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Do princípio de todas as coisas

No princípio era eu, a Onomatopeia. E eu distribuí os sons aos fenó-


menos. Foi um BUM! (ou BIG BANG!, como se diz). E aquele estertor,
chocalhando a vaziez do nada mais nada já havido, era eu, a Onomatopeia,
obrando o mundo à minha maneira.
Depois do meu BUM! cósmico, fui homenageada com um minuto de
silêncio — um longo minuto de silêncio universal que durou milhões e
milhões de anos, como se o universo inteiro e todas as suas coisas tivessem
retido o fôlego por alguns instantes de grande duração. E eu desapareci.
E tudo sucedeu como num filme mudo. O cosmos estruturou-se nas
suas mais insignificantes partículas, sem o menor ruído que pudesse cha-
mar a atenção para o que estava enfim surgindo para nunca mais deixar
de ser.
Entretanto, era fundamental que eu ressurgisse. Caso contrário, os
fenómenos físicos acontecidos, e dou um exemplo, na infância do nosso
planeta — período em que se formou a geografia básica da crosta —
teriam transcorrido em completo silêncio, na absoluta mudez do tempo
e do espaço.
No que reapareci, o mundo seguiu como deveria — ou seja, onoma-
topeicamente. Disto estou segura, pois teria sido impossível a partir daí
a perpetuação da realidade, não fossem meus PIMBAS!, meus BUNS!, meus
POWS!.
A formação dos rios e mares, só para citar alguns exemplos; não é difícil
imaginar o carácter irreal que adquiriria caso tivesse sido levada a cabo em
completo e melancólico silêncio. O menor movimento perder-se-ia para
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sempre na névoa das imagens sem som. O estrondoso abrir-se das camadas
geológicas sobre si mesmas e a sua posterior reacomodação nas crateras do
solo — para que então surgissem mares, rios, lagos, lagunas e cabeceiras
fluviais — dar-se-iam na mais decepcionante discrição. Certamente que as
águas não se avolumariam e não invadiriam placas gigantescas de terra tão
furiosa mas indiferentemente quanto o fizeram caso não as tivesse acom-
panhado toda a sorte de barulhos já conhecidos e incorporados por toda
a gente. O espumar incessante e omnipresente do retroceder dos oceanos
sobre o que viria a ser conhecido como o litoral dos continentes não teria
feito sentido algum se a natureza audível de todos os aconteceres não esti-
vesse presente. Os ovos dos pintos — e dos outros animais estruturados em
cascas — ter-se-iam quebrado em silêncio; e em silêncio os primeiros ensi-
namentos teriam sido ministrados. O ruído ridículo da gota desprendida de
uma estalactite a empilhar gotas virtualmente petrificadas numa estalagmite
faria tanta falta quanto o ribombar de uma trovoada prenunciando mais
e mais chuva para o Verão. Nesta mesma chuva com certeza não estaria
embutido aquele pipocar sonífero de gota caindo que, após os almoços de
domingo, faz dormir os homens de todas as terras.
Eu pergunto, afinal: que sentido teria um eco ricocheteando em
silêncio por uma serra se eu não existisse e a realidade subitamente emu-
decesse?

A Onomatopeia

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I

— Vou começar.
Foi neste dia e dizendo isto que o Verbo — por ocasião da abertura
dos trabalhos para a votação do Projecto de Ortografia Unificada para a
Língua Portuguesa, a ser realizada no Debatedouro da cidade —, ajeitado
em cima do palanque e nervosíssimo para pronunciar logo o seu discurso,
começou a agitar as mãos de tal maneira e com tanto vigor que nunca
mais conseguiu parar.
Mas ainda não poderia. A professora Norma observou que ainda
faltava gente.
— Por isso, precisamos de fazer a chamada.
— Mas não é necessário! — indignou-se o Verbo, abanando as mãos
e derrubando os óculos.
— Ei! A grosso modo, se faz necessário, sim! — retrucou lá do fundo
o Solecismo.*
— Quietos! — pediu o Ponto de Exclamação. — A doutora Nota de
Pé de Página quer falar! Atentem para o *! O * é o sinal de que ela quer
falar!
— Fazer chamada a esta altura do campeonato é uma parvoíce! —
precipitava-se, abanando-se de aflição, o Verbo.

