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O S É C U L O 21

Erosão, Transformação Tecnológica e


Concentração do Poder Empresarial
Pat Roy Mooney

O S É C U L O 21

Erosão, Transformação Tecnológica e


Concentração do Poder Empresarial

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
Copyright © 2002, by Editora Expressão Popular

Tradução do original:
El Siglo ETC - Erosión, Transformación Tecnológica y Concentração Corporativa em el
Siglo 21 (Edição realizada em janeiro de 2002, co-publicação de Grupo ETC, Dag
Hammarskjöld Foundation y Editorial Nordan-Comunidad. Montevidéu – Uruguai).

Tradução e revisão:
Ana Corbisier
Geraldo Martins de Azevedo Filho

Projeto gráfico, capa e diagramação


ZAP Design

Ilustração da capa
Diego Rivera, detalhe de O homem, controlador do universo (1934), afresco, Museu del
Palacio de Bellas Artes, Cidade do México - México.

Impressão e acabamento
Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Biblioteca Central da UEM. Maringá - PR.
Pat Roy, Moony
P314S O Século 21: Erosão, Transformação Tecnológica e Concentração
do Poder Empresarial / Moony Pat Roy. - São Paulo : Expressão
Popular, 2002.
224 p.
ISBN 85-87394-29-0

1. Ciências políticas - Novas tecnologias. 2. Ciências políticas -


Transformação tecnológica. II. Título.

CDD 21.ed. 338.9260905


CIP-NBR 12899
Vilma Apª Feliciano CRB 9/1152
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: agosto de 2002

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


Rua Bernardo da Veiga, 14
CEP 01252-020 - São Paulo-SP
Fone/Fax: (11) 3105-9500
Correio eletrônico: vendas@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................... 7

INTRODUÇÃO AO SÉCULO 21 .............................................................. 15

EROSÃO ...................................................................................................... 27
Erosão ambiental ........................................................................................... 29
Erosão cultural .............................................................................................. 35
Erosão da eqüidade ....................................................................................... 42

TRANSFORMAÇÃO TECNOLÓGICA .................................................... 53


O início da era de Lilliput? ............................................................................ 55
Biotecnologia ................................................................................................ 56
Guerra biológica ............................................................................................ 62
Nanotecnologia ............................................................................................. 83
Outras tecnologias ......................................................................................... 99
Sobre “Luddistas e “Eli-tistas” ..................................................................... 117

CONCENTRAÇÃO DO PODER EMPRESARIAL ................................ 131


A Grande Fusão? ......................................................................................... 133
Alimentos futuros: a indústria dos biomateriais .......................................... 148
Saúde futura: a indústria bioquímica .......................................................... 165
Informação futura: a indústria do silicone ................................................... 174
Matéria do futuro: a indústria de macromateriais ....................................... 187
A futura República do Binano ..................................................................... 191

ETC: BUSCANDO SOLUÇÕES PARA UMA NOVA ERA .................... 203


Erosão ......................................................................................................... 205
Tecnologia ................................................................................................... 208
Concentração .............................................................................................. 212
Quem decide?.............................................................................................. 214
Das sementes a ETCétera ............................................................................ 222
APRESENTAÇÃO

O Século 21 – Erosão, Transformação Tecnológica e Concentra-


ção do Poder Empresarial constitui um oportuno mergulho no
grande conflito de nosso tempo: grande avanço tecnológico e
concentração da riqueza nas mãos de um sexto da população
mundial – que se tem beneficiado do progresso científico,
tecnológico e da apropriação da maior parte dos recursos natu-
rais finitos, deixando para a maioria a degradação do meio am-
biente e a ampliação do fosso entre pobres e ricos. O livro pro-
põe, como paradigma analítico, a hipótese central de que a atual
expansão exponencial de nossa capacidade tecnológica, concen-
trada nas mãos das empresas oligopolistas, tem promovido “a
erosão exponencial de nossa biosfera”.
A erosão da biosfera compreende a erosão da eqüidade, a ero-
são ambiental e a erosão cultural. A erosão da eqüidade decorre
da intensificação das diferenças entre povos e no interior de cada
povo. A erosão dos direitos resulta da marginalização de segmen-
tos substantivos de nossa sociedade. A erosão ambiental é conse-
qüência da aceleração dos processos entrópicos de produção da
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agricultura, da indústria e da urbanização, determinados pelos


interesses das grandes corporações, produzindo impactos na
fauna, na flora, na química e na física da Terra (água, solos e ar).
A erosão cultural resulta do genocídio e da pasteurização das
culturas, para domesticá-las e submetê-las ao modo de vida, de
produção e de reprodução impostos pelas corporações
oligopolistas.
A obra explora as potencialidades e os impactos da concen-
tração econômica e do controle político da biotecnologia e da
nanotecnologia, vislumbrando a possibilidade da fusão entre
ambas como forma de implantação da “Indústria da Vida” –
oligopólio de poder inusitado – produzindo híbridos de origem
inanimada e viva, resultando um mundo em que os sistemas de
produção estarão a serviço e sob controle dos oligopólios, obri-
gando a existência de “Estados policiais”, não apenas nos países
do Sul e nos da ex-URSS, mas com tendência a se estender aos
países da União Européia, para garantir, por meio do poder, a
hegemonia mundial.
O texto sugere que a subordinação total da Humanidade,
antevista por George Orwell em “1984”, não se materializa pela
mão do “Grande Irmão” (“Big Brother” – Estado totalitário),
mas através da comida, da roupa, da música, das linguagens, das
redes, das artes, das sementes, dos inseticidas, dos processos de
produção e do trabalho, dominados pela grandes corporações
oligopolistas multissetoriais. A sociedade totalitária não seria
imposta pelo Estado; estaria sendo imposta pelos processos de
erosão cultural e ambiental e pela concentração do controle das
tecnologias essenciais ao modo de produção vigente sob domí-
nio das corporações. E recorre ao debate entre as concepções
“elitistas” e “luddistas” da I Revolução Industrial para demons-
trar que os fenomenais avanços da ciência e da tecnologia, desde
9

então, surpreendem, não pelo muito que fizeram, mas pelo que
deixaram de fazer em favor do progresso social. Cada vez a
tecnologia é mais potente e a possibilidade de catástrofe é maior.
As transnacionais controlam um terço dos ativos produtivos do
mundo e três quartos do comércio mundial. Neste contexto,
conclui que aos governos nacionais resta o papel de manter o
mito da democracia, uma rede mínima de segurança social e ga-
rantir a legalidade dos contratos.
O texto também preconiza que a emergente hegemonia do
poder da Erosão, da Tecnologia e da Concentração está funda-
mentada na estratégia que compreende: a fusão das empresas
visando a concentração da produção e da distribuição de bens e
serviços; as alianças entre empresas para compartilhar e contro-
lar os mercados, fugindo das normas antitrustes dos Estados na-
cionais; e a regulamentação da propriedade intelectual mediante
licenças e patentes, inclusive sobre a vida, objetivando a apropria-
ção dos benefícios econômicos.
O processo analisado neste livro está presente e em acelerado
avanço na vida do Brasil: marcos determinantes foram a “Revo-
lução Verde”, implementada no campo, nas décadas de 1960-
70, e a reestruturação do setor produtivo e do Estado, ainda em
curso, iniciada no final dos anos 1980.
A implantação da “Revolução Verde”, sob a égide do governo
militar, acompanhou o processo de intensificação da urbaniza-
ção e da industrialização. Políticas de financiamento condicio-
nado à adoção de pacotes tecnológicos (sementes híbridas, de-
fensivos, máquinas) promoveram a subordinação da produção
agrícola aos setores financeiro e industrial e a concentração da
produção agrícola e a da terra, expulsando famílias. Parte dessas
famílias passou a fornecer a mão-de-obra requerida pelas indús-
trias emergentes e pela construção civil do processo de urbaniza-
10

ção; outra parte foi deslocada para as novas fronteiras agrícolas.


O processo de erosão cultural ocorreu em três frentes: nas comu-
nidades de origem, pela perda das raízes culturais e comunitárias;
nas novas fronteiras agrícolas, impondo choques culturais e eco-
nômicos entre os migrantes e as populações locais, especialmen-
te os conflitos entre os colonos e as comunidades indígenas e os
posseiros; e nas cidades, pelo choque econômico e cultural
desestruturador, que jogou parte desses migrantes na margina-
lidade, nas favelas e no subemprego, criando um exército de re-
serva de mão-de-obra urbana.
Este quadro compunha o processo de industrialização de-
pendente implementado pelo governo militar. A agricultura passa
a ser subordinada à indústria e ao setor financeiro. Na indústria,
a subordinação se materializa via dependência de insumos –
máquinas, sementes híbridas, defensivos, fertilizantes, correti-
vos, inoculantes – e via comercialização dependente dos produ-
tos agropecuários, controladas pela indústria de alimentos e pe-
las comercializadoras multinacionais. O setor financeiro, além
de impor pacotes tecnológicos, passa a promover a concentração
da terra no atendimento à escala da produção financiável e na
desapropriação e tomada das terras dos inadimplentes, intensifi-
cando a expulsão e a migração.
A reestruturação do setor produtivo e do Estado decorreu do
esgotamento parcial do modelo de industrialização e financei-
rização da produção agrícola e industrial, combinado com a re-
dução das taxas de crescimento econômico mundial que, no Bra-
sil, foram de menos de 3% ao ano na década “perdida” de 1980
e menos de 2% ao ano na década “mais que perdida” de 1990.
Como uma das conseqüências, parte dos expulsos do campo pela
“Revolução Verde” e incorporados no processo de urbano-in-
dustrialização passa a ser jogada na marginalidade pela
11

reestruturação produtiva – alicerçada na microeletrônica, na


informatização e na automação, nos novos processos de trabalho
e na supressão dos direitos trabalhistas e previdenciários, deter-
minando a redução e a extinção de postos de trabalho.
A reestruturação do setor produtivo e do Estado foi concebi-
da por uma articulação envolvendo os grandes grupos
oligopolistas multinacionais, agências multilaterais (Banco Mun-
dial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do
Comércio) e governos do G-7, liderados pelos EUA, para impor
aos países do Terceiro Mundo a abertura do espaço econômico
compatível com a estratégia desses grupos multissetoriais. O re-
lato a seguir proporciona uma visão de como se dão os processos
concretos, destacando o papel desses agentes para a consolidação
dos interesses dos grandes grupos econômicos.
O Banco Mundial, além dos documentos publicados enun-
ciando a sua política, possui outros, de caráter confidencial e
restrito, detalhando as estratégias de “assistência” para cada país.
Neste sentido, o depoimento, a Gregory Palast1 , da ação coorde-
nada nos bastidores do FMI, do BM e do Tesouro dos EUA
(detentor de 51% do BM), por Joseph Stiglitz, ex-economista
chefe do BM, substituído da função por divergências, é ilustrativo
pela riqueza de detalhes sobre as formas de ação. Segundo Stiglitz,
os estudos e a pesquisa local, desenvolvidos em cada país para
subsidiar a estratégia de “assistência”, raramente passam de ins-
peções a hotéis cinco estrelas. São concluídos com um encontro
com o ministro das finanças, a quem é entregue um acordo de
reestruturação, pré-rascunhado, para assinatura “voluntária”.

1
Palast, G. “IMF’S FOUR STEPS TO DAMNATION, how crises, failures, and
suffering finally drove a Presidential adviser to the wrong side of the barricades”, The
Observer, Londres, 29 de abril de 2001.
12

Cada ministro recebe o programa contendo, invariavelmente, as


mesmas quatro etapas:
Primeira etapa: privatização. Segundo Stiglitz, raramente a
venda de indústrias estatais é objetada e muitos políticos – usan-
do as demandas do BM e do FMI para silenciar os críticos locais
– festejam a possibilidade de leiloar suas companhias de energia,
saneamento, telecomunicações, rodovias, ferrovias etc: “... pode-se,
inclusive, ver seus olhos brilhando diante da possibilidade de
comissões para reduzir em alguns bilhões o preço de venda.”
Stiglitz, com a credencial de ter sido também presidente do con-
selho de assessores econômicos de Clinton, acusa que, mesmo
sabendo da deslavada corrupção no programa de privatizações
russas de 1995 – o maior do mundo até então – o Tesouro norte-
americano dizia não se importar; o importante era reeleger Boris
Yeltsin, mesmo que fosse em uma eleição corrupta. A Rússia aca-
bou rapinada de sua base industrial pelos oligarcas apoiados pe-
los EUA e sua produção caiu para menos da metade. O que diriam
sobre o Brasil, que anunciou o “maior programa de privatizações
do mundo”, após uma reeleição?
Segunda etapa: liberalização do mercado de capitais. Visa,
teoricamente, garantir o livre fluxo dos capitais. Para Stiglitz,
trata-se, na verdade, do ciclo do dinheiro quente: o dinheiro en-
tra para especulação, no setor financeiro e imobiliário, fugindo
ao primeiro sinal de problemas. As reservas em divisas do país se
evaporam. Para seduzir os especuladores a retornar, o FMI induz
os países a elevar as taxas de juros para 30%, 50% e até 80% ao
ano. O resultado é previsível: juros mais altos reduzem o valor
dos imóveis, solapam a produção industrial, drenam as finanças
públicas, provocam endividamentos monumentais.
Terceira etapa: preços de mercado. A liberalização dos preços
formados a partir de mecanismos que mimetizem relações de
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mercado está na base do processo de extração e de transferência


de renda nos espaços econômicos de infra-estrutura, recém-
privatizados. O resultado final se traduz pelo aumento do preço
da eletricidade, do gás para cocção, da água e esgotos, dos telefo-
nes, dos pedágios etc., além dos alimentos. Para Stiglitz, como
conseqüência, via de regra, ocorre a etapa “três e meio”, com a
emergência de “manifestações de protesto FMI”, dolorosamente
previsíveis. Quando o país está de joelhos, quebrado e subjuga-
do, o FMI extrai as últimas gotas de sangue. Aperta até que o
caldeirão estoure, como na Indonésia, após a supressão dos sub-
sídios dos alimentos e dos combustíveis e, no Equador, em de-
corrência da elevação dos preços dos combustíveis e da eletrici-
dade. A bancarrota das finanças públicas e o incêndio econômico
e social se traduzem em oportunidades de aquisições ainda mais
depreciadas do remanescente patrimônio de empresas estatais.
Surge um padrão: uma multidão de perdedores e claros vence-
dores – os banqueiros e investidores internacionais, o Tesouro
dos EUA. A estes pode-se acrescentar uma emergente elite local,
recém emigrada da tecnocracia estatal, onde participou da pre-
paração e da implementação do novo modelo, vendendo a seus
patrões, mais do que competência técnica, informações e capaci-
dade de influenciar e arrancar privilégios nas novas instituições
que ajudou a criar.
Quarta etapa: livre comércio. O estágio superior do processo
é o livre comércio, segundo as regras da OMC e do BM, que
Stiglitz compara à Guerra do Ópio, também “dedicada à abertura
dos mercados”. Como no século XIX, americanos e europeus
estão hoje impondo a abertura dos mercados na Ásia, na Améri-
ca Latina e na África para seus produtos e serviços e, ao mesmo
tempo, erigem barreiras (sanitárias e cotas), fora do âmbito da
OMC, à entrada em seus mercados de produtos agrícolas e in-
14

dustrializados. Na Guerra do Ópio, os bloqueios eram militares;


hoje, BM e FMI “podem ordenar bloqueios tão eficazes e às ve-
zes mais mortíferos”. Neste contexto, situa-se a pressão norte-
americana pela criação da ALCA, ressalvando, porém, que suas
barreiras agrícolas e cotas, como as das indústrias do aço, eram
inegociáveis.
O cenário pós-orwelliano, delineado pelo autor para o futu-
ro, indica a necessidade de buscar caminhos e estratégias de re-
sistência, capazes de congregar e organizar, não somente os ex-
cluídos e oprimidos, mas toda a Humanidade, antes que tal ca-
tástrofe se concretize. O caminho da resistência passa por negar
o direito das patentes em todas as áreas: biotecnologia, nano-
tecnologia, genes, espécies, variedades.
A tecnologia constitui patrimônio da Humanidade,
construído por um modo de produção determinado por relações
sociais no processo histórico; portanto, o desafio consiste em
garantir a apropriação de suas potencialidades em favor do con-
junto da sociedade. O caminho da resistência passa também pela
mobilização e organização dos movimentos sociais forjados nas
contradições já produzidas pela Erosão, Tecnologia e Concen-
tração.

