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políticas penitenciárias
em São Paulo
Fernando Salla
Fernando Salla é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência
Resumo
O artigo descreve os eventos que produziram instabilidade no sistema penitenciário no Estado de São Paulo desde
o governo Franco Montoro (1982-1986) até o governo Geraldo Alckmin e Cláudio Lembo (2002-2006), analisando a
direção, mais conservadora ou mais democrática, das principais políticas e ações governamentais nessa área.
Palavras-Chave
Sistema Penitenciário, Prisões, Rebeliões, Segurança Pública, Direitos Humanos, Políticas Públicas, São Paulo, Brasil.
mil habitantes nesse período não chega a su- Ao mesmo tempo, a Casa de Detenção de
bir acentuadamente, sendo de 79,3 em 1976 e São Paulo, embora pertencente à rede de presí-
atingindo 85,1 em 1986. dios da Coespe, abrigava uma enorme parcela
dos presos do sistema policial e ainda grande
O sistema penitenciário atravessou, então, quantidade dos que já estavam condenados.
um período de grande turbulência, que se ex- Assim, em 1976, havia apenas dez presídios no
pressava principalmente na eclosão de rebeliões então Departamento dos Institutos Penais do
e tentativas de fuga em massa. Mas, essa ins- Estado (DIPE) e de uma população total de
tabilidade não foi o mero resultado do cresci- 9.392 presos sob a custódia da Secretaria da Jus-
mento da população encarcerada em São Pau- tiça, somente a Casa de Detenção de São Pau-
lo na década de 1980. A dinâmica própria do lo possuía 6.473, sendo 5.333 já condenados
sistema, as heranças autoritárias e as tentativas (OLIVEIRA, 1978, p.118), como se observou
de fundação de um novo padrão para o fun- acima. Uma vez que a Penitenciária do Estado
cionamento do sistema penitenciário foram os concentrava cerca de 1.200 presos, temos que
principais elementos que explicam as tensões esses dois presídios eram responsáveis, naquela
vividas, e que se expressaram, sobretudo, pelas data, por algo em torno de 80% da população
rebeliões, pelas intervenções violentas do Poder do DIPE. A Casa de Detenção sempre exerceu
Público nesses eventos e pelas mortes de presos um papel de sorvedouro de presos do sistema de
que delas derivaram. segurança pública e de certa forma amenizou as
tensões nas delegacias e cadeias públicas.
Um aspecto fundamental dessa história
é que o sistema penitenciário, embora tenha Quando Franco Montoro assumiu o gover-
passado, em 1979, por uma reorganização pro- no de São Paulo em 1983, o quadro dos esta-
funda da sua estrutura, promovida pelo então belecimentos penitenciários era praticamente o
Secretário de Justiça, Manoel Pedro Pimentel, mesmo da época da criação da Coespe em 1979,
que criou, pelo Decreto nº13.412, a Coorde- ou seja, havia 14 unidades em funcionamento
nadoria dos Estabelecimentos Penitenciários e um total de cerca de 10 mil presos, e a Casa
do Estado (Coespe), abrigava uma parcela de Detenção ainda respondia por algo em tor-
menor da população encarcerada do Estado. no de 60% desse total. Os dados da Secretaria
A maior parte dos presos permanecia em de- da Justiça da época indicavam que as unidades
legacias, cadeias públicas que pertenciam à Se- da Coespe estavam com cerca de 2.000 presos
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gralmente na Casa de Detenção de São Paulo. tivas para as prisões foi construída pelo staff ad-
ministrativo e de segurança dentro do próprio
Montoro e seu Secretário de Justiça, José sistema penitenciário.