*
Com licença! Com licença! Eu preciso de falar! Eu preciso de esclarecer alguns pontos!
Por fav...

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— A nível de chamada, eu afirmo: devemos fazer a chamada! — insis-
tia o Solecismo.**
— A doutora Nota, gente! A doutora Nota quer falar! Atentem! Ela
já mandou o segundo sinal! E agora são dois asteriscos! — o Exclamação
estava desesperado; gostava demais da Nota. — Pode falar, doutora Nota
de Pé de Página!***
O Pleonasmo concordou com a necessidade de se fazer a chamada
e ainda disse mais; disse tudo o que tinha a dizer sobre o facto de as
presenças que deveriam estar presentes não estarem presentes, ao que
o Solecismo, confuso com a redundância das presenças presentes e não
presentes, encolheu os ombros e aproveitou para reclamar da falta de res-
ponsabilidade daqueles que eram pagos para comparecer e não o faziam
com consciência e frequência.
— Porque a consciência e a frequência, a nível de valor, são o bem
mais fundamental da espécie...
— Pelo que há de mais sagrado! — berrou o Verbo, convencido de
que não acreditava no que ouvia. — Interditem a língua deste néscio! — e
respirou fundo, trancando as mãos nos bolsos das calças. — Pelo que eu
sei, o único ausente é o Ponto Final. E todos sabem muito bem que ele não
tem direito a voto! Por isso, e para dar um ponto final a esta postergação
dos demónios, imponho que comecemos logo a abertura dos trabalhos,
já que não há impedimento de espécie alguma.
Todos perceberam muito bem a que ponto o Verbo queria chegar, e
Beto Alfabeto, o despojado, provocou:

**
Alô! Alô! Eu preciso de conquistar o meu espaço! Eu sou a Nota de Pé de...
***
Obrigada, meu jovem... Obrigada... Eu sou a Nota de Pé de Página. Meu nome oficial
é PÁGINA, Nota de Pé de. Vocês sabem, o apelido deve vir à frente... Mas o pessoal chama-
-me é Nota, ou Nota de Rodapé. Eu digo para os outros que prefiro ser chamada pelo nome
oficial, mas a verdade é que adoro ser chamada assim, de Nota, simplesmente Nota. A minha
função é esclarecer, clarificar, explicar, referir, indicar, restringir, lembrar, observar, comentar,
detalhar, esmiuçar, impacientar, aborrecer, fazer dormir... Agora, por exemplo, vou explicar o
que significa solecismo. Ninguém tem a obrigação de saber o que diabos é um solecismo. Eu,
Nota, vou esclarecer: solecismo é qualquer erro de sintaxe. Para simplificar: solecismo, para nós,
passa a ser alguma coisa que serve para designar qualquer tipo de erro de português. Quem
faz um erro comete um solecismo, ou quem comete um erro faz um solecismo. Obrigada pela
atenção. Podem continuar.

