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A crise da sociedade do trabalho

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Aloysio Bohnen, SJ
Vice-reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ
Diretora adjunta
Hiliana Reis

Gerente administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 1 – Nº 5 – 2005
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial
Profa. Esp. Àgueda Bichels – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos
Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos
Esp. Susana Rocca – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos
Conselho técnico-científico
Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação
Responsável técnico
Laurício Neumann

Revisão
Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria
Camila Padilha da Silva

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
www.unisinos.br/ihu

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Sumário

Apresentação
Sociedade do trabalho e sociedade sustentável
Por Inácio Neutzling .............................................................................................................. 5

O mundo do trabalho em mutação: as reconfigurações e seus impactos


Por Marco Aurélio Santana ................................................................................................... 8

A crise e o êxodo da sociedade salarial


Entrevista com André Gorz ................................................................................................... 22

“Eliminar o desemprego no capitalismo é uma ficção”


Entrevista com Ricardo Antunes............................................................................................ 34

A globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrário


Entrevista com Robert Kurz................................................................................................... 39

Pensar outras formas de produção e consumo


Por Anselm Jappe ................................................................................................................. 43

O desemprego em massa. O direito à vida não passa mais pelo trabalho assalariado
Entrevista com Paolo Virno ................................................................................................... 45

“Nunca esteve tão longe a distância entre o País que podemos ser e o País que somos”
Entrevista com Márcio Pochmann ......................................................................................... 48

“A reforma sindical pode servir de pretexto para uma reforma trabalhista flexibilizadora”
Entrevista com Márcio Túlio Viana ........................................................................................ 55

Desemprego, reformas trabalhistas e a democratização das relações de trabalho


Entrevista com José Dari Krein ............................................................................................. 58

“O debate sobre as reformas deve coincidir com um período de desenvolvimento


econômico”
Entrevista com Sidney Pascoutto da Rocha ........................................................................... 65

“É necessário desvincular emprego e renda”


Entrevista com Josué Pereira da Silva ................................................................................... 67

A mulher no mundo do trabalho


Entrevista com Maria Cristina Bruschini ................................................................................ 70

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Unitrabalho: uma parceria entre intelectuais e trabalhadores
Entrevista com Dárnis Corbellini ........................................................................................... 72

“A Economia Solidária deve tencionar o Governo a favor dos trabalhadores”


Entrevista com Dalila Maria Pedrini ...................................................................................... 74

“Piqueteiros”: um discurso sobre o poder


Entrevista com Jorge Ceballos .............................................................................................. 76

Ócio Humanista
Entrevista com Concha Maiztegui ......................................................................................... 78

A redução do tempo de trabalho e a cultura do tempo livre


Entrevista com André Langer ................................................................................................ 80

Ócio humanista e o sentindo do trabalho


Entrevista com Cláudio Gutiérrez.......................................................................................... 83

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-
ne entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados na revista IHU On-Line e nos Cadernos
IHU idéias. Desse modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, sobre temas conside-
rados de fronteira, relacionados com a ética, o trabalho, a teologia pública, a filosofia, a política, a eco-
nomia, a literatura, os movimentos sociais, etc., que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Errata
Na introdução da página 9 do nº 3 – 2005, sobre Max Weber. O espírito do capitalismo, leia-se
UFMG, em vez de UFGM; Saint-Cloud, em vez de Saint-Clud; Iluminuras, em vez de Huminuras;
l’histoire, em vez de l’hitoire.
Apresentação

Sociedade do trabalho e sociedade sustentável

A sociedade do trabalho é aquela em que as giram ao redor do trabalho, isto é, têm o trabalho
pessoas são definidas e descritas na sua cidadania como ponto de referência, enquanto, por outro
pelo trabalho assalariado que possuem. A crise da lado, tudo é feito para torná-lo raro. Por exemplo,
sociedade do trabalho assalariado se caracteriza o aumento da produtividade, por definição, signi-
por uma crescente “brasilianização”, conceito fica sempre, simultaneamente, eliminação do tra-
usado, entre outros, por Ulrich Beck. Mas em que balho humano. A “brasilianização” é uma mani-
consiste esta “brasilianização”? A década de 1990 festação da mutação do mundo do trabalho, im-
é paradigmática para o mundo do trabalho no pulsionada com mais vigor pela indústria pós-for-
Brasil. O emprego formal acumulou um déficit es- dista. Ela é a ponta de lança de uma transforma-
timado em 3,2 milhões de postos de trabalho, as- ção profunda “que abole o trabalho, abole o assa-
sim como o desemprego alcançou índices nacio- lariado e tende a reduzir a 2% a parte da popula-
nais sem paralelo desde a década de 1930. Entre ção ativa, capaz de assegurar a totalidade da pro-
1989 e 1999, a quantidade de desempregados dução material”. Ou seja, “a economia, cada vez
ampliou-se de 1,8 milhões para 7,6 milhões, com menos, necessita do trabalho. Objetivamente, o
aumento da taxa de desemprego aberto, passan- trabalho perde a sua ‘centralidade’”.
do de 3% da PEA para 9,6%. No entanto, apesar Desse modo, é possível afirmar que a socie-
deste aumento do desemprego, nos anos 1990, a dade do trabalho só existe no imaginário das pes-
quantidade de trabalhadores, com jornada de tra- soas, porque todas as forças estabelecidas se
balho superior à oficial de 44 horas duplicou, pas- opõem a reconhecer esta perda da centralidade
sando de 13,5 milhões para 26,7 milhões de pes- do trabalho, e tudo o que ele implica, pois o poder
soas ocupadas. Isso significa que cerca de 4,9 mi- sem entraves que o capital conquistou sobre o tra-
lhões de novas vagas deixaram de ser criadas no balho, sobre a sociedade e sobre a vida de todos
país. Ou seja, cerca de 2/3 do total do desemprego visa precisamente a isto: que o “trabalho” conser-
aberto no Brasil poderia ter sido diminuído com a ve na vida e na consciência de cada um, a sua
forte redução do sobretrabalho. Essa “brasiliani- centralidade, ainda que ele seja massivamente eli-
zação” na década de 1990, no Brasil, se caracteri- minado, economizado e abolido em todos os ní-
za pela desestruturação do mundo do trabalho. veis da produção. A glorificação teórica do traba-
Ela consiste, fundamentalmente, no crescente e lho resultou na efetiva transformação de toda a
elevado desemprego aberto, no desassalariamen- sociedade numa sociedade de trabalhadores,
to, no sobretrabalho, no aumento do trabalho in- numa “sociedade operária”. Ao fazer isso, ela pas-
formal e na geração de postos de trabalho precá- sou a entender o trabalho como emprego, isto é, o
rios. A “brasilianização” do mundo do trabalho trabalho só é “trabalho”, quando é pago. Assim,
parece indicar que saímos da sociedade de traba- todos, desempregados e precários em potencial,
lho sem substituí-la por nenhuma outra. são incitados a se bater por este “trabalho” que o
De um lado, o trabalho foi declarado como o capital aboliu. Cada passeata, cada cartaz que exi-
fundamento da sociedade onde todas as pessoas ge “Nós queremos trabalho” proclama a vitória do

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capital sobre uma humanidade subjugada de tra- A esperança de garantir a sobrevivência da
balhadores que não são mais, e que não podem humanidade como espécie, assim como a espe-
ser, outra coisa”. Eis, portanto, o centro do proble- rança de que, em algum momento do futuro, uma
ma e o núcleo do conflito: trata-se de desconectar parte razoável dos seres humanos possa atingir
do “trabalho” o direito de ter direitos e, especial- uma qualidade de vida semelhante ao atual pa-
mente, o direito ao que é produzido e produzível drão do cidadão médio norte-americano ou euro-
sem trabalho, ou com cada vez menos trabalho. peu, duas esperanças que alimentam os sonhos
Trata-se de reconhecer que nem o direito a um de grande parte da população, são seriamente
rendimento, nem o direito à cidadania plena, nem questionadas. Não há nenhuma segurança sobre
a realização e a identidade de cada um podem essas hipóteses. A primeira dependerá de um
mais ser centradas no emprego e depender de ter enorme esforço conjunto de toda a raça humana.
um emprego. Trata-se, conseqüentemente, de A segunda tem toda a chance de ser uma falsa
mudar a sociedade. premissa. Ou seja, elevar ao nível médio nor-
Se o “trabalho” não perder a sua centralida- te-americano a qualidade de vida da população
de na consciência, no pensamento, na imagina- atual da Terra já exigiria os recursos naturais de
ção de todos, este conflito não será solucionado. E vários planetas iguais ao nosso. Nos mesmos níveis
é precisamente isso que todos os poderes estabe- de consumo e desperdício, mesmo que apenas
lecidos e todas as forças dominantes se empe- uma parte das nações fosse bem-sucedida nesse
nham em impedir, com o auxílio de especialistas e intento, o choque ambiental decorrente liquidaria
ideólogos que negam que o “trabalho” esteja em a vida humana.
processo rápido de eliminação. O lugar do traba- Por isso, a crítica do trabalho, com base na
lho na imaginação de todos, na imagem deles crise ecológica, implica a crítica radical da submis-
mesmos e do futuro possível é o início de um con- são da sociedade à racionalidade econômica.
flito profundamente político: de uma luta pelo Emerge aqui a discussão dos limites. A necessida-
poder. de de pensar os limites a serem impostos ao mer-
Além disso, temos que reconhecer que há um cado é conditio sine qua non para evitar a desa-
conflito entre a reprodução da humanidade e da gregação da sociedade e a destruição da biosfera.
Terra. O nosso planeta suporta, cada vez menos, A delimitação dos limites dentre os quais a racio-
o nosso crescimento, enquanto nossas sociedades nalidade econômica deve operar é, aliás, o pro-
têm, cada vez mais, necessidade dele. Para gerar blema central da sociedade capitalista desde o seu
emprego, renda, é necessário mais consumo que, início. A subordinação do econômico à socieda-
por sua vez, gera mais produção, que gera mais de, isto é, a atividade econômica a serviço dos fins
renda do trabalho e de novo mais consumo e as- que a superam e fundamentam a sua utilidade,
sim vai se constituindo o círculo vicioso da econo- dando-lhe um sentido, eis o núcleo da crítica que
mia. No entanto, o consumo mundial se desenvol- emerge da crise da sociedade do trabalho e da cri-
veu a um ritmo sem precedentes no decorrer do se ecológica.
século XX. A dinâmica consumo-pobreza-desi- Para que o desenvolvimento da economia e
gualdade-degradação ambiental se acelera. Se a própria concepção de trabalho ajude na preser-
não houver uma redistribuição entre os consumi- vação do ecossistema e da própria humanidade, é
dores de alta e baixa renda, se não se abandona- necessária uma mudança radical no estilo ociden-
rem os produtos e procedimentos de produção tal moderno de consumo que obstaculiza a autoli-
poluidores, se não se favorecerem as mercadorias mitação das necessidades que poderia nos levar à
que são necessárias para os pobres e se o consu- autoprodução e à livre escolha do tempo de traba-
mo ostentatório não deixar espaço à satisfação lho. A autolimitação das necessidades deve ser
das necessidades essenciais – os problemas colo- vista e percebida pelas pessoas como reconquista
cados hoje pela relação entre consumo e desen- da autonomia dos seres humanos, graças ao reori-
volvimento humano se agravarão. entamento democrático do desenvolvimento eco-

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nômico, com redução simultânea do tempo de que permitem a produção de socialidades alterna-
trabalho e a extensão das possibilidades de auto- tivas, de modos de vida, de cooperação e de ativi-
produção cooperativa e associativa. Uma socie- dades que se subtraem aos dispositivos do poder
dade que define o bem como a satisfação máxima do capital e do Estado. Assim, novos direitos e
pelo maior consumo de bens e serviços industriais uma nova liberdade emergem como possibilida-
do maior número de pessoas, mutila, de modo in- de, como, por exemplo: o direito de cada um de
tolerável, a autonomia do indivíduo. Um tempo ganhar a vida trabalhando, mas trabalhando me-
de trabalho cada vez mais reduzido e flexível pode nos e melhor, recebendo por inteiro a sua parte da
possibilitar a criação de uma esfera crescente de riqueza socialmente produzida. Um outro direito
vida comunitária, de cooperação voluntária e au- seria o de trabalhar de modo descontínuo, inter-
to-organizada, de atividades autodeterminadas mitente, sem perder durante estas pausas a renda
sempre mais extensas. Somente por este caminho plena, de modo que possa abrir novos espaços às
se evitará que a redução do volume de trabalho atividades sem fim econômico e reconhecer a es-
necessário ao sistema econômico se transforme tas atividades uma dignidade e um valor eminen-
em desemprego, desintegração e “brasilianização” te, seja para os indivíduos, seja para a sociedade.
da sociedade. Para isso, o desafio é articular políticas que ten-
Uma sociedade sustentável é possível na me- dam a garantir a todos e todas uma renda suficien-
dida em que libertamos o pensamento e a imagi- te, combinando a redistribuição do trabalho e o
nação dos lugares-comuns do discurso social do- controle individual e coletivo do tempo e favore-
minante, ousando pensar as potencialidades de cendo o florescimento de novas socialidades, de
outras experiências exemplares que apostam, efe- novos modos de cooperação e de troca pelos quais
tivamente, em outros modos de cooperação pro- os laços sociais e da coesão social possam ser criados
dutiva, de troca, de solidariedade, de vida. Tra- para além do assalariamento.
ta-se de alargar ao máximo os espaços e os meios

Dr. Inácio Neutzling1

1 Inácio Neutzling é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nª Sª Medianeira (FASP-SP), graduado em Teologia
(Unisinos), mestre em Teologia (PUC-Rio), doutor em Teologia pela Pontifícia Universitá Gregoriana – Itália. Sua tese teve o
título: O Reino de Deus e os Pobres. As implicações ético-teológicas para o agir cristão. São Paulo: Loyola, 1986. É autor do
artigo Sociedade do Trabalho e Sociedade Sustentável: algumas aproximações. In: Cecília Osowski e José Luiz Bica
de Mélo (Orgs.). O ensino Social da Igreja e a Globalização. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 37-82.

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O mundo do trabalho em mutação: as reconfigurações e seus impactos

Por Marco Aurélio Santana

Marco Aurélio Santana é professor de Socio- mais as (des)esperanças ou expectativas dos avalia-
logia na Universidade Federal do Estado do Rio dores do que cenários realmente existentes. Nos
de Janeiro. Cursou o Mestrado em Ciências So- dias atuais, temos, no mercado de análises, um es-
ciais na UNIRIO, onde também concluiu o Douto- pectro de posições bastante díspares acerca das
rado em Sociologia e Antropologia, com a tese in- transformações sofridas pela sociedade em geral e
titulada Esquerda e Sindicalismo no Brasil: o PCB pelo mundo do trabalho em particular. Tais análi-
(1945-1992). Santana é autor de diversos livros, ses têm como um dos dados principais de diferen-
em parceria com SOUZA, D. B.; DELUIZ, N.; ciação a qualificação dos cursos e sentidos dessas
RAMALHO, José Ricardo; THIESEN, Icléia; BARROS, mudanças. Para onde nos levariam?
Luitgarde, entre os quais destacamos: Trabalho e Este artigo visa a indicar alguns eixos das
Educação: Centrais Sindicais e Reestrutu- transformações contemporâneas no mundo do
ração Produtiva no Brasil. Rio de Janeiro, Quar- trabalho e seus impactos na vida social. Nesse
tet, 1999. Homens Partidos: comunistas e sentido, tomaremos como foco as mudanças nos
sindicatos no Brasil. São Paulo; Rio de Janei- processos de trabalho, nas formas de contratação
ro: Boitempo; MMSD/UNIRIO, 2001. Trabalho e e regulação do trabalho e aqueles que seriam seus
tradição sindical no Rio de Janeiro: a traje- novos requerimentos em termos de qualificação
tória dos metalúrgicos. Rio de Janeiro: DP&A, dos trabalhadores. Não teremos espaço, no âmbi-
2001. Além da fábrica: trabalhadores, sindi- to deste trabalho, para um tratamento em maior
catos e a nova questão social. São Paulo: Boi- extensão e aprofundamento de todos os aspectos
tempo, 2003. Sociologia do Trabalho no da questão. Ficaremos bastante próximos da
Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge abordagem ensaística.
Zahar, 2004. Vozes do Porto: memória e his-
tória oral. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Mudanças no cenário global

Introdução As transformações no mundo do trabalho


vêm afetando, de modo intenso, as sociedades in-
As últimas três décadas do século XX foram dustriais em todo o mundo. Formas de produção,
palco de transformações rápidas e radicais que var- consideradas superadas pelo desenvolvimento de
reram a sociedade contemporânea e cujas reverbe- um capitalismo monopolista, retornam numa ou-
rações vão sendo sentidas até hoje. Podemos dizer tra dimensão, reincorporadas a uma lógica de
que as épocas de crise e de mudança sempre se acumulação que enfatiza a competitividade e a
prestaram ao aparecimento de prognósticos e ava- qualidade. O processo de reestruturação das ativi-
liações que, por estarem embasados em uma reali- dades produtivas, principalmente a partir da déca-
dade movediça, muitas vezes, acabam por indicar da de 1970, inclui inovações tecnológicas e novas

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

formas de gestão da força de trabalho. O resultado do cotidiano do assalariado que detém algum tipo
tem sido um aumento significativo nos índices de de emprego formal. Formas precárias de trabalho,
produtividade, profundas alterações no relaciona- de subcontratação, passaram a ser utilizadas
mento entre as empresas e nas formas de organi- como norma, incorporando-se às práticas das em-
zação da produção, interferindo nas relações de presas. Fragilizou-se a instituição sindical como
trabalho e no processo de negociação com as ins- representação legítima dos trabalhadores. O de-
tituições de defesa dos trabalhadores. semprego adquiriu dimensões mais amplas, mu-
Essa reestruturação, no entanto, vista por dando hábitos e trazendo pobreza e desesperan-
muitos como inevitável na racionalidade do mer- ça, e o trabalho informal tornou-se uma alternati-
cado, tem trazido também graves problemas so- va freqüente para os excluídos do mercado de tra-
ciais quanto ao nível de emprego e à garantia dos balho formalizado, principalmente nos países
direitos conquistados pelos trabalhadores ao lon- subdesenvolvidos.
go do século XX. Ao mesmo tempo que os índices De forma bastante esquemática, poderíamos
de desemprego se tornam elevados, inclusive nas indicar, à guisa de introdução, as principais trans-
economias centrais, em muitos países do mundo, formações na esfera produtiva:
se aplica uma política de desmantelamento da • em um cenário crescentemente globaliza-
ação do estado nas áreas sociais. Nos países sub- do, de abertura de mercados e de forte
desenvolvidos, a flexibilização das relações de tra- competição internacional, as unidades
balho só faz aumentar o mercado de trabalho in- produtivas de grande porte ficam mais
formal e o desemprego. “enxutas” e aumentam a produtividade (a
Fala-se em “globalização” da produção in- chamada lean production);
dustrial. De fato, as empresas multinacionais, em • a atividade produtiva passa a exigir traba-
busca de maiores taxas de lucro, estendem sua lhadores polivalentes/flexíveis que, de posse
presença por regiões geográficas e econômicas de ferramentas flexíveis, teriam como resul-
que oferecem uma força de trabalho com salários tado de seu trabalho um produto flexível;
baixos e menos dispêndios com benefícios sociais. • a parcela do trabalho fora do “foco” princi-
No que se refere a inovações tecnológicas e pal da empresa passa a ser subcontratada
de gestão, estratégias derivadas do chamado de outras empresas (ou terceirizada);
“modelo japonês”, embora efetivas em apenas al- • o setor industrial perde volume diante do
gumas grandes empresas no próprio Japão, vêm setor de serviços e a flexibilização das ativi-
sendo anunciadas como solução para todos os dades produtivas leva também a um au-
males resultantes da falta de competitividade e mento da precarização nos contratos de
das dificuldades no controle da força de trabalho. trabalho;
Novas formas de gestão se associam ao anúncio • na esfera sociopolítica, os sindicatos pas-
da “modernidade”. No Brasil e na América Lati- sam a lutar para se desvencilhar de uma
na, aparecem como o caminho inexorável da pro- realidade marcada pelo grande porte, pela
dução industrial e expressões, como “qualidade exterioridade às empresas, pela rigidez e
total”, just in time, etc. passam, de repente, a fazer pelo enfrentamento direto, que os estava
parte do vocabulário das empresas, que impin- levando a uma diminuição na sindicaliza-
gem aos trabalhadores um discurso “civilizador” ção e a uma dificuldade de competir em
sobre a necessidade de aderir aos novos tempos. velocidade e adequação aos impasses tra-
A exigência de maior competitividade vem zidos pela nova realidade. Junte-se a isso o
introduzindo estratégias de racionalização e redu- desemprego e a informalização que cor-
ção de custos com sérias conseqüências para os roem grandemente o poder de agencia-
níveis de emprego. Postos de trabalho, que tradi- mento das instituições sindicais.
cionalmente garantiam estabilidade, se reduziram Em meio a tantas mudanças, nem mesmo a
drasticamente. A insegurança passou a fazer parte idéia de Estado permaneceu intocada. Pelo me-

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nos desde o segundo pós-guerra, era visão corren- ginosa com que muda a realidade tem dificultado
te a idéia de que o Estado deveria cumprir não só ainda mais a sua compreensão e interpretação. O
tarefas referentes ao controle e regulação da eco- quadro se agrava ao percebermos que se pode es-
nomia, mas também de assegurar bem-estar social tar tentando este movimento com ferramentas
aos cidadãos (daí o nome welfare state), o que o teóricas ultrapassadas e que quaisquer formas de
sobrecarregaria de outros atributos redistributivos. proposição e intervenção prático-política depen-
Foi através deste tipo de formulação que o Estado dem de análises e conceituações mais precisas.
se encarregou do que seriam encargos sociais liga- A sociologia do trabalho, buscando dar conta
dos, por exemplo, à educação e à saúde. das transformações quantitativas e qualitativas
Nesse momento de crise da sociedade indus- por que passa o mundo do trabalho, tem levanta-
trial, passa-se a argumentar que o Estado deve do uma série de hipóteses com relação às origens,
restringir sua intervenção na economia e nos seto- o desenvolvimento e os destinos destas mudan-
res sociais. O Estado de bem-estar social ou Esta- ças. Essas alterações foram conceituadas por uns
do Providência deveria ceder lugar a um novo for- como especialização flexível e por outros como
mato de Estado, o chamado Estado mínimo. um novo conceito de produção. Além disso, já fo-
Segundo esta lógica, o Estado deveria redu- ram analisadas pela escola da regulação francesa
zir sua inserção na economia, privatizando suas e pelos teóricos do pós-fordismo.
empresas, enxugando seus quadros e repassando O debate gira em torno da crise e continuida-
ao setor privado a tarefa de gerir a economia sem de do sistema de produção denominado fordis-
muitas regulamentações que impedissem o livre mo, da emergência e vigência de uma nova forma
trânsito econômico. Mais ainda, quanto ao que produtiva, vinculada a novos padrões de deman-
seriam as inserções sociais do Estado, deveria im- da – a especialização flexível – e dos limites e pos-
perar a chamada lógica do mercado, de modo sibilidades de expansão desta nova forma produ-
que deixasse de pesar sobre os ombros dos agen- tiva, muitas vezes identificada com os processos
tes econômicos e dos próprios cidadãos, tornan- que lhes serviram de base, o toyotismo ou o mo-
do-se mais ágil e dinâmico. delo japonês.
Com este quadro de transformações, Claus Sobressai, no debate, a preocupação com o
Offe lançou seu questionamento acerca da valida- lugar dos trabalhadores em meio à turbulência
de de se manter a centralidade da categoria traba- atual. Uma grande atenção é dada ao processo de
lho como chave para o entendimento sociológico. qualificação/desqualificação ao qual estariam
Segundo ele, o trabalho estaria deixando de situ- submetidos os trabalhadores no processo produti-
ar-se como o fato social principal. Dessa forma, as vo, sobre o que se esperaria deles nesses novos
esferas do trabalho e da produção diminuiriam ra- processos, e como seriam suas formas de inser-
dicalmente sua capacidade de estruturação e de ção. Além disso, para completar, que tipo de res-
organização da vida social, abrindo espaço para postas os trabalhadores podem dar em um qua-
novos campos de ação, caracterizados por novos dro como este?
agentes e por uma nova forma de racionalidade. As interpretações oriundas de tais análises
Podemos perceber, então, que, diante desse são importantes, na medida em que constroem
novo contexto, exige-se cada vez mais explicações um mapa que pode servir de orientação na leitura
da parte dos atores envolvidos, e da parte dos pes- de processos em curso. As novas formas de gestão
quisadores que lidam com temáticas centradas, de do trabalho e da produção têm se implantado,
alguma maneira, no mundo do trabalho. Em um ainda que, de forma desigual, ao redor do globo.
momento no qual, em escala planetária, a huma- Caberia discutir agora algumas linhas interpretati-
nidade passa por processos que levam a transfor- vas das transformações mundiais e indicar de que
mações materiais e simbólicas, a velocidade verti- forma as alterações nas lógicas da produção e do
trabalho têm se dado na realidade brasileira.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

A crise do fordismo e a especialização flexível isso, disposto em uma linha de montagem e com
recompensa salarial separada do esforço empre-
Os estudos voltados à temática do trabalho, endido pelo trabalhador.
tentando dar conta das transformações do sistema Desta forma, se articulam, como idéias for-
fordista, têm apresentado, para além de algumas madoras da singularidade do fordismo, a separa-
especificidades, posições variadas que podem ser ção entre concepção/execução, a fragmentação/
agrupadas em dois conjuntos: aqueles que defen- rotinização/ esvaziamento das tarefas; a noção de
dem a existência de um movimento de superação um homem/uma tarefa com especialização des-
do fordismo, apontando novos rumos possíveis; e qualificante; o controle do tempo de execução das
aqueles que sustentam que as mudanças são uma tarefas estritamente orientadas por normas opera-
readequação e um ajuste ante a crise do sistema cionais em um processo onde a disciplina se torna
produtivo. o eixo central da qualificação requerida; pouca ou
Ambas as posições concordam que as mu- nenhuma aceitação do saber dos trabalhadores,
danças estão relacionadas com uma crise no siste- tendo em vista contribuir para a melhoria do pro-
ma fordista. É neste contexto que se confrontam cesso produtivo, e, conseqüentemente, do produ-
noções, tais como as de especialização flexível e to; e produção em massa de bens a preços cada
de neofordismo, e que também se verifica que vez menores para um mercado também de massa.
tanto o entendimento da crise como seus possíveis O exíguo aproveitamento do saber operário
desdobramentos têm relação direta com a defini- teria como rebatimento político-organizacional o
ção do que vem a ser o sistema fordista. fato de que os sindicatos, embora aceitos, fossem
Como lembra David Harvey (1993), a im- pensados sempre como corpos estranhos, essen-
plantação do fordismo é muito mais complexa do cialmente oponentes e externos à produção, e in-
que faz supor a mera apropriação do nome de teressados em estimular o choque de interesses
Henry Ford para o processo. Sem desqualificar o antagônicos entre empregadores e empregados.
papel de Ford que introduziu o sistema de um dia Por mais geral que seja a forma pela qual ten-
de trabalho de oito horas com o pagamento de temos reconstruir as características do sistema for-
cinco dólares aos trabalhadores da linha automá- dista, dependendo do caminho escolhido, pode-
tica de montagem de carros de sua fábrica neste mos refazê-lo de outras maneiras, acrescentando,
processo, ele, na verdade, articulou, de forma sin- retirando ou realçando certas noções. É exata-
gular, certas tendências correntes à época. mente pela distinção no entendimento da defini-
Para além do uso de inovações tecnológicas ção do sistema fordista, de sua crise e de seu desti-
e organizacionais, bem como do formato corpora- no que podemos lançar luz sobre as noções e posi-
tivo nos empreendimentos de que Ford se apro- ções no debate. Isso se faz mais facilmente tendo
priou e que já estavam em curso, muitos desde o como pano de fundo aquilo que seria o paradig-
século XIX, vale lembrar a apropriação que ele faz ma da especialização flexível, sistema produtivo
das idéias de Frederik W. Taylor, centradas na no- que teria superado o paradigma fordista ou pelo
ção de administração científica. Taylor, julgando menos, em meio à crise, estaria em vias de supe-
o trabalhador um ser indolente (natural ou inten- rá-lo. Para além da sentida fluidez e amplitude na
cionalmente), advogava uma radicalização do qualificação de processos que caracterizam a cha-
processo de separação entre a concepção e a exe- mada especialização flexível – levando-se ao risco
cução do trabalho (à gerência caberia o trabalho de que esta própria conceituação permita dizer
intelectual, e ao trabalhador, o manual). Defendia qualquer coisa que se deseje –, algumas caracte-
uma decomposição minuciosa do processo de tra- rísticas podem ser identificadas.
balho em movimentos e tarefas fragmentadas e ri- Para este paradigma, tendo Michael Piore e
gidamente controladas pelo tempo, resultando Charles Sabel, no livro The second industrial divi-
em um maior grau de hierarquização e desqualifi- de (1984), como autores de ponta, a crise do siste-
cação no interior do processo de trabalho. Tudo ma fordista foi deflagrada no pólo do sistema que

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é externo à produção, isto é, na demanda e no parcializado e semidesqualificado ou desqualifica-


consumo, os quais, ao se instituírem sobre novos do do fordismo, se contrapunha o trabalhador
padrões de exigência, tornaram o fordismo obso- “coletivo”, organizado em grupos ou “ilhas” que,
leto a partir de uma de suas bases. A produção em com a redução da hierarquia gerencial no interior
massa, verticalizada, de produtos estandardiza- do processo e, muitas vezes, subsidiado pelo su-
dos, teria se defrontado com mercados cada vez porte microeletrônico, passa a ter sobre si a res-
mais saturados. Não foi, porém, apenas neste ní- ponsabilidade de agir qualificadamente sobre
vel que teria havido um estrangulamento. A partir pontos diversos do processo.
dos anos de 1970, outros mecanismos institucio- Estes ajustes se estabeleceriam também na
nais que davam suporte ao sistema, como as for- estrutura das próprias firmas. Seria sensível uma
mas creditícias e a própria noção de estado de desverticalização organizacional (desmembra-
bem-estar, só para dar alguns exemplos, também mento da empresa faz tudo), baseada na focaliza-
começaram a ser repensadas e restringidas. ção em processos e produtos, com respectiva re-
A resposta à crise não surgia de elementos to- dução no porte e no número dos trabalhadores.
talmente inusitados; antes, viria de uma certa re- Esta desverticalização ou, em muitos casos, des-
cuperação de formas produtivas que sucumbiram, centralização (conforme ocorrido na experiência
sem se extinguirem, diante do sistema fordista. italiana), baseando-se na cooperação e na confian-
Aquilo que poderíamos chamar de sistema de ma- ça, estabeleceria um vínculo interempresas, for-
nufatura, concorreu com idéias que se articulariam çando uma relação mais estreita entre comprador
mais tarde no fordismo e, devido, sobretudo, à in- e fornecedor; tendo como pontos principais as no-
tervenção de ordem política, sustentada pela visão ções de qualidade e rapidez, esta última funda-
evolutiva com seu rebatimento tecnológico, aca- mental, tendo em vista que um dos aspectos es-
bou sendo derrotada, embora continuasse a existir senciais do processo é o just in time, isto é, a capa-
ao longo do tempo em experiências isoladas. cidade de operar com estoques reduzidos de ma-
As idéias do sistema de manufatura, nesse téria-prima com inputs regulados no tempo.
novo contexto, auxiliariam teoricamente a com- Tendo em vista a inter-relação e a velocida-
preensão das transformações pelas quais passa- de das trocas e dos fornecimentos, a proximida-
mos e, na prática, se implementadas, poderiam le- de geográfica tornou-se ponto essencial, e a
var à superação da crise da produção em massa. constituição de distritos industriais passou a ser
Se fizermos um recorte na teoria da especialização uma tendência mundial. Como exemplo destes
flexível e tomássemos, como indicamos, a satura- procedimentos, temos as experiências concretas
ção dos mercados e seus novos padrões de exi- das pequenas e médias empresas da região da
gência como marco de partida, perceberíamos um Emilia Romana, a chamada “Terceira Itália”; da
dos pontos nodais de inflexão do sistema fordista. planta da Volvo, em Kalmar, na Suécia; e do fe-
Sem seus amplos espaços de mercado, tendo que nômeno mais marcante, a experiência da Toyo-
se adaptar à busca de nichos em um grau de con- ta, no Japão.
corrência extrema, as empresas teriam que produ- Conforme já assinalamos, este tipo ideal de
zir com versatilidade e qualidade. desenvolvimento industrial, puro na teoria, possui
A produção de bens estandardizados precisa- forma híbrida na realidade. Nesses termos é que
ria buscar uma tecnologia, um complexo ho- vários autores percebem uma série de possibilida-
mem/máquina, flexível. Às máquinas e ferramen- des de implantação e coabitação de processos
tas flexíveis se agregariam trabalhadores flexíveis. produtivos. Se a noção de especialização flexível,
A flexibilização no processo de trabalho imporia o de alguma forma se encontra presente nas condi-
deslocamento da relação um homem/um pos- ções identificadas com o chamado pós-fordismo,
to/uma tarefa e a aproximação das etapas concep- ela não o esgota. Um problema é que as chama-
ção, execução e controle, baseando-se na incor- das teorias pós-fordistas são tratadas homogenea-
poração progressiva da competência dos traba- mente, não se dando atenção suficiente às suas di-
lhadores no processo produtivo. Ao trabalhador ferentes raízes e implicações.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Processo de trabalho e qualificação: da trabalhadores no processo de produção capitalis-


degradação às competências ta. Ambos visariam a assegurar a subordinação
real do trabalho, convertendo força de trabalho
O debate acerca das modificações no mundo em trabalho real. Além disso, para os trabalhado-
do trabalho tem, como um de seus pontos centrais, res, significariam a redução de seu grau de inter-
aquele que se refere ao papel desempenhado pe- ferência/resistência, individual ou coletiva, no
los trabalhadores no processo produtivo. As mu- processo.
danças em curso abriram uma série de indagações As gerências teriam aí um papel destacado
acerca dos impactos que trariam para as funções no sentido de controlar o trabalho e garantir que a
operárias na produção. lógica geral se efetivasse. O aumento do controle
O livro Trabalho e Capital Monopolista gerencial se daria com a correlata diminuição da
(1977), de Harry Braverman, serviu, ao longo de influência operária sobre os meios e a natureza da
muitos anos, como lente de análise para a compre- produção. O controle sobre o processo de traba-
ensão das inserções dos trabalhadores no processo lho passaria das mãos operárias para a dos capita-
produtivo. Ele partia da idéia de que o trabalho nos listas, promovendo uma alienação cada vez maior
marcos do sistema capitalista de produção era de- dos trabalhadores frente ao processo produtivo.
gradado. Haveria uma tendência inexorável no in- Apesar da análise de Braverman referir-se a
terior do processo de trabalho que levaria a uma um momento no qual o mundo das técnicas de
desqualificação progressiva, como conseqüência produção dava passos iniciais em termos de sua
do aprofundamento da divisão do trabalho no ca- automação e informatização; nem por isso, suas
pitalismo. Este processo simplificaria ao máximo as idéias deixaram de vigorar no cenário atual de
tarefas, exigindo-se maior especialização parcial; e transformações, já que, para alguns autores, o
menor, ou reduzida, qualificação global. mesmo aparato conceitual pode ser usado em
Segundo este autor, o modo de produção ca- ambos os cenários. Para esta perspectiva, as no-
pitalista destrói, sistematicamente, todas as perí- vas formas organizacionais ou tecnológicas surgi-
cias à sua volta, dando nascimento a qualificações riam exatamente da exigência de renovação das
e ocupações que correspondem às suas necessi- técnicas de controle sobre o trabalho, em um con-
dades. Toda fase do processo de trabalho é divor- texto no qual o trabalho parcelado e repetitivo en-
ciada do conhecimento e preparo especial, sendo tra em crise de eficiência.
reduzida a simples trabalho. Nesse ínterim, as Devemos assinalar, contudo, que outras pes-
poucas pessoas para quem se reservam instrução quisas indicam que as mudanças no mundo do
e conhecimento, são isentas, tanto quanto possí- trabalho trazem consigo fenômenos que podem
vel, da obrigação de simples trabalho. ser relativos a outros processos que não o da des-
Assim, a modernização tecnológica produzi- qualificação. É interessante notar que, em alguns
ria, no processo de trabalho, dois setores polariza- casos, tais pesquisas foram realizadas por autores
dos em termos de suas qualificações: de um lado, que antes defendiam a visão da polarização das
um pequeno setor de trabalhadores altamente qualificações. Para Horst Kern e Michael Schu-
qualificados; de outro, toda uma massa de traba- mann (1984), por exemplo, a racionalização na
lhadores desqualificados. Isso se agravaria com a produção capitalista teria atingido tal ponto que as
introdução de novas tecnologias que, ao reforça- gerências só conseguiriam aumentar a eficiência
rem os delineamentos da divisão do trabalho, in- do trabalho se flexibilizassem os rígidos contornos
tensificariam a desqualificação da força de traba- da divisão do trabalho. Eles vão questionar a idéia
lho. No processo de trabalho capitalista, se que- de que só pela redução radical do trabalho vivo
braria a unidade natural do trabalho, separan- e/ou pela desqualificação, se conseguiria obter o
do-se a concepção da execução. máximo de eficiência.
Frutos de tal separação, teríamos a desquali- Esses mesmos autores chegaram a defender
ficação e o controle, marcando a inserção dos a idéia de que nem o mercado, nem o produto, no