ILDO LUIS SAUER, professor do Programa Interunidades de


Pós-Graduação em Energia da USP, com a colaboração de
DORIVAL GONÇALVES JR., professor da UFMT.
Agosto de 2002
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INTRODUÇÃO AO SÉCULO 21

Há mais de dez anos, a Fundação Dag Hammarskjold


publicou “The Laws of Life: Another Development and the New
Biotechnologies” (As Leis da Vida: outro desenvolvimento e as
novas biotecnologias), em sua edição de Development Dialogue,
de 1988, nos 1 e 2. Provavelmente, esta publicação ofereceu a
seus leitores o primeiro panorama sobre a biotecnologia e suas
implicações para as sociedades do Terceiro Mundo. “The Laws
of Life”, escrito por quatro membros da Fundação Internacional
para o Progresso Rural (RAFI), era também um relatório do
seminário sobre “O impacto socioeconômico das novas
biotecnologias na saúde e na agricultura do Terceiro Mundo”,
realizado em 1987, em Bogève, França. Este seminário,
organizado pela Fundação Dag Hammarskjold e a RAFI, reuniu
organizações da sociedade civil e acadêmicos do mundo todo
para um intenso debate político e filosófico sobre uma série de
problemas sócio-econômicos relacionados à engenharia
genética, no âmbito da saúde, da agricultura, do meio ambiente
e da guerra.
16 Pat Roy Mooney

Pensávamos que a reunião seria o ponto de partida da articula-


ção entre as organizações para influir energicamente no futuro
debate sobre a biotecnologia. Estávamos equivocados. Nós, orga-
nizações da sociedade civil, deveríamos ter começado a trabalhar
em 1980, ou até antes, para conseguir dar forma ao debate e reu-
nir os recursos necessários para enfrentar a indústria e seus aliados
na comunidade de pesquisa. O presente trabalho, de caráter
exploratório, tem o propósito de tentar evitar que cheguemos de-
masiadamente tarde para enfrentar o novo conjunto de tecnologias
que hoje se delineiam no horizonte.
Além disso, em conversas da Fundação Dag Hammarskjold
com a RAFI, chegamos à conclusão de que a ênfase posta pelas
organizações da sociedade civil nos problemas da biodiversidade e
da biotecnologia implicou, sem querer, em que as novas tecnologias
emergentes passassem despercebidas. Um enfoque mais amplo
deveria visar, no mínimo, a Erosão (cultural e ambiental), a
Tecnologia (em seu papel transformador das sociedades) e a Con-
centração (do poder empresarial e do domínio de classe). E em
suma: ETC.
A Erosão inclui não apenas a erosão genética e a erosão de espé-
cies, solos e da atmosfera, como também a erosão do conhecimento
e a erosão global das relações eqüitativas. Estamos perdendo tanto
nossos recursos biológicos quanto nosso conhecimento eco-espe-
cífico desses recursos. A destruição ecológica faz aumentar a im-
portância comercial das cada vez mais escassas “matérias-pri-
mas” genéticas. Paradoxalmente, isso acontece justamente quando
as novas tecnologias têm mais necessidade de (e capacidade para
utilizar) biomateriais em perigo.
Tecnologia, neste texto, significa a Caixa de Pandora de novas
tecnologias, como a biotecnologia, a nanotecnologia, a informática
e as neurociências. (Certamente, a tecnologia admite uma defini-
O Século 21 17

ção muito mais ampla da definição que este documento adota;


existem tecnologias sociais e culturais que também devem ser con-
sideradas. Mas isso requer uma discussão muito mais extensa). Se
bem algumas dessas tecnologias se apóiem muito em materiais
biológicos, também se prestam a uma variedade cada vez maior de
mecanismos monopolistas, velhos e novos. A nanotecnologia, em
particular, apresenta, para os que estão no poder, uma visão
distorcida da importância dos biomateriais, partindo da suposição
de que as necessidades do mundo podem ser satisfeitas por meio
de uma oferta infinita de moléculas manufaturadas.
A Concentração se refere à reorganização do poder econômico
em mãos dos oligopólios globais da alta tecnologia. A inter-relação
entre os recursos biológicos em risco de desaparecimento, as novas
tecnologias controladoras da vida e o surgimento de tecnocracias
privatizadas poderia ser a alavanca das mudanças tecnológicas e
políticas do amanhã. A combinação ETC poderia levar a um
mundo de “frangos cibernéticos e reis anões”, um mundo semelhan-
te – como O. Henry descreveu a América Central no alvorecer do
século XX – a uma república bananeira. Se estivesse conosco agora,
na fronteira do milênio, O. Henry bem poderia batizar a nova or-
dem mundial que surge de “República do Binano”.
Em 1998, Jeremy Rifkin escreveu The Biotech Century, argu-
mentando, de maneira convincente, que o século XXI estará do-
minado por esse poderoso conjunto de ferramentas genéticas co-
nhecido como biotecnologia. É verdade que a humanidade nunca
viu uma ciência mais poderosa do que esta, capaz de reestruturar a
vida. No entanto, nossa míope concentração nas terapias de genes,
a clonagem de mamíferos, as plantas geneticamente modificadas
(GM) e os “alimentos Frankenstein” nos impediram de ver as im-
plicações de outros instrumentos científicos iminentes. É impor-
tante lembrar as lições da história enquanto nos esforçamos por
18 Pat Roy Mooney

discernir nosso futuro, decididamente incomum. Possivelmente a


lição mais importante é que, uma e outra vez, temos sido incapazes
de antecipar corretamente o futuro.
Não faz muito tempo, as letras GM numa manchete de jornal
teriam significado para a maioria General Motors, que ainda é a
maior multinacional do mundo. Agora, para muitos, é símbolo de
geneticamente modificado. Há apenas um século, em 1893, Karl
Benz, na Alemanha, e Henry Ford, nos Estados Unidos, apresen-
taram seus “carros sem cavalos”. Os sábios predisseram o advento
da “Era do Automóvel”, comparando os efeitos deste com o início
da Idade do Bronze ou com a Idade do Ferro, em milênios anterio-
res. No entanto, em meados da década de 1920, o impacto do
automóvel fora igualado ao do avião, do rádio e até ao da humilde
aspirina. A televisão e a energia nuclear (a Era Atômica) surgiam
no horizonte para torturar-nos. Na realidade, nunca houve uma
Era do Automóvel, por mais forte que tenha sido seu efeito na
economia e na mente dos homens. Na melhor das hipóteses, hou-
ve um Quarto de Século do Automóvel. Do mesmo modo, os que
isolam a biotecnologia e se concentram nela, excluindo outras ciên-
cias, em pouco tempo estarão fazendo parte do Quarto de Século
da Biotecnologia. O século XXI vai presenciar a chegada à idade
adulta da nanotecnologia, da robótica, das neurociências, das
tecnologias espaciais e de outras, que se unirão à engenharia gené-
tica, não apenas para controlar a “vida”, em sentido físico, mas
também em sentido político. Estas novas tecnologias serão uma
força central no século ETC.

Chave: Se “o mundo todo é um cenário”, com quem está o roteiro?


Em 1599, o Globe Theater de Londres abriu suas portas pela primeira
vez. Sua apresentação inaugural foi uma das peças mais apócrifas do milê-
nio, Júlio César, de William Shakespeare. Esta peça expõe o conflito entre
O Século 21 19

oligopólio e tirania, em forma de luta entre a democracia e a demagogia.


Quatrocentos anos depois, Shakespeare ainda diria que “o mundo todo é
um cenário”, mas também insistiria em que nosso cenário deve estar repleto
de diversidade: diversidade de atores, de obras e também de dramaturgos.
Mas se nosso mundo é um cenário, perdemos nossos papéis e a peça
parece incompleta. Terminator, Monsanto, o patenteamento de formas de
vida e os OGM (organismos geneticamente modificados) são apenas alguns
vilãos em um drama épico que até hoje não se resolveu. Sem o texto, os
atores não podem representar seus papéis. Só percebemos que o cenário é
muito mais amplo do que a biotecnologia. A própria peça parece ter três
subargumentos: a Erosão, a Tecnologia e a Concentração (ETC). À medida
que se erodem os fundamentos básicos da vida, as ferramentas bio e
nanotecnológicas que manipulam a matéria se tornam cada vez mais poten-
tes. E também vão ficando cada vez mais concentradas em mãos de uma
elite empresarial que luta por dominar o resto do planeta. Se quisermos ser
atores nesta epopéia incerta, devemos buscar nossas chaves na história.

Prelúdios 1977 a 2000: das sementes à ETC

Sobre a Fundação Dag Hammarskjöld


A primeira vez que os membros da RAFI e da Fundação Dag
Hammarskjöld se reuniram foi para almoçar na sede provisória
do parlamento, em Estocolmo, no ano de 1981. Mas Pat Mooney
nos lembra que quase nos encontramos – ou deveríamos ter nos
encontrado – em 1975, em Nova Iorque, na Sétima Sessão
Especial da Assembléia Geral da ONU sobre Desenvolvimento
e Cooperação Internacional. A ocasião específica foi uma
conferência de imprensa para apresentar “What Now: Another
Development”, o Relatório Dag Hammarskjöld 1975, que
constituía o fecho de um grande diálogo e exploração intelectual
da Fundação, e que orientou grande parte de nosso trabalho e do
trabalho de outros desde então. Pat lembra que chegou tarde à
20 Pat Roy Mooney

reunião, na esperança de se encontrar conosco quando saíssemos


correndo do salão, para outras entrevistas.
Parecíamos estar caminhando em direções diferentes. A Fun-
dação Dag Hammarskjöld estava ajudando a formar e a esclare-
cer as perspectivas de um Terceiro Sistema – a perspectiva dos
cidadãos sobre a sociedade, em contraste com a do Estado e da
comunidade empresarial – e a propor uma ação global com vis-
tas a todo o espectro de problemas do desenvolvimento vitais
para os pobres e os impotentes. Naquela época, antes que existisse
a RAFI, Pat estava tentando concentrar seu campo de ação. Ti-
nha renunciado a seu cargo como presidente fundador da
International Coalition for Development Action (ICDA) e se
preparava para passar 14 meses viajando pelo mundo, com a
mochila nas costas. Buscava raízes e regressou com sementes.
Quando nos reunimos, em 1981, a brecha entre nossas
perspectivas de curto e longo prazo parecia ter se fechado. A nosso
convite, Pat Mooney escreveu em 1983 “The Law of the Seed:
Another Development and Plant Genetic Resources” (A Lei da
Semente: Outro Desenvolvimento e Recursos Genéticos das
Plantas) (Development Dialogue 1983, nos 1 e 2) e, posteriormente,
em 1985, contribuiu para uma nova edição de Development
Dialogue com “The Law of Lamb” (A Lei da Ovelha). Em 1987,
a Fundação e a RAFI organizaram juntas a consulta a organizações
da sociedade civil sobre biotecnologia, em Bogève, França; em
1988, os resultados desta reunião foram publicados em
Development Dialogue.
Quase ao mesmo tempo, começamos a falar sobre o contexto
do trabalho de ETC (Erosão, Tecnologia, Concentração), pri-
meiro em alguns encontros na Carolina do Norte e depois no
Centro Dag Hammarskjöld, em Uppsala. Entretanto acontece-
ram outras coisas e, de 1996 a 1998, Pat escreveu para nós outro
O Século 21 21

número de Development Dialogue, intitulado “The Parts of Life”


(As Partes da Vida). Observando retrospectivamente, talvez “The
Parts of Life: Agricultural Biodiversity, Indigenous Knowledge, and
the Role of the Third System” (As partes da vida: Biodiversidade
agrícola, conhecimento indígena, e o papel do Terceiro Setor)
completava uma trilogia que resumia o programa “velho” (mas
não obsoleto) da RAFI.
Se alguma vez houve dúvidas acerca do sentido de nossos
esforços comuns, El Siglo ETC deverá eliminá-las. Ao longo dos
anos, poderia parecer que a RAFI tinha se movido “para baixo”:
das sementes para os genes e destes para os átomos. No entanto,
em El Siglo ETC, a RAFI mostra como controlar o pequeno pode
significar controlar o mundo. Certamente, os problemas da
biotecnologia, da nanotecnologia, das neurociências e da “Re-
pública do Binano” são globais.
Desta forma, voltamos ao princípio. Vinte e cinco anos de-
pois de What Now (E agora?), estamos iniciando outra explora-
ção intelectual que culminará, esperamos, com uma nova visão
global que vai se chamar What Next? (E depois?). É com satisfa-
ção que oferecemos El Siglo ETC como a primeira contribuição
ao desenvolvimento desta nova visão para as décadas vindouras.
O encontro de pessoas, que há 25 anos não aconteceu, transfor-
ma-se hoje em um encontro de mentes.

Sobre a RAFI
Esta edição de Development Dialogue marca uma transição. A
RAFI sempre assinalou, como momento de seu nascimento, uma
reunião internacional de ativistas da alimentação, convocada por
membros da RAFI em Fort Qu'Appelle, Saskatchewan (Canadá),
em novembro de 1977. Naquela ocasião, as “sementes”, a erosão
genética, a concentração empresarial em agrotóxicos e sementes
22 Pat Roy Mooney

e os monopólios de propriedade intelectual sobre formas de vida


eram o problema. A transição para a inclusão da biotecnologia
começou, com muita relutância, em 1981, mas podemos rastrear,
sobretudo, outra reunião de ativistas em Bogève, França, em 1987.
Agora, a transição das “sementes” à “ETC” (sem abandonar de
modo algum as sementes) ocorre com a mesma relutância. A
RAFI está mudando de nome, a fim de contemplar melhor o
objeto cada vez mais amplo de seu trabalho.
Em 1993, a RAFI foi a primeira organização da sociedade civil
que documentou a coleta de material genético indígena e o
patenteamento de linhas celulares humanas em todo o mundo. Esta
pesquisa nos levou a lugares aonde nunca pensáramos ir. Nunca nos
ocorreu que poderíamos aventurar-nos ainda mais longe. Depois,
o trabalho sobre a economia política das sementes e a coleta de li-
nhas celulares humanas nos levou a estudar as implicações destas
atividades na guerra biológica. Isso, por sua vez, levou-nos a exami-
nar um conjunto muito pouco comum de tecnologias militares. Na
seqüência, o relatório de Hope Shand em 1997, sobre “Bioservidão”
– publicado como um número de RAFI Communique, dirigiu-nos
para a “agricultura de precisão”, incluindo satélites e sensores. Estas
novas tecnologias propuseram questões surpreendentes sobre o
controle da economia mundial e (mais profundamente) sobre o
controle da democracia e da dissidência.
A RAFI sente que é importante apresentar à discussão este
trabalho, algo futurista, por três razões: primeiro, porque exami-
na um conjunto de novas tecnologias e estratégias empresariais
de importância vital que, ainda que tenham relação com a
biotecnologia, não recebem a atenção que seus efeitos merecem.
Segundo, porque embora essas duas áreas estejam se desenvol-
vendo muito rapidamente, a ação das organizações da sociedade
civil poderá modificar seu curso. Terceiro, porque as implicações
O Século 21 23

para os mais carentes – e para todos nós – são simplesmente


fundamentais demais para que possam ser ignoradas.
É possível que as inquietações que expressamos aqui estejam
erradas, mas acreditamos que a trajetória anterior da RAFI deve
motivar os leitores a considerar este relatório com atenção.

Nos bastidores
Embora possa parecer o contrário, este trabalho levou mais de
um ano e meio para ser elaborado e foi beneficiado por muitos
conselhos. No entanto, a responsabilidade pelo resultado é exclu-
sivamente de Pat Mooney. Todos os membros da RAFI tentaram
melhorar este documento durante o processo e não é culpa deles
se algumas vezes o autor não ouviu seus conselhos ou não enten-
deu seus comentários. Como sempre, Hope Shand fez todo o pos-
sível para evitar erros científicos ou políticos, enquanto Jean
Christie, Julie Delahanty e Silvia Ribeiro preencheram lacunas e
esclareceram pontos onde era necessário. Kevan Bowkett, valioso
voluntário da RAFI, realizou um trabalho excelente na identifica-
ção e no resumo de informações e idéias sobre tecnologia e socie-
dade. Em especial, Beverly Cross em várias ocasiões resgatou o
texto inteiro, funcionando como editora científica e de texto, ao
mesmo tempo em que administrava a RAFI. Para tanto chegou a
ponto de recrutar sua família para o trabalho, a fim de cumprir
prazos sempre mutantes. Qualquer erro subsistente deve ser atri-
buído unicamente ao autor, que continuou modificando palavras
e parágrafos, às vezes até o momento de imprimir.

Produção
Este texto foi escrito durante o ano de 1999, enquanto todos
estávamos fazendo outras coisas. Começou nas férias de Natal,
no Canadá, em 1998-1999, na Agência “central” da RAFI em
24 Pat Roy Mooney

Winnipeg, e terminou com as revisões finais em Sucre, na Bolí-


via, em agosto de 2000. Durante o ano de 1999, o trabalho foi
moldado por quatro diálogos com organizações da sociedade ci-
vil com as quais mantemos assídua colaboração. O primeiro acon-
teceu em Cuernavaca, México, em uma reunião convocada pelo
Fórum Global sobre Agricultura, do IATP (Institute for
Agriculture and Trade Policy). A segunda reunião aconteceu em
Luleâ, Suécia, com apoio da Fundação Dag Hammarskjöld. Es-
tas duas reuniões realizaram-se nas primeiras semanas de 1999,
enquanto a terceira, em abril, foi a oportunidade de apresentar
um rascunho mais extenso à Fundação Dag Hammarskjöld, em
Uppsala, Suécia. Em outubro houve uma discussão final do tex-
to quase terminado com ativistas de biotecnologia em Blue
Mountain, no Estado de Nova Iorque. Tanto essas reuniões como
boa parte do pensamento subjacente a estas páginas foram esti-
muladas por Kristin Dawkins e Mark Ritchie, do IATP; Olle
Nordberg e Niclas Hällström, de DHF; Harriet Barlow, da Fun-
dação HKH e Jon Cracknell e Chris Desser que, junto com
Harriet, orientaram a reunião de Blue Mountain. Wendy Davies
e Gerd Ericson editaram e prepararam para a imprensa o manus-
crito com todos os seus quadros, gráficos e notas, tarefa nada
simples de que eles deram conta de forma excelente. Em vários
momentos, durante os últimos dois anos, Jerry Mander nos obri-
gou a repensar nossas idéias sobre a tecnologia e a cultura, ainda
que ele não o saiba.

Em primeiro plano
Este trabalho é dedicado a Sven Hamrell, primeiro e único
presidente da RAFI (uma vez que estamos mudando de nome).
Sven foi o primeiro a propor o marco ETC, em 1988, e foi a
inspiração eclética da RAFI desde What Now. Com seu afasta-
O Século 21 25

mento da RAFI, o problema para nós, e para todos os membros


da sociedade civil que acompanham suas contribuições ao Ter-
ceiro Setor, passou a ser: E agora, quem?

Olle Nordberg
Pat Roy Mooney
EROSÃO
A erosão no meio ambiente e na cultura contribui para uma
profunda erosão nos direitos humanos

O fato é que a esta altura o mundo


já foi bastante saqueado.
William Bean, curador dos Kew Gardens, 19081

Um povo torna-se empobrecido e escravizado


quando lhe roubam a língua que seus ancestrais
lhe legaram; está, então, perdido para sempre.
Ignazio Butira, poeta siciliano2

Chave: “telões” para o cenário?

Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que o desaparecimento


de espécies e sistemas siga pelo mesmo caminho que a perda de línguas,
culturas e conhecimento. Na realidade, surpreendente seria se não fosse
assim. Essas erosões do meio ambiente e da cultura nunca poderiam
ocorrer se não fossem precedidas por uma erosão da eqüidade.

• Não menos de 4.000 e possivelmente até 90.000 espécies são


extintas a cada ano;
• As selvas tropicais estão desaparecendo a um ritmo de quase
1% ao ano;
• A diversidade genética das culturas está desaparecendo do
campo a um ritmo de aproximadamente 2% ao ano;
• As raças tradicionais de gado domesticado estão se extinguindo
a um ritmo de 5% ao ano;
28 Pat Roy Mooney

• Quase a quarta parte dos solos irrigados foi afetada pela ero-
são;
• Estamos destruindo os solos pelo menos 13 vezes mais rapida-
mente do que o tempo necessário para recuperá-los;
• Trinta e sete por cento dos 1,5 bilhões de hectares de terra
cultivada foi erodido desde a Segunda Guerra Mundial, e a
cada ano de 5 a 12 milhões de hectares sofrem erosão grave, a
um custo de substituição de nutrientes/fontes de irrigação de
pelo menos 250 bilhões de dólares por ano;
• O consumo de água doce é quase o dobro de sua renovação
anual;
• Cinqüenta e dois por cento dos estuários costeiros dos Estados
Unidos estão tão contaminados pela água que chega carregada
de elementos químicos das terras cultivadas, que a produção
marinha está seriamente ameaçada;
• A cada ano são movimentadas vinte toneladas de terra por ser
humano do planeta;
• A cada ano se extinguem 2% das línguas do planeta;
• Mais de 80% de todos os livros traduzidos são traduzidos para
apenas quatro línguas européias;
• Por volta de meados do século XXI, quase todos os ecossistemas
do mundo estarão ocupados por pessoas de língua não indígena,
incapazes de descrever, usar e conservar a diversidade
porventura ainda existente;
• O direito de usar e desenvolver a diversidade está sendo erodido
pela propriedade intelectual e pelo controle dos governos pelas
empresas;
• Existe uma erosão planetária não quantificável da participa-
ção e da inovação culturais;
• E o mais trágico é que, junto com a erosão do conhecimento,
há uma erosão da consciência social e da esperança.
O Século 21 29

Erosão ambiental

Em meados dos anos setenta, Garrison Wilkes escreveu que


o desaparecimento em massa de variedades vegetais desenvolvi-
das pelos agricultores, devido a sua substituição pelas variedades
produzidas pelas corporações, era “como construir o telhado ti-
rando pedras dos alicerces”. E o que ocorre com a erosão genética
das culturas, ocorre também com todas as formas de destruição
da biosfera. Se a necessidade é a mãe da invenção, tal ameaça à
Mãe Natureza deveria estar estimulando muito a criatividade.
Mas não é isso o que ocorre. A maior parte da energia criativa
humana continua erodindo os fundamentos mais vitais da vida
para os mais carentes do mundo, para construir ou manter o teto
sobre as cabeças dos mais ricos do mundo.
A RAFI calculou que o germoplasma vegetal está sendo erodido
à razão de 1 a 2% ao ano no campo.3 Mais de 34.000 espécies de
plantas (12,5% da flora mundial) estão ameaçadas de extinção.4
Cada planta superior que desaparece leva consigo pelo menos ou-
tras 30 espécies (insertos, fungos, bactérias).5 A diversidade de ra-
ças animais domesticadas estaria sendo erodida à razão de 5% ao
ano, ou 6 raças por mês.6 É possível que um terço de todas as raças
domesticadas esteja ameaçado de extinção. A cada ano o rio Ama-
zonas lança no oceano Atlântico quase 900 milhões de toneladas
de sedimentos, mas esse númro fica esmaecido quando compara-
do com as mais de 1,1 bilhão de toneladas de solo que o rio Huang
Ho, na China, arrasta cada ano, ou os 3 bilhões de toneladas que o
sistema Ganges-Brahmaputra lança a cada ano na Baía de Benga-
la.7 O mal manejo dos solos irrigados – entre as terras mais impor-
tantes para a produção de alimentos – é particularmente
perturbador. Calcula-se que 24% dos 250 milhões de hectares ir-
rigados podem ser considerados “danificados”.8
30 Pat Roy Mooney

Uma ameaça ainda maior pesa sobre a água que bebemos. A


água que não está em forma de gelo ou cheia de sal é apenas a
metade de 1% em todo o planeta. A chuva e o degelo contribuem
com 40 a 50.000 km cúbicos de água doce a cada ano, mas nossa
demanda populacional e indústrial de água duplica a cada vinte
anos e, segundo o Fórum Internacional sobre Globalização, em
2025 a necessidade poderia superar a oferta anual em 56%.9 Em
2000, os governos desenvolveram uma “Visão Mundial da Água”
(as organizações da sociedade civil chamaram a isso um “sonho
úmido”), tentando descrever e manejar o incontrolável enigma
que temos pela frente. Em 2025, 1,8 bilhões de pessoas, na maio-
ria habitantes do Oriente Médio, do norte da África, do sul da
Ásia e da China, enfrentarão escassez absoluta de água. Entre
outras palavras, terão que desviar água da irrigação e da produ-
ção de alimentos para o consumo doméstico, o que significa que
suas importações de alimentos – e os preços deles – aumentarão
à medida que baixem os níveis dos lençóis freáticos.10

Chaves históricas: a erosão da confiança pública


Há cada vez mais evidências de que fumar tem... efeitos
farmacológicos realmente benéficos para os fumantes.
Joseph F. Cullman III, presidente da Philip Morris Inc., 1962
Em 1953, a Ford Motor Company garantiu ao público motorizado que
os “resíduos gasosos” dos automóveis “não representam problema algum
de contaminação do ar”. Em 1960, um executivo da companhia farmacêu-
tica William S. Merrell confirmou que a talidomida era absolutamente segu-
ra. Em 1974, a CIA alertou para o “resfriamento” global; e, em 1960, o novo
presidente dos Estados Unidos assegurou aos estadunidenses que os resí-
duos anuais de uma usina de energia nuclear poderiam ser guardados, sem
problemas, sob sua escrivaninha na Sala Oval (uma proposta tentadora).
Para não ficar atrás, um ano depois, o governador de Nova Iorque ofereceu-
se para tomar um copo de PCB, e afirmou que esta toxina – hoje conside-
O Século 21 31

rada uma das mais perigosas – não representava nenhum perigo, a menos
que fosse ingerida por longos períodos durante a gravidez. Um ano depois a
organização de Defesa Civil dos Estados Unidos chegou à conclusão que o
“lado positivo” de uma guerra nuclear é que aliviaria a pressão demográfica
e reduziria enormemente a contaminação indústrial. E os benefícios
terapêuticos do fumo? Quando, em 1996, o governo estadunidense tentou
regulamentar os cigarros como “um sistema de distribuição de droga”, os
produtores de cigarro alegaram que os “efeitos farmacológicos” da nicotina
“não são substanciais”. Três anos mais tarde, uma das companhias anun-
ciou sua intenção de desenvolver drogas baseadas na nicotina e, no final de
1999, a Philip Morris, a companhia que 37 anos antes declarara que fumar
era benéfico, confessou que a nicotina é uma ameaça à saúde humana.

Entre 60 e 70% dos recifes de coral do mundo poderiam desa-


parecer em uma geração.11 Pelo menos 70% das espécies marinhas
do mundo estão em perigo.12 Durante o último século, 980 espé-
cies de peixes foram ameaçadas. As selvas tropicais estão desapare-
cendo a um ritmo de 0,9% ao ano (29 ha por minuto).13 Durante
a década de 1980, o mundo perdeu selvas com uma área equiva-
lente ao Peru e ao Equador somados. Cerca da metade das selvas
tropicais plenamente desenvolvidas do mundo (que outrora co-
briam 15 a 16 milhões de km2) foram cortadas ou “desaparece-
ram”.14 Por exemplo, nos últimos 30 anos desapareceu mais da
metade da selva montanhosa da Etiópia e, com ela, metade da
diversidade de sua mais importante exportação cultural: os arbus-
tos de café arábica.15 A pior situação é a da Ásia e a do Pacífico,
onde restam apenas 16% das selvas originais.16
Alguns analistas consideram que a perturbação causada no
ecossistema pelos seres humanos é igual à causada pela própria
natureza. A demanda dos consumidores obriga a “mover” 20
toneladas de material (minérios, combustíveis, solos) por pessoa
ao ano, quantidade que só é igualada pelos vulcões, pelos terre-
32 Pat Roy Mooney

motos, pela sedimentação fluvial e pelo movimento das placas


tectônicas.17
Sem dúvida, a erosão e a extinção fazem parte da natureza.
As espécies vêm e vão. Segundo algumas estimativas, apenas entre
5 e 10% de todas as espécies que existiram algum dia sobrevivem
hoje.18 Mas isso não significa reduzir a importância da extinção
de espécies, nem empregar o velho argumento de que, como
todos vamos morrer, podemos matar. A taxa de extinção é
desnecessária e inaceitável Além disso, não tem precedentes desde
o aparecimento dos seres humanos. Para piorar as coisas, depois
que algumas espécies desaparecem, as causas subjacentes de sua
extinção subsistem para aterrorizar os sobreviventes. Por exemplo,
os Estados Unidos calculam que será de 1,7 bilhão de dólares o
custo para a limpeza dos depósitos de resíduos perigosos (fonte
de muitas extinções futuras) nos próximos 30 anos.19
Ao mesmo tempo em que se evaporam recursos biológicos es-
senciais à vida, a contaminação indústrial, atacando por outro ân-
gulo, está erodindo os recursos atmosféricos. Os resultados, as
mudanças climáticas e a maior exposição aos raios ultravioletas,
estão lançando desafios imprevisíveis à biosfera subsistente. O
Banco Mundial, por exemplo, estima que uma elevação de, em
média, 2 a 3 graus centígrados na temperatura global reduziria
entre um terço e metade da massa de glaciares de montanha, o que
poria em risco um terço, pelo menos, das espécies que sobrevivem
nas selvas. As mudanças na massa glacial e na área de florestas
afetarão profundamente a produtividade agrícola. Espera-se que o
rendimento do milho na África caia de 6 a 8% devido ao aqueci-
mento global. Um estudo feito no Senegal prevê que, nesse país, o
rendimento do milho reduzir-se-á de 11 a 38%. No sul da Ásia,
calcula-se que o rendimento do arroz e do trigo sofrerá grandes
flutuações. A colheita de milho do sul da Ásia e da América do Sul
O Século 21 33

reduzir-se-á de 10 a 65%.20 De modo geral, a produtividade agrí-


cola declinará no Sul, enquanto que, no Norte, ainda que de ma-
neira bastante imprevisível, poderia inclusive aumentar. No en-
tanto, o Norte não vai escapar dos efeitos da erosão atmosférica. A
metade ou mais dos bosques da Alemanha, Suíça, Holanda e Grã-
Bretanha estão sofrendo as conseqüências da chuva ácida, e ainda
não conhecemos as maiores implicações dessa contaminação.21 (No
início do ano 2000, muita gente na Espanha se espantou – e se
assustou – quando começaram a chover blocos de gelo, alguns
com até 4 quilos de peso.)22 Ironicamente, até o Banco Mundial
concorda que o aquecimento global é um fenômeno provocado
pela chamada revolução indústrial, obra dos países do Norte. No
entanto, as contas serão cobradas no Sul. As perdas de cultivos no
Norte ameaçarão os excedentes de alimentos e frustrarão oportu-
nidades de exportação. Não há dúvida de que os agricultores do
Norte são uma espécie ameaçada. Mas, embora sua subsistência se
veja afetada, o que está em perigo é sua forma de vida, não sua vida
em si mesma. As mesmas oscilações da produção no Sul ameaçam
milhões de vidas humanas.

Estará a raça humana destinada a ser outra árvore a cair na


selva? Entre 90 e 95% de todas as espécies que existiram algum
dia estão extintas hoje. O mundo segue em frente. Enquanto
espécie ameaçada, devemos nos preocupar conosco mesmos.
Se desaparecermos, o mundo continuará, mas, se quisermos
permanecer, devemos proteger a diversidade.

Além disso, está se pedindo ao Sul que corra os riscos da


experimentação de algumas assombrosas propostas para reverter
o efeito invernoso. Acadêmicos australianos e companhias japo-
nesas, por exemplo, estão propondo que o Chile converta suas
águas costeiras em um depósito de carbono mediante adição no
34 Pat Roy Mooney

oceano de enormes concentrações de nitrogênio, que estimula-


riam níveis artificiais de atividade biológica. O mais incrível des-
ta proposta é que o governo chileno parece estar considerando-a
seriamente.23
Os agricultores só podem estar seguros quanto à insegurança.
A mudança climática significa mudanças inesperadas nas pragas
e nas doenças. Fazer frente a isto requer uma agilidade científica
que raramente se manifesta na pesquisa empresarial.
A ameaça à saúde da espécie humana (além da produção de
alimentos) também está crescendo, mas é imprevisível. Existe
algo de verdade na idéia popular de que doenças como a ebola
são a vingança das selvas úmidas invadidas. Haverá doenças no-
vas.24 Os efeitos combinados do aquecimento global, com os efei-
tos extremos do El Niño e a expansão da hidrocultura, já estão
sendo acusados de alterar os sistemas de imunidade de espécies
marinhas já submetidas a graves tensões e de fazer com que ve-
lhas doenças migrem de uma espécie para outra. Isto está crian-
do o que a revista Business Week chama de uma caixa de Petri
(recipiente usado em experiências de laboratório) de tamanho
oceânico.25 No verão de 1999, a cidade de Nova Iorque entrou
em pânico diante de um surto de encefalite tropical e algumas
cidades européias presenciaram aterradas um brusco aumento
de casos de malária onde há séculos não ocorria a doença. Serão
necessárias novas defesas para nos proteger de pragas desconhe-
cidas e de pressões atmosféricas incertas.
Obviamente, nosso inusitado (e incerto) futuro serve aos
interesses de companhias de alta tecnologia que afirmam possuir
os instrumentos patenteados necessários para enfrentar as novas
pressões. O mesmo complexo químico que vem destruindo nosso
meio ambiente – e que converteu doenças como a asma, que em
1900 era quase desconhecida, num perigo que ameaçou mais de
O Século 21 35

150 milhões de pessoas nos países indústrializados, no ano 200026


– agora se oferece para salvar-nos com suas invenções mais recentes
que, como dizem mais uma vez, são totalmente seguras. Os
mesmos que obrigarão os Estados Unidos a gastar 1,7 bilhões de
dólares na limpeza de resíduos tóxicos esperam que lhes paguem
esta soma para limpar o que sujaram.

Erosão cultural

Tragicamente, toda essa erosão ambiental chega num mo-


mento de erosão do conhecimento igualmente sem precedentes.
Em 1900 calculava-se que havia no mundo 10.000 línguas, mas
hoje sobrevivem apenas cerca de 6.700. E apenas 50% das que
subsistem são ensinadas às crianças. Isto quer dizer que numa
geração a metade das línguas atuais estará efetivamente extinta.
Alguns estudos afirmam que 90% das línguas faladas em 1999
serão “história” em 2099.27 A metade das línguas que existem
hoje têm menos de 10.000 falantes (e a metade delas menos de
1.000 falantes).28 Já na atualidade, um terço das terras da América
do Sul estão ocupadas por pessoas que não falam nenhuma lín-
gua indígena.
O desaparecimento da maioria das línguas tem como paralelo
o predomínio de umas poucas. 90% da população global fala
300 línguas e as 10 línguas principais são as línguas maternas de
quase metade do planeta. Mas isso subestima inclusive a medida
de nossa homogeneização cultural. Na virada do milênio, The
Economist anunciou alegremente que cerca de 25% da
humanidade consegue se comunicar em inglês.
As razões dessa perda são muitas. Uma causa importante é o
velho e conhecido genocídio. Também há genocídio cultural,
36 Pat Roy Mooney

em boa parte deliberado (e em parte devido à marcha inexorável


da invasora cultura do poder). Até as campanhas de alfabetiza-
ção destroem cultura. Alguns programas de alfabetização que
têm grande simpatia pelas culturas locais também aniquilam lín-
guas, quando não podem manter suas boas intenções devido a
redução de orçamento ou a falta de materiais e de docentes qua-
lificados. Quase inevitavelmente, a força étnica dominante des-
trói os programas de estudo.29

Há uma geração, um presidente dos Estados Unidos prome-


teu que sua geração seria a primeira na história que estenderia
os benefícios da civilização a toda a humanidade. Mas o que
ocorre é que nossa geração é a primeira na história que perdeu
mais conhecimento do que adquiriu.

O declínio das culturas indígenas não se limita de modo


algum a perdas sofridas por remotas populações vivendo nas
selvas – grupos com os quais as culturas dominantes têm uma
empatia absurdamente pequena. Em 1998, um estudo realiza-
do pela UNESCO sobre 65 línguas, das quais havia dados de
1980 e de 1994, concluiu que 49 delas (75%) havia sofrido
uma redução real no número de obras traduzidas para outras
línguas. Nesse período houve, além disso, uma queda no total
de traduções dessas línguas. Paralelamente, a proporção do in-
glês no total de traduções aumentou de 43% em 1980 para
mais de 57% em 1994. A proporção das quatro línguas mais
traduzidas (inglês, espanhol, francês e alemão) aumentou de
65% em 1980 para 81% em 1994. O francês e o alemão per-
maneceram quase na mesma, enquanto que o espanhol cresceu
de pouco mais de 1% do total global de traduções para mais de
3%. (Gráfico 1)
O Século 21 37

GRÁFICO 1 – Traduções de outras línguas para o inglês, francês/alemão/


espanhol ou outras línguas
(em proporções relativas).

