujeito esteja fora das ideias para que
perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a

sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e


eterno. Um sujeito desta espécie é também o pressuposto tácito de
todo o naturalismo mas torna impossível o próprio naturalismo. Se o

mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes


factos, porque um facto não pode compreender em si todos os
outros. A natureza é uma contínua mudança; mas uma mudança não
pode produzir a consciência de si mesma, porque esta deve estar
igualmente presente em todos os estádios da mudança. As relações
entre os factos surgem mediante a acção de uma Consciência
unificante que não se reduz a um dos factos relativos. Assim, as
relações temporais só o são para uma consciência eterna. Deste
modo, Green deduz a necessidade de uma Consciência absoluta (isto
é, infinita e eterna) da própria consideração da realidade natural a
que

49

o empirismo e o positivismo pretendiam reduzir a consciência.

Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green


não nos esconde a dificuldade que este facto fundamental e
inigualável apresenta para a sua teoria da consciência absoluta. A
sua solução é que a história não pertence verdadeiramente à
consciência, mas apenas ao processo através do qual o organismo
animal se toma o veículo da consciência mesma. A nossa consciência,
segundo afirma, pode significar duas coisas: ou a função de um
organismo animal, que se tornou, gradualmente

e com interrupções, um veículo da eterna consciência; ou esta


mesma eterna consciência, que faz do organismo animal o seu
veículo e está por isso sujeita a certas limitações, mas conserva as
suas características essenciais de independência em relação ao

tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada


momento, que está em sucessão, e em cada um de cujo§ estados
sucessivos depende de uma série de eventos interiores e externos,
é consciência no primeiro sentido. A nossa consciência, com as suas
relações características em que o tempo não entra, que não devêm
mas são de uma vez por todas o que são, é a consciência no outro
sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção elimina toda a
incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a
admissão de que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos
tecidos, todas as funções da vida e do sentido, têm uma história
estritamente natural. Tal incompatibilidade só existiria se estes
processos e funções constituíssem realmente o homem

50

capaz de conhecimento; a actividade humana, ao invés, só se pode


explicar mediante a acção de uma consciência eterna, que se serve
dela como de um órgão próprio e se reproduz a si mesma através
dela. Porque é que esta repetição deve existir, porque é que a
eterna consciência deve procurar e promover

a sua repetição imperfeita através dos órgãos e das funções do


organismo humano, é um enigma que Green considera insolúvel.
"Devemos contentar-nos em dizer que, por muito estranho que
possa parecer, a coisa é assim" (Ib., p. 86). Como quer que seja,
Green considera que só o conceito de uma consciência absoluta pode
justificar a ideia de progresso, uma vez que os conhecimentos novos
que o homem adquire não podem vir ao ser no momento em que são
descobertos; são já reais na consciência absoluta e o progresso não
é mais do que a adequação crescente da história animal da
consciência à consciência absoluta (1b., p. 75). Estas considerações
estendem-se também à vida moral do homem. O aperfeiçoamento do
homem tende a um termo que é já plenamente real e completo na
consciência absoluta. Quando se diz que o espírito humano tem a
possibilidade de realizar alguma coisa que não se realizou ainda na

experiência humana, pretende dizer-se que há uma

consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus,


é, pois, ab aeterno tudo o que o homem tem a possibilidade de
chegar a ser. Não só é o Ser que nos fez, no sentido de que
existimos como um

objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser


em que existimos e ao qual somos idênticos na medida em que é
tudo o que o espírito humano é capaz de chegar a ser (1b., p. 198). A
vida moral impele o homem para o aperfeiçoamento individual e a
satisfação das suas próprias exigências; mas esta tendência
universaliza-se e racionaliza-se imediatamente porque o seu termo
éa

consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente


presentes. Devido a isto o bem foi concebido como uma actividade
espiritual de que todos podem e devem participar e, portanto, como
uma

vida social em que todos os homens devem cooperar livre e


conscientemente e em que deve dominar a

harmoniosa vontade de todos (Ib., p. 311.).

Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês


posterior. John Caird (1820-98) fez dele a base de uma filosofia da
religião (Introdução à filosofia da religião, 1880). O fundamento da
religião é, segundo Caird, a unidade do finito e do infinito: unidade
que é plenamente realizada e

actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de


um infinito progresso, que é exactamente a sua vida religiosa. "A
religião é a elevação do finito para o infinito, o sacrifício de todo o
desejo, inclinação ou volição que me pertence como indivíduo
privado, a absoluta identificação do meu querer com o querer de
Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283). Eduard Caird (1835-1908) fazia de
uma concepção análoga o critério de uma crítica miinuciosa e
pedante da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol.,
1889) e a base para entender A evolução da religião (1893). Com
efeito, delineia três formas "teoricamente progressivas da
consciência religiosa. A Primeira é a objectiva, segundo a qual Deus
é

52

concebido como um objecto entre os objectos (politeígnio,


enoteísmo). A segunda é a subjectiva, segundo a qual Deus é
concebido como uma vontade espiritual que se revela na
autoconsciência dos homens (estoicismo, profetismo, puritanismo,
Kant). A terceira é a final e perfeita, em que Deus é reconhecido na
verdadeira forma da sua ideia, isto é, como a unidade do sujeito e
do objecto e, portanto, como principio comum da exterioridade
cósmica e da interioridade espiritual.

§ 704. BRADLEY

A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley


(1846-1924) que elegeu para tema fundamental da sua especulação
o antigo e sempre novo contraste entre aparência e realidade, que
dá o título à sua obra principal (Aparência e realidade,
1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios
de lógica (1893), Ensaios sobre a

verdade e a realidade (1914) e de muitos outros estudos de


filosofia e psicologia.

Segundo Bradley, todo o mundo da experiência humana é aparência,


e só é real a consciência absoluta. O mundo da experiência é, com
efeito, inteiramente irracional, contraditório e incompreensível; e é
assim porque todos os aspectos dele se baseiam em relações e as
relações são inconcebíveis. Bradley examina a relação entre
qualidades primárias e secundárias, entre a coisa e as suas
qualidades, a relação espacial e temporal, a zausal, a que constitui o

53

sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade


fundamental: toda a relação tende a identificar o que é diverso, e
nisso é contraditória. Toda a relação modifica os termos relativos,
mas cada um destes termos cinde-se em duas partes: uma,
modificada, e outra, que permanece inalterada: e

estas duas partes não podem unir-se senão por uma

nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e
assim até ao infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar
inteligível a unidade dos termos relativos, não faz mais do que
dividi-los e

multiplicá-los internamente até ao infinito: por isso é contraditória.


Todo o sistema da experiência humana, assente nas relações, se
pulveriza, mediante a

reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros


termos que não estão juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem
mesmo o eu, segundo Bradley, escapa a esta dificuldade. É, no
entanto, verdade que a existência do eu está de algum modo fora de
qualquer dúvida, mas só como unidade da experiência imediata,
anterior à reflexão racional. Esta unidade deveria ser entendida e
justificada racionalmente; mas logo que se inicia esta tentativa
introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades
inerentes a toda a relação deparam-se-nos imediatamente e o eu
torna-se inconcebível.
Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum
deles pode ser considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica
se salva da contradição. Os Princípios de lógica de Bradley e os
numerosos ensaios que dedicou a problemas de lógica põem em
relevo as contradições que se ani-
54

nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a


referência de uma ideia à realidade, a qualificação da realidade
mediante um conceito que é tomado como símbolo e significado dela.
Por outros termos, todo o juízo implica uma ideia que não é uma
simples ideia, mas uma qualidade do real. Mas se é assim, a
multiplicidade e a variedade dos juízos implica que estes sejam
incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo
qualifica a realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado
que estas limitações ou condições qualificaria, por seu

turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas


multiplicada (Essays, p, 229).
O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser
aparência não significa que se possa admitir uma realidade em si
para além dele mesmo.

Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma


experiência ou de um acto lógico e

cairia por isso nas mesmas dificuldades fundamentais.

Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a


posse de um critério absoluto de verdade. Se rejeitarmos como
aparente o que é contraditório, consideramos implicitamente como
real o que é isento de contradições e, portanto, absolutamente
consistente e válido. A ausência de contradição implica um carácter
positivo e não deve ser uma pura abstracção. As aparências devem
pertencer à realidade porque o que parece de algum modo existe,
quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da
não contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o
mundo fenoménico de forma coerente e harmoniosa. Além

55

disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a


consciência é real. Ao mesmo tempo, esta consciência universal,
absoluta e perfeitamente coerente, não pode ser determinada
mediante nenhum dos aspectos da consciência finita (sensação,
pensamento, vontade, etc.), porque tais aspectos são
contraditórios. Por outro lado, não deve conter a divisão entre
objecto e sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas
determinações negativas implicam a impossibilidade de um
conhecimento pormenorizado da consciência absoluta. Pode-se ter
dela uma ideia abstracta e incompleta, embora verdadeira: mas não
se pode reconstruir a

experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia.


Tão-pouco a moralidade pode ser

atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita


atinja a perfeição que busca; mas não que obtenha a perfeição que
busca. No absoluto, o

finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto,


desaparecer como finito; e tal é também o destino do bem. Os fins
que a afirmação e o sacrifício do eu podem atingir estão para lá do
eu e do significado dos actos morais. No absoluto, onde nada se
pode perder, todas as coisas perdem o seu carácter mediante uma
nova acomodação ou um complemento mais ou menos radical. Nem o
bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p. 420).
Assim entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a
individualidade, a natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele,
não com a sua constituição finita, mas com uma reconstituição
radical, cujas características é- impossível determinar com
precisão. No abso-
56

luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o


objecto, que é inerente a todo o pensamento finito, o qual é sempre
pensamento de algo ou acerca de algo, e implica portanto uma
relação interna que o tome contraditório. O absoluto não pode ser
concebido como alma ou como complexo de almas, porque isto
implicaria que os centros finitos de experiência se mantivessem e
fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino final
e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos.
Estes são aspectos parciais, próprios da aparência temporal e têm
apenas uma verdade relativa. "0 absoluto não tem história, embora
contenha inúmeras histórias" (Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez
que uma pessoa que não seja finita é algo sem sentido (Ib., p. 532).

Desta doutrina substancialmente negativa do absoluto não deduz


Bradley que o conhecimento humano seja totalmente erróneo. Se
este conhecimento não alcança nunca a verdade, que seria a sua
perfeita conversão e total conformidade com o absoluto, pode no
entanto atingir diversos graus de verdade. De duas aparências, a
mais vasta e mais harmoniosa é a mais real, porque se aproxima mais
da verdade omnicompreensiva e total. A verdade e o facto de
requererem, para se converterem no absoluto, uma acomodação e
uma adição menor, são mais verdadeiros e

reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma


ilustração desta doutrina dos graus de verdade. Decerto que se
deve reconhecer que desde o momento em que a realidade é
qualificada como pensamento, deve possuir todas as características
im-
57

plícitas na essência do pensamento. No entanto, a


prova ontológica vai além deste princípio genérico quando afirma
não só que a ideia deve ser real mas também que deve ser real como
ideia. isto é falso, segundo Bradley, dado que um predicado como tal
nunca é realmente verdadeiro: deve estar sujeito, para o ser, a
adições e a acomodações. Assim, toda a ideia existente na minha
mente pode qualificar verdadeiramente a realidade absoluta; mas
quando a

falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e


ampliada, essa ideia pode ter desaparecido completamente. Por isso,
nem toda a ideia será verdadeiramente real; contudo, quanto maior
é a perfeição de um pensamento, a sua possibilidade e a sua interna
necessidade, tanto maior será a realidade que ele possui. A esta
exigência nem mesmo

a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito


verdadeira que seja, nunca inclui a totalidade das condições
requeridas e é por isso sempre abstracta, enquanto que a realidade
é concreta.

Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito


e o infinito, mas renovou-a com o espírito de um cepticismo radical
que se recusa

a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma


tal identidade. O processo do pensamento que para Hegel é uma
dialéctica que demonstra efectivamente tal identidade, é, para
Bradley ao invés, a confirmação da natureza contraditória do finito
e, portanto, da exigência da sua transmutação total no infinito.
Bradley admite, na verdade, diversos graus de verdade e de
realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e o
absoluto

58

abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve


ser transformado e reajustado até nos seus mais íntimos elementos
(Appearance, p. 529). A identidade do finito e do infinito, que
levara Hegel a demonstrar a intrínseca racionalidade do finito e a
aceitá-la como infinito, levou Bradley a

negar a realidade finita como tal e a exigir a sua transmutação no


infinito.

§ 705. DESENVOLVIMENTO DO IDEALISMO INGLÊS

Creen e Bradley inspiraram numerosos pensadores ingleses que


apresentam de maneira diversa a doutrina de uma consciência
infinita na qual encontra a sua última realidade o mundo finito.

Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus


estudos sobre Platão (1926) e sobre a filosofia grega, numa obra
que obteve muito êxito na Inglaterra, Elementos de metafísica
(1903), tenta preencher com algum conteúdo concreto a ideia do
absoluto que na doutrina de Bradley era uma pura forma vazia,
indeterminável. Entende o absoluto como uma sociedade de
indivíduos que estivessem teleologicamente ordenados à unidade do
conjunto. Uma sociedade humana, em sentido próprio, é de facto
uma unidade de estrutura finalista, que não o é apenas para o
observador sociólogo, mas também para os seus membros, a cada
um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os
outros. Embora o eu e a sociedade não sejam

59

n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da


categoria da cooperação na vida humana tornará ~Ivel considerar o
absoluto como uma sociedade espiritual. Frente a estas
determinações mais positivas da natureza está o ponto de vista
negativo de H. H. Joachim, que se atém às teses de Bradley (A
natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos, 1948) e as utiliza como
critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana
(Estudo sobre a ética de Espinosa, 1911).

Mais próximo do hegelianismo original encontra-se Bernardo


Bosanquet (1848-1923), o qual, no entanto, renovou por sua conta os
princípios da lógica de Bradley (Lógica ou morfologia do
conhecimento, 2 vol., 1888) e é autor de uma História da estética
(1892). No Princípio da individualidade e do valor (1911) viu na
contradição lógica uma experiência vivida, análoga à dor e à
insatisfação -e considerou-a como o motor de todo o progresso
espiritual. Isto significa que a negatividade não é uma imperfeição
da experiência humana, destinada a desvanecer-se, mas uma
característica fundamental da realidade mesma. De facto, quando
se resolve uma contradição, resta sempre a negatividade, a qual,
impelindo continuamente todo o ser para além de si mesmo, é a
própria lei da vida. A contradição é uma negação não conseguida ou
obstruída; a negatividade é uma contradição vitoriosa e resolvida. A
exigência necessária da negatividade leva Bosanquet a negar a
identidade entre natureza e espírito. A função da natureza é a de
ser um objecto para a subjectividade espiritual, o correlato
exterior do espí-
60

rito finito. É somente pela existência da natureza que os espíritos


finitos adquirem a sua consistência e se tornam a cúpula viva entre
a natureza e o absoluto. O reconhecimento da negatividade elimina,
segundo Bosanquet, todas as dificuldades do conceito de absoluto.
A prova positiva a seu favor apoia-se, logicamente, no principio de
contradição, entendido do modo concreto a que nos referimos.
Quando o processo pelo qual a contradição é normalmente removida
nas questões humanas é considerado absolutamente válido, pode-se
ver nele uma unidade perfeita, na qual as contradições são
completamente destruídas, embora permaneça a diversidade ou o
aspecto negativo. Com a solução das contradições, a experiência
humana transmuda-se radical. mente na vida quotidiana; pode-se
entender portanto a sua total transmutação no absoluto. Neste
está eternamente e perfeitamente realizado aquele processo de
unificação lógica que na vida humana é progressivo e gradual.

§ 706. MCTAGGART

A nova orientação do idealismo, devida aos pensadores que


acabámos de examinar, implica uma divisão radical do significado e
da importância que Hegel atribuíra à dialéctica; e tal revisão é obra
de John McTaggart (1866-1925), autor de Estudos sobre a
dialéctica hegeliana (1896), de Estudos sobre a cosmologia
hegeliana (1901), de um Comentário à lógica de Hegel (1910) e de
uma obra em dois volumes, A natureza da existência (1921-27). Na
primeira das suas

61

~s McTaggart mostrou que a lei da dialéctica hegeliana não se


mantém inalterada desde o princípio até ao fim do seu processo.
Nas primeiras categorias da lógica (a do ser) a passagem da tese à
antítese não é a transição a uma fase superior e complementar, e a
síntese é uma consequência da tese e da antítese conjuntas. Mas
nas categorias da essência, a antítese é, ao invés, complementar da
tese, é mais concreta e verdadeira do que ela e

representa um progresso; a antítese já não resulta do confronto


entre tese e antítese mas procede unicamente desta última.
Finalmente, nas categorias do conceito, os momentos já não se
opõem um ao outro, de maneira que a antítese não é uma antítese
real e cada termo é um progresso em relação ao outro. Isto
demonstra, segundo McTaggart, que a mola real do procedimento
hegeliano não é a contradição (como o próprio Hegel afirmou) mas a
discrepância entre a ideia perfeita e concreta que está implícita na
consciência e a ideia abstracta e imperfeita que se tornou explícita.
A característica do processo dialéctico é a busca, por parte do
momento abstracto ou imperfeito da consciência, não da sua
negação como tal, mas do seu complemento. A dialéctica não
constitui a verdade, uma vez que o processo da verdade excluiria a
dialéctica mesma. Isto levou MeTaggart a impugnar o principio
fundamental de Hegel: a racionalidade de real. A realidade, não se
pode revelar ao homem na sua perfeita racionalidade, já que implica
sempre, e não outra coisa, a contingência dos dados sensíVeis, sem
os quais as categorias da razão ficam Vazias, e a insatisfação dos
nossos desejos, que não

62

poderia existir num universo perfeito. O processo dialéctico revela


esta imperfeição porque, enquanto existe, não há perfeição, já que
o processo tende a uma síntese que está longe de verificar-se. Mas
se
o processo dialéctico pertence ao espírito finito que vive no tempo
e se aproxima gradualmente do futuro, isso coloca o absoluto no
futuro do próprio processo, isto é, no último estádio de uma série
em que os outros estádios se apresentam como temporais. A ideia
eterna e infinita encontra-se, pois, no termo

do processo temporal e é qualificada, não pela determinação da


contemporaneidade e do presente, mas pela do futuro. O absoluto
não é um eterno presente segundo a concepção clássica, que o
hegelianismo primitivo e o próprio idealismo inglês haviam admitido,
mas é antes o termo do futuro. O tempo urge para a eternidade e
cessa na eternidade. Isto torna possível a esperança no triunfo
final do bem no mundo.

Além disso, analogamente a Taylor, MeTaggart admite uma


concepção pluralista e sociológica do absoluto. Crê, de facto que o
eu finito é o elemento último e irredutível da realidade. A natureza
do eu é paradoxal: por um lado, nada existe fora do eu porque tudo
é objecto do seu conhecimento; por outro lado, o eu distingue-se
enquanto conhece tudo o que conhece e pressupõe por isso que tudo
o que conhece está fora dele. Assim, o eu inclui e exclui ao mesmo
tempo aquilo de que é consciente (Studies in Hegelian Cosmology, p.
23). Não existe outra explicação possível desta natureza paradoxal
senão a de que o eu é a absoluta realidade, a necessária

63

diferenciação do Absoluto. Os eus são, portanto, eternos e o


Absoluto não é mais do que a unidade destes eus: uma unidade que é
tão real como as suas diferenciações e como a própria unidade do
ou finito, tal como este se manifesta -imperfeitamente neste
mundo imperfeito. Como unidade de um sistema de eu, o absoluto
não pode ser entendido como pessoa ou eu, e, portanto, não pode
ser qualificado como

Deus. Para entender em que consiste a sua unidade, McTaggart


examina os vários aspectos da experiência humana. Exclui que a
unidade sistemática do absoluto possa ser concebida como uma
unidade de conhecimento: o conhecimento verdadeiro, sendo
uniforme em todos os eus, não explica a sua diferenciação
originária. Pelo mesmo motivo, o absoluto não pode ser vontade
porque a vontade perfeita, como satisfação perfeita, é uniforme e
não explica a diferenciação. Resta então a emoção. Se o perfeito
conhecimento e a perfeita satisfação são idênticos em todos os
eus, não há razão para supor que o perfeito amor

não seja, em troca, diferente em cada eu e não seja, portanto, a


base -da diferenciação requerida pelo absoluto. O conteúdo da vida
do absoluto não pode ser, portanto, senão o amor: não a
benevolência, nem o amor da verdade, da virtude ou da beleza, nem
o desejo sexual, mas "o amor apaixonado que tudo absorve e tudo
consome" (Ib., p. 260). Só o amor supera a dualidade e estabelece
um equilíbrio completo entre o sujeito e o objecto. Enquanto o
conhecimento deixa sempre fora de si o objecto conhecido

e a volição nunca se satisfaz inteiramente porque o

objecto da satisfação lhe é estranho, o amor identifica

64

completamente objecto e sujeito. O amor não é uni

dever ou uma imposição, mas uma harmonia em que as duas partes


têm iguais direitos. Não se ama uma
pessoa pelas suas qualidades, mas é antes a atitude perante as suas
qualidades que é determinada pelo facto de elas lhe pertencerem.
Ademais, o amor

justifica-se por si mesmo. E o ponto mais próximo do absoluto que o


homem pode alcançar é precisamente um amor de que não se pode
dar outra razão que não seja o facto de duas pessoas pertencerem
uma

à outra (Ib., p. 278 sgs.).

Na sua última obra, A natureza da existência (1921-27) McTaggart


expôs de novo em forma sistemática as conclusões a que chegara
através da crítica da doutrina de Hegel. O primeiro volume desta
obra examina as características gerais da' existência: não da
existência enquanto pensada, isto é, do conhecimento ou do
pensamento, mas de toda a existência em geral, e, portanto também
do conhecimento, do pensamento e da crença que, como tais, são
igualmente existências. McTaggart declara que deste modo se
vincula a um idealismo ontológico, cujos representantes são
Berkeley, Leibniz e Hegel.
O método de que se serve na descrição da existência em geral é o a
priori; mas em dois pontos McTaggart, apela para a experiência:
para provar que algo existe e para provar que o que existe é
diferenciado. Fora destes dois pontos, o seu procedimento é a
priori, e é dialéctico no sentido que ele mesmo admitiu como próprio
desta palavra, ou seja, não no sentido de negatividade e de
contradição, mas no de um procedimento racional, necessário e
progressivo. A di-
65

ferenciação da existência implica que ela tenha qualidades, as quais


terão, por seu turno, outras qualidades e assim sucessivamente; no
início da série deverá haver algo existente que tenha qualidades

sem ser qualidade: e isso será a substância. É indubitável que a


substância não é nada fora das suas qualidades-, mas isto não quer
dizer que ela não seja algo em conjunção com elas. A substância é
diferenciada, isto é, verdadeiramente unia pluralidade, de
substâncias, entre as quais devem existir relações. A relação é uma
determinação última e indefinível, como a qualidade; e gera, por seu
turno, qualidades, porque os termos relativos adquirem, como tais,
novas qualidades. Cada substância tem a sua própria natureza e
pode ser individualizada nesta natureza por uma descrição
suficiente. Os grupos de substâncias são infinitos, porque cada
grupo pode ser assumido como membro de si próprio; e a substância
que compreende todas as outras como partes suas é o universo. O
universo é caracterizado intrinsecamente pela posse de diversas
substâncias, de modo que, se uma destas fosse diferente, o próprio
universo na sua totalidade seria diferente. Toda a substância é
infinitamente divisível, isto é, tem partes dentro de partes até ao
infinito. Para explicar a relação entre -uma substância e as suas
partes e entre as várias substâncias, MeTaggart introduz o
conceito da correspondência determinante. É uma forma de
correspondência tal que, se se verifica entre uma substância C e a
parte de uma substância B, uma descrição suficiente de C, que
inclua a sua relação com a parte de B, determina intrinsecamente
uma descrição suficiente desta

66

parte de B e de cada membro do grupo B-C, assim como de cada


membro de uma parte de tais membros, e assim sucessivamente até
ao infinito. A correspondência determinante é uma relação causal,
que estabelece e funda a ordem do universo. A sua natureza é
esclarecida pela aplicação que MeTaggart faz Ma no segundo
volume da sua obra: é a percepção imediata que um eu tem de outro
eu.

De facto, depois de ter descrito as características da existência,


MeTaggart procede (no segundo volume) à determinação dos
aspectos do Universo que devem ser considerados reais. Declara
irreais o tempo, a matéria, a sensação e toda a forma de
pensamento (incluídos o juízo e a imaginação) que não seja
percepção. A razão disto está em que nenhum destes aspectos da
realidade se presta a ser determinado pela correspondência
determinante e, portanto, todos devem ser considerados
inconsistentes e contraditórios. A percepção, como consciência
imediata da substância, ou seja, do eu, é, em troca, perfeitamente
definida pela correspondência determinante. De facto, um eu que
percebe o outro eu tem ao mesmo tempo a percepção de si próprio
e do outro e a percepção destas percepções, e assim
sucessivamente até ao infinito. De sorte que uma descrição
suficiente da percepção de um deles implicará a suficiente
descrição até ao infinito de partes desta percepção. Por outros
termos, estabelecer-se-á entre as duas substâncias um sistema
inexaurível de relações ao mesmo tempo racionalmente inteligíveis e
imediatamente vividas. E, de facto, a percepção de que fala
McTaggart não é nem volição nem pensamento, mas emoção e pre-
67

cisamente emoção de amor. O resultado das análises deste filósofo,


em que o princípio idealista se alia curiosamente a um método de
análise que se assemelha muito ao da lógica' matemática e ao
critério objectivista do realismo contemporâneo, é o
reconhecimento de um universo formado de centros espirituais, de
eus, que uma forma de experiência imediata (a percepção emotiva
ou amor) unifica num sistema dialecticamente organizado.
McTaggart conclui a sua obra com a esperança que já havia
formulado nas suas análises hegelianas, a saber: dado que se deve
entender o absoluto não como presente mas como futuro, ele
deverá realizar-se como um bem infinito após um período finito,
embora longuíssimo, de tempo; e deverá realizar-se como estado de
amor perfeito, comparado com o qual até o mais alto arroubo
místico não é mais do que uma tentativa aproximativa e longínqua.
Para MeTaggart, o passado e o

presente, são manifestações imperfeitas e preparatórias do futuro.


Isto é, sem dúvida, uma repetição do conceito de Fichte e de
Schelling do progresso necessário da história, com a diferença,
porém, de que o

progresso não é até ao infinito, mas tende para um

termo que será alcançado após um período muito longo, mas finito,
de tempo.

§ 707. ROYCE

Na América o primeiro representante do neo-idealismo é William


Torrey Harris (1835-1909), autor de uma exposição crítica da
Lógica de Hegel

68

(1890), assim como de uma Introdução ao estudo da filosofia (1890)


e de um ensaio sobre, Dante (0 sentido espiritual da "Divina
Comédia", 1889), O interesse de Harris é fundamentalmente
religioso. Admite três estádios do conhecimento: o que considera o

objecto, o que considera as relações entre os objectos e o, que


considera as relações infinitas e necessárias da existência dos
objectos. Este terceiro estádio é preparatório do conhecimento
teológico e, portanto, da religião, porque descobre a actividade
autónoma e infinita que sustenta todas as coisas.

A maior figura do (dranscendentalismo" americano e o que mais


contribuiu para a difusão do idealismo de tipo anglo-saxónico foi
Jostah Royce (1885-1916). Os escritos principais de Royce são os
seguintes: O aspecto religioso da filosofia, 1885; O espírito da
filosofia moderna, 1892; A concepção de Deus, 1895; Estudos sobre
o bem e sobre o mal,
1898; O mundo e o indivíduo, 2 vol., 1900-1901; A concepção da
imortalidade, 1904; A posição actual do problema da religião
natural, 1901-02; Apontamentos de psicologia, 1903; Herbert
Spencer, 1904; A relação dos princípios da lógica como os
fundamentos da geometria, 1905; A filosofia da fidelidade,
1908; W. James e outros ensaios de filosofia da vida,
1911; As fontes da intuição religiosa, 1912; Princípios da lógica,
1913; O problema do cristianismo, -1913; Conferências sobre o
idealismo moderno, 1919; Ensaios fugitivos, 1920. Entre estes
escritos, O mundo e

o indivíduo e O problema do cristianismo são os que exprimem as


fases principais do pensamento de Royce.

,69

O ponto de partida de Royce é a distinção entre o significado


exterior e o significado interno da ideia.
O significado externo da ideia é a sua referência a uma realidade
exterior e diversa; o significado interno é, ao invés, constituído
pelo fim que a ideia se propõe, enquanto não é apenas imagem de
uma coisa, mas também a consciência do modo como nos propomos
actuar sobre a coisa que representa. -Royce procura reduzir o
significado externo ao significado interno. Crê-se, de ordinário, que
a ideia é verdadeira quando corresponde ao objecto real; mas o
objecto real, que pode servir como medida da verdade da ideia, é só
aquele a que a ideia mesma se refere, isto é, o designado pelo
significado interno dela. Não existe um critério de verdade
puramente externo: as ideias são como os instrumentos, existem
para um fim: são verdadeiras, como os instrumentos são bons,
quando convêm para tal fim. Por consequência, unia ideia não é um
simples processo intelectual, mas também um processo volitivo; e é
indispensável ter em conta o fim para o qual a ideia tende para
ajuizar da validade da ideia. Isto implica que a ideia tende sempre a
encontrar no seu objecto o seu próprio fim, incorporado de um
modo mais determinado do que aquele em que ela o tem por si
mesma. Por conseguinte, ao procurar o seu objecto, uma ideia não
procura outra coisa senão a própria determinação explícita e,
finalmente, completa. O único objecto em relação ao qual se pode
medir a verdade da ideia não é portanto outro senão a completa
realização do fim implícito na própria ideia. Neste

70

sentido, Royce diz que a ideia é -uma vontade que busca a sua
própria determinação. Mesmo as ideias expressas como hipóteses
ou definições universais

ou como juízos de tipo hipotético ou -matemático, não fazem mais


do que destruir certas possibilidades e implicar a determinação do
seu objectivo final mediante determinadas negações.

O limite ou a meta deste processo de determinação crescente é um


juízo em que a vontade exprime a sua determinação final. Mas este
juízo não pode ser senão o acto de uma Consciência que conclua e
complete o que o sujeito finito a cada momento se propõe conhecer.
Todo o mundo da verdade e do ser deve estar presente numa
Consciência singular, que compreende todos os intelectos finitos
numa única visão intuitiva eternamente presente. Esta consciência
não é só temporal, mas implica também uma visão compreensiva da
totalidade do tempo e do que este significa, Daí o título da obra
principal de Royce: o mundo é uma totalidade individual, na qual
todos os fragmentos da experiência encontram o seu complemento
e a sua perfeição; é Deus mesmo. No absoluto encontram lugar a
ignorância, o esforço, o desaire, o erro, a temporalidade, a
limitação-, mas também têm aí lugar a solução dos problemas, a
consecução dos fins, a superação dos defeitos, a correcção dos
erros, a

concentração do tempo na eternidade, a integração do que é


fragmentário. Sobretudo, o indivíduo que procede moralmente
encontra em Deus o cumprimento total da sua boa vontade: pode
ser concebido como uma parte que é igual ao todo, e precisamente

71

por ser igual, unida no todo dentro do qual habita. Toda a


consciência finita se dilata assim no absoluto até se identificar com
ele, mas esta identificação não implica o anulamento da
individualidade mas antes o seu complemento, a realização de uma

individualidade inteiramente determinada e perfeita. Royce afirma


energicamente a exigência da conservação das individualidades no
absoluto; e para tornar inteligível esta conservação, assim como
para obviar às dificuldades que Bradley opusera a todas as
determinações do absoluto, recorre à teoria dos números.
O longo "Ensaio complementar" acrescentado ao primeiro volume da
sua obra principal é talvez a

parte mais interessante da obra de Royce. Recorre à teoria dos


números como havia sido elaborada por Cantor e por Dedekind: o
número é um sistema auto-representativo, um sistema cujas partes
representam o todo, no sentido de que têm, por seu

turno, elementos que correspondem. termo a termo aos elementos


do todo. Royce esclarece por sua

conta este conceito como o exemplo de um mapa geográfico


idealmente perfeito que deve, para o ser, conter tanto a ubicação
como os contornos da sua própria posição: de modo que acabará por
conter mapas dentro de mapas até ao infinito. Os sistemas auto-
representativos são, por outros termos, os sistemas que contêm
infinitas partes semelhantes ao

todo; e a Consciência absoluta seria um sistema auto-


representativo deste género no sentido de que, compreendendo em
si a totalidade dos espíritos individuais, implicaria precisamente
uma série ou cadeia

72

de imagens próprias, um sistema de partes dentro de partes até ao


infinito. Uma concepção semelhante do infinito já não está sujeita
às dificuldades que Bradley apresentara. A infinita subdivisão a que
dá lugar, segundo Bradley, toda a relação, logo que é considerada
analiticamente, e que era para ele o

sinal da natureza contraditória e irracional da contradição (isto é,


de todo o mundo da experiência humana) já não é tal quando se
considera até ao infinito um sistema auto-representativo cuja
natureza é definida precisamente por uma cadeia infinIta de partes
semelhantes. A proposição fundamental da lógica do ser: "tudo o
que existe faz parte de um sistema que se representa a si mesmo"
permite, segundo Royce, conceber a verdadeira união do uno e do
múltiplo. Há uma multiplicidade que não é absorvida e transmudada
mas sim conservada no absoluto, e é a multiplicidade dos indivíduos
que se unificam no absoluto. O absoluto, o universo, é neste sentido,
um sistema auto-representativo que, como sujeito-objecto, implica
uma imagem ou concepção completa ou perfeita de si. É uno pela sua
estrutura, porque é um sistema individual; mas, ao mesmo tempo, é
infinito, porquanto é uma cadeia de fins conseguidos. A sua forma é,
pois, a de um eu, que se multiplica nas imagens, por sua vez
infinitas, que o absoluto determina por si mesmo nos eus individuais.

Esta doutrina do absoluto marca a primeira fase do pensamento de


Royce. A segunda fase, caracterizada por uma tentativa diferente,
a de determinar a natureza intrínseca do absoluto, aparece pela

73

primeira vez na Filosofia da fidelidade (1908) e

encontra a sua melhor expressão no Problema do cristianismo


(1913). Na primeira fase, Royce havia encontrado na teoria dos
números de Cantor e Dedckind o instrumento daquela determinação;
na segunda fase encontra esse instrumento na doutrina de Peirce (§
750), que pusera em relevo o significado

e a importância do processo da interpretação considerado como o


terceiro e superior processo cognitivo, juntamente com a percepção
e o pensamento. A consideração deste processo é necessária,
segundo Royce, quando se trata de objectos que não podem ser
assimilados nem à percepção nem ao

conceito. É evidente, por exemplo, que "o espírito do nosso


próximo" não é um dado sensível nenhuma noção universal e que
deve ser objecto de uma

terceira forma de conhecimento, que é precisamente a


interpretação. A interpretação é uma relação triádica, na qual
alguém, isto é, o intérprete, interpreta algo para alguém. Supõe uma
ordem determinada destes três termos, porque se a ordem muda,
muda o próprio sentido da interpretação. A relação interpretativa
pode verificar-se também na interioridade de uma única pessoa, e
também neste caso existem três termos: o homem do passado,
cujos desejos e recordações são interpretados; o eu presente, que
interpreta tudo isto, e o eu futuro, para o qual esta interpretação é
dirigida. A interpretação tem por objecto sinais, do mesmo modo
que a percepção tem por objecto coisas e o conceito universal.

74

A tese de Royce é a de que o universo é constituído por sinais reais


e pela sua interpretação; e

que o processo da interpretação tende a fazer do universo uma


comunidade espiritual. Uma interpretação é real, se for real a
comunidade que ela exprime, e só é verdadeira se a comunidade
alcança o seu objectivo através dela. Toda a filosofia é,
inevitavelmente, uma doutrina que nos aconselha a proceder como
se o mundo tivesse certas características. Mas, contrariamente ao
que Vaihinger afirma (§ 753), Royce crê que o como se não é apenas
uma ficção ou um sistema de ficções, senão que pode justificar uma
única atitude frente ao mundo: a que tende a considerar
praticamente real um reino do espírito, uma comunidade universal e
divina, e reconhece claramente que é impossível ao indivíduo salvar-
se por si só, do ponto de vista prático: e que também é impossível,
do ponto de vista teorético, que ele encontre por si só a verdade no
âmbito da sua experiência privada, sem ter em conta a

velação que o liga à comunidade. Tal é, segundo Royce, a atitude


própria do cristianismo e, em particular, do cristianismo paulino, que
vê o reino dos céus realizado na igreja, isto é, na comunhão dos
fiéis. O amor cristão assume, na pregação de S. Paulo, a forma da
fidelidade à comunidade: e a fidelidade à comunidade exprime a
natureza mesma da vida moral.

De facto, na Filosofia da Fidelidade, Royce vê o fundamento da


moralidade na fidelidade a uma tarefa, a uma missão livremente
escolhida: tarefa ou missão que inclui sempre a solidariedade com
os

75

outros indivíduos, ou melhor, com uma comunidade de indivíduos. A


fidelidade é, também, o, critério que permite medir o valor das
tarefas humanas, já que é evidentemente má uma tarefa que toma
impossível ou nega a fidelidade aos demais. A fidelidade à
fidelidade é, portanto, o critério supremo da vida moral.

Os últimos escritos de Royce tratam de delinear o que ele chamava


de "Grande Comunidade": uma

comunidade que é real não porque se encontre historicamente


realizada, mas por ser o eterno fundamento da ordem moral.
Todavia, quis sugerir também um meio prático para a realização
desta grande comunidade, e viu tal meio num sistema de seguros.
Com efeito, o seguro é uma associação fundada no princípio triádico
da interpretação: o seguro, o segurador e o beneficiado, e nela os
obstáculos à associação transformam-se numa ajuda à associação
mesma (A esperança da grande comunidade, 1916). Royce sugeriu
também o seguro contra a guerra (Guerra e seguro, 1914). Mas esta
curiosa mescla de negócios e de moralismo cristão não nos deve
impedir de considerar um dos espíritos mais abertos e geniais do
idealismo contemporâneo. Afinal de contas, se o infinito é a imagem
ou a reprodução do infinito, também os negócios em geral, e

os seguros em particular, podem servir como instrumentos de


manifestação ou de realização do infinito. E o sistema de seguros, a
que Royce aconselhava recorrer, é certamente um progresso em
relação ao esta-do prussiano, ao qual o seu mestre Hegel

76

pretendia confiar a total realização da Ideia infinita do mundo.

§ 708. OUTRAS MANIFESTAÇõES DO IDEALISMO INGLÊS E


NORTE - AMERICANO

Numa discussão pública efectuada em 1885, entre Royce e outros


filósofos na Universidade da Califórnia, G. H. Howison (1834-1916)
reprovou a Royce o anular no eu infinito a personalidade finita do
homem e a do próprio Deus. Ao idealismo monista de Royce,
Howison contrapunha um idealismo pluralista, segundo o qual a
realidade é, nas suas diversas ordens, uma sociedade de espíritos
eternos, em que os membros encontram a sua igualdade na tarefa
comum de alcançar o único ideal racional, que é Deus mesmo (A
concepção de Deus,
1897). A uma preocupação análoga obedecia em

Inglaterra J. H. Muirhead (Os, elementos da ética,


1892; Filosofia e vida, 1902-, Objectivos sociais, 1918) que, no
entanto, via a salvação da autoconsciência finita na necessária
presença daquela negação dialéctica, na qual já Bosanquet havia
insistido.

As teses gerais do idealismo foram mais tarde apresentadas na


América por James Greighton (1861-1924); (Estudos de filosofia
especulativa, 1925) e por Mary Whiton Calkins, que se vincula
directamente à especulação de Royce; e em Inglaterra por David
George Richte (1853-1903) e por John Stuart Mackenzie (1860-
1935) em (Apontamentos de metafísica, 1902; Leituras sobre o
humanismo, 1907;

77

Elementos de filosofia construtiva; Valores Últimos,


1924).