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estágio de racionalização da indústria, poderiam desempenham papel também importante junto


se compatibilizar com o padrão de racionalização aos componentes organizados e explícitos, como
do modelo taylorista-fordista. O incremento da educação escolar, formação técnica e educação
valorização do capital não poderia mais se dar profissional.
sem uma nova forma de conceber a utilização da Todo este processo levaria, em termos teóri-
mão-de-obra. cos, a uma quase superação da tese da polariza-
Nesse quadro, a introdução de novos concei- ção das qualificações, dando surgimento ao cha-
tos produtivos garantiria a tendência, diferente- mado modelo da competência. Este poderia ser
mente do paradigma anterior, para a formação e definido como um novo modelo, pós-taylorista,
reprofissionalização da mão-de-obra industrial, de qualificação, no estágio de adoção de um novo
bem como para o esmaecimento da rígida divisão modelo, pós-taylorista, de organização do traba-
do trabalho. Assim, este novo conceito de produ- lho e de gestão da produção. Nele, a qualificação
ção, representaria uma ruptura com o taylorismo real dos trabalhadores passa a constituir-se a partir
e o fordismo, possibilitando indagar se isso não de características, tais como o conjunto de compe-
significaria o próprio fim da divisão do trabalho. tências implementados no trabalho, articulando
Em muitos estudos, o chamado modelo ja- vários saberes, que seriam advindos de múltiplas
ponês virou referência como exemplo maior dos esferas.
efeitos qualificadores do novo paradigma produti- As empresas passariam a utilizar e apropriar-se
vo que estaria suplantando o fordismo. A forma das aquisições individuais da formação, sobretu-
de organização do trabalho, em algumas empre- do escolar. O modelo da competência, que parece
sas japonesas, estaria fundada em um trabalho assumir espaço central no debate, ainda está mar-
cooperativo, de equipe, com ausência de demar- cado por controvérsias. Para alguns autores, entre
cação das tarefas a partir dos postos de trabalho eles, Helena Hirata (1994), a noção de competên-
sob prescrição individual. Dessa forma, teríamos, cia estaria perdendo a multidimensionalidade
como efeito central, o surgimento da polivalência, contida na noção de qualificação e estaria marca-
com rotatividade das tarefas. da, política e ideologicamente, por sua origem
O trabalhador dessas empresas japonesas se- (discurso empresarial), deixando de lado a idéia
ria, portanto, o exemplo da polivalência e multifun- de relação social, essencial na definição do con-
cionalidade, dando conta dos mais variados aspec- ceito de qualificação.
tos da produção, tais como fabricação, manuten- Tendo tal indicação em vista, podemos iden-
ção, controle de qualidade e gestão da produção. tificar alguns problemas no tocante à inserção dos
As qualificações exigidas neste novo modelo pro- trabalhadores no processo produtivo gerenciado
dutivo contrastariam com a lógica geral taylorista, pela competência. Ela pode reduzir-se a formas
na medida em que se exigiria do trabalhador a ca- que visem a adequar, pura e simplesmente, a for-
pacidade de pensar, ter iniciativa e decidir. mação ao atendimento dos interesses e necessida-
Na literatura pertinente, percebemos que des do capital, dando mais importância aos resul-
uma larga parcela de pesquisadores, apesar das tados do que ao seu processo de construção. Além
diferenças, tem aceitado o fato de que, neste novo disso, a inserção dos trabalhadores no processo
quadro produtivo, a qualificação dos trabalhado- pode se dar sob um ponto de vista individualizan-
res seria uma exigência central para a reprodução te. No quadro geral da ação e organização dos tra-
do sistema, assim como a desqualificação o fora balhadores, isso pode representar um grande pro-
para o momento anterior. blema, já que acordos individualizados acabam
A exigência destas novas qualificações teria por enfraquecer as práticas e ações coletivas, mi-
colocado em questão a própria maneira de se nando o poder sindical.
conceber a noção de qualificação. Helena Hirata O pressuposto do aumento progressivo dos
(1994) afirma já se reconhecer que os componen- requisitos de qualificação no novo paradigma pro-
tes implícitos e não-organizados da qualificação dutivo, associado ao aumento do desemprego, le-

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vou alguns analistas à criação do conceito de em- ocorrendo no mundo industrializado. Novas for-
pregabilidade. Em torno de tal noção, que toca mas de gestão do trabalho, flexibilização, terceiri-
também ao universo do mercado de trabalho, tem zação, entre outras práticas, têm sido experimen-
transcorrido parte do debate mais recente sobre a tadas pelas empresas brasileiras.
questão da qualificação versus desqualificação. É verdade que isso vem ocorrendo de modo
Empregabilidade poderia ser definida como a ca- desigual, e se já é possível identificar alterações no
pacidade da mão-de-obra de se manter emprega- processo produtivo propriamente dito, na maioria
da ou encontrar novo emprego, quando demitida, dos casos, podemos constatar que as novas estra-
em suma, tornar-se empregável. tégias empresariais têm se preocupado mais em
Na visão de Marcia Leite (1997), a noção de cortar custos, eliminando, em definitivo, postos de
empregabilidade seria um deslocamento da idéia trabalho, como demonstrado em José Ricardo
de que o desemprego se daria pelo descompasso Ramalho e Heloísa Martins (1994). A precariza-
entre a população economicamente ativa e a ofer- ção do trabalho pode ser considerada uma ten-
ta de trabalho. O desemprego seria, para esta dência que se afirma com a abertura de mercado e
nova visão, o resultado das inadequações desta o aumento da competitividade, além de haver
população às exigências de qualificação do novo uma tendência à perda na qualidade do emprego
paradigma produtivo. A oferta de trabalho estaria e das relações de trabalho.
garantida para toda a população economicamen- Para além da quase eterna discussão teórica
te ativa, conquanto houvesse uma adaptação às sobre a possibilidade de transferência de modelos
demandas da nova situação. de uma realidade à outra, percebemos que, na
Alguns argumentos, no entanto, identificam prática dos indivíduos, há uma busca incansável
fragilidades na noção de empregabilidade. Um de exemplos ou experiências que orientem ações,
deles se refere ao fato de que, apesar de todos os mesmo que em contextos renovados. É sensível
investimentos feitos na qualificação profissional, na realidade brasileira dos últimos anos, a tentati-
não se tem conseguido atenuar as tendências do va por setores empresariais da implantação de no-
desemprego. A idéia de que a educação, como vas técnicas de organização e gestão do trabalho e
uma panacéia, seria a saída para este quadro não da produção. Ainda que visem ao chamado mo-
tem sustentação ao observarmos o número de delo japonês, acabam por contextualizá-lo em ter-
pessoas capacitadas, com terceiro grau de escola- mos de interesses empresariais de curto prazo
ridade, que tem encontrado dificuldades para en- e/ou da situação nacional, muitas vezes, usando
contrar emprego. Além disso, o treinamento puro isoladamente métodos e técnicas que antes, arti-
e simples da mão-de-obra não parece ter sido sufi- culados, compunham o modelo.
ciente para aumentar as ofertas de trabalho. O contexto brasileiro não chega a ser o da
Mais delicada ainda é a ênfase na responsa- crise clássica do fordismo em suas claras referên-
bilidade individual do trabalhador por sua situa- cias ao mercado saturado. Aqui, o contexto das
ção de desemprego. A partir do momento em que inovações tem relação direta com a tentativa de
se coloca sobre os ombros do desempregado a acesso ao mercado mundial e seus padrões de
responsabilidade de tornar-se empregável, aca- preço e qualidade dos produtos e a abertura co-
ba-se por justificar sua exclusão do mercado de mercial atabalhoada promovida durante o gover-
trabalho pelo fato de ser inadequado quanto às no de Fernando Collor. Este processo forçou à
demandas de qualificação exigidas. competitividade uma economia em grande parte,
senão em sua totalidade, desenvolvida sob o
guarda-chuva protecionista. A estreiteza de mer-
O caso brasileiro cado interno impôs também sua contribuição a
esse contexto, tendo em vista que, apesar de po-
O Brasil não escapou, nos anos de 1990, da tencialmente amplo, ele é altamente restringido
onda de reestruturação produtiva que já vinha pela concentração de renda, que transforma o

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quantitativo em qualitativo, abrindo janelas, ni- time, kan-ban e os Círculos de Controle de Quali-
chos de espaços de consumo e alta lucratividade, dade (CCQs), muitas vezes, isoladamente e com
duramente disputadas. seu sentido transformado. O trabalho, como re-
Na disputa de tais espaços, entretanto, as gra, continuou tendo prescrição individual, via
empresas estão precisando lidar, nem sempre de carta de processos, roteiros de fabricação ou or-
forma satisfatória, com problemas que lhes são dens orais. A polivalência pareceu ser antes multi-
tanto de ordem interna como externa. Haveria um tarefa do mesmo teor que um desenvolvimento de
escasso dinamismo tecnológico e um correlato múltiplas habilidades por uma força de trabalho
atraso relativo da indústria brasileira. Conforme já altamente qualificada.
constatado por Ruy de Quadros Carvalho (1994), A isso se agregou o fato de que as gerências
isso poderia ser explicado por um padrão de in- apresentaram uma grande dificuldade em incor-
dustrialização, marcado pela exploração predató- porar a competência dos trabalhadores no proces-
ria de mão-de-obra barata e de recursos naturais so, deixando explícita uma longa herança de au-
abundantes e pela manutenção de um protecio- toritarismo no interior fabril. Com isso, teríamos o
nismo generalizado e ilimitado no tempo. desenvolvimento de um processo que adiciona a
Deste quadro, resultariam a permanência de adoção de novas técnicas e novos métodos às re-
processos de trabalho convencionais com pouco lações de trabalho retrógradas, que tem por base
espaço e aceitação da inovação e o uso predatório os baixos salários e a falta de procedimentos que
de uma força de trabalho pouco qualificada, que visem à estabilização da mão-de-obra.
por isso justificaria seu baixo salário. A flexibilização avançou muito, aproveitan-
No que diz respeito à baixa qualificação e até do-se da flexibilidade preexistente, na esfera da
mesmo à baixa escolaridade da força de trabalho contratação do trabalho. Podemos caracterizar este
no País, muitas vezes, utilizada como argumento processo como o que John Humphrey (1994) cha-
justificativo dos obstáculos à modernização, deve- mou de flexibilidade defensiva, que deixa a organi-
mos chamar a atenção para o fato de que as mes- zação da produção intocada e aumenta, sobrema-
mas foram resultado, entre outros fatores, de uma neira, a flexibilidade dos contratos de trabalho.
demanda que vinha sendo formada de há muito, Nesse sentido, vemos pipocar terceirização
por um processo de recrutamento taylorista. por todos os lados e das mais variadas formas, in-
Porém, apesar das limitações, a flexibilização tensificando, cada vez mais, o processo de preca-
vai ganhando espaço no mundo da produção. rização do trabalho. O que está ocorrendo é uma
Entretanto, isso se dá de forma bastante desigual verdadeira exportação de tensões, conflitos e da
entre setores produtivos e esferas de relação (em- própria legislação trabalhista para fora das unida-
presa, inter-empresa, regulamentação do traba- des produtivas, já que, mesmo alocados dentro de
lho, etc.), com resultados também variados. seu espaço, os terceirizados são trabalhadores de
De forma geral, se observarmos a tentativa um terceiro. Isso se explicita mais quando as gran-
de implementação da flexibilização via introdução des empresas transformam as casas de seus fun-
de métodos e técnicas do que já foi chamado de cionários em minifábricas para familiares e ami-
nova escola de gestão da produção (modelo japo- gos em geral, numa cruel reapropriação do traba-
nês), perceberemos que ela tem enfrentado bar- lho doméstico, corroendo, entre outras, a legisla-
reiras, que vão desde o interior fabril até a regula- ção trabalhista e a representatividade sindical.
ção geral, por parte da intervenção do Estado (au- Tudo isso, com um pano de fundo caracterizado
sência de infra-estrutura, política industrial, inves- pelo desemprego ampliado e de longa duração.
timento em qualificação profissional, política sa- Os trabalhadores, na maior parte das vezes,
larial, etc.). têm tido pouco espaço para expressar suas posi-
Assim, como constatado por Mário Salerno ções e imprimir um pouco de suas demandas e
(1993), a flexibilização na produção foi marcada perspectivas. Em um contexto como esse, a flexi-
pela introdução de sistemas, tais como o just in bilização tem sido vista com reservas, quando

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não rechaçada pelo movimento sindical, que já É preciso lembrar que a luta dos trabalhado-
traz, ao longo de sua história, uma trajetória na res através da história, se deu sempre de forma
qual, pelas circunstâncias, a pró-ação sempre ce- bastante particular e especificada, dependendo,
deu lugar a propostas reativas e à resistência. sobremodo, do contexto onde buscava atuar. De
Apenas em alguns casos e/ou em alguns setores certa maneira, a ação dos sindicatos experimen-
de ponta, se verifica a intenção de se negociar a tou constantes crises e instabilidades, como é do
implantação das inovações, dando-lhes, inclusi- fundamento da existência de qualquer organiza-
ve, novos sentidos. ção em busca do ajuste e adequação de suas for-
As diferentes forças atuantes no meio sindical mas de estruturação e intervenção.
de nosso país, conforme as suas orientações políti- A partir disso, podemos dizer que, diante do
co-sindicais, têm tentado enfrentar todas essas quadro de mudanças que varrem a sociedade
questões, apresentando, obviamente, sugestões contemporânea, o sindicalismo não poderia ficar
de caráter variado e, muitas vezes, antagônico. parado, como não está. Talvez não esteja se alte-
Não existe, até aqui, uma proposta que unifique rando tão rapidamente como gostaríamos, ou
as diversas posições no movimento sindical no projetamos, mas não podemos dizer que outras
sentido do enfrentamento da crise. Elas possuem perspectivas não estejam se abrindo, apontando
leituras diversas do quadro em curso e proposi- para diferentes possibilidades. Dentre essas, já
ções de intervenção também diferentes. Um dos são sensíveis as articulações que têm sido promo-
pontos que tem sido recorrente, e polêmico, no vidas pelos sindicatos dentro e fora de seu uni-
debate no interior do movimento sindical, é a pre- verso, buscando incorporar novos temas e de-
ocupação dos trabalhadores com a qualificação mandas, ampliando, assim, suas esferas e formas
profissional e com a disputa de espaços nessa de ação.
área, questão da qual esteve afastado durante Em um contexto que conjuga informalidade
muito tempo e que, apesar das limitações, foi alça- e desemprego, ou, para sermos mais diretos, pre-
da novamente ao primeiro plano. carização e aumento da exclusão, em uma lógica
que visa a destituir os trabalhadores até mesmo
de seus mais elementares direitos, como sobrevi-
Buscando alternativas: os trabalhadores veria a máquina de organização sindical sem que
e suas organizações muitas de suas premissas sejam alteradas, no
sentido de agilizar sua capacidade de dar conta
Embora haja certo consenso na literatura de novas questões, impedindo a corrosão de sua
acerca da radicalidade das mudanças em curso e representatividade?
que estas teriam duros efeitos sobre os sindica- A investigação sociológica sobre a crise do
tos, existe pouco consenso se os impactos seriam sindicato tem levado também à antecipação de
tão letais e terminais assim. Uns alegam que há cenários, desdobramentos e tendências para o fu-
uma crise mundial de sindicalização; outros, qua- turo. As alternativas propostas variam, basica-
lificando diferentemente os números, apontam o mente, entre os cenários que enfatizam mudanças
relativismo de tal afirmação. Uns indicam que o nas atividades sindicais mais tradicionais de repre-
legado dos sindicatos como elemento central da sentação coletiva e aquelas que sugerem uma am-
representação dos interesses dos trabalhadores pliação de atividades no sentido de incluir a repre-
está acabado, dando lugar à outras formas iden- sentação de trabalhadores desempregados, pre-
titárias e de representação mais parciais; outros, carizados ou excluídos do núcleo central da pro-
aceitando, em parte, tal indicação, continuam dução e até de um “sindicalismo comunitário que,
apontando a importância dos sindicatos na con- com outros movimentos sociais, voltar-se-ia para
quista e manutenção de direitos para a classe atender às necessidades dos que se encontram ex-
trabalhadora. cluídos do mundo do trabalho" (Larangeira, 1998,
p.181-3). Isso, a nosso ver, resgataria, em muito,

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uma tradição que foi se enfraquecendo ao longo tratégias de recrutamento e manutenção de mem-
da história do movimento operário mundial, por bros, no sentido de que terão de recrutar e ficar
conta de sua institucionalização. com os indivíduos ao longo de toda sua trajetória
Tais indicações, baseando-se em experiên- profissional, ao invés de perdê-los assim que mu-
cias concretas, vão apresentando as novas confi- dam ou perdem empregos; deve-se buscar uma
gurações e práticas que o sindicalismo vem assu- modificação nas leis trabalhistas e na cultura ge-
mindo. A idéia de um sindicalismo tipo movimen- rencial, para que incorporem tal possibilidade,
to social, avançada por Moody (1997, p. 5), pro- permitindo aos sindicatos cumprirem seu novo
põe um sindicalismo mais dinâmico, aberto às no- papel e garantindo aos trabalhadores a liberdade
vas demandas, de escopo internacional e informa- de organização nos locais de trabalho, a mesma
do por uma política socialista renovada. que, aliás, eles já possuem na sociedade civil.
Mais que uma estrutura ou uma área de No caso brasileiro, as buscas de alternativas
abrangência e jurisdição, bases da organização do têm apontado também para diversas propostas e
sindicalismo de corte industrial, essa idéia traria, direções. Embora ainda se tenha dificuldade de
em seu bojo, um tipo de orientação. Esse sindica- avaliar com maior profundidade os resultados
lismo seria democrático, como a melhor maneira desses esforços, já é possível assinalar o desenvol-
de mobilizar os trabalhadores; militante, no senti- vimento de experiências múltiplas e variadas, nos
do de que perceberia que um recuo em qualquer diversos setores que compõem o movimento sin-
dos pontos de sua rede de lutas levaria tão somen- dical brasileiro. Mesmo que não sejam consen-
te a mais recuos; lutaria pelo poder e pela organi- suais, elas servem de indicativo das movimenta-
zação nos locais de trabalho; seria político, embo- ções no novo quadro, no qual a exclusão social e
ra agindo independentemente dos partidos; multi- o desemprego assumem papel de destaque na lis-
plicaria o alcance de seu “poder político e social ta de preocupações do sindicalismo de nosso país.
na articulação com outros sindicatos, organiza- A este respeito, podemos indicar, entre outras:
ções de bairro ou outros movimentos sociais”; fi- A tentativa de articulação com outros movi-
nalmente, lutaria por todos os oprimidos, ampli- mentos sociais, como, por exemplo, os movimen-
ando seu poder neste processo. tos pela terra, por moradia e outros relativos à ci-
Indo ainda mais à frente em termos experi- dadania, justiça etc.
mentais alternativos, Osterman et al. (2001), em A busca da abertura para novos temas e de-
uma análise menos politizada que a de Moody mandas. Tem-se dado, por exemplo, maior ênfa-
(1997), assinalam que o sindicalismo do futuro se em políticas concretas para as questões de gê-
deve assumir uma feição de redes ampliadas. nero e raça, de cidadania, dentro e fora dos locais
Para os autores, “trabalhadores e suas famílias de trabalho, e para uma maior atenção à educa-
necessitam e merecem uma voz forte, indepen- ção dos trabalhadores, a qual agora ultrapassa a
dente e inovativa nos locais de trabalho, em suas formação político-sindical, passando também a
comunidades e nas formulações de políticas na- discutir a educação geral e profissional.
cionais” (Idem, p. 96). Este processo vai reque- A incorporação de práticas alternativas de
rer, além da ampliação de seu escopo, as necessi- organização e negociação. Isso pode ser visto
dades e os interesses dos mais variados setores através de práticas que visam a inserir os sindica-
ocupacionais. tos na luta pelas definições de novas instituciona-
Mas, para que este tipo de sindicalismo se lidades2, como as Câmaras Setoriais e tentativas
torne uma realidade, algumas pré-condições de- recentes de articulação de organização e ações
verão ser preenchidas. Além da mudança nas es- no âmbito regional (por exemplo, o Mercosul3).

2 A este respeito ver Castro (1997).


3 Sobre as articulações sindicais no Mercosul e o redimensionamento do sindicalismo latino-americano, ver Castro e Wachendorfer
(1998).

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Além disso, tem-se intentado sanar uma dificul- como também se impõe ao trabalhador a necessi-
dade já tradicional de nosso sindicalismo que diz dade (e o risco) de buscar incansavelmente preen-
respeito à manutenção de vínculos e organização cher requisitos definidos pela lógica empresarial.
de trabalhadores desempregados. Se a educação vem assumindo foro de cen-
A tarefa para os sindicalistas não é das mais tralidade nesse debate (e em termos de requeri-
fáceis. Terão que, incorporando sua experiência mentos práticos), é necessário que a sociedade
histórica – o que constitui um acervo fundamental como um todo se indague de que formação se
–, conseguir analisar e atuar corretamente na con- está falando e necessitando. O fato de que, possi-
juntura presente, olhando o futuro de forma aber- velmente, tenha ficado para trás a demanda taylo-
ta e atenta às novas condições. Nesse sentido, mui- rista, substituída pelo operário-boi, não pode, por
to de sua cultura político-sindical precisa ser colo- si só, indicar que as demandas educacionais, fei-
cada em questão. O sindicalismo, para sobreviver, tas pelos novos modelos produtivos sejam positi-
em meio a tantas ameaças reais ou virtuais, neces- vas para a sociedade em geral e para o trabalha-
sita não só ampliar seu espectro com outras de- dor em particular. Como em todos os demais as-
mandas e preocupações, como também com for- pectos, é a sociedade e não o mercado, quem
mas diversas de luta e estruturação. Isso pode lhe deve definir e guiar os eixos de desenvolvimento
oferecer condições de ser mais propositivo e ante- social e econômico. A perspectiva de diálogo en-
cipador de cenários, os quais lutará para construir tre as duas demandas, no qual a social deve ter
ou obstar. primazia, parece ser um caminho fértil.
Desse modo, o sindicalismo continuaria a de- Tendo em vista a centralidade atribuída ao
sempenhar seu importante papel na luta pela con- trabalho na sociedade moderna, sua relevância
quista e manutenção dos direitos dos trabalhado- em termos da organização social e sua importante
res, levando em conta incluídos e excluídos do dimensão para o pensamento social, uma crise
mundo do trabalho. Por certo, não há muitas ra- que transforme esse campo tende a trazer modifi-
zões para sermos otimistas, mas nem por isso de- cações também em suas diversas dimensões. É o
vemos nos seduzir por um pessimismo paralisan- que estamos presenciando. Podemos perceber
te. Nessa nova era das desigualdades em que vi- mudanças substanciais no mundo do trabalho,
vemos, os sindicatos não podem deixar de estar nas análises sobre ele e mesmo nas formulações
presentes, a um só tempo, garantindo aos traba- políticas dele oriundas ou a ele direcionadas.
lhadores um lugar digno na sociedade e pleitean- É provável que os trabalhadores e as suas
do um mundo mais justo e igualitário. instituições de representação nunca tenham pas-
sado por uma quadra tão adversa. Em um proces-
so conjugado, não só se agravam as condições de
Considerações finais vida e trabalho da maioria da população pelo
mundo, como também está ameaçada a existên-
As mudanças no mundo do trabalho têm exi- cia dos organismos responsáveis pela ação que
gido novos requerimentos de processos e de seus poderia servir de contraponto a esse processo. O
trabalhadores. Como podemos ver em muitos ca- trabalho vai sendo precarizado, a legislação de
sos, tais requerimentos endereçam suas demandas proteção a ele diminui, e suas formas de organiza-
à qualificação e formação dos trabalhadores, o ção enfrentam sérios desafios.
que, porém, é feito de forma individualizada, solici- Algumas questões ainda estão em aberto.
tando investimento e empenho pessoal do traba- Como ficará esta sociedade que vinculou grande
lhador. A própria noção de educação se vê sob parcela de sua sociabilidade ao trabalho e agora
pressão daquilo que seria educar para o trabalho. prescinde dele? Durante muito tempo, foi do tra-
Não só se submete o que deveria ser uma ótica for- balho que espraiaram movimentos universalizan-
mativa mais plena e crítica a uma perspectiva mais tes de direitos para toda a sociedade. Será ela,
restrita de determinação da lógica de mercado, agora, prescindindo daqueles atores, capaz de for-

19
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mular novos direitos inclusivos ou continuará ace- HIRATA, Helena. Reestruturação Produtiva, Trabalho e Re-
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

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21
A crise e o êxodo da sociedade salarial

Entrevista com André Gorz

André Gorz nasceu em Viena, em 1923. Vive sante analisar o texto-base da Campanha da Fra-
na França, desde 1948. É conhecido internacio- ternidade de 1999, para perceber até onde che-
nalmente por seus 16 livros publicados, dos quais gou o pensamento de André Gorz.
seis foram traduzidos para o português: Estraté-
gia operária e neocapitalismo (Zahar, 1968), IHU On-Line – O Brasil, a exemplo de mui-
O socialismo difícil (Zahar, 1968), Crítica da di- tos outros países, é bastante atingido pelo
visão do trabalho (Martins Fontes, 1980), Adeus problema do desemprego. Uma das solu-
ao Proletariado (Forense-Universitária, 1982). ções mais difundidas e defendidas por go-
Recentemente, a Editora Annamblume publicou vernos, policiais e economistas é a retoma-
os livros: Metamorfose do Trabalho. Crítica da do crescimento. Ora, o senhor diz que
da razão econômica (2003) e Misérias do isso é insuficiente. Por quê?
Presente, Riqueza do Possível (2004).Falta André Gorz – É preciso, em primeiro lugar, per-
ser traduzido seu último livro, L´Immatériel. guntar-nos: De que crescimento temos necessida-
Connaissance, valeur et capital. Paris: Gali- de? O que nos falta e o que o crescimento deveria
lée, 2003 (O Imaterial. Conhecimento, valor e ca- trazer-nos? Mas essas perguntas jamais foram le-
pital). As suas obras mais recentes e, provavel- vantadas. Os economistas, os governos, os ho-
mente, as mais instigadoras e portadoras de uma mens de negócios reclamam pelo crescimento em
abordagem nova e questionadora, são pouco co- si, sem jamais definir sua finalidade. O conteúdo
nhecidas no Brasil. Estas obras mais recentes co- do crescimento não interessa aos que decidem. O
meçam, agora, a ser traduzidas para o português que lhes interessa é o aumento do PIB, ou seja, o
pelo empenho de Josué Pereira da Silva, profes- aumento da quantidade de dinheiro trocado, a
sor na Universidade de Campinas (UNICAMP). No quantidade de mercadorias compradas e vendi-
entanto, a divulgação do seu pensamento, desde das no decurso de um ano, quaisquer que sejam
os meados da década de 1990, é feita de maneira essas mercadorias. Nada garante que o cresci-
mais insistente pelo Centro de Pesquisa e Apoio mento do PIB aumente a disponibilidade dos pro-
dos Trabalhadores (CEPAT), com sede em Curiti- dutos de que a população necessita. De fato, esse
ba. Nas suas publicações, nos seus cursos e nas crescimento responde, em primeiro lugar, a uma
suas assessorias, o CEPAT tem divulgado ampla- necessidade do capital, não às necessidades da
mente a contribuição teórica de André Gorz para a população. Ele cria, muitas vezes, mais pobres e
análise da grande transformação do mundo do mais pobreza, ele, com freqüência, traz rendimen-
trabalho na contemporaneidade. E ele, curiosa- to a uma minoria em detrimento da maioria, ele
mente, tem até inspirado alguns movimentos pas- deteriora a qualidade da vida e do meio ambiente,
torais que atuam no meio popular e que buscam em vez de melhorá-la.
entender as mudanças do mundo do trabalho na Quais são as riquezas e os recursos que faltam
sociedade brasileira. Nesse sentido, seria interes- com mais freqüência à população? Uma alimenta-

22
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ção sadia e equilibrada em primeiro lugar; água talismo industrial destes países teve lugar antes da
potável de boa qualidade; ar puro, luz e espaço; mundialização neoliberal, antes da revolução mi-
um alojamento saudável e agradável. Mas, a evo- croinformática, numa época marcada pelo cresci-
lução do PIB não mede nada isso. Tomemos um mento sustentável das economias do Norte. Os
exemplo: uma aldeia faz um poço, e todo o mun- mercados dos países ricos estavam em expansão,
do pode tirar a sua água dali. A água é um bem suas economias importavam mão-de-obra estran-
comum, e o poço a produz porque houve um tra- geira, e as indústrias japonesas primeiro, as corea-
balho comum. Ele é a maior fonte de riqueza da nas, em seguida, podiam obter, sem grande difi-
comunidade. Mas ele não aumenta o PIB, pois culdade, um lugar nos mercados europeus e nor-
ele não dá lugar a trocas de dinheiro: nada é te-americanos, na condição de bem escolher sua
comprado nem vendido. Mas, se o poço é cava- estratégia de industrialização.
do e dele se apropria um empreendedor privado Ora, após o fim dos anos 1970, as condições mu-
que exige de cada aldeão que pague a água que daram fundamentalmente. As exportações para
ele retira, o PIB aumentará encargos embutidos os países ricos já não podiam mais ser o principal
pelo proprietário. motor do crescimento das economias do Sul, e
Tomemos ainda o exemplo dos camponeses sem isso por um conjunto de razões. Em primeiro lu-
terra. Se forem distribuídas a 100 mil famílias ter- gar, os mercados do Norte não estavam mais em
ras improdutivas nas quais elas produzem sua forte expansão. Em seguida, a mundialização neo-
subsistência, o PIB não muda. Ele também não liberal não permitiu mais aos países ditos emer-
muda se essas famílias repartirem suas tarefas de gentes protegerem suas indústrias domésticas e
interesse geral, trocando produtos e serviços sua agricultura contra a concorrência dos países
numa base mutualista e cooperativa. Contraria- do Norte. Abrindo-se a estes para atrair investi-
mente, se 100 proprietários expulsam 100 mil fa- mentos estrangeiros, eles caíram numa cilada du-
mílias de suas terras e fazem desenvolver nessas vidosa. As importações vindas do Norte arruina-
terras culturas comerciais destinadas à exportação, ram milhões de pequenas empresas semi-artesa-
o PIB aumenta no montante dessas exportações e nais e criaram indústrias que forneceram, relativa-
dos salários miseráveis pagos aos agricultores. mente, poucos empregos e impuseram custos de
O PIB não conhece e não mede as riquezas, a não modernização muito pesados ao país. Com efeito,
ser que elas tenham a forma de mercadorias. Ele a era das indústrias de mão-de-obra chega ao seu
só reconhece como trabalho produtivo o trabalho fim. Os baixos salários dos países do Sul não bas-
vendido a uma empresa que dele tira lucro, ou, tam mais para assegurar-lhes partes de mercado.
dito de outra maneira, que pode revender com lu- Praticamente toda a produção industrial exige
cro o produto desse trabalho. Só é produtivo, do agora uma forte intensidade de capital, isto é, in-
ponto de vista do capital, o trabalho que produz vestimentos pesados, e a amortização, a remune-
mais do que ele custa, o trabalho que produz um ração e a contínua inversão de capital técnico fixo
excedente – um sobrevalor – suscetível de aumen- pesa muito mais onerosamente nos preços de re-
tar o capital. torno do que os custos de mão-de-obra. Esta
Nos países em que a grande maioria da popula- mão-de-obra relativamente pouco importante
ção é pobre, há poucas pessoas a quem se pode deve ter um nível de produtividade muito eleva-
vender com lucro. O desenvolvimento de uma do, pois é do sobrevalor que ela produz, que de-
economia de mercado, criadora de empregos, só pende a rentabilidade do investimento. Enfim, a
pode ser iniciada onde existe um poder político, competitividade das indústrias depende, muito
capaz de inscrever essas iniciativas e suas impul- mais fortemente do que no passado, de uma one-
sões públicas numa estratégia de exportações e de rosa infra-estrutura logística: vias de comunica-
desenvolvimento. Esse poder existia notadamente ção, redes de transporte, energia e telecomunica-
no Japão e na Coréia do Sul. É preciso, porém, ção, administrações e serviços públicos eficazes,
lembrar também que o desenvolvimento do capi- centros de pesquisa e de formação – em suma, do