Mas, ainda assim, os dados da UNESCO subestimaram a


verdadeira “derrota” cultural a favor do inglês. Porque, entre 1980
e 1994, a população mundial aumentou 25% e quase todo o
aumento foi do mundo não anglofono. O número de pessoas
alfabetizadas nessa população muito maior aumentou cerca de
10%, o que significa um aumento muito significativo dos leito-
res potenciais nesse período. Mas, em lugar de se beneficiarem
com isso, as traduções francesas e alemãs decresceram e o núme-
ro de leitores só aumentou em inglês e em espanhol. E, ainda
assim, não devemos nos enganar. O espanhol está aumentando
devido à pequena melhoria da situação econômica da população
de origem latina nos Estados Unidos e devido ao crescimento da
população e da alfabetização na América Latina – não porque
outras pessoas do mundo tenham sido atraídas por essa língua.
Só o inglês está ocupando terreno de outras línguas.
Tudo isso representa uma ameaça ao nosso conhecimento
coletivo. De cada língua que desaparece faz desaparecer arte e
idéias. Isso está bastante claro. Embora – lamentavelmente – tal
38 Pat Roy Mooney

fato tenha muito pouco interesse para as culturas dominantes. O


que praticamente não se compreende é que estamos perdendo
informação científica e capacidade de inovação. Cada língua que
se extingue faz desaparecer conhecimento sobre plantas e usos
medicinais que poderiam curar doenças atuais (e futuras).
Estamos perdendo dados vitais sobre espécies, manejo de
ecossistemas e clima. Estamos perdendo conhecimento
tecnológico essencial para a agricultura mundial. Se um terço da
massa total da América Latina já não possui populações com
línguas indígenas, significa que perdemos a melhor informação
científica possível para o manejo e desenvolvimento de um terço
da América do Sul.

No século XX, tivemos a oportunidade de utilizar a tecnologia


para liberar a criatividade e ampliar a participação cultural.
Porém, ao contrário, as tecnologias foram utilizadas para limi-
tar a participação e para controlar a criatividade.

Nosso alarme pelo que estamos perdendo deveria ser igual a


nossa consternação com relação ao que nos resta. No mesmo
estudo mencionado antes, a UNESCO apresenta também dados
empíricos sobre o número de traduções dos 140 autores mais
publicados no mundo. Em 1994, 90 desses 140 escreviam em
inglês, em comparação com 64 (de 140), em 1980. O número
de autores franceses e alemães diminuiu ligeiramente. Os autores
da Rússia e de toda a ex URSS, por razões óbvias, desapareceram
da tela do radar durante esse período.
O estudo mostra também que a erosão cultural não se limita
à queda no número de línguas traduzidas. Também há uma queda
na qualidade. Seria difícil dizer que os autores mais traduzidos
do mundo representam o cume da excelência literária (ver Quadro
O Século 21 39

1) A boa notícia é que seis dos dez autores mais traduzidos do


mundo em 1994 são mulheres. A má notícia é que seis dos dez
eram autores de subliteratura. As três primeiras eram Agatha
Christie, Danielle Steele e Victoria Holt.

QUADRO 1 – Os dez autores mais traduzidos no mundo


Autor No. de línguas
Agatha Christie 218
Danielle Steele 131
Victoria Holt 120
Patricia Vanderberg 112
Stephen King 110
Julio Verne 109
Barbara Cartland 98
Robert L. Stevenson 96
Enid Blyton 95
Papa João Paulo II 93
Fonte: UNESCO, 1998, p. 187: Index Translationum, 3a ed. acumulativa, Paris,
UNESCO, 1996.

Ao final do século XX, dois dos indicadores culturais mais


importantes – os livros e a música – chegaram a ser mais acessíveis
do que nunca. E no entanto, em geral, os livros que se escrevem,
que são lidos e traduzidos são novelas sem valor, livros de cozinha
e de dietas (!) e os descendentes degenerados de “Windows para
tontos”. A música que mais se ouve é do tipo romântico efêmero,
monogeracional e monotemática. Embora cada vez mais pessoas
possam ler, são cada vez menos (como parte da população total)
as que criam histórias ou compõem música. Passamos de criadores
a consumidores no momento em que a tecnologia poderia ter
ampliado nossas capacidades criativas.
Em outros tempos, pessoas culturalmente letradas que não
sabiam ler sentavam-se juntas para repetir lendas históricas e criar
novas narrações. Tratavam dos grandes problemas humanos e
40 Pat Roy Mooney

também descreviam as maravilhosas minúcias da vida cotidiana.


Agora podem ler as etiquetas das latas de comida. Em outros
tempos todos aprendiam a cantar ou a tocar um instrumento e a
dançar. Os membros de uma família ou de uma comunidade se
entretinham mutuamente recriando os grandes clássicos de sua
cultura e inventando música e canções novas que descreviam e
alegravam suas vidas. Agora imitam ídolos do rock em bares de
karaokê.

Música mundial?
A indústria, é claro, nega a erosão cultural e até a UNESCO
indica os 80 grupos de Gamelan (música folclórica da Indonésia)
que atuam nos Estados Unidos, e o crescimento da “música
mundial”.30 No entanto, a UNESCO também reconhece que o
mercado da música mundial é minúsculo e que seis companhias
multinacionais (todas do Norte) controlam 80% do mercado
mundial de música gravada (40 bilhões de dólares anuais). Cinco
multinacionais – duas das quais controlam quase a metade das
vendas – dominam o negócio da publicação de música no mundo
(controlando os direitos autorais).31 De fato, nos primeiros dias
do novo milênio houve fusões nessa indústria que aumentaram
de forma espetacular sua concentração. Quando baixar a poeira,
quatro companhias determinarão as opções musicais do mundo
inteiro.32
Acaso essas “multinacionais musicais” se interessam pela
música mundial multicultural? Há dez anos, entre 33 e 40% da
música gravada alemã provinha da Grã-Bretanha (em inglês).
Outro terço da música ouvida pelos alemães vem dos Estados
Unidos. Apesar do ingresso da MTV e da Sony no cenário musi-
cal da Europa continental, as decisões são tomadas em Londres e
Nova Iorque e os artistas são empurrados para o inglês.33 As
O Século 21 41

transnacionais, que não têm ouvido para a música, só querem


ouvir coisas que se possam tocar indistintamente no mundo todo.

Rede mundial?
A indústria indica também a democratização das comunica-
ções que a Internet oferece, porém, mais de 80% da informação
na Internet está em inglês, apesar de apenas 8% da população
mundial falar inglês como primeira língua. Longe de ser o gran-
de denominador comum, a Internet serve aos ricos – onde quer
que estejam no mundo – e marginaliza ainda mais os pobres, as
mulheres e as minorias étnicas.34 Na realidade, a Rede Mundial
(www) não é muito mundial quanto a seu próprio controle.
Calcula-se que 85% da renda gerada pela Internet e 95% do
capital da Internet pertencem aos Estados Unidos.
Entre outros, os lingüistas começaram a reconhecer a gravi-
dade da homogeneização, especialmente para os pobres. Pelo
menos 70% da população do Sul recebe atenção médica de mé-
dicos e curandeiros tradicionais. Junto com suas línguas, os po-
bres estão perdendo seu conhecimento dos preparos tradicionais
que costumavam aproveitar da natureza. O idioma espanhol é
um substituto, não apenas insuficiente, mas empobrecedor do
quéchua, quando o professor e a escola não estão acompanhados
pelo médico, o dentista, o hospital e a farmácia. E, ainda assim,
se não há um equivalente espanhol do nome quéchua da parte
da planta (ou até da própria planta) necessária para curar um
mal estar, a cura morre com o quéchua. Falando de “uma des-
truição da diversidade cultural e intelectual similar à que os bió-
logos dizem que está ocorrendo nas espécies vegetais e animais”,
os lingüistas advertem que apenas 5% das línguas que ainda exis-
tem no mundo não estão em “perigo”.35 E, ainda, os falantes
daquelas línguas “em perigo” também estão em perigo.
42 Pat Roy Mooney

Estará o mundo perdendo mais conhecimento do que está


ganhando? É impossível demonstrá-lo, mas quase certamente isso
está ocorrendo. Inclusive, o conhecimento que estamos adqui-
rindo parece superficial ou insustentável. Durante mais de 2.200
anos, a humanidade armazenou conhecimentos em pergaminhos,
e essa informação continua acessível e utilizável hoje. No entan-
to, nos últimos vinte anos, a maior parte do novo conhecimento
do mundo foi armazenada em disquetes cuja expectativa de vida
não passa de 30 anos.36 E, na realidade, até isso é um exagero
porque a maioria dos dados armazenados eletronicamente nas
décadas de 70 e 80 utilizava softwares que, de lá para cá, foram
perdidos e esquecidos. Isso pode resultar em algo mais que uma
doença. Basta pensar no caso de programas escritos para mísseis
nucleares nos anos 60 que hoje é impossível decifrar.

Uma das histórias que mais são contadas e que mais nos ale-
gram sobre a globalização é a história de quando Nelson
Mandela conheceu umas crianças inuit no Ártico canadense,
enquanto seu avião era abastecido, e com assombro ouviu-os
dizer que tinham visto sua saída da prisão pela TV. Mandela
poderia ter se espantado também se soubesse que essas crian-
ças lhe falavam em inglês porque já não podiam falar sua pró-
pria língua e, por conseguinte, tampouco podiam compreen-
der o conhecimento de seus antepassados sobre a proteção dos
frágeis ecossistemas do alto Ártico.

Erosão da eqüidade

E=TC2
Não é preciso ser um Einstein para reconhecer a nova equa-
ção do poder. A erosão exponencial de nossa biosfera – somada à
O Século 21 43

erosão de nossa capacidade de entender a biosfera – coincide


com uma expansão igualmente exponencial de nossa capacidade
tecnológica para manipular grandes sistemas vivos, com ou sem
segurança. O que resta da diversidade e de todas as tecnologias
que atentam contra a diversidade está se concentrando nas mãos
das empresas oligopolistas.
Nossos direitos estão sendo erodidos. A mesma mentalidade
indústrial que converteu a grande oportunidade representada pela
alfabetização e pelas tecnologias da comunicação em uma perda
de criatividade e de diversidade agora se propõe a utilizar suas
inovações de alta tecnologia para salvaguardar a biosfera e garan-
tir nossa segurança alimentar. Podemos acaso confiar-lhes o con-
trole dessas novas e poderosas ciências?

Estamos perdendo ou ganhando?


No fim da Segunda Guerra Mundial, metade do mundo (pelo
menos de acordo com o que registram os dados da economia
monetária) estava na pobreza. Agora, apenas a quarta parte (no-
vamente de acordo com cálculos baseados no dinheiro) é pobre.
Os preços dos cereais para o consumidor baixaram 150% nos
últimos 20 anos. Estas deveriam ser provas de que progredimos.
No entanto, a impressão acachapante é que o mundo está se
tornando cada vez menos eqüitativo, e não o contrário. No Nor-
te, a classe média está sendo erodida, enquanto a classe alta enri-
quece cada vez mais. A saúde e a educação se deterioram, assim
como o meio ambiente. A pobreza e a doença das crianças che-
gam a ser epidêmicas nos Estados Unidos e no Canadá. No Sul,
as tendências animadoras que dominaram o terceiro quarto do
século passado parecem estar se invertendo.37
Se, em 1960, correspondia aos países mais pobres do mundo
(com 20% da população total) 4% das exportações globais, em
44 Pat Roy Mooney

1990 sua participação foi decrescendo até chegar a 1%. Ao mes-


mo tempo, a parte das exportações dirigidas aos países desenvol-
vidos duplicou, de 13% no começo dos anos 70 para 26% no
começo dos anos 90.
Os prognósticos de que “não haverá pobres sempre” não se
tornaram realidade. Em 1990, houve prognósticos otimistas de
que a porcentagem de pobres absolutos no mundo (os que têm
rendimentos de menos de um dólar por dia) diminuiria para
18% em 2000. Mas, em 1998, a cifra era de 24% e a linha de
tendência tinha se voltado para cima.
Alguns dos lucros tão festejados há duas décadas hoje pare-
cem ilusórios. Os rendimentos de grãos e legumes de elevado
conteúdo protéico estão diminuindo. O que um estudo recente
chama de “inesperada importância das deficiências e toxidades
dos microelementos” está afetando agora os solos mais produti-
vos da Revolução Verde. Os danos são resultado da agricultura
superintensiva e do amplo uso de insumos químicos externos.
Além disso, a dispersão de elementos químicos – especialmente
nitrogênio – das terras cultivadas está afetando toda a produção
de águas salgadas e doces. Sessenta por cento da população do
mundo obtém 40% ou mais de suas proteínas de fontes aquáti-
cas. Agora, o legado da Revolução Verde está pondo em perigo
essa fonte.
O efeito da agricultura com elevado uso de insumos não ape-
nas foi injusto para com o meio ambiente, como também signi-
ficou um impacto duríssimo para os agricultores. Entre os anos
50 e 80, por exemplo, os agricultores estadunidenses experimen-
taram um declínio de 20% em sua receita real, apesar de terem
um grande incremento nos rendimentos. Durante o mesmo pe-
ríodo, a parte do orçamento de alimentação destinada aos agri-
cultores e a seus fornecedores caiu de 57 para 22%, e esse padrão
O Século 21 45

continua. Um estudo que compara a eficiência de agriculturas


com altos e baixos insumos na Colômbia, China, Filipinas, Esta-
dos Unidos e Reino Unido, mostrou que, em geral, os agriculto-
res com baixo uso de insumos eram, em média, cinco vezes mais
eficientes no aproveitamento da energia que seus primos com
elevado emprego de insumos. Agricultores das Filipinas desco-
briram que, para obter um aumento de 116% no rendimento,
eles teriam de concordar com um incremento de 300% no con-
sumo de insumos de energia.
As iniqüidades ambientais crescem paralelamente aos riscos
que correm as populações rurais expostas ao uso pesado de
insumos químicos. Nos Estados Unidos, considera-se que o cus-
to anual, em termos de saúde pública e destruição de recursos
naturais, oscila entre 1,3 e 8 bilhões de dólares. Na América Cen-
tral, calcula-se que de 28,4 a 57,8% dos trabalhadores agrícolas
relacionados com a produção de culturas de exportação adoe-
cem cada ano, intoxicados por insumos químicos. Em 2000, a
Organização Mundial da Saúde, OMS, advertiu que a expectati-
va de vida – calculada como anos de vida livre de doenças
incapacitantes – está declinando em muitos países do Sul, de-
pois de décadas de melhorias.
A distância social entre os ricos e os pobres – que em certa
época acreditávamos que estivesse diminuindo – está se ampliando
de novo. Talvez nada mostre melhor essa inversão do que a
desonrosa degradação dos direitos dos agricultores do mundo
por meio de mudanças introduzidas nas leis de propriedade in-
telectual do Norte. Nos anos 60 e 70, os governos e as empresas
de sementes estavam de acordo em que os agricultores tinham
“direito” de guardar e inclusive de revender sementes. Nos anos
80, esse “direito” se converteu em “privilégio”. Nos anos 90, o
que fora um “direito” e depois um “privilégio”, passou a ser des-
46 Pat Roy Mooney

crito como “pirataria” por alguns desses mesmos governos e em-


presas.
Supostamente, em troca da perda de seus direitos, os agricul-
tores obteriam novas e potentes tecnologias que os tornariam
cada vez mais sadios e mais ricos. Nos anos 60 e 70, essas novas
tecnologias foram os produtos químicos tóxicos de que já fala-
mos. Nos anos 80 e 90, as novas tecnologias provêm da enge-
nharia genética. Com carinho, outra vez?