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— Letra a: azurros não decidem nem as mínimas questões. Letra b:
burros azurram; somente os burros azurram. Letra c:...
— Dá licença aí, ó Betão! — meteu-se o Modo Coloquial, que era
meio desconfiado. — Antes que você desate a desfiar pelo chão todo
o abecedário, eu queria dar um toque na trupe. É o seguinte, pessoal:
a questão não é se o Ponto vota ou não vota; a questão é que não dá
p’ra começar nada sem o Ponto. Aliás, o que quero dizer é que não dá
p’ra terminar nada sem o Ponto. Eu sei muito bem porque é que o Verbo
‘tá numa de discursar sem esperar pelo Ponto. Sem ponto, ninguém chega
a lugar nenhum, né? Ele vai ficar aí a falar... a falar... E nós aqui, a ouvir...
Até quando? Se o Ponto Final não ‘tá na área, como é que o Verbo vai
terminar o discurso, hem? Quero ver quem é que vai calar o verborrágico.
Quero ver...
— É um ignorante... — murmurou o Verbo, agitando as mãos.
E a menina professora Norma, ali ao lado, achou que seria justo ajudá-
-lo. Levantou-se, ajeitou a saia, perfilou os ombros e, olhando o Modo
Coloquial de cima a baixo, como se quisesse, se pudesse, apagá-lo com
corrector, disse:
— Tenho o maior prazer em informá-lo, senhor Modo Coloquial, ou
como quer que o senhor seja conhecido...
— Pode chamar-me brother.
A professora Norma avermelhou-se, mas persistiu, não sem antes olhar
estupefacta, e pedindo ajuda, para o doutor Aurélio, que nem sequer
levantou os olhos.
— Senhor, hum... Quero dizer, brother, informo-o, se não sabe, e
pelos vistos não sabe mesmo, de que há vários modos de se terminar um
discurso. Portanto, os seus temores com relação às intenções do senhor
Verbo são totalmente infundados.
— Quais são os modos? — quis saber o Ponto de Interrogação.
A menina Norma aclarou a voz:
— Bem. No caso de o discurso pretender ser, em sua última frase,
retumbante, pode lançar-se mão do senhor Ponto de Exclamação, como
todos já devem ter percebido, a julgar pelas inconvenientes manifestações
de histeria indignada do senhor Solecismo, o qual, aliás, há uma semana
não comparece às minhas aulas de português. O senhor — e voltou-se
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para o Ponto de Interrogação — teria a sua correcta serventia se o senhor
Verbo pretendesse fechar o seu falar com uma questão, o que pessoalmente
não consideraria muito apropriado, visto neste caso, e em todos os casos,
serem a certeza e a afirmação preferíveis à incerteza e à dúvida. Bom, o
discurso pode também findar-se com as meninas Reticências — e olhou-as
com ódio —, no caso de o senhor Verbo pretender, ao final, provocar um
efeito, hum, pseudo-poético, deixando-o, ao discurso, a meu ver, incon-
cluso. À tout prendre, é isto.****
A professora, como sempre, arrasara. O pessoal, aparentemente satis-
feito com as soluções apresentadas, calou-se. Teve-se a impressão, inclu-
sive, de que aqueles apontados como possíveis candidatos ao fechamento
do discurso do Verbo estavam até um pouco excitados e ansiosos para que
o Ponto Final desaparecesse por completo de suas vidas, sumindo defini-
tivamente de todas as gramáticas. Acabaria o monopólio, e todos os dis-
cursos, contratos, livros, relatórios, bilhetes; todas as cartas, reportagens,
petições; tudo o mais a ser publicado, escrito e imaginado constituiria
uma belíssima oportunidade para que o Exclamação, o Interrogação e
as Reticências fossem motivo de grandes e inconfessáveis invejas, de tão
famosos e importantes que se tornariam.
E, animada com o resultado, assim terminou a menina Norma:
— Então, creio que, dentro dos sensatos paradigmas da normati-
vidade gramatical, as soluções apresentadas se me afiguram como as
únicas possíveis. Qualquer alternativa às já enunciadas é, com o perdão
da má palavra, doutor Aurélio, é «literatice modernosa de baixa enver-
gadura».
— M... — ia começando a praguejar o Palavrão.
— Chiu!! Esteja calado, Palavrão! — cortou o Modo Imperativo, que
não admitia palavrões.
— Mas isso que ela está dizendo é mesmo uma mer...
— Calado, Palavrão!!

****
Com licença novamente!... Vocês não reparem, o meu francês anda num estado... Nem
biquinho eu consigo mais fazer. Hum, vejamos: à tout prendre. Trata-se de uma locução adver-
bial que significa: considerando tudo, apesar de tudo. Eu, na verdade, acho essas coisas de falar
caro uma seca... E mais: a professora Norma é muito metidinha para o meu gosto...