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que Marx chamava (em francês) les faux frais [os ambiente e o grau de coesão social, um dos países
falsos custos] da economia. “Falsos custos”, cujo fi- mais pobres do planeta: por seu PIB, o Kerala, se
nanciamento deve provir das retiradas bancárias, revelou como um dos mais ricos.
baseadas no sobrevalor produzido pela indústria. Vou tentar resumir brevemente as razões desse
Se examinarem o “milagre chinês”, constatarão paradoxo. Numa economia em que as empresas
que a China não é exceção nesta ótica. A in- procuram permanentemente retirar umas das ou-
fra-estrutura logística e os serviços estão atrasados tras certas partes do mercado, cada uma procura
em relação às necessidades da indústria. Gargalos reduzir os custos, e reduzindo a quantidade de tra-
de estrangulamento em matéria de água, de ener- balho que ela emprega, ela procura aumentar a
gia e de espaço em particular freiam ou bloqueiam sua produtividade. Suponham que, num dado
o crescimento, o desemprego aumenta de manei- momento, a produtividade tenha duplicado. É ne-
ra dramática, pois a industrialização arruinou os cessária, então, uma metade a menos de trabalho
ateliês rurais de produção, que faziam viver mais para produzir um mesmo volume de mercadorias.
de 100 milhões de trabalhadores, e a concentra- Mas, o “valor” deste mesmo volume tenderá tam-
ção agrária constrange outros mais de 100 mi- bém ele a diminuir pela metade e em taxas de ex-
lhões ao êxodo. A taxa de desemprego nas cida- ploração constante, o volume do lucro tenderá a
des é estimada pelo BIT em torno de 20% e ela baixar na mesma proporção, pois só o trabalho
tende a aumentar rapidamente. As produções chi- vivo é capaz de criar valor; e, sobretudo, somente
nesas não podem, com efeito, igualar em qualida- a força de trabalho vivo é capaz de criar um valor
de as produções do Norte, a não ser que o recurso maior do que o seu próprio, ou seja, um sobreva-
de uma mão-de-obra abundante e um bom mer- lor4. É esta a fonte do lucro. Para que o volume do
cado dêem mais amplamente lugar à informatiza- lucro não diminua, será preciso, ou que a empre-
ção e à automação, mais econômicos em trabalho sa, numa produção constante, tenha dobrado as
e em energia, mas de mais forte intensidade de ca- taxas de exploração, ou que ela tenha consegui-
pital. Na China, como na Índia e no Ocidente, o do, numa taxa de exploração constante, dobrar
modelo de crescimento pós-fordista enriquece em sua produção. Na prática, ela procura combinar,
torno de 20% a população, mas gera em torno de segundo a conjuntura, a intensificação da explo-
si enclaves pós-industriais hipermodernos, com ração e o aumento da produção.
vastas zonas de miséria e de abandono, onde se O crescimento é, pois, para o capitalismo, uma
desenvolvem a criminalidade organizada e as necessidade sistêmica totalmente independente
guerras entre seitas e religiões. e indiferente à realidade material do que cresce.
O “crescimento” não permite sair da armadilha da Ele responde a uma necessidade do capital. Ele
modernização neoliberal, salvo para definir parâ- conduz a esse desenvolvimento paradoxal que
metros fundamentalmente diferentes do que deve faz com que, nos países de PIB mais elevado, se
crescer, ou seja, a menos de se definir uma econo- viva cada vez pior, consumindo cada vez mais
mia totalmente diversa. A relação do PNB sobre o mercadorias.
“desenvolvimento humano” esboçou, em 1996,
uma redefinição desse gênero. Acrescentando IHU On-Line – Na base de um contexto his-
aos “indicadores” habituais de riqueza o estado tórico (uma releitura “arendtiana” do “tra-
de saúde da população, a sua esperança de vida balho” junto aos gregos), o senhor chega a
e sua taxa de alfabetização, a qualidade do meio distinguir as categorias “emprego” e “tra-

4 O sobrevalor (chamado outrora “mais-valia”, originado do inglês surplus value) é o valor da produção que um trabalhador
realiza além de suas próprias necessidades e das de sua família. Ele é um excedente econômico (economic surplus, segundo a
terminologia de Paul Baran). A proporção de sobrevalor, no total do valor produzido por um trabalhador, é a taxa de
sobrevalor (taxa de mais-valia), que mede a taxa de exploração.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

balho”. Qual é a importância desta decisão sófico, que é exteriorização e objetivação de si, a
e quais são suas conseqüências? contradição deve acabar por se tornar evidente. O
André Gorz – O trabalho, tal como nós o enten- trabalho, tal como o compreende o capitalismo, é
demos, não é uma categoria antropológica. Ele é a negação do trabalho tal como o compreende a
um conceito inventado no fim do século XVIII. filosofia, é sua alienação: o capitalismo determina
Hannah Arendt lembra que, na Grécia antiga, o o trabalho como algo estrangeiro (alienus), não
trabalho designava as atividades necessárias à podendo ser para e por si mesmo.
vida. Essas atividades eram sem dignidade nem Marx formulava isso da seguinte maneira: (Tra-
nobreza: eram necessidades. Trabalhar era sub- balho, salário e capital, 1849). De uma parte,
meter-se à necessidade, e essa submissão tornava “o trabalho é a atividade vital própria do trabalha-
o indivíduo indigno de participar como cidadão dor, a expressão pessoal de sua vida”.
da vida pública. O trabalho era reservado aos es- Esta “atividade vital”, contudo, ele a vende a um tercei-
cravos e às mulheres. Ele era considerado como o ro para assegurarem-se os meios necessários à sua exis-
contrário da liberdade. Ele era confinado à esfera tência, se bem que sua atividade vital seja apenas o
único “meio” de subsistência... Ele não considera o tra-
privada, doméstica. balho, enquanto tal, como fazendo parte de sua vida;
No século XVIII, começa a tomar corpo uma con- ele é antes o sacrifício dessa vida. Ele é uma mercado-
cepção diferente. O trabalho começa a ser com- ria que adjudica a um terceiro. Por isso o produto de
preendido como uma atividade que transforma e sua atividade não é o fim desta atividade.
domina a natureza, não como uma atividade que O fim primário desta atividade é o de “ganhar a
somente se submete a ela. Além disso, a elimina- vida”, de ganhar um salário. É pelo salário que re-
ção progressiva das indústrias domésticas – em munera que o trabalho se inscreve como “ativi-
particular dos tecelões – pelas manufaturas, faz dade social” na tela das trocas sociais de merca-
aparecer o trabalho como uma atividade social, dorias que estruturam a sociedade, e que o traba-
socialmente determinado e dividido. O capitalis- lhador é reconhecido como trabalhador social
mo manufatureiro exige uma mão-de-obra que pertencente a essa sociedade.
lhe forneça trabalho sem qualificação nem quali- Mas, o aspecto mais importante, do ponto de vista
dade, um trabalho simples, repetitivo que não im- da sociedade, aquele que justifica que se fale de
porta quem deva fazê-lo, aí incluindo as crianças. sociedade capitalista, é ainda outro: o trabalho
Assim nasce essa classe social sem qualidade, o tratado como uma mercadoria, o emprego, torna
proletariado, que fornece um “trabalho sem “o trabalho estruturalmente homogêneo ao capi-
mais”, um “trabalho sem frases”. Cada proletário tal”. Da mesma forma como o fim determinante
é reputado como cambiável por qualquer outro. O do capitalismo não é o produto que a empresa
trabalho proletário passa para algo totalmente im- põe no mercado, mas o lucro que sua venda per-
pessoal e indiferenciado. Adam Smith vê nisso a mitirá realizar, o fim determinante do assalariado
substância comum a todas as mercadorias, uma não é “aquilo” que ele produz, mas o salário que
substância quantificável e mensurável, cuja quan- sua atividade produtiva lhe concede. “Trabalho e
tidade cristalizada no produto determina o seu capital são fundamentalmente cúmplices além de
“valor”. seu antagonismo, enquanto ganhar dinheiro é seu
Pouco tempo após, Hegel dá ao trabalho em si fim determinante”. Aos olhos do capital, a nature-
um sentido mais amplo: ele não é simples dispên- za da produção importa menos que sua rentabili-
dio de energia, mas a atividade pela qual os ho- dade; aos olhos do trabalhador, ela importa me-
mens inscrevem o seu espírito na matéria e, sem nos que os empregos que ela cria e os salários que
antes o saber, transformam e produzem o mundo. ela distribui. Para um e para o outro, aquilo que é
Entre o trabalho que, no sentido econômico, é produzido importa pouco, contanto que isso ren-
uma mercadoria como qualquer outra, cristaliza- da. Um e outro estão, conscientemente ou não, a
da nas mercadorias, e o trabalho em sentido filo- serviço da valorização do capital.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Por isso o movimento operá- dades dos trabalhadores e de suas famílias. Esta
rio e o sindicalismo só são anticapitalistas norma do “suficiente” é tão pregnante, que os
enquanto eles põem em questão, não so- operários de profissão param de trabalhar depois
mente o nível dos salários e as condições de que eles ganharam “bastante” para viver segundo
trabalho, mas as finalidades da produção e seu costume e que os operários pagos por rendi-
a forma mercantil do trabalho que a realiza. mento não podem ser constrangidos a trabalhar
De que maneira o trabalho se situa na base dez ou doze horas por dia a não ser por uma dimi-
da crise ecológica? nuição de seu salário-hora.
André Gorz – O trabalho assalariado não é so- Mas, a partir de 1920, nos Estados Unidos, e de
mente para o capital o meio de desenvolver-se, 1948, na Europa ocidental, as necessidades pri-
ele é também, por suas modalidades e sua organi- márias oferecem ao capitalismo um mercado de-
zação, um meio de dominar o trabalhador. Este é masiado pequeno para absorver o volume das
despojado de seus meios de trabalho, do fim e do mercadorias que ele é capaz de produzir. A econo-
produto de seu trabalho, da possibilidade de de- mia não pode continuar a crescer, os capitais acu-
terminar sua natureza, sua duração, seu ritmo. O mulados não podem ser valorizados, e os lucros
único fim ao seu alcance é o dinheiro do salário e não podem ser reinvestidos, a não ser que a pro-
o que ele pode comprar. O trabalho mercantiliza- dução de supérfluos ultrapasse, mais e mais, a
do gera o puro consumidor dominado que não produção do necessário. O capitalismo necessita
produz nada daquilo de que ele precisa. O operá- de consumidores cujas compras sejam motivadas,
rio produtor é substituído pelo trabalhador consu- cada vez menos, pelas “necessidades comuns” a
midor. Constrangido a vender todo o seu tempo, todos e, cada vez mais, pelos “desejos individuais
a vender sua vida, ele enxerga o dinheiro como o diferenciados”. O capitalismo precisa produzir um
que tudo deve comprar simbolicamente. Quando novo tipo de consumidor, um novo tipo de indiví-
se acrescenta que a duração do trabalho, as con- duo: um indivíduo que, por seus consumos, por
dições de alojamento e o ambiente urbano são suas compras, queira se destacar da norma co-
outros tantos obstáculos à expansão das faculda- mum, “distinguir-se” dos outros e afirmar-se “fora
des individuais e das relações sociais, à possibili- do comum”.
dade de desfrutar do tempo de não-trabalho, com- O interesse econômico dos capitalistas coincide
preende-se que o trabalhador, reduzido a uma maravilhosamente com o seu interesse político. A
mercadoria, não sonha senão com mercadorias. individualização e a diferenciação dos consumi-
A dominação que o capital exerce sobre os traba- dores permitem, ao mesmo tempo, ampliar os
lhadores, constrangendo-os a “comprar” tudo mercados da indústria e minar a coesão e a cons-
aquilo de que necessitam, furta-se, num primeiro ciência de classe dos trabalhadores. Elas devem
tempo, à sua resistência. Suas compras se dirigem induzir neles comportamentos e aspirações próxi-
essencialmente a produtos de primeira necessida- mos daqueles da “classe média”. Um dos primei-
de e seus consumos são comandados por suas ne- ros a investigar metodicamente essa transforma-
cessidades vitais, enquanto seus salários lhes asse- ção da classe operária foi Henry Ford.
guram estritamente a sobrevivência. Eles só po- Em suas usinas, as cadeias de montagem exigiam
dem resistir à sua exploração por ações e iniciati- um trabalho repetitivo, embrutecedor, sem digni-
vas coletivas e eles se unem na luta com base “nas dade, mas os operários desqualificados recebiam
necessidades que lhes são comuns”. É a época he- salários invejáveis. O que eles perdiam no plano da
róica do sindicalismo, das cooperativas operárias dignidade profissional, eles ganhavam no plano do
e dos mútuos, dos círculos de cultura operária e da consumo, que, por necessidade, era substituído, ao
unidade e pertença à classe. menos em parte, pelo “consumo compensador”.
As lutas operárias, neste estágio, são conduzidas O período dito fordista, que durou, com altos e
principalmente em nome do direito à vida, exigin- baixos, de 1948 a 1973, conseguiu combinar a
do um salário “suficiente” para cobrir as necessi- progressão dos salários, das prestações sociais,

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das despesas públicas e, sobretudo, da produção disso, cada progresso da agricultura capitalista é um
progresso não somente da arte de explorar o trabalha-
e do emprego. O quase pleno emprego basea- dor, mas também na arte de despojar o solo; cada pro-
va-se num crescimento da produção mais elevado gresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tem-
que o crescimento da produtividade do trabalho, po, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de
isto é, superior a 4% ao ano. Na medida em que ela fertilidade. Quanto mais um país, os Estados Unidos da
América do Norte, por exemplo, se desenvolve com
trazia a segurança do emprego e a segurança soci- base na grande indústria, mais esse processo de destru-
al, a expansão da economia estava no interesse ição se cumpre rapidamente. A produção capitalista
imediato da classe operária. Com exceção de uma não desenvolve, pois, a técnica e a combinação do pro-
cesso de produção social, senão esgotando ao mesmo
esquerda sindical minoritária, o movimento operá-
tempo as duas fontes de onde jorra toda a riqueza: a
rio não criticava a natureza e a orientação desta ex- terra e o trabalhador.
pansão, mas reclamava antes sua aceleração.
Ora, a expansão sustentada da produção implica, IHU On-Line – O senhor demonstrou que,
num regime capitalista, uma aceleração da rota- em nossa sociedade, o grande problema
ção e da acumulação do capital. O capital fixo (in- não é mais o da produção, mas o da distri-
vestido nas instalações materiais) deve ser rentabi- buição. De onde vem esta mudança e quais
lizado e amortizado rapidamente, a fim de que os são suas propostas para fazer face a este
lucros possam ser reinvestidos na ampliação dos novo desafio? A independência entre o tra-
meios de produção. balho e a remuneração, idéia que o senhor
Sob o ângulo ecológico, a aceleração da rotação defende, poderia trazer essa mudança?
do capital conduz à exclusão de tudo o que dimi- André Gorz – A resposta é muito simples: quan-
nui de imediato o lucro. A expansão continuada do a sociedade produz mais riqueza com cada vez
da produção industrial envolve, pois, uma pilha- menos trabalho, como poderá ela fazer depender
gem acelerada dos recursos naturais. A necessida- o ganho de cada um da quantidade de trabalho
de de expansão ilimitada do capital o conduz a que ele produz? Esta questão tornou-se mais lan-
procurar abolir a natureza e os recursos naturais, cinante após a passagem ao pós-fordismo. A “re-
para substituí-los por produtos fabricados, vendi- volução informacional”, que, de início, se cha-
dos com lucro. As sementes geneticamente modi- mou de “revolução microeletrônica”, permitiu gi-
ficadas que empresas gigantes estão a fim de im- gantescas economias de tempo de trabalho na
por ao mundo inteiro, oferecem um exemplo elo- produção material, na gestão, nas comunicações,
qüente a esse respeito. Elas visam a abolir tanto a no comércio atacadista, no conjunto das ativida-
reprodução natural de certas espécies vegetais des de escritório. Num primeiro tempo (de 1975 a
como essas próprias espécies, a agricultura e as 1985), as esquerdas sindical e política tentaram
culturas alimentícias, em suma, a possibilidade, impor políticas de redistribuição do trabalho e dos
para as pessoas produzirem elas mesmas os seus rendimentos segundo a divisa “Trabalhar menos
alimentos. O “trabalho mercantilizado”, isto é, os para trabalharem todos, e viver melhor”. Elas fra-
trabalhadores e suas organizações não são co-res- cassaram e é preciso compreender o motivo.
ponsáveis por esta pilhagem e esta destruição, a Com a informatização e a automação, o trabalho
não ser na medida em que eles defendem o em- deixou de ser a principal força produtiva, e os sa-
prego a qualquer preço no contexto existente e lários deixaram de ser o principal custo de produ-
combatem, com este fim, tudo o que diminui de ção. A composição orgânica do capital (isto é, a
imediato o crescimento econômico e a rentabili- relação entre capital fixo e capital de giro) aumen-
dade financeira dos investimentos. tou rapidamente. O capital se tornou o fator de
O que Marx escrevia, há 140 anos, no primeiro li- produção preponderante. A remuneração, a re-
vro de O Capital, é de uma espantosa atualidade: produção, a inovação técnica contínua do capital
Na agricultura moderna, bem como na indústria das ci- fixo material requerem meios financeiros muito
dades, o crescimento da produtividade e o rendimento
superiores ao custo do trabalho. Este último é,
superior do trabalho são comprados ao preço da des-
truição e do estancamento da força de trabalho. Além com freqüência, inferior, atualmente, a 15% do

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custo total. A divisão entre capital e trabalho do de que se desintegra com a precarização e a “flexi-
“valor” produzido pelas empresas pende mais e bilização” do emprego, com o desmantelamento
mais fortemente em favor do primeiro. Este está do Estado previdenciário, sem que nenhuma outra
cada vez menos inclinado a ceder às exigências sociedade, nem nenhuma outra perspectiva to-
das organizações obreiras ou a negociar compro- mem ainda o lugar da ordem que desmorona.
missos com elas. Seu primeiro cuidado é que sua Ao contrário, os representantes do capital conti-
preponderância no seio do processo de produção nuam, com uma cruel hipocrisia, a elogiar as virtu-
lhe permite impor sua lei. Ele procura, numa pala- des desse mesmo emprego que eles abolem maci-
vra, o meio de se livrar das legislações sociais e çamente, acusando os trabalhadores de custar de-
das convenções coletivas, consideradas como co- masiado caro e os desempregados de serem pre-
leiras insuportáveis no contexto em que a “com- guiçosos e incapazes, responsáveis eles mesmos
petitividade” nos mercados mundiais é o primeiro por seu desemprego. O patronato exige o aumen-
imperativo. A mundialização neoliberal exige que to da duração semanal e anual do trabalho, pre-
as leis sociais sejam abolidas pelas leis do merca- tendendo que “para vencer o desemprego é preci-
do, pelas quais ninguém pode ser tido como res- so trabalhar mais”, ganhar menos e retardar a ida-
ponsável. Tal era, aliás, o fim tácito para o qual a de de aposentadoria. Mas, ao mesmo tempo,
mundialização tinha sido promovida. Ela devia grandes empresas licenciam os assalariados com
permitir ao capital descartar o peso julgado excessi- 50 anos de idade ou mais, a fim de “rejuvenescer
vo que tinham adquirido as organizações operárias seu pessoal”.
durante o período fordista. Os assalariados deviam O elogio das virtudes e da ética do trabalho num
ser constrangidos a escolher entre a deterioração contexto de desemprego crescente e de precariza-
de suas condições de trabalho e o desemprego. ção do emprego inscreve-se numa estratégia de
Na realidade, a mundialização gerou o desempre- dominação: é preciso incitar os trabalhadores a
go e a deterioração das condições de trabalho si- disputarem os empregos muito raros, a aceitá-los
multaneamente. O emprego estável, de tempo e não importa sob quais condições, a considerá-los
salário integral, tornou-se um privilégio, reserva- como intrinsecamente desejáveis, e impedir que
do, nas 100 maiores empresas norte-americanas, trabalhadores e desempregados se unam para exi-
a 10% do pessoal. O trabalho precário, descontí- gir uma outra partilha do trabalho e da riqueza so-
nuo, em tempo parcial e em horários “flexíveis,” cialmente produzida. Em toda a parte, se invocam
tende a tornar-se a regra. as virtudes do neoliberalismo norte-americano
A “sociedade salarial” entrou, assim, em crise. O que, ampliando a duração do trabalho, diminuin-
emprego tinha aí funções múltiplas. Ele era o prin- do os salários, reduzindo os impostos dos ricos e
cipal meio de repartição da riqueza socialmente das empresas, privatizando os serviços públicos e
produzida; ele dava acesso à cidadania social, ou amputando drasticamente as indenizações dos
seja, às diversas prestações do Estado previdenciá- desempregados, obteve um crescimento econô-
rio, prestações financeiras para a redistribuição mico mais forte do que a maioria das outras na-
parcial das remunerações do trabalho e do capital; ções do Norte e conseguiu criar um maior número
ele assegurava um certo tipo de integração e de de empregos. Não era essa a prova de que a con-
pertença a uma sociedade fundada sobre o traba- tração do volume dos salários distribuídos, o em-
lho e a mercadoria; ele devia, por princípio, ser pobrecimento da grande massa dos cidadãos, o
acessível a todos. O “direito ao trabalho” devia ser enriquecimento espetacular dos mais ricos5 não
inscrito na maioria das constituições como um direi- eram obstáculos ao crescimento da economia,
to político e de cidadania. É, então, toda a socieda- mas o contrário?

5 No período de 1979 a 1994, 80% dos assalariados sofreram, nos Estados Unidos, diminuições de sua remuneração, enquanto
70% do acréscimo de riqueza produzida, graças ao crescimento durante este mesmo período, foram monopolizados por 5%
dos americanos mais ricos.

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Não. O segredo do crescimento que conheceu a cer, o caráter fictício dos créditos em dólares se
economia dos Estados Unidos no decurso dos tornará manifesto, e o sistema bancário mundial
anos de 1990, marcados por uma quase-estagna- ameaçará desmoronar como um castelo de cartas.
ção da economia européia, reside numa política O capitalismo “caminha na beira do precipício”6
que nenhum outro país pode permitir-se e que, Produzir e produzir mais não é, pois, um proble-
cedo ou tarde, terá conseqüências duvidosas. ma. O problema é vender o que é produzido a
Como a dos outros países do Norte, a economia compradores capazes de pagá-lo. O problema é a
US sofre de insuficiência da demanda solvível. distribuição de uma produção realizada com me-
Mas ela é a única capaz de atenuar esta insuficiên- nos trabalho e que distribui menos meios de paga-
cia, deixando acumularem-se as dívidas, isto é, mento, de maneira irregular e não igualitária. O
praticamente, criando moeda. Para impedir que a problema é o fosso que não cessa de se cavar entre
demanda solvível não diminua e que a economia a capacidade de produzir e a capacidade de vender
não entre em recessão, o Banco Central encoraja com lucro, entre a “riqueza” produtível e a forma
as famílias a se endividarem junto a seu banco e a mercantil, a forma “valor” que a riqueza deve obri-
consumirem o que eles esperam ganhar no futuro. gatoriamente revestir para poder ser produzida no
É o endividamento crescente das famílias de “clas- quadro do sistema econômico em vigor.
se média” que tem sido e que permanece sendo o A solução do problema não pode ser encontrada
principal motor do crescimento. No final dos anos nem na simples criação de meios de pagamento
1990, cada família devia em média tanto dinheiro suplementares, nem na criação de uma quantida-
quanto ela esperava ganhar nos 15 meses vindou- de suficiente de empregos para ocupar e remune-
ros. As famílias despendiam, em 1999, 350 bi- rar toda a população desejosa de “trabalhar”, ou
lhões de dólares a mais do que ganhavam, e este seja, em escala mundial, perto de um terço da po-
consumo, que não era ligado a nenhum trabalho pulação potencialmente ativa do Planeta.
produtivo, se refletia num déficit de 400 e depois Eu mostrarei agora que a solução que consiste em
de 500 bilhões de dólares por ano da balança con- aumentar o poder de compra da população, cri-
tábil. Tudo se passava como se os Estados Unidos ando meios de pagamentos suplementares, repar-
tomassem emprestado no exterior o que eles em- tidos por todos, não é aplicável no quadro do sis-
prestavam no interior: eles financiavam uma dívi- tema existente. Mas, previamente, é preciso mos-
da por outras dívidas. trar que a criação de empregos suplementares em
Comprando no exterior por quinhentos bilhões a quantidade quase ilimitada, tal como ela é pratica-
mais do que eles vendem, os Estados Unidos irri- da nos Estados Unidos, em particular, não cria
gam o mundo de liquidez. Praticamente todos os praticamente riqueza suplementar na escala de
países querem vender aos americanos mais do uma sociedade, embora ela procure um retorno,
que deles compram pelo “privilégio” de trabalhar geralmente frágil e irregular, de um grande núme-
para os consumidores americanos. Longe de so- ro de ativos.
nharem em reclamar aos Estados Unidos a apura- Todo emprego, com efeito, não é “produtivo” no
ção de suas dívidas, os credores dos Estados Uni- sentido de que, numa economia capitalista, só é
dos fazem o contrário: eles devolvem aos Estados “produtivo” um trabalho que valoriza (isto é, au-
Unidos os dólares que estes perdem, comprando menta) um capital, porque este que o fornece só
bônus do Tesouro US e ações em Wall Street. consome a totalidade do valor que ele produz.
Este espantoso estado de coisas só pode, todavia, Ora, as famosas “jazidas de empregos”, graças às
durar o tempo em que a Bolsa de Wall Street con- quais os governos esperam poder suprimir o de-
tinue a subir e que o dólar não baixe em relação às semprego, são, na maioria, empregos improduti-
outras grandes moedas. Quando Wall Street se vos, no sentido que eu acabo de mencionar. É o
puser a baixar continuamente, e o dólar enfraque- caso, em particular, dos serviços a terceiros que

6 Cf. BRENNER, Robert. New Boom or New Bubble? In: New Left Review, n. 25, jan.-fev. 2004.

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ocupam 55% da população ativa dos Estados Não há praticamente limite à extensão desse gê-
Unidos. Segundo Edward Luttwak7, “esses 55% nero de trocas mercantis. Em World Philosop-
da população ativa trabalham como vendedo- hie (Paris, 2000), Pierre Lévy visa a transformar
res/vendedoras, servidores/servidoras, mulheres e em business todas as trocas sociais e todas as rela-
homens do lar, empregados/empregadas domés- ções interpessoais: “sexualidade, casamento, pro-
ticos, jardineiros, baby sitters e vigias de imóve- criação, saúde, beleza, identidade, conhecimen-
is, e a metade dentre eles ocupam empregos pre- tos, relações, idéias..., nós estaremos constante-
cários de baixo salário, mais de um quarto são mente ocupados em fazer toda espécie de negócios...
working poor [pobres trabalhadores], cuja re- A pessoa torna-se uma empresa. Não há mais fa-
muneração é inferior ao nível de pobreza, mesmo mília nem nação que se mantenha.” As pessoas
quando eles ocupam dois ou três empregos”. passam, então, seu tempo a se venderem umas às
Tudo se passa como se os 20% mais ricos tives- outras. Elas são todas não apenas mercadores,
sem cada um três pobres trabalhadores a seu mas mercadorias em busca de compradores.
serviço. É preciso ressituar a reivindicação de um retorno
Estes empregos de serviços não fazem aumentar a de existência nesse contexto. Sua finalidade não é
quantidade de meios de pagamento em circula- a de perpetuar a sociedade do dinheiro e da mer-
ção: eles não criam valor, eles consomem o valor cadoria, nem de perpetuar o modelo de consumo
criado de outra forma. Sua remuneração provém dominante nos países ditos desenvolvidos. Sua fi-
da remuneração que seus clientes obtiveram pelo nalidade é, ao contrário, subtrair os desemprega-
trabalho produtivo, sendo um “ganho secundá- dos e precários à obrigação de se venderem; de
rio”, uma redistribuição secundária de uma parte “liberar a atividade da ditadura do emprego” (to
das remunerações primárias. Este caráter não cria- liberate work form the tyranny of the job), segun-
dor de valor dos serviços a terceiros – eu só falo de do a fórmula de Frithjof Bergmann. Como o diz
seu valor em sentido econômico, não de seu valor um texto de uma das associações de desemprega-
de uso ou de satisfação – foi perfeitamente resu- dos mais influentes na França, o retorno de exis-
mido por um grande patrão americano. Discutin- tência deve “dar-nos os meios de desenvolver ati-
do a tese de certos neoliberais, que pretendiam vidades infinitamente mais enriquecedoras do
que se iria manter o crescimento, obrigando os de- que aquelas às quais se quer constranger-nos”,
sempregados a ganhar sua vida vendendo flores atividades que, expansivas para os indivíduos,
nas esquinas das ruas, engraxando sapatos dos criem também riquezas intrínsecas que uma em-
transeuntes ou vendendo hambúrgueres, ele con- presa não pode fabricar, que nenhum salário
cluiu: “Vocês não podem fazer girar uma econo- pode comprar, de que nenhuma moeda pode
mia, vendendo hambúrgueres uns aos outros”. mensurar o valor.
Com mais freqüência, os empregos de serviço Essas riquezas intrínsecas são, por exemplo, a
transformam somente em prestações remunera- qualidade do meio de vida, a qualidade da educa-
das serviços que as pessoas poderiam trocar sem ção, os laços de solidariedade, as redes de ajuda e
serem pagas, ou atividades que elas próprias po- de assistência mútua, a extensão dos saberes co-
deriam assumir. A transformação em empregos de muns e dos conhecimentos práticos, a cultura que
tais atividades, com efeito, não economiza tempo se reflete e se desenvolve nas interações da vida
de trabalho, não faz ganhar tempo em escala social: cotidiana – tudo coisas que não podem tomar a
ela apenas redistribui o tempo. Uns compram forma de mercadoria, que não são cambiáveis
tempo que outros aceitam vender a baixo preço, contra nenhum outro bem, que não têm preço,
mas não há, no conjunto, economia de tempo. O mas cada uma tem um valor intrínseco. É delas
caráter improdutivo dos serviços comprados e que depende a qualidade e o sentido da vida, a
vendidos se reflete neste plano. qualidade de uma sociedade e de uma civilização.

7 Turbo Capitalism. New York, 1999.

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Elas não podem ser produzidas sob comando. tivas, ou imaginativas, com atividades que “não
Elas não podem ser produzidas senão pelo movi- servem para nada”, que são a expansão humana
mento mesmo da vida e das relações cotidianas. e que só o produzem plenamente na condição de
Sua produção exige tempo não mensurado. não ser submetido a imperativos estranhos.
O retorno social incondicional é reivindicado para Tal é a condição que atravessa hoje um capitalis-
tornar acessíveis a todos essas atividades livres mo que reconhece no “conhecimento”, no desen-
não prescritas, das quais depende a expansão das volvimento das capacidades humanas, a força
faculdades e das relações humanas. A educação, produtiva decisiva e que não pode dispor desta
a cultura, a prática das artes, dos esportes, dos jo- força a não ser na condição de não servi-la. O di-
gos, das relações afetivas, não devem “servir a reito dos homens de existir independentemente
qualquer coisa”. São atividades pelas quais as deste “trabalho” de que a economia tem cada vez
pessoas se tornam plenamente humanas e enca- menos precisão, é agora a condição de que de-
ram sua humanidade como o sentido e o fim ab- pende o desenvolvimento de uma economia do
soluto de sua existência. É somente “acima do conhecimento (knoledge economy) que se agarra
mercado” que elas também aumentam a produti- de fato aos fundamentos da economia capitalista.
vidade do trabalho: elas lhe permitem tornar-se A reivindicação de um retorno de existência des-
cada vez mais inteligente, inventivo, eficaz, mestre vinculado do tempo de trabalho e do próprio tra-
de sua organização coletiva e de suas conseqüên- balho não é, pois, uma utopia. Pelo contrário, ela
cias externas, e é assim que economiza tempo e se torna atual, porque o “trabalho”, tal como ele é
recursos. Ele terá este resultado na condição de entendido desde séculos, não é mais a força pro-
não ser submetido previamente a um encadea- dutiva principal e que a força produtiva principal,
mento de tarefas predeterminadas, de não ser o o saber vivo, não pode ser mensurado com os pa-
“meio” de atingir o aumento da produtividade. drões habituais da economia, nem remunerado
Pelo contrário, a atividade produtiva deve ser um segundo o número de horas durante as quais cada
dos “meios” da expansão humana, e não o inver- um o põe em obra.
so. É assim que ela será a maior economia de re- Dito isso, eu não penso que o retorno de existên-
cursos, de energia e de tempo. cia possa ser introduzido gradualmente e pacifica-
Esta concepção é evidentemente contrária à con- mente por uma reforma decidida “de cima”.
cepção dominante da racionalidade econômica. Como escrevia Antonella Corsani, “ele não deve,
Ela é vivamente combatida pelos representantes sobretudo, inscrever-se numa lógica redistributi-
do capital. Segundo eles, as pessoas são, antes de va, mas numa lógica subversiva de superação ra-
tudo, meios de produção e sua educação, sua for- dical da riqueza, fundada sobre o capital e o traba-
mação, sua cultura devem ser úteis à sua função lho”. A idéia por si só do retorno de existência
produtiva. O ensino e a cultura devem “servir a marca uma ruptura. Ela obriga a ver as coisas de
qualquer coisa”¸ fornecer à economia forças de outra maneira e, sobretudo, a ver a importância
trabalho adaptadas a tarefas predeterminadas. das riquezas que não podem tomar a forma de va-
Os dirigentes de grandes empresas sabem perfei- lor, ou seja, a forma do dinheiro e da mercadoria.
tamente que esta concepção instrumental da cul- O retorno de existência, quando ele for introduzi-
tura se tornou indefensável e eles o reconhecem, do, será uma moeda diferente da que nós utiliza-
por vezes, dizendo que o que conta entre as pes- mos hoje. Ela não terá as mesmas funções. Ela
soas de que eles necessitam é a criatividade, a não poderá servir a fins de dominação, de poder.
imaginação, a inteligência, a capacidade de de- Ela será criada “em baixo” e carregada por uma
senvolver continuamente seus conhecimentos. O onda da base, simultaneamente a redes de coope-
tempo passado no trabalho não mede mais sua rativas enormes de autoprodução (de high-tech
contribuição à produção. Este tempo é, muitas ve- self-providing, segundo a fórmula de Bergmann),
zes, menor que o tempo que eles passam fora de em resposta a uma conjunção de diferentes for-
seu trabalho, entretendo suas capacidades cogni- mas de crise que nós sentimos surgir: crise climáti-

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ca, crise ecológica, crise de energia, crise monetá- estilos, modas, ou seja, as dimensões imateriais
ria após o desmoronamento do sistema de crédi- que farão vender as mercadorias materiais a um
to. Nós todos somos argentinos em potencial. A preço elevado e não cessarão de inovar para tirar
saída depende amplamente dos grupos e dos mo- de moda o que existe e lançar novidades. Esta é
vimentos, dos quais as práticas esboçam as possi- também uma maneira de combater a abundância
bilidades de um outro mundo e o preparam. que faz baixar os preços e produzir a raridade – o
novo é sempre raro, no começo – que os fará au-
IHU On-Line – Se nós nos dirigimos para mentar. Mesmo os produtos de uso cotidiano e os
uma “economia de conhecimentos”, como alimentos são comercializados segundo este mé-
ocorre que certos bens materiais continuam todo, por exemplo, os produtos de laticínios ou os
a ter tanta importância, como é o caso, por de limpeza. O logotipo das diferentes empresas
exemplo, do petróleo? E o que se torna a destina-se a conferir aos seus produtos uma espe-
agricultura, mais particularmente no que cificidade que os torna incomparáveis, não cam-
toca aos subsídios? Em seu último livro O biáveis por outros. Assim como a importância de
imaterial, o senhor aborda o tema da econo- seu componente imaterial tornava o trabalho não
mia do imaterial. Em sua opinião, esta sig- mensurável, segundo um padrão universal, a im-
nifica a crise do capitalismo? Por quê? portância do componente imaterial das mercado-
André Gorz – As expressões “economia do co- rias os subtrai, temporariamente, pelo menos, à lei
nhecimento”, “sociedade do conhecimento” do mercado, dotando-as de qualidades simbólicas
(knowledge society) circulam, há 35 anos, na lite- que escapam à comparação e à medida.
ratura anglo-saxônica. Elas significam, de uma Se examinarmos as produções que mais se desen-
parte, como já o sublinhei, que o trabalho, pratica- volveram nos últimos vinte ou trinta anos, consta-
mente todo o trabalho em todos os tipos de pro- taremos a dominação das mercadorias imateriais:
dução, exige do trabalhador capacidades imagi- notadamente a música da imagem (fotografia, vi-
nativas, comunicacionais, cognitivas, etc., em deocâmara, televisores, magnetoscópios e depois
suma, a contribuição de um saber vivo que ele DVD) a comunicação (telefone móvel, Internet). O
deve extrair de si mesmo. O trabalho não é mais material é apenas o vetor do imaterial, ele só tem
mensurável apenas pelo tempo que nele se passa. valor de uso graças a este último. Foi principal-
A implicação pessoal que ele exige faz com que, mente o consumo imaterial que permitiu à econo-
praticamente, não haja mais um padrão de medi- mia capitalista continuar a funcionar e a crescer.
da universal para avaliá-lo. Seu componente ima- Nós temos, pois, uma situação em que as três ca-
terial se reveste de uma importância maior do que tegorias fundamentais da economia política: o tra-
o dispêndio de energia física. balho, o valor e o capital não são mais mensurá-
Vale o mesmo para o valor mercantil dos produ- veis segundo um padrão comum. Há uns trinta
tos. Sua substância material exige cada vez menos anos, o capitalismo quis superar a crise do regime
trabalho, seu custo é frágil e seu preço tende, pois, fordista, lançando-se numa economia do conheci-
a baixar. Para conter essa tendência à baixa, as mento, ou seja, capitalizando o conhecimento e o
empresas transformam os produtos materiais em saber vivo. Fazendo isso, ele criou para si proble-
vetores de conteúdos imateriais, simbólicos, afeti- mas novos que não têm solução no quadro do sis-
vos, estéticos. Não é mais sua utilidade prática tema, pois, transformar o saber vivo em “capital
que conta, mas a desejabilidade subjetiva que humano” não é um negócio fácil. As empresas são
deve dar-lhe a identidade, o prestígio, a personali- incapazes de produzir e de acumular “capital hu-
dade que eles conferem a seu proprietário ou a mano” e incapazes, também, de assegurar dura-
qualidade dos conhecimentos dos quais se julga douramente seu controle. A inteligência viva, tor-
serem o resultado. Temos, então, uma indústria nada força produtiva principal, ameaça sempre
muito importante, a do marketing e da publicida- escapar à sua empresa. Os conhecimentos forma-
de, que só produz símbolos, imagens, mensagens, lizados e formalizáveis, por outra parte, traduzíveis

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em logicismos, são reproduzíveis em quantidades reputado? O que vale mesmo a Microsoft? A res-
ilimitadas por um custo negligenciável. São, pois, posta depende essencialmente da estimativa da
bens potencialmente abundantes, e esta abun- Bolsa sobre as rendas de monopólio que essas
dância fará tender o valor de troca para zero. empresas esperam obter. Diz-se que o desmoro-
Logo, uma verdadeira economia do conhecimen- namento (a falência) do Nasdaq em 2001 empo-
to seria uma economia da gratuidade e da partilha breceu o mundo em 4000 bilhões de dólares. Mas
que trataria os conhecimentos como um bem co- ele teve apenas uma existência fictícia. Se o des-
mum da humanidade. Para capitalizar e valorizar moronamento dos “valores imateriais” demons-
os conhecimentos, a empresa capitalista deve pri- trou alguma coisa, é essencialmente a dificuldade
vatizá-los, tornar raros, por apropriação privada e intrínseca que há em querer fazer funcionar o ca-
patenteação, o que é potencialmente abundante e pital imaterial como um capital e a economia do
gratuito. E esta privatização e esta rarefação têm conhecimento como o capitalismo.
um custo muito elevado, uma vez que é preciso A ausência de um padrão de medida comum
proteger o monopólio temporário que a empresa para o conhecimento, o trabalho imaterial e o ca-
adquire contra conhecimentos equivalentes e no- pital, a queda do valor dos produtos materiais e o
vos, contra as imitações ou reinvenções, aferro- aumento artificial do valor de troca do imaterial
lhando o mercado contra eventuais concorrentes desqualificam os instrumentos de medida macroe-
por campanhas de marketing e por inovações que conômicos. A criação de riqueza não se deixa
vencem os eventuais concorrentes pela rapidez. mais mensurar em termos monetários. Os funda-
Os conhecimentos não são mercadorias mentos da economia política desmoronam. É nes-
como as outras, e seu valor comercial, monetário, se sentido que a economia do conhecimento é a
é sempre artificial. Tratá-los como “capital imate- crise do capitalismo. Não é por acaso que se suce-
rial” e cotá-los na Bolsa, é assinalar um valor fictí- dem, há alguns anos, as obras filosóficas e econô-
cio ao que não tem valor mensurável. O que vale, micas que insistem na necessidade de redefinir a
por exemplo, o capital da Coca Cola, da Nike ou riqueza. Uma outra economia se esboça no cora-
da McDonald’s, de todas as empresas que não ção do capitalismo, que inverte a relação entre
possuem capital material, mas somente know produção de riquezas mercantis e produção de ri-
how, organização comercial e um nome de marca queza humana.