A erosão da confiança
Hoje, a indústria da biotecnologia e muitos governos nos
garantem que todos os organismos geneticamente modificados
podem ser liberados no meio ambiente sem nenhum risco, e que
todos esses alimentos transgênicos podem ser consumidos sem
preocupação por animais e seres humanos. Talvez seja verdade.
Mas a história de seus defensores é terrível. Considerando a evi-
dência histórica, não temos outra opção razoável senão supor
que estão equivocados. Que, na realidade, não sabem do que
estão falando.
No seminário de Bogéve, chegamos à conclusão de que é
preciso uma geração humana inteira para que se possa compre-
ender as implicações de uma nova tecnologia importante. Pode-
ríamos acrescentar, em conseqüência, que, como não estamos
diante de uma emergência humana, não há nenhuma razão cor-
reta para introduzir tecnologias novas até que tenhamos com-
provado sua utilidade e segurança.
A “carruagem sem cavalos” de um século atrás é um bom
exemplo. É difícil imaginar que a sociedade se opusesse ao motor
de combustão interna. Mas, com doses razoáveis de previsão e
planejamento, o mesmo poderia ter sido introduzido em um
contexto que enfatizasse o transporte público e minimizasse
O Século 21 47

(inclusive taxasse) o transporte particular. Muitas vidas teriam


sido poupadas. É inegável que estamos deixando de lado muitos
outros fatores críticos, como a geopolítica do petróleo e o
diagnóstico precoce da contaminação atmosférica, mas a
tecnologia teria debutado em um meio sócio-político favorável à
detecção precoce e às soluções rápidas. Por muito que se possa
dizer que o transporte rápido nos trouxe as ambulâncias e os
carros de bombeiros, poucos negariam que as mortes causadas
pelo automóvel são mais numerosas que as vidas salvas.
Há paralelismos entre o motor do automóvel e a engenharia
genética. A biotecnologia é “viver num vagão rápido”. Mais ain-
da, é “viver mudando de vagão” à medida que passamos genes de
uma espécie para outra. A biotecnologia se propõe não apenas
reestruturar nossa paisagem, mas também reestruturar a vida. O
princípio da precaução deveria ser o guia. Mas, onde estão os
sinais de “reduza a velocidade” e de “perigo”?
Isto não significa opor-se, filosófica ou praticamente, à
possibilidade da eventual e razoável introdução de algumas
biotecnologias – nem tampouco argumentar contra todas as
tecnologias introduzidas recentemente. É uma argumentação a
favor da comparação de riscos e benefícios. O desenvolvimento
da estrada de ferro, novas técnicas mineiras, o rápido crescimento
da indústria petroquímica, todos eles provocaram morte e
destruição desnecessárias. Em todos os casos o governo e a
indústria mostraram grande otimismo quanto à segurança
pública, até que o custo em vidas fosse irrefutável. Em todos os
casos o tempo demonstrou que estavam totalmente equivocados.
Em meados de 1999, a Europa enfrentou o escândalo de ter
que comprovar a presença de toxinas em produtos avícolas na
Bélgica. Poucos dias depois, o governo belga se viu obrigado a
retirar alguns produtos da Coca-Cola. Os estudantes belgas
48 Pat Roy Mooney

adoeciam diante de um duplo ataque. CO2 combinado na Coca-


Cola carbonatada uniu suas forças a um fungo que crescia na
embalagem de exportação. De alguma maneira esse fungo chegou
às crianças. Em poucos dias a Coca-Cola desapareceu das lojas
de grande parte da Europa Ocidental. Que possibilidades existem
de ocorrerem acidentes deste tipo? Muitas. Se estivessem vivos,
poderíamos perguntar aos dois únicos condutores de Kansas City,
Missouri, em 1905: apesar de terem a estrada só para eles,
provocaram um dos primeiros choques frontais do Quarto de
Século do Automóvel.38 Do outro lado do estado, em St. Louis,
Missouri, a Monsanto (em fusão com Pharmacia-Upjohn) deveria
tomar nota. Por acaso, governos e indústrias são mais cuidadosos
hoje? Até agora, na Grã-Bretanha, morreram mais de 70 pessoas
do “mal da vaca louca”. No fim de 1999, relatórios da União
Européia advertiam que a doença poderia ter se estendido à maior
parte do continente. Em meados de 2000, os governos não
podiam descartar a possibilidade de que a doença se estendesse
também aos Estados Unidos e à Austrália.39 A doença da vaca
louca é uma “burobacteria”: não teria ocorrido se os homens de
negócios não fossem gananciosos, se os cientistas não tivessem se
equivocado e se os burocratas não tivessem mentido. Não é o
único exemplo atual. As vidas de centenas, talvez de milhares de
pessoas na França e no Canadá foram reduzidas porque burocratas
e políticos decidiram utilizar produtos sanguíneos contaminados.
A indústria da informática é outro exemplo. Indústrias
estadunidenses gastaram 150 bilhões de dólares – e os governos
do mundo outros 500 bilhões – ajustando seus computadores
para o ano 2000 (fenômeno Y2K). Aparentemente, há vinte anos,
ninguém no mundo empresarial estadunidense era suficiente-
mente esperto para perceber que o século estava por terminar. E,
da mesma maneira que pagamos aos herdeiros da indústria
O Século 21 49

química para limparem suas próprias lixeiras, agora pedimos aos


criadores do Y2K que nos indenizem. Nos primeiros dias do novo
milênio, o governo dos Estados Unidos reconheceu publicamente
– depois de 40 anos negando e de dezenas de milhões de dólares
gastos na defesa legal – que é possível que as vidas de até 600.000
trabalhadores da indústria de armas nucleares daquele país tenham
sido reduzidas devido à contaminação radioativa. Um painel
“investigativo” do governo admitiu também que as autoridades
haviam estado inteiradas da realidade desse perigo durante
décadas.40

As empresas garantem que a realidade da erosão ambiental só


pode ser resolvida com a biotecnologia, solução infalível.

Em 1992, ano em que muitos chefes de Estado foram ao Rio


de Janeiro para adotar protocolos e convenções relacionadas com
as mudanças climáticas, a desertificação, a biodiversidade e as
selvas, 5 milhões de crianças morreram por falta de alimento,
água potável ou vacinas baratas. Em mortes, isso significa, o equi-
valente a uma dessas excelentes inovações da Era do Automóvel,
um ônibus escolar caindo de cima da barragem de Assuan a cada
60 segundos.41

Notas
1. Bean, William, The Royal Botanic Gardens, Kew, Historical and Descriptive, Londres,
Cassell and Como., 1908, p. 22.
2. Our Creative Diversity, UNESCO, 1996, p. 178.
3. “Plant Genetic Resources”, Development Education Exchange Papers, United Nations
Food and Agriculture Organization (FAO), setembro de 1993, p. 3.
4. Walter, K.S. e Gillett, H.J. (eds.), 1998. 1997 IUCN Red List of Threatened Plants,
comp. pelo World Conservation Monitoring Centre, IUCN – The World
50 Pat Roy Mooney

Conservation Union, Gland (Suíça) e Cambridge (Grã-Bretanha), xiv mais 862 p.


Este estudo se baseia essencialmente em dados obtidos em países industrializados e,
conseqüentemente, subestima a situação global.
5. Edwards, Rob, 1998, “Our pathogens”, New Scientist, 22 de agosto de 1998, p. 5.
6. “New FAO World Watch list for domestic animal diversity Warns: Up to1.500 Breeds
are at risk of extinction”, Comunicado à imprensa, FAO, 5 de dezembro de 1995.
7. World Science Report, UNESCO, 1996, fig. 3, p. 238.
8. Ibid., fig. 5, p. 239.
9. Barlow, Maude, “Blue Gold”, Inrternational Forum on Globalization, junho de 1999,
p. 3.
10. IWMI (International Water Management Institute, Colombo, Sri Lanka), em Internet
http://www.iwmi.org, “Projections for World Water in 2025”. V. mapa e informação
sobre a Visão Mundial da Água (World Water Vision).
11. Bryant, D. e L. Burke, “Reefs at risk: A map-based indicator of threats to the world’s
coral reefs”, World Resources Institute, 1998.
12. “The State of World Fisheries and Aquaculture”, Depto. de Pesca, FAO, Roma, 1995,
p. 8.
13. A estimativa de 29 ha por minuto foi tirada do comunicado à imprensa do Consultative
Group on International Agricultural Research (CGIAR), “Poor farmers could destroy
half of remaining tropical forest”, 4 de agosto de 1996.
14. Colwell, Rita R. e Albert Sasson, “Biotecnology and Development”, in World Science
Report 1996, UNESCO, p. 260.
15. “Fading Aroma”, in New Scientist, 24 de junho de 2000, p. 19.
16. Pearce, Fred, “Going, going…”, in New Scientist, 10 de junho de 2000, p. 16-17.
17. Berger, Antony, “Geosciences and the environment. Understanding human impacts
on natural processes”, in World Science Report 1996, UNESCO, p. 232.
18. Ibidem.
19. Colwell, Rita R. e Albert Sasson, op.cit., p. 245
20. Watson, Robert, de sua apresentação no Encontro Intermediário do CGIAR em
Brasília, maio de 1998. Desta apresentação provêm estes dados.
21. World Science Report 1996, UNESCO, Quadro 1, p. 240.
22. New Scientist, 15 de janeiro de 2000, p. 5.
23. Pearce, Fred, “A Cool Trick”, in New Scientist, 8 de abril de 2000, p. 18.
24. Declaração do CGIAR na 4a reunião da Conferência das Partes da Convenção Sobre
Diversidade Biológica, CGIAR, Bratislava, Eslováquia, maio de 1998.
25. “Is the sea now a giant petri dish?”, in Business Week, 20 de setembro de 1999, p. 82.
26. Doyle, Roger, “Asthma Worldwide”, in Scientific American, junho de 2000, p. 30.
27. Our Creative Diversity, UNESCO, 1995, p. 179.
28. Maffi, Luisa, “Linguistic Diversity”, in Posey, Darrell A. et al. (eds.), Cultural and
Spiritual Values of Diversity, UNEP, 1999, p. 21-22.
29. Mooney, Pat Roy, “The Parts of Life”, in Development Dialogue, órgão da Fundação
Dag Hammarskjöld, 1998, número especial, contém um exame mais aprofundado
deste assunto.
O Século 21 51

30. Roberts, Martin D., “World Music: The relocation of culture”, in World Culture
Report – Culture, Creativity and Markets, UNESCO, 1998, p. 204.
31. Ibid, p. 195-196.
32. “The record industry takes fright”, in The Economist, 30 de janeiro de 2000 (edição
Internet).
33. Negus, Keith, “Global Harmonies and Local Discords: Transnational Policies and
Practices in the European Recording Industry”, in Sreberny-Mohammadi, Annabelle
et al. (eds.), Media in Global Context – A Reader, Arnold, 1997, p. 271-277.
34. Human Development Report 1999, PNUD, p. 62.
35. Associated Press, “Languages: Modernization threatens cultural diversity”, 17 de maio
de 1999, distribuído por UN Wire.
36. World Information Report, UNESCO, 1997-1998, Quadro 1, p. 345.
37. A maior parte da informação contida nestes parágrafos provém de um esboço de
estudo para o Fórum Global sobre Pesquisa Agrícola, realizado em Dresden, Alema-
nha, em maio de 2000. Esse estudo, de autoria de Filemón Torres, Martín Piñeiro,
Eduardo Trigo e Roberto Martinez Nogueira, se intitula Agriculture in the XXI Century:
Agrodiversity and Pluralism as a Contribuition to Adrdress Issues on Food Security, Poverty,
and Natural Resource Conservation, Roma, GFAR, abril de 2000.
38. Freeman, Larry, The Merry Old Móbiles, Nova Iorque, Century House, 1944, p.111.
Esta informação foi obtida por Kevan Bowkett, que trabalha regularmente como
voluntário para a RAFI e hoje é imprescindível.
39. MacKenzie, Debora, “Global Infection”, in New Scientist, 10 de junho de 2000, p. 4.
40. New York Times, 29 de janeiro de 2000 (da edição Internet).
41. Paterson, Christopher, “Global Television News Services”, in Sreberny-Mohammadi,
Annabelle et al. (eds.), Media in Global Context – A Reader, Arnold, 1997, p. 151.
TRANSFORMAÇÃO TECNOLÓGICA
O aumento de poder e a complexidade ocorre
justamente quando as “matérias-primas” estão se erodindo

“Tudo o que se pode inventar já foi inventado”.


Charles H. Duell, Comissionado da Agência
de Patentes dos Estados Unidos, 1899.

Chave: A "tecnologia"* está tomando o poder

Se as bases biológicas do planeta estão sendo destruídas, há


muitas novas tecnologias preparando-se para resolver o problema.
Quem controlará as novas tecnologias? A que interesses servem?
Existem tecnologias que sejam essencialmente “boas”, ou seja,
democratizantes, descentralizadoras e tendentes a aumentar o
poder das pessoas? Serão as tecnologias poderosas intrinsecamente
“más”, ou seja, centralizadoras, distanciadoras e destrutivas? Po-
derão os pobres confiar que os cientistas ricos (ou as empresas para
as quais trabalham) se preocupem com suas necessidades? Se a
biotecnologia fez soar muitas campainhas de alarme entre as pes-
soas, o que dizer da nanotecnologia? A única coisa segura é que o
ritmo de introdução de novas tecnologias está se acelerando.

*
A versão em espanhol usou o termo "utileria".
54 Pat Roy Mooney

• Edson acendeu as luzes de Pearl Street, em Manhattan, em


1882, mas passaram-se 30 anos antes que nos Estados Uni-
dos houvesse equipamentos elétricos ao alcance da maioria.
• Um quarto de século depois da introdução do automóvel, nos
Estados Unidos eram fabricados menos de 4 milhões de carros.
• Foram necessários 38 anos depois da introdução da primeira
estação de rádio para que o novo meio de comunicação al-
cançasse um público de 50 milhões de ouvintes.
• A televisão chegou a 50 milhões de expectadores 13 anos
depois da comercialização dos primeiros programas.
• Passaram-se 16 anos depois da introdução dos computadores
pessoais antes que esta tecnologia chegasse a ter 50 milhões
de usuários.
• O primeiro telégrafo transmitia informações a 0,2 bites por
segundo. Hoje, os cabos de fibra ótica transmitem dados a
10 bilhões de bites por segundo.
• Apenas 4 anos depois de sua criação, Worldwide Web tinha
50 milhões de usuários.
• Até 1996, o número de sites da Internet e de mensagens de
correio eletrônico duplicava a cada ano; atualmente o nú-
mero de usuários da Internet duplica a cada 4 ou 5 meses.
• A quantidade de informação genética armazenada nos ban-
cos de genes internacionais duplica a cada 14 meses.
• Mil cientistas trabalharam 10 anos para decodificar pela
primeira vez o genoma de uma levedura.
• Há um quarto de século um laboratório precisava de dois
meses para seqüenciar 150 nucleótidos (as letras moleculares
que compõem um gene). Agora os cientistas são capazes de
seqüenciar 11 milhões de letras em questão de horas.
• O custo do seqüenciamento do DNA caiu de cerca de US$
100 por par de bases, em 1980, para menos de um dólar,
hoje; em 2002, custará centavos.
O Século 21 55

• Em outra época, a tecnologia padrão de sequenciamento de


genes requeria pelo menos duas semanas e US$ 20.000 para
pesquisar um só paciente por variações genéticas em 100.000
SNP (single nucleotid polymorphisms – poliformismos sin-
gulares de nucleótidos). Hoje 100.000 SNP são examina-
dos em poucas horas por algumas centenas de dólares;
• Em 1991, a Agência de Marcas e Patentes dos Estados
Unidos tinha solicitações pendentes para 4.000 seqüências
EST (expressed sequence tag – marca de seqüência expres-
sa). Em 1996, eram 350.000. Em 1998, havia meio mi-
lhão. Um ano mais tarde as três principais companhias de
genoma humano admitiram que tinham apresentado mais
de 3 milhões de solicitações de patentes sobre ESTs.

O início da era de Lilliput?

Pode parecer que entramos na “Era das coisas pequenas”.


No princípio do século XX, lembramo-nos das leis da herança
genética1 e boa parte desse século se dedicou a entender e a
manipular genes. Não muito depois do redescobrimento das
leis de Mendel, já estávamos absorvidos nas funções do átomo
e na energia atômica. Agora, ao começar o século XXI, pode-
mos estar gerando tecnologias novas que combinam nosso li-
mitado conhecimento dos genes com nossa precária compre-
ensão do átomo. Dado que fracassamos tão fragorosamente
ao fazer as coisas grandes, seremos capazes de fazer bem as
coisas pequenas?
A incapacidade da indústria para compreender suas próprias
tecnologias não é nova. Thomas Alva Edson, um dos inventores
da maior utilidade comercial da era indústrial, não apenas se
equivocou completamente com relação aos méritos de seu
56 Pat Roy Mooney

fonógrafo, como depois negou a viabilidade comercial do


telefone, do rádio, da televisão e do aeroplano. Não muito
antes de Kitty Hawk, Wilbur Wright disse a Orville que faltava
meio século para que aparelhos mais pesados que o ar pudessem
voar (o Scientific American aparentemente concordava com
ele. Três anos depois de Kitty Hawk, a revista ainda duvidava
explicitamente de que os irmãos Wright tivessem realmente
voado). O temível Albert Einstein zombou da energia nuclear
doze anos antes de Hiroshima. E o maior erro farmacêutico
dos últimos cem anos foi, seguramente, o desprezo inicial pela
aspirina por parte de Bayer, a pílula mais rentável do século
XX e, possivelmente, do XXI também.
Mudaram os tempos? Terão os “especialistas” aprendido a
lição? Porque essas novas tecnologias mostram sua cara sob o
véu do novo milênio? Existem alguns processos que vale a pena
examinar.

Biotecnologia

A acreditar na propaganda, as biotecnologias fornecerão


os instrumentos de que a indústria necessita para “ajeitar” o
meio ambiente. Segundo os “hits” do momento, a engenharia
genética permitirá a nosso sistema alimentar adaptar-se ao
aquecimento global e alimentar os “inumeráveis milhões” que
estão a ponto de superpovoar nosso planeta. A biotecnologia
poderia permitir-nos reconstruir populações de espécies
ameaçadas. Alguns cientistas garantem que será possível com-
pensar a perda de biodiversidade no presente, ao tornar possí-
vel a criação nova e rápida de biodiversidade comercialmente
útil no futuro (isto é: em qualquer momento determinado pode
haver menos diversidade presente, mas o processo de inova-
O Século 21 57

ção dará origem a um fluxo contínuo de diversidade nova e


útil à medida que for necessário). A biotecnologia é a varinha
mágica que domina a imaginação pública da década de 1990
até hoje.

Chaves históricas: deslizes estratégicos na introdução de novas


tecnologias
“(A aspirina é) típica charlatanice berlinense.
O produto não tem nenhum valor.
Heinrich Dreser, diretor da Divisão Farmacêutica da Bayer, 1899
Em 1845 o serviço postal dos Estados Unidos recusou a oferta de
Samuel Morse de vender por US$ 100.000 seu telégrafo patenteado, por
considerá-lo inútil. Em 1877, a Western Union, companhia que finalmente
aceitou o telégrafo de Morse, recusou, pela mesma razão, o telefone de
Alexander Graham Bell (que também lhe foi oferecido por US$ 100.000).
Em 1907, uma das maiores companhias telefônicas dos Estados Unidos
recusou o rádio de Leo DeForest e, em 1926, o próprio DeForest chegou à
conclusão de que a televisão não tinha futuro comercial. No fim dos anos
70, os fabricantes de semicondutores acharam ridícula a idéia de fazer com-
putadores pessoais e, em 1981, Bill Gates previa que nenhum PC necessi-
taria de mais do que 640 kb de memória RAM.