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O Palavrão calou-se. O Palavrão é considerado um sujeito tosco e mal-
-educado. Nisto estava a coisa, quando se percebeu um redemunho, vindo
das últimas cadeiras e acompanhado de uma lufada de ar quente, que fez
arrepiarem-se os cabelos de todos de tal modo que se tornou impossível
a qualquer um comunicar a qualquer um qualquer coisa. Uma algazarra.
Levantaram-se a saia da menina professora Norma, os poucos cabelos do
doutor Aurélio e os milhões de papelinhos de rascunho espalhados pelo
Debatedouro. A retumbante voz declamatória da dona Rima de Lima,
conseguindo pôr-se acima de todo o escarcéu, bradou:

— É o Fluxo de Consciência!!
Que cada um segure
o seu pensamento,
pontuando-o com justeza
e conveniência!

O preceito, contudo, em meio àquele deus-nos-acuda, não vingou.


Todos os discursos subiram à tona numa polifonia ensurdecedora, só
superada pela bagunça vivida lá na Torre de Babel, quando foi resolvido
que o ser humano falaria muitas línguas e seria um troglodita poliglota.
O pessoal — a falar ao mesmo tempo e a tentar comunicar aos demais que
assim não se chegaria ao ponto da questão, neste caso, o Ponto Final —
não entendeu muito bem quem havia começado o rebuliço, desatando
todo o Debatedouro a acusar um ao outro sem dó nem piedade, verbor-
ragicamente e com todos os pontos e vírgulas.
O doutor Aurélio — até então calado — perdeu o controle. Empu-
nhou um dicionário e começou, com vigor, a batê-lo na própria cabeça.
Ele sabia que não era bom para a saúde bater com um dicionário na
cabeça — era um senhor idoso. Mas continuou. E pediu ordem, muita
ordem; que, sem ordem, qualquer acto se perdia no vai-e-vem da inuti-
lidade. E, assim que ouviu lá do fundo da sala a dona Rima de Lima
anunciar, aos berros mas em perfeita métrica, que «sem ordem o que
havia era o império da entropia», o velhinho, animado, chegou a cogitar
numa ordem alfabética. E exigiu a presença de Beto Alfabeto, o despo-
jado. Como este se recusasse, pediu ao mundo inteiro que aquela algazarra
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terminasse, pelo amor de Deus; que algazarra vinha do árabe al-gazara:
gritaria que os mouros levantavam em qualquer acometida militar; que
algazarrar era fazer algazarra; que estavam todos a algazarrar, e não seria
ele, doutor Aurélio, quem iria permitir que algazarrassem uma segunda,
uma terceira, uma quarta vez. Dissertou, em seguida e brevemente, sobre
o rebuliço, que vinha de re-bulício, de bulir: rumor contínuo e indefinido
de coisas ou vozes; vozes aos montes; a calar-lhe a boca; a enterrá-lo de vez.
O Indirecto Livre***** era dos mais assanhados. Até que estava bem
quieto antes de sentir na nuca o bafo quente e formigante da liberdade.
E desatou a falar; a manifestar o seu completo desacordo com tudo o que
sucedia naquele ambiente de discórdia. O que mais poderia sentir? Decep-
ção... Imaginara coisa diversa quando, pela manhã, sentado no banco do
autocarro, se dirigia para o Debatedouro, lugar dos lugares. O que era
aquilo? Aquela zona? Aquela barulheira? E esta Norma? Aonde pretendia
chegar esta professora com as tais três maneiras de se terminar um dis-
curso? Três maneiras?! Pois havia muito mais! Mais maneiras! Norma, a
dita normas! E para quê normas? E para quê a Norma? O que queria ela
dizer com «literatice modernosa de baixa envergadura»? Que entendia esta
moça de envergadura? Pois ela agora iria ouvir; ouvir durante muitos pará-
grafos! Aliás, dispensaria os parágrafos. Parágrafos só serviam para agrupar
as ideias das pessoas. E, como as ideias das pessoas são geralmente muito
confusas, os parágrafos, coitados, perdem-se; despistam-se. E, despistando-
-se, descolorem a narrativa; suspendem o delicioso e mirabolante caracol
dos efeitos, dos trejeitos, dos estreitos da linguagem. Ele, Indirecto Livre,
faria sempre jus ao seu apelido. Livre! Indirecto Livre! Senhor Livre! Enca-
beçaria uma revolução! Já estava tudo armado, bastava apenas decidir o