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“Eliminar o desemprego no capitalismo é uma ficção”

Entrevista com Ricardo Antunes

Ricardo Antunes é professor titular de Socio- ceiro mundo, onde se encontram dois terços da
logia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas população humana que trabalha. O meu livro
da Universidade de Campinas (Unicamp). Recen- posterior Os sentidos do trabalho também está
temente, foi Visiting Research Fellow na Universi- em sétima edição no Brasil e está sendo traduzido
dade de Sussex, Inglaterra. Fez Livre-Docência na para o espanhol e o italiano. Esta obra corresponde
Unicamp em Sociologia do Trabalho e Mestrado a um ano de pesquisa de pós-doutorado, feita por
em Ciência Política na mesma universidade. Dou- mim na Inglaterra, na Universidade de Sussex.
torou-se em Sociologia pela USP. Publicou diver-
sos livros, entre os quais destacamos: A Rebeldia IHU On-Line – Atualmente, o desemprego
do Trabalho. Campinas: Unicamp,1986); Adeus ao atinge, no Brasil, seus mais altos índices. O
Trabalho? São Paulo: Cortez, 1995); Os Senti- governo atual não está sabendo dar respos-
dos do Trabalho. Ensaio sobre a Afirmação tas nesse sentido?
e a Negação do Trabalho. 7. ed. São Paulo: Boi- Ricardo Antunes – Tratar de desemprego impli-
tempo, 2002. Atualmente, coordena a Coleção ca tratar duas dimensões: a primeira eu chamaria
Mundo do Trabalho na Boitempo Editorial e Tra- de um desemprego estrutural. A lógica do sistema
balho e Emancipação na Editora Expressão Popu- global do capital hoje, da transnacionalização da
lar. Colabora regularmente em revistas e jornais economia da chamada globalização ou mundiali-
nacionais e estrangeiros. O professor, escritor e zação da economia, as empresas na competitivi-
pesquisador conversou com IHU On-Line sobre dade estabelecida entre elas em âmbito mundial
o lugar do trabalho na sociedade contemporânea. Japão, EUA, Europa, América Latina, Ásia, etc.,
têm uma lógica: reduzir o trabalho vivo, ampliar o
IHU On-Line – A que o senhor atribui o su- trabalho morto, ou seja, o maquinário técni-
cesso do seu livro Adeus ao trabalho?, tra- co-científico, reestruturar a organização sociotéc-
duzido em várias línguas e em sua 9ª edição nica do trabalho, visando a aumentar a produtivi-
em português? dade das empresas para poder entrar na lei da sel-
Ricardo Antunes – O meu livro foi publicado va da competição. Essa lógica se intensificou com
em sete países, Brasil, Itália, Espanha, Argentina, a crise estrutural do capitalismo, a partir de 1973,
Venezuela Colômbia e México. Eu atribuo a sua normalmente chamada de forma superficial de
boa receptividade ao fato de que ele é uma res- crise do taylorismo e do fordismo e com o neolibe-
posta latino-americana para a crise que se passa ralismo, que é o ideário e a pragmática própria da
no mundo do trabalho, onde, em geral, as posi- fase da reestruturação produtiva. Combater o de-
ções dominantes eram do tipo eurocêntricas, de semprego e imaginar que se vai eliminar o desem-
autores como André Gorz, Habermas, Dominique prego no capitalismo é uma completa ficção hoje.
Méda ou o norte-americano Jeremy Rifkin, para O sistema global do capital oscila entre a necessi-
citar alguns exemplos. Acho que meu livro foi uma dade de ter o trabalho perene, mas, ao mesmo
resposta, mostrando que é impensável falar do fim tempo, ter no outro pêndulo, o trabalho supérfluo.
do trabalho sem olhar para o assim chamado ter- Uma parcela da classe trabalhadora é indispensá-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

vel e ambas as parcelas da classe trabalhadora tor- ele o que o povo quer ouvir. Para que o Brasil pu-
nam-se supérfluas. Esse é o movimento do capi- desse criar dez milhões de empregos, ele precisa-
tal. Em segundo lugar, é também um problema ria ter um profundo crescimento econômico com
mais conjuntural. Depois do Consenso de Was- outra política econômica. Crescimento econômi-
hington e da implantação das políticas neolibe- co não é sinônimo de emprego. A ditadura militar
rais, os governos são induzidos a implementarem cresceu muito e havia desemprego. O capitalismo
o mesmo receituário, sejam governos de direita ou pode crescer, empregando pouco. A discussão
de esquerda. Esse receituário é o que já sabemos: atual sobre salário mínimo é grotesca. Falamos de
privatização, financeirização da economia, desre- 260, 27 reais, o salário mais baixo da América La-
gulamentação do trabalho, flexibilização das leis tina. O Brasil, que já foi a oitava economia do
trabalhistas, incentivo do mundo privatizado e mundo, hoje está na 14ª, 15ª posição. Ter um sa-
desregulamentado. Conseqüentemente, já há um lário abaixo da maioria dos países da América La-
fator estrutural que empurra para o desemprego, e tina é grotesco. O governo Lula está com salários
a ele é acrescido um fator conjuntural que faz com baixos, com o grosso de nossa produção voltada
que o sistema financeiro internacional, os organis- para o pagamento dos juros e da dívida externa,
mos bilaterais ou multilaterais como o Fundo Mo- para os juros do sistema financeiro internacional,
netário Internacional (FMI), o Banco Mundial e imagina que vai alavancar a economia brasileira,
outros, e os governos nacionais dos países domi- criando fundos privados e pensão? Fundindo o
nantes da Europa e os EUA, etc. Se eles empurram sistema financeiro internacional e o sindicalismo
os governos do mundo para aplicarem políticas de negócios? É ficção. O resultado é uma tragédia.
neoliberais, acentua o desemprego. Essa é a tra-
gédia que embaralhou o governo Lula e da qual IHU On-Line – Olhando para os outros paí-
ele não tem mostrado nenhuma capacidade de ses da América Latina, como o senhor vê
sair. Prisioneiro desta impulsão estrutural do siste- que estão enfrentando a atual situação? É
ma capitalista que impele para o desemprego es- possível ainda no contexto global que al-
trutural, Lula pratica uma política econômica em gum estado-nação faça mudanças alternati-
sintonia adequada à pragmática neoliberal. O re- vas ao poder hegemônico do capital?
sultado é esse que vemos nos jornais desta semana: Ricardo Antunes – É possível sim, e necessário.
São Paulo passou de 20% dos níveis de desempre- Se isso não for feito vamos intensificar a barbárie
go. Só na cidade de São Paulo, são mais de 2 mi- Nós já vivemos a barbárie, com 20% de desem-
lhões de desempregados. Há bairros em São Paulo prego em várias capitais. Qual é a alternativa? Va-
com mais de 60% de desemprego. E isso não vai mos começar pela Venezuela. Quando Chávez
diminuir, é uma ilusão dizer que o País vai crescer, ganhou a eleição, estava tudo preparado para pri-
porque a política é totalmente vulnerável à pressão vatizar a Companhia de Petróleo Venezuelana
norte-americana. Este governo, continuando a po- (PDV), um esquema norte-americano, interesses
lítica econômica anterior de FHC, continuando a privados, os gestores da PDV corrompidos pela
política anterior de Collor, todos eles seguindo uma privatização, todos de acordo. O presidente Chá-
política neoliberal, se mostra incapaz de, minima- vez travou esse processo. Sofreu uma brutal opo-
mente, tentar um projeto alternativo, embora tenha sição e conseguiu reverter o quadro. Está com difi-
sido o discurso do PT durante 24 anos. Foi só Lula culdade, mas está buscando uma política de efeti-
ganhar o poder para desdizer tudo o que disse no va participação popular. O governo Kirchner, na
passado. Argentina, também é interessante. Foi eleito com
baixa votação, tendo menos votos que Carlos Me-
IHU On-Line – A promessa eleitoral de criar nem no primeiro turno. Não houve segundo turno
10 milhões de empregos é também uma fic- porque Menem renunciou. Um governo que assu-
ção irrealizável dentro do capitalismo? miu com um apoio popular muito fraco, mesmo
Ricardo Antunes – Era uma manipulação de assim, chamou o FMI e disse: “Não dá mais para
propaganda eleitoral. Duda Mendonça falou para

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

fazer o que vocês estão querendo”. A Argentina nhuma dúvida que, em 2006, o PT terá uma der-
era um país com razoável nível de seguridade so- rota fragorosa. É triste, mas é esse o quadro.
cial. Era um país com um padrão de vida bastante
razoável para os padrões de vida latino-america- IHU On-Line – Nesse contexto, para onde
nos, e isso foi desmontado pela barbárie da dita- caminha o trabalho?
dura militar e depois pelos governos Alfonsín e Ricardo Antunes – Estamos no século XXI. A pri-
pelo arquicorrupto governo Menem. Kirchner su- meira pergunta é: Que sociedade nós queremos?
biu e disse: “Não dá mais. Primeiro vamos arru- Queremos uma sociedade submissa, voltada para
mar a casa e depois vemos o que vamos fazer”. a acumulação de lucros do sistema financeiro, in-
Imagine se o Lula tivesse feito isso com 53 milhões dependente da humanidade ou nós queremos
dos votos. Teria dito: “Não dá mais. Agora eu te- uma sociedade a serviço da humanidade? Essa é
nho 53 milhões de votos, uma população traba- a primeira questão. E isso torna profundamente
lhadora enorme. Tenho um nível de informaliza- atual o socialismo. Diferentemente do que ocor-
ção do trabalho que é quase de 60%, um nível de reu no século XX quando o socialismo foi derrota-
indigência e miséria que passa de 30 ou 40 mi- do, mas, com o Fórum Social Mundial de Porto
lhões, não posso mais segurar isso, vamos ter que Alegre e da Índia, com o Zapatismo, o MST, as gre-
mudar para valer a política econômica, queira ou ves que ocorrem em certas partes do mundo, o
não o FMI”. Era só articular com a Argentina, Ve- movimento social na Bolívia, meses atrás, todos
nezuela, Cuba, Índia, China, Rússia. O Lula, ao esses movimentos mostram que o descontenta-
mesmo tempo, que quer conversar com Chávez, mento é enorme, e isso coloca uma questão cen-
Kirchner e Fidel, é o paladino do neoliberalismo. tral: o trabalho que estrutura o capital, desestrutu-
Quer se mostrar ao FMI como mais confiável que ra a humanidade: precarização, globalização, de-
FHC, mais realista que o rei, quer ser uma espécie semprego, sub-remuneração, exploração do tra-
de nome de consenso. É uma piada, porque nes- balho, etc. Em contrapartida, o trabalho que es-
te campo ou estamos de um lado, ou de outro. trutura a humanidade, desestrutura o capital. O
Tanto na política interna como na externa é um desafio do século XXI é resgatar o sentido do tra-
governo amedrontado e servil, em processo de balho para que reconquiste o sentido de dignida-
erosão, o que é muito triste e preocupante, por- de humana e estruture a humanidade. Para isso,
que os que votamos no Lula imaginamos algu- nós temos que desestruturar o sistema de merca-
mas mudanças. O que mudou foi dentro do neoli- do, de capital. Os apologistas da ordem vão dizer
beralism, e para pior. que isso é utópico, ou que não é novo. Nós res-
pondemos que isso é o novo, o velho é reciclar o
IHU On-Line – O governo argumentou em neoliberalismo e achar, como Fukuyama, que ele
diversas oportunidades que não queria virar é inevitável. Entramos no século XXI com os EUA,
uma outra Argentina... impondo para o mundo uma política agressiva,
Ricardo Antunes – É. Não queria que o Brasil destrutiva e terrorista. Vamos aceitá-la? É inevitá-
virasse uma Argentina, só que agora, a Argentina vel? É a mesma lógica que destrói a natureza e o
está conseguindo, devagarzinho, resgatar um mí- ambiente. Nunca nós vivemos no mundo com
nimo de dignidade, e o Brasil está virando o que a tanta destruição ambiental. Poluição da água, do
Argentina era dois ou três anos atrás. Estamos ar, é uma destrutividade em escala mundial. A ló-
chegando lá depois de um ano e quatro meses de gica dos manuais empresariais diz que, para que
política de governo, fazendo o que o FMI manda. uma empresa seja racional, precisa enxugar a for-
O Lula tinha um capital social e político de 53 mi- ça de trabalho, flexibilizá-la, precarizá-la e desem-
lhões de votos para dizer não ao FMI, hoje sua ero- pregar; quanto menos trabalhadores ela tiver e
são é avassaladora. O PT se confunde com o mais produtiva ela for, melhor é. Se cada empre-
PSDB e o PFL na política econômica, nos acordos sa, no plano micro, expulsa força de trabalho e
e conchavos e até na corrupção. Eu não tenho ne- avança na racionalização de trabalho, se todas fi-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

zerem assim, a racionalidade tem como resultado aqueles autores que fazem um requiem do traba-
uma brutal irracionalidade global. Vamos aceitar lho sem fazer um requiem do capital. Eu acho mui-
isso como inevitável? to fácil dizer que se quer o fim do trabalho, e não
dizer que se quer o fim do capital. Fica a idéia de
IHU On-Line – Portanto, o senhor vê senti- que podemos ter uma sociedade capitalista sem
dos bem contraditórios no trabalho? trabalhadores, o que é pura ficção. O que acho
Ricardo Antunes – O trabalho no capitalismo é fundamental hoje é dizer que se quer o fim da so-
servidão, é estranhamento, é alienação, é perda ciedade destrutiva do capital e o fim do trabalho
de sentido, é necessidade exteriormente imposta, alienado, do trabalho abstrato, assalariado, e isso
é trabalho compulsório e forçado. Mas, quando se é condição para resgatar uma sociedade para
olha a história da humanidade, o trabalho tam- além do capital e para além do mercado. Uma so-
bém é criação, humanização, autoconstituição do ciedade onde o trabalho seja dotado de sentido
gênero humano, o trabalho também é um mo- humano, criativo e societal. Eu tenho também
mento de emancipação. Há uma dialética do tra- uma grande admiração por Robert Kurz, porque
balho: ele emancipa, mas também cria servidão; é faz uma critica decisiva ao caráter destrutivo do
autônomo, mas freqüentemente é heterônomo. capitalismo. Mas, tenho uma diferença grande
Tem o sentido de emancipação, mas, com fre- com Kurz: ele acha que o trabalho é sempre alie-
qüência, é alienação. No século XXI, temos que nado e que, portanto, deve ser eliminado. Eu, na
pensar seu sentido fundamental: resgatar um tra- herança do pensamento de Marx e de Lukács,
balho dotado de sentido, para que nossa vida fora penso que o trabalho no capitalismo é alienado. O
do trabalho também seja dotada de sentido. É trabalho, na sociedade feudal é servil, o trabalho
pura ficção imaginar que o trabalho possa ser des- na sociedade greco-romana é escravocrata, mas o
provido de sentido dentro do trabalho e que nossa trabalho também é um momento fundante da ati-
vida possa ser provida de sentido fora do trabalho. vidade humana que permitiu, inclusive, que o ho-
Esse é o núcleo do meu pensamento. mem se humanizasse e se diferenciasse dos ani-
mais. Nesse sentido, o trabalho pode ser criação,
IHU On-Line – Quais são os grandes pensa- autonomia e ponto de partida para a emancipa-
dores do trabalho no momento atual? ção, mas, para isso, é preciso destruir os pilares da
Ricardo Antunes – Eu faço parte de uma linha- sociedade do capital.
gem de autores que resgata esse sentido duplo,
vivo e contraditório do trabalho. Então, por exem- IHU On-Line – Qual é sua mensagem para o
plo, eu simpatizo com a obra do francês Alain dia Mundial do Trabalho e como a universi-
Bihr8, tenho confluência também com István Més- dade entra na hora de pensar o mundo do
záros, que escreveu o livro Para além do Capi- trabalho?
tal9, obra monumental. Acho também importante Ricardo Antunes – O primeiro de maio simboli-
o trabalho que o Robert Castel faz na França, es- za um dia histórico. Um dia em que as forças so-
pecialmente ao mostrar os laços de sociabilidade ciais do trabalho disseram para o capital: “Este
que nascem na esfera do trabalho10. Eu recuso mundo não nos interessa”. O nosso desafio hoje é

8 Alain Bihr, doutor em Sociologia, trabalha na Université de Haute Alsace, Mulhouse, e é autor de, entre outros livros, Da
Grande Noite à alternativa. O movimento operário europeu em crise. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 1999. Hoje
pesquisa mais detalhadamente o avanço do movimento integrista na Europa. (Nota da IHU On-Line).
9 Campinas: Boitempo; Ed. Unicamp, 2002.

10 Robert Castel é autor do notório livro As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário, Petrópolis: Vozes,

1998. O último livro de R. Castel é L’insécurité sociale. Qu’est-ce qu’être protégé? (A insegurança social. O que é ser
protegido?) Paris: Seuil, 2003. A revista Alternatives Économiques, n. 61, 3º trimestre de 2004, publica uma longa
entrevista com o autor sob o título Pour un nouvel Etat social (Por um novo Estado social). (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pensar nesta nova polissemia que marca o mundo se tentou e, em alguns casos, se conseguiu, destruir
do trabalho. Como é possível resgatar o sentido de a universidade pública, porque ela pensa a huma-
pertencimento de classe e reconstruir e redesenhar nidade e o sistema de mercado como a expressão
um projeto de sociedade de modo muito amplo viva da desumanidade. Mercado não rima com hu-
com o que eu chamo de “classe-que-vive-do-traba- manidade, capital não rima com humanidade; uni-
lho”? A universidade é fundamental nisso tudo, versidade rima com humanidade, por isso ela tem
porque, tanto no Brasil quanto na América Latina, um papel importante.

38
A globalização deve se adaptar às necessidades
das pessoas, e não o contrário

Entrevista com Robert Kurz

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão. Robert Kurz – É uma contradição fundamental
Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. Atu- na forma de produção capitalista moderna, que,
almente, vive em Nurenberg como publicista au- por um lado, se baseia na permanente transfor-
tônomo, autor e jornalista. Foi co-fundador e re- mação da energia humana em capital e, por ou-
dator da revista teórica Krisis – Beiträge zur Kritik tro, obriga a concorrência para o desenvolvimen-
der Warengesellschaft (Krisis – Contribuições para to das forças de produção, na qual a mão-de-obra
a Crítica da Sociedade da Mercadoria). A área dos é transformada em objeto supérfluo. No passado,
seus trabalhos abrange a teoria da crise e da mo- esta contradição sempre pôde ser compensada
dernização, a análise crítica do sistema mundial com a expansão dos mercados. Contudo, na ter-
capitalista, a crítica do iluminismo e a relação entre ceira revolução industral da microeletrônica, o
cultura e economia. Publica regularmente ensaios efeito de racionalização é durável e maior do que
em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça o efeito da expansão. Até hoje, todos os modelos
e Brasil. O seu livro O Colapso da Moderniza- para se vencer esta crise global não obtiveram re-
ção. São Paulo: Paz e Terra, 1991, também edita- sultado, porque eles não levam em consideração
do no Brasil, tal como O Retorno de Potemkin. a obsoleta lógica de transformação de trabalho
São Paulo: Paz e Terra, 1994 e Os Últimos em capital e somente se ocupam da admnistração
Combates. Petrópolis: Vozes, 1998, provocou da pobreza. Se nos tornarmos improdutivos e
grande discussão, e não apenas na Alemanha. cada vez mais recursos ficarem improdutivos, de-
Mais recentemente publicou Schwarzbuch Ka- veremos, em princípio, questionar categorica-
pitalismus (O Livro Negro do Capitalismo) em mente os atuais hábitos e formas de produção.
1999, Weltordnungskrieg (A Guerra de Orde- Assim sendo, a discussão recua e se torna, de cer-
namento Mundial) e Die Antideutsche Ideolo- ta forma, maçante.
gie (A Ideologia Antialemã) em 2003, não edita-
dos em português. Robert Kurz disponibilizou a IHU On-Line – Como o senhor vê a relação
entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, em entre Estado, mercado e terceiro setor? E o
alemão, no sítio www.exit-online.org. A tradu- futuro dos partidos políticos e sindicatos?
ção da entrevista é da CP Traduções. Robert Kurz – A política como tal se torna um
modelo em extinção. Essencialmente, o Estado e
IHU On-Line – No Brasil, está crescendo o a política respondem unicamente às conseqüên-
desemprego em um governo de esquerda do cias de processos cegos de mercado e concorrên-
qual se esperava uma solução para esse cia. Se essas conseqüências não forem mais con-
problema. Por que o desemprego parece troláveis, a competência da política desaparece.
uma questão sem resolução? Há algum ou- Só podemos ser sujeitos da política, se formos
tro modelo alternativo ao binômio emprego também sujeitos do trabalho e do capital. Quanto
– desemprego para nossas sociedades? mais as pessoas se desligarem da lógica traba-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lho/capital, menos insensatas se tornam as espe- qual pertence ao discurso da sociedade intelectual
ranças no Estado. Por este motivo, muitos já não ou à sociedade da informação. Em primeiro lugar,
acreditam mais nos partidos políticos. O fazer polí- uma grande parte das assim denominadas atua-
tico se tornou hoje, de certa forma, uma rotação ções/atividades imateriais nos campos da medici-
desengrenada11. As organizações não-governa- na, da cultura, da educação, das assessorias, etc.
mentais não se constituem alternativa, uma vez são pouco caracterizáveis como capitalistas. Não
que se entendem por meras empresas não-críticas se trata, assim, de amplos campos de aproveita-
de reparação das sociedades totalitárias de merca- mento do capital, ou seja, transformação do tra-
do. Elas deveriam empenhar-se abertamente em balho em capital, como no passado, na indústria
opor-se à ordem dos fatos e pensar em um mundo automobilística. Ao contrário, estes campos apa-
além do mercado e do Estado, não como organi- recem segundo a lógica capitalista como custos
zações subalternas de ajuda paralela ou até mes- (sociais ou empresariais). Em segundo lugar, ten-
mo inerentes à administração capitalista da crise, ta-se, de igual maneira, no contexto capitalista, re-
mas sim em contraposição a isso. Os sindicatos duzir e adaptar as potências dos campos imateriais
também ficaram sem ação, porque eles só foram pela racionalização e privatização. Mediante o
concebidos para a expansão histórica do trabalho processo cego de desenvolvimento capitalista,
assalariado. Na atual crise global, esta área se tor- possibilidades civilizatórias surgiram, as quais ul-
nou vacilante. Poderia haver, então, espaço para trapassaram o sistema moderno de produção,
a demanda sindical para o Estado e as empresas. porque não podem mais ser banidas da lógica tra-
Mas em vista das atuais exigências, os sindicatos balho, valor, produto e capital. O conceito do tra-
estão paralisados, enquanto se mantiverem pre- balho imaterial torna-se, desse modo, uma con-
sos à lógica do trabalho assalariado e enquanto tradição em si, porque as atividades e possibilida-
assumirem a responsabilidade do sistema vigente. des imateriais se opõem especificamente à abstra-
ção capitalista trabalho. Não há sentido em so-
IHU On-Line – Quais são suas divergências mente se modificar o conceito moderno de traba-
com a idéia de flexibilização do trabalho de lho, ele deve ser categoricamente negado.
Ulrich Beck e as idéias de trabalho imaterial
de André Gorz? Como o senhor vê a reflexão IHU On-Line – Qual é o papel da universida-
de Paolo Virno e Maurizio Lazzarato? de numa sociedade com grandes massas de
Robert Kurz – Desde alguns anos, novos concei- desempregados?
tos estão sendo trazidos a debate, os quais, toda- Robert Kurz – As universidades são as instituições
via, não contribuem muito para uma análise críti- clássicas para a educação. Como todas as institui-
ca, porque provêm do discurso do gerenciamen- ções civis, elas se baseiam na economia da socie-
to. A flexibilização, que foi elogiada como método dade de trabalho de massa, ou seja, no aprovei-
da auto-realização, é, na realidade, um método de tamento do capital. Como campos secundários,
auto-adestramento às exigências alheias do siste- nos quais a lógica do aproveitamento não foi dire-
ma em crise. As pessoas devem analisar-se como tamente eficiente, as universidades foram conside-
seu próprio capital humano, cada eu deve ser radas como um certo luxo intelectual de pesquisa,
uma pequena empresa, cada indivíduo deve ser formação e reflexão crítica na história da expansão
um meio único da autovalorização. Ser flexível capitalista. No auge da expansão, na era da indús-
parece não significar mais do que degradar-se em tria fordista (indústria automobilística), pareceu por
um autômato, o qual mecanicamente reage aos um tempo que até os filhos da classe trabalhadora
comandos e sinalizações do mercado. É a forma em grande escala, teriam acesso às universidades,
mais sutil de desumanização. No mesmo âmbito, como se fosse possível substituir os trabalhadores
encontra-se o conceito do trabalho imaterial, o de massa por intelectuais de massa. Mas isso foi

11 No original em alemão: Der ganze politische Betrieb ist nur noch ein Leerlauf. (Nota da IHU On-Line )

40
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

uma ilusão, porque, afinal de contas, a educação IHU On-Line – Quais são os principais desa-
capitalista somente pode existir como ponto elitista fios da globalização?
na base do trabalho de massa. Desde que a expan- Robert Kurz – Constantemente nos é pregado
são histórica se transformou em contração históri- que devemos nos adaptar à globalização. Se a
ca, também as universidades sentiram a crise glo- globalização for realmente irreversível, não have-
bal da terceira revolução industrial. Uma sociedade rá volta para a reprodução nacional da sociedade.
de massa de desempregados é uma sociedade da Mas a tarefa consiste em que a globalização se
necessidade financeira. Para os campos secundá- adapate às necessidades das pessoas, e não o
rios, entre elas a educação, desaparece significati- contrário. A longo prazo, isso só será possível, se a
vamente a financiabilidade. Quanto mais os políti- sociedade mundial libertar-se do jogo do econo-
cos dificultarem a necessidade de investimentos na mismo real e organizar seus amplos recursos em
educação para a concorrência no mercado mun- uma nova forma, além do mercado e do Estado.
dial, mais dificuldades e restrições encontrarão as Para se alcançar este objetivo, os movimentos
escolas e universidades. Os administradores, funcio- contrários precisam estar à mesma altura do mo-
nários e ideologistas do sistema querem vencer esta nopólio de capital. Este é também o desafio decisi-
contradição, reduzindo a educação social e os con- vo dos sindicatos. Eles precisam se libertar de sua
teúdos. O conceito de elitização se imporá nova- forma de organização nacional. Enquanto a forma
mente, por meio da privatização, das mensalidades do partido político, em essência, permanecer liga-
caras e do fomento de menos universidades de da ao quadro estatal, e daí por si mesmo ser rea-
ponta, o que deverá produzir, em base menor, a cionária, a luta social, em princípio, se tornará, de
qualificação para o mercado mundial, à medida igual maneira, monopólio como a economia em-
que os supérfluos da educação serão cortados. O presarial capitalista. Mas até agora os novos movi-
capitalismo não pode substituir os trabalhadores de mentos sociais estão ainda orientados no sentido
massa por intelectuais de massa, e sim, pela barba- tradicional internacional do que realmente trans-
ridade analfabetizada de massa. Entretanto, o es- nacional. Isso se explica porque estes movimentos
treitamento social, vinga-se com o estreitamento ainda se orientam nas formas passadas de regula-
intelectual nos progrmas curriculares das universi- mento estatal (nostalgia keynesiana). Estas formas
dades. A ciência deve transformar-se diretamente de regulamento não podem, todavia, ser expandi-
em máquina de aproveitamento, a lógica econômi- das para o plano de monopólio de globalização,
ca empresarial devora a pesquisa livre, a reflexão porque não existe um estado mundial. Com isso,
crítica sucumbe como luxo dispensável. Uma cres- fica claro que atualmente a consciência oposicio-
cente massa de analfabetos desempregados depa- nal se prende às categorias obsoletas do sistema
ra-se com uma pseudo-elite de intelectuais idiotas moderno de produção de bens. Nação, trabalho e
funcionais, os quais se declaram incapazes de ge- produto precisam ser dominadas. Enquanto os
renciar o grau alcançado de socialização altamente movimentos contrários ainda se relacionarem po-
complexo e híbrido. As universidades só poderão sitivamente com estas categorias, eles permanece-
retirar-se desta tendência de decivilização, quando rão susceptíveis ao populismo nacionalista e às
se opuserem ao elitismo (Elite-Lobbysmus) e ao re- tendências racistas e anti-semitas. Um dos maio-
ducionismo econômico. Deverá haver um movi- res desafios da globalização é conferir a estas fal-
mento dos sábios desobedientes, os quais se envol- sas alternativas uma forte recusa.
vam com os novos movimentos sociais, sem levar
em consideração a antiga paralisada classe política IHU On-Line – Como caracterizaria a socie-
de esquerda. Se as chances continuarem igualmen- dade na qual o grupo Krisis aposta?
te menores, a comunidade de docentes e discentes Robert Kurz – Infelizmente, tenho que dizer que
poderá partir para a subversão intelectual e trans- o grupo crise (Krisis) vigente até agora, não mais
formar a universidade em campo experimental existe. O grupo se desfez, porque havia divergên-
para uma cultura de oposição. cias sobre a crítica do Iluminismo social e a forma

41
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de sujeito moderna masculina. A respeito disso, no sentido dogmático da palavra, antiacadêmi-


algumas pessoas queriam ter o mérito de nossa cos, mas também contamos com pessoas do servi-
polêmica. A maioria da até agora atual redação de ço institucional de ciências. Trata-se de saber se se
Krisis publica uma nova revista teórica chamada levará a crítica emancipatória para as universida-
EXIT!. Tais quebras já conhecemos da história dos des. Isso só será possível mediante uma posição
esquerdos. Ao que parece, eles não se deixam in- independente institucional, e não só de conteú-
timidar pelas novas exigências. Uns ficam para- dos. Talvez isso seja o futuro das reflexões críticas
dos, outros vão adiante, mas isso não muda nada intelectuais, a saber, a auto-organização em gru-
no caráter social da iniciativa. O novo grupo tam- pos autônomos, os quais se desliguem das tutelas
bém é uma associação livre para a teoria crítica burocráticas.
fora das instituições acadêmicas. Nós não somos,

42
Pensar outras formas de produção e consumo

Por Anselm Jappe

Anselm Jappe fez parte do grupo Krisis. No lo que pode ser transformado em dinheiro, o que
Brasil, a circulação das idéias do grupo está asso- é vendido no mercado, caso contrário se abando-
ciada a Robert Kurz, autor do livro, já clássico, O na a produção, por mais útil que ela possa ser; e
Colapso da Modernização. Paz e Terra, 1992, somente quem consegue transformar a sua for-
e um dos editores, até recentemente, da revista ça-trabalho em dinheiro pode aceder aos produ-
Krisis que propõe uma análise da sociedade con- tos disponíveis, caso contrário permanecem inuti-
temporânea em relação à crítica do valor, do siste- lizados. Não se quer, então, grandes projetos utó-
ma produtor de mercadorias e seus fetiches. Para picos para imaginar outras formas de consumo e
o grupo Krisis, a “crise da sociedade do trabalho”, de produção: o importante seria uma produção
o estado crítico do “capitalismo global de cassino”, voltada para a satisfação das necessidades sociais,
as “bolhas do capital financeiro fictício” e a “honra e não para satisfazer a cega necessidade do siste-
perdida do trabalho” colocam o mundo na encru- ma baseado sobre o valor, sobre a mercadoria e
zilhada: acirramento da barbárie de um modelo sobre o dinheiro de crescer continuamente. Preci-
socioeconômico de privações ou sua superação. saríamos de uma produção que se preocupe com
Aqui reside a importância do Brasil. Para Jappe, o os conteúdos ao invés da auto-reprodução tauto-
Brasil pode ser o país do futuro “se considerarmos lógica de uma forma vazia: o valor como repre-
sua potencialidade para sair do capitalismo indus- sentação fictícia do trabalho passado. É evidente,
trial e para caminhar em direção a uma sociedade porém, que seria inútil dar conselhos aos gover-
em que os meios criados pela humanidade não sir- nos de como chegar a isso. Na sociedade da mer-
vam mais para mover uma máquina que gira em cadoria, o Estado não pode ter outra função que a
vão, mas para satisfazer as necessidades e desejos de garantir o mínimo de coesão sem a qual esta
humanos”. Anselm Jappe é autor do livro, entre sociedade, baseada sobre a concorrência, se dis-
outros, Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999. O solveria imediatamente numa guerra de todos
artigo, a seguir, foi escrito, em italiano e traduzido contra todos. Qualquer governo, independente-
pela IHU On-Line. mente das suas intenções, deve, necessariamente,
buscar garantir a valorização do capital e tornar-se
A miséria e o desemprego se espraiam pelo escravo dos “mercados”. A estrada da emancipa-
mundo afora e se difunde, cada vez mais, a sensa- ção social não pode passar pela tomada do poder
ção de que vivemos numa época de crise contínua ou a conquista do Estado. Este, de qualquer
e aguda. Entretanto, nem sempre se leva em conta modo, se reduziu quase que inteiramente a uma
um fato tão fundamental quão elementar: não são carcaça vazia. A emancipação social deve passar
as capacidades produtivas que estão em crise. por uma longa estrada, feita de múltiplas expe-
Pelo contrário, se produz muito mais do que se riências de auto-organização e de reapropriação
usa, e se jogam, literalmente no mar, os “exceden- direta dos recursos materiais e imateriais, lá onde
tes” alimentares. O que efetivamente está em crise vale a pena. Não se trata mais de pedir “postos de
é o mecanismo de mediação, representado pelo trabalho”, mas de reivindicar o direito de todos a
dinheiro: no capitalismo, se produz somente aqui- uma vida boa, já que os pressupostos para isso es-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tão dados: o direito de não morrer de sede em fare state (estado de bem-estar social) de trinta
meio à água. A recusa do trabalho não significa, anos atrás. Certamente, no Brasil, essas nostalgias
certamente, uma recusa da atividade. Absoluta- são mais absurdas que em outras partes do mun-
mente não se trata disso, mas o contrário: muitas do. Pois aqui o capitalismo nunca funcionou na
vezes, é a própria sociedade baseada sobre o tra- sua forma “clássica”, como integração da popula-
balho que impede as atividades sensatas, por ção inteira no ciclo de uma produção maciça e de
exemplo, quando o mercado mundial constringe um maciço consumo de mercadorias. Toda teoria
milhões de agricultores no mundo a abandonar os do “desenvolvimento”, que quer introduzir com
seus campos, porque não são mais “rentáveis”. A trinta anos de atraso aquilo que não funcionou
recusa do trabalho não significa igualmente a ex- nem nos países mais “ricos”, está condenado à fa-
pectativa de um duvidoso paraíso tecnológico, lência. Talvez, nisso resida também a chance para
onde ficaremos olhando somente as máquinas o Brasil: ele não deve, necessariamente, passar
trabalhando no nosso lugar. Significa, sim, não por todo o ciclo capitalístico12. Em muitas regiões
aceitar mais que a própria existência dependa da do País, existem ainda tradições pré-capitalistas
venda da própria força-trabalho, uma venda que que nos seus aspectos positivos – por exemplo a
prescinde de toda e qualquer consideração do confiança no trabalho ou no espírito de comuni-
conteúdo do trabalho e que todos devem tentar, dade –, poderiam desenvolver um papel emanci-
mesmo quando esta força-trabalho não é mais re- patório. A idéia bizarra que se vive somente para
querida pelos processos produtivos. Na verdade, trabalhar e acumular dinheiro parece estar menos
é a própria sociedade do trabalho, reduzindo, enraizada nas cabeças das pessoas no Brasil do
cada dia, o trabalho necessário e declarando para que nos países mais “avançados”. Até que as mu-
a maior parte dos seus súditos que ela não mais danças sociais não sejam imediatamente mundia-
necessita dos seus serviços, que trabalha para a is, a grandeza do Brasil e as suas riquezas naturais
abolição da sociedade do trabalho. Uma saída podem garantir que as tentativas de construir uma
emancipatória desta situação é possível, mas não sociedade diferente não sejam abafadas pela
está, absolutamente, garantida. Certamente, os eventual hostilidade do mundo circunstante. E se
sindicatos e os partidos tradicionais de esquerda se acredita que a campanha e a agricultura devem
não compreenderam esta situação. Isso quando desenvolver um papel de primeira grandeza na
chegam, em muitos casos, a se vender ao “realis- construção de uma sociedade emancipada, então
mo” neoliberal, sonhando, no melhor dos casos, o Brasil será uma terra eleita para uma tal
com um impossível retorno de um idealizado wel- construção.