Ocupam um lugar intermédio entre o idealismo

e o espiritualismo Simão Somerville Laurie (1829-1909) e o


americano William Ernest Hocking. O primeiro desenvolveu numa
série de obras (Metafísica nova e velha, 1884-, Ética, 1885;
Sintética,
1906) um "realismo natural", que é, na realidade, um idealismo, e
distingue vários planos de realização do absoluto, considerando o
absoluto mesmo imanente em todos e cada um dos planos
particulares. A distinção dos planos de realidade serve a

Laurie para reivindicar a autonomia do indivíduo. No indivíduo, o


absoluto mesmo afirma o seu ser, dando-lhe um carácter específico
e um conteúdo a afirmar e fazendo-o subsistir no seu pleno direito:
na sua função de negação, que recebe do absoluto, o indivíduo é
capaz de resistir ao próprio absoluto (Synthetica, 11, p. 75).
Segundo Hocking, em troca, Deus é conhecido directamente pelo
homem, na própria experiência sensível. Esta tem um

único conteúdo dos diversos indivíduos e deve ter um único


cognoscente, que é Deus mesmo; o qual é, portanto, o conhecedor
universal, implícito em

todo o conhecimento objectivo. De modo que os

homens conhecem as outras coisas ou os outros espíritos só porque


conhecem Deus: o conhecimento de Deus fornece, de facto, a noção
da experiência social, sem cuja posse prévia o reconhecimento dos
eus humanos não seria possível. Tão-pouco a ideia de Deus,
pressuposta pela experiência sensível e

pela experiência social, pode ser uma mera ideia e

78

não implicar a sua própria existência, já que, como

simples ideia, não poderia oferecer o critério para ser reconhecida


como tal, de modo que nem mesmo

a ideia da experiência social seria possível se tal experiência não


fosse real (0 significado de Deus na experiência humana, 1912; O
eu, o seu corpo e a sua liberdade, 1928; Tipos de filosofia, 1929;
Pensamentos sobre a morte e sobre a vida, 1937; A ciência e a ideia
de Deus, 1944).

Uma visão mais próxima do idealismo italiano é a do norte-


americano George P. Adams, que afirma a independência da
actividade espiritual do conteúdo da consciência e vê precisamente
em tal actividade o princípio criador da realidade. A actividade
espiritual não pode certamente ser considerada como um objecto
sujeito ao domínio geral da experiência e não pode ser descrito
como uma forma

ou uma relação objectiva. Mas pode ser reconhecida e conhece-se


nos produtos da sua criação: nos valores éticos, religiosos e sociais
e no mundo da história (0 idealismo e a idade moderna, 1918). Uma
opinião análoga sobre a actividade espiritual encontra-se na obra do
inglês Richard Burdon Haldane (1857-1928) que se valeu do
principio da relatividade do conhecimento para determinar a
natureza do absoluto (0 reino da relatividade, 1921; outras obras
suas: O caminho da realidade, 2 vol. 1903-04; A filosofia do
humanismo, 1922). O princípio da relatividade implica que o
significado da realidade não é o mesmo em todos os graus em que
ela se divide, e que só pode ser expresso em cada grau nos termos
que lhe são peculiares. De acordo com isto, Deus

79

ph41. of T. H. G., Londres, 1896; A. E. TAILOR, The Problem of


Conduct, Londres, 1901, p. 50-88; H. SIDGWICK, Lectures on the
Ethic8 of T. H. Green, M. H. Sp~er and J. Martineau, Londres,
1902; P. L. NETTLESHIP, Memoir of T. H. G., Londres, 1906. ,Sobre
Eduarido Caird: H. JONES,e J. H. MUIRHEAD, The Life and Phil.
of E. C., Glasgow, 1921.

§ 704. De BrAdley, lista dos -escritos menores em ABBAGNANO,


op. cit., p. 265.

Sobre Bradley: STRANGE, in "Mind", N. S., 1911; BROAD, ibid.,


1915; DE ;SARLO, Filosofia del tempo nostro, Florença, 1916, p.
115-56; TAYLOR, WARD, STOUT, DAWES, MCKS, MUIRHEAD,
SCHILLER, in ",3"d", 1925; E. DuPRAT, Bradley, París; R. W.
CHuRcff, B.s, Nova Iorque, 1942; W. F. LOFTHOUsE, F. H. B.,
Londres, 1949.

§ 705. Sobre Bosanquet: H. BOSANQUET, B. B., Londres, 1924;


MUIRIlEAD, in "Mind", N. S., 1923; ID, in "Journal Gf Plúl.", 1923,
n., 25; HOERLE, ibid, 1923, n., 18; F. HOUANG, Le néo-hegelianisme
en Angleterre. La philosophie de B. B., Paris, 1954.

§ 706. Sobre MeTaggart: F. C. S. ScHiLLER, in "Mind", N. S., 1895;


WATSON, in "Philosophical ReVi,eW", 1895; MCGILVARY, in
"Mind", N.S., 1898; BROAD in "Mind", 1921; C. D. BROAD,
Examination of Me. T's Philosophy, 2 vol. Cambrtdge, 1934-38.

§ 707. Sobre ROYCE: o número que lhe dedicou a "Ph~ophical


Review", 1916, 111, com colaboração de HOWISON, DEWEY,
CALKINS, ADAMS, BARON, SPAULDING, COHEN, CABOT,
HORNE, HOCKING, RAND. ALGRATI, Un pensatore americano:
J.R., Milão, 1917; TEDESCH, in "Giorn. critico della fil. italiana",
1926; ALBEGGIANI, II @@i&tema filosofico di J.R., Palermo,
1929; 1-1. G. TOWSEND, Philosophical Ideas in the United States,
Nova lorque, 1934, cap. I; R. B. PERRY, In the Spirit of William
James, New Haven, 1938, cap. I; G. MARCEL, La Métaphysique de
Royce, Paris, 1945; J. E.

82

Smim, R.s Social Infinite Nova lorqule, 1950; J. H. COTTON, R. on


the Human Self, ~bridge, Mass, 1954.

§ 708- Sobre Umison: G. H. Hotoison, Philosopher and Teacher; a


Selec~ from his Writings with a Biographical Sketch, ao cuidado de
J. W. BucKHAm, Berkeley. Cal., 1934 (com bíblIog.).

Sobre Creighton: H. G. ToWNSEN, Philosophical Ideas in the


Unite-d States, Nova IoTque, 1934, p. 187 segs.

83

O IDEALISMO ITALIANO

§ 709. IDEALISMO ITALIANO: CARACTERISTICAS

E ORIGENS DO IDEALISMO ITALIANO

Na segunda metade do século XIX a doutrina de Hegel teve na


Itália o seu centro de estudo e de difusão na Universidade de
Nápoles, onde a professaram Augusto Vera (1813-85), um modesto
mas típico hegeliano da direita com tendências teístas e
catolicizantes, e Bertrand Spaventa (1817-83). Spaventa iniciou a
sua actividade cerca de 1850 com ensaios sobre Hegel e a filosofia
moderna italiana e europeia (recolhidos mais tarde por Giovanni
Gentile com os títulos de Escritos filosóficos, 1901; Princípios de
Ética, 1904; De Sócrates a Hegel,
1905). Os seus escritos mais completos e significativos são: Prólogo
e introdução às lições de filoso-
85

fia na Universidade de Nápoles (1862), publicados de novo por


Gentile em 1908 com o título de A filosofia italiana e as suas
relações com a filosofia europeia, e os Princípios de filosofia (1867)
publicados também de novo por Gentile com acrescentamento de
partes inéditas e com o título de Lógica e Metafísica (1911).
Spaventa é também autor de uma monografia intitulada A filosofia
de Gioberti, de que apenas saiu o primeiro volume em 1963, e de um
estudo com o título Experiência e metafísica publicada
postumamente por Jaia em 1888.

A importância de Spaventa consiste sobretudo na

sua tentativa de subtrair a cultura filosófica italiana ao


provinciamismo em que a queria confinar o espiritualismo
tradicionalista dominante em meados do século XIX, vinculando-a
de novo à cultura europeia. O espiritualismo tradicionalista (§ 627)
insistia numa tradição filosófica italiana que iria dos pitagóricos a
Vico e a Gioberti, à qual deviam manter-se fiéis todas as
manifestações filosóficas italianas. Spaventa faz seu o conceito da
nacionalidade da filosofia italiana, mas vê a marca de tal
nacionalidade na universalidade, pela qual nela deveriam reunir-se
todos os opostos e encontrar uma unidade harmónica todas as
tendências do pensamento europeu. Spaventa explica as diferenças
e

as afinidades entre as filosofias europeias mediante uma pretensa


unidade da estirpe ariana, indo-germânica, ou indo-europeia, que se
teria dividido em seguida, progredindo umas vezes mais outras
vezes

menos, e mais na Alemanha do que nos países latinos (A fil. ital.,


1909, p. 49). A filosofia italiana

86

devia, pois, voltar a pôr-se ao nível da alemã. Com efeito, no


Renascimento, a Itália foi a iniciadora da filosofia moderna. Bruno
equivale, sem mais, a Espinosa, só com a diferença de que nele
existe uma certa perplexidade quanto ao conceito de Deus,
entendido umas vezes como sobrenatural outras como a natureza
mesma (Ib., p. 105). Vico, substituindo a metafísica da mente pelo
ser, desempenha na

Itália a função que na Alemanha desempenhou Kant. Gallupi é um


"kantiano, mau grado seu".

Rosmini, como Kant, descobre "a unidade do espírito", embora deixe


na obscuridade e incompreendido este conceito; e, finalmente,
Gioberti completa Rosmini, como Fichte, Schelling e Hegel
completam Kant, e descobre a verdadeira Ideia que não é o ser, mas
sim o Espírito. Será talvez supérfluo chamar a

atenção dos leitores da presente obra, para o carácter arbitrário


destas determinações históricas. Espinosa não pode ser
identificado com Bruno, porque supõe o racionalismo geometrizante
de Descartes e

Hobbes. Vico faz parte do movimento iluminista e é o Leibniz da


história; a sua metafísica da mente nada tem a ver com a
doutrina de Kant, a não ser pela comum exigência de delimitar e
marcar as efectivas possibilidades humanas. Gallupi, Rosmini e
Gioberti vinculam-se não à filosofia alemã, mas sim à francesa do
seu tempo, e fazem parte do retorno romântico à tradição. A sua
afinidade com o idealismo não assenta, pois, em categorias lógicas,

mas num princípio mais profundo e menos aparente, que é a comum


fé romântica na tradição. Quanto à pretensa "nacionalidade" da
filosofia italiana, tra-
87
de 1 uma fábula não menos pueril do que a "tradição itAlica" de que
falavam os giobertianos, com a agravante da não inócua mitologia da
estirpe ariana, indo-germânica ou indo-europeia.

Foi necessário determo-nos um instante nas valorizações históricas


de Spaventa, pois tiveram muito êxito entre os seguidores italianos
do hegelianismo, que a repetiram servilmente sem se darem conta
da sua inconsistência crítica. Exerceram, no entanto, nas mãos de
Spaventa, uma certa função útil: contribuíram para despertar a
filosofia italiana daquele tempo do letargo autocontemplativo e
narcisista em que caíra (e que amiúde a ameaçara) e a interessá-la
pela filosofia europeia, e especialmente alemã. Quanto à
especulação sistemática de Spaventa, carece de toda a
originalidade. Os seus Princípios de filosofia não fazem mais do que
reassumir e comentar prudentemente alguns pontos basilares da
Fenomenologia do espírito e toda a Lógica de Hegel. Num único
ponto, Spaventa se permite uma certa originalidade: na
interpretação da primeira tríade da lógica hegeliana, a de ser, não
ser e devir, Spaventa sublinha aqui a necessária presença do que ele
chama "mentalidade pura", isto é, do pensamento consciente, no
movimento destas categorias, de maneira que parece supor que de
um extremo ao outro da dialéctica o pensamento se move no âmbito
da autoconsciência racional, o que não parece ter sido negado pelo
próprio Hegel, que definiu a lógica como "a exposição de Deus, tal
como é na sua eterna essência, antes da criação da natureza e de
um espírito finito" (§ 572). E a afirmação de

88

Spaventa de que "as primeiras categorias exprimem, da maneira


mais simples e abstracta, a natureza, o organismo e diria mesmo o
ritmo da mente" (Scritti fil., II, p. 239) é também, de um ponto de
vista hegeliano, plenamente ortodoxa.

Ao hegelianismo aderiram na Itália, na segunda metade do século


XIX, inúmeros literatos, historiadores, juristas e médicos além de
filósofos, mas nenhum deles acrescentou fosse o que fosse ao
pensamento do filósofo alemão. Originalidade e força só as adquire
o idealismo com Gentile e Croce. Estes dois pensadores distinguem-
se radicalmente do idealismo inglês e norte-americano, como
também se distinguem entre si. Distinguem-se do idealismo inglês e
norte-americano, por crerem que a unidade entre finito e infinito é
demonstrável, não negativamente por causa do carácter aparente e
contraditório da experiência finita, mas positivamente e de um
modo real, reportando ao espírito infinito os traços fundamentais
da experiência finita. Assim, a doutrina dos dois idealistas italianos
renova a tentativa de Hegel, mas distingue-se de Hegel por ser uma

reforma da dialéctica, que exclui a consideração do pensamento


lógico e da natureza e se apoia exclusivamente no espírito. As duas
doutrinas distinguem-se, pois, entre si, porquanto uma, a de Gentile,
é um subjectivismo absoluto (actualismo), a outra, a de Croce, um
historicismo absoluto. O característico que as assemelha é a
negação de toda a transcendência e a redução de toda a realidade à
pura actividade espiritual.

89

§ 710. GENTILE: VIDA E OBRA

Giovanní Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, a 30 de Maio


de 1875. Professor primeiramente em Palermo e em Pisa, em
seguida em Roma, foi nomeado ministro da instrução pública com o

advento do governo fascista (1922-24). Não existem afinidades


particulares entre o idealismo de Gentile e o fascismo; de início, o
fascismo não possuía uma doutrina, a não ser que se queira chamar
tal a um genérico e intolerante nacionalismo. Todavia, Gentile
chegou a descobrir no novo regime a expressão mesma da
racionalidade ou da espiritualidade absoluta e converter-se no seu
maior expoente intelectual. Foi o autor de uma vasta e radical
reforma da escola italiana que, no entanto, o próprio fascismo havia
de desmantelar em parte ou modificar nos anos seguintes. Devido
aos numerosos cargos culturais e

políticos que desempenhou, assim como o de presidente da


"Enciclopédia Italiana", exerceu um vasto poder sobre a cultura
italiana e especialmente sobre o seu aspecto administrativo e
escolar. Caído o fascismo em Julho de 1943 e ocupada, em Outubro
do mesmo ano, a Itália central e sententrional pelas tropas alemãs,
Gentile deu a sua adesão pública ao

governo fantoche que aquelas haviam instaurado. Isto foi talvez


para ele um acto extremo de fidelidade romântica ao regime que o
honrara como o seu máximo representante cultural; a muitos
italianos pareceu, ao invés, uma traição. Foi morto no limiar da sua
habitação, em Florença, a 15 de Abril de
1944. A sua filosofia, no entanto, deve ser entendida

90

e julgada independentemente do fascismo, no qual não tem decerto


raízes nem buscou inspiração; e

a sua personalidade pode ser agora melhor recordada na


generosidade dos seus traços humanos do que nas suas atitudes
políticas.
Gentile expôs pela primeira vez o princípio da sua filosofia no ensaio
O acto do pensamento como acto puro (1912); e logo depois definiu
a sua atitude em relação a Hegel em A reforma da dialécttica
hegeliana (1913). A sua obra mais vigorosa é A teoria geral do
espírito como acto puro (1916); a mais vasta e complexa é o Sistema
de lógica como teoria do conhecer (2 vol., 1917-22). Em 1912
publicou o

Sistema de pedagogia como ciência filosófica; em

1916, Os fundamentos da filosofia do direito. Em A filosofia da


arte (1931) está latente uma polémica com a esté tica de Croce. O
último escrito, Génese e estrutura da sociedade foi publicado
postumamente (1946). Foi também notável a actividade
historiográfica de Gentile, em particular a respeitante ao

Renascimento italiano (Rosmini e Gioberti, 1898; A filosofia de


Marx, 1899; De Genovesi a Gallupi,
1903; O modernismo e as relações entre religião e

filosofia, 1909, Os problemas da escolástica e o pensamento


italiano, 1913-, Estudos sobre Vico, 1904; As origens da filosofia
contemporânea em Itália,
3 vol., 1917-23; O ocaso da cultura siciliana, 1918; Giordano Bruno e
o pensamento do Ressurgimento,
1925; Gino Capponi e a cultura toscana do século XIX, 1922;
Estudos sobre o Renascimento, 1923, Os profetas do
Ressurgimento italiano: Mazzini e

Gioberti, 1923).

91
§ 711. GENTILE: O ACTO PURO

O erro de Hegel consistiu, segundo Gentile, em ter tentado uma


dialéctica do pensado, ou seja, do conceito ou da realidade pensável
(como lógica e

como natureza), dado que só pode haver dialéctica, isto é,


desenvolvimento e devir, do pensante, ou

seja, do sujeito actual do pensamento. O sujeito actual do


pensamento, ou pensamento em acto, é a

única realidade. O sujeito é sempre, certamente, sujeito de um


objecto, enquanto pensa, pensa necessariamente algo, mas o
objecto do pensamento, seja a natureza ou Deus, o próprio eu ou o
dos outros, não tem realidade fora do acto pensante que o constitui
e o põe. Este acto é, pois, criador e, enquanto criador, infinito,
porque não tem nada fora de si que possa limitá-lo.

Este princípio que leva decididamente até às suas últimas


consequências a tese apresentada por Fichte na primeira Doutrina
da ciência, realiza a rigorosa e total imanência de toda a realidade
no sujeito pensante. Nem a natureza nem Deus, nem sequer o
passado e o futuro, o mal e o bem, o erro e a verdade, subsistem de
qualquer forma fora do acto do pensamento. Os desenvolvimentos
que Gentile deu à sua doutrina consistem essencialmente em
mostrar a imanência de todos os aspectos da realidade no
pensamento que os põe, e em reduzi-los a este. O pensamento em
acto é o Sujeito transcendental, o Eu universal ou infinito. O
sujeito empírico, o homem individual e particular, é um objecto do
Eu transcendental, um objecto que ele põe (isto é,

92
cria), pensando-o, e cuja individualidade-e, por consequência, supera
no próprio acto em que o põe.
O verdadeiro sujeito, o Sujeito infinito ou transcendental, não pode
nunca tomar-se objecto para si próprio. " A consciência-diz Gentile
(Teoria gen.,
1, § 6)-, enquanto objecto de consciência, já não é consciência;
enquanto objecto apercebido, a apercepção originária já não é
apercepção; já não é propriamente sujeito, mas objecto; já não é
Eu, mas sim não-eu... O ponto de vista transcendental é o que se
obtém na realidade do nosso pensamento, quando o pensamento se
considera não como acto consumado, mas, por assim dizer, como
acto em acto: acto que não se pode absolutamente transcender,
pois que ele é a nossa própria subjectividade, isto é, nós mesmos;
acto que não se pode nunca nem de modo algum objectivam. Os
outros eus são, por sua vez, objectos, enquanto outros, mas no acto
de os conhecer o eu transcendental unifica-os. Os problemas
morais surgem, em troca, no terreno da diversidade e da
oposição recíproca entre os eus

empíricos; mas não se resolvem nesse terreno. "Não se resolvem


senão quando o homem chega a sentir as necessidades dos outros
como necessidades próprias, e a própria vida, por conseguinte, não
encerrada no apertado círculo da sua personalidade empírica, mas
-entendida sempre em expansão, na actividade de um espírito
superior a todos os outros interesses particulares, e ao mesmo
tempo imanente no centro mesmo da sua personalidade mais
profunda" Qb., 2, § 5).

93
O pressuposto de tudo isto é o postulado segundo o qual "conhecer
é identificar, superar a alteridade como tal" Qb., 2, § 4). Em
virtude deste pressuposto, Gentile pode afirmar que ws outros fora
de nós, não podem existir, falando com rigor, se nós os
conhecermos e falarmos deles"; e' que o outro (isto é, a outra
pessoa) é, simplesmente, uma etapa através da qual se passa, mas na
qual não nos devemos deter. "0 outro não é tanto outro que não seja
nós mesmos" (ib., 4, § 5). Não se vê como se pode conciliar com
afirmações tão explícitas aqueloutra, feita com o propósito de
distinguir o idealismo do misticismo, de que "a realidade do eu
transcendental implica também a realidade do eu empírico" e que o
eu absoluto unifica mas não destrói em si o eu particular e empírico
Ub, 2, § 6). E, de facto, os eus empíricos poderão distinguir-se
entre si como objectos diversos do Eu transcendental, do
pensamento em acto, mas não já subsistir como eu, isto é, como
sujeitos na unidade simples e infinita daquele Eu. Isto é tão
verdadeiro que o próprio acto da educação é conhecido por Gentile
como a unidade do mestre e do aluno no espírito absoluto, unidade
que chega a eliminar o problema da comunicação espiritual (Sumário
de pedagogia, 1, 2.o 4, § 3). O próprio pressuposto do conhecimento
como unificação e identificação entra em jogo na polémica contra
tudo o que está "fora" do espírito e da consciência. A consciência é
infinita e nada existe fora dela. O "fora" está sempre dentro
porque designa uma relação entre dois termos que, exteriores um
ao outro, são no en-
94

tanto interiores à consciência mesma. Pelo mesmo motivo não pode


haver verdadeira dialéctica do ser

(no sentido platónico-aristotélico) ou da natureza.


O devir só é próprio do sujeito pensante; e as dificuldades em que
se envolve a lógica de Hegel para o deduzir da unidade de ser e não
ser, são eliminadas se pelo ser se entende precisamente o ser do

pensamento que o define e, em geral, pensa.

O sujeito pensante realiza a coincidência entre a particularidade e


a universalidade e é, por conseguinte, o verdadeiro indivíduo. Com
efeito, o pensamento é ao mesmo tempo a máxima universalidade
possível e, portanto, a máxima afirmação do eu que pensa. Gentile
identifica a individualidade

com a positividade; e a positividade pertence propriamente ao


pensamento, que é auto-posição e auto-criação (autoctisis) e por
isso se identifica com a

universalidade do próprio pensamento (Teoria gen.,


8, § 8). O universal do pensamento não é um dado

ou um objecto que o pensamento deva reconhecer ou respeitar, mas


sim o fazer-se universal, o universalizar-se, como o indivíduo é o
individualizar-se: os dois actos coincidem, portanto, no acto único e
simples do eu que pensa. "Eu penso e pensando realizo o indivíduo
que é universal, e é, por isso, tudo o que deve ser absoluta-mente:
além dele, fora dele, não se pode procurar outro" (Ib., 8, § 16).

Deste ponto de vista, é evidente que a natureza, como uma


realidade pressuposta ao pensamento, é uma ficção; e como
multiplicidade empírica de objectos espaciais e temporais, se
resolve na actividade espacializadora e temporalizadora do eu que a
pensa

95

e, pensando-a, a unifica e a resolve em si mesmo. Isto exclui toda a


acção condicionante da natureza sobre o espírito. Só o pensamento
em acto, é absolutamente incondicionado porque é a condição de
toda e qualquer outra realidade. O carácter condicionado da
realidade não exprime outra coisa senão a sua dependência do
pensamento pensante. "0 ser

(Deus, natureza, ideia, facto contingente) é necessário, sem


liberdade porque já está posto pelo pensamento: é o resultado do
processo, resultado que é, precisamente porque o processo
terminou, isto é, se concebe terminado, fixando-o e abstraindo-o
um momento como resultado" (1b., 12, § 19). O pensamento
pensante é sempre livre, mas uma liberdade que se identifica com a
sua intrínseca necessidade racional e é, portanto, hegelianamente
entendida como coincidência de liberdade e necessidade.

§ 712. GENTILE: A DIALÉCTICA DO CONCRETO E DO


ABSTRACTO

A elucidação desta necessidade intrínseca do acto pensante é o


objectivo fundamental da Lógica de Gentile. O acto do pensamento
é, como tal, sempre verdade, positividade, valor, bem, liberdade;
mas

enquanto se objectiva e deve necessariamente objectivar-se, é erro


necessidade, negatividade, mal. O problema da lógica gentiliana
consiste em mostrar a imanência destes aspectos negativos na
unidade e na simplicidade do acto espiritual infinito. Gentile

96

GENTILE

examina, pois, o que ele chama o logos abstracto, ou seja, a


consideração abstracta pela qual o objecto em

geral, que é a raiz de toda a negatividade ou desvalor e portanto,


também do erro ou do mal, é considerado uma realidade por si,
independente do espírito que a pensa. Parte do princípio de que o
logos abstracto é necessário ao logos concreto. "Para que se
actualize a concreção do pensamento, que é negação da imediatez
de toda a posição abstracta, é necessário que a abstracção seja não
so negada mas também afirmada; do mesmo modo que para manter
aceso o fogo que destrói o combustível é necessário que haja
sempre combustível e que este não seja subtraído às chamas
devoradoras, mas seja efectivamente queimado" (Sist. di log., 1, J.a
, 7 ; § 9).
O lugar abstracto é considerado na expressão que assumiu na lógica
tradicional, cujas formas são por isso submetidas à análise crítica.
Conceito, juízo e

silogismo são as formas do pensável, isto é, do objecto pensado


enquanto tal: exprimem, portanto, a objectividade, o ser, a
natureza e não são susceptíveis de movimento, de progresso, de
dialéctica, tudo coisas que pertencem à actividade espiritual que só
podem, portanto, entender-se e justificar-se na subjectividade do
sujeito pensante. O logos abstracto, objecto da lógica grega e
medieval é, pois, enquanto abstracto, um erro; mas é um erro
necessário, porque é devido à necessária objectivação do sujeito
pensante e é continuamente resolvido e superado na actividade
deste sujeito: "A lógica do abstracto nasceu historicamente e
nasce eternamente, se assim nos podemos exprimir, naquele estado
de espírito

97

em que este não adquiriu consciência de si e não


vê por isso a abstracção do abstracto e o confunde com o concreto.
Estado naturalista, em que o real é pressuposto pelo espírito.
Estado a que o espírito está destinado a subtrair-se e a que se
subtrai até ao infinito, porquanto já no próprio acto em que julga
realizá-la, a supera, afirmando não propriamente a

natureza, como ele crê, mas o próprio conhecimento da natureza,


não o concreto, mas o seu conceito do conceito" (Sist, li log., 11,
3a4, § 3).

Com este ponto se relaciona a teoria do erro, que é um dos aspectos


mais característicos da atitude filosófica de Gentile. O pensamento
em acto é sempre, como tal, verdade, realidade, bem, prazer,
positividade. O erro, o mal, a dor, etc., subsistem nele apenas como
os seus momentos superados, como posições já ultrapassadas e
desvalorizadas. "Toma-se qualquer erro e demonstra-se bem que é
tal; e

ver-se-á que não há ninguém que o queira perfilhar ou sustentar. O


erro é, pois, erro enquanto superado: por outras palavras, enquanto
se apresenta ao

nosso conceito, como o seu não-ser. É, portanto, como a dor, não


uma realidade que se opõe à realidade do espírito (conceptus sui),
mas a própria realidade enquanto alcança a sua realização: num

seu momento ideal" (Teoria gen., 16, § 8). O erro é sempre


imanente à verdade como o não-ser é imanente ao ser que devém. O
conhecimento do erro, é, com efeito, verdade: o conhecimento como
tal é sempre verdadeiro (Sist. di log., I, 1.a 5 §§ 9-10).
Naturalmente, esta teoria do erro não explica o
erro que não seja conhecido ou reconhecido como

98

tal; não explica, por exemplo, as doutrinas ou as opiniões filosóficas


diversas das do filósofo idealista. Mas Gentile declara que o
filósofo idealista não tem a obrigação de explicar este género de
erros.

"0 idealista da imanência absoluta -afirma (1b.,


11, 3.a, 1, § 122)-não deve explicar pela dialéctica do acto espiritual
qualquer verdade e qualquer erro, mas a verdade e o erro do meu
pensamento, que só para ele é verdadeiramente tal: a verdade
minha no acto que penso, e o meu erro no mesmo acto. Pedir-lhe que
com a mesma explicação explique o

que, vulgarmente e segundo outros sistemas filosóficos por ele


criticados, é também pensamento, e implica um correspondente
modo de conceber verdade e

erro, é decerto uma pretensão absurda. O erro actualmente


superado pelo seu contrário (que é o único erro do qual o nosso
idealismo pode falar) não é certamente o erro, por exemplo, de
quem está contra nós, e

resiste aos nossos argumentos e persiste na sua afirmação para nós


evidentemente falsa; nem o erro cometido, para dar um outro
exemplo, por Platão na

sua teoria da transcendência das ideias". Na universalidade do


espírito a oposição entre o filósofo idealista e o seu antagonista é
anulada de golpe, já que o
próprio antagonista é interior ao filósofo e só é real nele; e mesmo
quando ressurge até ao infinito na sua distinção, esta distinção
volta sempre a ser anulada.
O traço característico desta teoria é a identificação entre o
filósofo idealista e o espírito universal: basta que a anulação "de
golpe" dos erros adversários se realize na interioridade do filósofo
idealista para que se considere essa anulação realizada até ao
infinito

99

na unida-de e na eternidade do sujeito pensante. É apenas


necessário fazer notar que na base desta teoria está o pressuposto
que sustenta toda a teoria de Gentile: conhecer é identificar e,
portanto, conhecer os outros na sua alteridade e nos seus erros
significa resolver a alteridade e o erro na unidade e na verdade do
sujeito pensante.

Como quer que seja, tal pressuposto domina todo o desenvolvimento


do pensamento de Gentile. O ignoto, por exemplo, enquanto é
conhecido como

tal, já não é o ignoto; "é enquanto não é". E assim a morte, a qual
"não existe". "A morte é temível porque não existe, como não existe
a natureza nem o passado, como não existem os sonhos. Há o homem
que sonha, mas não as coisas sonhadas. E assim a morte é negação
do pensamento mas não pode ser actual o que se realiza pela
negação que o

pensamento faz de si mesmo. Com efeito, só se pode conceber o


pensamento como imortal, porque é infinito" (Sist. di log. II, 4.a 2 §
3). E assim a ignorância só existe no acto em que é reconhecida
como
tal e, por isso mesmo, superada como ignorância; e não existem
problemas senão enquanto resolvidos, embora toda a solução se
transforme num novo problema que é, no entanto, imediatamente
uma nova solução (1b., 11, 4 a, 5, §§ 4-5). Por consequência, a
filosofia é perene, porque é sempre esta filosofia, ou seja, filosofia
do acto pensante; idealismo. E dado que não existe uma filosofia
estritamente objectiva "a verdade da filosofia ou a filosofia
verdadeira a que o filósofo tende, não pode ser outra senão uma
elaboração da sua própria

100

filosofia, cujo desenvolvimento é também o desenvolvimento da


verdade filosófica" (Ib, 5, § 5). O método da filosofia não pode ser,
portanto, senão o

da imanência de toda a realidade ou verdade no pensamento


pensante e, por conseguinte, a filosofia identifica-se com a lógica
(Ib., epílogo, 2, § 2).

É fácil dar-se conta da apreciação que se pode fazer da ciência


deste ponto de vista. A ciência é sempre particular porque tem a
seu lado outras ciências e carece, portanto, da universalidade que é
própria da filosofia. Pressupõe primeiramente, e

diante de si, o seu objecto; é, portanto, dogmática e tende


necessariamente para o naturalismo e o materialismo. Dela não há
história porque só há história do acto pensante, ou seja, da
filosofia que a

inclui em si (Teor. gen., 22, §§ 1-7). É este o único elemento que, de


algum modo, a salva, porque o
cientista, sendo como homem também filósofo, reincorpora a
abstracção da ciência na concreção do seu

acto pensante (Sist. di log., 11, epílogo, 3 § 6).

A conclusão inevitável da dialéctica do abstracto e o concreto,


conclusão, aliás que Gentile explicitamente aceita e mantém até às
suas últimas consequências, é a de que o homem, como sujeito
pensante e na pontualidade do seu acto pensante, está sempre na
verdade e no bem, no infinito e no eterno, mais ainda, é, ele mesmo,
todas estas coisas. Isto implica também que a história do homem
(que tem história só como acto pensante) é um permanecer imóvel
na eternidade; e a isto se reduz a doutrina da história de Gentile.
De facto, começa por negar a distinção entre história (res gestae)
e historiografia

101

Ir-,

(histori" rerum gestarum) e por reduzir a história à historiografia,


ou seja, à contemporaneidade do acto pensante, de um "presente
absoluto que não desaparece e não se precipita no seu oposto" e que
é "0 eterno, tal como reluz no acto do espírito que o busca, no acto
do pensamento que pensa" (Sist. di log., 11, 4a, 6 § 2). A pretensa
objectividade da verdade histórica não é outra senão a mediação ou
sistematização do pensamento que, mediando-se ou demonstrando-
se, se põe como verdade imutável e é já, em rigor, tal pela imanente
mediação pela qual o eu se põe como não-eu (1b., § 8). A busca da
individualidade nos acontecimentos históricos não pode ser senão a
busca daquele verdadeiro eu que e o Eu universal e pensante. "0
Sócrates histórico, com a sua positiva individualidade, então sim,
torna-se apreensível; mas enquanto o construímos como
personalidade que revive na nossa e actualmente é a nossa (ib., § 4).
Uma vez mais parte do postulado do conhecer como identificação
do sujeito consigo mesmo.

§ 713. GENTILE: A ARTE

Na Teoria Geral e no Sumário de pedagogia Gentile pusera o


carácter peculiar da arte na sua subjectividade, pela qual o mundo
do artista se distingue do da vida prática e da religião e representa
uma libertação em relação a ele. O preciso significadO da
subjectividade da arte é examinado na Filosofia da arte (1931). O
pressuposto capital da oVa é, contudo, o que determina a
especulação

102

gentiliana: conhecer algo significa para o sujeito assimilá-lo a si e


identificá-lo consigo. "A obra que se conhece-diz Gentile (Fil.
dellarte, p. 100)-, não é a que está ali, no tempo, dividida por nós,
mas

a que, ao invés, vamos procurar longe de nós (e precisamente pela


actual experiência por nós vivida), mas que, uma vez encontrada, se
nos manifesta e faz valer como próxima, ou melhor, como nossa e
constitutiva da nossa actual experiência". Posto isto, o significado
da arte, de toda a obra de arte, não poderá consistir senão no
próprio objecto pensante; e, precisamente, na "forma do eu como
puro sujeito" (1b., p. 131). Mas como puro sujeito o eu nunca é
actual, porque a sua actualidade, o acto do seu pensar está no seu
objectivar-se; mas
neste objectivar-se a arte, como pura subjectividade, já foi
transcendida. "A arte pura é inactual e, por isso, não pode ser
apreendida na sua pureza. Isto não significa, porém, que ela não
existe, mas somente que não se pode separar, tal como é e por
aquilo que é propriamente, do resto do acto espiritual, em que
existe, e em que, ademais, demonstra toda a sua energia
existencial" (1b., p. 135). Por conseguinte, a arte não é, como se
costuma dizer, um produto de fantasia; não existe uma fantasia
como faculdade, ou função especial da actividade espiritual,
distinta do pensamento. A actividade espiritual é sempre
pensamento, ainda quando, na interioridade do pensamento, se
possam distinguir vários momentos. A arte é o momento da
subjectividade pura ou inactual que se torna actual no pensamento,
se converte em expressão. A expressão

103

estética é, pois, pensamento, e a arte não é a expressão de um


sentimento, mas é o próprio sentimento como pura, íntima e inefável
subjectividade do sujeito pensante (Ib., p. 197).

O sentimento conserva em Gentile todos os seus característicos


românticos: é indefinível, inexprimível e ineliminável: é o infinito
espiritual, isto é, livre de determinações conceptuais necessárias e,
por isso, é constitutivo da subjectividade pura do sujeito (Fil.
dell'arte, p. 176 segs.). Precisamente como tal, a infinidade do
sentimento é a infinidade do homem, na sua universalidade e,
portanto, está acima e

para além da diversidade empírica dos homens individuais (ib., p.


205). Sentimento é o corpo não na sua presumida imediatez física,
mas na sua actualidade consciente-, sentimento é também a
linguagem, que é decerto pensamento na multiplicidade do seu

desenvolvimento, mas continua sendo sentimento na unidade


subjectiva deste desenvolvimento (1b., p.
226-30).

Por outro lado, a técnica artística é, em troca, pensamento; mas é


um pensamento "que retorna ao sentimento e com ele se encontra e
é por isso dirigido e animado por ele" (Ib., p. 237). A pretensa
exteriorização da obra de arte não é, na realidade, senão a sua
interna realização por obra do sujeito. No sujeito encontra também
a sua beleza a natureza, "não já dividida nas suas partes, mas
reunida naquela unidade e infinidade que é própria do sujeito e do
mesmo sujeito" (1b., p. 262). Se como pura objectividade e,
portanto, como puro sentimento, a

arte não é moral, encontra a sua moralidade, ao

104

mesmo tempo que a sua actualidade, no pensamento, isto é, na


filosofia. Possui, portanto, uma eticidade imanente pela qual pode
valer como educadora do género humano. Nas suas produções
históricas (embora não esteticamente válidas, porque só o são no
pensamento e para o pensamento) a arte tem também, segundo
Gentile, um carácter nacional (Ib., p. 237). Quanto à relação entre
arte e religião, trata-se de uma correlação necessária que implica a
sua recíproca oposição e exclusão dialéctica. Com efeito, a arte é o
momento da pura subjectividade espiritual, a religião é o momento
da pura objectividade, do objecto que é absolutamente negador do
sujeito (Deus), do infinito como objecto.
§ 714. GENTILE: A RELIGIÃO

Este conceito da religião foi formulado por Gentile na Teoria geral


do espírito e no Sumário de pedagogia e confirmado nos Discursos
de religião (1920). A religião é "a exaltação do objecto, subtraído
aos vínculos do espírito, em que consiste a

idealidade, a cognoscibilidade e racionalidade do objecto mesmo"


(Teoria, 14, § 7). Como negação do sujeito no objecto, a
religiosidade determina a

negação da liberdade espiritual. "Substitui o conceito da criação


como autoctisis pelo da criação como heteroctisis; e o conceito do
conhecer como posição que o sujeito faz do objecto, pelo da
revelação que o objecto faz de si mesmo, o conceito da boa
vontade, que é a criação que a vontade faz do bem (isto é, de si
mesma como bem)

105

pelo da graça que o bem (Deus) faz de si ao sujeito" (Somm. di ped.,


1, 3 a, 4, § 4). A essência da religião é, portanto, o misticismo que
é a anulação do sujeito no objecto e pela qual o ser de Deus é o não
ser do sujeito (Disc. di rel., p. 78). A consequência da religiosidade
é o agnosticismo, que é o carácter negativo de todas as teologias
místicas ou estritamente religiosas Qb., p. 81). A religiosidade
pertence, pois, propriamente ao lugar abstracto, isto è, à posição
abstracta e errónea de um objecto, que se supõe anterior ao
sujeito e considerado independente dele. Somente a filosofia a
restitui à sua concreção, mostrando no próprio objecto da religião
uma posição ou criação do sujeito. E, neste sentido, a filosofia
imanentista é a "verificação do cristianismo" , que foi o primeiro a
afirmar o princípio da interioridade espiritual. Por sua vez, o acto
espiritual, a única realidade positiva e concreta já não pode ser
divinizada e tornar-se objecto de adoração ou de culto. "0 acto é a
filosofia: e a filosofia da filosofia não é mais do que filosofia.
Assim, o acto, na sua imanente realidade, não se objectiva e não se
põe diante de si mesmo" (Ib., p. 88). De maneira

que a religião só é imortal na filosofia; e se o homem tem


necessidade de Deus, tem também necessidade de reflectir sobre
ele e de o reduzir ao acto do seu pensamento. "E este Deus, como
pode ser vontade que cumpre reconhecer, a que se tem de rezar e.
invocar, e a que é necessário submetermo-nos, se Deus está dentro
do homem, do seu eu, e é propriamente o seu eu ao realizar-se?"
(Sist. di log., 11, 4.a 8, § 4).

Nalguns artigos e ensaios dos últimos anos da

106

sua vida, Gentile insistiu na religiosidade da sua

filosofia (Sobre uma nova demonstração da existência de Deus,


1932; A minha religião 1943). Falou também de uma religião sua e
até mesmo de um catolicismo seu. Mas, evidentemente, o adjectivo
destrói aqui o substantivo. Para chegar a reconhecer a validade da
religião, Gentile deveria ter abandonado, como fez Fichte, o
princípio da identidade do finito e do infinito e chegar a admitir que
o

infinito está para além do finito, isto é, do homem que filosofa, do


sujeito pensante, o qual em comparação com ele não é mais do que a
imagem ou a
repetição temporal do seu eterno processo. Mas nada estaria mais
longe da intenção de Gentile, o

qual, nestes artigos, não fez senão reafirmar a sua

fé na infinidade do sujeito pensante e na impossibilidade da


transcendência.