*****
Boa, boa! Antes que vocês comecem a ler o chilique do Indirecto Livre, eu gostaria
de ser um pouquinho didáctica, só para variar... Eu poderia simplesmente não ligar e ver se
vocês, ao lerem, descobrem quem é e o que faz o Indirecto Livre, mas, como eu tenho fama
de chatinha, farei jus à minha fama. O Indirecto Livre é uma mistura do Directo com o Indi-
recto. O Directo acontece quando um tipo tagarela alguma coisa, assim, directamente para o
leitor, como eu estou a tagarelar para vocês. O Indirecto é quando o tipo que está a escrever
diz ao leitor o que é que a personagem está a dizer ou a fazer. No Indirecto Livre, é como se
o escritor entrasse na personagem e vice-versa. Ai, meu Deus! Como ando confusa... É melhor
vocês aprenderem na prática...

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que seria revolucionado, como, porquê, onde, através de quem e pelo quê.
Uma revolução que chacoalharia as consciências e os comportamentos e o
modo de se ler e escrever e sublinhar e rever e corrigir e apagar e pontuar
e rescrever o mundo! Seria o fim de uma determinada espécie de mundo.
Assim ia pensando e falando o que pensava o Indirecto Livre.
A menina professora Norma, acuada, ruborizada e com o Fluxo de
Consciência a espetar-lhe o olhar, lutava contra a própria saia, que lhe
subia pelas coxas nos momentos de excitação e desassossego. O Fluxo,
depois de rir como se aquela fosse a sua última vez, jogou-lhe na cara o
que se segue:
— ... professorinha das coxas roliças acha que pode pôr-se a inventar
a norma do final dos discursos que nunca têm final porque são como o
rio que corre e escorre e como diz o Régio poeta José o rio que «anda
desanda e sarabanda e ciranda ao redor» de todas as coisas que existem e
sempre estarão a existir até o infinito fim do mundo... professorinha de
itálicas coxas, não existe a Norma porque a cátedra não vinga, somente
a «velô da língua» e muitos poetas, e há o Haroldo, o de Campos, que
diz que «o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do
sol»... pois não é que a língua a gente mais é inventa, e se não inventa eu
vento quente o vento quente que te esquenta estas entranhas negritas que
todo o mundo cobiça... muitos modos de se terminar qualquer coisa neste
mundo... o discurso a fala o texto a morte a Norma a vida... eu termino
com as tuas normas como se termina uma paixão... ! (?? ... viu?
Pronto. Eis a Norma, estatelada no chão, saia arregaçada até à cintura,
cabelos embaralhados e voz arrastada. Quando se recompôs, levantando-
-se, abaixando a barra da saia, passando as mãos pelo cabelo e tentando
pôr no lugar a vergonha da cara, que caíra (a vergonha, não a cara, embora
esta, a cara, também desabe em muitos casos), o Fluxo de Consciência —
também conhecido nos meios literários americanos e ingleses como Sir
Stream of Consciousness —, com nova lufada de ar quente tão vaporosa
quanto a anterior e com um sorriso como que cortado a navalha por
algum demónio safado colado à cara, sumiu do tempo e do espaço da
narrativa, deixando nos corações de toda a parte feminina da gramática
uma ponta de saudade.
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O Verbo, vendo que a bagunça já acabava e aproveitando o silêncio
melancólico que se seguiu à partida do Fluxo, achou que era a hora de
reconquistar a palavra. Ajeitou-se novamente no palanque, de onde não
se atrevera a sair desde a instalação do caos, e disse:
— Senhoras e senhores; brasileiras e brasileiros; portuguesas e por-
tugueses; moços e moças; minha gente... Creio que já está tudo muito
bem esclarecido. Os temores de que eu não fosse nunca mais parar de
falar, depois do que bem ou mal demonstraram, respectivamente, nossa