12 Esta idéia o autor defende de maneira mais ampliada no relato de uma viagem pelo Brasil e que foi publicado na Carta
Capital, 26-4-2000. Esse relato pode ser consultado também no boletim Cepat Informa n. 61, p. 21-29, de 2000.

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O desemprego em massa.

O direito à vida não passa mais pelo trabalho assalariado

Entrevista com Paolo Virno

Paolo Virno é filósofo e professor na Univer- trabalho conta com aquela forma de subjetividade
sidade da Calábria (Itália). Foi militante nos anos que, no passado, era definida como “nihilística”:
1970 na autonomia operária. Esteve preso duran- uma subjetividade na qual predominam a incerte-
te três anos, processado com Antonio Negri, acu- za das expectativas, variabilidade das colocações,
sado de pertencer a uma organização terrorista. identidades frágeis, desenraizamento, etc. Assim,
Foi absolvido. Paolo é autor de vários livros, entre a globalização faz com que o trabalho seja imbuí-
os quais destacamos: Gramática de la Multi- do por sentimentos de desencanto: oportunismo,
tud. Buenos Aires: Colihue, 2003; El Recuerdo cinismo, medo.
Del presente. Buenos Aires: Piados, 2003.
IHU On-Line – Vivemos numa sociedade
IHU On-Line – O que significa estar na era que engendrou milhões de desempregados,
do desencanto? De que maneira o trabalho além de condições muito precárias para
e o desemprego contribuem para essa era? aqueles que estão trabalhando. Que sinais
Paolo Virno – Quais são os principais requisitos de alternativas o senhor vê para humaniza-
requeridos aos trabalhadores hoje? Que sejam ca- ção do mundo do trabalho?
pazes de mudar rapidamente, prontamente se Paolo Virno – Creio que estamos vivendo uma
adaptando a novas regras, que sejam capazes de crise geral da sociedade do trabalho. Esta crise
acompanhar as mais bruscas reconversões produ- não coincide com uma contração linear do tempo
tivas, que renunciem a qualquer tradição estável. de trabalho como acreditam Gorz e Rifkin. Con-
Atenção, esses requisitos não são o fruto do disci- siste, mais precisamente, no fato de que hoje a ri-
plinamento industrial, mas, o resultado de uma queza social é produzida, sobretudo pela ciência,
socialização que tem o seu baricentro fora do tra- pela informação do saber em geral. Não mais, ou
balho, modelada pela mudança repentina de usos muito menos, pelo trabalho feito pelas pessoas
e costumes, pela permanente mudança das for- singularmente. No entanto, este termo continua
mas de vida. Pode-se fazer a hipótese que a “pro- valendo como parâmetro do desenvolvimento e
fissionalidade” efetivamente requerida no novo da distribuição da renda. O tempo de trabalho é a
lugar de trabalho consiste precisamente nos dotes unidade de medida vigente, mas não mais verda-
que se adquirem durante uma prolongada perma- deira. Poderíamos dizer o seguinte: a superação
nência num estágio pré-lavorativo ou precário. Na da sociedade do trabalho acontece, cada vez
espera de um trabalho, aqueles talentos generica- mais, nas formas prescritas do sistema social, ba-
mente sociais são desenvolvidos como também o seado sobre o trabalho assalariado. O tempo em
hábito de não contrair práticas duráveis que, uma excesso, ou seja, uma potencial riqueza, se mani-
vez adquiridas, serão, depois de encontrado o em- festa como miséria: desemprego estrutural (provo-
prego, autênticas algemas. A atual organização do cado pelos investimentos, não pela sua falta), ili-

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mitada flexibilidade no emprego da força-traba- XVII, donde descende boa parte o nosso léxico éti-
lho, proliferação de hierarquias, etc. co-político, se colocam hoje como antípodas. O
A crise da sociedade do trabalho implica que toda “povo” tem uma índole centrípeta, converge
a força-trabalho contemporânea pode ser descrita numa volonté générale, é a interface ou o reflexo
com as categorias com que Marx analisou o “exér- do Estado; a multidão é plural, não se deixa abar-
cito industrial de reserva”, ou seja, o desemprego. car pela unidade política, não estipula pactos nem
Marx entendia que o “exército industrial de reser- transfere direitos ao soberano, recalcitra em obe-
va” podia ser subdividido em três tipos: fluido decer, se inclina por formas de democracia não-
(hoje o chamaríamos de turn-over, aposentado- representativa. Na multidão, Hobbes individuou a
rias antecipadas, etc.), latente (lá onde, a qualquer máxima insídia para o aparato estatal, “os cida-
momento, pode ser introduzida uma inovação dãos, então se rebelam contra o Estado, são a
tecnológica que dispensa o emprego), estagnada multidão contra o povo” e Spinoza viu nela a raiz
(nos termos atuais: trabalho precário, atípico, etc.) da liberdade. Desde o século XVII, quase sem ex-
E hoje, fluida, latente ou estagnada é a classe ope- ceção, prevaleceu incondicionalmente o “povo”.
rária empregada como tal. Não há mais nenhuma A existência política dos muitos como muitos foi
linha divisória entre trabalho e não-trabalho. expulsa do horizonte da modernidade: não so-
mente pelos teóricos do Estado absoluto, mas
IHU On-Line – No Brasil, o Presidente Lula também por Rousseau, pela tradição liberal, pelo
prometeu, na campanha eleitoral, a criação próprio movimento socialista. Hoje, no entanto,
de 10 milhões de empregos, no entanto, o as multidões retornam com força, caracterizando
desemprego aumenta mais que no governo todos os aspectos da vida associada: costumes e
anterior, que não era de esquerda. Até que mentalidades do trabalho pós-fordista, paixões e
ponto pode ser resolvido o problema do de- afetos, modos de entender a ação coletiva. Quan-
semprego no estado-nação na época da glo- do se constata este retorno, é preciso evitar um
balização, por mais que se tenha um gover- mal-entendido. Não é que a classe operária se ex-
no de esquerda? tinguiu para dar lugar aos “muitos”, pelo contrá-
Paolo Virno – Tenho admiração por Lula. Mas rio, o caso é bem mais complicado e interessante:
não acredito que seja possível refazer etapas já os operários, permanecendo como tais, não têm
passadas do desenvolvimento capitalista: não se mais a fisionomia do povo, mas exemplificam per-
pode, por exemplo, querer refazer a época do ple- feitamente o modo de ser da multidão. Precários,
no emprego, ou seja, a época do fordismo e do desempregados, trabalhadores flexíveis, todos
keynesianismo. O que está em jogo, hoje, é o es- eles, me parece, podem ser concebidos como
gotamento do trabalho assalariado e não o seu “muitos” irredutíveis a uma Unidade (partido,
aumento. O desemprego de massa coloca o pro- Estado, soberano). A multidão contemporânea é
blema do “direito à vida”, que não passa mais uma rede de singularidades. Cada um dos “mui-
pelo trabalho sob as ordens de um patrão, parce- tos” se caracteriza por aquilo que ele tem de único
lado e repetitivo. e irrepetível na sua existência individual, mas, ao
mesmo tempo, ele é correlato, intimamente, com
IHU On-Line – Por que é importante enten- os outros “muitos”. Nesse sentido, me parece efi-
der o conceito de multidão para poder fazer caz uma expressão de Marx: indivíduos sociais.
uma leitura da sociedade contemporânea. Tanto mais “indivíduos”, quanto mais “sociais”.
Que lugar tem o trabalho na sociedade dos
“muitos”? IHU On-Line – O que significa “necessita-
Paolo Virno – As formas da vida contemporânea mos praticar uma desobediência radical”?
atestam a dissolução do conceito de “povo” e a Como o senhor a tem praticado em sua vida
renovada pertinência do conceito de “multidão”. e que conseqüências isso lhe trouxe?
Esses dois conceitos, que emergem como pedras Paolo Virno – A “desobediência civil” represen-
angulares no grande debate a partir do século ta, talvez, a forma basilar de ação política da multi-

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dão, contanto, porém, que ela seja emancipada Paolo Virno – Espera-nos um terrível período de
da tradição liberal na qual foi encapsulada. Não se transição, semelhante, em muitos sentidos, ao do
trata de não respeitar uma lei específica porque in- século XVII. Uma transição na qual serão construí-
coerente e contraditória com outras normas fun- das novas instituições internacionais e será refun-
damentais, por exemplo, com a carta constitucio- dada, por inteiro, a teoria política. O movimento
nal: em tal caso, de fato, a desobediência seria o global, a partir de Seattle, exprime muitas caracte-
testemunho de uma lealdade ainda mais profunda rísticas do trabalho pós-fordista, mas sem conse-
ao comando estatal. Ao contrário, trata-se de co- guir, no momento, incidir sobre as relações de for-
locar em questão a própria faculdade de coman- ça. É este o ponto crucial: que formas de luta e que
dar do Estado, aquela obrigação de obedecer an- modelos organizativos para o trabalho precário,
tes mesmo de saber que coisa nos será ordenado. intelectual e flexível?
Em outras palavras, é preciso estraçalhar aquele
“monopólio da decisão política” que o Estado re- IHU On-Line – Poderia ou deveria a univer-
presenta (a definição é de Carl Schmitt). A multi- sidade ser um lugar privilegiado para expe-
dão é “antimonopolítica” e, precisamente por rimentar formas novas de organização so-
isso, desobediente. Quanto a mim, passei três cial, para ler e entender a multidão, para
anos na prisão, no início dos anos 1980, acusado apresentar novas definições do trabalho?
de “associação subversiva”. Era, porém, um pe- Paolo Virno - Se é verdade que a ciência, a infor-
ríodo diferente: mais que “desobediência radical” mação, o saber se tornaram a principal força pro-
se tratava, então, de “revolução política”. Portan- dutiva, é claro que as universidades são um centro
to, a desobediência toma o lugar da revolução, já nevrálgico de luta política. Elas constituem aquilo
que o problema não é a “tomada do poder”, mas que Marx chamava o general intellect, o “intelecto
a sua dissolução. geral” da sociedade. Mais que lugar privilegiado
do pensamento crítico, as universidades represen-
IHU On-Line – Como imagina os próximos tam um componente decisivo da moderna coope-
anos de nossas sociedades em relação com a ração produtiva. Não se trata tanto de elaborar
sua organização política, a conquista da paz, novas definições de trabalho, mas de se organiza-
o papel e o lugar que ocupará o trabalho? rem como um setor estratégico da “fábrica social”
e como intelectualidade de massa diretamente
produtiva.

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“Nunca esteve tão longe a distância entre
o País que podemos ser e o País que somos”

Entrevista com Márcio Pochmann

Márcio Pochmann é professor do Departa- tar crescendo de 5 a 6% ao ano para poder abrir
mento de Política e História Econômica do Institu- algo como 2 milhões e trezentos mil postos de tra-
to de Economia da Unicamp. Ele é bacharel em balho a cada ano, que é o equivalente ao número
Ciências Econômicas, especialista em Ciências de pessoas que ingressam no mercado de trabalho
Políticas pela Associação de Ensino Superior do por ano. Como de 1981 até o ano passado, cres-
Distrito Federal e em Relações de Trabalho pela cemos em média 2% ao ano, temos a geração de
Universidade de Bologna, na Itália, doutor em excedente de mão-de-obra. O segundo motivo diz
Economia pelo Instituto de Economia da Uni- respeito a uma redução na participação dos salá-
camp, com a tese Políticas do Trabalho e de Ga- rios na renda nacional. Em 1980, essa participa-
rantia de Renda no Capitalismo em Mudança. Pu- ção era equivalente a 50%. De todo o Produto
blicou os livros: Políticas do Trabalho e de Ga- Interno Bruto (PIB) brasileiro, 50% eram forma-
rantia de Renda – O capitalismo em mudan- dos de salários. Em 2002, o último dado que te-
ça. São Paulo: Editora São Paulo, 1995; Traba- mos, a participação dos salários na renda nacional
lho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, era de 36%. O que significa essa queda? Significa
1999; e-trabalho. São Paulo: Publisher Brasil, uma maior pressão da classe trabalhadora, objeti-
2002; Desenvolvimento, trabalho e solidarie- vando elevar ou compensar o efeito dessa queda
dade. São Paulo: CES, 2002. É um dos organiza- de renda. Temos uma pressão muito grande de
dores do recém-lançado Atlas da Exclusão So- aposentados. Eles são 6 milhões que, embora es-
cial. Volume 3: Os ricos no Brasil. São Paulo: tejam aposentados, não abandonam o mercado
Cortez, 2004. de trabalho, e isso dificulta o ingresso de jovens,
por exemplo. Temos também um aumento consi-
IHU On-Line – O Governo atual está com os derável nas horas extraordinárias. Em 2002, tive-
mais altos índices de desemprego. Trata-se mos 31 milhões de trabalhadores com jornadas
de uma questão de conjuntura, ou de algo acima de 44 horas semanais. Temos menos pes-
mais profundo que o próprio Governo não soas trabalhando mais, o que, obviamente, reduz
está sabendo decifrar? a jornada de trabalho de indivíduos ou até deixa
Márcio Pochmann – De fato, estamos com uma alguns sem emprego. Esses 31 milhões com jorna-
crise estrutural de emprego no Brasil que foi adi- das além das 44 horas semanais estariam tirando
cionada por elementos de ordem conjuntural. 7 milhões de postos de trabalhos que não estão
Desde inícios dos anos 1990, o desemprego está sendo ocupados, por causa das horas extras. E te-
crescendo no Brasil, agravado pelas opções do mos 5 milhões de crianças e adolescentes que, em
Governo atual. Há para mim três motivos: o pri- tese, não deveriam estar trabalhando, mas, por
meiro é a ausência de crescimento econômico. força certamente da baixa renda, terminam bus-
Estamos completando quase 25 anos sem cresci- cando uma forma de ajudar a família. Tudo isso
mento econômico sustentável. Precisaríamos es- constitui essa queda na renda do trabalho. A ter-

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ceira razão diz respeito à forma com que o País entrada imediata no mercado de trabalho. Isso
tem se inserido na economia mundial. O Brasil significa transferência de renda para que, de fato,
está transformado num país de especialização em eles possam completar o ensino médio, um pro-
atividades de baixo conteúdo tecnológico e redu- grama como bolsa-família que garanta renda para
zido valor agregado. Por meio do agronegócio, o os 4 milhões de jovens que estão fora do ensino
Brasil está se especializando, por exemplo, em básico e fundamental. Passar renda de quem tem
suco de laranja e outras atividades que utilizam para os que não a têm.
pouca mão-de-obra e têm baixo valor agregado
tecnológico, de tal forma que esse tipo de inflexão IHU On-Line – Fala-se em redução da jorna-
na economia mundial é pouco geradora de em- da de trabalho como saída, de fato menos
prego e os que gera são precários. pessoas estão cada vez trabalhando mais ho-
ras. Que saída haveria para essa situação?
IHU On-Line – Qual é a saída que o senhor vê Márcio Pochmann – No caso da redução da jor-
para cada um desses três fatores que assina- nada de trabalho, acho que é um componente im-
la como responsáveis pelo desemprego? portante, inclusive, na agenda da luta dos traba-
Márcio Pochmann – Em primeiro lugar, o Brasil lhadores. O primeiro passo a ser dado certamente
não tem um projeto de desenvolvimento nacio- é a contenção das horas extras. As empresas, em
nal. Não se sabe para onde vai. Se nós vamos geral, pagam já o adicional à hora normal, quan-
continuar operando dessa maneira ou se vamos do se trata da hora extra, então ou se aumenta
fortalecer setores que são intensivos em tecnolo- drasticamente o custo da hora extra, fazendo com
gias, por exemplo, que melhorariam a inserção do que esse custo a mais não seja transferido para o
País na economia mundial. Existem países como trabalhador, e sim para um fundo que ajudasse a
a China, como a Índia, como a Coréia e como a financiar quem não está sendo contratado, por-
Irlanda que alteraram a sua participação na eco- que os que trabalham fazem horas extras. Da for-
nomia mundial, sobretudo porque se concentra- ma como existe a hora extra atualmente, no Bra-
ram em setores que são mais competitivos e ge- sil, o empresário não precisa contratar imediata-
ram maior valor agregado, que são setores intensi- mente alguém, porque ele paga um pouco mais à
vos em tecnologia. Nesse sentido, a constituição pessoa que está trabalhando: interessa ao traba-
de um projeto de desenvolvimento precisa levar lhador e à empresa, mas prejudica aqueles que es-
em consideração as oportunidades que a econo- tão sem trabalhar. Eu penso que devem ser tribu-
mia global abre e lamentavelmente não temos tadas drasticamente as horas extras, só que essa
aproveitado isso. O segundo aspecto diz respeito a tributação adicional iria para um fundo público, e
um choque distributivo que precisaríamos ter. Nós não para o trabalhador. Essa forma desestimula-
precisaríamos de uma reforma tributária que sig- ria, mas não as evitaria, porque como diz o nome
nificasse a tributação dos ricos e não dos pobres é hora extraordinária para algo eventual, e não
como temos atualmente. Os impostos no Brasil deveria ser considerada uma cultura como acon-
oneram fundamentalmente os pobres. Os ricos tece atualmente.
não pagam impostos. Isso é um problema refor-
mista. A proposta que o governo chamou de re- IHU On-Line – Que relações poderíamos es-
forma tributária tinha como um dos seus objetivos tabelecer entre o desemprego e a precariza-
introduzir um imposto único de 4%, o qual não foi ção do trabalho no Brasil e as relações do
nem discutido, foi descartado. E ao mesmo tempo Governo com o Fundo Monetário Interna-
é absolutamente fundamental avançarmos nos cional (FMI)?
programas de transferência de renda sobretudo Márcio Pochmann – Certamente há uma rela-
para a juventude, filhos dos pobres, que não tem ção direta, porque os parâmetros estruturais da
outra alternativa que não seja aumentar a escola- política macroeconômica não foram alterados. Há
ridade, completar o ensino médio, abandonar a basicamente uma continuidade. Há alterações

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nos detalhes, mas não na essência da política ma- Márcio Pochmann – Trabalho com a hipótese
croeconômica, justamente aquela que acredita ser de que o curso das reformas são justamente para
o papel do setor público residual na orientação fortalecer as entidades de representação de inte-
das atividades econômicas em geral. Obviamente resses de desempregados e empregadores, por-
que esse esvaziamento do papel do Estado está di- que, do contrário, seria um equívoco, um enfra-
retamente ligado ao perfil dos postos de trabalho quecimento das instituições, já que elas são sus-
que são gerados no Brasil. Entre 1992 e 2002, tentáculos da democracia e um país como o Brasil,
70% das oportunidades de trabalho que foram que não tem experiência democrática, seria extre-
abertas, estavam associadas a quatro tipos de ocu- mamente grave enfraquecer ainda mais as institui-
pações: trabalho doméstico, trabalho ambulante, ções que representam interesses dos trabalhado-
trabalho de asseio e conservação e trabalho de se- res. A minha grande incógnita é que a perspectiva
gurança, ocupações que não demandam grande da reforma sindical e trabalhista não aponte para
escolaridade nem recebem grande remuneração. um projeto nacional de desenvolvimento. A Con-
São muito precárias, em sua maioria à margem do solidação das Leis Trabalhistas (CLT) é uma lei
sistema de proteção social ou trabalhista. constituída, tendo em vista um projeto de desen-
volvimento do País, que era a industrialização e a
IHU On-Line – Que novos empregos pode- urbanização nacional. A CLT normatiza o trabalho
riam e deveriam ser criados urgentemente no assalariado, que, nos anos de 1930-1940, era resi-
Brasil? Por que isso não aconteceu ainda? dual no Brasil, no setor urbano. A principal ocupa-
Márcio Pochmann – Não aconteceu e nem vai ção não era assalariada e estava no campo. O que
acontecer se a economia não voltar a crescer. O houve foi o compromisso do País em constituir a
governo podia ter tomado a iniciativa de ampliar, chamada sociedade salarial, quando ainda o tra-
por exemplo, o seguro-desemprego, que seria balho assalariado era minoritário. A CLT hoje tem
uma forma de, se não aumentar o nível de empre- várias décadas de existência, e o assalariamento
go, pelo menos evitar que os desempregados ti- continua como foi. A CLT, se fosse instituída antes
vessem um rebaixamento drástico no seu padrão dos anos de 1930, provavelmente não teria a efi-
de vida. Outra medida importante seria um gran- cácia que teve, porque o modelo econômico era
de programa de transferência de renda para pes- desfavorável ao assalariamento. O que está faltan-
soas desempregadas de longa duração, associado do na discussão sobre a reforma sindical e traba-
à capacitação prática e teórica. Um programa lhista é isto: Que tipo de projeto de país nós quere-
para mais ou menos 2 milhões de pessoas seria mos para as próximas cinco décadas? Qual vai ser
um passo importante do ponto de vista de estimu- o centro do trabalho? Vai ser trabalho assalariado,
lar a economia e garantir algum nível de ocupação autônomo, cooperativo? Isso não está claro. Vai
para essas pessoas, especialmente me refiro ao haver uma mudança que é basicamente interesse
Estado, porque o setor privado não tem capacida- de assalariados. Hoje a cada dois ocupados um é
de de antecipar gastos, quando não há sinais de assalariado. Outros são autônomos, e esse seg-
recuperação da economia. Por outro lado, tam- mento não tem representação.
bém seria necessário um ajuste drástico no pro-
grama Primeiro Emprego que se volta principal- IHU On-Line – José Genoino, ao afirmar que
mente para os jovens, mas as opções que se toma- o rumo da política econômica do governo
ram para constituí-lo, lamentavelmente não apon- não vai mudar, não estaria matando as es-
tam para esse sentido. peranças da representação desses setores?
Márcio Pochmann – Com certeza, o Governo
IHU On-Line – Que possibilidades e que ris- federal dá demonstrações de que ele está conven-
cos o senhor vê nas reformas sindical e traba- cido de que, aplicando a mesma política econômi-
lhista que estão na agenda do Governo Lula? ca do governo anterior, pode obter resultados di-
ferentes. Entendo que será algo inédito se isso

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ocorrer. Estamos condenados a colher resultados discussão e polêmica. Eu, particularmente, parto
que já sabemos quais são. do pressuposto de que já houve uma reforma sin-
dical e trabalhista “branca”, digamos assim:, uma
IHU On-Line – O que deveria mudar urgen- reforma que foi feita via mercado. Por conta disso,
temente nas universidades para que sejam a proposição da reforma sindical e trabalhista ter-
instituições que não se conformem em prepa- minou sendo um desafio, se de fato seria uma re-
rar pessoas para o mercado de trabalho, e sim forma do ponto de vista formal, à consolidação
questionem mais esse mercado que expulsa daquilo que hoje já é uma prática verificada no
pessoas e proponham outras alternativas? mercado de trabalho, inclusive pela forma com
Márcio Pochmann – Eu entendo que a socieda- que operam as representações de interesses sindi-
de brasileira, de uma maneira geral, está inconfor- cais no Brasil, sejam patronais ou trabalhadores,
mada com o País que nós temos hoje. Celso Fur- ou se, de fato, seria uma reforma que apontasse
tado disse que nunca esteve tão longe a distância para um sentido diferente daquilo que já está em
entre o País que podemos ser e o País que de fato curso no Brasil. Se verificarmos hoje como são as
somos. O papel da universidade, entre outros, é o relações de trabalho, elas pouco podem ser com-
de conhecer melhor a realidade brasileira e ofere- paradas com o que eram as relações de trabalho
cer uma melhor avaliação do Brasil nas suas mais no início dos anos 1980, por exemplo.
diferentes áreas de conhecimento. O primeiro
passo para transformar a realidade é conhecê-la. IHU On-Line – Considerando a ocorrência
Este é o compromisso da universidade: oferecer dessa reforma “de mercado”, quais seriam
indicadores que permitam conhecer a realidade, as mudanças que se colocariam como
para que o universitário, que tem acesso ao co- desejáveis?
nhecimento, possa ajudar a transformar o País. Márcio Pochmann – Precisaríamos trabalhar
com uma reforma inclusiva, porque as proposi-
IHU On-Line – A reforma sindical e trabalhis- ções que estão em amplo debate, representam
ta é algo imperioso para a nossa realidade? uma tentativa que vai em dois sentidos. De um
Márcio Pochmann – O que há, de concreto, é lado, do ponto de vista mais do sindicato dos tra-
um projeto de lei por parte do Governo Lula, indi- balhadores, pelo menos daqueles que defendem a
cando, apenas e tão-somente, a temática do âm- reforma, porque existem os que são contra qual-
bito sindical. Não há nada sobre a questão traba- quer mudança, há a tentativa de uma volta ao
lhista de maneira geral, embora o Lula, ainda passado, de reforçar as relações de trabalho assa-
como candidato, tenha estabelecido como meta lariadas, já que essas são as bases do chamado
do seu governo uma reforma sindical e trabalhis- novo sindicalismo, que é uma experiência do sé-
ta, que seria originária de uma ampla discussão, culo XX, ou seja, temos representações de traba-
por intermédio do Fórum Nacional do Trabalho. lhadores que são empregados, subordinados, por
Ocorre que, nesses dois anos do seu governo, ele empresas. De outro lado, temos uma visão mais
conseguiu apresentar um projeto de lei tão-so- conservadora ou liberal-conservadora, que apon-
mente na questão sindical, porque optou por divi- ta para um ambiente de desregulamentação do
dir a reforma em duas partes: uma primeira seria a mercado de trabalho, com a tentativa de flexibili-
reforma sindical, e a outra, uma reforma trabalhis- zação da CLT para baixo, uma vez que a CLT é
ta. Tenho dúvidas se esse projeto deverá ser obje- uma espécie de linha de proteção à exploração do
to de votação, em função, inclusive, da situação trabalho. Ela estabelece um limite mínimo no que
de fragmentação da base do governo. Do ponto diz respeito a direitos trabalhistas, mas possibilita
de vista operacional, não há um projeto de refor- que sejam flexibilizados direitos para cima. Espe-
ma sindical e trabalhista, embora essa questão, cificamente, quero dizer o seguinte: a legislação
desde a transição do regime autoritário para o de- trabalhista define 44 horas semanais, mas não im-
mocrático, tenha sido, constantemente, objeto de pede que haja jornada inferior a isso, desde que

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

atenda ao âmbito dos demais direitos, como salá- terar o marco regulatório do mercado de trabalho,
rio, etc. O que a CLT impede é uma flexibilização precisamos olhar não para o ano e nem tendo em
para baixo, isto é, direitos trabalhistas inferiores vista o que ocorreu nos últimos 15 anos. Precisa-
aos por ela estabelecidos. Isso significa dizer que, mos olhar o Brasil dos próximos 30 anos. Que
se essa visão fosse estabelecida, e houve tentati- Brasil nós queremos? Que tipo de ocupação vai
vas nesse sentido, inclusive durante o governo ser fortalecida? É assalariada, autônoma, são no-
Fernando Henrique, com o objetivo de flexibilizar vas formas de ocupação? Portanto, a legislação
a CLT, possibilitaria que os direitos trabalhistas precisaria prever isso, para ela ser portadora do
fossem suprimidos via negociação coletiva, fazen- futuro. Do contrário, nós corremos o sério risco de
do quase que letra morta à própria CLT. Essas são fazer reformas pontuais, modificações constantes,
as duas visões. A minha preocupação fundamen- todos os anos, porque a regulação do mercado de
tal é em relação a um projeto de país, porque a trabalho não está tendo essa contribuição estraté-
questão do trabalho, seja na representação dos in- gica. Guardada a devida proporção, é o que ocor-
teresses dos atores sociais, seja na regulação do re na questão previdenciária. Todos os anos há re-
mercado de trabalho, está diretamente relaciona- formas no Brasil, em geral para reduzir direitos,
da a um projeto de País. porque não foi constituído um projeto de país, no
qual estaria a questão previdenciária. Em síntese,
estamos longe de uma reforma sindical e traba-
A CLT foi portadora de uma visão es- lhista inclusiva que seja, em primeiro lugar, porta-
tratégica de futuro dora do futuro e, em segundo lugar, capaz de dar
condições de regulação do trabalho e de represen-
A própria CLT, quando foi constituída, em tação de interesses para uma série de atores e tra-
1943, fruto de várias medidas legais que ocorre- balhadores que estão de fora da CLT atualmente.
ram anteriormente, é um código de trabalho para Se analisarmos hoje, há uma expansão nas ativi-
as relações de trabalho assalariadas. O que havia dades não-assalariadas, como, por exemplo, a
nos anos 1930 e 1940 é que, a cada dez ocupados agricultura familiar, que não estão submetidas à
no Brasil, menos de dois eram assalariados. Então CLT. Temos um avanço considerável de trabalhos
a CLT foi feita para um segmento ínfimo naquele cooperativados, de trabalhos autônomos, freelan-
momento. Mas como o Brasil tinha um projeto de cer, etc. que estão completamente à margem da
desenvolvimento, que era a urbanização, a indus- CLT. Nesse sentido, é fundamental uma reforma
trialização, o avanço do emprego assalariado, a sindical e trabalhista que inclua todos os trabalha-
constituição de uma sociedade salarial, a CLT se dores, não somente os assalariados.
consolidou, ao longo do tempo, porque continha
uma visão estratégica de futuro. As novas formas IHU On-Line – Temos como definir o que se-
de trabalho, a ocupação, passaram necessaria- ria uma legislação moderna, contemplando
mente pelo emprego assalariado, cuja base da re- as mudanças no mundo do trabalho?
gulação era a CLT. Então, ela foi portadora de Márcio Pochmann – Talvez se essa mesma per-
uma visão de futuro. gunta fosse feita nos anos 1940 para os operado-
res do Direito e aqueles que estavam preocupados
com a questão trabalhista, questionando qual se-
Qual é o projeto de país para os próxi- ria o futuro do Brasil nos próximos 40 anos, não
mos 30 anos? haveria uma resposta clara. O homem construin-
do o futuro, passo a passo, em uma longa cami-
O que nos falta, neste momento, e eu já fiz nhada. O projeto de país, não se sabe, evidente-
esse questionamento a vários ministros, é saber mente, como será daqui a 30 anos, mas, se hou-
qual é o projeto de país para as próximas três ou ver uma clareza de que precisamos ter um país
quatro décadas. Quando estamos tratando de al- mais justo, democrático e com relações de traba-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lho civilizadas, elas são, em primeiro lugar, regula- mas de trabalho. É fundamental constituir uma re-
das pelo poder público, e não pelo mercado. Em forma sindical e trabalhista que inclua as diferen-
segundo lugar, passam por representações consis- tes formas de manifestação do trabalho, guar-
tentes, inclusive, porque a representação de insti- dando suas especificidades. Do contrário, é im-
tuições que representam interesses, constitui a possível acreditar que apenas um marco regula-
base da democracia em um país, especialmente tório, via assalariamento, seja capaz de dar sus-
no Brasil, onde não temos tradição democrática. tentação para situações de trabalho cada vez
Que medidas fortaleceriam as instituições sindicais mais heterogêneas.
patronais e trabalhadoras? Quando olhamos o
ambiente de trabalho, um a cada dois trabalhado- IHU On-Line – Isso implicaria a quebra da
res não está representado em organismos sindicais, unicidade sindical?
não faz parte das relações de trabalho-emprego Márcio Pochmann – No meu modo de ver, não
assalariado. O mundo caminha quase que inexo- há unidade sindical no Brasil. O que existe é uma
ravelmente para relações de trabalho cada vez unidade por categoria profissional. Mas isso não
mais heterogêneas. O que foi objeto da constru- representa a unicidade dos sindicatos, porque te-
ção do século XX, a sociedade salarial, tem dificul- mos vários exemplos de pluralidade sindical no
dade de se reproduzir justamente pelas enormes Brasil, quando olhamos a unidade produtiva, em-
transformações no modo de produção capitalista: presa, ou ramo de produção. A Unisinos, por
o surgimento de ocupações que se vinculam mui- exemplo, tem vários sindicatos de trabalhadores,
to mais à concepção do que à execução, a socie- possivelmente: o sindicato dos professores, dos
dade do conhecimento, da informação, e assim funcionários, das secretárias, dos economistas,
por diante. Em última análise, uma sociedade de dos engenheiros, etc. Não há o sindicato único da
serviços, e não mais uma sociedade industrial. universidade, seja privada, seja comunitária, seja
pública. Há um equívoco, quando se diz que esta-
ríamos transitando da unicidade para a pluralida-
A necessidade de um marco regulatório de sindical. A pluralidade já é praticada no Brasil,
porque a forma de concessão da unidade é uma
Nesse sentido, trabalho com a hipótese de unicidade em que concede um monopólio de re-
termos um marco regulatório do mercado de tra- presentação ao sindicato por categoria profissional.
balho que dê conta de situações muito heterogê- Só que a base da organização laboral e produtiva é
neas. Quando olhamos o Brasil, percebemos que por ramo de produção. Nos ramos de produção,
o trabalhador autônomo e o vendedor ambulante não temos unicidade, temos pluralidade.
das grandes cidades representam uma situação
que não vai desaparecer e possivelmente tende a IHU On-Line – O senhor está convencido de
se consolidar. Esse é um trabalhador que está sub- que as reformas não progredirão nesse
metido a uma exploração enorme. Ele trabalha governo?
longas jornadas, tem uma incerteza de ganhos, Márcio Pochmann – Não que eu esteja conven-
não tem proteção social. Que estatuto do traba- cido. Estou apenas trabalhando com os elementos
lhador autônomo precisaria ser reconhecido para que têm sido apresentados. O Governo federal
que essas formas de trabalho pudessem participar tem uma enorme dificuldade de tocar reformas
da regulação pública do trabalho? A mesma coisa que foram concebidas no início da gestão, como
é a agricultura familiar. Não vai acabar, vai durar foi o caso da reforma previdenciária e da reforma
por muito tempo e ainda absorvendo uma quanti- tributária. Estamos no terceiro ano de governo e
dade expressiva de trabalhadores, de famílias, no essas reformas não foram consolidadas, assim
Brasil. Que medidas podem dar conta da prote- como há medidas que seriam, para o Governo
ção e regulação desse setor? E o mesmo ocorre Lula, no seu entendimento, mais estratégicas do
com trabalhadores cooperativados e outras for- que a reforma sindical e trabalhista. Como é um