§ 715. GENTILE: O DIREITO E O ESTADO

Uma sociedade de homens, isto é, de seres finitos ligados entre si e


ao mundo que os alberga por necessidades e exigências de diversa
natureza é, do ponto de vista de Gentile, um verdadeiro absurdo.
Por isso, nos Fundamentos da filosofia do direito (1916), assim como
no seu último escrito Génese e estrutura da sociedade (1946), e
noutros escritos menores circunstanciais e políticos, Gentile não
faz outra coisa senão reduzir à interioridade do acto espiritual a
sociedade e o estado, a moral, o direito

e a política e, em geral, toda a gama das relações

107

entre os homens. Sociedade e estado, e, por conseguinte, direito e


política não estão, segundo ele, inter homines, mas in interiore
homine. Na primeira obra, procurou esclarecer a natureza do
direito recorrendo à dialéctica de o que quer e o querido, que é
perfeitamente idêntica à de pensante e pensado, já que nenhuma
distinção é possível entre pensamento e

vontade: o pensamento como actividade criadora e

infinita é vontade criadora e infinita. Em relação à moralidade, que


é vontade do bem, isto é, criação do bem no acto de o querer, o
direito é o querido, ou seja, não já vontade em acto mas vontade
passada ou conteúdo do querer; portanto, também, "não já
liberdade que é força, mas força sem liberdade, não já objecto que
é sujeito, mas objecto oposto ao

sujeito" (Fond., p. 58-59). A vontade que quer é já para si mesma o


seu próprio mandato ou a sua

própria lei; quando encontra diante de si uma ordem ou uma lei,


trata-se de um momento seu objectivado, e fixado abstractamente
nessa sua objectividade. "0 poder soberano, o querer tom-no já em
si; e fora dele, onde empiricamente se vê armado de espada, não
pode vê-lo senão através do que já tem no seu

íntimo, onde está a raiz e a verdadeira substância da sociedade e


do estado" (Ib., p. 61). Por conseguinte, a coactividade do estado ou
das normas jurídicas é, ela também, interior e espiritual; e direito e
moral, em última análise, identificam-se, como se identificam o
estado e o indivíduo, na actualidade do querer volitivo ou do sujeito
pensante (1b., p. 69).

Esta é já uma justificação do estado absolutista e totalitário; e a


justificação é explícita no último

108

escrito de Gentile. Aqui rejeita-se a distinção entre o privado e o


público e com ela a possibilidade de pôr limites à acção do estado.
E, com efeito, a distinção não pode manter-se se se admite como
único indivíduo o Eu universal e infinito: na realidade, tal distinção
pressupõe a singularidade e a irredutibilidade do indivíduo e, ao
mesmo tempo, a sua
constitutiva relatividade social. Gentile, aceitando o carácter
totalitário e autoritário do estado, declara, com um movimento
característico do seu pensamento, que se pode dizer também o
oposto, q saber "que neste estado, que é própria vontade do
indivíduo enquanto universal e absoluto, o indivíduo absorve o
estado, e que a autoridade (a legítima autoridade), não podendo ser
expressa, aliás, senão pela actualidade do querer individual se reduz
integralmente à liberdade". Deste modo, a verdadeira democracia
seria, não a que quer limitar o estado, mas a "que não põe limites ao
estado que se desenvolve na intimidade do indivíduo e lhe confere a
força e o direito na sua absoluta universalidade" (Génese, etc., p.
121). Também aqui, como na teoria do erro, Gentile identifica o
indivíduo universal e absoluto com o filósofo idealista que teoriza,
sobre este indivíduo. De modo que o miolo da sua demonstração é
que o estado autoritário, identificando-se com o filósofo idealista,
realiza a liberdade deste filósofo; por isso, não é autoritário. É
evidente que, neste círculo, o pensamento de Gentile se

mostra constitucionalmente incapaz de um colóquio com outros


homens e até mesmo de polemizar com eles.

109

Neste ponto crucial, deparamos mais uma vez

com o pressuposto que sustenta toda a dialéctica de Gentile:


conhecer é identificar, eliminar a alteridade, assimilar ao sujeito
pensante tudo o que não é o

sujeito pensante. A este pressuposto, que é a herança mais pesada


do pensamento romântico, contrapõe-se a filosofia contemporânea
na sua parte militante: o realismo, a fenomenologia, o positivismo
lógico, o existencialismo, o instrumentalismo. A filosofia de Gentile
inscreve-se inteiramente no círculo cerrado do romantismo e é a
mais audaz, rigorosa e extrema expressão do mesmo.

É necessário somente notar que a actividade

historiográfica de Gentile, dominada como é pelo pressuposto


citado e pelo conceito de que a história

não é mais do que a eternidade no acto pensante, não tem valor


-senão como aspecto da sua especulação sistemática. Nos seus
numerosos trabalhos históricos, Gentile procurou sempre rastrear
no passado apenas os elementos assimiláveis à filosofia -do
actualismo. A sua historiografia filosófica reduz-se, pois, a isolar
certos elementos de pensamento dos complexos individuais e
históricos -de que fizeram parte e a assimilá-los aos conceitos
próprios do actualismo. Esta forma de historiografia filosófica foi
com frequência seguida por numerosos discípulos que Gentile teve
na Itália nos anos que vão da primeira à segunda guerra mundial com
resultados quase nulos ou decepcionantes, seja do ponto de vista
historiográfico, seja do teorético.

110

§ 716. CROCE: VIDA E OBRA

Bene-detto Croce, nasci-do em Pescasseroli, nos Abruzos, a 25 de


Fevereiro de 1866, e falecido em Nápoles a 20 de Novembro de
1952, permaneceu sempre arredado do ensino universitário.
Salvaguardado das necessidades materiais por uma grande fortuna
pessoal, desenvolveu como escritor independente uma ininterrupta
e intensa actividade nos mais variados campos da filosofia, da
história, da literatura e da erudição. Ligado por estreita amizade a
Govarmi Gentile (que foi durante muitos anos, e

até ao início de 1903, colaborador da sua revista "La Critica"),


Croce rompeu com ele quando se

declarou hostil ao governo fascista (já instaurado havia alguns anos)


de que Gentile se tornara o expoente filosófico oficial. A esta
ruptura, seguiu-se, por ambas as partes, uma polémica miúda, azeda
e

pouco edificante, que durou muitos anos. O regime fascista,


certamente para se salvar de um alibi face aos meios culturais
internacionais, permitiu tacitamente a Croce uma certa liberdade
de crítica política, de que ele usou efectivamente nos livros e nas
notas que ia publicando na "Critica" para fazer a

defesa dos ideais da liberdade, tanto mais eficaz quanto era alheia
a toda a retórica e impregnada de cultura e de pensamento. Nos
anos do fascismo e

da segunda guerra mundial a figura de Croce assumiu por isso, aos


olhos dos italianos, o valor de um

símbolo pela sua aspiração à liberdade e a um

mundo em que o espírito prevaleça sobre a violência. E assim se


mantém ainda hoje, embora se verifique

111

o eclipso das ideias filosóficas de Croce até nos domínios em que


exerceram a maior influência, ou seja, na estética e na teoria da
história.
Croce chega a formular o seu sistema filosófico partindo da
consideração de problemas literários e

históricos. A primeira forma da sua estética (Tese fundamental de


uma estética como ciência da expressão e linguística geral, 1900)
foi-lhe sugerida pela necessidade de uma orientação precisa na
crítica literária; e nasceu como tentativa de dar uma
sistematização filosófica rigorosa aos princípios críticos que
presidiram à obra de Francesco De Sanctis (1818-83) que ele
considerava como o seu verdadeiro mestre. A estética foi, pois,
incessantemente reelaborada por Croce; e da Estética como ciência
da expressão e linguística geral (1902) ao Breviário de estética
(1912) e ao volume A poesia (1936), bem COMO em numerosos
ensaios e escritos menores, Croce foi dilucidando as suas teses
fundamentais que permaneceram no entanto as mesmas quanto ao
essencial (Problemas de estética, 1910-, Novos ensaios de estética,
1920; últimos ensaios, 1935). Em torno do núcleo da estética,
condensou-se pouco a pouco o resto do sistema crociano: Lógica
como ciência do conceito puro (1909)-, Filosofia da prática,
económica e ética (1909); Teoria e história da historiografia (1917).
Juntamente com a doutrina estética, a que sofreu maior
reelaboração foi a doutrina da história (A história como
pensamento e como acção,
1938; O carácter da filosofia moderna, 1941; Filosofia e
historiografia, 1949; Historiografia e idealidade moral, 1950). São
fundamentais as monografias

112

dedica-das por Croce a Vico e a Hegel (A filosofia de Vico, 1911;


Ensaio sobre Hegel, 1912) e os estudos reunidos na sua obra
Materialismo histórico e economia marxista (1900). Os Escritos de
história literária e política, constituem, pois, um esclarecimento e
uma reforinulação dos princípios filosóficos de Croce perante um
grande número de problemas críticos.

§ 717. CROCE: A FILOSOFIA DO ESPIRITO

A filosofia de Croce qualificou-se ou autoqualificou-se como


"historicismo absoluto". Pouco importa que se rejeite ou admita
esta qualificação; o

que importa, em todo o caso, é -dar-se conta de que nela o


adjectivo modifica radicalmente o substantivo e que, portanto, o
historicismo crociano é radicalmente diverso -do resto do
historicismo contemporâneo. Este (como veremos, § 735), centra-
se em

torno do problema crítico da historiografia, isto é, do problema


relativo à possibilidade e ao fundamento (no sentido kantiano) -do
saber histórico. Este problema não existe para Croce, que entende
por historicismo "a afirmação de que a vida e a realidade é história
e nada mais do que história" (A história,
1938, p. 51). É evidente que, deste ponto de vista, o problema
crítico da historiografia é eliminado e

substituído pelo principio hegeliano da identidade entre


racionalidade e realidade, entre ser e dever ser. Croce, de facto,
contrapõe o historicismo ao ilumi-
113

nismo que, como "racionalismo abstracto", considera "a realidade


dividida em supra-história e história, num mundo de ideias ou de
valores e num mundo que os reflecte ou os reflectiu até agora, de
um modo fugaz e imperfeito, e ao qual convirá impô-los de uma vez,
fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura -e
simplesmente, uma realidade racional perfeita". O historicismo
crociano não é, pois, senão o racionalismo absoluto hegeliano. E, de
facto, Croce vê (a justo título) e louva em Hegel, sobretudo, "o ódio
contra o abstracto e o imóvel, contra o dever ser que não é, contra
o ideal que não é real" (Ensaio sobre Hegel, 1927, p. 171). "Com
Hegel-diz ainda Croce (0 carácter da filosofia moderna, p. 41)
-Deus -descera definitivamente do céu à terra, e já não havia que
buscá-lo fora do mundo, onde apenas se encontraria uma pobre
abstracção, forjada pelo espírito do homem em determinados
momentos e para certos fins. Com Hegel adquirira-se a consciência
de que o homem é a sua história, a história a única realidade, a
história que se faz como liberdade e se pensa como necessidade, e
já não é a sucessão caprichosa dos eventos contra a coerência da
razão, mas actuação da razão, a qual deve ser qualificada de
irracional só quando se despreza e se desconhece a si mesma na
história. A este historicismo absoluto, reduziu também a doutrina
de Vico, pondo de parte na filosofia de Vico todos os elementos
contraditórios ou, que de qualquer forma, não eram compatíveis com
tal ponto de vista.

Contudo, Croce reprovou a Hegel o ter admitido a possibilidade da


natureza como "algo diferente

114

do espírito", o ser tornado pesado e escolástico o seu sistema com o


uso e o abuso da forma triádica e, sobretudo, a confusão do nexo
dos distintos com a dialéctica dos opostos. Isto é, Hegel confundiu
a distinção e a unidade que existe entre as formas e os

diversos graus do espírito com a oposição dialéctica que se


encontra no âmbito de cada grau (belo e feio na arte, verdadeiro e
falso na filosofia, útil e inútil na economia, bem e mal na ética). os
opostos condicionam-se mutuamente (não existe belo sem feio,
etc.), mas os distintos, isto é, os graus do espírito, condicionam-se
só na ordem da sua sucessão. Croce admite quatro destes graus que
se reagrupam nas

duas formas fundamentais do espírito: a teorética

e a prática. Arte e filosofia constituem a forma teorética;


economia e ética a forma prática. A arte é conhecimento intuitivo
ou -do particular; a filosofia conhecimento lógico ou do universal; o
momento económico é a volição do particular; o momento ético é a
volição do universal. Cada momento condiciona o momento
subsequente, mas não é, por sua vez, condicionado por ele: a
filosofia é condicionada pela arte, que lhe fornece com a linguagem
o

seu meio de expressão, a actividade prática é condicionada pelo


conhecimento que a ilumina; e na forma prática, o momento
económico, isto é, a força e a

eficácia da acção, condiciona o momento ético que dirige a vontade


eficaz e praticamente activa para fins universais. A vida do espírito
desenvolve-se circularmente no sentido de que torna a percorrer
incessantemente os seus momentos ou formas fundamentais; mas
torna-os a percorrer enriquecida de

115

cada vez pelo conteúdo das precedentes circulações e sem se


repetir nunca. Nada existe fora do espírito que devém e progride
incessantemente: nada existe fora da história, que é precisamente
este progresso e
este devir.

§ 718. CROCE: A ARTE

A arte é o primeiro momento do espírito universal. Croce define-a


como visão ou intuição, mas considera-a como -teoria ou
contemplação e atribui-a à forma teorética do espírito. "0 artista
produz uma

imagem ou fantasma; e aquele que aprecia a arte dirige o olhar para


o ponto que o artista lhe indicou, olha pelo respiradouro que aquele
lhe abriu e reproduz em si aquela imagem" (Novos ensaios de
estética, p. 9). Mas intuição significa "a imagem no seu valor de
mera imagem, a pura idealidade da imagem"-, exclui, pois, a
distinção entre realidade e irrealidade, que é própria do
conhecimento conceptual e filosófico. Este é sempre realista
porque tende a

estabelecer a realidade contra a irrealidade, ou a rebaixar a


irrealidade incluindo-a como momento subordinado na realidade
mesma. A arte, ao invés, desfaz-se e morre quando se transforma
em reflexão e juízo. Por isso nem sequer é religião ou mito, pois
estes incluem também aquela pretensão de realidade que é própria
da filosofia. Como forma teorética, a

arte não é um acto utilitário e nada tem a ver com o útil, e com o
prazer ou com a dor; nem é um acto moral, e por isso exclui de si as
valorizações pró-
116

prias da vida moral. A boa vontade nada tem a ver


com a arte. Uma imagem poderá mesmo copiar um

acto reprovável, mas enquanto imagem não é nem

louvável nem reprovável. O artista, como tal, é sempre moralmente


inocente. A sua verdadeira moralidade é intrínseca ao seu escopo ou
à sua missão de artista, é o seu -dever para com a arte.

A intuição artística não é, todavia, um fantasma desordenado: tem


em si um princípio que lhe dá unidade e significado e este princípio é
o sentimento. "Não é a ideia, mas sim o sentimento que confere à
arte a aérea ligeireza do símbolo: uma aspiração fechada no círculo
de uma representação, eis o que é a arte" (Novos ensaios de
estética, p. 28). Neste sentido, a arte é sempre intuição lírica: é
síntese a priori de sentimento ede imagem, síntese da qual se pode
dizer que o sentimento sem a imagem é cego, e a

imagem sem o sentimento é vazia. A arte distingue-se, pois, tanto


do vão fantasiar como -da passionalidade tumultuosa do sentimento
imediato. Recebe do sentimento o seu conteúdo, mas transfigura-o
em pura forma, ou seja, em imagens que representam a libertação
da imediatez e a catarse do passional.

Como intuição, a arte identifica-se com a expressão. Uma intuição


sem expressão não é nada: uma fantasia musical só existe quando se
concretize nos sons, uma imagem pictórica só o é quando pintada. A
expressão artística é intrínseca à intuição e identifica-se com ela.
Mas a expressão artística é diversa da expressão técnica que é
devida à mera necessidade prática de tomar possível a reprodução
da imagem para si e para os outros. A técnica é consti-
117

túída: por actos práticos, guiados, como todos os actos práticos,


por conhecimentos. Como tal, é diferente da intuição, que é pura
teoria: e pode-se ser

grande artista e mau técnico. É pela técnica que "com a palavra e


com a música se unem as escrituras e os fonógrafos; com a pintura,
as telas e os retábulos

e as paredes cheias de cores; com a escultura e a arquitectura, as


pedras talhadas e entalhadas, o ferro e o bronze e os outros metais
fundidos, batidos e diversamente forjados".

O corolário fundamental, que decorre da definição da arte corno


intuição e expressão, é a identificação entre linguagem e poesia. A
expressão primeira e fundamental é, de facto, a linguagem. O
homem fala a todo o instante como o poeta, porque, como o poeta,
exprime as suas impressões e os seus sentimentos sob a forma da
conversação familiar, a qual não está separada por nenhum abismo
das formas propriamente estéticas da poesia e da arte em geral. A
linguagem não é o sinal convencional das coisas, mas a imagem
significante espontaneamente produzida pela fantasia. O sinal
mediante o qual o homem comunica com o homem supõe já a imagem
e, portanto, a linguagem, a qual é, pois, a criação originária do
espírito. A identidade entre poesia e

linguagem explica o poder que esta exerce sobre todos os homens:


se a poesia fosse uma língua à parte, uma "linguagem dos deuses",
os homens nem sequer a entenderiam.

Nos últimos escritos, e sobretudo no volume Poesia (1936), Croce


insiste cada vez mais no carácter expressivo da arte. A expressão
poética, enquanto

118
acalma e transfigura o sentimento, é uma "teorese, um conhecem
que une o particular ao universal e, por conseguinte, tem sempre
uma marca de universalidade e totalidade. Dela se distingue a
expressão sentimental ou imediata, a da prosa, a expressão oratória
e a literária. A expressão sentimental ou

imediata é uma pseudo-expressão porque não tem carácter


teorético e -se determina, não numa verdadeira linguagem, mas em
"sons. articulados", que fazem parte integrante do sentimento.
Mesmo quando esta expressão dá lugar a livros inteiros ou séries de
livros, não se distingue do sentimento e não o supera, mas mantém-
se nele sem alcançar o nível da poesia. De facto, na expressão
poética o sentimento não preexiste como conteúdo já formado e
expresso, mas é criado juntamente com a forma; de modo que o
puro sentimento é para a poesia um nada, que é real só como outra
forma de vida espiritual, ou seja, como forma prática. A poesia é a
morte do sentimento imediato, é "o ocaso do amor, quando toda a

realidade se consome em paixão de amor". Reporta o indivíduo ao


universal, o finito ao infinito, eleva "sobre a angústia do finito a
extensão do infinito" (A poesia, p. 9 segs.). Assim como a expressão
do sentimento imediato é "som articulado" mas não palavra, assim
também não é palavra a expressão em prosa, já que "só a expressão
poética é a verdadeira palavra". A expressão em prosa relaciona-se
com a poética, como a filosofia se relaciona com a poesia. Dá lugar a
símbolos ou sinais de conceitos, que não são palavras porque não são
imagens ou intuições. Também se distingue da expressão poética

119

a expressão oratória, que por isso mesmo também


dá lugar, não a palavras, mas a sons articulados, dos quais a
actividade prática se serve para suscitar determinados estados de
alma. A expressão literária, é "uma das partes da civilização e da
educação semelhante à cortesia ou ao galanteio", e consiste na
harmonia entre as expressões poéticas e as

não poéticas (passionais, em prosa, oratórias), de modo que estas


últimas, no seu curso, embora sem se renegarem a si mesmas, não
ofendem a consciência poética e artística (1b., p. 33). O que há de
fundamental na expressão poética é o ritmo, "a alma da expressão
poética, e, portanto, a expressão poética mesma, a intuição ou ritmo
do universo, como o

pensamento é a sistematização dele". E o ritmo é próprio de toda a


arte: em cada uma delas toma caminhos próprios, que são infinitos e
inclassificáveis. Sobre a sua natureza e sobre a sua relação com a

expressão, Croce pouco diz, a não ser que o subentenda nas


explicações que deu sobre o ritmo e a harmonia na história -da
estética desde a antiguidade até hoje. Através das expressões não
poéticas e, sobretudo, através da expressão oratória o espírito é
reportado ao sentimento, que é a própria vida prática, a partir da
qual recomeça um novo ciclo, constante no seu ritmo já assinalado,
ritmo que cresce sobre si mesmo, num incessante aperfeiçoamento
e

enriquecimento (1b., p. 28).

Este último desenvolvimento da -estética crociana vai,


indubitavelmente, ao encontro da exigência própria da crítica
literária de determinar e condicionar melhor a natureza da
expressão estética para a dis-
120
CROCE

tinguir facilmente das expressões que não são estéticas. Todavia, o


próprio reconhecimento da realidade de tais expressões assinala o
acto de decadência e de morte da filosofia do espírito. Se existem
formas ou modos de expressão que não são poesia ou arte, a poesia
ou arte não são tais enquanto expressão condicionada de uma
determinada maneira; e se as condições que fazem da expressão
uma expressão poética são a teorese, o conhecer, a universalidade,
a totalidade, a infinidade, etc., ou seja, caracteres ou
determinações que encontram a sua

realidade plena no conhecimento lógico, o carácter específico da


expressão poética dissolveu-se e o próprio fundamento da estética
crociana foi abandonado. Se o sentimento que se manifesta ou
realiza na expressão poética não é o que pertence à forma prática
do espírito, mas é criado ou suscitado ad hoc, a passagem da forma
prática à arte ou da arte à forma prática torna-se impossível. Se a
forma prática e o conhecer lógico possuem por sua conta a sua
expressão adequada, mesmo que seja em sons articulados ou
símbolos, e não em palavras e língua-,,em, a unidade e a conexão
necessária entre estas formas toma-se impossível e elas deixam de
ser formas, ou seja, momentos de uma única história espiritual para
se tornarem faculdades, uma a par da outra, como na velha
psicologia metafísica. A teoria da linguagem como expressão
poética suscita a crise de toda a filosofia do espírito de Croce. Do
ponto de vista do literato que a acha útil e conveniente para os seus
fins, isto pode parecer uma feliz incongruência do filósofo; mas do
ponto de vista filosó-
121

fico, a coisa é, pelo menos, desconcertante. Acrescente-se que a


redução (que aquela teoria implica) das expressões não poéticas
(filosóficas ou oratórias) a "sons articulados" vem a ter o seu
oposto simétrico na tese de alguns epistemologistas
contemporâneos (por ex., Ayer) que reduzem a simples "emissões
de voz" as expressões não científicas ou, pelo menos, não
verificáveis empiricamente, e este elucidativo confronto tomará
inútil o juízo. É, enfim, evidente que a identificação da linguagem
com a

expressão poética toma impossível entender a unidade da poesia


com as outras artes (música, pintura, escultura, etc.); e de facto,
para justificar esta unidade, Croce é obrigado a recorrer ao
antiquado e, segundo parecia, já inútil conceito de ritmo.

Contra a exigência, que se manifesta em muitas ocasiões, de


compreender a personalidade do artista (ou do filósofo, ou do
político) para poder ajuizar da sua obra, Croce afirma a pura e
simples identidade entre a personalidade e a obra. "0 poeta nada
mais é do que a sua poesia: afirmação não paradoxal se se
considerar que também o filósofo nada mais é do que a sua filosofia
e que o estadista nada mais é do que a sua acção e criação política"
(La poesia, p. 147). Mas a poesia do poeta ou a filosofia do filósofo,
etc., não é, como Croce crê, somente a forma numérica das suas
poesias ou dos seus livros escritos. Não é possível entender e
determinar o valor de uma obra referindo-se incessantemente
àquele objectivo e àquela missão que o artista, ou em geral, o autor
reconhece como sendo própria de si e cuja realização procurou no
seu tra-
122

balho. Este aspecto intencional, próprio de toda a

autêntica personalidade humana, e que se traduz igualmente nas


obras e na vida (a qual, por isso, não pode ser excluída ao julgar-se
a obra), não é devidamente considerada nas formulações teóricas e
nas

críticas literárias de Croce.

§ 719. CROCE: A CIÊNCIA, O ERRO E A FORMA ECONóMICA

A tese fundamental da Lógica (1908) é a identidade entre filosofia


e história. Croce defende esta tese mostrando a identidade entre o
conceito e o juízo definidor que o expressa, e entre o juízo
definidor e o juízo individual ou percepção, que é o juízo sobre a
realidade concreta ou fáctica. Mas o juízo sobre a realidade
concreta ou fáctica é o juízo histórico: de modo que o verdadeiro
pensar, o pensar lógico, é sempre pensar histórico; mais ainda,
identifica-se com a história enquanto pensamento. Todavia, este
conceito, que acaba por se revelar idêntico ao saber histórico, é,
sobretudo, o Conceito: isto é, o próprio Espírito na forma da sua
autoconsciência racional. Não tem, pois, nada que ver com os
conceitos de que se fala na linguagem comum e na ciência; e estes,
segundo Croce, não são verdadeiramente conceitos, mas pseudo-
conceitos. ou ficções conceptuais. Para explicar a sua origem e a sua
função, Croce recorre à forma prática do espírito e reproduz a
doutrina de Mach (§ 785) sobre a função económica dos conceitos
científicos. Os pseudo-conceitos

123

servem o interesse prático que provê à conservação do património


dos conhecimentos adquiridos. "Embora -diz Croce (Lógica, 1920, p.
23) -, em sentido absoluto tudo se conserve na realidade e nada que
tenha sido uma vez feito ou pensado desapareça do seio do cosmos,
a conservação de que agora se
fala tem a sua utilidade, porque facilita a recordação dos
conhecimentos possuídos e- permite extraí-los oportunamente do
seio do cosmos ou do aparente, mente inconsciente e esquecido.
Para este fim se constroem os instrumentos das ficções
conceptuais, que tornaram possível, por meio de um nome,
despertar e unificar a multidão das representações, ou, pelo menos,
indicar com suficiente exactidão qual a

forma -de operação a que convém recorrer para as

poder encontrar de novo e reproduzir". Na mesma

forma prática tem lugar o erro, que cai fora do conhecimento, que é
sempre verdade absoluta. "Aquele que comete um erro não tem
nenhum poder para Iorcer, desvirtuar ou corromper a verdade, que
é o seu próprio pensamento, o pensamento que opera nele como em
todos; ainda mais, logo que toca o

pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder
prático de passar do pensamento ao

facto; e um fazer e não já um pensar é abrir a boca ou emitir sons


aos quais não corresponda um pensamento ou, o que é o mesmo, não
corresponda um

pensamento que tenha valor, precisão, coerência, verdade: sujar


uma tela a que não corresponda uma

imagem, rimar um soneto combinando frases de outros que simulem


a genialidade ausente" (1b., p. 254-55). As ciências, como
pseudoconceitos, e os erros de
124

toda a espécie são, por conseguinte, rejeitados em

bloco por Croce na forma prática do espírito e considerados para


todos os efeitos não como conhecimentos, mas como acções.

A forma económica do espírito desempenha na

doutrina de Croce a mesma função que a natureza desempenhava na


doutrina de Hegel: acolhe em si o irracional, o contingente, o
individual, e, portanto, as necessidades, as paixões, etc., numa
palavra, tudo o que não pode ser reduzido à expressão poética ou

ao saber histórico. O próprio Croce acabou por empregar a palavra


"natureza" para indicar o "processo prático dos desejos, dos
apetites, da cupidez, das satisfações e insatisfações que surgem,
das -emoções que os acompanham, dos prazeres e das dores"
(últimos ensaios, 1935, p. 55). Mas acrescenta que se deve conceber
a natureza "dentro do espírito, como uma forma particular ou
categoria do próprio espírito, e como a mais elementar das formas
práticas, aquela em que também a forma prática superior, ou seja, a
eticidade, perpetuamente se traduz e se encarna e na qual o próprio
pensamento e a

fantasia se incorporam, fazendo-se palavra e expressão e passando,


neste fazer-se, pelas alternativas de todas as comoções e pelas
antíteses do prazer e da dor" (Ib., p. 55). Mas como pode um
espírito infinito, ou seja, por definição auto-suficiente, numa
categoria sua (por definição, universal) ser necessidade, paixão,
individualidade, etc., que são características constitutivas do finito
como tal e elementos ou manifestações da sua natureza, é um
problema que Croce (como Hegel) nunca considerou.
125

§ 720. CROCE: DIREITO E ESTADO COMO ACÇõES


ECONóMICAS

-Pertencem à forma económica do espírito além da ciência natural, o


erro, o mal, etc., e até o direito e o estado. Já em 1907, num ensaio
intitulado Redução da filosofia do direito à filosofia da economia,
Croce sustentara esta tese, a qual mais tarde confirma e
sistematicamente, desenvolve no terceiro volume da Filosofia do
espírito (Filosofia da prática, económica e ética, 1909) e mantém e
defende nos escritos posteriores (Ética e política, 1931). Já na
primeira destas obras, Croce identifica resolutamente a categoria
do direito com a da utilidade e da força. Reconhecia, portanto, a
existência de direitos imorais ou até direitos inerentes às
associações delituosas. "0 direito de uma associação a delinquir -
dizia (Rid., et., ed., 1926, p. 40) - encontra a oposição do direito de
uma sociedade mais vasta; submeter-se-á a este segundo, como ao
mais forte; submeter-se-á merecidamente, como o não moral ao
moral: mas vive como direito e está submetido como direito".
Todavia, o direito não é imoral mas amoral, isto é, precede a vida
moral e é independente dela. É força enquanto acção eficaz que
atinge um determinado fim útil; e é condição da própria moral,
enquanto esta não pode deixar de traduzir-se em acção e, por
conseguinte, em utilidade e força. Estas teses fundamentais foram
sempre mantidas firmemente por Croce. Portanto, o estado é
considerado por ele nada mais do que "um processo de acções úteis
de um

grupo de indivíduos ou entre componentes desse

126
grupo" (Ética e pol., p. 216). As leis, as instituições o os costumes
em que se concretiza a vida do estado não são mais do que "acções
dos indivíduos, vontades que eles actuam e mantêm firmemente,
concernentes a certas directivas mais ou menos gerais, que se
considera útil promover". Neste sentido o estado realiza-se
inteiramente no governo e não se distingue dele (1b., p. 218). A vida
do estado é unia relação dialéctica de força e consenso, autoridade
e liberdade. "Todo o consenso é forçado, mais ou menos

forçado, mas forçado, isto é tal que surge sob a "força" de certos
factos e, por conseguinte, "condicionado" : se a condição de facto
muda, o consenso, como é natural, é retirado, desencadeia-se o
debate e a luta, e um novo consenso se estabelece sob nova
condição. Não há formação política que se subtraia a esta
alternativa: no mais liberal dos estados, como na mais opressiva das
tiranias, existe sempre o consenso, e é sempre forçado,
condicionado e mutável. Se assim não fosse, não haveria nem o
Estado nem a vida do Estado" (Ib., p. 221). O erro da concepção
ética do estado, tal como, por exemplo, se encontra em Hegel,
consiste em ter concebido a vida moral numa forma da vida política
e do estado inadequada para ela. A vida moral, ao invés, não se
deixa reduzir à vida política mas transborda dela e contribui para
desfazer e refazer perpetuamente a vida do estado. É igualmente
erróneo, segundo Croce, o

democratismo que se baseia no pressuposto da igualdade dos


indivíduos, igualdade que juntamente com

a "liberdade" e a "fraternidade" são palavras vazias que merecem


todos os vitupérios e cuja verdadeira

127
origem reside "nos esquemas da matemática e da mecânica, inaptos
a compreender o ser vàvente" (1b., p. 226).

Croce vê o antecedente histórico da sua doutrina em Maquiavelli,


que descobriu "a necessidade e autonomia da moral, da política que
está para além, ou, antes, aquém -do bem e do mal ' que tem as
suas leis, contra as quais é inútil revoltarmo-nos; que não admite
exorcismos nem ser expulsa do mundo com água benta" (1b., p. 251).
E identifica a sua doutrina política com o liberalismo, não por ser
uma doutrina política especial, mas porque é "uma concepção total
do mundo e da realidade". O liberalismo encontra o seu centro na
ideia da dialéctica, ou seja, do desenvolvimento que "mercê da
diversidade e da oposição das forças espirituais aumenta e nobilita
continuamente a vida e lhe confere o seu único e total significado".
Ao liberalismo, como concepção imanentista, contrapõem-se as
concepções fundadas no transcendente, e pouco importa que este
seja entendido no sentido religioso dos ultra-montanos ou

no sentido materialista dos socialistas e dos comunistas: num e


noutro caso, o ideal transcendente que se procura traduzir em
factos não pode deixar de ser simplesmente imposto à humanidade.
Esta concepção pode lar lugar, não a revoluções, mas a reacções; a
ela se devem todas as crises e doenças nas

quais se verifica uma negação ou suspensão do princípio de


liberdade. A superioridade da concepção liberal resulta evidente
pelo facto de que é capaz de justificar teoricamente e
historicamente a conceção oposta. Com efeito, só ela pode fazer
justiça

128
aos adversários da liberdade e aos períodos históricos em que a
liberdade é amarfanhada ou suprimida. "Presta, pois, justiça
também aos primeiros (a saber, "aos tempos de reacção e aos
homens das reacções"), não ao coração da humanidade, mas à mente
liberal, não já enquanto fundamento de vida e de luta prática, mas
enquanto juízo histórico que considera as suspensões de liberdade e
os períodos reaccionários como doenças e crises de crescimento,
como incidentes e meios da mesma eterna vida da liberdade, e
portanto entende o papel que desempenharam e a obra útil que
realizaram (1b., p. 290).
O liberalismo está, pois, ao mesmo tempo, fora da luta e dentro
dela; fora da luta, como juízo histórico o concepção dialéctica da
realidade; dentro da luta como "fundamento de vida e de luta
prática". Pode-se perguntar o que é o liberalismo neste último
aspecto, já que, evidentemente, enquanto luta e

nega a legitimidade do seu contrário, não pode, ao

mesmo tempo, contê-lo em si e justificá-lo. É então precisamente,


"vida e luta prática": economia, utilidade, força que se contrapõe a
outras forças. Que é que o justifica então enquanto tal? Se,
enquanto se justiça a si mesmo, justifica também os seus opostos e
é concepção dialéctico-histórica (conhecimento puro, não acção),
enquanto luta e age, nada, evidentemente, o pode justificar: é, como
os seus opostos, uma manifestação contingente da forma
económica. O liberalismo, como Croce o entende, ou justifica tudo
ou nada justifica. O pensamento político de Croce permanece
encerrado nesta antinomia que o paralisa e que jaz, como se verá, no
fundo da

129

sua concepção da história. Perante a democracia, que é um


liberalismo armado que pretende reforçar e garantir a liberdade,
nos seus modos particulares e nas suas formas concretas e
históricas, o liberalismo de Croce continua a ser abstracto e
indefeso, e, por conseguinte, inoperante. A própria obra do homem
Croce, o precioso testemunho que prestou à liberdade, não se deixa
inscrever na sua doutrina nem justificar por ela.

§ 721. CROCE: HISTóRIA E FILOSOFIA

A identificação entre história e filosofia exposta pela primeira vez


na Lógica (1908), foi o tema fundamental da filosofia crociana. "Se
o juízo - diz Croce (A história como pensamento e como acção,
1938, p. 19)-,é relação entre sujeito e predicado, o sujeito, ou seja
o facto, qualquer que seja, que se julga, é sempre um facto
histórico, algo que devêm, um processo em curso, porque factos
imóveis não se encontram nem se concebem no mundo da realidade".
É juízo histórico a mais óbvia percepção judicativa, por exemplo a
de uma pedra: "porque a

pedra é, na realidade, um processo em curso, que resiste às forças


de desagregação ou cede só pouco a pouco, e o meu juízo refere-se
a um aspecto da sua história". Nenhuma distinção é possível entre
factos históricos e factos não históricos. Um dos mais óbvios e
dificílimos problemas da historiografia, o da distinção entre factos
históricos (ou seja, signi-
130

ficativos) e factos não históricos (insignificantes ou banais) e do


critério para os distinguir ou seleccionar é totalmente abolido e
eliminado por Croce. Toda a história é história contemporânea,
"porque, por remotos ou remotíssimos que pareçam
cronologicamente os factos que entram nela, ela é, na realidade,
história sempre referida à necessidade e à situação presente, na
qual os factos propagam as

suas vibrações" (1b., p. 5). As fontes da história (documentos ou


relíquias) não têm outro fim senão o de estimular e formar no
historiador estados de alma que já existem nele. "0 homem é um
microcosmos, não em sentido naturalista, mas em sentido histórico,
um compêndio da história universal" (1b., p. 6). A necessidade e o
estado de alma constituem, no entanto, apenas a matéria necessária
da história; o conhecimento histórico não pode ser a sua reprodução
passiva, mas deve superar a vida vivida para a representar em
forma de conhecimento. Devido a esta transfiguração, a história
perde o seu

aspecto passional e torna-se uma visão necessária, logicamente


necessária da realidade. Nela, já não têm lugar as antíteses que se
defrontam na vontade, e no sentimento já não existem factos bons
e factos maus, mas factos sempre bons, quando sejam entendidos
no seu carácter concreto, isto é, na sua íntima racionalidade. "A
história nunca é justiceira, mas

justifica sempre; e só poderia tornar-se justiceira se fosse injusta,


ou seja, se confundisse o pensamento com a vida e escolhesse para
juízo do pensamento as atracções e as repulsões do pensamento"
(Teoria e história da historiografia, 1917, p. 77). É devido

131

a esta sua natureza que a história pode libertar o

homem do peso opressivo do passado. Num certo sentido, o homem


é o seu próprio passado, que o

circunda e o comprime de todos os lados. O pensamento histórico


converte a relação com o passado em

conhecimento, redu-lo a problema mental e a verdade, que vale


como premissa para a acção futura. "Só o juízo histórico, que
liberta o espírito da compreensão do passado e, puro como é e
alheio às partes em conflito, guardião contra os seus ímpetos e os
seus engodos, mantém a sua neutralidade e procura unicamente
fornecer a luz que se lhe pede; só ele toma possível a formação do
propósito prático que abre a vida ao desenvolver-se da acção e, com
o

processo -da acção, às oposições, entre as quais ela deve actuar, do


bem e do mal, do útil e do nocivo, do belo e do feio, do verdadeiro e
do falso, e, em

suma, do valor e -do desvalor. (A história, p. 35).

Talvez pareça assim, que o sentimento e a acção cairiam fora da


história, que é conhecimento racional perfeito. Pelo contrário,
caem, segundo Croce, somente fora do conhecimento, no domínio da
forma prática do espírito. As angústias, as esperanças, as lutas,
etc., todos os impulsos dos homens, pertencem à consciência moral,
são "história. no seu fazer-se". Mas seja como acção vivida, seja
como conhecimento lógico, a história é sempre racionalidade plena,
progresso. O chamado elemento irracional da história é constituído
pelas manifestações da vitalidade: vitalidade que não é decerto a
civilidade ou a moralidade, mas condição e premissa necessária de
uma e de outra; e como tal, plenamente racional (A his-
132

tória, p. 160-61). Quanto à decadência, é um conceito aplicável só a


determinadas obras ou ideais; "mas em sentido absoluto e na
história, nunca existe decadência que não seja ao mesmo tempo
formação ou

preparação de nova vida e, portanto, progresso" (1b., p. 38). Nem


poderia ser de outro modo porque o verdadeiro sujeito -da história
é, sempre, em última análise, o espírito infinito. A -história não é "a

obra impotente, e sempre ininterrupta do indivíduo empírico e


irreal, mas a obra daquele indivíduo verdadeiramente real, que é o
espírito no seu eterno individualizar-se. Por isso ela não tem de
defrontar nenhum adversário, pois todo o adversário é também o
seu súbdito, isto é, um dos aspectos daquele dialectismo que
constitui o seu ser íntimo" (Teoria e história da historiografia, p.
87).

Todavia, nos últimos escritos, sob o impulso das vicissitudes


históricas contemporâneas que se prestam mal a confirmar a
perfeita racionalidade da história e a sua total justificação, Croce
introduz uma

distinção que deveria evitar que aquela tese servisse para a cínica
aceitação do facto consumado ou do êxito. Quer dizer, distinguiu a
racionalidade da história da racionalidade do imperativo moral.
Tudo na história é racional porque tudo nela "tem a sua

razão de sem. Mas racional é também o imperativo moral, ou seja,


"aquilo que a cada um de nós, nas condições determinadas em que é
colocado, a consciência moral manda fazem -(A história, p. 199).
Ora, o imperativo moral neste sentido é próprio do dever ser que
pretende dar lições ao ser, contra o qual se encarniçou sempre o
desprezo de Hegel e

133
do próprio Croce. E este reconhecimento de um "racional" diferente
da racionalidade necessária -da história, tem o mesmo efeito que,
no domínio da estética, tinha o reconhecimento de formas ou modos
de expressão diferentes dos da expressão poética: a

saber, o de tomar impossível a unidade e a circularidade da vi-da


espiritual e destruir o próprio pressuposto da filosofia do espírito.
De facto, a passagem da forma teorética à forma prática (do
pensamento à acção) justifica-se somente no sentido -de que a
primeira deve iluminar e dirigir a segunda, que seria cega e
irracional sem ela. Mas se todo o conhecimento é história, se toda a
história é justificação do que aconteceu e acontece, a única atitude
legítima, a um tempo teorética e prática, é a de quem vê em

toda a decadência um progresso, em todo o mal um bem e na obra


do diabo a própria obra de Deus. Tal foi, de facto, sempre a atitude
de Hegel e tal continua a ser a atitude de Croce filósofo. Apelar
então para o imperativo moral como para algo racional de outro
género, significa querer dar, como indivíduo, lições à história, como
homem lições a

Deus. Por outras palavras, traduzir, não um racional mas um


irracional, e restaurar a desprestigiada e

ridicularizada situação do iluminismo.

