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L'OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL EM PORTUGUÊS

Unicuique suum Non praevalebunt


Ano XL, número 35 (2.071), sábado 29 de Agosto de 2009 Cidade do Vaticano Preço ; 1,00. Número atrasado ; 2,00

No Angelus o Papa admoesta contra a tentação de adaptar o Evangelho às modas do tempo


A Igreja
O paradoxo da fé cristã de Roma
escandaliza também hoje e a guerra
No domingo, 23 de Agosto Bento XVI
recitou o Angelus com os numerosos fiéis GIOVANNI MARIA VIAN
presentes em Castel Gandolfo, aos quais
recordou que ser cristão «não é uma No Verão de 1939 a Europa percor-
adesão superficial e formal» à mensagem reu o último trecho do caminho que
evangélica, mas um modo de pensar e de a levou a precipitar no abismo da
viver que muitas vezes vai «contra a guerra. Um abismo que, apenas vin-
corrente». te anos após a primeira catástrofe
Queridos irmãos e irmãs! bélica mundial, se abriu com uma
série de horrores inimagináveis. Do
Como podeis ver a mão foi libertada desmembramento da Polónia – de-
do gesso, mas ainda está um pouco pois do pacto, com muita frequência
preguiçosa; deve estar ainda por al- esquecido, entre a Alemanha nazista
gum tempo numa «escola de paciên- e a Rússia soviética – teve de facto
cia», mas vamos em frente! início o incêndio que fez arder gran-
Sabeis que há alguns domingos a li- de parte do velho continente, a ba-
turgia propõe à nossa reflexão o capí-
cia mediterrânea e a imensa área do
tulo 6 do Evangelho de João, no qual
Pacífico. Com o monstruoso extermí-
Jesus se apresenta como o «pão vivo
que desceu do céu» e acrescenta: «Se nio do povo judeu, destruições sem
alguém comer deste pão viverá eterna- precedentes de civis e de muitas ci-
mente; e o pão que Eu hei-de dar é a dades do velho continente, até ao
minha carne pela vida do mundo» (Jo epílogo nuclear, carregado de novos
6, 51). Aos judeus que discutem aspe- pesadelos, que com a destruição de
ramente entre si, perguntando-se: «Co- Hiroshima e Nagasaki pôs fim ao
candalizados com as palavras do Se- aos Doze, dizendo: «Também vós que- conflito desencadeado pelo Japão e,
mo pode Ele dar-nos a comer a Sua
nhor, a ponto que muitos, depois de o reis retirar-vos?» (v. 67). deste modo, aos seis anos da guerra
carne?» (v. 52) – e o mundo continua
a discutir – Jesus reafirma em todos os terem seguido até então, exclamam: Esta pergunta provocatória não se mais sangrenta que a terra viu.
tempos: «Se não comerdes a carne do «Duras são estas palavras! Quem pode destina só aos ouvintes de então, mas A lição da primeira guerra mun-
Filho do Homem, e não beberdes o escutá-las?» (v. 60). A partir de então atinge os crentes e os homens de todas dial de nada serviu e, aliás, dela sur-
Meu sangue não tereis a vida em vós» «muitos dos Seus discípulos retiraram- as épocas. Também hoje muitos per- giram um suceder-se de injustiças e
(v. 53); motivo também para nós de se e já não andavam com Ele» (v. 66), manecem «escandalizados» diante do sobretudo a afirmação dos totalitaris-
reflectir se compreendemos realmente e acontece sempre de novo a mesma paradoxo da fé cristã. Os ensinamentos mos – soviético, fascista, nazista –
esta mensagem. Hoje, 21º domingo do coisa, em diversos períodos da história. de Jesus parecem «duros», demasiado que levaram a Europa e grande par-
tempo comum, meditamos a parte Poderíamos esperar que Jesus procure difíceis de aceitar e de pôr em prática. te do mundo a sofrer males indizí-
conclusiva deste capítulo, no qual o maneiras para se fazer compreender Então há quem rejeita e abandona veis. Face à guerra, a Igreja de Ro-
quarto Evangelista descreve a reacção melhor, mas Ele não abranda as suas
do povo e dos próprios discípulos, es- afirmações, aliás dirige-se directamente CONTINUA NA PÁGINA 12 CONTINUA NA PÁGINA 3