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tema muito polêmico, que causa enormes divi- sentido quando soubessem que estaria claro um
sões sociais, temo que essa medida, esse projeto projeto amplo, que daria uma visão com começo,
de lei possa ficar para o segundo mandato, caso meio e fim. É difícil acreditar que alguém assine
ele venha a ocorrer. Acho difícil que ele seja apro- um cheque em branco sem saber o valor, para
vado, mas não é impossível. que serve, e assim por diante. Percebo que, no
Brasil, não há um projeto pronto com a visão de
IHU On-Line – O senhor acha que o chama- início, meio e fim. O fato de ter sido realizado o
do mundo do trabalho está preparado para Fórum e ter saído do zero, gerou uma dificuldade
fornecer subsídios e inflexões que cons- de constituir um consenso. Seria muito mais im-
truam novas relações? portante que o Governo federal tivesse oferecido
Márcio Pochmann – Inegavelmente. Qualquer já um projeto pronto, do ponto de vista de uma vi-
transição de um modelo para outro, observando a são do todo, para que pudesse ser considerado,
realidade internacional, são experiências que se avaliado, modificado no interior do Fórum, para
dão pelo menos em algumas condicionalidades que daí se fosse consolidando essa convergência.
que não sei se estão claras no Brasil. Olhando a Não há um projeto que dê a visão do todo. Certa-
experiência de reformas sindicais e trabalhistas do mente, os atores ficam receosos em apoiar algo de
século XX, vemos mudanças importantes na Ale- que não sabem os resultados finais. Em segundo
manha, na Itália e na França, após o fascismo. Fo- lugar, o ambiente econômico sempre foi funda-
ram medidas tomadas imediatamente depois do mental para uma mudança ampla no sistema de
segundo pós-guerra, assim como nos anos 1950, relações de trabalho, porque, quando não está
a reforma sindical e trabalhista no Japão, e mes- consagrado o crescimento econômico contínuo e
mo, mais recentemente, nos anos 1970, início de elevado, cria a imagem de que uma reforma pode
1980, a transição para o regime democrático em gerar uma equação de soma negativa. Os traba-
Portugal e na Espanha, quando ocorreram refor- lhadores ou os empresários podem vir a perder
mas amplas, importantes. Nos anos 1980 e 1990, com a reforma, porque não está garantido o cres-
foram realizadas algumas reformas pontuais, esti- cimento econômico. Deve ser uma equação de
muladas pelas agências multilaterais internacionais soma positiva, em que todos ganhem. Talvez uns
que defendem a flexibilização do mercado de tra- ganhem mais do que outros, mas não pode haver
balho. Medidas pontuais têm sido tomadas, e, no perdedores. Havendo perdedores, criam-se resis-
Brasil, inclusive, isso ocorreu. tências e enormes dificuldades para avançar na
aprovação de uma reforma desse tipo. Esses dois
obstáculos são muito fortes ainda no Brasil, por-
No Brasil, não há um projeto pronto que não há uma visão do todo, uma reforma que
com a visão de início, meio e fim seja portadora do futuro e, como não há um con-
texto macroeconômico favorável, que viabilize lu-
É claro que a mudança mais ampla tem difi- cros e aumentos salariais consistentes com amplia-
culdade de se estabelecer justamente porque, em ção do emprego, cria-se essa resistência maior en-
primeiro lugar, os atores apoiariam medidas nesse tre os atores.

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“A reforma sindical pode servir de pretexto para
uma reforma trabalhista flexibilizadora”

Entrevista com Márcio Túlio Viana

Márcio Túlio Viana é professor do Departa- para a crescente diversidade da classe trabalhado-
mento de Direito do Trabalho e Introdução ao ra, que hoje inclui não só empregados, mas tam-
Estudo do Direito na Universidade Federal de Mi- bém estagiários, cooperativados, informais e au-
nas Gerais (UFMG). Graduado e doutor em Direi- tônomos (paradoxalmente) dependentes. A refor-
to pela UFMG, tem sua tese intitulada Do direito de ma sindical, porém, também contém aspectos
resistir. Obteve o título de pós-doutor pela Univer- muito positivos. Dentre eles, destacaria as ações
sità Degli Studi Di Roma La Sapienza, da Itália, e coletivas e a prevenção e repressão aos atos an-
pela Università Degli Studi Di Roma Tor Vergata, ti-sindicais. Quanto à reforma trabalhista, ainda
também da Itália. Escreveu e organizou diversas está em início de gestação. O seu maior risco,
obras, entre as quais citamos: Direito de Resis- como disse, é o de se tornar um instrumento para
tência: Possibilidades de autodefesa do em- aprofundar e legitimar a precarização dos direitos.
pregado em face do trabalhador. São Paulo:
LTr, 1996; Cartilha do Trabalhador. São Pau- IHU On-Line – O senhor considera que a re-
lo: LTr, 2001; Processo do Trabalho Atual. forma trabalhista está sendo aberta ao de-
Belo Horizonte: Mandamentos, 2004; Direito do bate público ou está sendo levada dissimu-
Trabalho: Evolução, crise, perspectivas. São ladamente, sem muito debate?
Paulo: LTr, 2004. Márcio Viana – O debate sobre as duas reformas
tem envolvido representações expressivas de tra-
IHU On-Line – Que aspectos assinalaria balhadores e empregadores, mas deixa pratica-
como mais polêmicos no debate da reforma mente de fora os juízes, os procuradores e os ad-
sindical e trabalhista? vogados trabalhistas, além dos segmentos excluí-
Márcio Viana – O aspecto mais polêmico, para- dos da cidadania. Tendo em vista a proximidade
doxalmente, não está sendo objeto de polêmica – das eleições, o mais provável é que a reforma tra-
pois passa quase despercebido. É a possibilidade balhista seja empurrada para depois, exatamente
de que a reforma sindical sirva de pretexto para em razão de seu provável perfil precarizante.
uma reforma trabalhista flexibilizadora, transfor-
mando o legislado em negociado. Mas há outros IHU On-Line – O senhor acha que a atual le-
aspectos problemáticos da reforma sindical. Posso gislação está muito amarrada à era Vargas?
citar três exemplos, dentre vários outros: 1) a ex- Deveria se libertar das marcas dessa era?
cessiva centralização de poder nas cúpulas; 2) a Em que sentido?
transformação das organizações nos locais de tra- Márcio Viana – A legislação sindical ainda guar-
balho em comissões de conciliação prévia, legiti- da alguns componentes daquele tempo, como o
mando renúncias dos trabalhadores, e em virtuais regime da unicidade (só pode haver um sindicato
sindicatos de empresa, negociando diretamente por categoria na mesma base territorial), a contri-
com os patrões; 3) o fechamento dos sindicatos buição sindical obrigatória (o “imposto” sindical)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

e resquícios do poder normativo da Justiça do cada vez mais fragilizado. E essa crise tem razões
Trabalho (agora muito reduzido pela Emenda muito mais profundas do que o seu passado var-
Constitucional n. 45). Esses componentes impe- guista. Dentre outros fatores, ela tem a ver com a
dem uma plena liberdade sindical. No entanto, globalização econômica, a nova tecnologia, o fim
em certa medida, também podem ter alguns as- da ameaça soviética e, sobretudo, a reestrutura-
pectos positivos. Por isso, o ideal seria eliminá-los, ção produtiva, que organiza a empresa em rede,
mas não pura e simplesmente, e sim com a cons- fragmenta e diversifica a mão-de-obra e semeia o
trução concomitante de outros instrumentos de desemprego e o medo. Daí os limites da própria
suporte à ação sindical – a começar da proteção reforma sindical. Na verdade, ela parte de uma
ao emprego. Quanto aos direitos individuais dos premissa falsa: a de que o sindicato está fraco,
trabalhadores, previstos na CLT, têm menos a ver porque as normas que o regem nasceram num re-
com o regime implantado por Vargas do que com gime forte. Ora, a crise do sindicato é um fenôme-
um certo tipo de empresa (fordista) que, pouco a no mundial.
pouco, está deixando de existir. Mas é possível
adaptar a CLT à nova empresa (pós-fordista) que IHU On-Line – Alguns afirmam que a CLT
surge, embora haja limites a essa adaptação. O tem uma inspiração fascista pela forte inter-
maior desses limites diz respeito não aos emprega- ferência do Estado na vida dos sindicatos e
dos, mas aos que trabalham fora do vínculo de dos trabalhadores? O que o senhor acha?
emprego. Eles são cada vez mais numerosos e Márcio Viana – A interferência e a intervenção
continuam desprotegidos. Muitos deles servem do Estado na vida sindical já não existem desde
exatamente à nova empresa, naquela paradoxal 1988, por força do art. 8.º da Constituição Fede-
condição de autônomos dependentes, a que me ral. Quanto aos direitos individuais, criados pela
referi acima. Desse modo, o maior problema da CLT, foram e são uma intervenção necessária do
CLT não é o excesso de proteção, como se diz por Estado, para reduzir ou compensar um pouco a
aí, mas a falta dela, na medida em que não abarca intervenção do mercado. Esta última intervenção,
o universo crescente dos que já não têm, sequer, a sim, é que é autocrática. A primeira é democráti-
situação formal de explorados, expressa pela con- ca, e parte da constatação de que “a verdadeira
dição de empregados. igualdade está em tratar desigualmente situações
desiguais”. A propósito, também dizia Lacordai-
IHU On-Line – Qual é a sua opinião do nego- re13 que “entre o fraco e o forte, entre o rico e o
ciado sobre o legislado? pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que
Márcio Viana – O negociado já prevalece sobre liberta”.
o legislado, quando se trata de aumentar as vanta-
gens que a lei oferece ao trabalhador. Desse IHU On-Line – O novo projeto de reforma
modo, quando se defende essa idéia, o que se trabalhista deve estar relacionado a um pro-
quer é permitir que a convenção coletiva reduza jeto de desenvolvimento nacional, ou em
os direitos previstos em lei. Em outras palavras, o época de globalização essas questões cami-
plano é transformar normas imperativas em nor- nham por trilhos diferentes?
mas dispositivas. E a justificativa é a de que a força Márcio Viana – Sim, é preciso não só que haja
do grupo compensaria a fragilidade individual – esse projeto nacional de desenvolvimento, centra-
especialmente depois que forem eliminados aque- do no homem, como também que, mundialmen-
les resíduos corporativistas. O problema é que o te, os países se articulem para impedir o dumping
movimento coletivo, mesmo sendo coletivo, está social14. Uma idéia sempre presente é a de inserir

13 Henri Lacordaire (1802-1861), padre francês. (Nota da IHU On-Line).


14 Prática comercial ilegal. Consiste na venda de um produto ou serviço por um preço irreal para eliminar a concorrência (Nota da
IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

as chamadas cláusulas sociais nos tratados comer- Márcio Viana – As conseqüências são múltiplas.
ciais. Outra idéia, que já vem sendo praticada, é a Um exemplo: com menos poder de compra, o tra-
de sensibilizar o consumidor para que este boicote balhador não tem como realimentar o ciclo pro-
os produtos fabricados sem atenção aos direitos dutivo, o que acaba gerando um círculo vicioso.
básicos dos trabalhadores e ao meio ambiente. Outro exemplo: com o salário variável, a empresa
joga o risco sobre os ombros do trabalhador, in-
IHU On-Line – Como o senhor vê a idéia de trojetando o próprio poder diretivo e provocando,
redução da jornada de trabalho? É possível? por tabela, moléstias do trabalho, estresse e enve-
Ajudaria a reconceitualizar o trabalho e lhecimento precoce. Se o salário sempre foi a
abrir mais as suas portas? moeda de troca da subordinação, agora passa a
Márcio Viana – Sim, a redução da jornada é mui- servir para acentuá-la. E nada disso, realmente,
to interessante, especialmente para abrir novos gera novos empregos, pois o que se quer é reduzir
postos de trabalho. Para dar certo, entretanto, ela os custos sempre mais. Uma empresa que precari-
terá de se articular com políticas públicas. O Direi- za as condições de trabalho é logo imitada pelas
to, sozinho, não faz mágicas. É preciso dar condi- concorrentes, o que a leva a precarizar ainda
ções para que a pequena empresa resista a esse mais, sucessivamente. A reversão dessa situação
novo impacto de aumento de custos. O ideal seria passa por muitos caminhos ao mesmo tempo. Um
que essa ação também se articulasse com a de ou- deles é o sindicato, que terá de nascer de novo,
tros países, para manter a competitividade do pro- abrindo-se para a sociedade e articulando as suas
duto nacional. lutas com as dos outros movimentos sociais.

IHU On-Line – Pensou-se que o salário va- IHU On-Line – Gostaria de fazer mais algum
riável, a jornada flexível e a contratação comentário que julgue importante acrescentar?
precária, gerariam mais empregos e não ge- Márcio Viana – É importante ser pessimista no
raram. Quais as conseqüências que esses diagnóstico, mas otimista no prognóstico. Para ser
elementos provocaram nas últimas décadas otimista no prognóstico, porém, é preciso que
e como reverter a situação? cada um de nós, em seu pequeno mundo, trave a
sua pequena luta. Em alguma medida, maior ou
menor, o novo mundo do trabalho e o novo direi-
to que se está construindo serão o resultado de
nossas ações ou omissões.

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Desemprego, reformas trabalhistas e a
democratização das relações de trabalho

Entrevista com José Dari Krein

José Dari Krein é professor no Instituto de tamos assistindo serão transitórias no sentido de
Economia da Universidade Estadual de Campinas enfrentar o Governo Lula, mas que há perspectiva
(Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos de melhora. Há uma necessidade de fazer uma
Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), liga- análise crítica, mas há também a necessidade de
do à Unicamp. Graduado em Filosofia pela Ponti- preservar Lula. Na parte mais histórica de oposi-
fícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), é ção e nos servidores, há um certo temor maior em
especialista em Relações de Trabalho, mestre em relação às reformas, particularmente na Reforma
Economia Social e do Trabalho e doutor em Eco- Previdenciária. Essas discussões e temores acaba-
nomia do Trabalho. Foi um dos fundadores do ram se traduzindo no Congresso. Essa parte de es-
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores querda e dos servidores dá idéia de que essas re-
(CEPAT), de Curitiba, onde trabalhou de 1994 a formas não fazem parte do ideário da esquerda
1996. Desenvolve pesquisas nas áreas das relações brasileira. São reformas assumidas pelo Governo,
de trabalho e evolução do mercado de trabalho, te- mas que não são da nossa tradição, da nossa his-
mas sobre os quais publicou vários artigos. É orga- tória. Esse embate esteve muito presente na CUT e
nizador do caderno Trabalho e educação num está se reproduzindo agora, pós-congresso.
mundo em mudanças. São Paulo: CUT. 1997.
IHU On-Line – Qual poderá ser o futuro da
IHU On-Line – Como o senhor avaliaria o 8º CUT?
Congresso Nacional da CUT, do qual parti- Dari Krein – Vai depender muito das discussões e
cipou? também das reformas, para sentirmos se haverá
Dari Krein – A diferença dos outros Congressos um “racha” do movimento sindical ou não, ou
foi que, desta vez, se discutiu política, particular- seja, se os servidores públicos tendem a adquirir e
mente o debate da Reforma da Previdência, a Re- fortalecer as suas próprias organizações com maior
forma Sindical, a Conjuntura do Governo Lula, autonomia e distância em relação à própria CUT.
problemas de bastante embate e discussão no Esse embate que apareceu no Congresso não foi
próprio Congresso da CUT. Foi um Congresso de- resolvido lá e vai continuar presente daqui para a
terminado pelo contexto econômico e político que frente na agenda. Nós podemos ter um fortaleci-
o País vive. A eleição de Lula é um certo divisor de mento da CUT ou um distanciamento dela em rela-
águas na trajetória do movimento sindical recen- ção aos servidores públicos. Aí a CUT vai perder
te, e ela afeta, de uma forma bastante densa, a politicamente uma base sindical importante.
própria CUT. A grande maioria das pessoas que
estava lá contribuiu para a eleição de Lula. Uma IHU On-Line – Que reformas poderiam
base considerável dessa militância continua apos- acontecer na questão trabalhista?
tando, acreditando que o Governo Lula será um Dari Krein – Eu não acredito que haja uma refor-
governo de mudanças, que as questões a que es- ma trabalhista mais substancial. Deve haver uma

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

reforma sindical em alguns aspectos. O ministro meses, ao desemprego, batendo recorde em rela-
do Trabalho tem feito sinalizações contraditórias, ção aos mesmos meses do período anterior. A
manifestado uma forma bastante dúbia, em rela- nossa tendência é de continuar convivendo com
ção ao parcelamento do décimo terceiro, ao taxas de desemprego extremamente altas. Em
FGTS. Fala e depois desmente no dia seguinte. 2003, a taxa pode vir a cair no segundo semestre.
Não fala claramente se vai defender uma flexibili- E, como ela tende historicamente a cair, pode ha-
zação dos direitos trabalhistas. No cenário atual, ver uma melhora na perspectiva econômica a cur-
acho difícil que passe uma reforma de flexibiliza- to prazo, se o governo reduzir a taxa de juros, não
ção. Há a proposição de uma mexida mais subs- começar a gastar mais, adotar uma política social
tancial no sistema de representação, mas, mesmo mais agressiva, pode vir a melhorar um pouco.
nesse aspecto, eu não sou tão otimista, achando Mas, a médio prazo, eu não vejo desenhada, na
que vai acontecer uma reforma. Na minha opi- política econômica de hoje, uma possibilidade de
nião, vai haver reconhecimento do poder de con- o Lula cumprir a promessa de criar uma quantida-
tratação das centrais sindicais; vai haver alguma de significativa de empregos. Há necessidade de
medida que amplie a possibilidade da negociação muitas mudanças antes disso. Esse cenário está
coletiva e do sistema de representação, mas vão afetando, de forma substancial, a vida dos
ser reformas bastante pontuais. Mesmo o fim da trabalhadores.
unicidade, não tenho certeza se passa, mas pode
passar uma mudança na base de contribuição dos IHU On-Line – Para reverter a atual situa-
sindicatos, se tiver articulado o fim do imposto, da ção, que metas viáveis haveria a curto pra-
contribuição, com a introdução de uma taxa ne- zo? A redução da jornada de trabalho seria
gocial, há a perspectiva de ser aprovada. Eu acho uma delas?
que não sai uma reforma sindical e trabalhista Dari Krein – A redução da jornada de trabalho
substancial, pelo menos no curto prazo, do Gover- está fora da pauta sindical e da pauta do governo.
no Lula. Todo o debate ainda está para ser feito. É uma bandeira importante para ser levada à fren-
O Fórum Nacional do Trabalho ainda não foi te pelo movimento sindical, até porque não se
constituído. consegue combater o desemprego só pelo cresci-
mento econômico. É preciso partilhar o trabalho
IHU On-Line – Segundo o IBGE, o desempre- útil presente na sociedade. Isso é possível com
go em maio atingiu os índices mais altos uma redução da jornada de trabalho, que é uma
desde março de 2002, quais as perspectivas bandeira central do ponto de vista dos trabalha-
para os próximos meses? dores na perspectiva de criar uma sociedade com
Dari Krein – Comparando, mês a mês, há uma menor desemprego. Há uma promessa de campa-
tendência mais elevada de desemprego no come- nha de Lula de redução da jornada de trabalho
ço do ano, a taxa de abril-maio historicamente para 40 horas semanais, o que é pouco ainda para
costuma ser a maior do ano. O desemprego é um enfrentar o problema do desemprego. Teria que
sintoma da política econômica adotada nos últi- reduzir de uma forma mais substancial, e de uma
mos anos do Governo FHC e aprofundada nesses vez só. Se fizer gradualmente, causa pouco impac-
primeiros meses do Governo Lula. Essa política to. Tem que ser de forma bruta. Espero que o mo-
de priorizar o combate à inflação afetou não só o vimento sindical retome essa bandeira e tente co-
emprego com essas taxas, como a renda dos tra- locá-la na agenda nacional. A tendência hoje é
balhadores, que, no mês passado, com relação ao aumentar a precarização. Para reverter o desem-
mesmo mês no ano passado caiu 15%. É desas- prego a curto prazo, a retomada do nível da ativi-
troso do ponto de vista social. Há uma queda da dade econômica ajuda, mas não é suficiente. Uma
renda e uma queda do emprego. Isso tem um efei- medida que poderia ser feita é alocar as pessoas
to sobre a política econômica e a retomada do numa série de atividades sociais locais, importan-
emprego. Nós ainda vamos assistir, nos próximos tes para o bem comum da sociedade, na área de

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infra-estrutura e na área de políticas sociais, am- sem mecanismos de reajustes automáticos dos sa-
pliar as políticas sociais de uma forma extraordi- lários. O resultado disso foi que, a partir de 1997,
nária e, com isso, dar ocupação para muita gente grande parte das categorias teve perda na remu-
em diversas áreas. Isso significaria um programa neração do trabalho.
público, intensivo, de ampliar os serviços para a
comunidade com a contratação de pessoas. Isso IHU On-Line – Quais foram as outras conse-
deve ser resolvido pelo Estado que tem um papel qüências dessas medidas?
chave na estruturação desse processo e, a curto José Dari Krein – Essas medidas flexibilizaram
prazo, voltar a inserir a bandeira da discussão da todo o processo de contratação e despedida dos
jornada de trabalho. É preciso também incentivar trabalhadores. Referem-se a contratos com prazos
a possibilidade de criação de microalternativas determinados, cooperativas de trabalho, contrato
econômicas na área da economia solidária, na parcial, suspensão do contrato, denúncia da con-
perspectiva de ocupar as pessoas em uma outra venção que introduz mecanismos contra a dispen-
lógica econômica, que não seja pura e simples- sa motivada. No caso, a empresa não tem que jus-
mente a lógica do mercado, mas que seja baseada tificar as demissões, para o que várias medidas fo-
na relação de fraternidade. Tudo isso tem que ser ram tomadas, precarizando o mercado de traba-
articulado numa perspectiva mais geral e reorien- lho e não gerando novos postos. Além disso, tam-
tar a economia e as políticas sociais e pensar bém cresceu muito o trabalho de estagiário e o
numa forma de reestrututar o mesmo projeto para contrato de pessoa jurídica, especialmente para as
o País. remunerações mais altas, no interior das empre-
sas. Então tivemos um segundo bloco de intensas
IHU On-Line – Como o senhor avalia os mo- mudanças trabalhistas na área da contratação e
vimentos em direção à reforma sindical? despedidas dos trabalhadores. Depois tivemos um
José Dari Krein – O debate da reforma sindical terceiro bloco de medidas em relação ao tempo de
e trabalhista está na agenda da sociedade brasilei- trabalho. Especialmente duas se destacam: o ban-
ra pelo menos desde o final dos anos 1970, com a co de horas, com cuja adoção a compensação da
emergência de um novo sindicalismo. Na década jornada não se dá mais semanalmente, mas anual-
de 1980, a tônica do debate era dada pelo novo mente; além disso, tivemos a permissão dos traba-
sindicalismo ou pelas forças progressistas e ela ca- lhos aos domingos no comércio varejista, em ge-
minhou no sentido de democratizar as relações no ral. Por último, tivemos medidas vinculadas a for-
trabalho e ampliar o sistema de proteção social. O mas de soluções nos conflitos no trabalho, espe-
resultado desse debate está impresso na Constitui- cialmente com a introdução das chamadas comis-
ção de 1988 e também na ampliação do grau de sões de conciliação prévia. Agora os atores sociais
regulação via convenções coletivas de trabalho. podem resolver passivos trabalhistas passados de
Na década de 1990, ocorre uma inflexão deste forma direta. São adotadas soluções extrajudiciais
debate. Após 1994, prevalece a proposição de privadas para as soluções dos conflitos.
uma desregulamentação do direito trabalhista e
de flexibilização das relações no trabalho. Nessa IHU On-Line – E o ponto relativo à prevalên-
década, foram tomadas inúmeras medidas, alte- cia do negociado sobre o legislado, como
rando elementos centrais das relações de empre- está sendo tratado?
go como a remuneração do trabalho, pela intro- José Dari Krein – Ocorreram pouquíssimas alte-
dução da remuneração maleável, com a introdu- rações no campo sindical do direito coletivo. Mas
ção do programa de participação nos lucros. Tam- a reforma no campo trabalhista não se tornou
bém tivemos alterações nos critérios de reajustes completa, porque não foi aprovada, no final do
salariais, o fim da política salarial e, ao mesmo Governo do Fernando Henrique, uma proposição
tempo, a proibição de os sindicatos, nas conven- da prevalência do negociado sobre o legislado.
ções coletivas, incluírem cláusulas que garantis- Ela chegou a ser apreciada na Câmara de Deputa-

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dos. Ela foi aprovada depois de um impasse, mas mento básico, se construíram, no decorrer da his-
prosseguiu no Senado. Depois, com a posse de tória, especialmente a partir do século XIX, direi-
Lula, esta medida foi retirada, sob a justificativa tos no sentido de assegurar uma condição mais fa-
de que este tema seria objeto de depreciação no vorável nas relações de trabalho. O elo mais frágil
Fórum do Trabalho. Podemos ver que, na década desta condição é o trabalhador, logo, a democra-
de 1990, efetivamente, aconteceu uma reforma cia pressupõe que os trabalhadores tenham algu-
trabalhista, que estaria completa, se tivesse sido mas garantias, como a de se organizarem coletiva-
aprovada a prevalência do negociado sobre o le- mente e de se protegerem contra o despotismo do
gislado. A questão central em disputa é se avança- empregador. Nesse sentido, no Brasil, ainda há
mos na perspectiva de ter um modelo de relações espaço para avançarmos em regulamentações
de trabalho em que o negociado prevalece sobre que dêem maior poder para uma organização sin-
o legislado ou se teremos um modelo de relações dical e garanta um mercado de trabalho mais
de trabalho que fortaleça o poder sindical capaz civilizado.
de poder intervir no mercado de trabalho para di-
minuir as desigualdades de rendimento e possa IHU On-Line – As entidades dos trabalhado-
ser um elemento importante na luta por uma dis- res têm uma proposta única?
tribuição de renda mais justa. Na minha opinião, José Dari Krein – A situação está complicada. O
esses são os dois projetos que estão em disputa na primeiro debate diz respeito ao encaminhamento
reforma sindical trabalhista. de uma reforma sindical, uma reforma trabalhista
prioritariamente, e ocorreu no Fórum Nacional do
IHU On-Line – Como o sistema sindical Trabalho, que aglutina representações dos empre-
pode ser fortalecido? Mantê-lo como está? gadores, dos trabalhadores e do Governo. Foi pau-
José Dari Krein – Não. Eu acho que o nosso sis- tado pelas entidades trabalhadoras que participa-
tema de organização sindical é extremamente po- vam do Fórum, a prioridade era encaminhar a re-
larizado, nós temos, no País, hoje, 18 mil sindica- forma sindical para depois pensar na reforma tra-
tos. Grande parte deles não cumpre nenhuma balhista, exatamente porque se queriam garantir
função social relevante para a sociedade brasilei- mecanismos de fortalecimento da organização
ra, para a classe trabalhadora, porque a natureza sindical e do processo de negociação coletiva.
do sindicato, a sua força, está exatamente na ca- Quando se fala em reforma sindical, se fala dos
pacidade de mobilização e união de um contin- aspectos vinculados à organização fiscal do direito
gente significativo de trabalhadores. Isso possibili- coletivo, da forma como o sindicato possa estrutu-
ta ao sindicato ter força para poder defender os in- rar-se para o processo de negociação coletiva, o
teresses e ampliar as reivindicações e a luta dos direito de greve, a forma de solução dos conflitos
trabalhadores. Hoje todo o poder na organização coletivos do trabalho. Então a opção foi a de dar
sindical brasileira está centrado nos sindicatos. É prioridade à reforma sindical, e o Fórum Nacional
importante que haja estruturas mais amplas, com do Trabalho avançou na perspectiva da elabora-
mais poder e capacidade de organização dos tra- ção de uma proposta de emenda constitucional e
balhadores, assim como é importante ampliar um de um projeto de lei para alterar a organização
processo de contratação coletiva, ampliar o con- sindical brasileira e a negociação coletiva, as for-
ceito e a noção da greve na sociedade brasileira, mas de solucionar os conflitos. Esta proposta está
ampliar a possibilidade de os sindicatos se organi- marcada também por profundas divergências
zarem no interior das empresas, o que também é existentes não só entre as entidades envolvidas di-
proibido. Há coisas que são fundamentais e deve- retamente como também na sociedade. Em pri-
riam avançar para se ter um sistema mais demo- meiro lugar, há o interesse de uma parte significa-
crático em relação ao trabalho, porque, na socie- tiva das pessoas que estão na estrutura sindical
dade capitalista, a relação capital-trabalho é mar- oficial de não querer fazer nenhuma alteração.
cada pela assimetria. Com base nesse entendi- Em segundo lugar, essa parte que não quer mudar

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nada, envolve tanto os sindicatos dos trabalhado- projeto, que as entidades dos trabalhadores pos-
res como os de empregadores. Alguns desse cam- sam representar, junto à Justiça do Trabalho, de-
po têm atuado de forma articulada para inviabili- mandas trabalhistas em nome dos seus representa-
zar uma reforma sindical. dos. Eles acham que isso aumenta o poder do sin-
dicato. Em terceiro lugar, eles são contra o que é
IHU On-Line – Mas o que une estes dois pó- classificado como atitudes anti-sindicais, o uso da
los, que interesses são esses? coerção econômica para impedir a organização
José Dari Krein – A manutenção da estrutura sindical, para tentar impedir greves. Em quarto lu-
oficial atual. As manifestações mais presentes dos gar, eles são contra o aumento do número de diri-
empresários, apesar de terem subscrito aquela gentes sindicais com estabilidade no emprego. Na
proposta enviada ao Congresso Nacional, são avaliação deles, estes aspectos negativos se sobre-
contra a reforma, por duas razões básicas. Em pri- põem aos aspectos positivos na reorganização no
meiro lugar, porque elas vão afetar a sua estrutura modelo de organizações sindicais brasileiras.
de representação e as fontes de sustentação das
suas entidades de classe, as confederações empre- IHU On-Line – E quais são as divergências
sariais. Eles também têm medo de perder o con- pelo lado dos trabalhadores?
trole sobre as suas entidades e de perder a fonte José Dari Krein – Elas também são muito profun-
de sustentação delas. Desejam manter a estrutura das. Por um lado, parte deles não quer alteração ne-
de poder já existente, nas entidades já existentes. nhuma no sistema vigente, não quer acabar com a
Em segundo lugar, a oposição empresarial se dá unicidade sindical, não quer acabar com imposto
por duas outras razões. Os empresários dizem que sindical, não quer acabar com o sistema confederati-
não é prioritário fazer uma reforma na estrutura de vo existente. A segunda questão, causadora de mui-
organização das corporações para o setor empresa- tas divergências, é que, no modelo sindical proposto
rial sem uma reforma trabalhista. Para eles, a refor- as centrais sindicais, há uma centralidade maior.
ma sindical só tem sentido, se vier de forma conco- Hoje toda a centralidade está no sindicato de base, e
mitante com a reforma trabalhista. Isso lhes interes- as centrais sindicais vão ser fortalecidas nesse novo
sa, porque eles querem, via reforma trabalhista, re- modelo sindical. Inclusive poderão estabelecer ne-
duzir os custos do trabalho e aumentar o poder de gociações coletivas, terão um poder maior de enca-
determinar as condições de uso e remuneração do minhar as lutas dos trabalhadores. O financiamento
trabalho no interior das empresas. Outro ponto é delas vem diretamente para as centrais sindicais,
que, na avaliação dos empresários, essa reforma, não dependendo mais do repasse dos sindicatos de
apesar de contemplar interesses deles, eles acham base, o que fortalecerá as centrais. Um terceiro pon-
que, em alguns aspectos, fortalece o poder dos sin- to polêmico refere-se ao fato de que o projeto, na
dicatos. Na expressão mais clara do Gerdau15, ele avaliação de alguns, ao não assegurar a norma mais
diz o seguinte: “Não nos interessa fortalecer o po- favorável de forma explícita, pode abrir espaço para
der sindical, se a gente não tem nada em troca do uma flexibilização do Direito.
ponto de vista da reforma trabalhista.”
IHU On-Line – A flexibilização é temida por
IHU On-Line – Quais são as questões que uma parte dos trabalhadores?
preocupam mais os empresários? José Dari Krein – Parte do movimento dos traba-
José Dari Krein – Eles não admitem, e isso lhadores acredita que esse projeto prepara o cami-
consta no projeto, que haja a possibilidade de or- nho para o processo de flexibilização do Direito,
ganização sindical dos trabalhadores no local de essa é outra divergência existente. Há outras diver-
trabalho. Não admitem, como também está no gências mais pontuais, como em relação à negocia-

15 Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Grupo Gerdau, que controla siderúrgicas em vários países. (Nota da IHU On-Line)

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ção coletiva, a possibilidade de entidades nacionais formas, porque os trabalhadores estão fra-
estabelecerem cláusulas que não possam ser altera- gilizados, e reclama prioridade para o deba-
das nas instâncias inferiores de negociação, a pos- te de um projeto econômico. Qual é a sua
sibilidade de substituição de grevista, o fim do po- opinião sobre isso?
der normativo da justiça do trabalho, a possibilida- José Dari Krein – Sem dúvida nenhuma, a re-
de de julgar os conflitos trabalhistas existentes em forma sindical faria mais sentido se estivesse inclu-
uma determinada categoria com base em hábitos ída em uma situação mais ampla de encaminha-
privados ou públicos, se for objeto de vontade co- mento das questões centrais existentes na socie-
mum entre as partes. Há uma série de medidas so- dade brasileira. A realidade sindical depende do
bre a organização local de trabalho, como a sua fi- contexto econômico, político que vai se encami-
nalidade, por exemplo. Abre-se espaço para a solu- nhar para o País, e não simplesmente da mudança
ção de conflitos no interior da empresa, o que au- da norma legal do ponto de vista da organização
menta o poder de pressão nela. Há vários outros sindical. A crise do sindicalismo não está vincula-
pontos que preocupam. da, pura e simplesmente, aos problemas de ordem
legal existentes, ela é mais profunda, está vincula-
IHU On-Line – Considerando esse cenário da à dinâmica do mercado do trabalho, às trans-
complexo e contraditório, este é o momen- formações que estão ocorrendo no trabalho. Há
to adequado para encaminhar as reformas? uma questão mais estrutural que está em jogo e
José Dari Krein – Em primeiro lugar, na reforma precisa ser enfrentada também. Quanto ao con-
sindical, temos dois grandes blocos. Um bloco que texto propriamente dito, é uma questão difícil de
não a deseja, argumentando que não é o momen- avaliar, se vamos aguardar outro contexto. Nos
to, ou porque é contra a lógica da reforma, ou por- últimos tempos, todos os indicadores dos movi-
que quer manter a estrutura como está. Outro blo- mentos sindicais mostram um certo refluxo do
co faz críticas pontuais ao projeto de lei encaminha- movimento social organizado como força social
do, mas avalia que é melhor realizar a reforma do na sociedade brasileira.
que deixar tudo como está, que é necessário dar
uma mexida no sindicalismo, que precisa adquirir IHU On-Line - Mas essa tendência é mundial?
maior representatividade. Mas isso se refere à refor- José Dari Krein – Tem um componente mundial,
ma sindical. As entidades dos trabalhadores não mas tem exceções também. É um componente
têm, em absoluto, interesse no encaminhamento muito forte na Europa, na América Latina, na
das reformas trabalhistas do cenário atual. A maio- América do Norte, mas não dá para dizer que é
ria das entidades trabalhadoras continua susten- mundial. A Coréia, por exemplo, tem um movi-
tando que permanece em vigor o patamar do Dire- mento sindical muito ativo nos últimos anos, de
ito constante na legislação trabalhista brasileira e ampliação de conquistas. Claro que há uma ten-
na Constituição Federal. Por outro lado, com a dência mais estruturante, mais geral, que deve ser
possibilidade de avanço na conquista de novos di- considerada. Esse é um lado da moeda. O outro
reitos, por parte dos trabalhadores, o setor empre- lado está representado pela pergunta: qual é a
sarial não quer fazer a reforma sindical, quer só a possibilidade de realizar uma reforma no contexto
trabalhista. Então, a conveniência ou não de fazer brasileiro atual, político e econômico, indepen-
as reformas depende da opinião de cada um dos dente do chamado poder de pressão das partes? E
atores, da perspectiva de interesses defendidos. aí, considerando a eleição do Severino16, a fragili-
zação da base de sustentação do governo no Con-
IHU On-Line – Há um discurso que conside- gresso Nacional. A possibilidade da reforma se re-
ra o contexto atual inadequado para as re- duz neste quadro, que é complicado. Eu tenho dú-

16 Severino Cavalcanti, deputado do PP pernambucano, eleito presidente da Câmara dos Deputados em 15-02-2005. Presidirá
a Câmara no biênio 2005-2006 (Nota da IHU On-Line).