A filosofia de Croce orienta-se, pois, para uma

contradição que não é de modo algum dialéctica porque carece,


desesperadamente, de solução. Por outro lado, Croce insiste no
conceito da história como visão divina do mundo, completa e total e

no seu conjunto imediata, à qual não se pode reportar o progresso,


já que só se pode referir este

134

ao nosso conceito das categorias e não às categorias mesmas (A


história, p. 25). E por esta visão é levado a considerar as dúvidas e
as desconfianças que às vezes surgem, com respeito ao progresso,
como impulsos sentimentais e cegos que devem ser banidos pela
reflexão histórica (0 progresso como estado de alma e o progresso
como conceito filosófico, "Critica", Julho de 1948). Por outro lado,
insiste na liberdade e na responsabilidade do indivíduo frente às
suas tarefas e, por conseguinte, na obrigatoriedade moral de
atitudes que não sejam a pura e simples aceitação do facto
consumado. Num ensaio de 1929 (últimos ensaios, 1935, p. 295
segs.) exprimiu este contraste equiparando-o ao que existe entre a
graça e o livre arbítrio; e viu a solução do mesmo no "alternado
operar do pensamento e da acção, da teoria a da práxis, de duas
categorias do espírito e da realidade, que só o são uma mediante a
outra, e no seu distinguir-se ou pôr-se se resolvem naquela ú nica
unidade concebível que é o

eterno unificar-se". Mas é precisamente este eterno unificar-se


que resulta impossível. Não se trata, com efeito, de simples
proposições ou posições lógicas, mas de atitudes humanas; e a
atitude de quem tudo justifica, exclui e condena a atitude de quem
se sente responsável pelos ideais e pelas acções que livremente
escolheu.

A identidade entre filosofia e história conduz à negação de toda a


filosofia que não se reduza à consideração da história e dos seus
problemas, e à definição da filosofia como "metodologia da
historiografia". O conceito de uma filosofia que se situe
135

para além e fora da história ou que se ocupe de problemas


universais eternos é "a ideia da filosofia". Ela só pode dar origem a
discussões intermináveis, próprias dos filósofos de profissão, mas
completamente fora do círculo vital do pensamento. "Qualquer
problema filosófico resolve-se unicamente quando é posto e tratado
com referência aos factos que o fizeram nascer e que cumpre
entender para o entendem (A história, p. 144). A unidade do
problema com a sua solução exclui que haja problemas insolúveis. A
solução elimina o problema e

novos problemas são postos ou impostos pela vida e pela acção. À


filosofia não é dado pensar os universais sem os individualizar e,
portanto, sem os

tomar históricos, como não é possível à historiografia conhecer a


individualidade dos factos sem os

universalizar. Em nenhum sentido se pode distinguir historiografia e


filosofia. A filosofia como tal está morta, e ressurge na
historiografia.

A filosofia de Croce constitui a última e decisiva crise do idealismo


romântico. Este idealismo que se

apresentava em Gentile (como em Hegel) pacificado e feliz na


consciência da perfeita entidade entre finito e infinito, apresenta-
se em Croce, especialmente nas

suas últimas manifestações, como infelicidade e contraste de


posições inconciliáveis. As exigências e
os problemas que ele procurou fazer seus estilhaçam o quadro das
categorias prévias e revoltam-se contra elas. Mas precisamente por
este aspecto a obra de Croce é extremamente significativa para a
filosofia contemporânea-

Esta obra exerceu uma grande influência sobre

136

a cultura italiana do período compreendido entre as duas guerras.


Actuou no mesmo sentido que a filosofia de Gentile, apesar da
inimizade que se criou entre os dois filósofos e da diversidade das
suas doutrinas. Contudo, não deu lugar, no campo filosófico, a
nenhum desenvolvimento original ou enriquecimento das suas teses
fundamentais; em troca, determinou novos rumos no campo da
crítica literária e artística, especialmente em Itália, apesar de tal
influência estar actualmente a desaparecer da cultura italiana.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 709. Sobre Vera: **R0SENK1LANZ, Hegels Naturphilosophie und


die Bearbeitung derselben durch den italienischen Philosoph A. V.,
Rerlim, 1868; R. MARIANO; A.V., Saggio biografi-co, Nápoles,
1887; G. GENTILE, Origini de" fil. contemp. in Italia, M, Messina,
1921.

Sobre Spaventa: V. FAzIO-ALLMAYER, in "Giorn. critico della fil.


italiana", 1920; G. GENTILE, Origini, ete. (cit.); IOD., in "Annali
della ScuoIa Normale Superiore di Pisa", 1934; VicoRiTA, B.S.,
Nápoles, 1938 (com bibliog.).

Estã em curso a edição dm obras completas de Gentile, ed. Sansoni


de Florença. Bibliog. de V. A. BELLEzzA, Bibliogr. degli scritti di
G.G., vol. IIII de G.G., Ia vita e il p~ero, ao cuidado da fundação
"Gentile", Florença, 1950.

Sobre Gentile: E. CM0CCHETT1; La fil. di G.G., Milão, 1922; V. LA


VIA, L'idealismo attuale di G.G., Trani, 1925; R. W. HOLMES; The
ideali~ of G.G., Nova Iorque, 1927; E. Paci, Pensicro, exist"za,
valore, Milão, 1940; p. 1-14; H. S. HARRIs, The Social Philo&ophy of
G.G., Urbana, 111, 1960.

137

os volumes publicados pela "Fundação G.G. para os estudos


filosóficos" e inütulados: G.G. La i>ita e il pensiero contêm
numerosos escritos (interpretativos e

evocativos) sobre diversos aspectos da filosofia de G.G. O último


destes volumes é o X, saído em 1962.

§ 711. Um desenvolvimento do **aetuah@'smo gentiliano no sentido


de um espiritualismo religioso foi tentado por A. CARLINI nos
esoritos: La vita dello spirito, Florença, 1921; La relig"ità.

138

vi

O NEO-CRITICISMO

§ 722. CARACTERES DO NEO-CRITICISMO

A filosofia passou a ser entendida e aplicada, desde o neo-


criticismo, como reflexão crítica sobre a
ciência (ou sobre qualquer outra forma da experiência humana)
tentando encontrar na ciência (ou, em geral, nessa outra forma de
experiência) as condições que a tornam válida. O neo-criticismo
admite assim a validade da ciência, do mesmo modo que aceita a
validade do mundo moral e estético. Mas o criticismo é contrário à
afirmação do carácter absoluto ou metafísico da verdade
científica, defendido pelo positivismo; e é, por outro lado, contrário
a qualquer tipo de metafísica ou de integração metafísico-religiosa
do saber científico, segundo as vias do espiritualismo e do
idealismo. A metafísica

139

da matéria e a metafísica do espírito estão igualmente afastadas


dos interesses do neo-criticismo e constituem, até os alvos das suas
atitudes polémicas. Isto pressupõe a defesa da distinção kantiana
entre a validade da ciência (da moral ou da arte) o as condições de
facto empíricas, psicológicas ou

subjectivas que se encontram ligadas à ciência, à moralidade ou à


arte. Assim acontece com o neo-criticismo, se bem que esteja
impregnado pela polémica contra o empirismo e o psicologismo, que
reduzem a validade do conhecer (ou da moralidade ou da arte) às
condições em que estas actividades se manifestam no homem. O
"retorno a Kant" é portanto o retorno ao ensinamento fundamental
do filósofo de Kõnigsberg, isto é, à exigência de não reduzir a
filosofia à psicologia, à fisiologia, à metafísica ou à teologia, mas
sim de restituí-Ia à sua tarefa de análise das condições de validade
do mundo do homem.

§ 723. ORIGENS DO NEO-CRITICISMO NA ALEMANHA

O retorno a Kant verificou-se na Alemanha pouco depois dos


meados do séc. XIX. O primeiro impulso partiu dos escritos de
**HeIraholtz, do aparecimento da monografia de Kuno Fischer
sobre Kant (1860) e da obra de Zeller Sobre a significação e o

fim da gnoseologia (1862). Em 1865, Otto Uebmann (1840-1912)


publicou o livro Kant e os seus epígonos, em que traçava a análise de
cada uma das quatro orientações da filosofia alemã post-kantiana

140

(idealismo de Fichte, de Schelling e de Hegel; realismo de Herbert,


empirismo de Fries e transcendentalismo de Schopenhauer) com o
lema: "Deve, pois, voltar-se a Kant". O próprio Liebmann contribuiu
com sucessivos escritos (Análise da realidade, 1876; Pensamentos e
factos, 1882-1904) para este retorno a Kant, entendido por ele
como criação de uma metafísica crítica que tomasse como
fundamento o

princípio kantiano da dependência do objecto relativamente ao


sujeito e admitisse, em consequência, apenas a consciência como
facto originário.

A primeira manifestação do neo-criticismo na

Alemanha foi a de Hermann Helmholtz (1821-1894), que chegou a


uma interpretação fisiológica do kantismo partindo de exigências e
de factos inerentes às duas ciências que cultivava: a fisiologia e a
física (Sobre a vista humana, 1855; Teoria das sensações sonoras,
1863; Manual de óptica fisiológica, 1856-66-, Os factos da
percepção, 1879). Dado que os efeitos da luz e do som sobre o
homem dependem do modo de reacção do seu sistema nervoso,
Helnlholtz considera, as sensações como os sinais produzidos nos
nossos órgãos dos sentidos por acção das forças externas. Os
sinais não são cópias nem reproduzem os

caracteres dos objectos externos; mas, contudo, estão


relacionados com eles. A relação consiste em que o mesmo objecto,
nas mesmas circunstâncias, provoca o aparecimento do mesmo sinal
na consciência. Esta relação permite-nos comprovar as leis dos
processos externos, isto é, a sucessão regular das causas e dos
efeitos, o que basta para provar que as leis do mundo real se
reflectem no mundo dos sinais e,

141

por conseguinte, para fazer deste último um conhecimento


verdadeiro. Helmholtz aceita a doutrina kantiana do carácter
transcendental do espaço e do tempo mas nega que tenham
carácter transcendental os axiomas da geometria. A existência das
geometrias não-euclideanas demonstra que os espaços matemáticos,
mesmo sendo intuíveis, não se baseiam em axiomas transcendentais
porque são construções empíricas que têm como fundamento comum
a intuição pura do espaço. Segundo Helmholtz, idealismo e realismo
são puras hipóteses que é impossível refutar ou provar de modo
decisivo. O único facto independente de qualquer hipótese é a
regularidade dos fenómenos e, por isso, o único carácter essencial
da realidade é a lei. O mérito imortal de Kant foi, precisamente, o
ter demonstrado que o princípio da causalidade, no qual toda a lei se
funda, é uma noção a priori. 'Na mesma linha se move Frederico
Alberto Lange (1828-75), conhecido principalmente pela sua
História do materialismo (1866, enriquecida e aumentada na 2.a ed.
de 1873), que constitui uma

tentativa para chegar ao criticismo através da crítica do


materialismo. Com efeito, reconhecida a tese fundamental do
materialismo, isto é, a estreita conexão ida actividade espiritual
com o organismo fisiológico, é preciso ainda reconhecer, segundo
Lange, que este mesmo organismo, como todo o mundo corpóreo, do
qual faz parte, só é conhecido por nós através das imagens que
produz. As conclusões. fundamentais da teoria do conhecimento
são, por conseguinte, três: "l.a -o mundo sensível é um pro-
142

duto da nossa organização. 2.1 -Os nossos órgãos visíveis


(corpóreos) são, como as restantes partes do mundo fenoménico,
somente imagens de um objecto desconhecido. 3 a-o fundamento
transcendente da nossa organização é, pois, desconhecido para nós,
do mesmo modo que as coisas que actuam sobre ela. Só se nos
depara o produto de dois factores: o nosso organismo e o objecto
transcendente (Gesch. des Mater., 11, 7 a ed., 1902, p. 423). Uísto
resulta que "o reduzir todo o elemento psíquico ao mecanismo do
cérebro e dos nervos (como faz o materialismo) é o caminho mais
seguro para chegar a

admitir que aqui termina o horizonte do nosso saber sem alcançar o


espírito em si" (Ib., p. 431). Nesse sentido é aceite a tese kantiana
de que toda a realidade, apesar da sua rígida concatenação causal,
não é mais que fenómeno. A coisa em si não é mais que um conceito
limitativo, algo inteiramente problemático, que se admite corno
causa dos fenómenos, mas da qual nada se pode afirmar
positivamente (Ib., p. 49). Lange crê que o verdadeiro Kant é o da
Crítica da Razão Pura e que a tentativa de Kant de sair, como fez
nas outras obras, dos limites do fenómeno para alcançar o mundo
noménico é impossível, Os próprios valores morais e estéticos têm a
sua raiz no mundo dos fenómenos e carecem de significado fora
dele (1b., p. 60). Existe, certamente, um caminho para ir mais além
dos fenómenos, mas não e o do saber positivo: é o caminho da livre
criação poética. O homem tem, certamente, necessidade de
completar a realidade fenoménica, com um mundo ideal criado por
ele próprio. Mas a livre criação

143

deste mundo não pode tomar a forma enganadora de uma ciência


demonstrativa; e se a toma, o materialismo ali está para destruir o
valor de toda a especulação audaz e para manter a razão dentro dos
limites do que é real e demonstrável (1b., p. 45). Deste ponto de
vista, o valor da religião não consiste no seu conteúdo teórico, mas
no processo espiritual de elevação por sobre o real e na criação de
,uma pátria espiritual que ela determina. "Acostumemo-nos - diz
Lange (1b., p. 548) - a atribuir ao princípio da ideia criadora em si,
deixando de lado toda a sua conformidade com o conhecimento
histórico e científico e também toda a falsidade deste
conhecimento, um valor superior àquele que se lhe tem atribuído até
agora: acostumemo-nos a ver no

mundo das ideias uma representação figurada da verdade na sua


totalidade, tão indispensável para o

progresso humano como os conhecimentos do intelecto, e


procuremos medir a maior ou menor importância de cada ideia com
princípios éticos ou estéticos".

Uma redução análoga da metafísica à actividade prática ou


fantástica, valiosa do ponto de vista humano mas não do ponto de
vista científico, é defendida por Luís RiehI (1844-1924), autor,
entre outras, de uma vasta obra intitulada O criticismo filosófico e
a sua significação para a ciência positiva (1876-87) e de um Guia
para a filosofia contemporânea (1903). Riehl acentua em sentido
realista a interpretação fisiológica do kantismo, que recebe de
Helmholtz. A ;sensação é uma modificação da consciência,
produzida pela acção da coisa em si: como tal, não

144

revela nada sobre a natureza da coisa em si, mas permite afirmar a


sua existência. o facto de que a

uma sensação sucede outra (por ex., a passagem do azul ao roxo)


implica uma alteração produzida no objecto em si, ainda que não
permita decidir em que consiste. A realidade do objecto em si não é
excluída pelo facto da consciência ter simplesmente uma relação
com ele. "Não contradiz nenhum conceito do nosso pensamento
supor que o que se converte em objecto, ao entrar na relação que
constitui a ciência, exista também independentemente desta
relação. MaIs ainda, esta afirmação está necessariamente unida à
ideia de relação: o que não existe não pode entrar em nenhuma
relação" (Des phil. Kritizismus, 11, 11, p. 142). O objecto em

si só pode ser caracterizado dizendo-se que é aquele que fica da


nossa representação total dos fenómenos depois de ter eliminado
dela todos os elementos subjectivos: este resíduo objectivo não é
mais do que a regularidade dos próprios fenómenos e, por isso,
como Helmholtz, reconhece Rielid na lei o único carácter da
realidade em si (Ib., p. 173). Por outro lado, a mesma função
sintética do sujeito que unifica e ordena os dados sensíveis deve
ter a sua contrapartida objectiva na realidade. Com efeito, se não
houvesse nada que correspondesse à unidade lógica do pensamento,
esta unidade seria inaplicável; por isso ela é somente o reflexo da
unidade na natureza e no pensamento (1b., 11, 1, págs. 219 e segs.;
11, R, págs. 61 e segs.). É evidente que, deste ponto de vista, a
oposição entre sujeito e obj=to perio o seu carácter originário: o eu
e o não-eu só são
145

diferentes funcionalmente, enquanto que a consciência originária é


indiferente (1b., 11, 1, págs. 65 e segs.). Só mente a elaboração da
experiência que o pensamento realiza mediante as suas leis a priori
estabelece tal oposição. E esta elaboração tem sempre carácter
social: "A experiência-diz Rielil (1b., 11, IL p. 64) -não é um conceito
psicológico-individual, mas um conceito social". A consciência
universal consi** 'ituida pelas categorias que condicionam a
elaboração da experiência, não é mais do que w sistema das
coordenadas intelectuais, relativamente às quais eu penso todo o
conhecimento".

A possibilidade de uma metafísica como conhecimento hipotético,


fundada na experiência da coisa em si, é defendida também em
artigos e ensaios por Eduardo Zeller (1814-1908), o grande
historiador da filosofia grega que, como dissemos, foi um dos
primeiros defensores do retorno a Kant na Alemanha.

§ 724. RENOUVIER: A FILOSOFIA CRíTICA

Na mesma altura do ressurgimento do criticismo na Alemanha, o


retorno a Kant era defendido em França por Charles Renouvier
(1815-1903), que publicou entre 1854 e 1864 os quatro volumes dos
seus Ensaios de crítica geral (Análise geral do conhecimento, 1854;
Psicologia racional, 1859; Princípios da natureza, 1864;
Introdução à filosofia analítica da história, 1864). A esta, que
é a sua obra principal, se,-u-ir-se-ão: A ciência da moral, 1869;
Ucronia, 1876; Ensaio de unia classificação sistemática

146

das doutrinas filosóficas, 1885-6; A nova monadologia (de


colaboração com L. Prat), 1899; Os dilemas da metafísica pura,
1903; História e solução dos problemas metafísicos, 1901; O
personalismo,
1901. Renouvier declara explicitamente que aspira a continuar e
levar a termo a obra de Kant, e que aceita do positivismo a redução
do conhecimento às leis dos fenómenos porque esta redução
concorda com o método de Kant,(Essais, 1, 1854, págs. X-XI). Por
conseguinte, a filosofia tem por objecto estabelecer as -leis gerais
e os limites do conhecimento (Ib., p. 363); e Renouvier considera
idolatria e fetichismo filosófico toda a metafísica, descobrindo o
seu princípio na distinção entre Tealidade e representação. Como
tantos outros kantianos e neo-kantianos, crê que o princípio
fundamental do criticismo é a redução de toda a realidade à
representação (Ib., p. 42).

A primeira consequência deste princípio é a eliminação da coisa '


em si e de todo o absoluto. Enquanto representação a realidade não
é mais do que fenómeno. Mas o fenómeno é essencialmente
relatividade; só existe em relação com outros fenómenos, dos quais
é parte ou nos quais entra como parte de um todo. Tudo o que se
pode representar e definir é relativo e a afirmação de uma coisa em

si ou de um absoluto é intrinsecamente contraditória, porque


pretende estabelecer ou definir mediante relações o que está fora
de toda a relação (1b., p. 50). Na relatividade dos fenómenos
baseia-se a lei, que Renouvier define como "um fenómeno composto,
produzido e reproduzido de modo constante, e re-
147

presentado como a relação comum das relações de outros


fenómenos diferentes" (Ib., p. 54). Deste ponto de vista, todos os
seres são "conjuntos de fenómenos unidos por funções
determinadas". Assim, a
consciência é uma função especial dos fenómenos que se
manifestam nessa esfera representada que é o indivíduo orgânico
(Ib., p. 83). O saber e a ciência tendem a estabelecer as relações
entre os fenómenos e entre as leis, procurando uma síntese única
cujos limites corresponde à crítica estabelecer (1b., págs.
86 e segs.). Todo o saber se baseia, portanto, na

categoria de relação, da qual são determinações e

especificações as outras categorias do conhecimento: o número, a


extensão, a duração, a qualidade, o devir, a força, a finalidade, a
personalidade. Esta última é a própria categoria da relação na sua
forma vivente e activa.

A introdução da personalidade (ou consciência) e da finalidade


entre as categorias, constitui o aspecto mais original da doutrina de
Renouvier relativamente à de Kant. No que se refere à finalidade,
Renouvier observa que a lei do fim não é menos essencial para a
constituição do espírito humano do que a lei da causalidade, e que o
homem que a impõe em todos os seus actos e a aplica para dirigir
todos os seus juízos é o mesmo e único homem que considera causas
e qualidades (Essais, 1, p. 407). Quanto à categoria da
personalidade, Kant excluiu-a das categorias; introduziu-a depois
como eu pensante, abrindo assim caminho ao idealismo; na realidade,
da é uma forma dos nossos juízos, tal como as outras categorias.
"Deverá a consciência, pelo facto
148

de se identificar com o filósofo, impedir este de lhe dedicar uma


parte na obra que ela reivindica totalmente? O objecto da crítica é
precisamente estudar o eu como algo distinto do eu e como uma
entre outras coisas representadas" (Ib., p. 398).
O conceito do saber como relação e sistema de relações leva
Renouvier a considerar a possibiEdade de um sistema total, de uma
síntese completa das relações, a qual seria o mundo. Renouvier
elimina as antinomias enumeradas por Kant: a propósito desta ideia,
eliminando dela o carácter de infinidade, ou seja, aceitando sem
restrições as teses das antinomias kantianas e destruindo as
antíteses. O infinito é sempre intrinsecamente contraditório
quando se considera real: pode ser admitido no campo do possível,
não no da realidade fenoménica. É contraditório admitir um todo
infinito **d&o, já que 3

que é dado possui, necessariamente, as determinações que fazem


dele algo finito. O mundo real é um todo finito e as teses das
antinomias kantianas são verdadeiras. É necessário, pois, admitir
que o mundo é limitado, no espaço e no tempo, que a sua
divislibilidade tem um termo e que depende ele uma ou

mais causas, que não são efeitos, mas causas primeiras. "0 mundo-
diz Renouvier (Ib., 1, pág-s.
282-3) depende de uma ou mais causas que não são efeitos, mas
actos antecedentes: tende para um ou mais fins, cujos meios
adquiridos não se prolongam interminavelmente no passado nem no
futuro; e e~ fins e estas causas estão n&e, de algum modo, já que
todo o devir implica força e paixão; e como

todo o fenómeno supõe a representação e toda a

149

representação supõe a consciência, o mundo compreende uma ou


mais consciências que se aplicam ao seu conteúdo". Esta última
alternativa refere-se ao problema de Deus e à relação entre o
inundo e Deus. Renouvier exclui a hipótese da criação, que reduz a
consciência primeira a um ídolo indefinível: "unia força que produza
a força, um amor que ame o amor, um pensamento que pense o
pensamento". Fica a hipótese da emanação; mas, nesta hipótese, ou
o uno originário se

considera em sentido absoluto e, portanto, como

algo que exclui toda a pluralidade, sendo incapaz de a explicar, ou se


considera como uma verdadeira consciência, como uma força e uma
paixão dirigida a outros actos e a outros estados e, neste caso, a
pluralidade, e precisamente a pluralidade das pessoas, é-lhe já
intrínseca. A hipótese da emanação coincide pois, substancialmente,
com a da pluralidade múltipla, o todo, pela única razão de que o

é, para Reinouvier, o dado originário. "Nós subsfituímos o Uno puro,


ídolo dos metafísicos, pela unidade múltipla, a todo, pela única razão
de que o

mundo, actual e originariamente, é uma síntese determinada, não,


uma tese **abstraci 'a" (Essais, 1, p. 357). Renouvier sustenta que
isto é tudo quanto se pode dizer sobre síntese total do mundo e que
to-aos os

outros problemas que a metafísica põe sobre as

suas ulteriores determinações não podem encontrar resposta,


porque não têm um sentido definível nos limites do conhecimento,
humano.

Na Nova monadologia (1899) volta a propor, não obstante, tais


problemas e, reafirmando substancial-
150
mente -as teses dos Ensaios, chega a renovar a concepção cíclica do
mundo tal como se encontra nos Padres da Igreja grega,
especialmente em Orígenes (§ 146). Renouvier aceita
explicitamente (Nova monad., p. 505) a tese de uma pluralidade de
mundos sucessivos, nos quais a passagem de um mundo para outro é
determinada pelo uso que o homem faz da liberdade em cada um
deles; e pretende corrigir a

tese de Orígenes no sentido de que "o fim alcançado volta a unir-se


com o princípio, não na indistinção das almas mas na humanidade
perfeita, que é a

sociedade humana perfeita". Este fazer reviver as

velhas concepções metafísicas, que estão em oposição com o


delineamento crítico da filosofia de Renouvier, é provocado pela
necessidade de fazer depender o destino do mundo da acção da
liberdade humana.

§ 725. RENOUVIER: O CONCEITO DA HISTÓRIA

Esta necessidade domina o seu conceito da história. Podem


reconhecer-se na história duas espécies de leis: em primeiro lugar
as leis empíricas, estabelecidas pela observação, e contingentes na
sua aplicação; em segundo lugar, as leis a priori, que deveriam
depender de uma única dei e originar o

desenvolvimento do destino humano em todos os aspectos do


pensamento e da acção de todos os

povos do mundo. "As leis empíricas pressupõem o livre arbítrio


humano e a não predeterminação dos grandes acontecimentos, pêlo
menos do ponto de

151

vista da nossa ignorância, mesmo que fossem concatenados e


determinados de um modo desconhecido para nós. As Idis a priori
implicam, pelo contrário, o determinismo absoluto e o poder do
espírito humano para definir e abarcar todo o seu desenvolvimento"
(Intr. à Ia phil. anal. de 1'hist., págs.
149-150). O reconhecimento de leis a priori na história conduz ao
fatalismo: é esta a conclusão da filosofia da história de Hegel, tal
como do positivismo de Saint-Simon. Por outro lado, o pessimismo
de Schopenhauer é, também, determinista; e a todas as concepções
a priori, optimistas ou pessimistas, Renouvier opõe a sua filosofia
analítica da história, que tende "a determinar as origens e as
concatenações reais das ideias, das crenças e dos factos, sem
outras hipóteses a não ser as que sejam inevitáveis devido às
induções psicológicas e morais e ao grau de incerteza dos
documentos" (ib., p. 152). Através ,do estudo analítico da religião e
da moral das épocas primitivas, Renouvier chega a estabelecer a
função da liberdade humana na história. O ser e o dever ser não
coincidem na história. Segundo Renouvier, existe uma moral
diferente da história, isto é, das suas próprias realizações. Mas a
história, de certo modo, é uma função da moral, no sentido de que *
pensamento julga, corrige, refaz os juízos, os actos * os
acontecimentos históricos. E, por outro lado, a

moral é uma função da história, no sentido de que a própria


consciência moral se formou e desenvolveu através da história, que
é a própria experiência humana no seu desenvolvimento (Ib., págs.
551-2).
O progresso não é, pois, uma lei fatal. Considerá-lo
152

como tal significa debilitar a consciência imoral e dispor-se a


declarar como necessário e justo tudo o

que sucedeu (1b., p. 555). A história é o cenário da liberdade em


luta e só quando a liberdade se afirma e se realiza a si mesma, é que
a história progride e se molda à vida moral. Este é, com efeito, o
domínio da liberdade. Na Ciência da moral (1869), Renouvier vê, no
princípio de que "o homem está dotado de razão e se julga livre", o
fundamento necessário e suficiente de toda a moralidade humana.
"A moralidade consiste na capacidade e, praticamente, no acto de
determinar-se pelo melhor, isto é, de reconhecer, entre as
diferentes ideias do agir, a ideia particular de uma acção
obrigatória e

de conformar-se com ela" (Science de la morale, ed. 1908, p. 3).


Renouvier adopta totalmente o conceito Kantiano do imperativo
categórico e baseia-o no conhecimento originário que o homem
possui sobre o que deve ser e deve fazer, conhecimento oposto
àquele que lhe é dado pelas suas próprias manifestações (Ib., p.
215).

A convicção da problematicidade da história conduz Renouvier, na


Ucronia (a utopia da história) à surpreendente tentativa de
construir "a história apócrifa do desenvolvimento da civilização
europeia, como teria podido ser e não foi". Renouvier parte da
consideração de que "se numa época determinada os homens
tivessem acreditado firme e dogmaticamente na sua liberdade, em
vez de tentarem crer nela de maneira lenta e imperceptível,
mediante um progresso que é talvez a própria essência do
progresso, desde essa época a face do mundo teria
153

mudado bruscamente" (Uchro-nie, 2.a ed., 1901, p. IX). Baseando-se


nesta consideração, imagina os

traços que caracterizariam a história da Europa se

se admitisse a possibilidade real de que a série de acontecimentos,


desde o Imperador Nerva até ao

Imperador Carlos Magno, tivesse sido radicalmente diferente do


que de facto foi. Neste caso, a Europa encontrar-se-ia agora numa
condição de paz e de justiça social. As guerras religiosas teriam
acabado e teriam conduzido à tolerância universal. Também teriam
acabado as guerras comerciais, parecendo incapazes de criar o
monopólio único para que tende a avidez de cada nação, e as guerras
nacionais ou

de proeminência teriam, por seu lado, cedido o seu lugar à


implantação da liberdade e da moralidade no Estado. **Mém disso,
o trabalho seria tão honrado como o exercício mais digno da
actividade humana e a obra do governo considerada como um
trabalho de interesse público dirigido para o bem comum (1b., págs.
285-6).

A utopia histórica de Renouvier parece basear-se precisamente na


tese que nega: uma profecia, tanto no que se refere ao passado
como ao futuro, somente é possível se se admite a necessidade da
história. O carácter problemático da história torna indeterminadas
as relações entre os acontecimentos, e por isso não se pode
encontrar nenhuma relação nas hipóteses fictícias que se podem
formular, nos
se que podem ser introduzidos na consideração dos factos.
Renouvier dá-se parcialmente conta desta dificuldade e observa no
fim da obra que, admitido um desvio possível num certo momento do
curso

154

histórico, outros desvios -se apresentam noutros pontos, tornando


sumamente incerta e arbitrária a construção hipotética. Mas afirma
que a sua finalidade foi eliminar a ilusão do facto consumado, "a
ilusão da necessidade preliminar devido à qual o facto realizado
seria o único, entre todos os outros imagináveis, que teria podido
realmente suceder" Ub., p. 411). Dado que se trata de uma fusão,
deve poder-se dissipá-la reclamando o direito de introduzir na série
efectiva dos factos da história um certo número de determinações
diferentes das que se produziram, Esta tentativa terá, em todo o
caso, "obrigado o espírito a deter-se um momento no pensamento
dos possíveis que não se verificaram e elevar-se assim mais
resolutamente ao pensamento dos possíveis que estão ainda em
suspenso no mundo" (ib., p. 412). A utopia histórica, por outras
palavras, é sugerida a Renouvier pela exigência de subtrair o homem
à tirania do facto e da **Ausão da necessidade. E pode duvidar-se
da eficácia da utopia, mas não do valor da exigência.

§ 726. O CRITICISMO INGLÊS

A lógica (1874) de Lolze renovou e valorizou a distinção


estabelecida por Kant entre o aspecto psicológico e o aspecto
lógico-objectivo do conhecimento. Esta distinção converte-se em
característica das diversas tendências do neo-criticismo. O neo-
criticismo inglês desenvolveu-se em estreita conexão

com o pensamento de Kant, e especialmente, com


155

a escola de Marburgo, dado que apresenta como aspecto


característico uma certa tendência para o empirismo.

Shadworth H. lIodgson (1832-1912) é o autor

de uma vasta obra intitulada A metafísica da experiência (4 vols.,


1898), de outros livros e ensaios menores (Tempo e espaço, 1865; A
teoria da prática, 1870; A filosofia da reflexão, 1878; e de
numerosos ensaios publicados nas actas da Aristotelian Society e
no "Mind"). A metafísica da experiência é unia análise subjectiva da
experiência que tem por fim reconhecer o significado e as
condições da consciência, por um lado, e das realidades diferentes
da consciência, por outro. A análise da consciência neste sentido é,
segundo Hodgson (Met. of Exp.,
1, págs. IX-XI), a mesma que Kant tinha iniciado, mas liberta do
pressuposto a que o próprio Kant e os filósofos que dele receberam
a sua inspiração o
tinham vinculado, isto é, da distinção entre sujeito e objecto, dado
como verdade última fora de discussão. A distinção entre sujeito e
objecto é substituída em Hodgson pela distinção entre o conteúdo
objectivo da consciência e o facto ou o acto da sua percepção. A
análise do mais simples estado de consciência, por exemplo, de um
;som, revella imediatamente estes dois aspectos distintos e,
contudo, inseparáveis. "Designando o conteúdo pelo qual (whatness)
da percepção ou da experiência, podem chamar ao facto de que seja
percebido o seu que (thatness), isto é, a sua existência enquanto é
conhecida no presente. Nenhuma 'destas duas partes da
experliência total existe separadamente da outra: são
156
distinguíveis, inseparáveis e medidas uma pela outra" (Met. of Exp.,
1, p. 60). Essência e existência, qual o que, são os dois aspectos
opostos e conexos da experiência: a existência identifica-se com o
ser percebido, conforme a fórmula de BerLdIcy esse est percipi; a
essência é o próprio conteúdo da percepção, é o qual do que
existente.

Estas considerações de lIodgson, ainda que apresentadas em


polémica com Kant e com os kantianos, tendem para o mesmo
objectivo das correntes do neo-criticismo contemporâneo: o de
distinguir o
conteúdo objectivo da experiência (na validade que lhe é própria)
dos actos ou factos psíquicos aos quais se apresenta unido. Hodgson
distingue, com efeito, o aspecto psicológica do conhecimento
intelectual e

o seu aspecto lógico. Pode ser considerado como um processo ou


facto existente e denomina-se então pensamento, juízo ou
raciocínio, e pode ser considerado como um modo de conhecimento
e é então uma forma conceptual, que utiliza conceitos tais como

condição, possibilidade, alternativa, etc. (Ib., p. 383). Do mesmo


modo, a consciência (ou a experiência na sua totalidade) pode ser
considerada como uma realidade existente ou como conhecimento;
como realidade existente desenvolve-se para diante e move-se do
presente para o futuro; como conhecimento é reflexiva e do
presente volta ao passado. Por isso o problema da consciência pode
ser duplo: ou é problema relativamente à essência da consciência e
corresponde à metafísica, ou é problema relativamente à existência
da consciência, isto é, relativamente às condições do seu ser de
facto, e

157
respeito à psicologia. Hodgson revela assim, em todas as suas
análises, a preocupação de assinalar os limites precisos entre a
investigação -psicológica

e a gnoseológica, que é própria do neo-criticismo e que encontra a


sua mais decidida e rigorosa expressão na escola de Marburgo.

Mesmo quando Hodgson parte do princípio esse est percipi, e


afirma que o sentido geral da realidade é o facto de que se dá a
experiência (1b., p. 458), não se detém na tese idealista; analisa
assim a formação, no seio da experiência, de uma realidade
objectiva e, também, de unia realidade que existe
independentemente de ser percebida. ou pensada (mesmo quando
não é independente do acto de pensamento que a reconhece como
tal). Contudo, o "mundo externo" de que nos fala é considerado
externo unicamente em relação ao corpo, enquanto ocupa um lugar
no espaço juntamente com os outros objectos da experiência (Met.
of Exp., 1, p. 267).

De inspiração kantiana é, também, aquilo que Hodgson chama "a


parte construtiva da filosofia". A filosofia é uma análise da
experiência e a experiência não pode ser transcendida. Contudo, os
seus limites e as suas lacunas fazem pensar num "mundo invisível"
do qual não temos conhecimento positivo, e de que só possuímos
aquelas características gerais que podem inferir-se das suas
relações necessárias com o

mundo visível. Pretende neste ponto **combinuar a

Crítica da Razão Prática de Kant (1b., IV, p. 399). "Os sentimentos,


cuja eleição prática é um mandato da consciência e cujo triunfo é a
convicção da fé, são conhecidos e experimentados por nós
justamente

158

como sentimentos pessoais, apenas enquanto são sentidos por


certas pessoas relativamente a outras. Mas quando pensamos que o
seu triunfo se baseia providencialmente na natureza do universo,
não podemos pensar o próprio, universo senão como pessoal, apesar
de esta tentativa de realizar especulativamente o pensamento
falhar necessariamente e

se converter em contraditória" (ib., IV, p. 400). A consciência moral


é, pois, o fundamento da fé no mundo invisível, isto é, numa "força
divina que suporta todas as coisas -e que é distinta, mas
inseparável, tanto de nós próprios como do mundo visível e mesmo
do mundo invisível".

Encontram-se as -mesmas exigências na obra de Robert Adamson


(1852-1902), autor de duas monografias sobre Kant (1879) e sobre
Fichte (1881) e de vários escritos publicados depois da sua morte
com o título de O desenvolvimento da filosofia moderna (2 vols.,
1903). Adamson coloca explicitamente toda a -sua filosofia na
necessidade de um regresso à doutrina kantiana e de um exame
novo dos problemas tal como saíram das mãos de Kant (Phil. of
Katit, p. 186, Tre Developement, II, p. 13). A principal lição que tira
de Kant é a distinção entre o ponto de vista da psicollogia e o ponto
de vista da gnoseologia, distinção pela qual "a origem de certa
modificação especial da nossa experiência não pode determinar de
modo algum a sua validade ou o seu valor para o conhecimento" (The
Developement, 1, p. 245). Assim como a psicologia se

ocupa dos fenómenos da consciência enquanto experiências


imediatas e dos processos em virtude'dos
159

quais se desenvolve, por tais experiências, a distinção entre sujeito


e objecto, a gnoseologia, contrariamente, ocupa-se do valor ou da
validade dos conceitos baseados nesta distinção; e os seus
problemas surgem do reconhecimento da antítese, da qual a
psicologia traça a formação.

Nesta base, as análises de Adamson tendem a mostrar dois


princípios fundamentais. O primeiro é o da distinção entre o acto de
apreender e o conteúdo apreendido, distinção que, contudo, não
implica o isolamento recíproco ou a independência dos dois factos.
O segundo princípio é que os actos ou estados de consciência não
têm como objectos próprios o seu modo de existência (a sua
realidade como modificação de um sujeito). Por outras palavras,
uma ideia não pode ser considerada como um acto de conhecimento
interno que tenha por objecto a

própria ideia. O estado psíquico pelo qual o conteúdo é apreendido


não participa dos caracteres deste conteúdo: o acto de apreender o
vermelho não é, ele próprio, vermelho, bem como o acto de
apreender um triângulo não é triangular. Nós temos consciência nos
nossos estados mentais e através deles; mas não temos consciência
deles. Este segundo princípio corta a passagem para o idealismo
subjectivo, já que evita a redução do objecto conhecido a um

estado do sujeito cognoscente (The Developement,


1, p. 234).

Adamson não considera que a unidade da percepção seja um


princípio primitivo; será antes um
produto refinado do desenvolvimento da experiência. Tudo o que se
pode conceder à tese de Kant é que,

160

quando representamos um universo de factos relativos e conexos,


só os podemos representar em referência a uma experiência
consciente. Mas a experiência consciente tem infinitos graus e só o
último e mais completo deles pode ser caracterizado como
autoconsciência (Ib., págs. 255-6). Deste modo, Adamson conduz o
criticismo às teses empiristas.
O pensamento que organiza a experiência é, por sua vez, estimulado
e dirigido pela experiência; e as

categorias são unicamente os modos por que o espírito organiza e


acomoda as suas experiências, modos que foram também plasmados
pela experiência que organizam. Vislumbra-se na doutrina de
Adamson a tendência para o real-ismo, que devia tomar como

ponto de partida, precisamente, os -pressupostos que Adamson pôs


a descoberto.

Um traço notável da especulação de Adamson é a repulsa da ideia


romântica do progresso (tão grata aos idealistas e naturalistas do
seu tempo),

como uma aproximação gradual e contínua para um fim supremo, do


qual seriam realizações parciais ,todos os desenvolvimentos da
realidade cósmica e humana. A noção de fim, segundo ele, é uma
categoria prática que não encontra aplicação para além dos limites
da experiência individual. Por isso, o

decurso dos fenómenos não pode ser, de modo algum


e em qualquer domínio, concebido como uma sucessão de mudanças
predeterminadas por um objectivo final. Não obstante, Adamson
admite que, dado que o pensamento é sempre idealizante, pode
conceber-se um espírito infinito que esteja com o processo total da
realidade na mesma relação que o nosso

161

conhecimento está com a limitada porção da realidade que lhe é


dada. Mas crê que o problema da existência deste espírito não pode
ser definitivamente resolvido.

George Dawes Hicks (1862-1941) autor de um

estudo sobre Os conceitos de fenómeno e nómeno lia sua relação


segundo Kant (escrito em alemão e publicado na Alemanha, 1897) e
de dois livros, As bases filosóficas do teísmo (1937) e Realismo
crítico 1(1938), pode considerar-se discípulo, de Adamson. Hicks
toma como ponto de partida a distinção feita já por Hodgson e
Adamson, entre existência e essência, o qual e o que; e serve-se
dela para chegar à conclusão de que o objecto é apenas uma

fase mais completa e melhor determinada do próprio conhecimento.