Carlos Dias, procuraram implementar uma
nova política para o sistema penitenciário. A Essas duas forças tentaram solapar a todo
chamada política de humanização dos presídios custo a política de direitos humanos do gover-
vam de fora para dentro do presídio. Foram venção policial violenta nos casos de tentati-
16 mortos, sendo 13 presos e 3 funcionários vas de fuga e na emergência de rebeliões, nas
que haviam sido tomados como reféns. A constantes denúncias de prática de tortura e de
pouca disposição para a negociação e a inter- outras arbitrariedades no cotidiano prisional.
venção truculenta na contenção da rebelião Mas o governo Montoro havia plantado raízes
revelavam uma forma de atuação que viria a profundas na consciência social em torno dos
ser retomada em momentos posteriores, mes- direitos humanos que explicam as resistências à
mo sob governos supostamente mais afinados maioria das intervenções desastrosas da polícia
com a pauta democrática. e à violência no dia-a-dia prisional.
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duas armas de fogo e fizeram vários reféns entre tos (nove penitenciárias, cinco presídios, uma
presos e funcionários. O grupo que liderava a cadeia pública, sete casas de detenção, uma casa
rebelião queria a fuga do presídio. A entrada da de custódia, um hospital de custódia e trata-
polícia militar e sua ação de contenção do mo- mento, um instituto de reeducação, dois ins-
tim provocaram 29 mortes. Um funcionário titutos penais agrícolas e um centro de obser-
que havia sido tomado como refém foi morto vação criminológica). Portanto, em sete anos,
nacionais de proteção e promoção dos direitos contra limites na lei. Um momento claro que
humanos, como a Convenção Contra a Tortura expressou a visão completamente distorcida da
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desu- segurança pública, e em particular da questão
manos ou Degradantes (28/09/89), a Conven- penitenciária, foi a transferência da subordina-
ção Interamericana para Prevenir e Punir a Tor- ção da Coespe e de outros órgãos da Secretaria
tura (20/07/89), e o Pacto dos Direitos Civis e da Justiça para a Secretaria da Segurança Públi-
Políticos (16/01/92), em São Paulo ocorreria o ca, com o Decreto nº 33.134, de 15 de março
Massacre do Carandiru, em outubro de 1992, de 1991. Essa Secretaria passou a concentrar
que se revelaria um dos mais trágicos aconteci- enormes contingentes de policiais e funcioná-
mentos da história recente do País, quando 111 rios, toda a população encarcerada do Estado,
presos foram mortos, a expressiva maioria em além de reunir atribuições diversas, quando não
decorrência da violenta intervenção da polícia completamente conflitantes.
militar para conter um tumulto nos pavilhões da
Casa de Detenção de São Paulo. O processo de O empoderamento do staff da Seguran-
democratização sofria um duro golpe, revelando ça Pública em detrimento do staff da Justiça,
que eram ainda fortes as forças que resistiam às sobretudo no caso dos estabelecimentos da
mudanças, que tinham nos aparatos policial e Coespe, com esse Decreto, representava um
prisional uma trincheira poderosa, e que se dis- reconhecimento de direito ao que de fato já se
punham a desafiar a lei e a ordem democrática. dava desde o último ano da gestão Montoro.
Nesse sentido, o Massacre do Carandiru não
A intervenção da polícia militar na Casa representou uma intervenção esdrúxula, um
de Detenção em 1992 foi a expressão de um intervalo inusitado nas práticas de intervenção
momento de ápice de uma tendência política policial, mas antes parte de um contínuo. O
que predominou na área da segurança públi- governo Fleury tentou de todas as formas justi-
ca, especialmente depois da saída do Secretário ficar a ação policial no caso do Massacre do Ca-
de Justiça José Carlos Dias. Essa tendência ia randiru. Todavia ficou evidente que o caminho
no sentido de um posicionamento muito mais das negociações não foi plenamente explorado,
agressivo no combate ao crime e no enfrenta- que houve uso excessivo da força, que os presos
mento das revoltas de presos, dentro de um não estavam armados e que na verdade houve
padrão de baixa preocupação com negociações, dezenas de execuções sumárias de presos perpe-
conformando por vezes atuações marcadas pela tradas por agentes policiais.
