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TEMPO COMUM. VIGÉSIMA TERCEIRA SEMANA.

SEXTA-FEIRA

98. FILIAÇÃO DIVINA


– Generosidade de Deus, que quis fazer-nos seus filhos.

– Consequências da filiação divina: abandono em Deus.

– “Comportar-nos como filhos de Deus com os filhos de Deus”: fraternidade.

I. SÃO PAULO ESCREVE a Timóteo e, abrindo-lhe o coração,


conta-lhe como o Senhor confiou nele e o fez Apóstolo, apesar
de ter sido blasfemo e perseguidor dos cristãos. A graça de
Nosso Senhor – diz-lhe – superabundou em mim, dando- me a fé e
a caridade em Cristo Jesus1. Cada um de nós pode afirmar
também que Deus derramou sobre ele a sua graça
abundantemente. Deus criou-nos e quis dar-nos depois
gratuitamente a maior dignidade que se possa imaginar: a de
sermos seus filhos, domestici Dei, da sua própria família2.

A filiação divina natural dá-se em Deus Filho: “Jesus Cristo,


Filho unigénito do Pai, nascido do Pai antes de todos os
séculos..., gerado, não criado; consubstancial ao Pai”3. Mas
Deus quis, por meio de uma nova criação, fazer-nos participar da
filiação do Unigénito, tornando-nos seus filhos adoptivos: Vede
que amor nos mostrou o Pai em querer que sejamos chamados
filhos de Deus, e que o sejamos efetivamente4; quis que o
cristão recebesse a graça, de modo a participar da natureza
divina: divinae consortes naturae, diz São Pedro numa das suas
Epístolas5.

A vida que os filhos recebem por meio da geração humana já


não é dos pais; pelo contrário, o que se dá aos homens pela
graça santificante é a própria vida de Deus. Sem que com isso
se destrua nem se force a nossa natureza humana, somos
admitidos na intimidade da Santíssima Trindade. Toda a vida é
afectada pela filiação divina: o nosso ser e a nossa atuação6.

Isto tem múltiplas consequências práticas. Assim, por


exemplo, a nossa oração será a de um filho pequeno que se
dirige ao seu pai, pois descobrimos que Deus, além de ser o Ser
Supremo, Criador e Todo-Poderoso, é verdadeiramente Pai
amoroso de cada um de nós; e a vida interior já não é uma luta
solitária contra os defeitos nem uma corrida ofegante em busca
do “auto-aperfeiçoamento”, mas desejo vivo de dar alegrias ao
nosso Pai-Deus, de quem nos sabemos muito queridos, e
abandono confiante nos seus braços fortes.

Esta realidade dá à nossa vida uma especial firmeza e um


modo peculiar de enfrentar tudo o que ela traz consigo.
“Descansa na filiação divina. Deus é um Pai – o teu Pai! – cheio
de ternura, de infinito amor.

“Chama-lhe Pai muitas vezes, e diz-lhe – a sós – que o amas,


que o amas muitíssimo!: que sentes o orgulho e a força de ser
seu filho”7.

II. FAZER-SE FILHO DE DEUS significa identificar-se com o


Filho, isto é, significa ver os acontecimentos e julgá-los com os
olhos do Filho, obedecer como o Filho, que se fez obediente até
à morte8, amar e perdoar como Ele, comportar-se sempre como
os filhos que se sabem na presença de seu Pai-Deus9, e se
sentem confiantes e serenos, compreendidos, perdoados,
estimulados sempre a seguir adiante...

Quem se sabe filho de Deus não deve ter nenhum temor na


sua vida. Deus conhece melhor do que nós as nossas
necessidades reais, é mais forte do que nós e é nosso Pai10.
Devemos fazer como aquele menino que no meio de uma
tempestade no mar alto continuava a brincar, enquanto os
marinheiros temiam pelas suas vidas; era o filho do timoneiro do
barco. Quando, ao desembarcar, lhe perguntaram como tinha
estado tão tranquilo no meio daquele mar embravecido,
respondeu: “Ter medo? Mas se o leme estava nas mãos de meu
pai!” Quando nos esforçamos por identificar a nossa vontade
com a de Deus, Ele, que conhece bem a rota que conduz ao
porto seguro, toma nas mãos o leme da nossa vida.

Uma alma que luta seriamente pela santidade pode sentir-se


às vezes, por permissão de Deus, como que perdida, inepta,
desconcertada no meio de um cúmulo de dificuldades; apesar
do seu desejo de ser inteiramente de Deus, não compreende o
que acontece à sua volta. “Nesses momentos, em que nem
sequer se sabe qual é a Vontade de Deus, e se protesta: Senhor,
como podes querer isto que é mau, que é abominável ab
intrinseco! – à semelhança da Humanidade de Cristo, que se
queixava no Horto das Oliveiras –, quando parece que a cabeça
enlouquece e o coração se rompe... Se alguma vez sentis este
cair no vazio, aconselho-vos aquela oração que eu repeti muitas
vezes junto do túmulo de uma pessoa amada: Fiat, adimpleatur,
laudetur atque in aeternum superexaltetur iustissima atque
amabilissima...”11 “«Faça-se, cumpra-se, seja louvada e
eternamente glorificada a justíssima e amabilíssima Vontade de
Deus sobre todas as coisas. – Assim seja. Assim seja»”12.