querida professora e nosso muitas vezes inesperado Fluxo de Consciência,
definitivamente não têm fundamento. Além do mais — e espetou os olhos
no Modo Coloquial —, já não sou mais conhecido como «o verborrágico».
Meu intento não é entupir os vossos ouvidos, mas simplesmente dar o meu
recado. Explicar porque, afinal, sou plenamente a favor do acordo ortográ-
fico que vem aí. Explicitarei os meus motivos e tentarei, aqui, persuadir
o Debatedouro das vantagens e das boas consequências contidas neste
projecto; da importância que representa a unificação ortográfica da língua
portuguesa no que tange à sua representatividade junto dos povos de todo
o mundo; representatividade esta que contém em seu bojo, dentro de uma
visão macroscópica das relações entre diferentes culturas, a potencialidade
do poder. E que poder é este? O poder de representar o mundo; de dar
sentido ao mundo; de construir o mundo. Falar de uma língua forte, repre-
sentativa, coesa e presente é falar de um modelo de codificação da realidade
igualmente forte, representativo e coeso. E o que é isto senão a maneira de
pensar de um povo? Um povo que pensa bem fala bem e vive bem. Este é
um dos pensamentos que tentarei expor aqui, para justificar a necessidade
capital da adopção de medidas unificadoras com relação à nossa língua
portuguesa. — E, abanando levemente as mãos, perguntou, inspirando
todo o ar que pôde: — Alguém gostaria de se manifestar?
— Eu.
— Eu, quem?
— O revisor de texto.
— O revisor de texto?!
— Sim. O revisor de texto.
— Mas o que é isso? Como entrou? Um animal... Como entrou?
— Animal?! Bem, é que eu...
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O Verbo tentou controlar-se:
— Não é bem animal... Quer dizer, falo animal, assim, generalizando,
é claro. Animal num sentido bem amplo... — E prosseguiu, já com as
mãozinhas a agitar-se: — Animal assim como o doutor Aurélio e a menina
professora Norma... Bom, eles não são propriamente animais. São animais
no sentido de que são... Nós já os abstraímos como animais... São enti-
dades simbólicas, se é que o doutor Aurélio e a professora me permitem
caracterização tão esotérica... E esta Cerimónia de Votação... — E aumen-
tou o tom da voz: — É secreta! Confidencial! Fechada! É somente para
nós, o pessoal da língua! — E levou as mãos à cabeça: — Mas, meu Deus!
Onde é que eu estou com a cabeça para ficar aqui a perder tempo e saliva
com um animal que se diz «revisor de texto»? Alguém que tem por ofício
na vida corrigir os outros! Encher o saco dos outros com esse negócio de
põe vírgula, tira vírgula; põe ponto, tira ponto... O senhor por favor diga-
-me o que é que o senhor está fazendo aqui!
O revisor de texto, sentindo-se mesmo muito mal, tentou expli-
car-se:
— Muito obrigado. Bem, eu, no exacto momento, não estou a fazer
nada. Estou à espera de que o senhor faça e...
O Verbo enrugou a testa. O revisor de texto continuou:
— Quer dizer, estou à espera do início do seu discurso para começar
o meu trabalho de...
— O meu discurso?! — e deu um pulo. — O seu trabalho?! Não
entendo bem qual é a relaç...
— Por favor! Por favor! Não se aflija! Não tome como nada pessoal.
Na verdade, nem o conheço. Quer dizer, é a primeira vez que o vejo,
assim, pessoalmente. Já o conhecia de ouvir falar, mas assim, pessoal-
mente, cara a cara, é a primeira vez. Então...
— Mas, meu amigo! E o meu discurso? — e atirou ao chão o maço
com as folhas escritas. — O que, diabos!, tem o meu discurso a ver com
isso? Responda! O quê?
O revisor de texto sentiu que lhe diminuía o estômago, mas tentou
de novo:
— O senhor não me deixa prosseguir... Ouça bem. A minha função
aqui é apenas uma formalidade. Quer dizer, quase uma formalidade.