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voltadas para o sistema penitenciário. Um
deles foi a criação da Secretaria da Adminis- O governo Mário Covas, iniciado em 1995,
tração Penitenciária (SAP) por meio da Lei nº representou em certo sentido a retomada ex-
8.209, de 4 de janeiro de 1993. Em 1994 foi plícita de vários compromissos com a agenda
criada a Academia Penitenciária, ampliando dos direitos humanos na área da segurança pú-
as atribuições do então Centro de Recursos blica. Ficou evidente a disposição do governo,
tes da sociedade civil. Mesmo assim, a longa re- ainda na gestão de José Carlos Dias, o Cen-
belião ocorrida na Penitenciária I de Tremembé tro de Readaptação Penitenciária (Decreto nº
em 26 de março de 1995, uma das mais longas 23.571, de 17 de junho de 1985), o Anexo, ou
da história do sistema penitenciário brasileiro, “Piranhão”, como é chamado, sempre recebeu
com 130 horas, chegou ao fim com um total de presos que tinham problemas disciplinares em
dois presos mortos, dois funcionários feridos e outros presídios, que haviam comandado rebe-
dois policiais feridos; na Casa de Detenção de liões ou que eram ameaçados pelos companhei-
Hortolândia, em 20 de junho, morreram três ros em função do crime praticado ou de confli-
presos e três funcionários. tos provocados na massa carcerária. Nesse local,
o regime sempre foi diferenciado em relação às
O governo, naquele momento, além das demais unidades prisionais, sendo o tempo di-
dificuldades para inaugurar um outro tipo de ário de permanência do preso na cela em torno
intervenção nas rebeliões, passaria a enfrentar de 23 horas; não havia atividade coletiva, os
um outro problema que veio à tona já nesses banhos de sol eram em pequenos grupos; para
acontecimentos e que passaria a se constituir se deslocar dentro da unidade os presos eram
como um sério desafio para a gestão das pri- rigorosamente revistados antes e depois de saí-
sões desde então: a ação de grupos criminosos rem das celas; havia severas restrições às visitas
organizados no interior das penitenciárias. Na e ao desenvolvimento de qualquer contato com
rebelião de Hortolândia, o governo foi dura- o mundo exterior.
mente criticado por parte de alguns órgãos de
imprensa, que disparavam ataques ao atendi- Embora o governo negasse sistematica-
mento às exigências de transferência por parte mente a existência de grupos criminosos orga-
dos presos amotinados. O jornal O Estado de S. nizados, suas lideranças eram com freqüência
Paulo, por exemplo, avaliando que o governo mandadas para o Anexo, e diversas rebeliões
atendia às demandas dos revoltosos, considera- ocorriam nas demais unidades prisionais mani-
va preocupante os presos determinarem quem festando o descontentamento dos presos com
e quantos deveriam ser transferidos de uma aquele regime. O jornal Folha de S. Paulo de
unidade para outra, uma vez que isso abria ca- 27 de maio de 1997 denunciava a existência de
minho para que os grupos de criminosos, já uma organização — o Primeiro Comando da
existentes nas penitenciárias, assumissem “o Capital (PCC) — supostamente formada por
controle do sistema prisional paulista. Se isso presos do sistema penitenciário de São Paulo, a
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(CNBB). O preso alertava para o fato de que tamento Psiquiátrico de Franco da Rocha e a
o PCC, além de pregar rebeliões em seu esta- Casa de Detenção de São Paulo).
tuto, estaria praticando “terrorismo nas cadeias
do Estado, extorquindo, assaltando, traficando A tendência ao crescimento da base física
drogas e até matando opositores”. Mas, segun- do sistema continuou de forma vigorosa. O
do o jornal, as autoridades não estariam tão quadro das prisões em São Paulo, no final de
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grupos criminosos que atuavam nas unida-
des prisionais e que, muitas vezes, nem che- Crescimento acelerado da população
gavam a ter a sua existência reconhecida pe- encarcerada
las autoridades. As instabilidades no sistema O aumento da criminalidade desde a dé-
provocavam desgastes políticos constantes cada de 1980 promoveu uma forte pressão da
e aceleraram a construção de novas unida- opinião pública para a adoção de métodos cada
SAP SSP
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De Montoro a Lembo: as políticas
penitenciárias em São Paulo
Fernando Salla
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1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Assim, enquanto as unidades da SSP man- portanto, o fluxo de saída dos presos do siste-
tiveram a população quase estabilizada em suas ma penitenciário. No entanto, sses esforços têm
unidades num período de cerca de dez anos, a encontrado uma tímida recepção dos legislado-
SAP praticamente teve a sua população tripli- res e mesmo entre os setores diretamente envol-
cada, saltando dos 31.842 presos em 1994 para vidos na questão, como é o caso do Judiciário e
108.480 em 2004. Tem havido uma pressão do Ministério Público.