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vidas se a reforma andará, mas é claro que isso é IHU On-Line – Em última instância, é preci-
dado pela dinâmica política e social. so primeiramente discutir um projeto de de-
senvolvimento para o País?
IHU On-Line – Em que medida a reforma José Dari Krein – Sem dúvida nenhuma, eu
sindical é necessária, considerando o cená- acho fundamental a reforma sindical, mas tam-
rio atual? bém acho fundamental ela estar vinculada à dis-
José Dari Krein – A questão que está em jogo é cussão de um projeto para o desenvolvimento so-
que devemos lutar para democratizar as relações cioeconômico. E ele passa necessariamente pela
de trabalho e ampliar o sistema de proteção social mudança da política econômica atual, pela mu-
existente no País. Nesse sentindo, uma reforma dança da lógica com que está sendo enfrentado o
trabalhista, que venha a reduzir direitos, seria um desenvolvimento pelo Governo atual. A reforma
desastre do ponto de vista nacional. A reforma tem que estar inserida em uma lógica geral de re-
sindical é necessária, sim, mas na perspectiva de encaminhamento da sociedade brasileira e o re-
ampliar a democratização e fortalecer o ator sindi- encaminhamento da economia social tem que fa-
cal e a negociação coletiva sem alterar o patamar zer parte disso.
dos direitos existentes. A lógica dos discursos con-
servadores é a de responsabilizar a legislação pela IHU On-Line – O senhor disse que, na Euro-
informalidade, pelo desemprego; a lógica do nos- pa, as empresas não têm a liberdade de de-
so discurso é dizer que a informalidade e o desem- mitir como as daqui. Poderia exemplificar?
prego não estão vinculados ao patamar de direitos José Dari Krein – A empresa tem regras para
existentes. Pelo contrário, este patamar apresenta demitir, e o mínimo que se exige é que a empresa
um grau de flexibilidade relativa em aspectos cen- explique a demissão. Em alguns países, ela só
trais, como na relação de emprego. As empresas pode demitir depois de ter informado ao órgão
têm liberdade de demitir, isso é algo inadmissível público, e o órgão público ter concordado com
diante do que existe na Europa. Além disso, depois este processo de demissão. A demissão pode ser
do fim da política salarial, os salários variam con- por ordem tecnológica, por crise econômica, por
forme o nível da atividade econômica. O próprio disciplina, mas há possibilidade de o trabalhador
tempo de trabalho apresenta um grau de flexibili- questionar a opção da demissão feita pela empre-
dade com a possibilidade de utilização do banco sa. Isso lhe dá maior estabilidade no emprego. A
de horas e do uso indiscriminado das horas extras. empresa não pode demitir a seu bel-prazer como
Então já temos um grau de flexibilidade. Por fim, a ocorre aqui.
questão do emprego está muito mais vinculada à
dinâmica da economia do que ao patamar de di- IHU On-Line – No Brasil, essa liberdade em-
reitos. As empresas jamais irão contratar, mesmo presarial surge com o FGTS? Pode-se dizer
que o trabalho custe 10% mais barato, se elas não que ela é incomum?
tiverem uma demanda para vender o seu produ- José Dari Krein – Exatamente. No Brasil, te-
to. Então o emprego e a ocupação dependem mui- mos, na rescisão, a possibilidade de demissão
to mais das opções de políticas econômicas do por justa causa. Não existe coisa mais flexível do
que das opções políticas mais gerais, como, por que isso. Essa situação não ocorre nos chamados
exemplo, repartir os ganhos de produtividade, fa- países desenvolvidos, mas não é uma coisa geral.
zer com que o trabalho útil seja redistribuído na Na Ásia e na América, há outra lógica. Mas o que
sociedade, via redução da jornada de trabalho, re- se pode dizer é o seguinte: há uma recomenda-
partir todo o avanço tecnológico produtivo fantás- ção da Organização Mundial do Trabalho (OIT),
tico ocorrido nos últimos tempos. Até porque as por meio da Convenção 158, orientando os paí-
experiências históricas recentes de países que ses membros a introduzirem mecanismos que ini-
adotaram essa postura, indicam por estudos que bam a dispensa motivada, porém o Brasil não
os resultados não foram os esperados. aceita isso.

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“O debate sobre as reformas deve coincidir com
um período de desenvolvimento econômico”

Entrevista com Sidney Pascoutto

Sidney Pascoutto da Rocha preside o Conse- Sidney Pascoutto – A nossa pauta de discus-
lho Federal de Economia (Cofecon). Entre outras sões é enorme, a questão econômica, pura e sim-
atividades, o órgão sistematiza a atuação dos Con- plesmente, nos absorve demais. Há problemas sé-
selhos Regionais de Economia e fiscaliza o exercí- rios na gestão da economia. Além das questões in-
cio da profissão. Além disso, o Cofecon acompa- ternas, temos um manancial de outros assuntos,
nha e debate as questões sociais e econômicas que como a questão tributária, por exemplo. Nós esta-
afetam o País. É pós-graduado em Finanças Exe- mos envolvidos nesse debate. Temos questões
cutivas pela Fundação Getúlio Vargas, mestre em mais voltadas para a política econômica que nos
Planejamento Energético pela UFRJ, onde tam- absorvem muito.
bém se graduou em Economia. Foi assessor das
Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos IHU On-Line – O debate sobre a reforma tra-
Bispos do Brasil no Rio de Janeiro. Sidney Pas- balhista deveria coincidir com um período
coutto foi entrevistado por telefone, ressaltando de desenvolvimento econômico?
que falava “em nome próprio”, já que o Conselho Sidney Pascoutto – Não. O que digo é o seguin-
não tem posição oficial sobre as reformas, por te: toda vez que se fazem reformas que mexem
considerar que o debate sobre elas deve ser prece- muito de perto com os interesses da maioria dos
dido por outras discussões como a construção de trabalhadores e numa conjuntura de desemprego
um projeto de desenvolvimento nacional. e de arrocho salarial, com o movimento sindical
numa situação de defensiva, os trabalhadores per-
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o an- dem. Se pensarmos em ciclos, podemos dizer que
damento das reformas trabalhista e sindical? estamos em uma fase de inflexão dos ciclos: Quan-
Sidney Pascoutto – O Conselho não tem uma tas greves ocorreram recentemente? Quantas es-
posição oficial sobre esse tema. Falo exclusiva- tão ocorrendo? Quantas mobilizações temos hoje
mente em meu nome. Esse tipo de reforma deve na sociedade?
ser feito no momento em que a economia está em
crescimento, no momento em que os atores estão IHU On-Line – Mas a atual fase do movi-
com força para fazer essa discussão. Toda a vez mento sindical não reflete uma nova confi-
que esse debate é colocado num cenário em que guração da economia, que conduz a um
os trabalhadores estão em uma situação de defen- novo perfil das organizações sindicais?
siva, na verdade o que se está querendo fazer é Sidney Pascoutto – Essa é a concepção de al-
atropelar. O que se quer fazer é aprovar coisas que guns, não é? Os patronos dessa política atrelam a
são até estranhas aos interesses dos trabalhado- necessidade de retomada do crescimento da eco-
res. Essa é a minha visão. nomia brasileira à necessidade da reforma traba-
lhista e sindical. Eu não partilho dessa idéia. Acho
IHU On-Line – Por que o Conselho não tem que o problema da reforma da economia brasilei-
discutido esse assunto? ra passa fundamentalmente pela volta do Estado

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a desempenhar um papel mais dinâmico nessa essa cantilena e, como a minha geração, estou as-
perspectiva. O Estado deve voltar a assumir o pa- sistindo à perda e à corrosão dos nossos direitos.
pel de fazer inversões públicas de uma forma mais
efetiva. Acho que temos que ir abandonando a IHU On-Line – Mas a reforma sindical, por
idéia da construção de superávit primário. Não exemplo, não é, de certa forma, uma exigên-
podemos continuar achando que é possível reto- cia dos novos tempos?
mar o desenvolvimento nacional com o superávit Sidney Pascoutto – É verdade. Mas quando
primário do tamanho que ele está. Atrelar o de- essa discussão é feita com as organizações sindi-
senvolvimento à reforma é transferir para os tra- cais em uma situação favorável, tem-se um deter-
balhadores uma responsabilidade que não é de- minado perfil de reforma. Quando essas reformas
les, não é nossa. “A vaca está indo para o brejo”, a são encaminhadas num cenário onde os trabalha-
cada dia ela dá mais um passo em direção ao bre- dores estão numa situação de defensiva, com cer-
jo, e, a cada momento, se aponta um agente teza, disso resultará um outro perfil de reforma.
como responsável por isso. Não sejamos ingênuos nessa discussão.

IHU On-Line – Qual seria o momento ideal


IHU On-Line – O senhor pode exemplificar?
para as reformas? O que estamos, de fato
Sidney Pascoutto – No início dos anos 1990,
esperando?
era fundamental fazer as privatizações, pois, com
Sidney Pascoutto – Estamos esperando que a
elas, viria o dinheiro internacional e ocorreriam
economia volte a crescer. O melhor momento se-
inversões nos setores de infra-estrutura... e o que
ria quando isso ocorresse, quando os trabalhado-
aconteceu? Aponte-me um setor onde efetiva-
res voltassem a ter condições de se mobilizarem e
mente entrou dinheiro do capital internacional via
discutirem, sem estarem desesperados em preser-
inversões, um setor que tenha sido alavancado.
var os seus postos de trabalho. Na situação em
Pelo contrário, o que tivemos foi uma explosão ta-
que nos encontramos, se o trabalhador for para a
rifária. Hoje os grandes problemas da inflação
rua fazer qualquer manifestação, se ele participar
brasileira são as tarifas públicas, as tarifas adminis-
de qualquer debate, o patrão manda-o embora,
tradas. Depois da fase das intervenções tivemos a
porque tem centenas de milhares de desemprega-
fase, no começo do governo Lula, que atribuiu à
dos querendo o lugar dele por um salário menor.
Previdência a responsabilidade pelo atraso do de-
Logo, essa reforma não é prioridade, não dá as
senvolvimento econômico e social. No último do-
respostas ansiadas pelos trabalhadores. E, me pa-
mingo, o jornal Folha de S. Paulo revelou que não
rece, uma reforma trabalhista e sindical diz respei-
há déficit na Previdência, o que existe é irrespon-
to aos interesses dos trabalhadores. Não se pode
sabilidade e, no caso de alguns dirigentes, falta de
fazer esse debate, quando esses atores estão
honestidade intelectual. Basta examinar as rubri-
numa posição de fragilidade.
cas definidas pela Constituição de 1988 como
aquelas que definem os recursos que garantem a IHU On-Line – As reformas devem ser dis-
solidez da Previdência: se elas fossem cumpridas, cutidas somente depois dessa etapa?
não teríamos déficit. Quer dizer: a cada momento
Sidney Pascoutto – Claro. Do contrário, é como
se escolhe um agente responsável pelas dificulda-
se você me deixasse três semanas com fome e de-
des econômicas e sociais, e, com isso, vai sendo
pois me mandasse para um ringue lutar box... e eu
empurrado um rol de medidas que tem tudo a ver
vou fazer o que, nesse ringue? Vou apanhar mui-
com o ideário do pensamento único17 e que não
to, claro. Essa discussão é rica e interessante, mas
tem dado respostas. Estou, há vinte anos, ouvindo
inoportuna. Fazê-la agora seria oportunismo.

17 Pensamento único: expressão formulada na França para descrever o pensamento neoliberal como único e exclusivo, fora do
qual não há salvação, segundo o economista Riccardo Petrella, nos seus artigos publicados no jornal Le Monde
Diplomatique. (Nota da IHU On-Line)

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“É necessário desvincular emprego e renda”

Entrevista com Josué Pereira da Silva.

Josué Pereira da Silva, doutor em Sociologia IHU On-Line – Quais as alternativas que o se-
pela New School for Social Research, NY, Estados nhor vê em relação ao crescente desemprego?
Unidos, é professor de Sociologia na IFCH, Uni- Josué Pereira da Silva – É necessário definir o
camp. É autor de Três discursos, uma sentença: que é desemprego. Muitas vezes, se associa à au-
tempo e trabalho em São Paulo (1906-1932). sência de crescimento econômico. Não é tão sim-
São Paulo: Annablume; Fapesp, 1996 e André ples. O desemprego cíclico, de fato, está relaciona-
Gorz: trabalho e política. São Paulo: Annablu- do com a oscilação da economia. Mas há um de-
me: Fapesp, 2002. 228 p.. semprego mais abrangente, que é estrutural e está
associado ao que o mercado de trabalho deman-
IHU On-Line – Quais as chaves de leitura da: um determinado tipo de mão-de-obra com
mais significativas na obra de André Gorz qualificação específica, e a população não tem
que ajudariam para uma compreensão da essa qualificação. Uma reciclagem que qualifique
realidade do trabalho atual no mundo? a mão-de-obra poderia ajudar um pouco a resol-
Josué Pereira da Silva – A definição do traba- ver o desemprego estrutural, pelo menos para de-
lho com a distinção entre o conceito antropológi- terminadas funções. Há também o desemprego
co, como atividade humana e o sentido dado pela tecnológico, para o qual pouca gente chama a
sociedade capitalista do mundo moderno ociden- atenção. As transformações tecnológicas das últi-
tal. Ele define trabalho de forma muito clara num mas décadas têm um objetivo claro de poupar
livro, em 1988, que está sendo publicado agora emprego. É uma lógica antiga dos anos1980-90,
no Brasil, no segundo semestre, Metamorfose na Europa e no Brasil dos anos 1990. Por exem-
do trabalho. O trabalho industrial típico do capi- plo, o setor bancário do Brasil, há 15 anos, aproxi-
talismo, da fábrica é o exemplar mais acabado do madamente, empregava, mais ou menos, o dobro
tipo moderno que tinha o tempo como critério do que emprega agora e, no entanto, o crescimen-
para medir a produtividade. Esse trabalho está to econômico, no sentido de faturamento do se-
passando por uma crise. A sua análise é funda- tor, foi dos maiores, mas é um crescimento que
mentada numa crítica da racionalidade econômi- poupa mão-de-obra. Uma boa avaliação de que
ca. Gorz faz uma crítica do utilitarismo da lógica tipo de desemprego nós temos, facilitaria a formu-
de mercado e distingue uma sociedade de merca- lação de políticas. Setores como construção civil e
do, fundamentalista, neoliberal de uma sociedade reforma agrária poderiam abrir novos empregos.
com mercado. Um outro aspecto muito valioso é A educação, no sentido de universalizar a educa-
sua sensibilidade para o problema ecológico. A ção básica no Brasil, poderia empregar jovens for-
sociedade econômica levada a suas últimas con- mados ou estudantes universitários como educa-
seqüências provoca uma destruição de determi- dores, como, de certa forma, foi feito na época da
nadas dimensões do ambiente, eliminando recur- ditadura, com o Movimento Mobral, mas, é claro,
sos esgotáveis que não podem ser renovados em uma coisa menos dirigida ideologicamente. Uma
pouco tempo. É necessária uma perspectiva social iniciativa nesse sentido poderia empregar muita
mais ecológica gente e melhorar a qualificação de mão-de-obra,

67
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

seria uma saída interessante. Ao mesmo tempo, de posição. Essa proposta de renda básica está,
isso resolveria o problema de educação e do tra- em Gorz, muito próxima e articulada com a idéia
balho dos jovens. Uma das propostas de André de redução de tempo de trabalho e a idéia de fa-
Gorz é a diminuição do tempo de trabalho junto vorecer atividades que tenham valor social, mas
com uma política macroeconômica, voltada para não tenham valor de mercado. Seriam três pro-
empregar pessoas e aumentar a oferta de traba- postas: o estabelecimento de uma renda básica,
lho. Isso exige um planejamento bem mais sofisti- uma política de redução do tempo de trabalho e o
cado e não está ao alcance em curto prazo. incentivo a atividades de valor social, artísticas, ar-
tesanais, do terceiro setor, etc.
IHU On-Line – Como imaginar uma socieda-
de em que trabalho e renda estejam desvin- IHU On-Line – Em relação a reivindicações
culados? tão importantes no mundo do trabalho, que
Josué Pereira da Silva – O próprio Gorz discute papel estão desenvolvendo os sindicatos?
isso e teve até uma mudança de posição recente Josué Pereira da Silva – É uma situação difícil,
desde o livro Metamorfose do trabalho para o porque a crise do sindicalismo está associada com
penúltimo livro dele que se chama Miséria do essa diminuição do trabalho. É uma situação pa-
Presente. Riqueza do Possível. Paris: Galilée, radoxal, porque, para que o sindicato se mante-
1997. Embora ele faça uma crítica da chamada nha forte, é necessário que haja não só um nível
centralidade do trabalho contemporânea, ele de emprego alto, mas que as pessoas tenham sua
achava que o direito ao trabalho era político, que vida estruturada pela atividade do trabalho, ou
as pessoas que quisessem teriam o direito de con- seja, trabalhem em tempo integral. Se o tempo de
tribuir com a produção social. Mas, recentemente, trabalho se reduz drasticamente, as pessoas não
fundamentado nas transformações tecnológicas e podem ser mais definidas apenas como trabalha-
na idéia do conhecimento coletivo, inspirado nos doras. Aí o sindicato não teria nenhum papel fun-
escritos de Marx, compreende que a produção so- damental na estruturação da vida dessas pessoas.
cial não pode ser localizada num setor específico As concepções tradicionais de sindicalismo têm
da economia ou da sociedade, mas que a inteli- medo de perder essa força cultural ideológica que
gência é a força produtiva principal da sociedade, o trabalho tem para a sociedade. Foi sobre essa
ou seja, toda a capacidade de conhecimento acu- valorização do trabalho que o sindicato se estrutu-
mulado na sociedade. Isso tudo levou André Gorz rou, coincidindo com a valorização que o capita-
a rever a possibilidade do vínculo entre o trabalho lismo deu ao trabalho. O capitalismo, com a inten-
exercido e a renda recebida. Então, ele se aproxi- ção de conseguir trabalho servente e o sindicato
mou de idéias como a do economista e filósofo com a convicção de que o trabalho dá dignidade às
Phillipe Van Parijs, autor de teses sobre renda bá- pessoas. É muito interessante, mas é um paradoxo.
sica e alocação universal. Aqui no Brasil, o Sena- Uma atividade que é considerada uma das princi-
dor Eduardo Suplicy no livro Renda de Cidada- pais na sociedade: trabalhar é uma honra, um di-
nia: a saída é pela porta. São Paulo: Cortez : reito, etc, mas, ao mesmo tempo, como o capitalis-
Fundação Perseu Abramo, 2002, também come- mo não consegue oferecer trabalho, quem acaba
ça a levantar essa posição. Nas condições atuais pagando a conta é a vítima do desemprego, por-
do mundo, não dá para poder imaginar o direito que ela se sente culpada pelo próprio fracasso. Os
de cidadania ter o trabalho como contrapartida. A sindicatos podem também incorporar setores sociais
sociedade está se mostrando incapaz de oferecer que não estão, necessariamente, no mercado de
trabalho para as pessoas, o direito à vida é anterior. trabalho, mas, para isso, precisaria uma mudança
Tanto Gorz quanto Suplicy tiveram uma mudança na concepção dos sindicatos.

68
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Alguns estudiosos dizem que até em negociação de tirar os feriados remunera-
tirar o peso dos impostos que incidem sobre dos, ou não pagar o trabalho realizado aos sába-
os salários, pode melhorar o nível de empre- dos e domingos, e isso são conquistas que foram
go. Como o senhor veria essa reforma? feitas ao longo da história. Essas modificações se-
Josué Pereira da Silva – Pode acontecer uma riam um regresso, uma manifestação de capitalis-
pequena melhora, mas uma melhora com precari- mo selvagem. E ainda assim, não seria garantia de
zação das condições de trabalho, ela pode ter um que o emprego cresça, porque o objetivo das em-
efeito pior do que existe agora. Criar trabalhos presas não é criar emprego, e sim lucro.
precários, mal remunerados e sem garantias, não
é solução. Os Estados Unidos criaram o maior nú- IHU On-Line – Quais as conseqüências que a
mero de empregos nas últimas décadas e dizem Alca poderia trazer ao mundo do trabalho?
que têm o índice de desemprego mais baixo do Josué Pereira da Silva – Eu não sou um estu-
mundo. O tipo de emprego que os americanos dioso de política internacional, mas estou muito
criaram lá, não é o tipo tradicional com todos os preocupado com a política dominante dos Esta-
direitos, são empregos parciais, sem garantias tra- dos Unidos. A entrada do Brasil e da América La-
balhistas. Entrar apenas parcialmente no mercado tina na Alca dificilmente seria com simetria de po-
de trabalho, sem os direitos completos, não resol- deres ou de direitos. Eu seria mais favorável a
ve nada, é só precarização. Isso é o que eu acho uma discussão mais prolongada disso aí para, se
no caso de uma liberalização total das normas tra- for o caso, entrar de forma mais organizada e mais
balhistas. Tanto é que, nessas discussões, fala-se estruturada, em bloco, como o Mercosul.

69
A mulher no mundo do trabalho

Entrevista com Maria Cristina Bruschini

Maria Cristina Aranha Bruschini é pesquisa- do espaços no trabalho, mas ainda sofre bastante
dora da Fundação Carlos Chagas, de São Paulo, discriminação.
sobre a questão da mulher no mercado de traba-
lho brasileiro. Maria Cristina é mestre em Ciências IHU On-Line – A mulher está sendo tão atin-
Sociais e doutora em Sociologia pela Universida- gida quanto homem com o desemprego e a
de de São Paulo (USP), com tese intitulada Estru- precarização do trabalho?
tura familiar e vida cotidiana na cidade de São Pau- Cristina Bruschini – O desemprego, de manei-
lo. É autora de oito livros, entre os quais citamos: ra geral, é mais intenso em determinados setores
Mulher e trabalho: uma avaliação da década que atingem mais homens que mulheres, como na
da mulher. São Paulo: Nobel; CECF, 1985; Mu- indústria, por exemplo. As mulheres estão mais
lher, Casa e Família: Cotidiano nas Cama- concentradas no setor dos serviços e bancário,
das Médias Paulistanas. São Paulo: Vértice; onde o desemprego não é tão intenso. Em relação
Fundação Carlos Chagas, 1990; Sexo e Juven- à precarização, 17% da força de trabalho feminina
tude: como discutir a sexualidade em casa e é de empregadas domésticas. Na categoria de em-
na escola. São Paulo: Cortez., 2000. prego doméstico, 97% são mulheres. Essa é uma
atividade precária, porque os salários são baixos,
IHU On-Line – Em que tipo de trabalho as sem carteira assinada, com longas jornadas. O
mulheres sofrem mais discriminação hoje, contingente que trabalha nessas condições é de
no Brasil? 35%, mas não vem aumentando. Acho que o tra-
Cristina Bruschini – Trinta e seis por cento balho masculino está sendo mais precarizado. Vi-
das trabalhadoras se encontram em atividades vemos uma década muito ruim em termos de em-
precárias, sem carteira assinada, como o empre- prego, de renda do trabalhador, mas não da força
go doméstico, o trabalho não-remunerado, o de trabalho feminina em si.
trabalho domiciliar e outros tipos de trabalho in-
formal. Nos últimos anos, pela sua escolaridade, IHU On-Lin – Quais têm sido os maiores
a mulher vem conquistando funções melhores avanços das últimas décadas?
como as que exigem formação de nível médio Cristina Bruschini – As ocupações que exigem
ou superior. Mas existem algumas formas de dis- estudo qualificado, como medicina, arquitetura,
criminação às quais as mulheres estão sujeitas, direito, jornalismo, registraram um grande au-
como a desigualdade salarial, a dificuldade de mento da participação feminina. Vejo uma pers-
acesso a cargos de comando e o fato de ela ser pectiva positiva para as que estão nos campos
ainda responsável pela família, pelas crianças mais privilegiados. Mesmo executivas, em empre-
pequenas, pelos idosos e pelos doentes, que é sas, que é um estudo que estou fazendo agora, ob-
uma ocupação tradicional dentro da família e serva-se uma cifra mais significativa que a da dé-
está sendo muito difícil para ela partilhar com os cada de 1990. Basicamente, houve um ingresso
homens e os jovens. A mulher vem conquistan- maciço de mulheres nas universidades, inclusive

70
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

supera a dos homens atualmente. Ainda assim, mo cargo, e conseguir o equilíbrio entre família e
continua havendo desigualdade salarial. trabalho. No momento que consigamos uma or-
ganização familiar mais simétrica entre homens e
IHU On-Line – Por onde começa uma nova mulheres, onde se dividam mais as atividades do-
organização sexual do trabalho? mésticas e o cuidado dos filhos, ficará menos pe-
Cristina Bruschini – Deve ser em duas esferas. sado para todos.
Tem que haver algumas políticas da parte do Esta-
do e de parte das empresas, em seus programas IHU On-Line – Que políticas públicas estão
de responsabilidade social. Primeiro é preciso as- sendo encaminhadas nesse sentido?
sumir que essas desigualdades existem. Até muito Cristina Bruschini – Uma coisa interessante é
recentemente não se imaginava que existiam, que o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
porque a mulher não tinha ido, em massa, para o foi transformado numa secretaria especial de polí-
mercado de trabalho. Ao acontecer isso, as mu- ticas para as mulheres, diretamente relacionada à
lheres conquistaram posições melhores e começa- Presidência da República, o que dá um suporte
ram a pressionar. Essa pressão ainda deve ser res- maior às políticas das mulheres. O Governo fede-
pondida pelo estado, pelas empresas, pelos sindi- ral está muito atento à representação feminina em
catos, etc. É importante chegar a ter acesso a qual- todas as áreas. Agora, em relação a políticas volta-
quer ocupação, posição, trabalho em boas condi- das para o trabalho feminino e para uma organi-
ções, com salários iguais, quando se trata do mes- zação familiar mais simétrica entre homens e mu-
lheres não estou vendo muita coisa.

71
Unitrabalho: uma parceria entre intelectuais e trabalhadores

Entrevista com Dárnis Corbellini

Dárnis Corbellini é mestre em Sociologia apresentará especificamente esse tema no encon-


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul tro. Ela tem pesquisado e produzido muito sobre o
(UFRGS), graduado em Ciências Sociais pela Uni- tema da memória do trabalho no Brasil.
sinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia
Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), IHU On-Line – Qual a principal contribui-
de Viamão. Dárnis é coordenador do Núcleo Lo- ção que estes encontros trazem na reflexão
cal da Unitrabalho da Unisinos e professor no do mundo do trabalho?
Centro Universitário La Salle (Unilasalle). Dárnis Corbellini – A Unitrabalho realiza en-
contros locais, regionais e nacionais. Aqui reuni-
IHU On-Line – Como surgiu a idéia de reali- mos uma média de 70 pesquisadores. São espa-
zar os Encontros de Estudos sobre o Mundo ços para o encontro com as últimas pesquisas tan-
do Trabalho na Unisinos? to na Unisinos quanto na região dos três estados
Dárnis Corbellini – A Rede Interuniversitária de do sul. O intercâmbio de experiências e a comuni-
Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho (Unitraba- cação das pesquisas fazem com que percebamos
lho) foi fundada em 1995, em São Paulo, em uma os avanços e as novas tendências no mundo do
iniciativa conjunta dos reitores das universidades trabalho.
e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), ou
seja, intelectuais e trabalhadores reunidos, em IHU On-Line – Que importância tem para o
parceria, com o objetivo de resgatar a dívida anti- Instituto Humanitas Unisinos a realização
ga que as universidades tinham com os trabalha- deste encontro?
dores, qual seja a necessidade de uma reflexão e Dárnis Corbellini – Cada universidade tem seu
pesquisa mais sistemática sobre o mundo do tra- espaço para o Núcleo Local da Unitrabalho. Na
balho. Na Unisinos, o Núcleo Local da Unitrabalho Diretoria da Ação Social e Filantropia fazemos
iniciou suas atividades em 1998. Em 2000, organi- parte da Área Trabalho. Somos um grupo de cole-
zamos o I Encontro de Estudos sobre o Mundo do gas de vários centros que estudam e pesquisam
Trabalho. O objetivo dos encontros é reunir os pes- sobre o tema Trabalho. Convidamos, para o 1 º
quisadores da Universidade para refletir e debater Colóquio e o IV Encontro, pesquisadores de reno-
sobre temas e as pesquisas na área do mundo do me internacional que vão enriquecer, com uma vi-
trabalho. Convidamos colegas de outras institui- são atualizada mundial, nossas discussões na
ções para participarem de nossa iniciativa. Na oca- área, aqui na Unisinos.
sião, quem coordenava o Núcleo era a professora
Maria Clara Bueno Fischer, do PPG Educação. O IHU On-Line – Como surgiu essa idéia de
primeiro encontro teve como tema Trabalho. O se- parceria com a Cátedra Unesco para a reali-
gundo foi sobre Trabalho e educação. Já o terceiro zação do 1º Colóquio Internacional Traba-
foi sobre Trabalho e subjetividade e este quarto lho e Sociedade Solidária?
será sobre Trabalho e memória. A professora Maria Dárnis Corbellini – A Cátedra Unesco da Unisi-
Ciavatta, da Universidade Federal Fluminense, nos tem como tema principal Trabalho e Socieda-

72
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de Solidária. Na Unitrabalho Nacional temos um mento do Encontro de Estudos sobre o


GT sobre Economia Solidária. Na Ação Social te- Mundo do Trabalho?
mos a Área Trabalho. Outro projeto é a Incubado- Dárnis Corbellini – Eu digo, brincando, que so-
ra de Tecnologias Sociais para Empreendimentos mos o “primo pobre”, porque eles têm os recursos
Solidários. Como realizamos a cada dois anos o e nós não. Nós fomos à luta: nos encontros ante-
Encontro de Estudos sobre o Mundo do Trabalho, riores, conseguimos financiamento da Fapergs,
e a Cátedra Unesco deseja mostrar visibilidade, mas em 2003 não. Podemos correr o risco de o IV
surgiu a possibilidade de fazer o 1º Colóquio Inter- Encontro de Estudos sobre o Mundo do Trabalho
nacional e o IV Encontro de Estudos sobre o Mun- ficar em segundo plano. O Comitê da Cátedra da
do do Trabalho, em parceria. É nossa contribuição Unesco está constituído por seis PPGs: Ciências
interdisciplinar para chegar ao transdisciplinar. Sociais Aplicadas, Educação, Filosofia, História,
Saúde Coletiva e Direito, e o Núcleo Local da Uni-
IHU On-Line – O fato de fazer os dois even- trabalho é o único a participar como entidade.
tos juntos não pode trazer o risco de valori- Nós temos um bom grupo de pesquisadores que
zar o 1º Colóquio Internacional em detri- trabalham temas, como trabalho e educação ou
trabalho, economia solidária, cooperativismo e
associativismo.

