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o- CONSUMIDORES E CIDADÃOS
O conflitos multlculturols
~ da globolizoção
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UFRJ
Reitor Paulo Alcantasa Gomes
Yice-reltor José Henrique Vilhena de Paiva
Coordenadora do Forum
de Ciência ~ Cultura Myrian Dauelsberg
EDITORA UFRJ
Diretora Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assistente Lucia Canedo
Coordenadora de produção .Ana Carreiro
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consumido •.•.•
s e cidadãos o consumo serve paro pe~sor
dóceis audiências. Sabe-se que um bom número de linhas de interpretação e assinalar os seus possíveis
estudos sobre comunicação de massa tem mostrado que pontos de confluência, com o objetivo de participar de
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a hegemonia cultural não se realiza mediante ações' uma conceitualização global do consumo onde possam
verticais, onde os dominadores capturariam os recep- ser incluídos os processos de comunicação e recepção
tores: entre uns e outros se reconhecem mediadores de bens simbólicos,
como a família, o bairro e o grupo de trabalho.ê Nessas Proponho partir de uma definição: o consumo
~ análises deixou-se também de conceber os vínculos entre' é o conjunto de processos socioculturais em que se
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r- aqueles que emitem as mensagens e aqueles que as realizam a apropriação e. os usos dos produtos. Esta
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recebem corno relações, unicamente, de dominação. A caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais
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renove incessantemente?
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" cado nos últimos anos, reproduzem a segrnentação e e quem consome. O modo como se planifica a distri-
--~ desconexão existente entre as ciências.sociais. Temos buição dos bens depende das grandes estruturas de
teorias econômicas, sociológicas, psicanalíticas, psicos- administraçãodo capital. Ao se organizar para prover
sociais eantropol6gicas sobre o .que ocorre quando alimento, habitação, transporte e diversão aos: mem--
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consumimos; 'há teorias literárias sobre -a recepção c bros deurna sociedade, o si~tema econômico "pensa"
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t' teorias estéticas sobre a fortuna crítica das obras ar- como reproduzir a força de trabalho e aumentar a
tísticas. Mas não existe uma teoria sociocultural do lucratividade dos produtos. Podemos não estar de acor-
consumo. Tentarei reunir nestas notas as principais do com a estratégia, com a seleção de quem consumirá
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mais ou menos, mas é inegável que as ofertas e bens consumidores são evidências de como o consumo é
e a indução publicitária de sua compra não são atos pensado desde os setores populares. Se alguma vez
arbitrários. esta questão foi território de decisões mais ou menos
No entanto, a racionalidade de tipo macrossocial, unilaterais, hoje é um espaço de interação, onde os
definida pelos grandes agentes econômicos, não é a produtores e emissores não só devem seduzir os des-
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única que modela o consumo. Os estudos marxistas tinatários, mas também justificar-se racionalmente.
sobre o consumo e sobre a primeira etapa da comuni- Percebe-se também a importância política do
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cação de massa (de 1950 a 1970) superestimaram a consumo quando vemos políticos que detiveram a hiper-
capacidade de determinação das empresas em relação inflação na Argentina, no Brasil e no México centra-
aos usuários e às audiências.! Uma teoria mais com- rem sua estratégia de consumo na ameaça de que uma
plexa sobre a interação entre produtores e consu- mudança de orientação econômica afetaria aqueles que.
midores, entre emissores e receptores, tal como a de- se endividaram comprando a prazo carros ou apare-
senvolvem algumas correntes da antropologia e da lhos eletrodomésticos. "Se não querem que a inflação
sociologia urbana, revela que no consumo se manifesta volte, aumentem as taxas de juros e não consigam
também uma racionalidade sôciopolittca interativa. "
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continuar pagando o que compraram, devem votar em
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Quando vemos a proliferação de objetos ,e demarcas, mim novamente",' diz Carlos Menem ao tentar a re-
'de redes de comunicação e de acesso ao consumo, a eleição para a Presidência da Argentina. Uma fórmula
partir da perspectiva dos movimentos de consumidores empregada na campanha eleitoral "o voto-prestação"
54 e de suas demandas, percebemos que as regras - exibe a cumplicidade que existe hoje entre consumo
móveis - da distinção entre os grupos, da expansão e cidadania.
educacional e das inovações tecnol6gicas e da moda Uma terceira linha de trabalhos, os que estudam
também intervêm nestes' processos. O consumo, diz o consumo como lugar de diferenciação e distinção
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.. Manuel CasteIls, é um lugar onde os conflitos entre e
entre as classes os grupos, tem chamado a atenção
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classes, originados pela desigual participação na estru- para os aspectos simb6licos e estéticos da raciona-
tura produtiva, ganham continuidadeatravés da distri- /idade consumidora. Existe uma lógica na construção
buição e apropriação dos bens.' 'Consumir é participar dos signos de status e nas maneiras de cornunicã-los.