Mensagem do cardeal Bertone Quarenta anos da Federação bíblica católica


por ocasião do Meeting de Rímini
O amor impele
ao desejo do conhecimento
Um livro para viver
PÁGINA 5 CARLO DI CICCO e grandes com os seus
olhos e a agir segundo o
A edição quotidiana do nosso jornal seu Espírito. E é actual
publicou uma página para recordar os uma acção pastoral que
Da Igreja quarenta anos da Federação bíblica quer tornar a Bíblia, es-
católica. A intenção é apoiar aquela pecialmente lida, ouvida
nenhum apoio a lógicas mudança de sensibilidade que, na e rezada na liturgia, fonte
económicas injustas Igreja católica, coloca a escuta da Pa- da acção cristã. Bento
lavra de Deus ao lado da Eucaristia, XVI recorda-o pontual-
O economista coreano Thomas considerando-as os dois pilares básicos mente no seu magistério
Hong-Soon Han, desde Novembro para alimentar a fé cristã no nosso solene e quotidiano com
revisor internacional da Prefeitura tempo. A ideia vém-nos da publicação o qual pretende formar
para os Assuntos Económicos da da primeira pesquisa sociológica inter- cristãos capazes de dizer
Santa Sé, traçou um primeiro balan- nacional sobre a difusão da Bíblia no no mundo moderno a ra-
ço da sua experiência no Vaticano. mundo apresentada nas linhas essen- zão da própria esperança Miniatura do Scriptorium de Echternach (Brema)
ciais no último Sínodo dos Bispos dedi- e inspira-se quotidiana-
PÁGINA 6 cado, precisamente, à Palavra de mente na Sagrada Escri-
Deus. A pesquisa foi promovida pela tura para as suas catequeses e homi- aos diversos aspectos da existência hu-
Federação bíblica católica na comemo- lias. A reforma da Igreja que o Papa mana a partir das solicitações da pró-
ração da sua fundação e documenta o vai propondo e explicando está radica- pria Bíblia. O Papa está convencido
Um pouco de África bom trabalho realizado até agora para da na Palavra de Deus. Assim como a de que a nova evangelização, estraté-
o conhecimento e difusão da Bíblia. sua capacidade de ler os sinais dos gia unificante de toda a pastoral de
no Vaticano Querida por Paulo VI, a Federação tempos e de se pôr em diálogo com as hoje, deve recomeçar a partir de um
O Reitor do Pontifício Colégio Etío- expressa a vontade determinada dos culturas modernas, incluídas as que fo- regresso à Palavra de Deus. Como
pe fala do papel desempenhado por Pontífices de pôr em prática a consti- ram atingidas pela revolução informá- aconteceu no início da Igreja. «É ur-
esta instituição, que é lugar de en- tuição Dei Verbum. Este texto do Con- tica. O estilo de vida cristã proposto gente – escreveu em 2006 na sua pri-
contro ecuménico e ponto de refe- cílio Vaticano II reanimou e motivou a por Bento XVI provém da escuta da meira mensagem para a Jornada
rência para os sacerdotes que aper- vida cristã de milhões de fiéis, leigos e Palavra de Deus. Ele não oferece uma Mundial da Juventude – que surja
feiçoam os estudos em Roma. eclesiásticos, porque torna Deus fami- reflexão própria à qual sobrepor uma uma nova geração de apóstolos radica-
liar na vida quotidiana e ensina a ver esporádica confirmação da Sagrada
PÁGINA 8 e a julgar os acontecimentos pequenos Escritura, mas justifica a sua atenção CONTINUA NA PÁGINA 4
A Igreja de Roma e a guerra

Giovanni Maria Vian

No Verão de 1939 a Europa percorreu o último trecho do caminho que a


levou a precipitar no abismo da guerra. Um abismo que, apenas vinte anos
após a primeira catástrofe bélica mundial, se abriu com uma série de
horrores inimagináveis. Do desmembramento da Polónia depois do pacto,
com muita frequência esquecido, entre a Alemanha nazista e a Rússia
soviética teve de facto início o incêndio que fez arder grande parte do velho
continente, a bacia mediterrânea e a imensa área do Pacífico. Com o
monstruoso extermínio do povo judeu, destruições sem precedentes de
civis e de muitas cidades do velho continente, até ao epílogo nuclear,
carregado de novos pesadelos, que com a destruição de Hiroshima e
Nagasaki pôs fim ao conflito desencadeado pelo Japão e, deste modo, aos
seis anos da guerra mais sangrenta que a terra viu.