Com efeito, a soma das características apreendidas de um qualquer
objecto (o conteúdo apreendido ou a aparência do objecto) nunca
iguala a soma das características que constituem a essência
completa (ou conteúdo) do próprio objecto. A primeira nunca pode
ser considerada como realidade existente porque é sempre uma
selecção das características constitutivas do objecto. Ela é o qual,
ea

essência total do objecto é o que; ou ainda, se se preferir, a


primeira é o fenómeno e a segunda é a realidade. O contraste entre
fenómeno e realidade é, pois, apenas um contraste entre uma
realidade parcial ou imperfeitamente conhecida nas suas
características. A função do juízo, ao qual se reduz a actividade
fundamental do conhecer, é a de captar um número cada vez maior
de características do objecto e acercar-se, portanto, cada vez mais
(Ia

162

realidade como tal. Este conceito da realidade, considerado como


termo final do processo cognitivo (mais do que como seu ponto de
partida), é o

**ii@z@smo que se encontra na escola de Marburgo.

§ 727. A FILOSOFIA DOS VALORES: WINDELBAND

As duas expressões máximas do criticismo germânico, são a Escola


de Baden e a Escola de Marburgo. Possuem em comum a exigência
abertamente kantiana de considerar a validade do conhecimento
independente da condição subjectiva ou psicológica em que o
conhecimento se verifica. A escola de Baden responde a esta
exigência com uma teoria dos valores considerados independentes
dos factos psíquicos que os testemunham. A escola de Marburgo
responde a esta exigência reduzindo o processo, subjectivo do
conhecer ao método objectivo que garante a validade do
conhecimento.

O fundador da escola de Baden foi Guilherme Winddiband (1848-


1915), professor em Zurique, Estrasburgo e Heidelberga e um dos
mais conhecidos historiadores da filosofia. O seu Manual de
história da filosofia é elaborado por problemas, sendo o
desenvolvimento histórico dos mesmos considerado como
relativamente independente dos filósofos que os abordam. As ideias
sistemáticas de Windelband estão contidas na colecção de ensaios
e discursos intitulados Prelúdios (1884, muito aumentada em
edições sucessivas). Outros dos seus escritos notá-
163
eis são: A liberdade do querer (1904), Princípios de lógica (1912) e
Introdução à filosofia (1914).

Windelband considera a filosofia como "a ciência crítica dos valores


udiversais". Os valores universais constituem o seu objecto; o
carácter crítico caracteriza o seu método. Por esta via encaminhou
Kant a filosofia. Kant foi o primeiro que distinguiu nitidamente o
processo psicológico, em conformidade com cujas leis os indivíduos,
os povos e a espécie humana alcança´m determinados
conhecimentos, do valor de verdade de tais conhecimentos. Todo o
pensamento que pretende ser conhecimento contém uma ordenação
das representações, que não é só produto de associações
psicológicas mas também a regra a que deve ajustar-se o
pensamento verdadeiro. Na multiplicidade de séries
representativas que se formam em cada indivíduo segundo a
necessidade psicológica da associação, há algumas que expressam
esta regra, a qual lhes confere a objectividade e é, portanto, o
único objecto do conhecer. Kant destruiu definitivamente a
concepção grega da alma como espelho passivo do mundo e da
verdade como cópia ou imagem de uma realidade externa. Para Kant,
o objecto do conhecimento, o que mede e determina a sua verdade,
não é uma realidade externa (que como tal seria inalcançável e
inverificável), mas a regra intrínseca do próprio conhecimento.
Posto isto, a tarefa da filosofia crítica é a de interrogar-se sobre a
existência de uma ciência, um pensamento que tenha um valor
absoluto e necessário de verdade; a existência de urna moral, isto
é, um querer e um agir que tenham valor absoluto e necessário de
bem;

164

e a existência de uma arte, ou seja, um intuir e um sentir que


possuam valor absoluto e necessário de beleza. Em nenhuma das
suas três partes a filosofia tem como objecto próprio os objectos
particulares que constituem o material empírico do pensamento, do
querer, do sentir, mas somente as normas

às quais o pensamento, o querer e o sentir devem conformar-se


para ser válidos e possuir o valor a que aspiram.

Por outras palavras, a filosofia não, tem por objecto juízos de


facto, mas juízos valorativos (Beurteilungen), isto é, juízos do tipo
"esta coisa é boa", que incluem uma referência necessária à
consciência que julga. Todo o juízo valorativo é, com efeito, a
reacção de um indivíduo dotado de vontade e sentimento ante um
determinado conteúdo representativo. O conteúdo representativo é
produto da necessidade natural ou psicológica; mas a reacção
expressa no juízo que o valora pretende uma validade universal, não
no sentido de que o juízo seja reconhecido de facto por todos, mas
unicamente rio sentido de que deve ser reconhecido. Este deve
possuir é uma obrigatoriedade que nada tem que ver com a
necessidade natural. "0 sol da necessidade natural afirma
Windelband (Prãludien, 4.a ed.,
1911, 11, págs. 69 e segs.), resplandece por igual sobre o justo e
sobre o injusto. Mas a necessidade, que observamos, de validade
das determinações lógicas, éticas e estéticas, é uma necessidade
ideal, uma necessidade que não é a do Müssen e do não-poder- ser-
de-outro-modo, mas a do Sollen e do poder-ser-de-outro-modo".
Esta necessidade ideal consti-
165
tui uma consciência normativa que a consciência, empírica encontra
em si e à qual deve conformar-se. A consciência normativa não é
uma realidade empírica ou de facto, mas um ideal, e as suas leis não
são leis naturais que devam necessariamente verificar-se em todos
os factos singulares, mas normas às quais devem conformar-se
todas as valorações lógicas, éticas e estéticas. A consciência
normativa é um sist ema de normas que, assim como valem
objectivamente, também devem valer subjectivamente, ainda que na
realidade empírica da vida humana só em parLe. A filosofia pode
também definir-se, por conseguinte, como "a ciência da consciência
normativa"; e como tal, ela própria é um conceito ideal que só se
realiza dentro de certos limites. A realização das normas na
consciência empírica constitui a liberdade, a qual se pode, por isso,
definir como "a determinação da consciência empírica por parte da
consciência normativa". A religião considera a

consciência normativa como uma realidade transcendente e


supramundana que Windelband designa por santo. "0 santo é a
consciência normativa do verdadeiro, do bem e do belo, vivida
como realidade transcendente". Tal realidade transcendente é
concebida pela religião com as categorias de substância e de
causalidade c.. portanto, como uma personalidade na qual é real
tudo o que deve ser e não o é o que não deve ser: como a realização
de todo o

ideal. Nisto consiste a santidade de Deus, Nisto também consiste a


antinomia insolúvel da religião. "A representação transcendente
deve identificar em

Deus a realidade e a norma, enquanto a necessidade

166
de libertação do sentimento religioso as divide. O santo deve ser a
substância e a causa do seu contrário. Disto depende a completa
insalubilidade do problema da teodiceia, o problema da origem do
mal no mundo" (Prãludien, 4.11 ed., 1911, p. 433).

Num ensaio de 1894, História e ciência natural, retomando e


criticando a ideia exposta por Dilthey na Introdução às ciências do
espírito (1883), Windelband delineou uma teoria da historiografia,
estabelecendo a distinção entre ciências naturais e ciências do
espírito. As ciências naturais procuram descobrir a lei a que
obedecem os factos e SãO, por isso, ciências noinotéticas; as
ciências do espírito, por outro lado, têm como objecto o singular na

sua forma historicamente determinada e são, por isso, ciências


ideográficas. As primeiras têm como objectivo final o
reconhecimento do universal; as segundas tendem, contrariamente,
para o reconhecimento do singular, quer seja um facto ou uma série
de factos, a vida ou a natureza de um homem ou de um povo, a
natureza e o desenvolvimento de uma língua, de uma religião, de uma
ordem jurídica ou

de qualquer produção literária, artística ou científica. As primeiras


são ciências de leis; as segundas, de factos. Windelband contrapõe
esta distinção de natureza puramente metodológica à distinção
objectiva estabelecida por Dilthey; mas é forçado a admitir que
nem mesmo Dilthey tinha compreendido esta distinção num sentido
puramente objectivo e que para ele a distinção entre os métodos e
a distinção entre os objectos são simultâneos (§ 736). Segundo
Windelband, um mesmo objecto pode ser estudado

167
por ambas as espécies de ciências e, por vezes, os

dois tipos de consideração entrecruzam-se numa mesma disciplina,


como sucede na ciência da natureza orgânica, a qual tem carácter
nomotético enquanto descrição sistemática e carácter ideográfico
ao considerar o desenvolvimento dos organismos sobre a

terra. As ciências ideográficas são essencialmente históricas,


sendo a finalidade da história fazer reviver o passado nas suas
características individuais, como se estivesse idealmente presente.
A história dirige-se para o que é intuível e a ciência da natureza
tende para a abstracção. O momento histórico e o momento
naturalista do saber humano não, se deixam reduzir, segundo
Windelband, a uma única fonte. "A lei e o acontecimento ficam um
ao lado do outro como últimas grandezas incomensuráveis

na nossa representação do mundo. Este é um dos pontos limites em


que o pensamento científico tem apenas por missão levar o
problema à luz da consciência, mas não está em condições de o
resolvem (Prãludien, 4aed., 1911, p. 379).

§ 728. RICKERT

Em estreita relação com Windelband está a filosofia de Heinrich


Rickert (1863-1936), que foi professor em Friburgo e Heidelberga.
Os seus escritos principais são: O objecto do conhecimento (1892);
Os limites da formação dos conceitos científicos (1896-1902);
Ciências da cultura e ciências da natureza (1899); A filosofia da
vida (1920), Sistema de

168

filosofia (1921); Problemas fundamentais da filosofia (1934);


Imediatez e significado (colecção póstuma de ensaios, 1939). A
obra de Rickert representa a sistematização dos temas filosóficos
de Windolband; mas não se pode dizer que com tal sistematização
tenham adquirido maior evidência e profundidade.

Em O objecto do conhecimento, Rickert critica todas as doutrinas


que interpretam o conhecimento como relação entre o sujeito e um
objecto transcendente, independente daquele, e com o qual o
próprio conhecimento deve conformar-se. A representação e a
coisa representada são ambas objectos e

conteúdos da consciência e, por isso, a sua relação não é a que


existiria entre um sujeito e uma realidade transcendente, mas a
que existe entre dois objectos ;do pensamento. Por conseguinte, o
critério e a medida da verdade do conhecimento (o seu verdadeiro
objecto) não é a realidade externa. Conhecer significa julgar,
aceitar ou refutar, aprovar ou reprovar: significa, pois, reconhecer
um valor. Mas enquanto valor, que é objecto de uma valoração
sensível (por exemplo, de um sentimento de prazer), vale somente
por determinado eu individual e num momento dado, o valor que é
reconhecido no juízo deve valer para todos e em todos os tempos. O
juízo que eu formulo, ainda que se refira a representações que vão
e vêm, tem um valor duradouro enquanto não puder ser diferente do
que é. No momento em que se julga, pressupõe-se algo que vale
eternamente, e

esta suposição é propriedade exclusiva dos juízos lógicos. Nestes,


eu sinto-me ligado por um senti-
169

monto de evidência, determinado por uma **patéacia à qual me


submeto e que reconheço como obrigatória. Este sentimento dá ao
juízo o carácter de no-, cessidade incondicionada. Mas tal
necessidade não tem nada que ver com a necessidade causal das
representações: é uma necessidade ideal, um imperativo cuja
legitimidade se reconhece e é aceite conscientemente. Neste
imperativo, neste dever ser, consiste a verdade do juízo. O objecto
do conhecimento, aquilo que dá ao conhecimento o seu valor de
verdade, é o dever ser, a norma. Negar a norma

é impossível, porque significa tornar impossível qualquer juízo,


inclusive o que nega. O dever ser precede o ser. Não se pode dizer
que um juízo é verdadeiro por exprimir o que é; mas só se pode
dizer que algo é se o juízo que o expressa é verdadeiro pelo seu

dever ser. O dever ser é transcendente relativamente


* toda a consCiência empírica individual, porque é
* consciência em geral, uma consciência anónima, universal e
,impessoal, à qual toda a consciência

individual se reduz ao expressar um juízo válido. Esta consciência


universal não é só lógica, mas também ética e estética. A oposiição
entre o teórico e o prático desvanece-se relativamente a ela, e
todas as disciplinas filosóficas encontram nela a sua raiz, já que a
filosofia tem precisamente por objecto os
valores, as normas e as formas do seu reconhecimento. Este
conceito de filosofia é confirmado por Rickert num ensaio que trata
precisamente deste tema (in "Logos", 1910). A filosofia deve
distinguir o mundo da realidade do reino dos valores. Estes últimos
não são realidades, mas valem e o seu reino
170

está 'para além do sujeito e do objecto. A filosofia deve também


mostrar a relação recíproca entre o mundo da realidade e o reino
dos valores. Esta relação é o acto de valorar, que expressa o
sentido do valor e que. por isso, determina uma terceira esfera, que
se situa junto à da realidade e à dos valores: o reino do significado.
O acto de valorar não tem uma existência psíquica porque se
encaminha, para além desta, para os valores; mas também não é um
valor; é um terceiro reino ao lado dos outros dois.

O Sistema de filosofia é a ampliação destes fundamentos e, ao


mesmo tempo, uma tentativa de classificação escolástica dos
valores. Ás três esferas mencionadas Rickert faz corresponder, no
homem, três actividades que as expressam: o explicar, o entender e
o significar. E distingue seis campos ou domínios do valor: a lógica,
que é o domínio do valor-verdade; a estética, que é o domínio do
valor-beleza, a mística que é o domínio da santidade impessoal, a
ética, que é o domínio da moralidade; a erótica, que é o domínio da
felicidade, e a filosofia religiosa, que é o domínio da santidade
pessoal. A cada um destes domínios faz corresponder um bem
(ciência, arte, um todo, comunidade livre, comunidade de amor,
mundo divino), uma relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração,
acção autónoma, unificação, devoção), assim como uma determinada
intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo,
moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo). Mas neste método
classificativo e escolástico, em que os problemas ficam
171

suprimidos e ocultos, dilui-se a mais profunda exigência dessa


filosofia dos valores que Rickert quer defender. E os sarcasmos que
num escrito polémico, A filosofia da vida, dirige a Nietzsche,
Dilthey, Bergson e outros, frente aos quais afirma que a filosofia
não é vida, mas reflexão sobre a vída, dissimula mal o seu
ressentimento relativamente a umponto de vista que acentua um
aspecto do homem que não encontra reconhecimento nem
**caNmento algum na **fossillização escolástica a que ele próprio
reduziu o mundo dos valores. Estes são, com efeito e antes de mais,
possibilidades da existência humana e, precisamente por isso, são
ignorados ou negados por Rickert.

A parte mais interessante da sua filosofia é a que se refere à


distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito,
distinção que Rickert toma substancialmente de Windelband e que
comenta largamente na sua obra Sobre os limites da formação do
conceito científico que tem como subtítulo "Introdução lógica às
ciências históricas". A distinção entre ciências naturais e ciências
históricas não se baseia no objecto, mas no método. A mesma
realidade empírica pode ser considerada, segundo um e outro ponto
de vista lógico, como natureza ou como

história. "É natureza se a considerarmos relativamente ao universal


e converte-se em história se a considerarmos relativamente ao
particular e ao individual" (Die Grenzen, 2.a ed., 1913, p. 224). O
que é individual e singular interessa às ciências naturais só quando
pode ser expresso por uma lei universal; mas constituí, em troca, o
único objecto da investi-
172

gaÇão histórica. Nem todos os acontecimentos individuais suscitam,


contudo, o interesse histórico, mas apenas aqueles que têm uma
particular importância e significado. O -historiador efectua e deve
efectuar uma selecção, e o critério desta selecção será constituído
pelos valores que integram a cultura. Deste modo, o conceito de
uma determinada individualidade histórica deverá ser constituído
pelos valores apreendidos ou apropriados pela civilização a que ela
pertence. O procedimento histórico é uma contínua referência ao
valor: o que não tem valor é insignificante historicamente e põe-se
de parte. Mas nem por isso o historiador formula um juízo de valor
sobre os acontecimentos de que trata. O historiador, como tal, não
pode formular nenhum juízo sobre o valor de um qualquer facto;
procura reconstituir o facto só porque tem um valor. Por outras
palavras, o valor é pressuposto pela própria história, que não o cria,
mas que se limita a, reconhecê-lo onde se encontra. Os valores em
si não podem, segundo Rickert, ser historiados, embora
resplandeçam no seu firmamento imutável que constitui o guia e a
orientação da história. Rickert polemiza, por isso, contra todas as
formas de historicismo, que equipara ao relativismo e ao nülismo
(Ib., p. 8.). Assim, a validade do conhecimento histórico depende da
validade absoluta dos valores a que é referido. "A validade da
representação histórica, afirma Rickert, não pode deixar de
depender da validade dos valores a que é referida a realidade
histórica e, por isso, a pretensão de validade incondicional dos
conceitos históricos pressupõe o reconhe-
173

(Ib., p. 389). Ora, segundo Rickert, esta pretensão é antes um


direito. A história não é o fundamento possível de nenhuma
"intuição do mundo" limitada ou parcial; e a filosofia tem como única
tarefa dirigir-se, seguindo os valores que a história encarna, para o
intemporal e o eterno.

§ 729. OUTRAS MANIFESTAÇÕES DA FILOSOFIA DOS


VALORES

A filosofia dos valores teve, na Alemanha, nos primeiros decénios


deste século, numerosos partidários, que renovaram,
desenvolvendo-os em diversas direcções, os temas propostos por
Windelband e Rickert e muitas vezes influenciando-os pelos de
outras correntes contemporâneas.

Bruno Bauch (1877-1942), numa monografia sobre Kant (1917), que


é a sua obra principal, interpreta a coisa em si no sentido da
filosofia dos valores como regra lógica que vale, independentemente
do nosso entendimento, para o nosso entendimento; e segue,
contrariamente, a tendência da escola de Marburgo ao eliminar o
**&afismo kantiano entre intuição e categoria e ao considerar o
conhecimento como um progresso infinito do pensamento para a
determinação da experiência.

Por outro lado, o germano-americano Hugo Münsterbera

g (1,863-1916), autor de uma Filosofia dos valores (1908) e de


numerosas obras de psicologia, procura fazer uma síntese da
filosofia dos

174

valores com o idealismo de Fichte. Põe como fundamento de todos


os valores uma actividade livre, um super-eu ou eu universal do qual
cada eu singular é uma parte. Esta actividade, de cunho fichteano,
encontra a sua expressão originária no valor religioso, isto é, na
santidade, à qual se reduzem, portanto, todos os outros valores.
Estes são agrupados em duas grandes classes: valores imediatos ou
vitais e valores criados ou culturais. Cada uma destas classes
divide-se numa esfera tripla: o mundo externo dos objectos, o
mundo dos sujeitos e o

mundo interno. Em cada uma destas classes de valores, Münsierberg


estabelece divisões e subdivisões, até apresentar um quadro
escolástico exaustivo de todos os valores possíveis. Mas nesta
sistematização de Münsterberg, assim como na de Rickert, a
filosofia dos valores revela claramente o seu carácter pesado e
dogmático: os problemas são, não resolvidos, mas simplesmente
eliminados com a

posição arbitrária de um determinado valor. Muito mais benemérita


é a obra de MUnsterberg no campo da psicologia e principalmente
da psicologia aplicada (psicoteonia) à qual dedicou um importante
trabalho (,Fundamentos de psicotecnia, 1914).

Em Itália, foi seguida uma direcção semelhante por Guido Della


Vafle (1884-1962) que utilizou a

filosofia dos valores como fundamento de uma teoria da educação


(Teoria geral e formal do valor como fundamento de uma pedagogia
filosófica. As premissas da axiologia pura, 1916; A pedagogia
realista como teoria da eficiência, 1924).

175

Teve, pelo contrário, um êxito decididamente teológico na filosofia


dos valores. o trabalho do americano Wilbur Marshall Urban (1873-
1952) que se inspirou principalmente em Rickert (caloração, a sua
natureza e as suas leis, 1909; O fundo inteligível, 1929; Humanidade
e divindade, 1951).

§ 730. A ESCOLA DE MARBURGO: COHEN

Na escola de Marburgo, a direcção lógico-objectiva do criticismo


encontra a sua mais rigorosa e

completa expressão. A distinção kantiana entre conhecimentos


objectivamente válidos e percepções ou experiências que são meros
factos psíquicos, é levada até às suas últimas consequências. A
ciência, o conhecimento, o pensamento e a própria consciência
reduzem-se ao seu conteúdo objectivo, à sua validade puramente ló
gica, absolutamente independente do aspecto subjectivo ou
psicológico pelo qual se inserem na vida de um sujeito psíquico.

Em certo sentido, a escola de Marburgo representa a antítese


simétrica do idealismo pós-kantiano; este considera a
subjectividade pensante como única realidade, aquela considera
como única realidade a objectividade pensável. Mas a objectividade
pensável não tem nada que ver com a objectividade empírica (isto é,
com as coisas naturais) a qual é só uma sua determinação particular.
Deste modo, os

filósofos da escola de Marburgo são levados a integrar Kant com


Platão, que viu na ideia pura o

176

significado e o valor objectivo de todo o conhecimento possível.

O fundador da escola de Marburgo é Hermann Colien, (1842-1918),


que foi professor em Marburgo e cuja actividade começou com
trabalhos históricos sobre Kan-t (A teoria de Kant sobre a
experiência pura, 1871; O fundamento da ética kantiana, 1871; A
influência de Kant na cultura alemã, 1833; O fundamento da
estética kantiana, 1889). Concomitantemente com os estudos
Kantianos, Cohen cultivou os estudos de história das matemáticas,
atendendo sobretudo ao cálculo infinitesimal (0 princípio do método
infinitesimal e a sua história, 1883); o seu estudo sobre Platão é
também evidente em cada página da sua obra fundamental, Sistema
de filosofia, dividida em três partos: Lógica do conhecimento puro,
1902; Ética do querer puro, 1904; Estética do sentimento puro,
1912. Cohen dedicou também dois escritos ao problema religioso:
Religião e eticidade, 1907, e O conceito da religião no sistema de
filosofia, 1915. Foi ainda defensor de um socialismo não materialista
e da superioridade espiritual do povo alemão (Sobre o carácter
próprio do povo alemão, 1914). À tendência sensualista e
eudemonista da filosofia inglesa, Cohen contrapõe a tendência
espiritualista da filosofia alemã, que faria desta a legítima
continuadora da grega. E vê realizada em
Kant "a espiritualidade ética da Alemanha".

A primeira e fundamental preocupação de Cohen é a de eliminar do


pensamento e do conhecimento todo o elemento subjectivo. O ser e
o pensamento coincidem; mas o pensamento é o pensamento do
177

conhecimento, isto é, dos conteúdos objectivamente válidos do


próprio conhecimento (Logik, 2.a ed.@
1914, p. 15). Isso só se encontra e apenas é válido no conhecimento,
quando se trata do pensamento da ciência e da unidade dos seus
métodos; deste modo a lógica, que o observa e constitui a sua
autoconsciência, é sempre únicamente lógica da matemática e das
ciências matemáticas da natureza (Logik, p. 20). Os termos que
costumam expressar o aspecto subjectivo do pensamento, tal como
"actividade", "autoconsciência", "consciência", são reduzidos por
Cohen a um significado lógico-objectivo.

"A própria actividade é o conteúdo, a produção é o produto, a


unificação é a unidade. Só nestas condições a característica do
pensamento se deixa elevar ao ponto de vista do conhecimento
puro" (Ib., p. 60). A unidade transcendental da consciência, de que
fala Kant, não é mais do que "a unidade da consciência científica"
(Ib., p. 16). E a consciência, em geral, não é mais do que a própria
categoria da possibilidade, uma espé cie determinada dos juízos que
se referem ao método (Ib., p. 424). À consciência como categoria
da possibilidade se reduzem, pois, não só a lógica, que considera a
possibilidade das ciências matemáticas da natureza, como também a
estética e a ética, que consideram a possibilidade do sentimento e
da acção moral. Lógica, estética e ética são as três ciências que
abarcam todo o
campo da filosofia.
Cohen rejeita a distinção kantiana entre intuição e pensamento,
distinção pela qual o pensamento teria o seu princípio em algo que
lhe seria externo.
178

O pensamento não é síntese mas antes produção (Erzeugung), e o


princípio do pensamento não é um dado, independente dele de um ou
outro modo, mas a origem (Urspring). A lógica do conhecimento puro
é uma lógica de origem Qb., p. 36). Mas a produção, como acto
puramente lógico, não é mais do que a produção de uma unidade ou
de uma multiplicidade lógica, isto é, unificação ou distinção: juízo. E
distingue quatro espécies de juízos: leis do pensamento, juízos da
matemática, juízos das ciências matemáticas da natureza e juízos
de método.

As leis do pensamento são os juízos de origem, de identidade e de


contradição; mas, entre estes, o

mais universal e fundamental é o juízo de origem. * este juízo se


deve que -alguma coisa seja dada. * "dado" não é um material bruto
oferecido ao pensamento mas, como se torna nítido nas
matemáticas, é o que o próprio pensamento pode encontrar. Um
dado é, neste sentido, o sinal x das matemáticas, que significa não a
indeterminação mas a

determinabilidade (ib., p. 83). Entre os juízos da matemática


(realidade, pluralidade, totalidade), o da realidade é fundamental. O
juízo de realidade é sempre um juízo de unidade; e daqui deriva
também o valor que o indivíduo ou pessoa tem no campo moral: o
indivíduo é, com efeito, a unidade última e indivisível, o absoluto
(1b., p. 142).
Os juíZos das ciências matemáticas da natureza são os de
substância, lei e conceito. A substância resolve-se na relação e a
relação não é mais do que a passagem de um juízo a outro, isto é, o
movimento em sentido lógico. O movimento implica a

179

resolução do espaço (conjunto de relações) no tempo (conjunto de


conjuntos) (Log., p. 231). Lei e conceito unificam-se na categoria do
sistema, que é a

fundamental. "Sem a unidade do objecto, afirma Cohen (1b., p. 339),


não há unidade da natureza. Mas o objecto tem a sua unidade não na
causalidade, mas no sistema. Portanto, a categoria do sistema, como
a categoria do objecto, é a categoria da natureza. Por isso
determina o conceito do objecto como objecto da ciência
matemática da natureza". O conceito não é nunca uma totalidade
absoluta, mas somente o princípio de uma série infinita que avança
de termo a termo.

Os juízos de método são os da possibilidade, da realidade e da


necessidade. Como se viu, a possibilidade identifica-se com a
consciência, que é o

horizonte de todas as possibilidades objectivas. A realidade


(Wirklichkeit) não consiste na sensação, mas na categoria do
singular, pela qual, na unidade do sistema do conhecimento, se tende
a procurar e a individualizar a unidade de cada um dos seus
objectos (1b., p. 471). Quanto à necessidade, é a

categoria que torna possível unir o caso individual e o universal na


lei científica e é, por isso. o fundamento da dedução e do
procedimento silogístico (1b., págs. 256 e segs.). Ã dedução reduz-
se também a indução, a qual não é mais do que uma dedução
d'isjunti-va. No âmbito desta categoria encontram-se os
fundamentos da ló gica do raciocínio, em que termina e culmina a
lógica do juízo.

A lógica de Cohen, nascida como investigação transcendental sobre


o conhecimento científico, desen-
180

volveu-se como uma duplicação da própria ciência, duplicação que


pretende fundar as bases da mesma, mas que não consegue mais do
que torná-las rígidas, eliminando aquele carácter funcional e
operativo que as torna instrumentos prontos e eficazes da
investigação científica. Reduzindo o seu conhecimento ao seu
conteúdo objectivo, a indagação sobre a ciência converte-se em
investigação sobre conteúdos objectivos da ciência; mas esta
indagação não pode ter a pretensão, que conserva em Cohen, de
fundar a validade de tais conteúdos de uma maneira diferente da
que a ciência utiliza operatoriamente e, por assim dizer,
caminhando. Pode dizer-se, pois, que a lição confiada implicitamente
no princípio de Cohen foi mais efiicazmente realizada pelas
correntes metodológicas, que evitam hipostasiar os resultados

e os procedimentos do pensamento científico num sistema de


categorias.

Juntamente com a lógica, Cohen admite, como ciências filosóficas, a


ética e a estética, entendidas respectivamente como "ciência do
querer puro" e

"ciência do sentimento puro". Mas, neste terreno, a obra de Cohen é


muito mais débil e menos original que no da lógica.
O objecto da ética é o dever ser (Sollen) ou ideia: e a -Ideia não é
mais do que "a regra do uso prático da razão". "Sóra-ente no dever
ser consiste o querer. Sem dever ser não há querer, mas
unicamente desejo. Através do dever ser a vontade realiza e
conquista um autêntico sem (Ethik, 2.a ed.,
1907, p. 27). A ética é uma ciência pura, precisa-
181

mente enquanto considera o dever ser como condição e


possibilidade do querer.

O dever ser é, como a regra do pensamento, uma

lei de unidade. A acção a que ele obriga é a unidade de acção; e na


unidade de acção consiste a

unidade do homem (1b., p. 80). Mas o homem não é unidade, isto é,


individualidade e pessoa, no seu isolamento, mas apenas como
membro de uma pluralidade de indivíduos, e toda a pluralidade
pressupõe, finalmente, uma totalidade. Por seu lado, toda a
totalidade tem graus diversos até à sua verdadeira unidade, que é a
humanidade no seu conjunto, na

qual apenas o homem individual encontra a sua realização. Cohen


insiste, por isso, na fórmula do imperativo categórico de Kant, que
prescreve a cada um tratar a humanidade, tanto nas outras pessoas
como em nós mesmos, sempre como um fim, nunca como um meio. O
sistema dos fins é o objectivo final do dever ser moral e, neste
sistema dos fins, Cohen vê a ideia do socialismo, a qual exige,
precisamente, que o homem valha como fim para si mesmo e seja
reconhecido na liberdade e dignidade da sua pessoa. "Como se
concilia -pergunta Cohen (Ib., 2.a ed., 1907, p. 322)-a dignidade da
pessoa com o facto de que o valor do trabalho seja determinado no
mercado como o de uma mercadoria? Este é o grande problema da
política moderna e, por isso, também da ética moderna". Contudo,
Cohen é contrário ao

socialismo materialista de Marx (1b., págs. 312 e

segs.), e concebe a marcha da humanidade para a

realização do reino dos fins como uma exigência

182

moral implícita -no aperfeiçoamento progressivo da humanidade


como tal, perante o qual devem inclinar-se as formas do direito e do
estado.

O mesmo ideal da humanidade domina a estética de Cohen. O


sentimento puro, que é o órgão da estética, assim como o querer
puro o é da ética, é o amor dos homens na totalidade da sua
natureza, que é também natureza animal. Se a obra de arte não se
reduz à pura materialidade do mármore e da tela, isso deve-se ao
facto de ser a representação de um ideal de perfeição humana, do
qual tira o seu

valor eterno.

A religião não ;tem lugar no sistema de Cohen. Enquanto :aplica a


Deus o conceito de pessoa, a

relIgião pertence ao mito e fica encerrada no círculo do


antropomorfismo. Filosoficamente falando, Deus não é mais do que
a ideia da Verdade como fundamento de uma totalidade humana
perfeita. O seu
conceito e a sua existência significam somente que não é uma ilusão
crer, pensar e conhecer a unidade dos homens. Deus proclamou-a,
Deus garante-a; à parte isto, Deus não explica nada nem significa
nada. Os atributos, em que consiste a sua essência, não são
propriedade da sua natureza, mas antes as direcções nas quais se
irradia toda a sua relação com os

homens e nos homens" (Ethik, p. 55). Deus é, pois, um simples


conceito moral; e, na moral, a religião encontra a sua única
justificação possível, Quando, em troca, atribui a Deus
características (como as

de vida, espírito, pessoa, ete), que a moral não justifica, desemboca


fatalmente no mito.

183

§ 731. ESCOLA DE MARBURGO: NATORP

O outro representante da escola de Marburgo é Paul Natorp (1854-


1924), autor de numerosos estudos históricos (sobre Pestalozzi,
Herbart, Kant), o

mais importante dos quais versa sobre Platão: A doutrina platónica


das ideias (1903). Natorp recolhe e justifica historicamente nesta
obra a interpretação de Platão exposta esporádica e
ocasionalmente nas obras de Cohen. Esta interpretação é a antítese
da tradicional, iniciada por Aristóteles, segundo a qual o mundo das
ideias é um mundo de objectos dados, de super-coisas, análogas e
correspondentes às coisas sensíveis. Neste sentido, as ideias não
são objectos mas 1&s e métodos do conhecimento. Com efeito, são
concebidas por Platão como objectos do pensamento puro, e o
pensamento puro não pode impor uma realidade existente, ainda que
absoluta, mas

unicamente funções cognitivas que valham como

fundamentos da ciência. "A ideia expressa o fim, o ponto


infinitamente afastado, ao qual conduzem os caminhos da
experiência; são, por isso, as leis do procedimento científico"
(Matos Ideenlehre, págs.
215, 216). A "participação" dos fenómenos no mundo ideal significa
que os fenómenos são graus de desenvolvimento dos métodos ou
procedimentos que são as ideias. E que as ideias sejam arquétipos
dessas imagens que são as coisas, significa somente que o

conceito puro é o originário e que o empírico é o derivado (1b., p.


73). A dialéctica platónica é, portanto, a ciência do método. E a
importância de Platão consiste em ter descoberto a logicidade como

184

NATORP

legalidade do pensamento puro (Ib., p. 1). Natorp põe, por isso


mesmo, como subtítulo da sua monografia platónica o de "Guia para
o idealismo", entendendo por idealismo (do mesmo modo que Coheri)
o seu neo-criticismo objectivista.

A principal obra de Natorp é a que versa sobre os Fundamentos


lógicos das ciências exactas (1910), cujos resultados são
recapitulados na breve, mas completa, apresentação da sua
doutrina, intitulada Filosofia (1911). Dedicou, porém, uma grande
parte da sua actividade à psicologia e à pedagogia (Pedagogia social,
1899; Pedagogia geral, 1905; Filosofia e
pedagogia, 1909; Ensaios de pedagogia social, 1907; Psicologia geral,
1912). Natorp foi, como Cohen, defensor de um socialismo não
materialista (Idealismo social, 1920); e também, como Cohen, da
superioridade e primado espiritual do povo alemão (A hora dos
alemães, 1915; Guerra e paz, 1916; A missão mundial dos alemães,
1918).

Segundo Nalorp, "a ciência não é mais do que a consciência no ponto


mais elevado da sua clareza e determinação. O que não pudesse
elevar-,se ao nível da ciência seria apenas uma consciência obscura
e, por conseguinte, não uma consciência no pleno sentido da palavra,
se é que consciência significa clareza e -não obscuridade" (Phil. und
Pãd., 2.a ed
1923, p. 20). A filosofia é também conhecimento; mas conhecimento
que não se dirige ao objecto, mas sim a unidade do próprio
conhecimento. O objecto do conhecimento é inesgotável e o
conhecimento pode aproximar-se mais ou menos dele, mas nunca o
alcança. Todo o conhecimento é um pro-
185

cesso infinito, mas é um processo que não está privado de lei nem
de direcção. Se o objecto do conhecimento é o ser, é preciso dizer
que só no

eterno progresso, no método do conhecimento, o ser alcança a sua


concretização e determinação. O ser

é o eterno x (o que deve ser conhecido) que cada passo do


conhecimento determinar melhor; mas o

valor da determinação depende exclusivamente do método do


conhecimento, do seu proceder; neste sentido a filosofia é,
essencialmente, método.

Também Natorp, divide a filosofia em lógica, ética e estética. A


lógica considera o método do conhecimento tal como está em acto
nas ciências exactas, isto é, na matemática e nas ciências
matemáticas da natureza. Matemática e lógica são
substancialmente** Uônticas. "A matemática versa sobre o
desenvolvimento da lógica; em particular, sobre a

sua última unidade central, aquela à qual toda a

ló-ica deve ser reconduzida" (Phil., 3 a ed., 1921, p. 41). Esta


unidade central da lógica é o pensamento, como criação ou processo
vivente. A forma originária do juízo, na qual o pensamento se
expressa, não é A=A, mas XA, onde X representa um problema, uma
indeterminação, que o pensamento procura resolver numa certa
direcção. Esta resolução é um processo de separação e unificação,
no qual as variantes não são dadas (como acreditava Kant) mas, são
consideradas pelo pensamento juntamente com a característica que
lhes é comum.

Deste processo de separação e unificação surge toda a matemática.


Mas separação e unificação não são mais do que relações; por isso,
todos os conceitos da

186

matemática e, em geral, das ciências matemáticas da natureza, são


relações e relações de relações. A isto se reduzem também o
espaço e o tempo, que não são formas dadas pela intuição, mas
unicamente produtos da conexão dinâmica em que consiste o
pensamento. Espaço e tempo condicionara a experiência no sentido
de que as regras do pensamento encontram neles a sua
concretização; tais regras são aplicadas de modo a produzirem a
experiência imediata do objecto, isto é, o próprio objecto, numa
determinação que não (possui nas regras gerais do intelecto (Phil.,
p. 54). A intuição empírica não constitui, portanto, um acréscimo ou
um contributo externo para o pensamento, mas o realizar-se do
próprio pensamento na sua determinação final. "A singularidade do
objecto, que implica como condição própria a singularidade da
ordem espaço-tempo, não pode significar mais do que a
determinação perfeita: a determinação na qual nada deve
permanecer indeterminado" (Ib., p. 55). O (lado situa-se nesta
doutrina não já no começo do processo do conhecimento, como um
seu material em bruto (tal como na doutrina kantiana), mas no fim
do processo, como sua determinação final.

Mas com isto o dado torna-se o "dever ser" da experiência e situa-


se no próprio coração da lógica. "0 dever ser, afirma Natorp,
mostra-se como o mais profundo fundamento de toda a validade de
ser que seja própria da experiência. A lei do dever ser deve ser
considerada em função do progresso infinito da experiência. Assim,
encontramo-nos lançados na

eterna marcha da experiência; a única condição é que

187

não fiquemos parados num determinado estádio dela, que não nos
detenhamos aí, mas que avancemos sempre" (Ib., p. 71). A ética é
precisamente a ciência deste dever ser, o qual, enquanto lei -da
vontade, prescreve o progresso para uma comunidade total e

harmoniosa, o estádio perfeito cujo ideal foi expresso por Platão.

Nas suas obras Pedagogia social e Religião nos


limites da humanidade, Natorp debruça-se sobre o

problema da arte e da religião. A arte tem como objecto o


absolutamente individual, em cuja determinação podem entrar,
porém, elementos de carácter universal (pertencentes; à ordem
científica e moral), mas apenas sob a condição de perderem a sua
universalidade e de se fundirem na individualidade do objecto. Por
isso a análise estética, quando analisa os elementos da obra de arte,
depara a certa altura com o irracional que não é redutível ao
conceito que por isso é chamado intuição, fantasia ou sentimento.
Quanto à religião, ela tom para Natorp, o

mesmo conteúdo objectivo das três ciências filosóficas (!lógica,


ética e estética) mas vivido sob a forma de subjectividade, isto é,
da intimidade espiritual. Apesar disso, a religião faz desta
subjectividade um

objecto -Deus ou o -divino -que considera superior à realidade do


mundo e da experiência, como um supramundo ao qual se subordinam
as próprias leis do mundo empírico. A religião deveria, segundo
Natorp, reduzir-se "aos limites da humanidade", isto é, eliminar a
transcendência do supramundo e constituir-se como "religião sem
Deus", analogamente

188

psicologia, que se tornou uma ciência quando se

constituiu como <psicologia sem alma".

§ 732. CASSIRER
A escola de Marburgo influiu eficazmente sobre a filosofia alemã
dos primeiros decénios deste século; as ressonâncias do seu
princípio fundamental (redução do conhecimento a objectiVidade
pensável) notam-se também em orientações filosóficas diversas: na
filosofia dos valores, na fenomenologia e em certas formas de
realismo (como a teoria dos objectos). A interpretação ética do
socialismo, proposta por Cohen e Natorp, encontrou também
numerosos continuadores; entre outros, Karl Vorlânder, autor de
um estudo comparativo de Kant e-Marx, e Eduard Bernstein,
discípulo de Marx, autor de uma obra intitulada Sobre a história e a
teoria do socialismo (1901).

A doutrina da escola de Marburgo teve uni

desenvolVimento notável na obra de Ernst Cassirer (1874-1945),


que foi professor em Berlim e Hamburgo e, nos últimos anos, na
Universidade de Yale, na América. Cassirer é autor de estudos
históricos fundamentais sobre o Renascimento e o Iluminismo,
volume de monografias sobre Leibniz (1902), Kant (1918) e
Descartes (1939), e de uma vasta obra sobre o Problema do
conhecimento na filosofia e

na ciência da época moderna (4 vols., 1906-1950).


O pensamento teórico de Cassirer é exposto nas

obras Conceito de substância e conceito de função (1910); A teoria


da relatividade de Einstein (1921);

189

A forma do conceito no pensamento mítico (1922); Filosofia das


formas simbólicas (3 vols., 1923-29). As últimas obras de Cassirer
são o Ensaio sobre o homem (1944), que resume os resultados mais
importantes da sua especulação, e O mito do Estado (1946).