, de. um cenário de disputas por aquilo que asocie- Os_textos de Pie~~ Bourdieu, ~rjun Appaduraí eStuart
, dadeproduz e pelos modos deusã-lo. A importância " .Ewen, entre' Outros, mostram que 'nas sociedades con-
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que às 'd'emandas pelo aumento do consumo e pelo temporâneas boa parte da racionalidade das relações
salário indireto adquirem nos conflitos sindicais e a sociais se constr6i, mais do que na luta pelos meios
reflexão crítica desenvolvida pelos agrupamentos de de produção, da disputa pela apropriação dos meios
consumidores e cid'odõos o consumo sorve poro p e n so r
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busca compreender em conjunto a tais cenários. A
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c6digos estáveis e compartilhados. Os cenários do con-
16gica que rege a apropriação dos bens enquanto sumo são invocados por esses autores como lugares
objetos de distinção não é a da satisfação de neces- onde se manifesta com maior evidência a crise da racio-
sidades, mas sim a da escassez desses bens e da im- nalidade moderna e seus efeitos sobre alguns princípios
possibilidade de que outros os possuam. que haviam regido o desenvolvimento cultural.
Contudo, nessas pesquisas costuma-se ver os Sem dúvida, Jean François Lyotard acerta quan-
comportamentos de consumo como se s6 servissem para do identifica o esgotamento dos paradigmas que or-
dividir. Mas se os membros de uma sociedade não com- . ganizavam .a racionalidade hist6rica moderna. Mas a
partilhassem os sentidos dos bens, se estes s6 fossem . queda decerta~ narrativas onicornpreensivas não pode
compreensíveis à elite. ou à maioria que os utiliza, não implicar um desaparecimento do global como hori-
serviri~~ como instrumentos de diferenciação. Um carro zonte. A crítica pós-moderna serviu para repensar as
importado ou um computador com novas funções dis- formas de organização compacta do social instauradas
tinguem os seus poucos proprietários na medida que 5:
pela modernidade (as nações, as classes etc.). É legíti-
quem não pode possuí-Ios conhece o seu significado mo levar esse questionamento até a exaltação de uma
sociocultural. Inversamente, um artesanato ou uma suposta desordem pós-moderna, uma dispersão dos
festa indígena cujo sentido mítico é propriedade dos sujeitos que teria sua manifestação exemplar na liber-
que pertencem à etnia que os gerou - se tomam ele- dade dos mercados? É curioso que nesses tempos de
mentos de distinção ou discriminação na medida que concentração planetária em volta do controle do mer-
outros setores da mesma sociedade se interessam por cado as celebrações acríticas da disseminação indivi-
elas e entendem em algum nível seu significado. Logo, dual e a visão das sociedades como coexistência errá-
devemos admitir que no consumo se constr6i parte da _ '. tica de' impulsos e des'ejos alcance~ tantoprestígio.