A lição da primeira guerra mundial de nada serviu e, aliás, dela surgiram


um suceder-se de injustiças e sobretudo a afirmação dos totalitarismos
soviético, fascista, nazista que levaram a Europa e grande parte do mundo a
sofrer males indizíveis. Face à guerra, a Igreja de Roma não abandonou
aquelas fronteiras da paz que arduamente tinha iniciado a presidiar no
início do século XIX e sobretudo a partir dos últimos trinta anos do século,
quando a perda do poder temporal tinha de facto favorecido a expansão da
sua influência internacional. E se Pio X nos seus últimos dias de vida se
tinha quase oferecido como vítima sacrifical, sentindo o aproximar-se da
"grande guerra", Bento XV empenhou-se contra a insensata tragédia
europeia que, incompreendido e insultado pelas partes contrapostas, definiu
"massacre inútil". Mobilizando, de resto, uma "diplomacia da assistência"
que, silenciosa e eficaz, teria voltado a caracterizar a atitude da Santa Sé
também na segunda guerra mundial.

Durante os respectivos encargos diplomáticos, no coração da Europa em


chamas, os futuros Pio XI e Pio XII tinham sido testemunhas directas do
surgir dos totalitarismos, causa dos males que se preparavam. E, tendo
ambos chegado à guia da Santa Sé, no decorrer dos anos 30 viram com
lucidez o encaminhar-se inexorável para a guerra, que procuraram
contrastar com a diplomacia, a política concordatária, a firmeza sobre a
doutrina católica, numa consonância substancial não enfraquecida por
personalidades e temperamentos entre si muito diversos. Não foi portanto
por acaso que a escolha do conclave, rapidíssima, se orientasse para o
secretário de Estado de Pio XI. E imediatamente Pio XII teve que enfrentar
uma situação que precipitava: "Nada se perde com a paz, tudo pode ser
perdido com a guerra" foi o inútil apelo extremo, a cuja redacção lançou
mão o substituto Montini, estreito colaborador do Papa também na tenaz
obra de socorro depressa iniciada: no Vaticano, em Roma, na Itália e em
muitos outros países, onde ao lado de muitos católicos os representantes
pontifícios como Roncalli em Istambul se prodigalizaram de todos os
modos para socorrer os perseguidos, sem distinções.

Pio XII e quantos lhe teriam sucedido na sede romana com os nomes de
João XXIII e Paulo VI foram assim, com o enfurecer do conflito, quer
defensores das razões humanas e da justiça, quer testemunhas da caridade
de Cristo. Com uma pregação de paz que o Papa Pacelli não interrompeu
durante a guerra e nos anos seguintes: apoiando a opção da democracia,
rejeitando a atribuição de uma culpa colectiva ao povo alemão,
contrastando o totalitarismo soviético que impôs regimes ditatoriais a
muitos países e semeou novos males e apoiando sem incertezas a árdua
construção de um projecto unitário para a "velha Europa, que foi obra da fé
e do génio cristão" e que contudo não tinha sido capaz de ouvir a
radiomensagem pontifícia transmitida na tarde de 24 de Agosto de 1939.
Se de muitas formas os cristãos souberam dar contribuições importantes
para a reconstrução e a reconciliação, a Igreja de Roma fechou
simbolicamente a segunda guerra mundial com as eleições papais de Karol
Wojtyla que em 1989, cinquenta anos após o seu início, lhe dedicou uma
carta apostólica e de Joseph Ratzinger, precisamente a sessenta anos da
conclusão do conflito que os futuros João Paulo II e Bento XVI sofreram
em primeira pessoa, filhos de Nações então contrapostas. Sob o ponto de
vista histórico, a dúplice escolha do colégio dos cardeais demonstrou a
inconsistência de muitos prognósticos baseados em velhas convicções de
carácter político, segundo as quais as eleições de 1978 e, sobretudo, de
2005 teriam sido impossíveis. Em conclusão, a geopolítica da Igreja é
diversa. E isto porque, assumindo o passado, olha para o homem e para o
futuro com os olhos fixos numa promessa que não será desiludida.

(© L'Osservatore Romano - 29 de Agosto de 2009)

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