Cinco peças não tão fáceis


Os que lêem as matérias da RAFI, em geral estão bem in-
formados sobre biotecnologia. Com base neste pressuposto,
mencionaremos apenas alguns dos processos-chave essenciais
que formaram nossa impressão sobre o futuro desta tecnologia.
A clonagem de Dolly, em fevereiro de 1997, e o anúncio
conjunto dos doutores Francis Collins, do Projeto Genoma
Humano, e Craig Venter, da Celera, em junho de 2000, de
que tinham completado o primeiro mapa rudimentar do
genoma humano, são os eventos culminantes do quarto de
século da biotecnologia. Os dois acontecimentos estão cerca-
58 Pat Roy Mooney

dos de confusão. A clonagem passava das ovelhas às vacas,


enquanto os cientistas discutiam se o processo envelhecia os
animais de forma antinatural e o debate passava de instituto
em instituto e de espécie em espécie em todo o mundo. Em
seu entusiasmo com o primeiro mapa do genoma humano, a
imprensa popular praticamente passou por cima das tremen-
das implicações de outros mapas de genomas em elaboração
ou já terminados, que vão do arroz aos tigres. Tanto o público
quanto os políticos perderam os eventos principais.

Reversão da não expressão do DNA


Por trás da Dolly, sem dúvida, estava a importantíssima
prova de que qualquer célula viva pode, teoricamente, ser
reprogramada para desempenhar qualquer função no organis-
mo. O descobrimento da reversão da não expressão (quiesence)
do DNA não só tornou possível a clonagem de ovelhas, vacas
e macacos (e a clonagem de um macaco tornou difícil, cienti-
ficamente, fingir que não é possível clonar seres humanos),
como significa que podemos imitar tecidos e órgãos de nossos
próprios corpos para transplantes de órgãos ou de medula.
Dolly e seus seguidores capturaram a atenção da mídia, mas o
que poderá capturar o mercado é a capacidade de regenerar
partes do corpo.

Transferência de cromossomos
Em 1998, pesquisadores japoneses nos mostraram que é
possível enxertar cromossomos inteiros – vários deles por vez
– em outras espécies. Os cientistas japoneses enxertaram três
cromossomos humanos inteiros (de nossa dotação de 23) em
um roedor. A possibilidade de mesclar e combinar cromos-
somos inteiros que possam ser enxertados em qualquer coisa,
dos fungos aos granjeiros, poderia não ter limites. Em 1999, a
O Século 21 59

revista Nature informou que os cientistas tinham isolado um


“gene da memória”, tinham feito sua réplica e a haviam copiado
no DNA de ratazanas para melhorar sua capacidade de
recordar.2 As implicações disto para a melhora do desempenho
humano são fascinantes e aterradoras ao mesmo tempo.

A brilhante apelação de Jeremy Rilkin, que obrigou a Agência


de Patentes dos Estados Unidos a debater sobre o que era ne-
cessário para fazer um ser humano do ponto de vista genético,
terá eco por várias décadas. Quantos cromossomos humanos
podem ser postos em uma foca da Groenlândia antes que o
Greenpeace passe a defender o peixe do qual a foca se alimen-
ta? Se alguém inocula três cromossomos humanos em uma
ratazana, já pode concorrer às eleições? Se o gene humano da
memória for copiado, a ratazana vai se lembrar de suas pro-
messas eleitorais?

Epigenética
Enquanto os cientistas britânicos e estadunidenses esta-
vam se felicitando por seu mapa do genoma humano, come-
çava um debate enorme, mas muito menos divulgado, sobre
as leis da herança genética e o papel incerto do chamado “DNA
silencioso”, ou seja, os 97% do genoma humano que Venter e
Collins consideraram que não valia a pena incluir em seu mapa.
Estão aparecendo indícios de que este material genético silen-
cioso (material que se tornou irrelevante no longo período da
evolução, à medida que nos formávamos em micro-organis-
mos, nas aberturas termais das profundidades marinhas, nas
alturas das realizações dos mamíferos), na realidade continua
tendo um papel importante em nossa evolução e em nossa
adaptabilidade imediata. Estão sendo revistas até as esqueci-
das teorias evolutivas ambientais do justamente desprestigiado
Lysenko (maligno e maníaco czar das ciências de Stalin). Mui-
60 Pat Roy Mooney

tos pesquisadores se surpreenderam, em meados do ano 2000,


ao descobrir que este DNA silencioso poderia ser essencial
para silenciar um dos cromossomos X nas mulheres. Coisa
nada insignificante.3 Justamente quando acreditávamos ter o
“mapa” nas mãos, descobrimos que ainda há hemisférios in-
teiros por explorar.

Modificação intragênica
Em parte em função da reavaliação do DNA, os cientistas
estão começando a pensar que a era das manipulações
transgênicas ou “GM” (geneticamente modificadas) poderia es-
tar chegando ao fim, quando apenas acaba de começar. Até
agora, o movimento de genes específicos, que mantêm traços
úteis ao serem transferidos de uma espécie para outra, foi
atraente para os cientistas porque estes podem ver, por exemplo,
a característica de tolerância ao frio ou a resistência a determi-
nada doença, visivelmente manifestas em uma espécie. Portan-
to, sabem que teoricamente podem isolar esta característica e
transferi-la para outra espécie que considerem que necessita
dela. Há algum tempo, os cientistas observaram também que o
gene que confere resistência a determinada doença a uma espé-
cie pode ser igual ao gene de resistência à doença de outra espé-
cie muito diferente. Enquanto isso, os epigeneticistas nos lem-
bram que temos a metade dos genes em comum com uma ba-
nana e que estamos a um punhado de genes de distância de uma
salamandra. Os cientistas especulam que estudando nosso
DNA silencioso e ativando ou silenciando diversos genes, po-
deremos obter a maior parte da diversidade genética de que ne-
cessitamos para plantas, aves ou pessoas dentro da espécie. Não
são necessários transgênicos.
Se isto está certo – e a RAFI aposta que sim – de todo
modo não diz absolutamente nada sobre a segurança do meio
O Século 21 61

ambiente ou da alimentação frente a tais modificações. Não


há razão para pensar que a manipulação intragênica é mais
segura que a transgênica. No entanto, os que se opõem à
biotecnologia partindo da premissa de que a transgênese é
antinatural, sacrílega ou imoral, poderiam ter um problema.
O resultado final pode parecer antinatural, mas de fato pode-
rá produzir organismos que, teoricamente, a própria natureza
poderia criar se a deixassem em paz por tempo suficiente.
Nossa base para a ação política não deve se basear em uma
compreensão estática do que é natural ou sobrenatural. Cada
tecnologia pode e deve ser julgada por seus próprios méritos.
Existem novas tecnologias como, por exemplo, aspectos da
agricultura orgânica, que estimulam a democracia e a
descentralização. Há outras sumamente antidemocráticas e
centralizadoras (como a energia nuclear), que devem ser avalia-
das com muito mais cuidado.

A construção de organismos vivos


O doutor J. Craig Venter e seus colegas explicaram que
agora podemos criar vida onde antes não existia. É certo que a
vida que ele formava – e que decidiu abandonar por razões
éticas válidas – fora construída com uns poucos genes de mi-
cróbios.5 Mas o importante é que os humanos podem ocupar
o centro do cenário junto com Deus, nesse clube exclusivo
dos que podem criar vida da argila.

A peça “Terminator”
É grande a tentação de agregar a tecnologia Terminator
ou Traitor à lista das grandes mudanças científicas que estão
dando forma ao futuro da biotecnologia. Na realidade, a
estratégia Terminator da indústria se baseia em algumas das
62 Pat Roy Mooney

descobertas já mencionadas, mas lhes dá uma aplicação


comercial deletéria. Utilizando a tecnologia Traitor,
encontraram uma forma altamente lucrativa de esterilizar as
sementes de uma planta no momento da colheita e depois
revivê-las para a próxima semeadura. Essas sementes tipo
Lázaro poderiam ser comuns em pouco tempo. Falaremos
mais sobre isso.
Às vezes, parece que estamos chegando ao fim da ficção
científica: o que considerávamos absurdo (ou a milênios de
distância) está agora a nosso alcance.

Guerra biológica

Nós, que acompanhamos o desenvolvimento da biotecno-


logia, temos prestado pouca atenção a suas aplicações milita-
res ou a seus efeitos sobre as instituições democráticas. Por
isso, foi uma ocasião rara quando, em 11 de maio de 1996, a
revista New Scientist publicou um relatório especial sobre
“bioterrorismo”. Nele, Robert Taylor advertia que a utilização
de bactérias e vírus como armas era, não apenas provável, mas
quase inevitável. O relatório dizia que a guerra biológica não
requer biotecnologias sofisticadas, mas que o enorme cresci-
mento das biotecnologias aumentaria a efetividade das
bioarmas e que seria quase impossível monitorar as institui-
ções e os cientistas capazes de desenvolver tais armas. Há mais
de 1.300 “lojas” de biotecnologia apenas nos Estados Unidos,
e mais 500 na Europa. A indústria biotecnológica estaduni-
dense emprega mais de 60 mil cientistas especializados em
biotecnologia; além de cerca de 6 mil que saem das universi-
dades a cada ano. O informe assinalava ainda a capacidade
crescente do Sul de desenvolver suas próprias bioarmas.6
O Século 21 63

Como até um “inimigo” pobre, medianamente capaz, poderia


transformar vírus em armas com a ajuda da escrita Java da
Internet, todos os países têm uma desculpa para desenvolver
seu bioarmamento chamado “defensivo”. Essas armas serão
utilizadas principalmente para a sabotagem econômica.

Futuros campos de batalha


O New Scientist publicou seu relatório no momento exato.
Também em maio de 1996, o exército dos Estados Unidos
convocou um seminário de dois dias sobre as futuras implica-
ções militares da biotecnologia, organizado mediante um con-
trato com Science Applications International Corporation
(SAIC). “Biotecnology 20/20”, como se chamou o seminário,
reuniu pessoas-chave da Diretoria de Missões e Operações
Especiais do Pentágono, do Laboratório de Pesquisas do Exér-
cito, da Diretoria de Batalhas Futuras, do Colégio de Guerra
Aérea, do Colégio de Guerra do Exército, do Comando de
Defesa Químico-Biológica além de outros participantes das
mais altas patentes da Agência da Subdireção de Pessoal. Aos
cientistas e estrategistas militares se somaram bioeticistas e
antropólogos acadêmicos (por exemplo, do Center for Human
Performance and Complex Systems da Universidade de
Wisconsin) e gurus empresariais da alta ciência, de compa-
nhias como Nanotronics Inc. Também estiveram próximos
órgãos governamentais não militares, como os Institutos Na-
cionais de Saúde.
A RAFI soube do seminário pela edição de novembro de
1996 do jornal Wired. Pesquisadores intrépidos como sempre,
imediatamente fizemos uma solicitação de informações, pe-
dindo as exposições, materiais prévios e relatórios, o que envia-
mos à SAIC e ao Exército.
64 Pat Roy Mooney

QUADRO 2 – Os dólares da guerra biológica: uma amostra de


empresas de armas biológicas sediadas nos Estados Unidos
O Século 21 65

De janeiro a junho de 1997, diversas peças e engrenagens


das comunidades científico-militares e de inteligência dos Es-
tados Unidos lutaram para recusar nossa solicitação (feita em
comum com o governo da Itália, a revista U.S. News and World
Report e um contratado militar privado estadunidense). Em
meados de 1997, apesar dos esforços do Biological Warfare
Treaty Compliance Chief (Chefe de Cumprimento do Trata-
do sobre Guerra Biológica) e do diretor da Biological Arms
Control Treaty Office (Escritório do Tratado do Controle de
Armas Biológicas), um tecnicismo obrigou o Laboratório de
Pesquisas do Exército a entregar os documentos. Demoramos
um ano para estudá-los. Passaram a ser nossa leitura de verão
quando alguns membros da RAFI se reuniram na “Heritage
Farm” do Seed-Savers Exchange, perto de Decorah, Iowa, em
meados de julho de 1998. Heritage Farm está o mais longe
possível da guerra biológica, e provavelmente o mais perto
que se possa imaginar de uma verdadeira defesa cidadã contra
a guerra biológica.
Em “Seed Savers”, um dos expositores nos lembrou uma
das frases favoritas de Krishnamurti: “Não é necessariamente
sadio estar bem adaptado a uma sociedade demente”. Estas
palavras nos voltaram muitas vezes à memória enquanto lía-
mos a informação preparada e os cenários estratégicos de cam-
pos de batalha. Oficiais como o Coronel Gerald Jaax (que se
tornou famoso por vários livros sobre o ebola, publicados há
alguns anos), hoje diretor da Agência do Tratado de Controle
de Armas Biológicas, opôs-se – sem êxito – a fornecer à RAFI
os dados do seminário, alegando que o estilo de “livre pensa-
mento” altamente futurista e especulativo do seminário pode-
ria ser mal interpretado como representativo da política do
governo dos Estados Unidos. Era uma preocupação honesta.
Não é preciso ser um “falcão” para entender que a sociedade
66 Pat Roy Mooney

precisa se proteger contra as armas biológicas. Na realidade, se


o exército dos Estados Unidos não tivesse provocado uma tem-
pestade de idéias sobre a guerra biológica, teria sido razoável
que os cidadãos estadunidenses se levantassem e levassem to-
dos a uma corte marcial por não cumprimento do dever. Uma
vez aceito que um aparato de “defesa” responsável deve tratar
do inconcebível, todo o desfile de cenários cada vez mais gro-
tescos e horrendos considerados no seminário adquire essa es-
pécie de normalidade bem adaptada contra a qual nos adver-
tia Krishnamurti.
Para falar claramente (e honestamente), em nenhum pon-
to do documento enviado à RAFI os militares mencionam a
possibilidade de que os Estados Unidos violem as proibições
estabelecidas nos atuais tratados sobre guerra biológica. Ao
contrário, a análise da SAIC sobre a mentalidade militar dos
Estados Unidos sugere uma aversão por esse tipo de guerra e
um desejo, em princípio, de cumprir as obrigações dos trata-
dos. No entanto, até Gerald Jaax reconhece que no direito
internacional há vastas áreas obscuras, onde o cumprimento
dos tratados e as definições de guerra biológica encontram
dificuldades. Só por essa incerteza há amplas razões para o
escrutínio público e o debate informado.
Em 1970, o filme “Easy Rider” disse, da mesma forma que
Krishnamurti: “Não adaptes tua mente. Há uma falha na rea-
lidade”. O seminário “Biotecnology 20/20” examinou todo o
panorama de novos brinquedos de ficção científica disponí-
veis na atual “RMA” (Revolution in Military Affairs = Revo-
lução nos Assuntos Militares). A questão é que é impossível
entender a biotecnologia fora do contexto de outras tecnologias
em desenvolvimento, como a robótica, a tecnologia espacial,
as comunicações, as ciências da computação, a nanotecnologia
e as redes neurais. Num estilo engenhoso, mas sempre desa-
O Século 21 67

paixonado, os teóricos da SAIC chamaram a atenção dos par-


ticipantes para uma variedade demasiadamente plausível de
brinquedos mortais que poderão ser viáveis militarmente nos
anos 2015-2020. Os avanços científicos estão levando não
apenas à “morte da distância” (tema militar recorrente), mas
também ao fim dos campos de batalha. Não existe defesa. A
saúde mental sugere que o único caminho possível para o ge-
neral desejoso de proteger a soberania nacional é a busca ur-
gente da paz. A melhor defesa consiste em eliminar as desi-
gualdades socioeconômicas e as deficiências democráticas que
sempre foram a principal causa das guerras.
Mas embora os documentos do seminário reconheçam que
muitas das novas tecnologias estão proliferando pela Internet
e que a guerra biológica (em particular) é provavelmente bara-
ta, todos ignoram a opção de paz; o enfoque do seminário é a
defesa militar contra cada cenário indefensável.

A arma que será usada


Em Bogève, a RAFI resumiu nossas principais inquieta-
ções com relação à guerra biológica como segue:

• Não existem matérias-primas cruciais cuja extração,


manufatura ou transporte possam ser monitorados com
facilidade. É possível extrair armas biológicas de um
pedaço de carne podre ou sintetizá-las a partir do lixo
do quintal.
• É barata. A maior parte do custo das armas modernas se
destina a levar o explosivo até o alvo. As armas biológi-
cas podem viajar na classe econômica de uma empresa
de aviação comercial, ser vaporizadas em mariposas
migrantes ou enviadas pelo correio.
68 Pat Roy Mooney

• É fácil. Os novos programas de computador tipo Java


estão possibilitando aos cientistas de países pobres imi-
tar a pesquisa em ciberlaboratórios a fim de projetar suas
próprias bioarmas com relativa rapidez e sem necessidade
de equipamentos caros.
• É de armazenamento limitado. Quando necessário, pode-
se tirar a toxina do congelador e prepará-la em umas
quantas placas Petri ou em um barril de cerveja. Assim,
o monitoramento é quase impossível.
• Ninguém saberá quem é o autor. Pode ser impossível
rastrear a origem do “ataque”.
• Ninguém saberá que foi feito. Se a arma escolhida é a mu-
tação de uma doença conhecida, pode ser impossível de-
monstrar que o “ataque” foi intencional. Até as vítimas
podem ficar convencidas de que foi um “ato de Deus”.
• As bioarmas podem ser usadas para a guerra econômica –
apontando para culturas ou gado em lugar de pessoas.
Quer se trate da mancha da batata ou do vírus do mo-
saico do café, as armas biológicas podem aniquilar a eco-
nomia ou o abastecimento de alimentos e derrubar o
governo inimigo sem que ninguém suspeite que houve
jogo sujo.
• Serão utilizadas. Os generais podem preferir fazer barulho
com as armas nucleares, mas as bioarmas são “a bombas
A do homem/país pobre”. Por todas as razões citadas
nesta lista, a guerra biológica será travada e poderá ou não
ser contida.