A originalidade da posição de Cassirer em relação à escola de


Marburgo está no facto de acentuar a importância da expressão
simbólica, isto é, da linguagem, na constituição de todo o mundo do
homem, desde o mundo da ciência até ao do mito, da reli-ião e da
arte. A sua doutrina enquadra-se portanto, mesmo utilizando um
ponto de vista específico, naquele vasto moVimento da filosofia
contemporânea que considera precisamente a linguagem, como
objecto primeiro e privilegiado da indagação filosófica. Mas, por
outro lado, a investigação de Cassirer permanece ligada à
orientação da escola de Marburgo na medida em que tenta
encontrar as

origens dos objectos da ciência ou das outras actividades humanas


nas estruturas que garantem a valida-de de tais objectos.

Em primeiro lugar essas estruturas são funções e não substâncias.


Na sua obra intitulada Conceito de substância e conceito de função,
Cassirer estabelece uma posição entre os dois conceitos e nota
como a ciência tinha abandonado, a partir dos Princípios da
mecânica (1894) de Hertz, o conceito de substância e,
simultaneamente, a noção da ciência como

imagem das substâncias naturais. O predomínio do conceito de


função implica o reconhecimento do valor do signo; e ao reconhecê-
lo aparece-nos como

190

decisiva a finição constitutiva da linguagem em relação aos objectos


de que se ocupa a ciência. A obra seguinte de Cassirer, Filosofia das
foi-mas simbólicas, estende estas considerações do mundo da
ciência à totalidade do mundo do homem. **Ndla, a "crítica, da
razão científica", isto é, a indagação sobre a validade do
conhecimento científico, torna-se uma "crítica da civilização", isto
é, uma indagação sobre as formas específicas da civilização: o mito,
a arte, a religião, a própria ciência e, em primeiro lugar, o

instrumento que está na origem da validade de tais formas, ou seja,


a linguagem. Deste ponto de vista, a linguagem não é apenas, nem
principalmente, um

instrumento de comunicação. É antes a actividade que organiza a


experiência e a conduz do mundo passivo das impressões puras para
a autêntica objectividade racional. Para justificar esta passagem
Colien e Natorp recorriam, assim como Kant, às categorias, Cassirer
recorre à expressão simbólica. "0 símbolo, afirma, não é o
revestimento meramente acidental do pensamento mas o seu orgão
necessário e essencial. Ele não serve apenas para comunicar um
conteúdo conceptual já construído mas

é, pelo contrário, o instrumento em virtude do qual esse conteúdo


se constitui e adquire a sua formulação acabada. O acto da
determinação conceptual de um conteúdo ocorre simultaneamente
com o acto de fixação desse conteúdo num qualquer símbolo
característico."(Phil. der symbolischen Formen, 1, lntr., § 11). E ao
participar na constituição dos conceitos, o símbolo expressivo
participa na constituição do próprio objecto real, já que a distinção
entre o
191

subjectivo e o objectivo, na qual se baseia todo o conhecimento


válido, só se pode fazer a partir dos conceitos e das suas
expressões simbólicas.
Deste ponto de vista, a tarefa da filosofia já não é a de remontar
ao imediato, ao primitivo, ao dado originário, mas antes a de
compreender a via pela qual este dado se transforma, com a
expressão simbólica, numa realidade espiritual. "A negação das
formas simbólicas, em vez de apreender o conteúdo da vida, destrói
a forma espiritual à qual esse conteúdo se encontra
necessàriamente ligado" (Ib., Intr., § IV). E do mesmo modo o
progresso da linguagem não consiste em avizinhar-se da realidade
sensível até quase integrá-la em si mesma, mas antes em afastar-se
dela de forma cada vez mais radical, até excluir toda a identidade
directa ou indirecta entre realidade e símbolo. "O valor e a
natureza específica da linguagem, assim como da actividade
artística, residem não na vizinhança com o dado imediato mas no seu
progressivo afastamento, dele. Esta distância em relação à
existência imediata e à experiência imediatamente vivida é a
condição essencial da perspicácia e do conhecimento da linguagem.
Esta começa sómente onde acaba a relação directa com a impressão
e a emoção sensíveis" (1b.,
1, 1, cap. 11 § 2). A diferença entre a linguagem humana e as
"manifestações linguísticas articuladas" dos animais superiores
consiste na ausência, nestas manifestações, do afastamento em
relação à sensibilidade imediata, que é próprio da linguagem. O
estudo no mito, realizado por Cassirer no segundo volume da sua
obra, obedece a estes conceitos. que
192

encontram ainda maior justificação no terceiro volume, o qual é


dedicado à fenomenologia do conhecimento. O conceito científico,
por exemplo, é tanto mais rigoroso quanto menos intuitivo. "Na sua
forma mais restrita, no que respeita ao seu carácter
especificamente lógico, o conceito deve ser diferente dos
**IM=EreToTW*M são apenas a representação
viva da lei que governa uma sucessão concreta de imagens intuitivas.
O significado de um conceito já não adere a um substracto
intuitivo, a um datum ou dabile, sendo pelo contrário uma bem
definida estrutura relacional adentro de um sistema de juízos e de
verdades" (Ib., 111, 111, cap. 11).

Quando Cassirer tenta resumir numa definição do homem os


resultados das suas investigações sobre o

mundo humano, afirma que o homem é um animal simbólico, isto é,


falante. "A razão, afirma, é um termo assaz inadequado para
compreender todas as

formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e


variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Por
consequência, em vez de definir o homem como animal rationale,
podemos defini-lo como animal symbolicum. Fazendo assim.
indicamos aquilo que especificamente o distingue e podemos
percorrer a nova estrada que se abre ao homem, a estrada para a
civilização" (Essay on Man, cap.
11). O campo específico da actividade humana, aquele campo onde o
homem manifesta de forma evidente a sua liberdade de iniciativa e
a sua responsabilidade, ou seja, a história, é ele mesmo, segundo
Cassirer, condicionado pela expressão simbólica. De facto, não é
possível fazer história sem

193

interpretar os acontecimentos; e tudo aquilo que se

disse sobre a "compreensão" dos factos, das personalidades e das


instituições históricas, exprime precisamente a exigência de
referir factos, personalidades ou instituições a uma interpretação
que lhes revela o seu verdadeiro significado. Com efeito, um facto
não é histórico se não tiver um significado. "0 suicídio de Catão não
foi apenas um acto físico; foi um acto simbólico. Foi a expressão de
um

grande carácter; foi o último protesto do espírito republicano


romano contra uma nova ordem das coisas" (Ib., cap. X). Também a
história é uma "forma simbólica".

§ 733. BRUNSCHVIEG

A historização da atitude crítica - o reconhecimento de que a


actividade organizadora do mundo do conhecimento e do mundo dos
valores humanos está em contínuo devir - é característica do neo-
criticismo de Léon Brunschvieg (1869-1944), que foi professor da
Sorbonne. Aceita e mantém rigorosamente o princípio crítico: a
filosofia não aumenta a quantidade do saber humano; é uma
reflexão sobre a qualidade deste saber (L'idéalisme contemporain,
1905, p. 2). Por outro lado, o saber não é um sistema cerrado e
completo, mas um desenvolvimento histórico, cujas partes se podem
distinguir e definir, mas que nunca termina. A história do saber
humano é o <laboratório do filósofo". Brunschvieg considera todos
os aspectos da civilização ocidental na sua história: as ciências
matemáticas (As etapas da filo-
194

sofia matemática, 1912); as ciências físicas (A experiência humana


e a causalidade física, 1922); as

doutrinas metafísicas, morais e religiosas (0 progresso da


consciência na filosofia ocidental, 1927); e a própria atitude
espiritualista de auto-exame. (0 conhecimento de si, 1931).
Finalmente, o seu último escrito, Herança de palavras, herança de
ideias (1945), é ainda uma consideração histórica de algumas
palavras fundamentais (razão, experiência, liberdade, amor, Deus,
alma), com o objectivo de investigar

o seu significado primordial. É também autor de estudos históricos


sobre Espinosa (1894) e Pascal (1932), e expressou pela primeira
vez os seus pontos de vista fundamentais num livro intitulado A
modalidade do juízo (1897).

É missão da filosofia, segundo Brunschvieg, o

conhecimento do conhecimento: um objectivo especificamente


crítico no sentido kantiano, pelo qual a filosofia se apresenta como
conhecimento integral. Com efeito, o único conhecimento que se
adequa ao seu objecto é o conhecimento do próprio conhecimento
(La modalité du jugement, 2.11 ed., 1934, p. 2). Assim como no
conhecimento científico o espírito que conhece e o objecto a
conhecer se enfrentam na sua fixidez imutá vel, no conhecimento
integral da filosofia o espírito procura descobrir-se a si mesmo no
seu movimento, na sua actividade, na sua acção viva e criadora.
"Uma actividade intelectual que adquire consciência de si mesma:
eis aqui o estudo integral do conhecimento integral, eis aqui a
filosofia" (Ib., p. 5). Este princípio conduz Brunschvicg a identificar
o princípio espiritual, que

195

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte,


moral, religião), com o princípio crítico, que reflecte sobre estas
produções espirituais. A redução total do espírito, em todas as suas
manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvicg tenta
atingir em todos os campos, procurando demonstrar que é própria
do desenvolvimento histórico do saber do mundo humano em geral.
Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da
libertação do espírito relativamente ao horizonte cerrado das
representações sensíveis e, por conseguinte, as etapas da
actividade livre do pensamento que subordina a experiência a si
mesmo. Do mesmo modo, a evolução da física (considerada na obra
A experiência humana e a causalidade física) consiste na formação
de uma consciência intelectual, pela qual a vida espiritual se eleva
por sobre a inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está
naturalmente encerrada (L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas
esta consciência intelectual não anula a objectividade do mundo. O
idealismo crítico (como Brunschvieg preferentemente denomina a
sua doutrina) não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu perante o
eu; eu e não-eu são, para ele, dois resultados solidários de um
mesmo processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais
humano o nosso conhecimento das coisas; mas torna também mais
objectivos os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613).

É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer


afirmação de unia realidade em si que não se reduza ao objecto
considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade


empírica independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece
à razão a liberdade absoluta de mover-se e produzir sem limites
nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou
do poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua
obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as


generalizações prematuras, as limitações temerárias, as
extrapolações demasiado fáceis (1b., p. 605). A experiência actua
sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua
preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de
estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes
choques, imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se
pode dizer é que a experiência oferece à razão, através deles,
pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se
orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de
vista, interioridade e exterioridade não são contraditórias, mas
prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p.


610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o


progresso consiste no prevalecimento gradual do princípio critico
sobre o princípio da espiritualidade imediata. A história da
humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo
credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapienv,
fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que dissipou no

197

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte,


moral, religião), com o princípio crítico, que reflecte sobre estas
produções espirituais. A redução total do espírito, em todas as suas
manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvieg tenta
atingir em todos os campos, procurando demonstrar que é própria
do desenvolvimento histórico do saber do mundo humano em geral.

Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da


libertação do espírito relativamente ao
horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte,
as etapas da actividade livre do pensamento que subordina a
experiência a si mesmo. Do mesmo modo, a evolução da física
(considerada na obra A experiência humana e a causalidade física)
consiste na formação de uma consciência intelectual, pela qual a
vida espiritual se eleva por sobre a inconsciência instintiva, na qual
a ordem biológica está naturalmente encerrada (L'expérience
humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência intelectual não anula a
objectividade do mundo. O idealismo crítico (como Brunschvieg
preferentemente denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante
do não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e não-eu são, para ele, dois
resultados solidários de um mesmo

processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais humano


o nosso conhecimento das coisas; mas torna também mais
objectivos os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613).

É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer


afirmação de uma realidade em

si que não se reduza ao objecto considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade


empírica independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece
à razão a liberdade absoluta de mover-se e produzir sem limites
nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou
do poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua
obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as


generalizações prematuras, as limitações temerárias, as
extrapolações demasiado fáceis (Ib., p. 605). A experiência actua
sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua
preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de
estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes
choques, imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se
pode dizer é que a experiência oferece à razão, através deles,
pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se
orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de
vista, interioridade e exterioridade não são contraditórias, mas
prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p.


610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o


progresso consiste no prevalecimento gradual do princípio crítico
sobre o princípio da espiritualidade imediata. A história da
humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo
credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapiens,
fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que dissipou no

197

terreno especulativo a concepção realista do mundo e da verdade,


deve conduzir, no domínio moral, à destruição do peso da tradição, à
constrição da autoridade externa, às sugerências acanhadas do
ambiente social (Le progrès de Ia conscience, p. XIX). E assim como
na ordem teórica é necessário renunciar a todo o sistema de
categorias, do -mesmo modo o

advento da razão prática exige o abandono de qualquer código de


preceitos já construídos, de toda a

escala de valores fixos, e cede ao homem a liberdade do seu futuro


(1b., p. 726). O espírito humano cria os valores morais, como cria os
científicos e os estéticos. "Em todos os domínios, os heróis da vida
espiritual são aqueles que, sem referir-se a modelos superados, a
precedentes já anacrónicos, lançaram à sua frente as **"bas da
inteligência e verdade destinadas a criar o universo moral, do
mesmo modo que criaram o universo material da gravitação e da
electricidade" (Ib., p. 744). Do mesmo modo que a

consciência intelectual, a consciência moral nasceu no dia em que o


homem rompeu o cerco do seu egoísmo. A reflexão fez-nos sair do
centro puramente individual dos nossos desejos e dos nossos
interesses pessoais, para revelar-nos, na nossa condição de filhos,
de amigos, de cidadãos, uma relação da qual nós somos apenas um
dos termos, e

para introduzir assim na raiz da nossa vontade unia condição de


reciprocidade, que é a regra da justiça e o fundamento do amor
(Ib., págs. 11, 12).

No domínio religioso, só a reflexão subtrai a consciência a toda a


crença antropomórfica ou supersticiosa e faz ver em Deus somente
o valor

198

supremo que é verdade e amor e não pode estar revestido de


nenhum outro atributo (De Ia connaissance de soi, p. 190).
Brunschvicg, que chama também humanismo à sua doutrina, afirma a
total imanência de Deus no mundo e precisamente no esforço da
reflexão humana. "Um Deus está presente em
todo o esforço de coordenação racional, em virtude do qual o
espírito une a mínima parte do ser, o

mais pequeno acontecimento da vida, à totalidade do futuro


universal" (Le progrès de la conscience, p. 797), Fora desta
unidade, que o espírito realiza consigo mesmo no acto da reflexão
crítica, nada se pode encontrar, porque nada se pode procurar.
O humanismo substitui a imaginação de um criador transcendente
pela "realidade do homem, artesão da sua própria filosofia"
(Eexpérience humaine, p. 610). Só o homem é o instrumento desse
progressus ordinans que a reflexão pode produzir em todos os
campos do mundo humano. Deus realiza-se precisamente neste
progresso. "0 Deus que nós procuramos, o Deus adequado à sua
prova, não é o objecto de uma verdade, mas aquele para quem
existe a

verdade. Não é alguém que façamos entrar no círculo dos nossos


afectos, que converse connosco no decurso de um diálogo, no qual,
quaisquer que sejam a sua altura e a sua beleza, é certo que só o

homem formula as perguntas e as respostas. Deus é aquele a quem


dedicamos o nosso amor, é a presença eficaz donde procede todo o
prog ,resso que a pessoa humana alcançará na ordem dos valores
impessoais" (Héritage de mots, héritage Xidées, p. 65).

199

A filosofia de Brunschvieg é um enxerto do princípio criticista no


tronco do espiritualismo francês tradicional. A actividade crítica ou
reflexiva que segundo Brunsohvieg, o único a priori de todo o

mundo humano, é concebida por ele como actividade espontânea e


em certa medida criadora, de acordo com o modelo do impulso vital
de Bergson.
O tom da filosofia de Brunschvicg é decididamente optimista: o
progresso é a lei do desenvolvimento da actividade crítico-racional;
e todo o futuro da história humana é o progressivo prevalecer
desta actividade.

§ 734. BANFI

As teses fundamentais do criticismo foram incorporadas à filosofia


italiana por António Banfi (1886-1957), que se apropriou também de
algumas ekigências da filosofia da vida (especialmente de Simmel)
e, nos últimos tempos, do maryásmo original A principal obra de
Banfi intitula-se Princípios de uma teoria da razão (1926),
precedida por uma outra obra importante, A filosofia e a vida
espiritual (1922) e à qual se seguiu Vida da arte (1947) e numerosos
ensaios entre os quais o próprio Banfi recolheu os mais importantes
no volume intitulado O homem coperneano (1950). São ainda
numerosos os escritos crítico-históricos de Banfi dedicados
especialmente à filosofia contemporânea (actualmente recolhidos
sob o título Filósofos contemporâneos, 1961).

Banfi partilha com todos os pensadores neo-criticistas a polémica


contra o psicologismo, ou seja,

200

BRUNSCI1VICG

contra a tendência de basear a validade do conhecimento nas


condições orgânicas, psíquicas ou subjectivas que a tornam possível
de facto. Um tal psicologismo, nota Banfi, torna inexplicável "o
momento de objectividade universal que caracteriza o
conhecimento e que constitui o princípio da sua validade espiritual e
da continuidade do seu processo" (Princ. di una teoria della ragione,
p. 39). Se, de acordo

com o psicologismo, o juízo é uma relação entre duas ideias, entre


dois elementos de consciência, para BanE ele é uma relação
objectiva, uma "relação essencial" entre os seus termos, relação e
que pertence

a uma objectividade ideal, independente da origem e da


determinação psicológica"; e é também a afirmação da existência
dessa relação (1b., p. 121). Mas o primeiro ponto em que Banfi se
afasta das teses do neo-criticismo alemão é o reconhecimento da
problematicidade do conhecer, que ele considera dependente da
problematicidade da relação entre sujeito e objecto. O neo-
criticismo tinha retirado a estes dois termos todo o carácter
substancial, tendo-os considerado como os limites ideais do
processo cognitivo; mas, para Banfi, o sujeito e o objecto, mesmo
permanecendo unidos no plano transcendental, apresentam-se, em
qualquer situação cognitiva, numa relação problemática que, apesar
de ser esclarecida por essa situação, é representada desde o
princípio por uma situação diferente. Por outro lado, a razão
origina, através deste desenvolvimento problemático, a constituição
de um sistema; mas trata-se de um sistema que não é nem um ponto
de partida nem um ponto de chegada definitivo, mas sim uma "lei

201

do pensamento" em virtude da qual se constitui e transforma toda a


ordenação sistemática da experiência (1b., p. 232).

Apesar de estas teses estarem fundamentalmente de acordo com


os princípios do neo-criticismo, elas conduzem a doutrina de Banfi a
resultados diferentes. Em primeiro lugar, a razão de que ede fada
não é somente o pensamento científico mas também e sobretudo o
pensamento filosófico, com a sua mais radical capacidade de crítica
e de desenvolvimento; e enquanto razão filosófica, representa uma
actividade não simplesmente teórica, mas simultaneamente teórica
e prática, ou seja, vida. Banfi pode portanto utilizar algumas
exigências de Simmel e reconhecer na vida a determinação própria
de uma razão que é ao mesmo tempo ordem e mutação. "0 conceito
de vida, afirma Banfi, exprime a ilimitada dissolução do estável, do
determinado, não numa multiplicidade incoerente mas no dinamismo
idas sínteses que no

seu processo transcendem infinitamente toda a sua determinação


enquanto actividade espontânea e criadora. Tal é pre m~ente o
carácter das sínteses fenomenológicas em que se acentua a
estrutura transcendental da experiência" (1b., págs. 585-86). O
privilégio da arte baseia-se no carácter vital da razão; assim se
explica, que Banfi tenha dedicado muita da sua actividade ao
conceito ide vida. "A arte, o

mundo diverso e vivo da arte, se não se quer prender à vida interior


que se encontra, em todos os seus aspectos, em profunda tensão...
deve ser concebida em função das leis a priori que constituem
O seu princípio de autonomia estética, e segundo as

202

quais ela organiza, desenvolve e significa, num ilimitado processo de


constituição e de resolução, os conteúdos, relações e valores pelos
quais se interessa a sua realidade vivente" (Vita delParte, pággs.
36-37). A arte tem assim todos os caracteres da vida enquanto
razão e da razão enquanto vida, Banfi atribuía por isso à arte a
tarefa de conduzir o homem para uma "razão enamorada da
realidade", ou seja, uma razão que se inserisse na vida e na
história como princípio director e libertador. Neste aspecto, Banfi
defende nos seus últimos escritos a

tese típica do marxismo segundo a qual a filosofia deve


transformar o mundo em vez de se limitar a interpretá-lo. O
materialismo dialéctico aparece agora a Banfi como o instrumento
conceptual de uma razão concreta e histórica. Com efeito ele
elimina do conhecer, em primeiro lugar, o momento mítico,
dogmático ou abstractamente valorativo e

tende por isso a garantir "o desenvolvimento infinito e a articulação


aberta do saber". E em segundo lugar elimina a sabedoria abstracta
e reconhece à acção uma função construtiva e criadora sendo, nesse
sentido, um "humanismo histórico", isto é, a realização de uma nova
humanidade de acordo com a

concepção de Copérnico: o mesmo é dizer, de uma humanidade dona


de si própria e do seu mundo (,Uuomo copernicano, 1950, págs. 240
e segs.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 723. Sobre Liebmann: "Kantstudien", 17, 1910, fascículo de


estudos, de vários autores, que lhe são dedicados.

203

De Helmholtz, adém dos escritos citados: Vortrãge und Reden, 5.a


ed., Braunschweig, 1903; Schriften zur Erkenntnisstheorie, ed. por
P. Hertz e M. Schlick, Berlim, 1921.

Sobre Helmholtz: L. KONIGSBERGER, H. v. H., 3 vols.,


Braunschweig, 1902-1903; A. RIEHL, H. in seine VerhaZtniss zur
Kant, Berlim, 1904; J. REINER, H. V. H., Leipzig, 1905; L.
ERDMANN, Die philosophische GrundIagen von Ws
Wahrnehmungstheorie, em "Abhandlungen der Berliner Akad.",
1921, classe histór.-filos., n., 1.

De Lange, a História do materíalismo (trad. ital. de A. Treves, 2


vols., Milão, 1932).

Sobre Lange: H. VAMINGER, Hartmann, DOring und Lange,


Iserlohn, 1876; E. von HARTMANN, NeUkantianismus,
jgchopenhauerianismus und Hegelianismus in ihrer Stellung zu den
philosophischen Aufgaben der Gegenwart, Berlim, 1877; H. COMN,
em "Preussische Jahrbücher", 1876; S. H. BRAUN, F. A. L. aIs
Sozia10konom., Halle, 1881.

De Zeller: Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnisstheorie,


Heidelberga, 1862; Ueber Metaph. aIs Erfahrungwissenschaft, em
"Archiv für systematischie Philosophie", 1, 1895; Vortrãge und
Abhandlungen, Lieipzig, 1865; Kleine Schriften, 3 vols., Berlim,
1910-11.

Sobre Renouvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. Setembro de


1908.

§ 724. De Renouvier, além dos ;escritos cit.: Correspondance de R.


et Secrétan, Paris, 1910; La recherche dlune première vérité
(fragmentos póstumos), Paris, 1924.

Sobre RenGuvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. et le Vroblème


de Ia connaissance religicuse, Lausanne,
1902; JANSSENs, Le Néo-criticisme de C. R., Paris,
1904; G. SÉAILLES, La phil. de C. R., Introduction à Pétude du néo-
criticisme, Paris, 1905; P11. BRIDEL, C. R. et sa phil., Laus=e, 1905;
A. ARNAL, La phil.

204

religieuse de O. R., Paris, 1907; P. ARCHAMBAULT, R., Paris, 1910;


E. CASSIRER, Ueber R. s. Logik, em Die Geisteswissenchaften,
1913, págs. 634 e segs.; O. RAmLIN, Le 6yst~e de R., Paris, 1927.

§ 726. Sobre Hodgson: H. WILDON CARR, em "Mind", N. S., VIIII,


1899; ld., em "Mind", 1912; J. S. MACKENZIE, em "International
Journal of Ethics", 1899; DE SARLO, em "Riv. Fil.", 1900; L.
DAURIAC, em "L'Année Philosophique", 1901. ,Sobre Adamson: H.
JONES, em "Mind", N. S., XI,
1902; G. DAWES HICKS, em "Mind", N. S., XIII, 1904; Id., Critical
Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres,
1938.

De Dawes Hicks: Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind


and Nature", Londres, 1938.

§ 727. Sobre Windelband: H. RiCKERT, W. W., Tübingen, 1910; B.


JA~ENKO, W. W., Praga, 1941; C. Rosso, Figure e dottrine della
filosofia dei valor!, Turim, 1949,

728. Sobre Rickert: RuYsSEN, em "Revue de Mét. et de Mor.",


1893; ALIOTTA, em "Cultura Fil.",
1909; SPRANGER, em "Logos", 1922; BAGDASAR, Der Begriff des
theoretisches Wertes bei R., Berlim, 1927; BOEHM, em
"K@intstudien", 1933; FEDERICI, La fil. dei valori di H. R.,
Florença, 1933, (como bibliografia); G. RAMMING, K. Jaspers und
H. R., Berna, 1946; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei
valori, Turim, 1949.
§ 730. Sobre Coben: E. CASSIRER, em "Kant-studien" 17, 1913; P.
NATORP, H. C. aIs Mensche, Lehrer und Forscher, Marburgo, 1918;
Id., H. C.'s philosophísche Leistung, Berlim, 1918; J. KLATZKIN, H.
U., Berlim, 1919; W. KINKEL, H. CI.s Leben und Werk, Stuttgart,
1924; T. W. RosMARIN, Religion of Reason. H. CI.s System of
Religious Philos., Nova Iorque, 1936.

205

§ 731. De Natorp, póstumo: Philosophische Systematik, Hamburgo,


1958 (com um estudo de H. G. Gadamer).

Sobre Natorp: E. CASSIRER, em "Kantstudien", 1925, pãgs. 273 e


segs.; H. SCHNEIDER, Die Einheit aIs Grundprinzip der Philos. P.
N.Is, Tübingen, 1936; L. LuGARINI, em "Rivista di storia della
filosofia", 1950, págs. 40 e segs.

§ 732. De Cassirer, além dos escritos citados no texto:


Determinismus und Indeterminismus in der modernen PhysiL-,
Gõteborg, 1936; Zur Logik der Kulturwissenschaften, Gõteborg,
1942; The Philos. of E. C., dirigido por P. A. SchiIpp, Evam ton, 1949
(com bibliografia).

§ 733. De Brunschvieg, além dos já citados no texto: Introduction à


Ia vie de l'esprit, Paris, 1900; Llidéalisme contemporain, 2.a ed.,
Paris 1921; Nature et liberté, Paris, 1921; e ainda artigos no
"Bulletin de Ia Soe. franç. de phil.", 1903, 1910, 1913, 1921,
19231 1930 e em "Revue de Métaph. et de Morale",
1908, 1920, 1923, 1924, 1925, 1927 e 1930.

Sobre Brunschvieg: C. CARBONARA, L. B., Nápoles,


1931; J. MESSAUT, La philos. de L. B., Paris, 1938; NI. DESCHoux,
La philos. de L. B., Paris, 1949 (com bibliografia); E. CENTINEO, La
fil. dello spirito di L. B., Palermo, 1950.

§ 734. De Banfi: existe uma edição completa das suas obras, em


italiano, pela Ed. Parenti de Florença.

Sobre Banfi: N. ABBAGNANO, in "Rendiconti della Classe di


Seienze Morali, Storiche e Filologiche" da Ace. Naz. dei Lince!,
1958, p. 385-396; FULVIO PAPI, Il pe-nsiero di A. B., Florença,
1961 (com bibliografia); PAOLo Rossi, Hegelismo e socialismo nel
giovane B., in "Riv. Critica di storia della filoisofia", 1963, págs. 45-
77.

206

VII

O HISTORICISMO

§ 735. A FILOSOFIA E O MUNDO HISTóRICO

Pode-se designar pelo nome de historicismo toda a filosofia que


reconheça, como sua tarefa exclusiva ou fundamental, a
determinação da natureza e da validade dos instrumentos do saber
histórico. O historicismo não é, ou pelo menos não pretende ser
exclusivamente uma metafísica ou uma teologia da história, uma sua
visão ou interpretação global que pode obter-se mesmo
prescindindo das limitações do saber histórico de que o homem
dispõe e dos meios através dos quais o conseguiu. Se o termo fosse
compreendido deste modo, ele seria inadequado para designar uma
corrente específica da filosofia contemporânea porque se prestaria
igualmente a designar quaisquer concepções do mundo histórico, ou
como tal quali-
207

ficadas. O objecto próprio e específico do historicismo como


filosofia são os instrumentos do conhecimento histórico e,
portanto, os objectos possíveis desses instrumentos. As
características do historicismo podem então exprimir-se assim:

1.---0 historicismo supõe que os objectos do conhecimento histórico


têm um carácter específico que os distingue dos objectos do
conhecimento natural. A diferença entre história e natureza é
portanto óbvia, e desenvolveu-se paralelamente à fase positivista
das ciências naturais.

2.0-0 historicismo supõe que os instrumentos do conhecimento


histórico são, pela sua natureza ou, quanto mais não seja, pela sua
modalidade, diferentes dos utilizados pelo conhecimento natural.
Surge aqui, a propósito do conhecimento histórico,

o mesmo problema que surgira ao criticismo kantiano e ao neo-


criticismo a propósito do conhecimento natural: remontar do
conhecimento histórico às condições que o tornam possível, ou seja,
que estão na base da sua validade. Por este motivo, o historicismo
une-se às escolas contemporâneas do neo-criticismo, uma das quais
(a escola de Baden) considerava o problema da história nos mesmos
termos (§§ 727-28).

Partindo destes dois pressupostos o historicismo preocupou-se, por


um lado, em caracterizar a natureza específica do objecto do
conhecimento histórico (ou em geral das ciências culturais) e, por
outro lado, em esclarecer quais os seus instrumentos. A natureza
dos objectos do conhecimento histórico seria a própria
individualidade, oposta ao carácter gené-
208
rico, uniforme e reprodutível dos objectos do conhecimento natural.
E o compreender (Verstehen) foi considerado pelo historicismo
como sendo a operação fundamental do conhecimento histórico,
sendo a sua natureza diferentemente explicada por cada
historicista, se bem que todos lhe reconheçam capacidade para
constatar e descrever a individualidade histórica. O historicismo
preocupou-se igualmente com a determinação da natureza e da
tarefa de uma filosofia centrada no problema do conhecimento
histórico. E, no âmbito desta filosofia, deu grande importância ao
chamado problema dos valores, ou seja, o problema da relação entre
o devir da história e os fins ou os ideais que os homens procuram
realizar, e que constituem as constantes de valoração e

de orientação na variabilidade dos eventos históricos. Introduz-se


assim uma teoria dos valores como parte integrante das filosofias
historicistas.

O historicismo apresenta-se com estas características na corrente


da filosofia alemã que vai de Dilthey a Weber e que encontra neste
último a sua

expressão mais conseguida; e ainda na rica literatura metodológica


que enriquece ou aperfeiçoa os

resultados por ela conseguidos. A definição que Croce deu da


filosofia como "metodologia da historiografia" presta-se bem a
exprimir a natureza do historicismo. Mas a tese de Croce de que
toda a realidade é história e nada mais do que história elimina os

pressupostos fundamentais do historicismo: não se

pode portanto interpretar a filosofia de Croce, que é de facto uma


manifestação contemporânea do idealismo romântico (§ 716), como
historicista.

209

§ 736. DILTHEY: A EXPERIÊNCIA VIVIDA E O COMPREENDER

O fundador do historicismo alemão foi Wilhelm Dilthey, nascido em


Biebrich, no Reno, a 19 de Novembro de 1883 e que morreu em Siusi
a 1 de Outubro de 1911. Professor em Berlim. (onde foi sucessor de
Lotze), contemporâneo dos maiores historiadores alemães
(Mommsen, Burckhardt, Zeller), foi ele mesmo, antes de tudo, um
historiador que trabalhou durante toda a sua vida numa história
universal do espírito europeu, publicando partes dela sob a forma
de estudos. Tais estudos versam especialmente sobre a Vida de
Schleiermacher (1867-70); sobre o Renascimento e a Reforma (A
intuição da vida no Renascimento e na Reforma, 1891-1900); sobre
os escritos juvenis de Hegel (1905); sobre o

Romantismo (Experiência vivida e poesia, 1905), e, ainda, sobre


estética moderna ( As três etapas da estética moderna, 1892).
Enquanto nestes e em outros

ensaios menores Dilthey continuava a investigação histórica, ia ao


mesmo tempo elaborando o problema do método e dos fundamentos
de tal investigação: Introdução às ciências do espírito (1883);
Ideias para uma psicologia descritiva e analítica (1894);
Contribuição para o estudo da individualidade (1896); Estudos sobre
os fundamentos das ciências do espírito (1905); A essência da
filosofia (1907); A construção do mundo histórico nas ciências e no
espírito (1910); Os tipos de intuição do mundo (1911). Novos estudos
sobre a construção do mundo histórico nas ciências
e no espírito (póstumo).

210

Os últimos escritos ou, melhor dizendo, os posteriores a 1905, são


os mais importantes visto conterem a expressão mais amadurecida
do pensamento de Dflthey.

Já na Introdução às ciências do espírito Dilthey tinha insistido na


diversidade do objecto destas ciências relativamente às ciências
naturais. O objecto de tais ciências é, em primeiro lugar, o homem
nas suas relações sociais, ou seja, na sua história. A historicidade
essencial ou constitutiva do homem e, em geral, do mundo humano, é
a primeira tese fundamental de Dilthey. Em segundo lugar, o mundo
histórico é constituído por indivíduos que, enquanto "unidades
psicofísicas vivas", são os elementos fundamentais da sociedade: é
por isso que o objectivo das ciências do espírito é "o de reunir o
singular e o individual na realidade histórico-social, de observar
como as concordâncias (sociais) agem na formação do singular". Por
isso, no domínio das ciências do espírito, a historiografia tem um
carácter individualizante e tende a ver o universal no particular

e a prescindir do "substracto que constitui em qualquer tempo o


elemento comum da natureza humana", enquanto a psicologia e a
antropologia, e em geral todas as ciências sociais, procuram
descobrir a uniformidade do mundo humano. Como já vimos,
Windelband e Rickert (§§ 727-28) insistiram no carácter
individualizante das ciências historiográficas. Em terceiro lugar -e
é esta, para Dilthey, a diferença fundamental-o objecto das
ciências do espírito não é externo ao homem mas interno: não é
conhecido, como o objecto natural, através da expe-
211
riência externa, mas sim através da experiência interna, a única
pela qual o homem se apreende a

si mesmo. Dilthey chama Erlebenis a esta experiência, e considera-a


como a fonte donde o mundo externo retira "a sua origem autónoma
e o seu material" (Gesammelte Schriften, 1, p. 9). Erlebenis
significa "experiência vivente" ou "vivida" e distingue-se, por
exemplo, da "reflexão" -de Locke porque tem não só o carácter de
uma representação mas, também, o do sentimento e da vontade.
Isto constitui a quarta distinção fundamental entre ciência da
natureza e

ciência do espírito: as primeiras têm um carácter exclusivamente


teórico; as segundas, devido ao órgão que lhes é próprio, têm
simultaneamente carácter teórico, sentimental e prático.

No entanto, esta diferença entre os objectos de cada um dos dois


grupos de ciências não se baseia, segundo Dilthey, numa diversidade
metafísica ou de substância que lhes seja inerente. Também não é
redutível, como queria Windelband, a uma simples diferença de
método, terá antes a sua raiz numa diversidade de atitude, ou seja,
na diversidade de relações que o homem vem a estabelecer entre si
e o objecto de cada um dos dois grupos de investigação. Nas
ciências naturais o homem tenta construir uma totalidade a partir
de uma pluralidade de elementos separados, enquanto que nas
ciências do espírito parte da relação imediata que existe com o
objecto. É por isso que o ideal das ciências da natureza é a
conceitualidade e o das ciências do espírito é a

compreensão (Ges. Schr., V, p. 265).

212
O compreender é assim a operação cognitiva fundamental no campo
das ciências do espírito; e o

material ou o ponto de partida desta operação é a

experiência vivida. O objecto do compreender é a

individualidade; mas, como a individualidade não pode ser atingida a


não ser através de um conjunto complexo de actos generalizantes,
ela apresenta-se, nas ciências do espírito, sob a forma de tipo. No
Contributo ao estudo da individualidade, Dilthey considera o tipo
como sendo o termo médio entre a uniformidade e o indivíduo, isto
é, como um conjunto de caracteres constantes que têm relações
funcionais um com o outro, que variam correlativamente e que se
acompanham constantemente (1b., V, p. 270).
O tipo é, segundo Dilthey, o objecto específico da poesia e, em
geral, da arte, que ele considera, por isso, um "órgão da
compreensão da vida" Qb., p.
274); e esta noção serve-lhe para definir a tarefa das ciências do
espírito como sendo a "de unir num sistema a constatação do
elemento comum num

certo campo e a individualização que nele se realiza", isto é,


compreender a individualidade a partir da uniformidade em que ela
se insere (Ib., p. 272).
O compreender, tendo por objecto os tipos e as suas relações
internas funcionais, distingue-se assim do explicar, que é a
operação generalizante própria das ciências naturais e que consiste
em esclarecer as conexões causais entre os objectos externos da
experiência sensível.

Todas as análises de Dilthey, que nos seus escritos revia


sistematicamente as suas posições, a fim de aclarar e determinar
(nem sempre com sucesso)

213

o seu pensamento, centram-se sobre a natureza do compreender e


da experiência vivida que é o seu

ponto de partida ou fundamento. Dado que a experiência vivida é,


enquanto tal, subjectiva, íntima e

incomunicável, não permite por si só fundar uma

ciência qualquer; por isso Dilthey dirigiu os seus

esforços no sentido de encontrar as relações entre ela e os


elementos que possam tornar possível e que justifiquem a
objectivação e a comunicação dessa experiência vivida. Nos Estudos
sobre os fundamentos das ciências do espírito e na Construção do
mundo histórico Dilthey viu na expressão e no

compreender os elementos que, unidos à experiência vivida, dão a


esta última universalidade, comunicabilidade e objectividade,
constituindo portanto, juntamente com ela, a atitude fundamental
das ciências do espírito. Esta atitude toma-se possível pelo facto
de essa experiência vivida estar sempre ligada à compreensão de
outras experiências vividas que nos são dadas sob a forma de
expressão, ou seja, de um

"processo em que, de forma externa, reconhecemos algo interno"


(Ges. Schrift., VII, p. 309). O homem deixa de estar isolado, a sua
vida deixa de estar fechada na intimidade do seu ou, pois encontra
em si mesma uma existência autónoma e um desenvolvimento
próprio. As relações com a natureza externa e com os outros
homens pertencem à sua vida e encontram o seu órgão fundamental
no compreender. O compreender é, deste ponto de vista, o reviver
e o reproduzir a experiência doutrem: é assim possível um sentir em
conjunto com os outros e um

214

participar das suas emoções (1b., VII, p. 205). No compreender


realiza-se pois a unidade do sujeito e

do objecto que é característica das ciências do espírito. "0


compreender, afirma Dilthey, é o reencontro do eu no tu; mas o
espírito atinge graus sempre superiores de conexão, e esta
identidade do espírito no eu, no tu, num qualquer sujeito de uma
comunidade, em qualquer sistema de cultura e, finalmente, na
totalidade do espírito e na história universal, torna possível a
colaboração das diversas operações nas

ciências do espírito. O sujeito do saber é aqui idêntico ao seu


objecto e este é o mesmo em todos os graus da sua objectivação"
(Ib., p. 191).

Ora, segundo Dilthey, o compreender realiza-se através de diversos


instrumentos que constituem as

categorias da razão histórica. Tais categorias não são formas a


priori do intelecto; constituem antes os modos de apreensão do
mundo histórico e também as estruturas fundamentais desse
mundo. O seu significado objectivo é, porém, o mais relevante, já
que não pode ser esclarecido senão através de uma análise do
mundo histórico.

§ 737. DILTHEY: AS ESTRUTURAS DO MUNDO HISTÓRICO


A primeira categoria do mundo histórico, sobre a qual se baseiam
todas as outras, é a vida. A vida não é, para Dilthey, nem uma noção
biológica nem

um conceito metafísico, mas sim a existência do

215

indivíduo singular nas suas relações com os outros

indivíduos. Ela é pois a própria situação do homem no mundo, sempre


determinada espacial e temporalmente, pelo que compreende
inclusive todos os produtos da actividade humana associada e o
modo como os indivíduos os executam ou os avaliam. Se a
experiência vivida é a própria vida imediata, o compreender a vida é
a sua objectivação; e a objectivação da vida é designada por
Dilthey, em termos

hegelianos, espírito objectivo. Mas o espírito objectivo, que para


Hegel era a própria razão tornada instituição ou sistema social, é
para Dilthey apenas o conjunto das manifestações em que a vida se
objectivou no decurso do sou desenvolvimento e que acompanham
este desenvolvimento. Afirma Dilthey: "Tudo sai da actividade
espiritual e adquire portanto o carácter de historicidade,
inserindo-se, como produto da história, no próprio mundo sensível.
Desde a distribuição das árvores num parque ou das casas numa
estrada, desde os instrumentos do trabalhador manual até às
sentenças de um tribunal, tudo está à nossa volta, em qualquer
altura, surgindo historicamente. O espírito, hoje, introduz-se nas
próprias manifestações da vida e, amanhã, faz a sua

história. Enquanto o tempo passa, nós continuamos rodeados pelas


ruínas de Roma, pelas catedrais, pelos castelos. A história não está
separada da vida, não se distingue do presente pela sua distância
temporal" (Ges. Schrilt. VII, p. 148).