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Cautelas de editor. O senhor sabe como são os editores; querem tudo
bonitinho, bem feito; senão a crítica vem e... ó! O senhor sabe como são
os críticos...
O Verbo estava com uns olhões deste tamanho.
— Mas do que é que o senhor está falando? Que editor? Que crítica?
— E virou-se para os outros, desesperado e confuso: — Ele não diz coisa
com coisa, o estafermo, o basbaque! — Novamente para o revisor de texto:
— Explique-se! Explique-se ou, por favor, saia daqui! Alguém quer fazer
a gentileza de tirar este lorpa daqui?
— Eu vou explicar-me... Eu vou explicar-me... — e olhou em volta.
— O senhor deve saber que, caso o acordo ortográfico seja aprovado nesta
votação, será feita uma edição comemorativa; uma pequena história sobre
todos vocês — e tornou a olhar em volta. — Uma edição cujo texto já
estará na forma da nova ortografia...
O Verbo berrou:
— Disso eu sei! Disso tudo eu sei! Quero saber do meu discurso!
O que tem ele a ver com isto? O que é que você, você!, está aqui a fazer?
— O seu discurso, sendo parte da votação, será também parte da
história, pois alguns trechos, os que forem mais importantes como argu-
mentos para a implantação da nova ortografia, serão aproveitados. Por
isso, o seu discurso, como todo e qualquer texto, está sujeito ao trabalho
de um revisor de texto. Eu sou o revisor de texto. O senhor sabe, para que
a edição comemorativa seja publicada com sucesso, é preciso que esteja
tudo nos trinques...
O Verbo estava transtornado. A menina Norma, sorridente e acompa-
nhando tudo com entusiasmo, meneava a cabeça em sinal de aprovação.
Os outros, bocas arreganhadas, revezavam a mira do olhar entre o Verbo
e o estranho homem que reveria o discurso de abertura da Cerimónia de
Votação.
De repente, sai o Verbo do imobilismo e do palanque — as mãos
estabanando tal qual um beija-flor —, e parte com tudo em cima para
cima do revisor de texto, que, recuando horrorizado, ainda tentou uma
observação:
— Um momento! Um momento!
— Eu o mato... — grunhia.
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— O senhor não precisa de se preocupar com o discurso! Se por acaso
eu me intrometer (Alguns conseguem deter o Verbo por alguns segun-
dos...), será uma ou outra intervençãozinha, nada de mais. Erros comuns...
(O Verbo solta-se e continua a avançar pelo meio das cadeiras. O revisor
de texto recua ainda mais...) Uma concordância mal feita; uma preposição
inconveniente; um cacófato mais agressivo aos ouvidos; um barbarismo-
zinho qualquer; uma anástrofe exagerada, beirando uma sínquise; uma
elipse demasiadamente condensada; um pleonasmo vicioso... (O Verbo
agarra o revisor de texto pela gola da camisa e atira-o contra a parede.
Mas o homem continua a explicar-se...) Enfim, qualquer aberraçãozinha
gramatical que surgir eu venho e... ó! (O Verbo dá um soco na cara do
revisor de texto, que se estatela no chão.)******
Seguram o Verbo e carregam-no para um canto do palanque, onde,
arfando, começa a apanhar do chão os papéis que havia esparramado.
Acalmada a algazarra, os outros — percebendo que não haveria nem
discurso, nem votação — fizeram uma rodinha em volta do pobre homem
que sabia português e ergueram-no. Estava vivo e quase inteiro. Levantado
do chão, procurou com os olhos o doutor Aurélio:
— Doutor Aurélio, acho que lhe devo algumas satisfações...
Do outro lado do Debatedouro, uma súbita mudança na disposição
dos fachos de luz que iluminavam o palanque fez com que este submer-
gisse nas sombras, de tal modo que se tornou complicado contar com jus-
teza como as coisas sucederam. O que se sabe foi o que se conseguiu ouvir
na ressaca da balbúrdia — o monólogo murmurado entre dentes de um
Verbo fora de si e o barulho de muitas e muitas folhas sendo rasgadas.