Etnobombas
Todos estes problemas subsistem, mas em 1993 a RAFI
acrescentou à lista uma nova preocupação: a coleta global de
O Século 21 69

material genético humano (em geral linhas de células) por


pesquisadores médicos (incluindo o Projeto de Diversidade
Genética Humana) poderá permitir o desenvolvimento de ví-
rus com alvos etnicamente determinados. O Projeto de Di-
versidade Genética Humana e grandes organizações médicas
– incluindo algumas organizações progressistas que monitoram
criticamente os desenvolvimentos no campo da genética – ri-
ram desta afirmação. A RAFI não recebera uma vaia seme-
lhante desde que advertimos, no inicio dos anos 80, que os
fabricantes de herbicidas estavam comprando companhias de
sementes com o objetivo de desenvolver variedades de plantas
que necessitassem de seus químicos.
No entanto, não estávamos tão adiantados com relação a
nosso tempo como pensávamos. Em 1996, o governo britâni-
co advertiu a Convenção sobre Armas Biológicas e Tóxicas de
Genebra que a informação derivada do Projeto Genoma Hu-
mano “...poderia ser levada em conta para projetar armas
dirigidas contra grupos étnicos ou raciais específicos...”7 E a
Grã-Bretanha sabia porque o dizia. Durante a II Guerra Mun-
dial planejou – mas não realizou – o que chamou de ataques
de “represália” contra seis das principais cidades alemãs. Des-
ses ataques participariam 2.000 caças Lincoln, levando 500
bombas em cacho, cada um dos quais contendo 106 bombas
de antrax. Os militares britânicos calculavam que estas bom-
bas matariam 50% dos habitantes das cidades e deixariam o
terreno inabitável por muitos anos.8 Em 1998, a Associação
Médica Britânica propôs uma resolução, adotada pela Associa-
ção Médica Mundial, segundo a qual as “etnobombas” são
uma verdadeira ameaça para o bem estar humano e, em 1999,
afirmou que essa década tinha presenciado esforços combina-
dos de genocídio contra os curdos no Iraque, os tutsi em
Ruanda, e os povos de Timor Leste.9 Os governos da Grã-
70 Pat Roy Mooney

Bretanha e dos Estados Unidos reconheceram que cerca de


uma dúzia de países estão pesquisando o uso de etnobombas.
Desde então, as armas genocidas não precisam ser etnica-
mente dirigidas desde que a população alvo esteja geografica-
mente concentrada. O antrax mata todo mundo. Lançado em
um vale ou em uma ilha, não discrimina, e não é provável que
se estenda além do território previsto.
No atual debate sobre as etnobombas, é instrutivo obser-
var que o horror que parece inconcebível para os geneticistas,
os mapeadores e os caçadores de genes, é considerado viável e
até provável por seus governos e ministérios da defesa.
Como já se disse, no início de 1999, Craig Venter anun-
ciou que ia deter o desenvolvimento da primeira “forma de
vida criada”, por razões éticas. Venter disse à imprensa que a
criação de algo vivo expõe para a sociedade, não apenas ques-
tões éticas sem resposta, mas também que a simples bactéria
que se propunha “criar” era tão comum e básica para a vida
que poderia entrar e sair de qualquer espécie e converter-se
em um veículo mortal na guerra biológica. Essas mesmas pre-
ocupações deveriam inquietar os cientistas que buscam agre-
gar mais letras ao código genético que governa a maioria dos
seres vivos. Em seu esforço por criar “DNA artificial”, capaz
de proporcionar proteínas sem igual à indústria e à medicina,
os pesquisadores da Califórnia poderão estar se aventurando
onde Venter não se atreveu a por os pés.10

Terrorismo Terminator
A RAFI expressou pela primeira vez em Bogève, em 1987,
sua preocupação com a possibilidade de armas biológicas serem
dirigidas contra culturas agrícolas; nossas advertências não
provocaram maior interesse até que, em 3 de março de 1998,
O Século 21 71

GRÁFICO 2 – Comparação entre diferentes armas genocidas (número


3500000
estimado de pessoas mortas)

3000000

2500000

2000000

1500000

1000000

500000

0
1 Mt Bomba de hidrogênio 1.000 kg Sarin 100 kg Anthrax

Fonte: Biotecnology Weapons and Humanity. British Medical Association,


Harwood Academic Publications, 1999.

a tecnologia Terminator obteve sua patente. Imediatamente, a


possibilidade de acender ou apagar uma “seqüência suicida”
nas sementes por meio de um promotor químico provocou
sérias preocupações quanto à sabotagem econômica, o
autêntico eco-terrorismo. Seria possível enxertar Terminator
em sementes de exportação e manter oculta esta caraterística
durante várias gerações, ou ativá-lo por controle remoto,
químico, ou ainda por determinada condição atmosférica? Tais
especulações pareciam a muitos, paranóicas.

A história mostra que o “agroterrorismo” em grande escala so-


mente pode ser promovido por governos, não por grupos radi-
cais. A ameaça de que o terrorismo Terminator seja utilizado
em guerras econômicas (ou ecológicas), por agromercenários,
em nome de Estados-clientes, é uma ameaça concreta.

No entanto, as bases para a preocupação ficaram claras


exatamente um ano antes da autorização da patente para
72 Pat Roy Mooney

QUADRO 3 – Alvos para o agroterrorismo: estimativa da África do Sul


sobre os agentes patogênicos e culturas com mais probabilidades
O Século 21 73

Fonte: Grupo Ad Hoc dos Estados Participantes da Convenção sobre Proibição de Desenvolvimento,
Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e Toxinas e sobre sua Destruição, “Plan
Pathogens Important for the BWC”, Working Paper da África

Terminator. Em 3 de março de 1997, o governo da África do


Sul, depois de admitir que o anterior governo do apartheid
74 Pat Roy Mooney

empreendera pesquisas sobre guerra biológica tanto contra


culturas agrícolas quanto contra grupos étnicos, publicou uma
lista de vinte agentes patogênicos de culturas, que haviam sido
pesquisados para sua possível utilização como armas. O estudo
da África do Sul foi apresentado em Genebra ao grupo ad hoc
de países que analisava formas de fortalecer os tratados sobre
guerra biológica. (Ver Quadro 3)

Ataque à traição
Então, em junho de 1999, Scientific American publicou
um relatório assombroso, de pesquisadores da Universidade
de Bradford, na Grã-Bretanha, que descrevia a pesquisa em
guerra biológica vegetal e animal, não apenas na África do
Sul, mas também nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Rússia
e Iraque. Parte dessa história remonta à Segunda Guerra Mun-
dial ou à Guerra do Vietnã, mas o trabalho do Iraque ocorreu
na década de 90 e incluiu a bioengenharia de agentes
patogêncios do trigo, que poderiam ter devastado a segurança
alimentar do Oriente Médio.11
Na realidade, o agroterrorismo, como tática entre as gran-
des potências, não é a exceção, mas a regra. Na Primeira Guerra
Mundial, os franceses desenvolveram agentes patogênicos para
aniquilar os animais da cavalaria alemã e os alemães lançaram
uma elaborada estratégia que arrasou o gado da Romênia, assim
como o gado e o trigo armazenado (para ser exportado aos alia-
dos na Europa) na Argentina e possivelmente em outros países
da América do Sul. A campanha alemã também foi dirigida
contra embarque de cavalos de guerra e de tiro no leste dos
Estados Unidos e ao longo de toda a frente ocidental.12
É amplamente reconhecido que os Estados Unidos destruí-
ram a colheita de trigo do Vietnã do Norte na década de 60 e
tentaram disseminar doenças entre as culturas de exportação da
O Século 21 75

Nicarágua no final dos anos 70. Correm também boatos em


que se pode acreditar que os Estados Unidos – ou dissidentes
apoiados por eles – atacaram culturas e animais em Cuba.
Em um estudo da campanha dos Estados Unidos para eli-
minar as culturas de narcóticos nos Andes, Edward Hammond
(ex-membro da RAFI, atualmente diretor do Projeto Sunshine)
descobriu que tanto os Estados Unidos quanto a Grã-Bretanha
canalizaram fundos, por meio do programa antidrogas da ONU,
para ter acesso a fungos microscópicos manipulados para
convertê-los em armas no Uzbequistão (quando esta república
ainda fazia parte da URSS). Tanto os fungos quanto os cientis-
tas participam agora da pesquisa dos Estados Unidos. Hammond
afirma que o plano estadunidense de lançar fungos genetica-
mente modificados a partir de aviões ainda não foi aprovado
pelo governo colombiano.13 No entanto, em meados do ano
2000, com bilhões de dólares de fundos de ajuda destinados à
Colômbia, a aprovação da assistência financeira passou a de-
pender da disposição deste país para permitir a experimentação
de armas biológicas contra suas culturas de narcóticos. Trata-se
de uma pressão intolerável. Mesmo a pesquisa desses fungos e
seu armazenamento deveriam ser vistos como uma violação do
Tratado sobre Armas Biológicas da ONU.

Chaves históricas: Os alimentos (e outras) armas políticas


“...os agentes biológicos modernos permitem apontar com sutileza
ainda maior contra a agricultura e a mente humana, contra alvos agronô-
micos e psicológicos, com agentes anticulturas ou do solo, por exemplo,
ou agentes psicotrópicos ou neurotrópicos insidiosos...”
Dr. Robert Hickson, Prof. de Filosofia, Estratégia e Humanidades
Clássicas, United States Air Force Academy, 26 de julho de 1999.
Na Convenção de Haia (sobre armas), em 1899, o governo britânico
“se opôs firmemente a qualquer restrição ao uso de suas (balas ocas dum-
76 Pat Roy Mooney

dum)... contra tribos selvagens”. Em 1919, Winston Churchill criticou o Mi-


nistério das Colônias britânico por sua resistência ao uso de gás venenoso
contra as “tribos não civilizadas” do Iraque. Em 1939, o governo da Grã-
Bretanha começou a fazer experiências com anthrax, mas abandonou o
plano de lançá-lo sobre cidades alemãs porque os ventos eram desfavorá-
veis. Nos anos 50, Hubert Humphrey (mais tarde vice-presidente dos Esta-
dos Unidos) apoiou o uso de alimentos como arma de política exterior e, em
1974, Earl Butz, secretário de Agricultura dos Estados Unidos, reiterou seu
apoio a esta política. Em 1999, os governos dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha pressionaram para proteger o uso da tecnologia Terminator na
Convenção sobre Biodiversidade da ONU. Os dois países estão colaborando
para o desenvolvimento de fungos convertidos em armas para a destruição
de plantações de narcóticos.

Entre março e julho de 2000, participei de uma reunião


com organizações da sociedade civil, agrônomos e funcionários
de governo em seminários sobre biotecnologia em La Paz, Sucre
e Cochabamba, na Bolívia. Apesar de que este país seria o
primeiro e principal alvo das armas biológicas para destruir
suas grandes plantações de coca, nem um único funcionário
ou cientista ouvira falar da proposta de utilizar a Bolívia como
campo de experiência para os fungos bélicos. Até altos funcio-
nários do Ministério do Meio Ambiente boliviano, que se ocu-
pam de problemas de biossegurança, afirmaram não ter idéia
a respeito. Num centro de megadiversidade vegetal como são
os Andes bolivianos, a guerra biológica poderá vir a ser uma
ameaça terrível à segurança alimentar, não apenas da Bolívia,
mas também do mundo.
Enquanto o Congresso dos Estados Unidos pressionava os
governos andinos, os Centros para Controle de Doenças
(Centres for Disease Control), outros organismos governamen-
tais e outros governos estavam reunidos em Atlanta, Geórgia,
para discutir o terrorismo. Como sempre, os dementes e dissi-
O Século 21 77

dentes que chantageiam os governos, ameaçando lançar “bom-


bas” de anthrax sobre Chicago eram a grande preocupação.
No entanto, o único “perigo claro e presente” de guerra bioló-
gica provinha dos anfitriões da conferência e de seus aliados
britânicos do outro lado do oceano.
Em novembro de 2000, numa carta a Edward Hammond,
do Projeto Sunshine, a ONU confirmou categoricamente que
abandonara todos os planos para usar armas biológicas em sua
guerra contra as drogas na América do Sul. A decisão de aban-
donar a iniciativa é possivelmente de julho, depois que o go-
verno colombiano se negou a ceder às pressões estadunidenses
e se uniu ao Peru e ao Equador na oposição ao perigoso plano.
Aparentemente, só a Bolívia concordou em acompanhar a es-
tratégia dos Estados Unidos e da ONU.
Além do artigo do Scientific American, em junho de 1999
houve dois outros acontecimentos que aumentaram a inquie-
tação pública. Primeiro, Floyd Horn, diretor do Serviço de
Pesquisa Agrícola (ARS) do Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos (USDA), declarou ao Philadelphia Inquirer
que estava seriamente preocupado com a possibilidade de que
o “agroterrorismo” atacasse plantações geneticamente homo-
gêneas nos Estados Unidos.14 Ao que parece, Horn e seu assis-
tente haviam estudado o problema por algum tempo, tendo
inclusive participado de reuniões de informação da OTAN
sobre este tipo de ameaça.15
Os artigos do Scientific American e do Inquirer apareceram
ao mesmo tempo em que em Montreal se reunia o Convênio
sobre Diversidade Biológica da ONU para analisar o relatório
de uma mesa redonda científica encabeçada pelo doutor
Richard Jefferson, sobre a patente Terminator original. Cha-
mou-nos especialmente a atenção o parágrafo 84 deste crítico
relatório.
78 Pat Roy Mooney

“...antecipamos que dentro de 3 a 7 anos haverá tecnologias


suficientemente poderosas para manipular genes endógenos, por
meio da intervenção molecular (por exemplo, mutagênese
locodirigida; recombinação homóloga), e que é preciso uma ati-
tude ativa para tê-las em conta, a fim de prevenir as tendências
nas Tecnologias de Restrição do Uso Genérico (GURTs). Consi-
deramos que essas novas tecnologias moleculares para manipulação
genética serão mais robustas e penetrantes, mas, ao mesmo tempo,
muito mais difíceis de detectar e controlar, devido à natureza sutil e
possivelmente não transgênica das mudanças realizadas.” (Ênfase
nosso.)

Ao mesmo tempo em que se apresentava este relatório, a


RAFI descobria uma nova patente do tipo Terminator (Nº
31), concedida à Universidade de Purdue, com fundos do
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Esta pa-
tente, seguindo o caminho paranóico temido pela RAFI, afir-
ma que o caráter suicida poderia ser suprimido durante várias
gerações antes de ser ativado por um indutor químico remo-
to. As afirmações de Purdue evocam um cenário perverso no
qual a seqüência suicida permanece inativa enquanto for lan-
çado sobre a plantação um determinado elemento químico
(por exemplo, um herbicida), o que pode ser feito várias vezes
durante o período de crescimento das plantas. Se esse elemen-
to químico não for aplicado, ou se sua presença for oculta
malevolamente, a plantação produzirá sementes estéreis. De
fato, o caráter ativo ou inativo pelo indutor químico externo
poderá estar codificado para atacar de imediato a cultura atual:
reduzir o conteúdo protéico do arroz, elevar o nível de cianureto
na mandioca, ou fazer com que o trigo germine precocemen-
te, por exemplo. Isso é a Tecnologia Traitor (traidora). Tam-
bém é pesquisa em guerra biológica ofensiva, contradizendo o
O Século 21 79

Tratado sobre Guerra Biológica, de 1972, proposto e adotado


em primeiro lugar pelos Estados Unidos.
Chegará isto a acontecer? Em Montreal, 108 governos dis-
cutiram quanto à adoção de uma resolução norueguesa que
pedia uma moratória para a pesquisa e as provas de campo de
Terminator, ou a aceitação de outra, da Grã-Bretanha, que
equivale àquela mas não usa a palavra “moratória”, que tem
tanta carga política. Durante o debate, a delegação dos Esta-
dos Unidos ameaçou abertamente outros países com represá-
lias econômicas e possivelmente também da OMC se impe-
dissem a comercialização da Terminator em seus territórios
soberanos. Será possível que os Estados Unidos utilizem a
tecnologia Terminator para impor sua própria interpretação
de seu infame “campo de jogo semelhante”? Por que não? Afi-
nal de contas, em épocas muito recentes, os Estados Unidos
impuseram o embargo econômico a Cuba e até minaram por-
tos na Nicarágua. Floyd Horn, o diretor do Sistema de Pes-
quisa Agrícola do Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos, que está tão preocupado com o agroterrorismo, não
apenas apoiou Terminator, como seu escritório encabeça o tra-
balho sobre os fungos convertidos em armas na Colômbia.16
O agroterrorismo é um assunto aceitável enquanto a con-
versa se limita à possível ameaça de dementes e radicais extre-
mistas. Não é aceitável quando se considera que a ameaça pro-
vém de governos e de empresas. E é totalmente inaceitável
quando se trata de biotecnologia, como os fungos modifica-
dos pela engenharia genética do Uzbequistão. Em meados de
agosto de 1999, Julie Delahanty, da RAFI, enumerou três as-
suntos inaceitáveis na reunião anual conjunta das Sociedades
Canadense e Estadunidense de Fitopatologia, em Montreal.
Parecia o lugar perfeito para uma discussão séria. Os
fitopatologistas (especialistas em doenças de plantas) tinham
80 Pat Roy Mooney

reservado uma sessão de meio dia para discutir o agroter-


rorismo. Era uma mesa redonda de especialistas que reunia re-
presentantes do FBI, dos militares estadunidenses, do Depar-
tamento de Agricultura dos Estados Unidos, além de compa-
nhias de biotecnologia. No entanto a sessão começou com uma
advertência da presidência no sentido de que não se devia dis-
cutir a biotecnologia porque isso só daria mais força aos que cri-
ticavam a indústria. Daí em diante a sessão se limitou às turvas
ações de solicitantes frustrados e estudantes que tentavam se
envenenar uns aos outros com compostos vegetais tóxicos. Por
que isso devia ser causa de preocupação para a Força Aérea dos
Estados Unidos e para o FBI, continua sendo um mistério. A
preocupação expressa por Delahanty – de que o único
agroterrorismo em grande escala foi e é realizado por governos
e a pesquisa biotecnológica, como a empreendida para o
Terminator, é o que se devia discutir – foi recebida com vaias e
mau humor.
Em um mundo em que um punhado de empresas transna-
cionais domina a biotecnologia agrícola, em um mundo em
que a tecnologia Terminator é a plataforma da qual partem
todos as novas experiências de melhorias biotecnológicas, não
é difícil acreditar que as empresas ou os governos usem a
tecnologia para impor sua vontade. Uma disputa sobre o co-
mércio de têxteis com o sul da Ásia, por exemplo, poderia le-
var os Estados Unidos a negar licença de exportação para um
herbicida modificado, necessário para assegurar o rejuvenes-
cimento de sementes de algodão portadoras da seqüência
Terminator. Uma disputa com a França sobre óleos vegetais
poderia provocar a mesma ameaça contra os plantios france-
ses de milho BT. A colheita de soja no Brasil – um dos prin-
cipais competidores dos processadores estadunidenses – fica-
ria indefesa se o fitomelhorador de soja dos Estados Unidos –
O Século 21 81

ou o governo dos Estados Unidos – não entregasse o “prote-


tor” químico essencial. O ecoterrorismo poderia ser muito
mais barato e rápido como meio de resolver disputas comer-
ciais do que os processos de arbitragem da OMC, longos e
incertos. Durante a década de 70, um secretário da Agricultu-
ra dos Estados Unidos, nomeado pelo mesmo presidente que
desmantelou, unilateralmente, depósitos de armas biológicas,
sentiu-se autorizado a reconhecer que a alimentação é uma
arma política, fazendo-se eco do sentimento expresso por um
vice-presidente dos Estados Unidos, quando era senador, nos
anos 50. Esta política continua vigente.
Entusiasmados pelo nível de interesse governamental em
suas discussões, em meados de setembro, os fitopatologistas
organizaram um relatório especial para seu espaço na Internet.
O relatório parecia destacar a necessidade mundial de mais
fitopatologistas, com mais recursos e mais respeito, e toda uma
bateria de procedimentos para monitoramento e de emergên-
cia que possibilitariam aos fitopatologistas salvar o mundo dos
fitopatologistas loucos. Em nenhum momento falou-se em
biotecnologia; nem uma palavra foi dita sobre Terminator ou
Traitor. O que é realmente assombroso.
Conforme reconheceram Richard Jefferson e seus colegas
no relatório ao Convênio de Biodiversidade, a terminologia
Terminator demonstra que é possível apagar e reter caracteres
das plantas. Sem dúvida, o caráter mais evidente comercial-
mente é a capacidade ou incapacidade da planta de ter des-
cendentes férteis, mas o controle remoto desta característica
não é particularmente atraente do ponto de vista militar. De
fato, como a colheita semeada pode ser colhida e consumida,
ninguém passará fome até o próximo ano. Como o castigo é
lento, dá ao adversário vários meses para buscar outra fonte de
sementes (ou de alimentos).
82 Pat Roy Mooney