A segunda categoria fundamental da razão histórica é a da conexão


dinâmica (Wirkungszusamme-
216

DILTHEY

nhang). A conexão dinâmica distingue-se da conexão causal da


natureza na medida em que "produz valores e realiza fins". Dilthey
fala por isso do carácter "teleológico-imanente" da conexão
dinâmica e considera como conexões dinâmicas (ou "estruturais",
como também afirma) os indivíduos, as instituições, a comunidade, a
civilização, a época histórica e a

própria totalidade do mundo histórico que é constituída por um


número infinito de conexões estruturais. O traço característico da
estrutura é a auto-centralidade: toda a estrutura tem o seu centro
em si própria. "Assim como o indivíduo, afirma Dilthey, também
qualquer sistema cultural, ou qualquer comunidade, tem o seu centro
em si mesma. Nele se ligam num todo único a interpretação da
realidade, a valoração e a produção de bens" (1b., p. 154). Esta auto-
centralidade estabelece entre as parte e o

todo de uma estrutura uma relação que constitui o

seu significado. O significado de uma estrutura qualquer pode por


isso ser determinado a partir dos valores e dos fins em que ela se
centra.

Segundo Dilthey, a época histórica possui em alto grau esta


característica de auto-centralidade. "Toda a

época é determinada de uma forma intrínseca pelo sentido da vida,


do mundo sentimental, da elaboração dos valores e das respectivas
representações ideais dos fins. É histórico todo o agir que se insira
neste sentido: ele constitui o horizonte da época e

determina o significado de qualquer parte do seu

sistema. É esta a auto-centralidade da época, na qual se resolve o


problema do significado e do sentido

217

que se possam encontrar na história" (Ib., p. 186). Não existe


porém um determinismo rigoroso no que respeita à natureza e ao
comportamento dos indivíduos que pertencem a determinada época
histórica; em todas as épocas se podem encontrar forças contrárias
às que constituem a estrutura dominante. Cada época implica uma
referência à época precedente, da qual recebe os efeitos nas suas
forças activas e implica, desse modo, o esforço criador que prepara
a época seguinte. "Assim como ela se originou pela insuficiência da
época precedente, do mesmo modo leva consigo os limites, os
desacordos e as dores que preparam a época futura". O
florescimento de uma época é breve; e de uma época a

outra vai-se transmitindo "a sede de uma satisfação total, que


nunca pode ser saciada" (Ib., p. 187).

A esta sucessão das épocas não preside, segundo Dilthey, nenhum


princípio infinito ou providencial. Dilthey pensa que "toda a forma
da vida histórica é finita" e que, portanto, não é possível o recurso
ao absoluto. Os próprios valores nascem e morrem

na história e, mesmo quando se apresentam como incondicionados,


são na realidade relativos e transitórios (Ges. Schrif., VII, p. 290).
O que dá continuidade, à história é somente "a continuidade da
força criadora", ou seja, da actividade humana que produz o mundo
histórico. Mas "a consciência histórica da finitude de todo o
fenómeno histórico, de toda a situação humana e social, a
consciência da relatividade de todas as formas de fé, é o último
passo para a libertação do homem" (Ib., p. 290).

218

§ 738. DILTHEY: O CONCEITO DA FILOSOFIA

A historicidade e a relatividade dos fenómenos históricos chocam-


se, segundo Dilthey, com a própria filosofia. A filosofia é
historicamente condicionada, do mesmo modo que qualquer outro
produto do homem, e as suas formas históricas são por isso
diferentes e irredutíveis entre si; mas, por outro lado, a sua
consideração histórica mostra que existem em

todas as filosofias "traços de natureza formal" que são


essencialmente dois: toda a filosofia se baseia, em primeiro lugar,
na totalidade da consciência e

procura, partindo desta base, esclarecer o mistério do mundo e da


vida: e, em segundo lugar, toda a

filosofia tenta alcançar uma validade universal. Devido à primeira


característica, a filosofia é uma intuição do mundo e apresenta,
portanto, uma forma fundamental comum com a religião e a arte. De
facto, em cada momento da nossa existência está implícita uma
relação da nossa vida singular com o

mundo que nos rodeia como uma totalidade intuída. A intuição


filosófica do mundo distingue-se da religiosa pela sua validade
universal e da artística por

ser uma força que quer reformar a vida (Das Wesen der Phil., em
Ges. Schrift., V, p. 400). Quando a

intuição do mundo é compreendida conceptualmente, ficando assim


definida e dotada de validade universal, recebe o nome de
metafísica. A metafísica pode ter infinitas formas que diferem
entre si por diferenças substanciais ou acidentais. Contudo, podem-
se distinguir alguns tipos fundamentais, que se radicam

219

nas diferenças decisivas das várias intuições do mundo. Estes tipos


são três:

O primeiro é o do naturalismo materialista ou positivista


(Demócrito, Lucrécio, Epicuro, Hobbes, os Enciclopedistas, os
materialistas modernos, Comte). Esta intuição do mundo baseia-se
no conceito de causa e, portanto, da natureza como conjunto de
factos que constituem uma ordem necessária. Na natureza assim
entendida não há lugar para os conceitos de valor e de fim, e a vida
espiritual aparece forçosamente como "uma interpolação na
contextura do mundo físico".

O segundo tipo de intuição filosófica do mundo é o idealismo


objectivo (Heraclito, estóicos, Espinosa, Leibniz, Shaftesbury,
Goethe, Schelling, Schleiermacher, Hegel). Esta intuição do mundo
baseia-se na
vida do sentimento e é dominada pelo sentido do valor e significação
do mundo. Toda a realidade aparece como expressão de um princípio
interior, sendo por isso entendida como uma conexão espiritual que
actua consciente ou inconscientemente. Este ponto de vista leva a
ver nos fenómenos do mundo manifestações de uma divindade
imanente (Pariteísmo).

O terceiro tipo de intuição do mundo é o do idealismo da liberdade


(Platão, filosofia helenístico-romana, Cícero, especulação cristã,
Kant, Fichte, Maine de Biran, etc.). Esta doutrina interpreta o

mundo em termos de vontade e, portanto, afirma a independência


do espírito relativamente à natureza, isto é, a sua transcendência.
Da projecção do espírito sobre o universo originam-se os conceitos
de perso-
220

nalida,de divina, de criação, de soberania da pessoa sobre o curso


do mundo.

Cada um destes tipos dá às diferentes produções de uma qualquer


personalidade singular uma unidade intrínseca; e nisto reside a sua
força. Cada tipo emprega um facto último de consciência, uma
categoria. O materialismo, a categoria de causa; o idealismo
objectivo, a categoria de valor; o idealismo subjectivo, a categoria
de finalidade. Cada uma destas categorias fundamentais é uma
relação entre o

homem e o mundo; mas não é possível uma relação total que resulte
do conjunto destas três categorias. Isto significa que a metafísica
é impossível: deverá, com efeito, tentar unir ilusoriamente tais
categorias ou mutilar a nossa relação vivida com o mundo,
reduzindo-a a uma só delas. A metafísica é impossível mesmo no
âmbito de cada um dos três tipos fundamentais, já que não é
possível determinar a unidade última da ordem causal (positivismo),
nem o valor incondicionado (idealismo objectivo), nem o fim absoluto
(idealismo subjectivo). Contudo, a última palavra não é a
relatividade das intuições do mundo mas a soberania do espírito
frente a todas elas e, ao mesmo tempo, a consciência positiva de
que na sua

diversidade se expressa a plurilateralidade do mundo e de que esta


consciência constitui precisamente a

única realidade do mundo (Ib., p. 406). O carácter mais universal da


filosofia consiste na natureza da compreensão objectiva e do
pensamento conceptual, no qual se baseia. O proceder do
pensamento expressa a necessidade da natureza humana de
estabelecer solidamente a posição do homem frente ao

221

mundo, o esforço por romper os laços que prendem a vida às suas


condições limitadoras. Este esforço constitui a função universal da
filosofia e a última unidade de todas as suas manifestações
históricas.

§ 739. SIMMEL

Na obra de Dilthey, a metodologia das ciências do espírito foi


enriquecida por determinações e esclarecimentos, os quais
constituíam modificações ou

desenvolvimentos substanciais em relação à obra de Weber. Os


outros historiadores alemães, que desenvolveram as suas doutrinas
em polémica com Dilthey ou continuando-o, manifestam a tendência
para acentuar aspectos subordinados ou parciais da filosofia de
Dilthey ou para corrigi-lo recorrendo ao absoluto e evidenciando um
retorno parcial ao hegelianismo. Entre os primeiros, Simmel e
Spengler desenvolvem o relativismo de Dilthey tentando fazer dele
uma metafísica da vida. Entre os segundos, Troeltsch e Meinecke
procuram conciliar o historicismo com valores absolutos e efectuam
um retorno parcial ao conceito romântico da história. Vimos
anteriormente (§§ 727-28) que Windelband e Rickert, seguindo a
mesma orientação, polemizaram contra o relativismo dos valores,
colocando-os a um nível em que não podem ser alternados pelas
vicissitudes da história.

George Simmol (1858-1918) é autor de numerosas obras filosóficas


e sociológicas: O problema da filosofia da história (1892);
Introdução à ciência moral

222

(1892); Filosofia da moeda (1900); Sociologia (1910); Problemas


fundamentais. da filosofia (1910); Problemas de Sociologia (1917); A
intuição da vida (1918); e ainda de trabalhos históricos sobre l(ant
(1903), sobre Schopenhauer e Nietzsche (1916) e sobre a situação
espiritual da época da primeira guerra mundial (A guerra e a
decisão espiritual, 1917; O conflito da cultura moderna, 1918).

Se bem que a filosofia de Siminel se oriente para o relativismo, ela


começou por defender algumas exigências da escola de Baden, em
primeiro lugar a de reconhecer ao valor ou dever ser uni status
independente das situações históricas. Assim, na Introdução à
ciência moral, Simmel afirma que o

dever ser é uma "categoria natural do pensamento", do mesmo modo


que o ser, reconhecendo depois que ele age e vive somente na
consciência empírica do homem e em relação com o conteúdo
psicológico dela. E nos Problemas fundamentais, da filosofia,
juntamente com o sujeito e o objecto, considerados nas suas
relações funcionais, Simmel reconhece a

existência de um terceiro reino de conteúdos ideais


independentemente das suas realizações no sujeito ou no objecto, o
reino das ideias platónicas, e ainda um quarto reino que é o das
exigências ideais e do dever ser. No entanto, nada disto impediu
Simmel de se orientar para uma forma de relativismo radical
baseada numa metafísica da vida. Simmel foi conduzido a esta
orientação pela exigência de criação das ciências do espírito,
especialmente a historiografia e a sociologia.

223

Por se preocupar com o problema da história, Simmel. é levado a pô-


lo em termos análogos aos utilizados por Kant ao considerar o
problema da natureza: trata-se agora de determinar a possibilidade
da história, do mesmo modo que Kant determinou a possibilidade da
natureza. Mas a solução dada por Simmel é completamente
diferente da de Kant. A possibilidade da história não reside em
condições a

priori, em formas intelectuais independentes da experiência: as


categorias e princípios que ordenam o

material historiográfico e o constituem numa imagem que não é de


modo algum a cópia dos dados em que se baseia, são eles próprios
empíricos e pertencem à experiência psicológica, pelo que "a
psicologia é o a priori da ciência histórica" (Die Probleme der
Geschichtesphilosophie, p. 33). Como condições psicológicas, as
categorias da investigação histórica podem modificar-se, e
modificam-se, com o desenvolvimento histórico; e, assim, acontece
que a realidade histórica pode ser interpretada segundo diversas
categorias e dar lugar a diversas representações historiográficas.
Não são portanto, no sentido próprio, leis da realidade histórica. O
reagrupamento dos factos segundo um determinado conceito não
vale como lei determinante que supõe a acção de factores
objectivos constantes (Ib., p. 91). Deste ponto de vista, não se pode
pôr o problema do significado total da história e toda a sua solução
é reenviada para o domínio da fé (Ib., págs. 72 e segs.).
Analogamente, a sociologia não pode ter a pretensão de esclarecer
a natureza e o significado da sociedade como um todo; ela tem
simplesmente como objecto

-9 2 4

as formas de associação assumidas pelas relações entre os


indivíduos. E distingue-se das ciências sociais particulares porque
enquanto nestas os fenómenos sociais são considerados nos seus
conteúdos, na sociologia são apenas considerados como modalidade
das relações entre os indivíduos (Soziologie, p. 12).

Num artigo de 1895, ao polemizar contra a noção de verdade


absoluta, Simmel chega a reconhecer o carácter pragmático da
própria verdade. Se, de facto, negarmos o valor absoluto da
verdade, não poderemos aplicar-lhe outro critério senão o da sua
utilidade, ou seja, o da sua coerência com a prática, e nesse caso a
verdade é o resultado da selecção biológica e identifica-se com a
própria finalidade da espécie humana. Estes conceitos orientam a
sua ulterior actividade para uma metafísica da vida. Deste ponto de
vista, a filosofia não é uma ciência objectiva mas "a reacção do
homem à totalidade do sem.
É assim que ela aparece definida nos Problemas, fundamentais da
filosofia. O que a impede de reduzir-se

a uma opinião do sujeito individual é a sua tipologia, ou seja, o facto


de ela não exprimir o indivíduo mas antes a espiritualidade típica: a
qual garante uma possibilidade de comunicação entre os indivíduos
que filosofam, mas não a concordância das suas filosofias. As
análises históricas de Simmel tendem precisamente a caracterizar
algumas destas espiritualidades típicas; é assim que ele vê em
Schopenhauer e Nietzsche dois tipos opostos e inconciliáveis de
filosofia: a negação do valor da vida e a afirmação do seu valor para
além de qualquer pri-

225

vação ou dor. Mas deste ponto de vista a vida torna-se o verdadeiro


e único sujeito da história e -a

única substância das coisas: uma realidade metafísica. Mais do que


para Dilthey, que considerara a vida apenas enquanto situação do
homem no

mundo, esta noção remete talvez para Bergson. Simmel entende a


vida no sentido da duração real de Bergson. (§ 693), ou seja, como
continuidade em que o presente inclui o passado e não como
sucessão de estados diferentes ou diferenciáveis. Neste sentido a
vida é o próprio tempo concreto, enquanto que o

tempo é, em si, a forma abstracta da vida (Lebensanschauung, págs.


11-12). A vida prossegue dentro de formas determinadas mas
ultrapassando essas formas na continuidade do seu processo.
Devido a esta continuidade ela será mais-vida (Mehr-Leben), porque
se transcende a si mesma; enquanto que nas formas por ela criadas
é mais-que-vida (Mehr-als-Leben), por se conseguir impor ao seu
processo temporal. Logo, este processo inclui a morte, isto é, o
destino inevitável de todas as formas de vida (Ib., págs. 22 e segs.).
O mundo histórico, aquele que é objecto do conhecimento histórico,
é uma forma da vida no sentido muito específico de ser uma
emergência de uma estrutura ideal acima da continuidade do
processo vital: uma emergência que reivindica uma certa autonomia
relativamente a esse processo e que entra em relação ideal com
outras formas da vida, por permanecer, tal como essas outras
formas, sobreposta à continuidade da vida. A relação e,
simultaneamente, a separação entre a vida e um qualquer elemento

226

ideal (valor, dever ser, forma, mundo histórico) parece ter sido o
tema constante da filosofia de Simmel.

§ 740. SPENGLER

O relativismo histórico, relevando de uma metafísica da história, de


Oswald Spengler (1880-1936), teve um êxito extraordinário.
Spengler é autor de uma obra que teve grande expansão e que
suscitou inúmeras discussões: O ocaso do Ocidente. Esboço de uma
morfologia da história do mundo (2 vols.,
1918-22). Esta obra fora precedida de um ensaio sobre Heraclito
(1904), no qual o Logos heraclitiano era interpretado como a lei do
destino que rege o

devir do mundo. Os escritos posteriores são principalmente


políticos: Prussianismo e socialismo (1919), Deveres políticos da
juventude alemã (1924); Reconstrução do Estado alemão (1924); O
homem e a
técnica (1931); Anos de decisão (1933). Estes escritos defendiam,
contra o liberalismo, a democracia e o capitalismo, um ideal político
semelhante ao do nazismo: um estado autoritário baseado no poder
militar e numa classe trabalhadora disciplinada e

privada de influência política. Este ideal era apresentado como


sendo o conveniente para a "Europa" e, em geral, para a "raça
branca"; mas o instrumento da sua realização deveria ser a
Alemanha.

Spengler imobiliza numa dualidade metafísica a diferença objectiva


que Dilthey tinha reconhecido existir entre a natureza e a história.
Para Dilthey, a natureza e a história eram dois objectos diferentes

227

estudados por duas ordens de investigação diferentes, para


Spengler são duas realidades metafísicas incomensuráveis. A
natureza é o mundo dos produtos do devir, daquilo que foi
produzido pela vida e que se destacou dela; a história é o mundo do
devir, da vida que cria incessantemente novas formas. Na natureza
vale a necessidade causal que se manifesta na uniformidade e na
repetição e que pode ser

expressa por fórmulas matemáticas; na história vale a necessidade


orgânica que é própria do que é singular e não-repetitivo. A
natureza pode ser apreendida por uma lógica mecânica; a história só
o pode ser por uma ló gica orgânica que encontra o seu

instrumento na experiência vivida (Erlebnis) compreendida como


uma penetração intuitiva, portanto imediata, das formas assumidas
pelo devir histórico. A lógica orgânica permite formular uma
"morfologia da história universal", ou seja, uma descrição da
"forma" ou "fisionomia" da unidade que constitui o elemento da
história. Esta unidade é a cultura (Kultur). Toda a cultura é um
organismo que, como todos os organismos, nasce, cresce e morre
segundo um ritmo imutável. "Toda a cultura, o seu aparecimento,
o seu desenvolvimento e o seu declínio, diz Spengler, cada um dos
seus graus e dos seus períodos internamente necessários, tem
uma duração determinada, sempre igual, tomando sempre a forma
de um símbolo" (Untergang des Abendlandes, I, p. 147). Qualquer
cultura realiza progressivamente tudo aquilo que lhe é possível. Ao
completar esta tarefa ela chega ao seu termo. É por -isso que o
culminar de uma cultura, a civilização

228

(Zivilisation), onde ela alcança "os estados extremos e mais


refinados" de que já são apenas capazes os

homens superiores, é a sua conclusão, o seu fim necessário e


irrevogável.

Dilthey tinha falado da "auto-centralidade das estruturas


históricas", no sentido de que cada estrutura histórica admite um
núcleo central de valores ou ideais que dá significado a todas as
suas manifestações: Spengler, considerando a cultura como um
organismo e o organismo como uma totalidade cujas partes têm
necessariamente relações recíprocas, pensa que cada aspecto da
cultura é uma manifestação necessária da própria cultura e que não
tem sentido fora dela. Toda a cultura tem uma forma específica de
considerar a natureza, ou melhor, tem uma "natureza" própria, uma
ciência, uma filosofia, uma moral, que lhe estão indissoluvelmente
ligadas do mesmo modo que os membros de um organismo se
encontram ligados ao seu todo. No âmbito da cultura, todas estas
manifestações têm um valor absoluto; fora dela não têm nenhum
valor. No entanto, se bem que não exista nenhuma ciência, filosofia
ou moral universal que seja válida para todas as

culturas, toda a ciência, filosofia ou moral é absoluta e necessária


no seio da cultura a que pertence.
O relativismo dos valores, que era um dos resultados da filosofia de
Dilthey, transforma-se em Spengler num absolutismo relativo dos
valores: relativo porque é limitado à duração da cultura em que se
integra. Devido à conexão de todos os aspectos de uma cultura e à
necessidade que preside ao seu surgir, ao seu florescer e à sua
morte, nenhuma

229

cultura oferece aos homens qualquer possibilidade de escolha, quer


no que respeita ao seu desenvolvimento ou às suas articulações
internas, quer no que respeita ao seu ciclo vital. Uma necessidade
inexorável preside a todo o seu desenvolvimento e a todas as suas
vicissitudes; esta necessidade é o destino (Untergang des
Abendlandes, 1, págs. 152 e segs.). Os homens podem certamente
tentar opor-se ao destino da cultura a que pertencem; mas o
insucesso inevitável da sua acção em tal sentido equivale a

uma reprovação moral e histórica. A única acção justificada e


justificável é a inspirada pelo reconhecimento do destino e
orientada na mesma direcção em

que ele se manifesta: é o próprio sucesso desta acção que a


justifica. "Nós, diz Spengler, não temos a liberdade de realizar isto
ou aquilo, mas sim a liberdade de fazer aquilo que é necessário ou
de não fazer nada; e qualquer tarefa que tenha surgido por
necessidade da história irá avante com a ajuda de cada um dos
indivíduos ou contra eles. Ducunt fata volentem, nolentem trahunt"
(Ib., 11, p, 630).

É a partir destas bases que Spengler prevê o inevitável ocaso da


cultura ocidental. Esta já atingiu a fase de "civilização", ou seja, da
plena maturidade que inicia a decadência e precede a morte. A crise
da moral e da religião, e especialmente a desta última já que "a
essência de todas as civilizações é a religião"; o prevalecer da
democracia e do socialismo que subvertem as relações naturais do
poder; a equivalência, própria da democracia, entre o dinheiro e o
poder político, e que significa o

triunfo do dinheiro sobre o espírito; e, numa pa-


230

lavra, o "desabar de todos os valores" de que Nietzsche foi o


profeta mas que o Ocidente mostra já em acto, são os precursores
infalíveis da morte da civilização ocidental. O último acto desta
civilização será um retorno ao cesarismo, que constituirá o prelúdio
de um retorno ao estado primitivo (Ib.,
11, cap. V).

A obra de Spengler assinala o predomínio, no

historicismo alemão, das categorias românticas e, sobretudo, da


categoria da necessidade. Spengler substituiu a necessidade do
progresso, que era o mito romântico, pela necessidade do ciclo
orgânico da cultura, o conceito da história como previsão infalível
Post factum pelo conceito da história como previsão infalível ante
factum. Assim se ilude a exigência mais radical do historicismo
alemão que era

precisamente % de subtrair a história à necessidade e de restituir


aos homens a possibilidade de escolha histórica decisiva e
responsável.

§ 741. TROETSCH

A relação entre o historicismo e a religião, ou


melhor, entre o devir histórico e os valores eternos que a religião
encarna ou defende, é o tema da investigação levada a cabo, no
âmbito do historicismo, por Troeltsch e Meinecke.

Ernesto Troeltsch (1865-1923) foi sobretudo um historiador do


cristianismo e um teólogo. As suas

obras principais são: O absoluto do cristianismo e

a história da religião (1902); Psicologia e teoria do

231

conhecimento na ciência da religião (1905); O significado do


protestantismo para a origem do mundo moderno (1906); A
importância da historicidade de Jesus para a fé (1911); A doutrina
social da Igreja e dos grupos cristãos (1908-12); e ainda numerosos
escritos e artigos importantes.

O ponto de partida de Troeltsch, que o coloca imediatamente no


âmbito do historicismo, é o reconhecimento do carácter histórico
da religião e, por isso, do próprio cristianismo. Troeltsch entrou em
polémica com a concepção romântica da religião, principalmente na
sua forma hegeliana, como essência universal de que as religiões
históricas seriam a progressiva realização. As religiões são factos
históricos individuais e irredutíveis e o próprio cristianismo é um
fenómeno histórico que sofre "o condicionamento de qualquer
fenómeno histórico individualizado" a par das outras religiões (Die
Absolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte, p. 49).
Mas um fenómeno histórico não está, por esse facto, privado de
validade; e Troeltsch coloca o problema da validade da religião em
termos de um problema critico no sentido kantiano: trata-se de
encontrar, para a religião, o elemento a priori que a torna possível.

Troeltsch admite assim, na obra Psicologia e teoria do


conhecimento na ciência da religião, um a

priori religioso que pertence à própria razão e cuja existência é


demonstrada pelo sentimento de obrigação que acompanha a
religião, assim como pela posição orgânica que ela ocupa na economia
da consciência e pela causalidade autónoma que a re-
232

ligião mostra ter no mundo histórico. Apesar de estar em relação


com as outras formas do processo histórico (economia, política,
ciência, arte, etc.) e

sendo em certos aspectos condicionada por essas

formas (Troeltsch não exclui sequer a influência, mostrada por


Marx, do processo histórico sobre a religião, se bem que pense que
ela não se manifesta necessariamente), a religião manifesta uma
causalidade autónoma em virtude da qual certos acontecimentos
religiosos (como seja o aparecimento do Cristianismo e da Reforma)
mostram ser produtos de factores especificamente religiosos.
Segundo Troeltsch, esta causalidade autónoma da religião pode ser

interpretada como a manifestação ou a presença do infinito (ou


seja, de Deus) no finito, isto é, na consciência individual do homem
(Gesammelte Schriften, II, p. 764). Com efeito, pode-se considerar
o mundo espiritual como sendo independente da causalidade natural
e submetido à acção imediata de Deus: uma

acção que pode ser mais forte ou mais débil, mais ou menos
compreensível, mais ou menos pessoal; mas que justifica a
superioridade do Cristianismo o

qual, melhor do que as outras religiões, a reconheceu e afirmou no


seu carácter sobrenatural e transcendente.

A especulação de Troeltsch sobre a religião move-se assim entre


dois polos: por um lado o reconhecimento da historicidade radical
ida religião e, por outro, o reconhecimento do seu fundamento
transcendente na base da causalidade autónoma da história
religiosa. Esta polaridade mantém-se nas análises que fez do
historicismo, primeiro na obra O his-
233

toricismo e o seu problema (1922), onde se reúnem os ensaios sobre


este assunto que escrevera des&-,
1916, e depois em cinco lições que deveria ter proferido em
Inglaterra, mas que não pôde dar por ter sido surpreendido pela
morte, e que foram publicadas postumamente com o título O
historicismo e _q sua superação (1924). O historicismo, para
Troeltsch, é a historização de toda a realidade e de todo o valor, o
dissolver-se, no fluxo heraclitiano do devir, de todas as criações
humanas: estado, direito, moral, religião, arte, etc.. Do ponto de
vista historicista, a

categoria histórica fundamental é a da totalidade individual, no


sentido da estrutura auto-centralizada de Dilthey. Totalidades
individuais serão, para além dos indivíduos, os povos, os estados, as
classes, as culturas, as correntes espirituais, as religiões, etc. Mas-
e aqui Troeltsch introduz no historicismo a exigência de
transcendência dos valores deduzida por Rickert (§ 728)-a
compreensão de uma totalidade individual só é possível se a
relacionarmos com os valores, Com efeito, aquilo que é importante
no histórico é a determinação do que é essencial, o que é único e
irrepetível, numa totalidade singular; o essencial consiste no único
valor ou no único significado que é próprio da consciência dessa
totalidade e que, como tal, não pode ser aplicado como medida ou
critério de qualquer outra totalidade. Ora aquilo que é próprio da
relação entre o objecto histórico e o valor que o individualiza é,
segundo Troeltsch, a sua conexão com o absoluto (Gesammelte
Schriften, 111, p. 212). O absoluto dos valores manifesta-se na sua
relatividade às totalidades a que

234

pertencem. "A relatividade dos valores, diz Troeltsch, só tem


sentido se neste relativo existe um absoluto vivo e criador. Se
assim não acontecesse, tratar-se-ia de uma mera relatividade e não
de uma relatividade dos valores. Esta última pressupõe um

processo vital do Absoluto, através do qual este surge em cada


ponto da forma mais apropriada a

esse ponto" (Ib., 111, p. 212). Por outras palavras, a relatividade,


histórica e o absoluto dos valores coincidem: por se encontrarem
nas suas formas históricas relativas, os valores constituem a
presença, na

própria história, de um princípio absoluto que Troeltsch chama,


assim como Leibniz, "consciência universal" e que, ainda de acordo
com Leibniz, se manifestaria nas consciências individuais. Estas
relevam, precisamente, de uma identidade ou encontro do Infinito e
do finito; e é por essa razão que podem comunicar entre si. Todo o
mónada se pode entender com os outros mónadas através da
transmissão da consciência universal de que todos eles constituem
manifestações (1b., p. 685).

A identidade entre infinito e finito, entre o absoluto dos valores e


a relatividade histórica, não é apenas uma dimensão vertical da
história, devendo também encontrar a sua realização no próprio
decorrer da história. Esta realização está confiada, segundo
Troeltsch, ao esforço criador dos homens e, em particular, a uma
filosofia da história que se

proponha obter "um critério, um ideal, -uma ideia de uma nova


unidade cultural a criar partindo daquilo que existe no presente,
presente este considerado como sendo uma situação complexa
resultante

235

de séculos de história" (Ib., 111, p. 112), Tal realização consiste,


portanto, na elaboração de um ideal de civilização que valha como
indicação dos fins que o desenvolvimento histórico deve atingir e

simultaneamente como critério de avaliação das fases anteriores de


tal desenvolvimento. Esta tarefa, consistindo na determinação de
um sistema de valores que servem para avaliar a história e orientá-
la para o futuro, é uma tarefa ética,, em particular, ela diz respeito
não só aos valores culturais aplicáveis a uma cultura ou a um grupo
social particular, mas

igualmente aos valores espirituais que condicionam a dignidade e a


unidade da personalidade humana (Der Historismus und seine
Uberwindung, págs. 27 e segs.).
§ 742. MEINECICE

A obra de Friedrich Meinecke aproxima-se dia de Troeltsch, tendo-


a, de resto, influenciado na sua última fase, Meinecke (1862-1954)
foi principalmente um historiador da Alemanha moderna, tendo
começado por ver na história do Estado Alemão uma

fusão feliz do poder material e dos valores espirituais ou, segundo a


sua expressão, do Kratos e do Ethos. Esta fusão era considerada
por ele (sobretudo na obra Cosmopolitismo e estado nacional, 1908)
não apenas como a justificação histórica do estado nacional alemão
mas, também, como o critério da avaliação histórica e da orientação
política; critério que ele considerava ser a maior conquista do
romantismo contra o iluminismo. Meinecko via no

236

romantismo, e com razão, o reconhecimento da conciliação e da


identidade entre o dever ser e o ser ou, mais especificamente,
entre a moral ideal da dignidade e liberdade do indivíduo e a
realidade política que é uma força ou poder material. A **erÍ&@
que se seguiu à primeira guerra mundial induziu Meinecke a
reconhecer, em principio, a possibilidade de um conflito entre
os dois elementos em cuja unidade tinha acreditado; e na obra A
ideia da razão de estado na história moderna, este conflito é
ilustrado por ele em toda a sua extensão, como tratando-se da
própria essência do mundo histórico-político. "Entre Kratos e Ethos,
afirma M-**eíne,cke, entre a conduta guiada pelo impulso da força
e a conduta guiada pela responsabilidade moral, existe, no cume da
vida política, uma ponte, a chamada razão de estado: a consideração
daquilo que é conveniente, útil e benéfico, daquilo que o estado deve
fazer para atingir em todas as circunstâncias o mais alto ponto da
sua existência... E é precisamente neste ponto que se notam
claramente as terríveis dificuldades, anteriormente, ocultas, da
coexistência do ser e do dever ser, da causalidade e da idealidade.
da natureza e do espírito na vida humana. A razão de estado é um
princípio de conduta que oferece a maior duplicidade: por um lado,
releva de uma natureza física, por outro lado, do espírito. E tem
ainda, por assim dizer, um aspecto intermédio no qual aquilo que
pertence à natureza se mistura com aquilo que pertence ao
espírito". (Die Ideen der Staatsràson in der neuren Geschichte, p.
5). Deste ponto de vista, a tarefa do historiador

237

consistirá em considerar, não a identidade daqueles dois princípios,


mas a sua polaridade: isto é, a oposição que os relaciona e através
da qual podem encontrar uni equilíbrio que, no entanto, nunca é
estável ou definitivo.

Já aqui se encontrava implícito, o problema da relação entre os


-valores e a história; Meinecke considerou essa questão na obra O
nascimento do historicismo (1936), que se destinava a mostrar a
formação histórica do historicismo a partir da dissolução da
filosofia do direito natural. Esta filosofia constituía, segundo
Meinecke, " uma firme estrela polar no meio das tempestades de
toda a história universal", visto que considerava a razão humana
como eterna e intemporal e se destinava precisamente a guiar o
homem na enorme variedade das vivências históricas. O
reconhecimento da individualidade de todos os fenómenos
históricos, efectuado pelo historicismo, individualizou a própria
razão, ou

melhor, transformou-a numa força histórica que assume diferentes


fisionomias em diferentes épocas e que por isso conduz a uma
radical relatividade dos valores. Meinecke julga subtrair-se a esta
relatividade retomando Goethe "que concebeu a missão individual e,
do ponto de vista humano, relativo, da própria vida, como desejada
por Deus e, portanto, absoluta" e que aconselhou a não perder,
quando se admitem os condicionalismos históricos, "a obscura
nascente de forças que é constituída pela fé nos valores últimos
absolutos e numa fonte última, igualmente absoluta, de toda a vida"
(Die Entstehung des Historismus, 11, p. 625). E, além de Goethe,

238

Meinecke recorre a Ranke sintetizando assim as suas posições: "um


Deus superior ao mundo que, além de ser criado por ele, é
percorrido pelo seu espírito e por isso lhe é afim, e também ao
próprio tempo, igualmente imperfeito em tantos aspectos" (Ib., 11,
p. 645). O pressuposto romântico da identidade entre finito e
infinito é assim acentuado por Meinecke, mas limitado no que
respeita ao infinito, no sentido de que este transcende o finito, isto
é, a história: um sentido que, no entanto, o romantismo tinha
conhecido na sua segunda fase e que constitui, como se viu, o
fundamento do retorno romântico à tradição (§ 613).

§ 743. WEBER: INDIVIDUALIDADE, SIGNIFICADO, VALOR

Em 1936, como a publicação do Nascimento do historicismo de


Meinecke, pode considerar-se findo o ciclo histórico do
historicismo alemão, entendido como corrente ou manifestação da
filosofia contemporânea. Mas a sua influência sobre a metodologia
historiográfica, sobre a sociologia, a ética e, em geral, todo o
domínio das chamadas ciências do espírito, continua ainda depois
daquela data, sobretudo através da obra de Weber; é por isso que
esta é aqui examinada em último lugar apesar de ser
cronologicamente anterior à de alguns dos filósofos já referidos.
Max Weber (1864-1920) foi historiador, economista e político; e os
problemas metodológicos fo-
239

ram-lhe sugeridos precisamente por esta actividade. Os seus


escritos fundamentais são os seguintes: Sobre a história das
sociedades mercantis na Idade Média (1889); O significado da
história agrária romana para o direito público e privado (1891); As
relações entre os trabalhadores agrários na Alemanha oriental
(1892); A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-
1905); As seitas protestantes e o espírito do capitalismo (1906) As
relações agrárias na

Antiguidade (1909) e Economia e sociedade (póstuma, 1922). Para a


metodologia das ciências histórico-sociais são muito importantes os
ensaios: Roscher e Knies e o problema lógico da economia político-
histórica (1903-06); A objectividade dos conhecimentos das
ciências sociais e da política social (1904); Estudos críticos sobre a
lógica das ciências da cultura (1906); Sobre algumas categorias do
estudo sociológico (1913); O significado da avaliação das ciências
sociológicas e económicas (1917) e A ciência como vocação (1919).

No campo da economia e da historiografia, a

posição de Weber caracteriza-se: pela critica da escola histórica


da economia que via em todo o sr, tema económico a manifestação
do "espírito de um povo"; pela crítica do materialismo histórico que,
segundo Weber, esquematiza de forma dogmática as relações entre
as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações de
vida em sociedade, isto quando tais relações, em sua opinião, se
iriam esclarecendo progressivamente, de acordo com os aspectos
particulares da sua evolução, e pelo reconhecimento da influência
que podem ter as for-
240

mas culturais, a religião por exemplo, sobre a estrutura económica.


Este último ponto é esclarecido na obra sobre A ética protestante
e o espírito do capitalismo, na qual Weber mostra como a ética
calvinista foi favorável ao capitalismo, à procura do lucro como fim.
em si mesmo, independentemente da sua utilidade, e à consciência
do dever profissional como dever moral.

No campo -da investigação metodológica, Weber aceita álbuns dos


resultados fundamentais do historicismo alemão, principalmente o
reconhecimento do carácter individual do objecto das ciências
histórico-sociais. "Um ponto de partida de grande interesse nas
ciências sociais, afirma, é sem dúvida a configuração real, portanto
individual, dia vida social que nos rodeia, se é verdade que,
considerada como um

todo, ela é universal, não é menos verdade que ela só pode ser
atingida individualmente e a partir de outros níveis sociais de
cultura, os quais, por sua

vez, também só podem ser atingidos individualmente" (Gesammelte


Azifsãtze zur Wissenschaftslehre, p. 177). Mas a individualidade
do objecto histórico é, para Weber, o resultado da opção
individualizante que se encontra na origem da investigação
histórico-social. A individualidade não pertence nem à substância
nem à estrutura do objecto em si; ela é o resultado da escolha do
objecto feita pela própria investigação, isolando-o num conjunto de
outros objectos, considerados relativamente "insignificantes". Ora
aquilo que dá significado a um objecto e que o individualiza ao
propô-lo como tema de investigação, é o valor que &e é atribuído.
Weber
241

aceita aqui a tese de Wckert segundo a qual a

historicidade de um objecto é constituída pela sua relação com o


valor (§ 728). Mas corrige esta tese ao afirmar que a relação entre
objecto e valor depende do investigador; não se trata, como
pretendia Rickert, de uma conexão necessária de uni certo
objecto com um certo valor transcendente. Isto implica a
relatividade dos critérios de escolha do conhecimento histórico e
ainda a **imilateí-alidade da pesquisa histórica que, conforme se
orienta para um ou outro

valor, assim vai delimitando o seu campo. Deste ponto de vista, toda
a disciplina constitui o seu próprio objecto, orientando as escolhas
que efectua para os

valores que correspondem aos seus interesses. É por isso que "são
as ligações conceptuais do problema que se encontram na base do
campo de trabalho das ciências, e não as conexões objectivas entre
as coisas: quando se estuda um novo problema usando novos
métodos, e desse modo se descobrem verdades que dão lugar a
novos pontos de vista significantes, surge uma 'ciência'" (Ges.
Aufsülre z. Wiss., p. 166). O conhecimento histórico é portanto
assistemático, no sentido de que não pode dar lugar a

um sistema total **def"tivo das ciências da cultura. E a própria


cultura não constitui um único campo de investigação mas sim um
conjunto de campos autónomos cuja coordenação depende do
diferente desenvolvimento de cada um desses campos.

Tudo isto significa que o conhecimento da realidade cultural é


sempre um conhecimento desde um ponto de vista particular. "Seria
ias ideias de valor do próprio investigador, diz Weber, não haveria
ne-
242

nhum princípio para a escolha da matéria e nenhum conhecimento


significativo do real na sua individualidade; e como sem a fé do
investigador no significado de qualquer conteúdo cultural perde
imediatamente sentido toda a tentativa de conhecimento da
realidade individual, também a direcção em que se manifesta a sua
fé pessoal, ou seja, a refracção ,dos valores no espelho da sua alma,
indicará a direcção do seu trabalho" (Ib., p. 181). É da escolha
subjectiva dos valores que depende, portanto, a

decisão sobre os objectos que têm ou não -valor, quer dizer, daquilo
que é ou não significativo, daquilo que é " importante" ou não. A
investigação não pode ser iniciada e conduzida sem este factor
decisivo que é a escolha do investigador, mas por outro lado,
segundo Weber, este factor não torna subjectiva ou arbitrária
toda a investigação, não limita a sua validade ao investigador que a
efectuou. Com efeito, qualquer que seja o valor que guiou o

trabalho do investigador, os resultados da sua pesquisa devem ter


uma validade objectiva, isto é, devem ser válidas "para todos
quantos queiram a

verdade", e tal validade pode ser conseguida devido à dIsciplina


própria da investigação, disciplina que, segundo Weber, é de
natureza causal.