73
“A Economia Solidária deve tencionar o Governo
a favor dos trabalhadores”

Entrevista com Dalila Pedrini

inteiro, formaram esse GT e, com a nossa base, fi-


Dalila Maria Pedrini é doutora e mestre em zemos duas grandes plenárias nacionais, uma em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católi- São Paulo, e a outra durante o III Fórum Social
ca de São Paulo – PUC-SP. Dalila é professora e Mundial. Em Brasília, aconteceu, nestes dias, a
pesquisadora aposentada da Fundação Universi- terceira plenária. Na primeira plenária, éramos
dade Regional de Blumenau – FURB e atualmente 400, 500 pessoas do Brasil. Fizemos uma carta ao
coordena a área Construção e Conquista da Governo Lula, com propostas concretas. Eles fica-
Democracia e de Políticas Públicas, da Cári- ram sensíveis, e o Governo de Transição recebeu
tas Brasileira, organismo da Conferência Nacional a nossa comissão e fez o lançamento da Secretaria
dos Bispos do Brasil (CNBB). Ela desenvolve um de Economia Solidária. A criação da Secretaria é
trabalho de interface com o Programa Economia uma ação do Governo, mas como resposta à or-
Solidária e Autogestão, um trabalho de coordena- ganização do Movimento da Economia Solidária
ção nacional, de mobilização da sociedade via no Brasil. A interlocução principal dessa Secreta-
braços regionais da Cáritas para conquistar políti- ria vai ser um fórum nacional de Economia Soli-
cas públicas. A professora teve participação em di- dária, criado durante a plenária em Brasília. Se-
versos livros publicados, como Incubadora de gundo Paul Singer, novo secretário da Secretaria
Empresas da Universidade Regional de Blume- de Economia Solidária do Ministério do Trabalho,
nau. In: Economia Solidária Um setor em esse fórum vai ser o interlocutor principal, não vai
desenvolvimento. Rio Claro: Prefeitura de Rio ser a OCB. Hoje já temos organizado no Brasil um
Claro; URB-AL, 2002; Associativismo Econômico: Fórum de Gestores em Economia Solidária. As
apenas uma resposta dos setores populares a crise prefeituras e os governos estaduais brasileiros que
do capital ou mais que isto? In: Novos Olhares trabalham com Economia Solidária já têm uma
sobre Blumenau. Blumenau: Edifurb Cultura articulação própria, que é esse Fórum. Eles tam-
em Movimento, 2000; Uma experiência que bém fazem parte do Movimento de Economia So-
aponta caminhos In: A Economia Solidária no lidária e serão os interlocutores da Secretaria.
Brasil, São Paulo: Contexto, 2000.

IHU On-Line – Como está a Economia Soli- IHU On-Line – Como o Movimento pode in-
dária no Brasil? fluenciar mais nas decisões do Governo em
Dalila Pedrini – Esse movimento teve seu mo- favor dos trabalhadores?
mento forte na criação do GT brasileiro, que é for- Dalila Pedrini – Este é um Governo de tensões.
mado por todas as entidades que atuam com Eco- Ele pretende fazer as coisas, mas é um Governo
nomia Solidária no Brasil, como a Cáritas, o Iba- tencionado por forças externas e internas. Forças
se, a Anteag, a Rede de Incubadoras, etc. Essas externas são os setores que, durante todos os sé-
grandes entidades nacionais, que atuam no Brasil culos, mantiveram os benefícios e querem conti-

74
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nuar mantendo-os, para que o Governo não con- que é possível continuar a luta dos trabalhadores
cretize o que ele se propôs. Internamente, o Go- via Economia Solidária. Eles não entendem que
verno também não é um bloco unitário. A contra- em todos os momentos que ela ressurgiu, fortale-
dição está presente. Nosso papel no Movimento ceu a luta dos trabalhadores, fortaleceu a constru-
de Economia Solidária é o de tencionar o Gover- ção de uma cidadania ampla. São setores que não
no a favor dos trabalhadores, na luta pela constru- concordam ideologicamente e não aceitam.
ção da cidadania. Diante dessa tensão do Gover-
no pelos dois lados, nós queremos nos organizar IHU On-Line – Quais seriam as principais li-
como movimento social que luta pelo direito ao mitações da Economia Solidária?
trabalho e à cidadania. Não queremos somente Dalila Pedrini – Um dos grandes desafios da
postos informais de trabalho, mas postos de traba- Economia Solidária é o seu isolamento e, em con-
lho com perspectiva de continuar a luta dos traba- trapartida, a sua possibilidade de estar em rede. O
lhadores. Economia Solidária não é só a geração contraponto ao isolamento é a Economia Solidá-
de postos de trabalho e a construção de autoges- ria estar com os movimentos sociais existentes no
tão. Ela quer ser uma continuidade da luta históri- Brasil hoje, como a luta pela moradia, pela terra, o
ca dos trabalhadores pelos seus direitos por vida movimento de mulheres, etc. A Economia Solidá-
digna e por um outro modelo de desenvolvimen- ria tem que se constituir como um movimento cor-
to. Nós entendemos essa contradição e queremos relato a esses movimentos, formando a sociedade
gestioná-la. Enquanto uns lutam para que não civil. Mesmo quando a Economia Solidária transi-
percam seus direitos, nós continuamos lutando ta no mercado, ela tem um transitar diferente do
para que a cidadania ativa se concretize. mercado neoliberal. Ela busca outras formas, ape-
sar de ter produção, comércio, todo o processo
IHU On-Line – Quais suas expectativas em econômico. Essa inserção no mercado é um desa-
relação a essa Secretaria de Economia fio. E um dos maiores é a comercialização. Os ou-
Solidária? tros são os recursos e a questão legal, por exem-
Dalila Pedrini – Essa Secretaria vem oferecer plo, a Legislação cooperativista. Todas as leis tri-
respostas às grandes demandas da Economia So- butárias, a lei das falências, são problemas que se
lidária brasileira. Na Secretaria, há um setor de devem enfrentar. Temos que mudar essas leis,
formação, pois o Paul Singer entende que os pró- que são os gargalos da Economia Solidária. Outra
prios órgãos governamentais não conhecem o que questão que justifica nossa luta pela criação da Se-
é Economia Solidária, por ser um fenômeno cretaria é transformar a Economia Solidária numa
novo. Nossa expectativa é que o Governo federal política pública. O direito ao trabalho tem que se
e os seus órgãos compreendam aos poucos o que efetivar. Hoje ela é uma ONG. Não temos nenhum
é Economia Solidária, para que ela possa ocupar governo que assuma isso como política. Com rela-
um espaço no sentido de receber recursos e ser ção aos trabalhadores, temos outros desafios. Um
concretizada. Nós sabemos que isso não é algo fá- deles é a formação dos trabalhadores, tanto técni-
cil. Sabemos que não teremos, de imediato recur- ca quanto para autogestão e para compreensão
sos, para concretizar a Economia Solidária nos es- do processo da luta. Muitas das pessoas que vêm
tados; sabemos que o funcionamento vai ser com para a Economia Solidária são de setores excluí-
base na nossa intervenção no Governo, para que dos do mercado. Geralmente, são analfabetos ou
ele tome a “cara” de Economia Solidária. Há seto- têm pouca educação, e muitos deles só trabalha-
res de esquerda, quer seja no sindicalismo, quer ram informalmente. Têm uma preparação muito
seja no PT, que não concordam com ela, porque pequena para o desafio de assumir os empreendi-
acham que é um movimento reformista. Esses mentos e entender como se participa de uma
grupos observam os limites. Nós reconhecemos rede. Estão acostumados a trabalhar e produzir.
que eles existem. Eles (os grupos) não acreditam Mas como fazer isso em rede?

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“Piqueteiros”: um discurso sobre o poder

Entrevista com Jorge Ceballos

Jorge Ceballos é advogado e coordenador tão atualmente e que venham outros. Claro que
nacional do Movimento Piqueteros, Barrios de Pie precisamos de partidos e de organizações, mas
(Bairros de pé) desde sua criação em dezembro de que sejam do povo.
2001. Ceballos concedeu entrevista à IHU
On-Line para conversar sobre a realidade do tra- IHU On-Line – Qual a característica especí-
balho na Argentina e as alternativas propostas fica do Barrios de Pie?
pelo movimento naquele país. Jorge Ceballos – Barrios de pie luta especifica-
mente contra duas coisas: a fome e o desemprego.
IHU On-Line – Como definiria o Movimento Por isso, temos refeitórios populares. Em torno
dos Piqueteros? deles, estrutura-se o Movimento. Ali também dis-
Jorge Ceballos – Eu o definiria como um produ- cutimos que Argentina queremos. Essa estrutura
to e uma conseqüência do modelo neoliberal que, do refeitório aproximou muitas mulheres. Elas
desde 1976, gerou índices altíssimos de desem- têm um papel fundamental, não só na tarefa espe-
prego. Os ex-empregados se organizaram e de- cífica do refeitório, mas também na direção do
ram essa resposta. Os piquetes surgem especial- Movimento. Também se aproximaram muitos jo-
mente nas cidades que dependiam do petróleo. vens e desempregados. Tentamos trabalhar ou-
Ao ser privatizada a Yacimientos Petrolíferos Fis- tras áreas, como a saúde, a educação popular, a
cales (YPF), essas cidades ficaram como cidades cultura... Também levamos adiante hortas e pa-
fantasmas, e seus habitantes, nos bairros, começa- darias comunitárias, empreendimentos laborais,
ram a se organizar. É um movimento com uma apoio escolar e alfabetização, oficinas de educa-
ampla participação de base que não tem um cen- ção popular, bibliotecas populares, campanhas de
tro, uma fábrica, um sindicato. É uma forma de saúde e formação de agentes de saúde, oficinas
democracia mais direta. sobre violência familiar, atividades vinculadas
com a cultura e a comunicação. Busca-se o prota-
IHU On-Line – A consigna que se vayan to- gonismo de todos. O movimento é forte se todos
dos (que todos se vão) já tem atravessado participam com consciência. Nosso lema é “uma
fronteiras. Qual o significado dessa frase Argentina para todos”.
para o Movimento?
Jorge Ceballos – Que todos se vão se refere aos IHU On-Line – Como funcionam os “piquetes”?
atuais dirigentes políticos e sindicais – que foram Jorge Ceballos – Ocupamos rodovias, ruas,
cúmplices e traidores, ao implantarem todo esse pontes; a metodologia é muito diversa. O impor-
modelo neoliberal –, que se vão também os juízes. tante é que o sistema saiba que a Argentina tem
excluídos que querem viver com dignidade.
IHU On-Line – Um modelo sem representa-
ções nem partidos políticos? IHU On-Line – E o que conseguem?
Jorge Ceballos – Não. Queremos uma renova- Jorge Ceballos – Conseguimos subsídios do
ção política e sindical. Que vão embora os que es- Governo, comida e, sobretudo, dignidade: esta-

76
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mos em pé, não aceitamos a situação atual da trabalho. Em um país com 37 milhões de habitan-
Argentina. Não a queremos submetida a um po- tes, há 19 milhões de pobres e 9 milhões de indi-
der externo. Queremos uma sociedade diferente gentes. Por outro lado, o povo tem mostrado, nes-
em relação à distribuição das riquezas e também sas circunstâncias tão graves, que há uma reserva
com outros valores, uma mudança moral, onde o de solidariedade muito grande. Apesar de todo o
centro seja o humano. individualismo que estimulou esse poder neolibe-
ral, dizendo hacé la tuya “não te preocupes com
IHU On-Line – Excluem, então, o uso da os outros”, “tens possibilidades de ascender”,
violência? “pisa a cabeça do outro”.
Jorge Ceballos – A violência impõe o modelo, o
sistema vigente. Nós lutamos para acabar com IHU On-Line – Qual é a postura do Movi-
essa violência. Eles querem impor o terror, dizer mento em relação às próximas eleições?
“aqui ninguém levante a cabeça”. Mas nós tam- Jorge Ceballos – É uma farsa eleitoral. As elei-
bém fazemos referência; nós, por exemplo, corta- ções não vão mudar o destino do país. As eleições
mos a rodovia e, quando nós fazemos isso, a auto- consagram o “que fiquem todos”. Na segun-
ridade somos nós, eles vêm falar conosco. E su- da-feira, dia 28 de abril, após a eleição, chega à
postamente não se pode fazer isso pelo artigo 194 Argentina a delegação do FMI para sentar com os
do Código Penal: obstrução da via pública. Entre- dois candidatos que vão para o segundo turno. As
tanto, há um direito anterior a esse que é o direito pessoas votam, mas não decidem. Nós defende-
à vida e nós o fazemos valer e dizemos: aqui a au- mos a anulação do voto ou o voto em branco.
toridade somos nós. Estamos construindo com
isso uma visão, uma compreensão do tema do po- IHU On-Line – Qual o modelo de sociedade
der. O poder é deles se nós queremos, mas o po- que discutem e que lugar ocuparia o traba-
der é nosso quando nós o vencemos. lho dentro desse modelo?
Jorge Ceballos – O trabalho tem um papel es-
IHU On-Line - Como vê a realidade do tra- sencial. Um modelo de trabalho que ajude a ex-
balho na Argentina atual? plorar as riquezas naturais e humanas que temos
Jorge Ceballos – Na Argentina, 33% da popula- no país. Que traga uma justa retribuição para os
ção ativa está desempregada, mais de 20% está méritos. Aqui existem muitas pessoas que juntam
subempregada, ou seja, mais da metade da popu- dinheiro, embora não trabalhem. O trabalho é
lação economicamente ativa tem problemas de central no compromisso de construir o país e deve
ser dessa forma retribuído.

77
Ócio Humanista

Entrevista com Concha Maiztegui

Concha Maiztegui, psicóloga e doutora em IHU On-Line – Nas nossas sociedades de con-
Educação do Ócio, é professora no Instituto de sumo, se fala muito em prazer. Qual seria a
Estudos do Ócio na Universidade de Deusto, em diferença entre prazer e ócio humanista?
Bilbao, Espanha, uma das únicas da Europa que Concha Maiztegui – Eu estabeleceria uma dife-
forma pesquisadores no assunto, promovendo rença entre obter prazer e desfrutá-lo. O prazer re-
uma revolução educacional e quebrando a estru- quer menos esforço e é mais rápido. Para desfru-
tura tradicional do ensino, que ainda coloca o de- tar, é necessário fazer um esforço. Quem gosta de
sempenho e a competição em primeiro lugar. A escalar montanhas precisa fazer um esforço, acor-
professora esteve na Unisinos, já que a Instituição dar cedo, ir até o lugar e, uma vez lá, vencer seus
que ela representa tem uma parceria com o Cen- próprios limites, mas isso dá uma sensação de
tro de Ciências da Saúde da Universidade. Ela conquista, uma recompensa.
acompanhou projetos de desenvolvimento comu-
nitário, como o Prumo e o Sapecca, e visitou o IHU On-Line – O ócio das pessoas se ajus-
IHU. Concha conversou com IHU On-Line a res- ta também às possibilidades sociais e
peito da importância do ócio humanista no desen- econômicas?
volvimento integral da pessoa. Concha Maiztegui – No ócio, se reproduzem as
diferenças que se dão em outros contextos sociais.
IHU On-Line – Como definiria o ócio huma- Há, porém, muitas formas gratuitas de ócio. Aqui
nista? no Brasil, tem, por exemplo, as escolas de samba:
Concha Maiztegui – É uma experiência gratifi- as pessoas passam o ano todo em função disso
cante integral da pessoa e um direito humano fun- desde a elaboração das roupas, as coreografias, as
damental. Preferimos defini-lo como experiência, relações que ali se dão. O importante está na ca-
e não como atividade. Experiência humana com- pacidade de desfrutar. Quem não tem essa capa-
plexa, em atuações livres e pessoais. Defendemos cidade cai no aborrecimento, não sabe o que fa-
o ócio como direito humano básico e que seja re- zer, nada o motiva e, muitas vezes, cai no ativismo
conhecido no direito internacional como tal. O que leva a não afrontar a carência de sentido.
ócio está ligado ao cotidiano, ao que produz satis-
fação, à percepção de liberdade, a um desafio IHU On-Line – Ócio e trabalho são incom-
pessoal. Ele colabora com a construção da identi- patíveis?
dade, alimenta uma ilusão, um projeto. Alguém Concha Maiztegui – São coisas diferentes. No
me dava hoje o exemplo de um porteiro que cole- trabalho, se podem ter experiências mais potencia-
ciona cartões de telefone. Essa atividade desperta doras que podem ser complementares. Na Euro-
uma busca, lhe dá uma outra forma de conheci- pa, há muitas empresas que organizam o ócio dos
mento. Ele não é só um trabalhador. empregados. Mas isso é um pouco ambíguo, pode

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ser que realmente ampliem as oportunidades ou Concha Maiztegui – Eu parto do fato de que es-
pode ser uma intromissão da empresa no tempo tamos numa sociedade em que há menos crian-
livre e mais pessoal dos empregados. ças, portanto menos filhos aos quais se dedicar e
relações mais próximas entre pais e filhos. Nas ge-
IHU On-Line – De que depende o desenvol- rações anteriores, não era freqüente os avós ou os
vimento da capacidade de desfrutar? pais brincarem com os filhos. Eles deviam chamar
Concha Maiztegui – A família é um espaço pri- os pais de o Sr. e Sra. etc. Hoje o adulto brinca
vilegiado. Há famílias que potenciam mais essa com a criança, e isso é uma mudança social. Mu-
capacidade de desfrutar. É um desafio e um esfor- dou o papel do pai e da mãe, é outro tipo de mo-
ço, implica vencer a preguiça e dar um salto na ro- delo parental. A família, nesse sentido, está mais
tina, romper os hábitos de comodidade. Quem próxima de ser um lugar para aprender o desfrute.
quer jogar futebol todos os sábados, deve fazer O jogo é um momento privilegiado porque, em
um pequeno esforço. outros momentos, os pais cobram dos filhos as no-
tas na escola, a boa conduta, etc. No jogo, pais e
IHU On-Line – Apesar da desagregação da filhos vivem uma forma de igualdade, que é im-
família moderna, ela é espaço para apren- portante para a construção da identidade e o de-
der o desfrute? senvolvimento da capacidade de desfrutar.

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A redução do tempo de trabalho e a cultura do tempo livre

Entrevista com André Langer

André Langer é membro do Centro de Pes- cessário, é possível que todos trabalhem menos. O
quisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT), mestre que ocorre no Brasil é, na verdade, uma concen-
em Ciências Sociais Aplicadas pela Unisinos, com tração não só da renda, mas também do trabalho,
dissertação intitulada Pelo êxodo da sociedade sa- fenômeno que aparece no grande número de tra-
larial. A evolução do conceito de trabalho em balhadores que faz hora extra, cujo efeito mais
André Gorz18. Em entrevista à IHU On-Line perverso é o exponencial desemprego que vemos.
André Langer falou sobre a reivindicação da dimi- Aqui há trabalho que pode ser distribuído de ma-
nuição do tempo de trabalho. Sobre esse tema, Lan- neira mais eqüitativa entre todos. O sentido da re-
ger publicou um artigo no Cepat Informa n.º 108, dução do tempo de trabalho consiste numa dupla
de abril de 2004. O Cadernos IHU n.º 5 publicou ação: 1) é a única alternativa capaz de evitar uma
uma síntese da sua dissertação de mestrado. crescente dualização da sociedade entre os traba-
lhadores do núcleo central, de tempo integral, os
IHU On-Line – Por que a proposta da redução trabalhadores dos círculos periféricos, precários,
do tempo de trabalho é reintroduzida na so- de baixa remuneração, de tempo parcial, e os de-
ciedade brasileira, especialmente pela Cen- sempregados; 2) liberar tempo para as atividades
tral Única dos Trabalhadores (CUT), num pe- autônomas sem fins lucrativos. A proposta da re-
ríodo de grave desemprego, e, ao mesmo dução do tempo de trabalho não pode ser uma fi-
tempo, recordes de horas extras? Não parece nalidade em si mesma. O horizonte no qual ela
uma idéia irrealizável nesse contexto? deve ser pensada é a extensão máxima da esfera
André Langer – É uma proposta que responde, da autonomia. Assim, a idéia da redução do tem-
por um lado, aos anseios históricos dos trabalha- po de trabalho é perfeitamente possível.
dores de todos os tempos. Nesse sentido, ela reto-
ma esta grande luta por trabalhar menos tempo. IHU On-Line – Quais são essas aspirações
Por outro lado, responde à grande questão do que estão por trás da proposta de redução
momento: a distribuição da produtividade. Hoje o do tempo de trabalho?
sistema produtivo é capaz, por conta das inova- André Langer – A redução do tempo de trabalho
ções tecnológicas, de produzir mais, com menos não visa unicamente à criação de novos empre-
trabalhadores e em menos tempo. Ou seja, o gos, por mais importante que isso seja para a socie-
grande desafio que se coloca não é mais prioritaria- dade brasileira a fim de distribuir as riquezas soci-
mente o da produção, mas o da distribuição das ri- almente produzidas, mas visa também à abertura
quezas socialmente produzidas. Portanto, distri- de novos horizontes de realização pessoal, inter-
buindo-se entre todos o trabalho socialmente ne- pessoal e comunitária para além do traba-

18 André Gorz é autor de muitos livros sobre o mundo do trabalho. Os dois últimos são: Misères du présent. Richesse du
possible. Paris:Galilée, 1997 e L’Immatériel. Connaissance, valeur et capital. Paris:Galilée, 2003. (Nota da IHU
On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lho-emprego. Convém reconhecer que para boa mente na perspectiva de recuperar as forças e as
parte dos trabalhadores o tempo fora do trabalho energias para o trabalho assalariado, mas como
acaba sendo investido de crescente importância um tempo rico em novas possibilidades desvincu-
na sua vida. Trabalhadores há que não admitem ladas da lógica da racionalidade econômica e da
mais viver exclusivamente para o trabalho. Por to- mercantilização. O tempo livre não deve ser visto
dos os lados, salta o desejo de trabalhar menos e como um tempo vazio, um tempo de pura passivi-
viver melhor. A qualidade de vida aparece como dade. É o tempo de produção de novas sociabili-
um valor cada vez mais importante a ser cultiva- dades, de relações sociais e tempo para o livre de-
do. O lazer, o tempo com a família e a diversão fa- senvolvimento pessoal. O tempo é considerado
zem toda a diferença entre uma vida pautada e in- como a fonte mais preciosa, e a economia da esfe-
vadida pelo trabalho e uma boa vida. É preciso ra da necessidade terá por princípio economizar
também relacionar a política de redução do tem- ao máximo o tempo de trabalho a fim de maximi-
po de trabalho a um projeto político de transfor- zar o tempo disponível. Para Marx, a verdadeira
mação da sociedade: as medidas que compõem economia – aquela que economiza – é a de tempo
uma política de redistribuição do trabalho e do de trabalho. A verdadeira economia leva à elimi-
tempo liberado deverão se inscrever na perspecti- nação do trabalho como forma dominante de ati-
va de uma superação da sociedade do trabalho vidade. É por essa razão que a redução do tempo
assalariado. Uma política de redução do tempo de de trabalho pode abrir um espaço sempre maior
trabalho não pode perder de vista o horizonte para a realização de atividades que não estejam
mais amplo de construção de uma nova socieda- mais ligadas à lógica da racionalidade econômica.
de. Caso contrário, será apenas uma medida pon- O tempo livre, insiste Gorz, “permite aos indiví-
tual ou isolada, um remendo no sistema, com duos desenvolver capacidades (de invenção, de
grandes chances de fracassar. criação, de concepção, de intelecção) que lhe
conferem uma produtividade quase ilimitada.”
IHU On-Line – Como efetuar uma mudança
para uma nova cultura do tempo livre? IHU On-Line – Como fazer com que o tempo
André Langer – A redução do tempo de trabalho livre não se submeta à lógica do consumo?
não aumenta automaticamente o tempo livre das André Langer – Essa é uma questão difícil de ser
pessoas. Trata-se de ir criando uma nova cultura resolvida. Evidentemente, não se pode desdenhar
do tempo livre para que a redução da jornada de do poder que o consumo passou a ter em nossas
trabalho não redunde num segundo, ou mesmo sociedades. É preciso dar-se conta de que o exa-
terceiro, emprego. No fundo, trata-se de dar uma cerbamento do consumo está estreitamente liga-
nova importância aos outros tempos da vida e do à produção capitalista que separa o produtor
construí-los fora da lógica produtivista. A socieda- do consumidor. Não há produtor sem consumi-
de brasileira está convidada a olhar mais para o dor, assim como não há produção sem consumo.
seu interior, suas necessidades, suas carências, Portanto, em nossa sociedade, o consumismo está
seus desejos, e menos para o interior da fábrica, ligado à própria idéia de desenvolvimento, de
do escritório e suas necessidades. Na realidade, a crescimento. Por esse motivo, para que a produ-
redução do tempo de trabalho objetiva enfrentar ção possa crescer sempre, é preciso instigar e di-
dois grandes desafios: primeiro, redistribuir entre namizar o crescimento do consumo, sem que se
todos o trabalho socialmente necessário, de modo leve em conta os efeitos macrossociais e ambien-
que todos possam trabalhar menos, melhor e de tais de tal lógica. Como recorda Gorz, o antigo
outra maneira. Trata-se de proceder a uma outra “isso me basta” cede hoje lugar ao “mais vale
repartição do trabalho que não a imposta hoje mais” ou ao “nunca é suficiente”. Uma revolução
pelo capital. Em segundo lugar, começar a visuali- das necessidades entranha uma nova concepção
zar o tempo liberado ou o tempo livre, não mais na qual “a eficácia máxima ilimitada na explora-
como um tempo vazio, sem sentido, ou simples- ção do capital exigirá, assim, o máximo ilimitado

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de ineficiência na cobertura das necessidades, e todo o debate sobre crescimento sustentável ou


do esbanjamento no consumo”. Trata-se de ir cri- decrescimento, que vem ganhando força, sobre-
ando a consciência de que o consumo – e a eco- tudo na Europa. Ao mesmo tempo, trata-se de ir
nomia – precisará ter cada vez mais em conta não aumentando domínios, pessoais e coletivos, livres
tanto a quantidade do crescimento, mas a quali- da lógica do consumo. Nada justifica a onipresen-
dade de vida, o que nos faz transcender o mero ça dessa lógica na vida das pessoas e da
economicismo e incluir questões relativas ao meio sociedade.
ambiente. Nessa perspectiva, se pode introduzir

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Ócio humanista e o sentido do trabalho

Entrevista com Cláudio Gutiérrez

Cláudio Gutiérrez é professor das Ciências mando-os em espaços de produção de cidadania


da Saúde da Unisinos. Gutiérrez é graduado em pelo exercício da capacidade de atuar coletiva-
Educação Física pelo Instituto de Porto Alegre mente na esfera pública. Atuar como cidadãos,
(IPA), mestre em Educação pela Unisinos, douto- dessa vez, não pelo temor à lei ou pelo interesse
rando em Ócio y Potencial Humano no Instituto na garantia de benefícios pessoais, mas pela satis-
de Estudos do Ócio na Universidade de Deusto, fação que há em nos tornarmos humanamente
em Bilbao, Espanha, e autor de Formação de membros de uma comunidade virtuosa que busca
professores na escola cidadã. São Leopoldo: levar adiante um projeto de felicidade. Nessa
Unisinos, 2001. perspectiva, os espaços e relacionamentos anima-
dos pelo conceito de ócio humanista tornam-se
IHU On-Line – De que forma o ócio pode se dispositivos de exercício e produção de cidadania.
constituir em espaço de formação cidadã e Existe uma série de coletivos, como grupos de es-
o que isso significa? porte, de lazer, de dança de rua, confrarias gastro-
Cláudio Gutiérrez – Acostumamo-nos a falar de nômicas, grupos literários, grupos de serviços, as-
cidadania desde a lógica liberal, de um status indi- sociações de bairro, grupos de defesa da nature-
vidual que implica direitos e deveres aos indiví- za... que, potencialmente, podem ser orientados
duos reconhecidos como membros de uma comu- ao exercício democrático, formação de espaço
nidade. Esta cidadania formal se garante por meio público e produção, via redes, de tecido social.
de todo um aparato legal. A lei obriga o cidadão a Para quem acha que é pouco, nestes 40 anos do
comportar-se bem e ser responsável, caso contrá- golpe militar no Brasil, os movimentos de contra-
rio paga multas e sofre penas. Por outro lado, se se cultura abalaram mais a moral conservadora do
comporta bem tem garantidos direitos. O que te- que toda a guerrilha à ditadura.
mos observado hoje é que, de um lado, as pessoas
não estão mais dispostas a cumprir uma lei que IHU On-Line – Como fazer para desvincular
lhes parece alheia e que oprime; e de outro lado, cada vez mais o tempo livre da lógica da racio-
em nossa sociedade de consumo, os direitos da ci- nalidade econômica e da mercantilização?
dadania quase se transformaram também em ob- Cláudio Gutiérrez – Tempo livre é livre de quê?
jetos de consumo. Consumimos os direitos da ci- Do trabalho. Tempo livre é uma conquista da clas-
dadania como se fosse um produto qualquer, re- se trabalhadora mediante as históricas lutas pela
clamamos os direitos de cidadania como quem re- redução da jornada de trabalho, uma conquista
clama direitos do consumidor. Transformamo-nos muito importante que estamos correndo o risco de
de cidadãos em consumidores de cidadania. perder pelas atuais transformações do mundo do
Entre o medo “do chicote da lei” e o consumo de trabalho. O tempo livre conquistado oportunizou
direitos, perdeu-se a noção de virtude cívica. o desenvolvimento do lazer e de uma série de rela-
A proposição do ócio humanista para esta ções e experiências nos espaços de lazer que mar-
questão é que nos apropriemos dos espaços cole- caram a conduta e os valores das pessoas. Entre-
tivos, por onde nos leva nosso desejo, transfor- tanto, a crítica ao conceito de tempo livre apare-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ceu ainda na década de 1960, quando Adorno um basta ao ativismo estéril que nos sobrecarrega
lançou a questão: o tempo livre de um indivíduo de vazio (e também acho que a indústria do entre-
submetido à sociedade industrial pode ser verda- tenimento que consagrou o domingo ao futebol
deiramente livre? Ele observava que o consumis- faz parte desse monte de nada que nos empobre-
mo e os hobbies da sociedade americana não ti- ce). Também significa valorizar atividades não-
nham nada a ver com liberdade, eram apenas o utilitárias que encontram um fim em si mesmas.
outro lado de uma relação mecânica com a socie- Não gosto, porém, de empregar o termo ócio sozi-
dade industrial. Acho que o problema já começa nho, porque os sujeitos que colocaram fogo em
se entendemos nossa capacidade criativa, nosso um índio que dormia, o fizeram por puro deleite e
élan vital, nossa vontade de potência, reduzida ao prazer, sem outro interesse que não o de se diver-
conceito de força de trabalho: o ser humano redu- tir com isso. Para dar a direcionalidade positiva ao
zido a um animal que labora não deixa espaço conceito é que o grupo ao qual me vinculo fala em
para outra coisa que não produção e consumo, as ócio humanista (pelos mesmos motivos, mas rei-
duas faces desse processo metabólico com a natu- vindicando outra origem e finalidade, o De Masi
reza, que é o labor. Para o tempo de trabalho, ori- fala em ócio criativo). A resistência ao ativismo es-
entado à produção de objetos de consumo, o tem- téril encontra sentido se aliada a um projeto de de-
po livre oferece a possibilidade de consumo. É sin- senvolvimento humano. Dessa perspectiva, a alie-
tomático que meçamos o quanto uma pessoa se nação se realiza quando a pessoa esquece sua hu-
deu bem na vida pela sua capacidade de consu- manidade e se reduz a uma utilidade, quando o
mo. O país mais poderoso do planeta tem uma corpo não sonha mais, e o sujeito se torna objeto;
população de obesos... não é por acaso. O consu- objeto de produção e consumo.
mo do ser humano reduzido ao animal laborans é
um consumo de hambúrguer, batata frita, carro e IHU On-Line – O discurso sobre o ócio tem
bugigangas. Quanto melhor uma pessoa se dá na implícita alguma forma de questionamento
vida, em qualquer país, melhores as comidas, car- da sociedade salarial ou alguma proposta
ros e as bugigangas. Agora imagine que a estes alternativa?
consumistas escravos de si mesmos, obesos e se- Cláudio Gutiérrez – Paul Lafargue19 foi o mais
dentários, o capitalismo chama de elite! Retoman- tenaz crítico da sociedade salarial. Revolucionário
do a questão, o conceito de tempo livre, importan- de esquerda da época de Marx (era genro deste)
te para a recuperação da força de trabalho, para o reivindicava, diante da capacidade produtiva da
lazer e o consumo, não se desvincula da racionali- indústria, uma drástica redução na jornada de tra-
dade econômica. balho. Percebendo que a sociedade capitalista, ao
invés de oferecer tempo livre remunerado, iria fo-
IHU On-Line – Numa sociedade que expulsa mentar uma torturante concorrência de uns pou-
as pessoas do mercado de trabalho e sobre- cos empregados com as máquinas (ao mesmo
carrega as que ainda permanecem nele, fa- tempo que cresceria uma massa desempregada e
lar de ócio não pode resultar algo alienan- sem renda) conflagrava as classes trabalhadoras a
te? Em que casos o discurso sobre o ócio lutarem por uma legislação que garantisse redu-
poderia realmente ser alienante? ção da jornada de trabalho. No manifesto Direito
Cláudio Gutiérrez – Falar em ócio significa vol- à preguiça (1880), escrito na prisão, previa sua
tar a afirmar o valor da vida contemplativa, dar derrota: “como exigir de um proletário corrompi-

19 O famoso livro de Paul Lafargue, O Direito à preguiça pode ser encontrado com o pequeno, mas instigante livro de Thierry
Pacquot, em Paul Lafargue-Thierry Pacquot, O Direito à preguiça/ A arte da sesta, publicados pela editora portuguesa
Campo das Letras, em 2002. No ano 2000, foi publicada uma versão brasileira do livro de P. Lafargue, com uma introdução
da profa.Marilena Chauí, que está esgotada. Sobre a arte da sesta cf. IHU On-Line n.º 61, de 26 de maio de 2003. (Nota da
IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

do pela moral capitalista uma decisão viril?” Da sem por si sós, o dono da oficina não precisaria
mesma forma, Bertrand Russell20, em seu Elogio mais de auxiliares, nem o senhor de escravos. Na
ao ócio (1935), propunha um ordenamento eco- atualidade, as proposições de alternativa passam
nômico da sociedade que possibilitasse a promo- pela garantia de direitos sociais e o debate e pro-
ção do lazer e do ócio e a redução do trabalho. Via posições sobre os direitos econômicos, como os
as possibilidades cada vez mais limitadas do tra- programas de renda mínima (a tese de que cada
balho assalariado como mecanismo de distribui- pessoa tem direito a uma parte da riqueza que a
ção de renda. Fustigava: “a moral do trabalho é sociedade produz). De minha parte, acredito que
uma moral de escravos, e o mundo moderno não há uma revolução íntima a ser travada por cada
precisa de escravidão”. E antes de todos esses, pessoa e cada comunidade que tenha a coragem
Aristóteles, que emancipara seus escravos quando de sonhar projetos de felicidade em que os seres
no leito de morte, apontava, na escravista socie- humanos não se reduzem a produtores e consu-
dade clássica, que, se as rocas das fiandeiras fias- midores de coisas.

20 O texto pode ser encontrado no livro Paul Lafargue e Bertrand Russell, A economia do ócio. São Paulo: Sextante, 2001.
(Nota da IHU On-Line ).

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