constante sobre o sistema penitenciário no sen-
tido de receber os presos que estão sob a guarda O aumento expressivo da população encar-
da polícia em delegacias e cadeias públicas. cerada, por outro lado, vem sendo acompanha-
do de ações governamentais marcadas por uma
Esse vertiginoso aumento da população preocupação cada vez maior em criar mecanis-
total encarcerada vem sendo responsável por mos severos de controle da massa carcerária:
ações governamentais que oscilam, de um lado, estabelecimentos especificamente desenhados
na direção do desejo de conter esse crescimen- para essa contenção, como a Penitenciária de
to por meio, por exemplo, da maior aplicação Presidente Bernardes, a criação de alas especiais
de penas alternativas, ou então de reformas da nos presídios para o mesmo fim e a conseqüen-
legislação a fim de facilitar a obtenção de bene- te implantação de normas de funcionamento
fícios ou ainda de encurtar penas privativas de igualmente severas, como o Regime Disciplinar
liberdade para determinados crimes. Aumentar, Diferenciado (RDD).
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importância para a redução das pressões que se penas alternativas.
colocam sobre a capacidade de absorção de pre-
sos pelas unidades prisionais. Em função disso, Em São Paulo, já existia, na Capital, desde
ao lado das ações destinadas à construção de 1997, um posto de atendimento para essas pe-
novas unidades e à melhoria dos serviços de as- nas. Em 2004, as Centrais existentes no estado
sistência judiciária aos presos para a agilização eram sete, incluindo a da Capital: Rio Claro,
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esse regime rígido já existia no Anexo da
Com a crise de maio de 2006, foi substi- Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté
tuído o secretário Nagashi Furukawa por An- há muitos anos, praticamente desde a sua en-
tonio Ferreira Pinto. Durante a crise, algumas trada em funcionamento ainda na década de
ONGs que atuavam no sistema penitenciário 1980. Essa regulamentação não impediu que
foram acusadas de atuar como porta-vozes de fosse considerada avessa às determinações
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democratização do País.
2. Esses dados estão contidos nos Anuários Estatísticos dos anos de 1983 e 1987.
3. Para um relato sobre o percurso do PCC desde a sua formação em 1993, ver o trabalho
jornalístico de Josmar Jozino (2005)
grades. Rio de Janeiro: Human Rigths Watch. violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
ILANUD (INSTITUTO LATINO AMERICANO DAS NAÇÕES RAMALHO, José Ricardo,.(1979), Mundo do crime: a
UNIDAS PARA A PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMEN- ordem pelo avesso. Rio de Janeiro: Graal.
TO DO DELINQÜENTE) (1998), “Incidentes prisionais
no sistema carcerário”. Revista do ILANUD, n.9. RIOS, José Arthur. (1989), “Motins em prisões: seus
fatores e possibilidades de preveni-los”. Revista da
JOZINO, Josmar. (2005), Cobras e lagartos – a vida Escola do Serviço Penitenciário, 1, pp. 42-49.
De Montoro a Lembo: as políticas
penitenciárias em São Paulo
Fernando Salla
PAIXÃO, Antônio L. (1987), Recuperar ou punir? Co- THOMPSON, Augusto F. G. (1976) A questão penitenci-
mo o Estado trata o criminoso. São Paulo: Cortez. ária. Petrópolis: Vozes.