******
Não! Não! Não! Eu tentei controlar-me para não passar por intrometida, mas não dá!
Eu preciso de explicar estas maluquices que dão nomes às nossas igualmente malucas formas de
falar bem e mal. O cacófato, gente, acontece quando as letras se combinam de tal modo que a
combinação específica delas soa mal, ou seja... Ops! Olha o cacófato aí! Vejam: específica delas:
cadelas... Bom, nem preciso de explicar mais... Anástrofe, deixa ver... Anástrofe é uma inversão
de frase, do tipo: «De português entendo eu...». Quando a anástrofe é meio exagerada, meio
escandalosa, temos a sínquise... A elipse... Bom... Da elipse eu vou falar mais tarde. Já estou
a atrapalhar demais a sessão aqui do Debatedouro...

23
[.]

As satisfações, na verdade, eram um pretexto para que conseguisse uma


conversa a sós com o velhinho. Antes, porém, teve de receber paciente-
mente as felicitações e os agradecimentos da professorinha, para cujo nariz
pontiagudo e afiado olhava agora, com a firme certeza de que ela o remetia
à imagem de uma outra professora, homónima desta, que o acompanhara
durante o chamado curso de alfabetização. Não se lembrava do curso de
alfabetização; recordava-se, sim, dos seus próprios joelhos lenhados dos
grãos de milho sobre os quais tinha de ficar ajoelhado por demorados
minutos, ao mesmo tempo que mirava, querendo morder, o nariz também
pontiagudo e afiado daquela professora Norma, que o fazia lembrar-se
desta professora Norma, que lhe endereçava, agora, agradecimentos e feli-
citações por seu trabalho de revisor de texto e pelo que pretendia fazer em
prol do sucesso da edição comemorativa que inauguraria a nova ortografia
para a língua portuguesa.
— E digo-lhe novamente que este é um óptimo trabalho; gratificante
e honroso. Vejo-o como uma espécie de... Como direi? Uma espécie de
filantropismo. Sim! É uma generosidade das pessoas de bem corrigir o
vulgo no mau uso que faz de nossa língua mater. Posso mesmo referir-me
a este mau uso como um uso demoníaco; o que nos leva a nós, pessoas
esclarecidas, a querermos, a sentirmos!, a urgência da realização do acto
humanitário. Como? Porque demoníaco? Porque a ignorância, creio
vigorosamente, é maldita, obscura, aterradora! E o conhecimento, este
sim, está no pedestal da glória conquistadora da humanidade. É sagrado!
Divino! — E encheu o peito para dizer: — Permito-me mesmo fazer
uma comparação entre a tarefa do revisor de texto e a do jesuíta que se
abeirou destas terras para, entre outras benesses, alfabetizar o selvagem na
língua mater; o bom selvagem, que, em toda a sua pureza de espírito, se
amancebava nestas terras intocadas. Vivia bem, sim, mas não dispunha,
visto pertencer a um sistema cultural de baixa envergadura, não dispunha
de meios simbólicos adequados para a correcta apreensão da realidade
abençoada que o cercava. A introdução da língua portuguesa, a reboque
da missão cristianizadora, foi, sem dúvida, um bem que o espírito europeu
doou àqueles aborígines. — E olhou, lânguida, para o revisor de texto:
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— O que é o revisor de texto senão o jesuíta da língua? Dar-nos-á o senhor
o prazer de almoçar connosco?...
O revisor de texto desconversou:
— Agradeço suas observações, menina, mas infelizmente não pretendo
almoçar por agora. Ainda nos iremos encontrar bastante por estes dias,
e o almoço, fico então a devê-lo à menina. — E voltou-se para o doutor
Aurélio, que meneava a cabeça como num tiquetaque.
Por fim, a professorinha despediu-se, prometendo que voltaria no dia
seguinte para assistir ao discurso do Verbo, e saiu, ajeitando os óculos com
uma mão enquanto com a outra puxava a saia para baixo. O revisor de
texto acompanhou-a com os olhos durante um bom tempo até que ela
desaparecesse pela porta. Quando se voltou, deu com os olhinhos miúdos
e ajoelhados do doutor Aurélio a fitá-lo como que pedindo que o deixasse
em paz.

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