racionalidade inte,grativa e comunícatíva Be-umo . Surpreende também que o pensamento pós-
sociedade. moderno seja sobretudo feito de reflexões filos6ficas,
inclusive quando se trata de objetos tão concretos quan-
to o desenho arquitetônico, a organização da indústria
consumidores e cidadãos
consumidores e cidedãos
o consumo serve pare penser
os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos. populares, nos artesãos camponeses que adaptam seus
Essas velhas unidades, na medida que subsistem, pa- saberes arcaicos para interagir com turistas, nos tra-
recem se reformular como pactos móveis de leitura balhadores que se viram para adaptar sua cultura ope-
dos bens e das mensagens. Uma nação, por exemplo,
rária às novas tecnologias, 'mantendo suas crenças
a esta altura é pouco definida pelos limites territoriais -
antigas e locais. Várias décadas de construção de sírn-
ou por sua história política. Sobrevive melhor .corno
bolos transnacionais criaram o que Re~ato Ortiz de-'
uma comunidade hermenêutica de consumidores, cujos
nomina uma "cultura internacional-popular", com uma
hábitos tradicionais fazem com que se relacione de um
memória coletiva feita com fragmentos de diferentes
modo peculiar com os objetos e a informação circulante
nações." Sem deixar de estar inscritos na memória
nas redes internacionais. Ao mesmo tempo encontra-
nacional, os consumidores populares são capazes de
mos comunidades internacionais de consumidores - já
ler as citações de um imaginário multilocalizado que
mencionamos as de jovens e de telespectadores ~ que '.:' a televisão a publicidade reúnem: os ídolos do cine-
é
principalmente como oposição entre o nativo e o im- máxima rentabilidade dos bens de massa, gerando a
portado, ou entre o tradicional e o moderno, mas como concentração da cultura que confere a capacidade de
adesão diferencial a subsistemas culturais de diversa decisão em elites selecionadas, exclui as maiorias das
complexidade e capacidade de inovação: enquanto al- correntes mais criativas da cultura contemporânea. Não
guns escutam Santana, Sting e Carlos Fuentes, outros :.: é a estrutura do meio (televisão, rádio ou vídeo) a
preferem Julio Iglesias, Alejandra Guzmán e as teleno- causa do achatamento cultural e da desativação polí-
velas venezuelanas. tica: as possibilidades de interação e de promover a
Esta cisão não se produz unicamente no con- reflexão crítica destes instrumentos têm sido muitas
sumo ligado ao entretenimento. Segmenta também os :'J " vezes demonstradas, ainda que em microexperiências
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setores sociais em relação aos bens estratégicos neces-· de baixa eficácia para as massas. Ta~poucó deve-se
sários para que se situem no mundo contemporâneo e atribuir apenas à diminuição da vida pública e ao retiro
sejam capazes de tomar decisões. Ao mesmo tempo em familiar da cultura eletrônica a domicílio a explicação
que o processo de modernização tecnológica da in- do desinteresse pela política: não obstante, esta trans-
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dústria e dos serviços exige mão-de-obra mais qualifi- ':;.
s', . formação das relações entre o público e o privado no
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cada cresce a evasão escolar, limitando-se o acesso
. t '. . COnsumo cultural.co~idiano representa uma mudança
dos setores médios (e, obviamente, das maioriaspo- ~: :
básica das condições em que deverá se exercer um
pulares) à informação mais nova. O conhecimento dos
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novo tipo de responsabilidade cívica.
dados e dos instrumentos que habilitam ao trabalho Se o consumo tornou-se um lugar' onde fre-
autônomo ou criativo se reduz aos que podem as- , qüentemente é difícil pensar, é pela liberação do seu 6
sinar serviços de informática e redes exclusivas de te- cenário ao jogo pretensamente livre, ou. seja, feroz,
levisão (antena parabólica, TV a cabo, estações trans- entre as forças do mercado. Para que se possa articu-
missoras de canais metropolitanos). Para o resto das lar o consumo com um exercício refletido da cidadania,
pessoas, se oferece um modelo de comunicação de ~
t· : é necessário que se reúnam ao menos estes requisitos:
massa, concentrado em grandes monopólios, que se #.. a) uma oferta vasta e diversificada de bens e mensa-
nutre da programação standard norte-americana, além
gens representativos da variedade internacional dos
de produtos repeti tivos, de entretenimento light, gera- mercados, de acesso fácil e equitativo para as maio-
dos em cada país. " " " rias; blinformação multidirecional e confiável a respeito
" Colcca-se.vpois, dé outra maneira .a crítica ao 'da qualidade dos produtos, cujo controle seja efetiva-
consumo como lugar irrefletido e de gastos inúteis. O mente exercido por parte dos consumidores, capazes