É o momento de sermos muito fiéis à Vontade de Deus, de nos


deixarmos exigir e ajudar por meio da direcção espiritual
pessoal, com uma docilidade absoluta. Se Deus, que é nosso
Pai, permite esse estado interior de trevas, também nos
concederá as graças e ajudas necessárias para sairmos dele.
Esse abandono, sem pôr limite algum, nas mãos de Deus,
dar-nos-á uma paz inquebrantável e nos fará sentir o braço de
Deus, poderoso e suave, que nos ampara no meio do mais
completo vazio. Também nós repetiremos então, bem devagar,
saboreando-a docemente, essa oração confiante: Faça- se,
cumpra- se, seja louvada...

III. ENSINAR- ME- EIS O CAMINHO DA VIDA, saciar- me- eis de


felicidade na vossa presença, de perpétua alegria à vossa
direita13, proclama o Salmista.

Não existe alegria mais profunda – mesmo no meio da


necessidade e do vazio, quando o Senhor o permite –, que a do
filho de Deus que se abandona nas mãos de seu Pai; porque
nenhum bem pode ser comparado à infinita riqueza de nos
sabermos familiares de Deus, filhos de Deus.

Esta alegria sobrenatural relacionada com a Cruz é o


“gigantesco segredo do cristão”14. Quem se sente filho de Deus
não perde a paz, nem sequer nos momentos mais duros. A
consciência da sua filiação divina liberta-o de tensões
interiores e quando, pela sua fraqueza, se desencaminha, se
realmente se sente filho, volta arrependido e confiante à casa
do Pai.

“A filiação divina é também fundamento da fraternidade


cristã, que está muito por cima do vínculo de solidariedade que
une os homens entre si”15. Os cristãos sentem-se
verdadeiramente irmãos, porque são filhos do único Pai, que
quis estabelecer connosco o vínculo sobrenatural da caridade.
No Evangelho da Missa, o Senhor pede-nos um olhar puro para
vermos os nossos irmãos. Por que vês a palha no olho do teu
irmão, e não notas a trave no teu? [...]. Tira primeiro a trave do
teu olho, e então cuidarás de tirar a palha do olho do teu
irmão16.
O Mestre convida-nos a olhar os outros sem esses
preconceitos que forjamos com as nossas próprias faltas e, em
última análise, com a nossa soberba, que nos faz tender a
aumentar as fraquezas alheias e a diminuir as próprias.
Exorta-nos “a olhar os outros de uma forma mais profunda, com
um olhar novo [...]; é preciso que tiremos a trave do nosso
próprio olho. Ocupamo-nos muitas vezes na tarefa superficial de
querer tirar a qualquer custo a palha do olho de toda a gente. E
o que temos de fazer é renovar a forma de contemplar os
outros”17.

“Devemos pensar nos outros – em primeiro lugar, nos que


estão ao nosso lado – como verdadeiros filhos de Deus que são,
com toda a dignidade desse título maravilhoso.

“Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos


de Deus: o nosso amor tem de ser sacrificado, diário, feito de
mil detalhes de compreensão, de sacrifício silencioso, de
dedicação que não se nota. Este é o bonus odor Christi, que
fazia dizer aos que viviam entre os nossos primeiros irmãos na
fé: «Vede como se amam!»”18

Comportarmo- nos como filhos de Deus com os filhos de Deus,


ver as pessoas como Cristo as via, com amor e compreensão;
tanto os que estão perto de nós como os que parece que se
afastam, pois a fraternidade estende-se a todos os homens,
porque todos são filhos de Deus – criaturas d’Ele – e todos foram
chamados também à intimidade da casa do Pai.

Seguindo este caminho amplo da filiação divina, passaremos


pela vida com serenidade e paz, fazendo o bem19, como Jesus
Cristo, o Modelo que devemos olhar continuamente, de quem
devemos aprender a ser filhos de Deus Pai. Se recorrermos a
Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, Ela nos ensinará a
abandonar-nos no Senhor, como filhos pequenos que não se
podem valer a si próprios.

(1) 1 Tim 1, 12-14; Primeira leitura da Missa da sexta-feira da vigésima


terceira semana do TC, ano ímpar; (2) Ef 2, 19; (3) Conc. de Nicéia, a. 325.
Denz.- Shc., 125; (4) 1 Jo 3, 1; (5) 2 Pe 1, 4; (6) cfr. F. Ocáriz, El sentido de la
filiación divina, Pamplona, 1982, pág. 178; (7) Josemaría Escrivá, Forja, n.
331; (8) cfr. Fil 2, 8; (9) cfr. M. C. Calzona, Filiación divina y vida cristiana en
medio de mundo, em La misión del laico en la Iglesia y en el mundo, EUNSA,
Pamplona, 1987, pág. 304; (10) V. Lehodey, El santo abandono, Católica
Casals, Barcelona, 1951, II, 3; (11) Postulação da Causa da Beatificação e
Canonização do Servo de Deus Josemaría Escrivá de Balaguer, Sacerdote,
Fundador do Opus Dei, Artigos do Postulador, Roma, 1979, n. 452; (12)
Josemaría Escrivá, Caminho, n. 691; (13) Sl 15, 11; Salmo responsorial da
Missa da sexta-feira da vigésima terceira semana do TC, ano ímpar; (14) cfr.
G. K. Chesterton, Ortodoxia, págs. 308-309; (15) M. C. Calzona, op. cit., pág.
303; (16) Lc 6, 41-42; (17) A. M. G. Dorronsoro, Dios y la gente, Rialp, Madrid,
1974, pág. 134-135; (18) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 36; (19) cfr.
At 10, 38.

(Fonte: Website de Francisco Fernández Carvajal AQUI)

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