§ 744. WEBER: A POSSIBILIDADE OBJECTIVA

O recurso à explicação causal, considerada própria não só das


ciências naturais como também das historico-sociais, é o ponto
fundamental em que

243

Weber se distancia da tradição do historicismo alemão. Este último


considerava que a explicação causal era aplicável apenas às ciências
da natureza; por esta razão, contrapunha-lhe, como procedimento
próPrio das ciências do espírito, a compreensão imediata, intuitiva e
sentimental do objecto individual. Weber abandona esta antítese e
considera que o próprio "compreender", longe de ser um
procedimento intuitivo e emotivo, dá origem a unia interpretação
que é constituída essencialmente por uma explicação causal. "Para ia
história, em particular, ,afirma Weber, a forma da explicação
causal deriva do seu postulado como "interprete inteligente. A
interpreta-ção do histórico não se !dirige, no entanto, à nossa
capacidade de subordinar os "factos", tidos como exemplares, a
conceitos de espécie e a fórmulas, mas sim à nossa confiança na
tarefa, que se nos apresenta quotidianamente, de 'compreender' o
agir humano individual nos seus motivos" (1b., p. 136). A explicação
causal apresenta-se portanto com um carácter próprio no domínio
das ciências histórico-sociais. Em primeiro lugar, trata-se de
escolher. entre a infinidade de factores que determinam um
objecto histórico, uma série finita desses factores que constitua
um campo específico de investigação;

e a possibilidade de tal escolha baseia-se uma vez mais nos valores


que orientam essa mesma investigação. Em segundo lugar, trata-se
de determinar, **In,

enti*c os elementos de uma série causal assim individualizada, um


esquema de relações que seja susceptível de verificação ou de
controle. A esta segunda exigência corresponde o uso da noção de
pos-
244

sibilidade objectiva, que Weber considera fundamental na


explicação histórica.

O recurso a esta noção faz-se isolando num processo histórico uma


ou mais componentes causais objectivas, supondo que essas
componentes se modificam e verificando-se se, com tal
modificação, o

processo histórico se teria mantido igual àquele que nós


conhecemos ou, se assim não acontecesse, qual seria a nova forma
que revestiria (1b., p. 273). Como ilustração deste modo de
proceder, Weber apresenta um exemplo tirado da Geschichte des
Altertums de Edward. Mayer, sobre o significado histórico da
batalha de Maratona. Aqueda batalha foi a decisão entre duas
possibilidades: de um lado, o prevalecimento de -uma cultura
religioso-,teocrática, de outro a vitória do mundo espiritual
helénico, de cujos valores culturais sornos, ainda hoje, herdeiros.
Em Maratona prevaleceu esta segunda possibilidade; foi esta a
condição preliminar de um curso de acontecimentos bastante
importantes na história universal. Ora o nosso interesse histórico
por aquele acontecimento baseia-se precisamente, segundo Weber,
no

papel decisivo que ele desempenhou relativamente às duas


possibilidades que se defrontavam. "Sem a valoração de tais
possibilidades, acrescenta, e dos

insubstituíveis valores culturais entre os quais se verificou aquela


decisão, seria impossível determinar o significado; e seria portanto
impossível compreender porque razão não consideramos esse
acontecimento como sendo equivalente a uma escaramuça
245

entre duas tribos cafres ou indianas" (Ges. Aufsã!ze z. Wiss., p.


274). Por outros termos, a explicação causal não consiste, segundo
Weber, em reconhecer um acontecimento como sendo
necessariamente determinado pela série causal (que é, no entanto,
necessária) dos acontecimentos precedentes, mas sim em

isolar, numa situação histórica determinada, uni

campo de possibilidades,- em mostrar as condições que tornaram


possível, naquela situação, a decisão

a favor de uma determinada possibilidade; e, finalmente, em


esclarecer o significado de tal decisão mediante o confronto com as
outras possibilidades que constituíam, do mesmo modo, a situação
histórica considerada. Todo este esquema se move, portanto, sobre
a noção de possibilidade ou, mais especificamente, de possibilidade
objectiva. Webor adverte que a categoria da possibilidade não deve
ser entendida numa forma negativa, isto é, enquanto expressão de
uma ignorância ou de um saber imperfeito (corno ao afirmar "é
possível que o comboio já tenha passado", em que não se sabe se o
comboio já passou ou não), mas no seu sentido positivo, ou

seja, enquanto designa uma antecipação, previsão ou prospectiva


com uma base real controlável.

Mas para que a possibilidade possa ser reconhecida, neste sentido,


como sendo objectiva, ela deverá ser, por um lado, baseada em
"factos" que possam ser averiguados e que pertençam à situação
histórica considerada, e.. por outro lado, deverá estar de acordo
com **"ro,,ras empíricas ,crais", ou
j

246

com um determinado saber nomológico. No caso

da batalha de Maratona, por exemplo, as duas possibilidades que se


defrontam não só deviam resultar de suficientes dados
documentais como, também, deveriam estar-mesmo a possibilidade
que foi posta de parte-de acordo com as regras gerais da
experiência e, em primeiro lugar, com as que regem a motivação do
comportamento humano. O saber nomológico não é, portanto,
excluído do conhecimento histórico, mas antes utilizado
instrumentalmente, como critério para a autenticação das
possibilidades objectivas. E para satisfazer a esta tarefa, ele
deverá constituir conceitos de tipos ideais, ou seja, "quadros
conceptuais uniformes" que acentuem ou levem ao extremo a
uniformidade que se pode encontrar num grande número de
fenómenos empíricos, podendo consequentemente servir como
termos de confronto a fim de atingir o significado dos próprios
fenómenos (1b.,p. 194). São, segundo Weber, conceitos típico-ideais
de objectos históricos particulares, como, por exemplo, o
cristianismo, o capitalismo, etc., ou de espécies de objectos tais
como

o conceito de Estado, de Igreja ou os conceitos de

economia política que nunca são realizados na sua

"pureza ideal" na realidade empírica, mas que servem como meio


para a entender e para explicar os
seus condicionamentos. De qualquer modo, os conceitos típicos
ideais constituem uniformidades-limite que são indispensáveis à
investigação histórica para a determinação da individualidade dos
seus objectos.

247

§ 745. WEBER. A SOCIOLOGIA INTERPRETATIVA

A investigação histórica, devido ao seu carácter ,individualizante,


não pode deixar, segundo Weber, de utilizar conceitos universais ou
gerais que são próprios das ciências que têm como fim a formulação
de leis. Entre as ciências nomológicas consideradas como
instrumentos da indagação historiográfica, Weber considerou
principalmente a sociologia, podendo considerar-se como um dos
resultados mais importantes da sua obra a determinação da
natureza e :da tarefa da sociologia.

Dilthey tinha feito notar que ia psicologia constituía a ferramenta


principal da historiografia: o

compreender histórico estava para ele, intrinsecamente ligado à


experiência vivida, isto é, à penetração puramente interior do
espírito pelo próprio espírito. A posição de Weber é, neste ponto,
oposta à de Dilthey: o compreender histórico deve realizar-se
sobre a dimensão objectiva do mundo espiritual o

não sobre a sua dimensão subjectiva. Ora esta dimensão objectiva é


o objecto específico da sociologia,
* qual -se torna deste modo, e em lugar da psicologia,
* ciência auxiliar fundamental da historiografia. No entanto, a
sociologia não é apenas isto: ela é primordialmente uma ciência
autónoma que encontra o seu objecto específico na uniformidade
existente nas acções humanas, isto é, na atitude (Verhalten). "A
atitude humana, afirma Weber, apresenta conexão e regularidade
de desenvolvimento relativamente a qualquer devir. Aquilo que é
próprio, pelo menos

248

MAX WEBER

em sentido lato, da **qMMhumana são as conexões e regularidades


cujo **iaMMe ol@vimento pode ser interpretado pelo M-
(1b., p. 429). A sociologia tem em comum com historiografia a sua
forma de proceder, ou seja, a "compreensão interpretativa; mas tal
processo, na -.**ioiti(sir*Igia, aplica-se às uniformidades que
poderneizucm =se no agir humano devido a este ser um agir social,
"u seja, referindo-se constantemente ao agir dos sintros. Portanto,
enquanto objecto específico da <**oiõi(ologia, a atitude humana
caracteriza-se do seguinte modo: 1) é intencionalmente referida
por parte iólaquele que age, às atitudes dos outros; 2) é @.<;,wnére
determinada por essa referência; 3) pode ser w4%Ikada partindo
apenas do sentido de tal referência W., p. 429). Considerando a
distinção estabelecida Or4 Tõnnies (Comunidade e sociedade, 1887)
entre -4 "comunidade", na qual as irelações humanas estão
kitrínseca e orgânicamente integradas, e a na qual ias
rolações são externas ou impessoais, MÉber distingue o ag,;r em
comunidade que é id~elo às atitudes dos outros homens segundo um
*44reio que está nas intenções daquele que age, e o agir >m
sociedade no qtial os

actos são rereridos a iessi sentido próprio a unia

ordem já estabelecida. Em -imbos os casos essa referência aos


actos alheios *welui uma expectativa de uma determinada atitude
iossível de outros inctivíduos e orienta-se pelo @w.IMhlo das
diversas possibilidades que é necessário ter em conta como
possíveis consequências do seu IUúe U@o agir. "Um fundamento
significativo e "~ ~-Mite importante do agir, afinna Weber, é a
maior ou menor probabilidade,

Z196

expressa por um juizo de possibilidade objectiva, de que tal


expectativa tenha razão de ser" (Ges. Aufsãtze z. Wiss., p. 441).
Por outras palavras, é possível compreender e explicar uma atitude
individual a partir da possibilidade objectiva de que a

expectativa de quem a assume !tenha um eco nas atitudes dos


outros. Podemos compreender, por exemplo, a atitude de um
batoteiro partindo apenas da possibilidade objectiva -de que os
outros participantes no jogo observem, de acordo com a
expectativa do batoteiro, as regras do jogo. É deste modo que a
noção de possibilidade objectiva que Weber tinha considerado como
fundamento do compreender historiográfico, acaba por assumir uma
função dominante na própria "sociologia interpretativa". Unia
atitude que se baseia no cálculo (mesmo subjectivo) das
possibilidades oferecidas pelas atitudes de outrem é, segundo
Weber, uma atitude "racional", ou seja, que atinge os seus fins. Com
efeito, esta atitude "orienta-se exclusivamente a partir dos meios
que se considera (subjectivamente) adequados aos fins concebidos
(subjectivamente) de forma precisa" (Ib., p. 428).

No primeiro capítulo de Economia e Sociedade, no qual Weber


expôs sistematicamente os conceitos fundamentais da sua
sociologia, estão diferenciados quatro tipos do agir social: 1) a
atitude racional relativamente aos fins que é determinada pela
expectativa. da posição dos objectos do mundo externo e da
atitude dos outros homens; expectativa essa que vale como
condição ou meio de alcance dos fins pretendidos; 2) a atitude
racional relativamente

250

aos vetores que é condicionada pela crença no valor ilimitado le um


comportamento. independentemente das suas consequências; 3) a
atitude afectiva, determinada pelas emoções; e 4) a atitude
tradicional que é determinada pelos hábitos adquiridos (Wirtschaft
und Gesellschaft, 1, 1, § 2). Estas atitudes, faz notar Weber,
constituem no entanto "tipos conceptualmente puros" que se
encontram mais ou menos combinados na realidade social, mas que
são indispensáveis para a interpretar. Por outro lado, do ponto de
vista da racionalidade relativamente ao fim, a racionalidade relativa
dos valores encontra-se num outro plano: "e isto porque ela se
preocupa tanto menos com as consequências do agir quanto mais
assumir como incondicionado o valor em si (a intenção pura, a
beleza, o bem absoluto, o respeito absoluto dos deveres)". Por
outro lado, também a

absoluta racionalidade relativamente aos fins é apenas um caso


limite, uma construção ideal.

§ 746. WEBER: DESCRIÇÃO E VALORAÇÃO

A intenção fundamental das indagações metodológicas de Weber


foi a de encontrar as bases duma autonomia das ciências da cultura
dum modo correspondente, a-pesar de não ser análogo, ao modo
como tal autonomia fora já atribuída às ciências da natureza. Como
vimos, Weber não aceitou a antítese radical que outros
historiadores (a começar por Dilthey) tinham estabelecido entre os
dois grupos
251

de ciências: reconheceu a explicação causal como

própria de ambos os grupos. Por outro lado, esclareceu o carácter


específico que a explicação causal assume no domínio idas ciências
da cultura; e serviu-se do conceito de possibilidade objectiva como
base para o esclarecimento ;deste problema. Mas apesar da
diversidade específica dos instrumentos de que dispõem, os dois
grupos de ciências têm em

comum, segundo Weber, a sua tarefa fundamental: a descrição dos


fenómenos. Se bem que Weber entenda o termo "descrição" no
sentido restrito de simples registo dos factos, polemizando contra
a validade de qualquer outro sentido desse termo e preferindo
ater-se a palavras como "constatação" e similares, é do ideal da
descrição (no sentido mais geral que serviu às ciências da natureza,
do século XVII até aos primeiros decénios do nosso século, para se
distinguir da velha ciência aristotélica, libertar-se das suas
sobrevivências e esclarecer quais as suas efectivas possibilidades
de investigação) que Weber se utiliza para atingir os mesmos fins
no campo das ciências da cultura. Mas se no campo das ciências da
natureza a "descrição" se opunha à "explicação" ou "hipótese"
metafísica, no das ciências da cultura a "descrição" opõe-se à
"valoração".

Pode-se encontrar esta oposição em toda a obra de Weber, mas


onde ela se encontra melhor expressa é num ensaio de 1917 sobre a
"avalorabilidade" (Wertfreiheit) da sociologia e da economia. Estas
ciências, na opinião de Weber, podem exclusivamente constatar ou
descrever a realidade empírica e for-
252
necer respostas a questões deste género: "como se

desenvolve um determinado facto concreto, qual a

razão de o seu conteúdo concreto surgir com uma

dada configuração; se é possível estabelecer uma

regra do devir dos conteúdos, de tal modo que a um

deles se sucede um outro; qual a probabilidade de aplicação dessa


regra". Fora do campo -dessas ciências, o juízo valorativo propor-
se-á questões de um

outro género: "0 que se deve fazer numa dada situação concreta e
de que ponto de vista é que essa situação pode ser considerada ou
não satisfatória" (Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschftslehre, p.
495). É óbvio que Weber não nega que a ciência possa e

deva ocupar-se dos valores e das valorações, que são factos. do


mesmo modo que quaisquer outros; mas observa que "quando, aquilo
que vale normativamente se torna objecto duma investigação
empírica perde, como objecto, o carácter normativo: é considerado
como existente, não como válido" (1b., p. 517). O que, neste caso, a
ciência assume legitimamente como objecto de investigação não é a
validade dos valores mas a sua realização: ou melhor os meios para
os realizar e os conflitos a que tal realização dá origem. Por outros
termos, e segundo uma fórmula que Weber já tinha ilustrado no
ensaio sobre a objectividade das ciências sociais, a consideração
científica diz respeito à técnica dos meios e não à valoração dos
fins (1b., págs. 149 e segs.). A valoração é uma tomada de posição
prática, uma
decisão que respeita a cada homem e à qual nenhum homem se pode
subtrair, mas que não é satisfeita pela tarefa descritiva da ciência.
Mesmo questões

253

relativamente simples como, por exemplo, a da medida em que um


fim pode legitimar os meios indispensáveis, a de ter-se ou não em
conta as suas possíveis consequências indesejáveis ou o poder-se
diminuir os conflitos entre fins diferentes -todas elas são objecto
de opção ou -de compromisso, não de ciência. "A nossa ciência, diz
Weber, que é rigorosamente empírica, não pode pretender tirar ao

indivíduo esta possibilidade de opção e não pode sequer suscitar a


aparência de ser capaz de o fazer".

No entanto, faz parte do trabalho descritivo da

ciência a consideração dos conflitos a que pode conduzir a opção


dos fins e que são conflitos entre valores ou entre esferas de
valores. Weber acentua a importância destes conflitos. "Entre os
valores Oxiste, em última análise (e em quaisquer condições), não
uma simples alternativa mas sim uma luta mortal, sem possibilidades
de conciliação como, por exemplo, entre "Deus" e o "Demónio".
Entre eles não é possível nenhuma conciliação ou compromisso; e não
é possível, bem entendido, devido àquilo que cada um deles
significa" (Ib., p. 493). A relatividade dos valores, entendida como
conexão orgânica entre os valores e a sua época ou o seu ambiente
cultural, é excluída, segundo Weber, pela presença inevitável do
conflito entre os valores: conflito que coloca o

homem, como afirmava Platão referindo-se à alma, na situação de


dever escolher o seu próprio destino, ou seja, "o sentido do seu agir
e do seu sem.

Este conflito manifesta-se sobretudo no campo da ética: como


conflito entre a ética da intenção ou do "querer puro" e a ética da
responsabilidade

254

que julga a acção partindo das consequências previstas como


possíveis ou como prováveis. As regras de conduta de ambas as
éticas manifestam-se imediatamente em contradição, contradição
essa que não pode ser resolvida pela própria ética. Ã ética da
responsabilidade interessa essencialmente considerar a relação
entre meios e fins e a situação, de facto em que deve ser explicada.
a acção humana-, mas

mesmo essa não nos oferece um meio de orientação na luta política,


na qual existe uma inesgotável contradição entre valores.
Concluindo, do mesmo modo que as ciências naturais nos dizem o que
devemos fazer se quisermos dominar tecnicamente a vida, sem, no
entanto, nos dizerem se tal domínio tem algum sentido, também as
ciências da cultura nos permitem compreender os fenómenos
políticos, artísticos, literários e sociais a partir das condições em

que surgiram, sem nos -dizerem, no entanto, se tais fenómenos têm


ou tiveram algum valor ou mesmo

se valerá a pena tentarmos conhecê-lo. Neste sentido, a própria


ciência é uma "vocação" (Beruf): a vocação da clareza, isto é, do
conhecimento que o homem pode ter dos fins das suas próprias
acções e dos meios para os realizar (Ib., p. 592).
§ 747. TOYNBEE

Está relacionado com Spengler, directa e polemicamente, o


historiador inglês Arnold J. Toynbee (nascido em Londres em
1889), autor de uma grande obra em 10 volumes intitulada Um
esiudo da his-
255

toria, a génese da civilização (1934-54), e de dois volumes, A


civilização posta à prova (1949) e O mundo e o ocidente (1953).

Toynbee concorda com Spengler ao assumir como unidade mínima da


indagação histórica a civilização (ou cultura), e ao considerar esta
indagação como tendo por fim a formulação de uma morfologia da
civilização, isto é, uma ciência das "leis" que presidem ao seu
desenvolvimento; mas opõe-se polemicamente a Spengler quando
efectua esta indagação, como ele próprio declarara, recorrendo ao
método empírico da tradição inglesa e não ao método apriorístico da
tradição alemã (Civilization ou Trial, p. 10). Por conseguinte, a
civilização não é para Toynbee um organismo sobreposto às
necessidades do determinismo biológico mas sim uma totalidade de
relações não-necessárias entre indivíduos que encontram nela uma
forma de comunicarem, mas que conservam a sua capacidade de
iniciativa e um certo grau de liberdade. Deste ponto de vista, é
possível uma comparação entre as civilizações, as quais não são
(como pensava Spengler) mundos absolutos fechados sobre si
mesmo. A ciência empírica da história consiste precisamente em
comparar as diferentes civilizações e em encontrar no
desenvolvimento de cada uma delas os traços que lhes sejam
comuns

ou uniformes: que, por um lado, permitam a compreensão das


conexões causais que se verificam no âmbito de uma mesma
civilização ou na relação entre diferentes civilizações e que, por
outro lado, consistam na formulação, a partir destas conexões, de
urna previsão provável sobre o desenvolvimento

256

de uma determinada civilização. Tudo isto, segundo Toynbee, não


permite que se reduza o desenvolvimento das diferentes
civilizações a um único esquema, já que tais civilizações conservam
linhas de desenvolvimento independentes e processos evolutivos
diversos (A study of History, 1, págs. 149 e segs.).

Deste ponto de vista não se podem encontrar factores que


determinem, necessariamente a génese e o desenvolvimento das
civilizações. Os dois factores a que mais frequentemente se atribui
este poder determinante, o ambiente físico-social e a raça, são
ambos criticados por Toynbee ao afirmar que se

tais factores fossem rigorosamente determinantes, a

sua acção deveria ser sempre uniforme e conduziria sempre aos


mesmos efeitos; o que na realidade não acontece. Por outro lado,
isto não significa que a acção dos homens na história seja
independente de quaisquer condições que a limitem, ou seja,
absolutamente livre; Toynbee elabora sobre este assunto a sua mais
famosa doutrina, a da provocação e

resposta. Uma civilização surge, diz Toynbee, quando um grupo de


homens consegue fornecer uma resposta eficaz a uma provocação
do ambiente físico e

do ambiente social que o rodeia. Todo o ambiente físico-social, toda


a situação em que os homens se encontrem, coloca-os perante uma
provocação; mas a natureza da resposta que elos derem a tal
provocação não pode ser previsível de forma rigorosa, dependendo
por isso dos próprios homens (A Study of History, 1, págs. 271 e
segs.). O reconhecimento de um certo grau de liberdade no agir
humano é indispensável, segundo Toynbee, para compreender

257

a diferente génese e o diferente desenvolvimento que tiveram as


civilizações humanas quando se encontraram perante condições
objectivas uniformes e constantes-Mas, por outro lado, este grau
de liberdade não é infinito: a situação em que os homens se
encontram actua como limite condicionante. Podemos dizer, para
exprimir o ponto de vista de Toynbee, que a

provocação consiste sempre num problema ao qual os homens dão


uma solução: o problema condiciona a solução mas admite, em si
mesmo, várias soluções, pertencendo aos homens a opção entre
estas diferentes soluções. Isto explica a diversidade recíproca das
civilizações e, ao mesmo tempo, a uniformidade que elas apresentam
e que as torna confrontáveis.

É sobre esta base que Toynbee nega a legitimidade da pretensão,


defendida por Spengler, de prever infalivelmente a morte da
civilização ocidental. Esta civilização encontra-se certamente em
crise; mas a

sua sorte não pode ser determinada antecipadamente, visto


depender do modo como os homens que nela vivem possam
responder a esta provocação. Toynbee pensa, no entanto, que a
sorte de uma civilização está necessariamente relacionada com um
reforço do espírito religioso. Neste ponto, a sua doutrina resulta
estéril, acentuando-se tal situação nos últimos livros que escreveu.
Como resultado dever-se-ia concluir que a génese e o
desenvolvimento de todas as civilizações ocorrem segundo
determinadas linhas que só podem ser encontradas empiricamente,
e que a comparação entre elas exige a determinação de tais linhas
mediante critérios metodológicos precisos; mas Toynbee dá

258

mais importância a este último aspecto, elaborando um conjunto de


21 civilizações sem que tal número seja suficientemente justificado
e escolhendo certas determinações constitutivas dessas
civilizações sem

obedecer a um critério justificado ou justificável. Por outro lado,


atribui ao cristianismo uma função extremamente importante na
conservação e no progresso das civilizações, fazendo dele o fim de
tal progresso, já que " as civilizações têm a sua raison d'être na sua
contribuição para o progresso espiritual" e

que o desenvolvimento das várias religiões deve conduzir a "um


mútuo reconhecimento ida sua unidade essencial apesar da sua
diversidade" (1b., VII, p. 448). Esta doutrina torna-se assim uma
espécie de teologia da história e um anúncio profético do êxito
místico final da história humana.

§ 748. HISTORICISMO: CORRENTES METODOLóGICAS

Resulta evidente do que foi dito neste capítulo que o historicismo


(como, aliás, todas as correntes filosóficas) não constitui no seu
conjunto uma doutrina única e coerente que se fosse diversificando,
em cada pensador, por aspectos particulares. A unidade do
historicismo (como de todas as outras correntes) é a unidade do
problema que ele enfrenta: o do conhecimento histórico, do seu
objecto e dos

N. dos T. - Em francês no texto original.

259

seus métodos. Pode-se sem dúvida estabelecer uni balanço dos


resultados obtidos por esta corrente pondo em evidência os pontos
em que haja acordo unânime, ou quase unânime, de todos os seus
defensores: dela resulta, por exemplo, o reconhecimento do
carácter individual do objecto histórico e, por outro lado, o do
carácter específico do instrumento de que se serve o conhecimento
histórico, isto é, o da compreensão ou da interpretação
historiográfica. Mas, para além da constatação da existência destes
pontos, que foram, aliás, atingidos e justificados diferentemente
por cada um dos pensadores, e da unidade do problema, não se pode
falar do "historicismo" como tratando-se de uma doutrina única e
simples que possa ser examinada, discutida e refutada na sua
totalidade. Mas até mesmo esta tentativa, que foi realizada por
muitos escritores contemporâneos, revela, na disparidade dos alvos
que cada um -deles pretendia atingir com a sua crítica, o erro de tal
atitude. Com efeito, estabelece-se por um lado a equação entre
historicismo e relativismo e objecta-se precisamente ao
historicismo a sua incapacidade de garantir o carácter normativo
dos valores e a obra da razão, como fez Leo Strauss (Natural R!-
*ght and History [Direito natural e história], 1953); ou a sua
incapacidade de dar um sentido total à história, como fez Jaspers
(Vom Ursprung und Ziel der Geschichte [A origem e o fim da
história], 1949); ou a tentativa de substituir uma fé fictícia à
autêntica fé religiosa, como fez Karl Lõwith (Meaning in His- tory
[Significado da história], 1949). Ou então negu-se aquela
identificação e vê-se no historicismo a
')60
defesa dos valores humanos, como fez Theodor Litt (Die
Wiedererweckung des geschichtlichen Bewusstsein [0 despertar da
consciência histórica], 1956)-, ou ainda urna manifestação ido
"essencialismo", isto é, da metafísica tradicional e, parcialmente, o
recurso a esquemas científicos superados por esse carácter
metafísico, como fez Karl Popper (The Poverty of Historicism [A
pobreza do historicismol,
1944). Em todas estas interpretações e críticas descuram-se
precisamente as manifestações mais salientes do historieismo, isto
é, os resultados obtidos por Dilthey e Weber.

A sequência do historicismo alemão contemporâneo deve, portanto,


ser procurada, mais do que nesta literatura polémica, na
continuação do trabalho metodológico que o historicismo iniciou no
campo das ciências da cultura: ou seja, na discussão, na
experimentação e na rectificação dos resultados a que ele chegou.
Deste ponto -de vista, o problema mais importante continua a ser o
da natureza e limites do instrumento cognoscitivo, de que dispõem
essas ciências, ou seja, o do esquema explicativo a que recorrem.
Podem-se então distinguir duas direcções fundamentais: a que
tende a relacionar o esquema explicativo próprio destas ciências
com o das ciências naturais e a reconhecer na explicação causal a
única

explicação possível em todo o campo do saber, e a

que tende a esclarecer a natureza de uma explicação condicional,


considerada específica das ciências da cultura.

A primeira direcção foi a adoptada pelo Círculo de Viena (§ 808) e,


especialmente, por Otto Neurath
261

(Empirische Soziologie [Sociologia empirical, 1931), tendo surgido


mais tarde na Enciclopédia internacional da ciência unificada
através de um ensaio do próprio Neurath (Foundations of the
Social Sciences [Fundamentos das ciências sociais], 1944); foi
defendida por Carl G. Hempel (The Functions of General Laws in
History [A função das leis gerais na

história], e por Patrick Gardiner (The Nature of Historical


Explanation [A natureza da explicação histórica], 1952). Deste
ponto de vista, a explicação histórica é uma explicação causal no
sentido clássico: consiste em determinar a causa (C) de um
acontecimento (A) e esta determinação pode ser feita mostrando
apenas como é que o acontecimento A pode ser "logicamente
deduzido" de certas leis gerais segundo as quais um conjunto de
acontecimentos da espécie C é acompanhado regularmente de um
acontecimento da espécie A (Hempel, in Readings in Philosophical
Analysis, 1949, págs. 459 e segs.). A explicação causal é aqui
entendida no sentido mais rigoroso (substancialmente aristotélico),
como possibilidade de deduzir o efeito a partir da causa pela
aplicação de uma lei geral que exprima precisamente a

acção da causa. E a explicação histórica distinguir-se-ia da


verdadeira e propriamente dita explicação, quando muito, por ser
um esboço de explicação, isto é, uma explicação imperfeita ou
aproximada.

A outra direcção metodológica é defendida sobretudo por


historiadores de profissão, os quais procuram esclarecer a
natureza dos instrumentos com que operam, e releva principalmente
do conceito de Weber da possibilidade objectiva. Podemos encon-
262
trá-la na obra de Raymond Aron (Introduction à la Philosophie de
Vhistoire [Introdução à filosofia da história], 1938); La philosophie
critique de l'histoire [A filosofia crítica da história], 1938); em
Mare Bloch (Apologie pour l'histoire [Apologia da história], 1954);
em Butterfield (History and Human Relations [A história e as
relações humanas], 1951; em Pietro Rossi (Lo storicismo tedesco
contemporaneo [0 historicismo alemão contemporâneo], 1956, em
William Dray (Laws and Explanation in history [Leis e explicação
históricas], 1957); em H. Stuart Hughes (Consciousness and
Society [Consciência e sociedade], 1958); em John H. Randall
(Nature and Historical Experience [A natureza e a experiência
histórica], 1958); tendo si-do ainda defendida por historiadores e
filósofos americanos em dois volumes colectivos (Theory and
Practice in Historícal Study [Teoria e prática nos estudos
históricos], 1946; The Social Sciences in Historical Study [As
ciências sociais no estudo histórico], 1954). Deste ponto de vista,
insiste-se no carácter individualizante e selectivo do conhecimento
histórico; nega-se, consequentemente, que este conhecimento tenha
por objecto uma totalidade absoluta, o chamado "mundo histórico";
e recorre-se sobretudo à noção -de possibilidade rectrospectiva na
explicação histórica insistindo no carácter condicional de tal
explicação, no

sentido de que esta consiste em individualizar, num campo de


possibilidades, as relações que unem a

possibilidade decisiva às outras.

Pode-se dizer, em apoio desta segunda corrente metodológica, que


o esquema explicativo de que se
263
servem as ciências naturais (e, em primeiro lugar, a
física) actualmente, já se afastou bastante da explicação causal
clássica ou, pelo menos, já se afastou tanto,dela quanto esta
corrente metodológica, iniciada por Weber, se afastou do esquema
explicativo, proposto na primeira fase do historicismo, da
compreensão intuitiva (§ 736). A polémica metodológica entre
ciências do espírito e ciências da natureza perdeu muito da sua
força com esta aproximação; e o

esquema explicativo condicional, que ela tende a

esclarecer, pode considerar-se igualmente afastado do


necessitarismo a que recorria a ciência clássica da natureza e do
indeterminismo a que recorreu, nas suas polémicas iniciais, o
historicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 735. Sobre o historicismo alernão, podem-se considerar


fundamentais as seguintes obras: PIETRo Rossi, Lo storicismo
tedesco coni6mporaveo, Turim, 1936; RAYMOND ARON, La
philosophie critique de Ilhistoire, Pariis, 1950.

§ 736. U@ Dilthey, existe uma bibliografia completa das suas obras


em "Archiv für Geschichte, der Phil.", 1912, págs. 154-61. Os
escritos destle autor foram recrlhidos em Gc_,avi~Ite Schriften,
12 vols., Leipzig, 1923-36. Critica della ragione storica, antologia de
escritGs de Dilthey com introwdução e, bíbliografia do Pietro R(ssi,
Turim, 1954.

Sobre Dilthey: L. LANDGREBE, W. Ws Theoric der


Geiste~i,ssenschaften, Halle, 1928; G. MiSCH, 1,ebensphilo,sophie
und Phãnomenologie, Leipzi.-Berlim, 1931; D. BISCHOFF, W. Ws
geschichtliche Lebensphilosorhie,

264

Leipzig-Berlim, 1935; O. F. BOLLNOW, Dilthey, Le@,pzig-Berlim,


1936; H. A. HODGES, W. D., an Introduction, Londres, 1944; The
Phil. of W. D., Londres, 1952; P. Rossi, in "Riv. crit. L,@toria filos.",
1952-53.

§ 739. De Simmel, além dos. iescritos citados: Zur Philosophie der


Kunst, Potsdam, 1923; Vorlesungen iiber Schulpãdagogíe,
Osterwiedik, 1922; Fragmente und Aufsãtze, Munique, 1923. os
problemas fundamentais da filosofia foram trauduzidos para
italiano lyo;r A. Banfi, Florença, 1922. O artigo a que se alude no

texto foi publicado em "A@rchiv für systemati,<@iche


Philosophile", 1895, :e depois em Zur Philosophie der Kunst, págs.
111 e @segs.

Sobre Simmel: A. MAMELET, Le relativisme philosophique chez G.


S., Paris, 1914; M. ADLER, G. S.'8 Bedeutung für die
Geistesgeschichte, Vilena-lieipzig,
1919; N. J. S~MAN, The Social Theory of G. S., Chicago, 1925; H.
WOLFF, The Sociology of G. S., Glenco,e, 111, 1950; A BANFI, in.
Filasofi contemporanei, Milão, 1961, pá.-s. 161-212.

§ 740. De Spengller, Der Untergang des AbendIandes vem citado


na edição definitiva, 2 võls, Munique, 1918-22. Trad. italiana de J.
EVolia, Milão, 1957.

Sobre Spengler: A. MESSER, O. S. als Philosoph, Stuttgart, 1924;


A. FAUCONNET, O. S., Paris, 1925; E. GAUliE, S. und die Romantik,
Berlim, 1937; H. S. HUGHES, O, S., Nova Iorque, 1952; PIETRo
Rossi, Storia e storicismo nella filosofia Milão,
1960, págs. 68-89. Bibliografia in M. SCHROETER, Metaphysik des
Untergangs, Munique, 1949.

§ 741. De Tro,eltsch, Gesammelte Schriften, 4vo,ls., Tübingen,


1922-25; Gesammelte aufsãtze Geistesgeschichte und
Religionsoziologie, Tübingen, 1925.

Sobre,, Troeltseb.: E. VERMEIL, La pensée religieuse de T., Paris,


1922; W. KOKLER, E. T., Tübingen, 1941.

§ 742. De Meinecke, além das obras citadas lio texto, os ensaios


recolhidos em Vop geschiclitliehcn

265

Sinn und vom Sinn der Geschichte, Leipzig, 1939; trad. italiana,
Nápoles, 1948.

Sobre Meinecke: CROCE, La storia come pensiero e come azione,


Bari, 1938, págs. 51-73; W. HOFER, Geschicht8chreibung und
Weltan-schauung, Munique,
1950; CHABOD, in "Rivista Storica Italiana", 1955, págs.
272-88; W. STARK, Introdução à tradução inglesa da Ide'a da
razão de Estado, publicada sob o titulo MacMavellism, New Haven,
1957.

§ 743. De Weber, Gesammelte, Aufsãtze zur Reiigionsoziologie, 3


vols., Tübingen, 1920-21; Gesammeite Aufsãtze zur Sozial-und
Wirtschaftgsechichte, Tübingen, 1924; Gesammelte Aufsãtze zur
Wissenschaftslehre, Tübingen, 1925. Traduções italianas: Lletica
protestante e lo spirito del capital@smo, Roma, 1945; Il lavoro
intellettuale come professione, Turim, 1948;
11 metodo delle seienze storico-sociali, Turim, 1958 (contém os
ensaios metodológicos fundamentais); Econonzia e società, 2 vols.,
Milao, 1961.

Sobre Weber: MARIANNE WEBER, M. W., ein, Lebensbild,


Tübingen, 1921; K. JASPERS, M. W., Oldenburg, 1932.

§ 744. Sobre a metodologiade, Weber: B. PFISTER, -Die


Entwicílung zum Idealtypus (Ei-ue A1ethodolog@sche Untersuchung
über das Verhã1tnis von Theorte und Geschichte bei Menger,
Schmoller und M. W.), Tübingen, 1928; W. BIENFAIT, M. W.Is
Lehre vom

geschichtUchen Elkennen, Berlim, 1930; A. VON SCHELTING, M.


W.18 Wissenschaftslehre, Tübingen, 1934; T. PARSONS, The
Structure of Social Action, 1937; 2.1 edi~ ção, Glencoe, 111., 1949;
PIETRO Rossi, Storia e storicismo nella filosofia contemporanea,
cit. págs. 93-132.

§ 745. Sobre a sociologia de Weber: T. PARSONS, Op- cit.,; R.


ARON, La sociologie allemande contemporaine, Paris, 1950.

§ 746. Sobre o conceito de aval,,>rabilidade: A. VON SCHELTING,


Op. cit.; R. ARON, La phil. critique

266

de Phistoire, Cit.; PIETRO ROSSI, 1,o storicismo tedesco


contemporaneo, cit.

§ 747. De Toynbee: foram traduzidos para italiano os dois


primeiros volumes da sua obra principal sob o titulo Panorami della
storia, Milão, 1954; Civiltà al paragone, trad. italiana de G. Paganelli
e A. Pandolfi, Milão, 1949; Il mondo e Poccidente, @trad. italiana de
G. Cambon, Milão, 1956.

Sobre Toynbee: P. GEYL, The Pattern of the Past, Boston, 1949; E.


F. J. ZAHN, T. und das Problem der Geschichte, Kõln und
OppIaden, 1954; PIETRo Rossi, in "Filosofia", 1952, págis. 207-50;
Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., págs. 333-
60; O. ANDERLE, Das universalhistorische System A. J. T.,
Frankfurt am. Main, 1955 (inclui uma bíbliografia).

§ 748. Sobre os autores citados na última parte do capitulo,


consultar PIETRo Rossi, Storia e storicismo nella filosofia
contemporanea, cit., e as indicações bibliográficas nele incluídas.

267

íNDICE

III - BERGSON ... ... ... ... 7

§ 692- Vida e Obra ... ... ... ... ... 7 § 693. A duração real
... ... ... ... 9 § 694. Espírito e corpo ... ... ... ... 13 § 695.
O impulso vital ... ... ... ... 17 § 696. Instinto e inteligência
... ... ... 20 § 697. A intuição ... ... ... ... ... 24 § 698.
Gênese ideal da matéria ... ... 27 § 699. Sociedade
fechada e sociedade

aberta ... ... ... ... ... . 1. 30 § 700. Religião estática e


religião dinâmica ... ... ... ... ... ... 32 § 701. O possível
e o virtual - . ... ... 36

Nota bibliográfica ... ... ... ... 40


IV-0 IDEALIS1W0 INGLÊS E NORTE-AMERICANO ... ... ...
... ... ... ... ... 43

§ 702. Características do idealismo ... 43 § 703. As


origens do idealismo inglês e

norte-americano ... ... ... ... 45

269

§ 704. Bradley ... ... ... ... ... ... 53 § 705. Desenvolvimento
do idealismo inglés ... ... ... ... ... ... ... 59 § 706. MeTaggart
... ... ... ... ... 61 § 707. Royce ... ... ... ... ... ... 68 § 708.
Outras manifestações do idealismo inglês e norte-americano
77

Nota bibliográfica ... ... ... ... 81

V -0 IDEALISMO ITALIANO ... ... ... ... 85

§ 709. Características e origens do idealismo italiano ... ... ... ...


... 85 §710. Gentile: Vida e Obra ... ... ... 90 §711.
Gentile: o acto puro ... ... ... 92 §712. Gentile: a dialéctica
-do concreto e

do abstracto ... ... ... ... ... 96

§713. Gentile: a arte ... ... ... ... 102 §714. Gentile: a
religião ... ... ... ... 105 §715. Gentile: o direito e o estado
... 107 §716. Croce: Vida e Obra ... ... ... 111

270
§ 717. Croce: a filosofia do espírito ... 113 § 718. Croce: a
arte ... ... ... ... ... 116 § 719. Cr(>ce: a ciência, o erro e a
forma

económica ... ... ... ... ... 123

§ 720. Croce: direito e estado como

acções económicas ... ... . --- ... 126

§ 721. Croce: história e filosofia ... ... 130

Nota bibliográfica ... ... ... ... 137

VI -0 NEO-CRITICISMO ... ... ... ... ... 139

§ 722. Caracteres do neo-criticismo ... 139 § 723. Origens


do neo-criticismo na Alemanha ... ... ... ... ... ... 140

§ 724. Renouvier: a filosofia critica ... 146 § 725.


Renouvier: o conceito da história 151 § 726. O criticismo
inglês ... ... ... 155 § 727. A flcxsofia dos valores
Windelband 163 § 728. Rickert ... ... ... ... ... ... 168 §
729. Outras manifestações da filosofia

dos valores ... ... ... ... ... 174

271

§ 730. A escola de Marburgo: Cohen ... 176 § 731.


Nato.rp ... ... ... ... ... ... 184 § 732. Cassirer ... ... ... ... ...
... 189 § 733. Brunschvieg ... ... ... ... ... 194 § 734. Banfi
... ... .1 . ... ... ... 200
Nota bibliográfica ... ... ... ... 203

VII -0 HISTORICISMO ... ... ... - ... 207

§ 735. A filosofia e o mundo histórico 207 § 736.


Dilthey: a experiência vivida e o

ecmpre,ender ... ... ... ... ... 210 § 737. Dil'hoy: as


estrutura-- do mundo

histórico ... ... ... ... ... ... 215 § 738. Dilthey: o c,)nceito da
filosofia 219 § 739. Simmel - ... ... ... ... ... 222 § 740.
Spengler ... ... ... ... ... ... 227 § 741. Troeltsch ... ... ... ... ...
... 231 § 7-12. Meinecke ... ... ... ... ... ... 236 § 743.
Weber: 4ndividualidade, significado, valor ... ... ... ... ... 239

272

§ 744. Weber: a possibilidade objectiva 243 § 745.


Weber: a sociologia interpretativa 248 § 746. Weber:
descrição e valoração ... 251 § 747. Toynbee ... ... ... ...
... - 255

§ 748. Correntes metodológicas ... - 259

Nota bibliográfica .. ... ... - 264

(fim)

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