que ocorre é que a reorganização transnacional dos de refutar as pretensões e seduções da propaganda; c)
sistemas simbólicos, feita sob as regras neoliberais de participação democrática dos principais setores da
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I i. consumidores e cidodaos
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o consumo servo poro pensor
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sociedade civil nas decisões de ordem material, simbó-
~ apenas uma delas. Nós homens intercambiamos obje-
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de bens que proporcionam satisfações biológicas e sim- motivações puramente estéticas logo alcança uma re-
.bélicas, que servem para enviar e receber mensagens. percussão massiva e lucros como disco, e, finalmente,
As teorias. sobre o consumo evocadas neste capítulo apropriada e modificada por um movimento político,
mostram, ao serem lidas de forma complementar, que se toma um recurso de identificação e mobilização
o valo~ mercantil não é alguma coisa contida natura- coletivas. Estas biografias cambiantes das coisas e
lisiícamente nos objetos, mas é resultante das interações das mensagens nos levam a pensar no caráter mer-
socioculturais em que os homens os usam. O caráter cantil dos bens como oportunidades e riscos de seu de-
abstrato dos intercâmbios mercantis, acentuado agora sempenho. Podemos atuar como consumidores nos si-
pela distância espacial e tecnológica entre produtores tuando somente em UJTl dos processos de ínteração -
e consumidores, levou a crer na autonomia das merca- . o que o mercado regula - e também podemos exercer
,dórias e no caráter ínexorãvel, alheio aos Objetos; das como 'Cidadãos uma reflexão' e uma experimentação
leis objetivas que regulariam os vínculos entre oferta mais ampla que leve em conta as múltiplas poten-
e demanda. O conf~onto das sociedades modernas com cialidades dos objetos, que aproveite seu "virtuosísmo
as "arcaicas" permite ver que em todas as sociedades serniótico'"! nos variados contextos em que as coisas
os bens exercem muitas funções, e que a mercantil é nos permitem encontrar com as pessoas.
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: consumidores e cidadãos
o consumo serve poro pensar
o interesse público podia se fazer presente, onde deve 2. Ver, entre outras, as obras de LULL, James (ed.).
ser limitada e arbitrada a luta-de outro modo selva- World Families Watch Television, Newbury-California:
gem - entre os poderes mercantis privados. Começam Sage, 1988; de BARBERO,Jésus Martín. De los medias a ias
mediaciones. México': Gustavo Gilí,: 1987; e de OROZCO
a surgir em alguns países - através da figura do
Gui11ermo (compilador). Hablan los televide~tes. ESludiO:
ombudsman, de comissões de direitos humanos de ins-
de recepciân en varios paises. México: Universidad
tituições e periódicos independentes - instâncias não-
Iberoamericana, 1992.
governamentais e apartidárias que permitem desem-
3. Um exemplo: os textos de TERRAIL, Jean-Pierre,
baraçar a necessidade de fazer valer o público face à
PRETECEI!-LE,Desmond, GREVET, Patrice.Necesidades y con-
decadência das burocracias' estatais, Algunsconsumi-
~umo. México: Grijalbo, 1977. .' .
dores querem ser cidadãos.
4. CASTElLS, Manuel. La Cuestiôn urbana. México:
Depois da década perdida para a América La-
Siglo XXI, 1974; apêndice à segunda edição.
tina, que foi a dos oitenta, durante a qual os Estados
cederam o controle da economia material e simbólica 5. BOURDIEU,Pierre. La Disrinci6n. Madrid: Taurus,
1988; ApPADURAl,Arjun (ed.). La Vida social de Ias cosas.
às empresas, está claro aonde a privatização sem limi-
México: Grijalbo, 1991; EWEN, Stuart. Todas Ias imâgenes 6S
tes conduz: descapitalização nacional, subconsumo das
.del consumismo. México: Grijalbo-CNCA, 1991. .
maiorias, desemprego, empobrecimento da oferta cul-
tural. Só através da reconquista criativa dos espaços 6. DOUGtAs, Mary, ISHERWOOD,Baron. El Mundo de
los bienes. Hacia una antropología dei consumo. México:
públicos, do interesse pelo público, o consumo po-
Grijalbo-CNCA, 1990. p. 80.
derá ser um lugar de valor cognitivo, útil para pensar
7. Idem, p. 77.
e agir significativa e renovadoramente na vida social.
Vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar 8.. GEi.L. Alfred. Los Recién !legados ál mundo d~
. um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar . los bienes:' el consumo entre Tos gondos muria:-'In:
a reconq~ista imaginativa dos espaços públicos, do ApPADURAl, A. Op. cit., p. 143-175.
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;~... interesse pelo público. Assim o consumo se mostrará 9. APPADURAI,A. Op.cit., p. 47.
como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e 10. ORTIZ, Renato. Op. cit., capo IV.
atuar significativa e renovadoramente, na vida social.