No entanto, se esta caraterística puder ser utilizada para


decidir o valor do plantio atual, o valor militar de Terminator
pode ser enorme. Por exemplo, poderá ser devastador para
determinado cultivo se elementos químicos externos (aplica-
dos ou não) puderem controlar os níveis de proteínas ou a
produção de carboidratos, ser causa de germinação ou
reorientar a energia da planta para o desenvolvimento de fo-
lhas em lugar de sementes.
Tal é a verdadeira ameaça. É muito mais séria do que al-
guém conspirando com anthrax em um refeitório. Mas é uma
ameaça que só pode ser posta em prática por governos ou
empresas, ajudados por fitopatologistas.
Durante a Cúpula Mundial da Alimentação de 1996, os
Estados Unidos argüiram que o Direito à Alimentação não
devia fazer parte da declaração final. Finalmente foram derro-
tados. No entanto, este país ganhou a discussão sobre os Esta-
dos soberanos não necessitarem ser auto-suficientes em ali-
mentação caso sejam capazes de se auto-abastecer, isto é, caso
estejam em condições de comprar a diferença entre a produ-
ção nacional e a necessidade nacional de consumo. Agora, com
a tecnologia Terminator, os países com déficit alimentar en-
frentam a possibilidade de que sua produção nacional passe a
ser totalmente dependente das exportações estrangeiras de
indutores químicos essenciais.

Terminator e Genocídio
A tecnologia Terminator ameaça a vida e a subsistência de
1,4 bilhões de pessoas, cuja segurança alimentar depende das
sementes guardadas pelos pequenos agricultores. A exporta-
ção de sementes Terminator deveria ser questionada em fun-
ção da Convenção de Armas Tóxicas e Biológicas e também
em função do Art. 2o da Convenção sobre o Genocídio. A
O Século 21 83

Convenção sobre Genocídio engloba amplamente qualquer


ato deliberado realizado para prejudicar grupos nacionais ou
outros grupos identificáveis. Os pobres rurais e os agricultores
e camponeses poderiam ser incluídos nos termos desta Con-
venção.

Nanotecnologia

Há quatrocentos anos, enquanto o Júlio César de


Shakespeare enfrentava seu destino no Globe Theatre de Lon-
dres, o filósofo e ex-dominicano Giordano Bruno era queima-
do em Roma. Seu delito consistia em expor a teoria de que
nosso globo girava em torno do sol e que os céus estavam
cheios de milhões de estrelas iguais ao sol. Menos conhecida
pela maioria das pessoas (mas igualmente herética para os pre-
lados?) era a especulação de Giordano Bruno de que toda
matéria viva é formada por partículas infinitamente peque-
nas: os átomos. Embora a hipótese não fosse do agrado de
Roma, na verdade suas idéias estavam muito mais próximas
das teorias atuais do que os postulados mais divulgados de
Copérnico e Galileu.17 O conhecimento público sobre a
nanotecnologia não aumentou muito desde 1600.
Isto está mudando. Talvez o desinteresse do público pela
nanotecnologia não deva surpreender-nos. Afinal de contas,
os materiais biológicos despertam o interesse e a defesa apai-
xonada de conhecidos grupos humanos. A nanotecnologia,
erroneamente vista como relativa a matérias sem vida, não
provoca o mesmo interesse. Enquanto todos estamos admi-
rando os últimos brinquedos da biotecnologia, alguns cientis-
tas, há algum tempo, depositaram sua confiança na Era Pós-
Biotecnologia, que florescerá junto com o fim da era em que
84 Pat Roy Mooney

nossa subsistência dependia de recursos baseados no carbono.


Em 1991, Jerry Mander lançou um alarme precoce em seu
livro In the Absence of the Sacred (Na Ausência do Sagrado).18
Mander afirma que as novas tecnologias estimuladas pelos
computadores e a pesquisa em informática estão modificando
quase tudo. Muitas das mudanças indicadas por ele tem a ver
com biomateriais, outras estão muito distantes. O que segue é
um breve panorama de alguns processos em marcha em ou-
tros setores científicos e de como podem afetar a sociedade, o
controle social e a segurança. No próprio centro dessas outras
novas tecnologias está a nanotecnologia.

A nanotecnologia é outra variante do “uso pacífico do átomo” – a


“Era Atômica”, pronta para repetir o jogo. Desta vez poderia fun-
cionar, servindo para impor a “paz”, acabando com os dissidentes
e entregando os meios de produção ao controle dos monopólios.

Que é a nanotecnologia?
A nanotecnologia é, para a matéria inanimada, o que a
biotecnologia é para a matéria animada. Enquanto os que usam
a biotecnologia lutam para obter o controle de 40% da eco-
nomia mundial baseada em biomateriais, os defensores da
nanotecnologia buscam novas maneiras de controlar o resto
da Terra: não apenas os 60% de matéria inanimada, mas to-
dos os recursos baseados no carbono As biotecnologias se ba-
seiam no carbono, mas, embora a pesquisa em nanotecnologia
se concentre por enquanto nos átomos de carbono, ela englo-
ba potencialmente toda a Tabela dos Elementos; a vida se ba-
seia no carbono. Os átomos que compõem as moléculas que
estruturam o DNA são de carbono.
Claro que é possível conectar a biotecnologia e a
nanotecnologia, o que, aliás, está sendo feito. O desenvolvimento
O Século 21 85

da nanotecnologia está hoje mais ou menos onde estava a


biotecnologia há 25 anos. Mas isso não significa que faltem 25
anos para que a nanotecnologia atraia o tipo de investimento de
capitais de que se beneficia a engenharia genética. Os avanços
em outros campos científicos, especialmente a informática,
significam que o progresso da nanotecnologia será rápido.
Com exceção de Giordano Bruno e de alguns antecessores
muçulmanos e gregos aterradoramente proféticos, os mais fa-
mosos defensores da teoria da nanotecnologia foram os físicos
Richard Feynman e Eric Drexler, do MIT (Massachussets
Institute of Tecnology). Apresentaram suas teorias pela pri-
meira vez em publicações científicas e também na imprensa
popular, em 1959. Dessa vez ninguém foi queimado na fo-
gueira, mas os dois cientistas foram objeto de brincadeiras e
desprezo. A primeira conferência científica sobre nanotecno-
logia, em 1992, atraiu um punhado de acadêmicos nervosos e
pouco à vontade. Em compensação, da reunião de 1997 par-
ticiparam mais de 350 cientistas de excelente reputação. Estu-
dos industriais (com tendência às mesmas hipérboles que co-
nhecemos e que gostamos de ridicularizar na biotecnologia)
calcularam que o mercado comercial para a nanotecnologia
era de 5 bilhões de dólares em 1997 e que sua tendência era
mais que duplicar anualmente.19

Afinal de contas, a nanotecnologia só pode ser confiada a uma


sociedade que seja fundamentalmente justa. No entanto, se
uma sociedade é fundamentalmente justa, talvez não precise
correr os riscos que a nanotecnologia implica para terminar
com a pobreza e salvaguardar o meio ambiente. O primeiro
objetivo continua sendo – como foi durante toda a história
humana – chegar à sociedade fundamentalmente justa. O resto
se resolve por si.
86 Pat Roy Mooney

O que é a nanotecnologia? Dito de forma simples, um nano


(ou nanômetro) é um milésimo de milionésimo de metro, um
pedacinho de matéria do tamanho de um átomo, capaz de se
meter de contrabando em quase qualquer coisa. Em termos
comerciais, nanotecnologia é a manufatura e (o mais impor-
tante e difícil) a réplica ou cópia de máquinas e produtos fi-
nais construídos a partir do átomo.

O que a nanotecnologia pode fazer?


Até há pouco tempo, o pináculo da nanotecnologia não ia
muito além de truques de salão, como empilhar as letras “IBM”
átomo por átomo. Isso está mudando. Às vésperas de uma
grande conferência sobre nanotecnologia em Londres, em
1999, os delegados aplaudiam os últimos avanços: impresso-
ras de jato de tinta com ajuda da nanotecnologia e bolhas de
ar de nível nanotecnológico. Os avanços na medicina são mais
espetaculares: agora os nanotecnólogos se orgulham de novos
sensores manuais que permitem a análise quase instantânea
de amostras de sangue, microbombeadores que permitem ad-
ministrar doses medidas de drogas terapêuticas em lugares bem
definidos, e no tratamento do câncer lançar nanopartículas
cobertas de elementos terapêuticos em órgãos específicos.20 A
última novidade é que cientistas israelenses utilizaram a
nanotecnologia para abrir novos caminhos no sistema nervo-
so humano, a fim de substituir nervos danificados. Os novos
“nervos” são uma combinação biônica de materiais vivos e
nanotecnológicos (de carbono).
Quando pesquisadores das universidades de Toronto e
Michigan State uniram suas forças para projetar uma
“nanobombeadora” (nanopump) que pudesse ser utilizada para
fazer micromáquinas átomo por átomo, a imprensa científica
ficou de orelha em pé e tomou nota.21 Os cientistas médicos
O Século 21 87

estão buscando um modo de evitar – “enganar” – o sistema


imunológico do organismo para enviar drogas a determinadas
células. Os sistemas de envio “mecânicos” poderiam ter a van-
tagem de enganar o sistema imunológico, uma questão em
que a terapia genética e outros agentes biológicos encontram
muita resistência. Outro grupo de pesquisadores, estes da
Universidade de Cornell, deu um grande passo para tornar
isso possível quando conseguiu construir um biomotor ali-
mentado por fotossíntese – a primeira nanomáquina a ener-
gia solar do mundo.22 A nanotecnologia, que há dois anos era
ignorada ou abertamente ridicularizada, agora aparece regu-
larmente nos principais meios de comunicação científicos,
sendo apresentada em artigos e anúncios de revistas empresa-
riais. Está chegando a sua hora.
Cientificamente, a nanotecnologia inclui a química e a
bioquímica, a biologia molecular e a física. Tem ainda relação
com a engenharia elétrica e com a engenharia de proteínas,
com sondas microscópicas e próximas, imagens atômicas e de
posicionamento, eletrônica quântica e molecular, ciência de
materiais e química computacional. Se a nanotecnologia al-
cançar os objetivos mencionados por seus defensores, este com-
plexo de tecnologias novas mudará o mundo mais do que qual-
quer outro avanço tecnológico anterior, incluindo a
biotecnologia.
A biotecnologia nos mostrou que teoricamente o DNA
pode se transferir de qualquer material vivo para outro. É
possível enxertar genes ou cromossomos inteiros de micró-
bios e de mamíferos no DNA de plantas e vice-versa; um
leque assombroso de DNA humano já foi enxertado em roe-
dores. O material genético humano é visto cada vez mais
como os blocos “Lego”, que podem ser misturados e combi-
nados à vontade. Também a matéria inerte pode ser
88 Pat Roy Mooney

construída tipo Lego, átomo por átomo e molécula por mo-


lécula. Dependendo de como se arme o Lego, o produto fi-
nal pode ser um diamante, um narciso ou uma ceia para
dois. Teoricamente, a nanotecnologia pode tirar do lixo e do
ar a matéria-prima atômica para fabricar casas e secadores de
cabelo mais fortes e duradouros do que qualquer dos que se
podem encontrar hoje no mercado.
A construção átomo por átomo de um secador de cabelo
pode ser cansativa, ou o produto final pequeno demais
(50.000 nanotubos postos lado a lado têm a grossura de um
cabelo humano), a menos que se faça algo que acelere o pro-
cesso e aumente sua escala. A chave da nanotecnologia co-
mercial é a capacidade de projetar milhões de nanorrobôs
(robôs em nanoescala) inteligentes que possam ser progra-
mados para construir produtos determinados. Para isso, os
nanorrobôs devem ser também capazes de se construírem a
si mesmos. Se os cientistas conseguirem manufaturar
nanorrobôs que se auto-reproduzam, tudo mais é (ou poderá
ser) muito fácil.

Enquanto antigamente era cientificamente imprudente espe-


cular sobre o que se poderia inventar, hoje é cientificamente
imprudente supor que algo não possa ser inventado.

Praticamente não existe área de atividade social ou de pro-


dução econômica que não vá ser afetada pela nanotecnologia
– desde nanorrobôs para atacar as células cancerosas na medi-
cina até microfoguetes para explorar outros sistemas solares.
Em um mundo biônico, onde se fundem a nanotecnologia e a
biotecnologia, veremos biocomputadores em nanoescala e
biossensores capazes de monitorar tudo, desde reguladores do
crescimento das plantas até assembléias políticas.23
O Século 21 89

Nanotecnologia, milagres em miniatura?


Segundo seus defensores, a nanotecnologia oferece:
• “o fim da doença, tal como a conhecemos” (posto que
os nanorrobôs atacarão os elementos patogênicos den-
tro de nossos corpos e que construiremos células
nanotecnológicas);
• a eliminação e mesmo a reversão do processo de enve-
lhecimento (porque os nanocirurgiões reconstruirão o
corpo e todos os seus órgãos);
• a erradicação da contaminação do ar e da água (por ser
possível criar nanoprodutos a partir dos resíduos);
• o fim da fome (e da agricultura) por meio da nanopro-
dução de alimentos;
• o fim da necessidade de combustíveis fósseis (porque a
nanoconstrução pode se basear na energia solar);
• a provisão de novos produtos de consumo, teoricamente
ilimitada;
• “a criação de riqueza desconhecida até agora, suficiente
para provocar mudanças radicais nas matrizes do poder
político e econômico do mundo.”

Tudo isso soa como os sonhos dos primeiros tempos da ener-


gia nuclear, quando os defensores do “uso pacífico do átomo”
prediziam uma fonte ilimitada de energia limpa que transforma-
ria o mundo. A nanotecnologia também propõe o uso pacífico do
átomo como bloco de construção. Alguns analistas projetam
complicações negativas semelhantes... “a capacidade central, a de
auto-reprodução, requer um cuidado sem igual para evitar riscos
iguais ou maiores do que os relacionados à energia atômica. Por
mais entusiasmante que a nanotecnologia possa ser para a huma-
nidade, se não for controlada, poderá ser mais devastadora do que
cem bombas de Hiroshima ou mil acidentes de Chernobyl.”24
90 Pat Roy Mooney

Se isso parece exagerado, lembre-se a história do Aprendiz


de Feiticeiro. Os nanorrobôs auto-reprodutores, capazes de
acelerar em progressão geométrica a produção de máquinas
incrivelmente duráveis (e invisíveis) poderão causar danos
enormes. Que ocorrerá se não conseguirmos detê-los? Que
implicação tem isso para os planos militares e o terrorismo,
especialmente o terrorismo de Estado? A mesma nanomedicina
capaz de combater um vírus também pode criá-lo. Tentar
defender-se contra máquinas nanotecnológicas poderia ser,
como diz Ray Kurzweil, mais difícil que encontrar um trilhão
de agulhas invisíveis em um trilhão de palheiros. Na realidade,
o próprio poder da nanotecnologia de fazer todas as coisas
físicas, visíveis e invisíveis, de forma barata e inesgotável, é
também sua maior ameaça. A nanotecnologia pode dar
credibilidade à afirmação dos governos de que devem controlar
a sociedade a fim de salvaguardar a aplicação da tecnologia.

Por nossa própria segurança?


Em vista dos roteiros incríveis propostos para a nanotecno-
logia, falar em rígida supervisão governamental parece mo-
derado demais. Alguns gostariam de utilizar a nanotecnologia
para reconstruir a camada de ozônio, resistir aos gases
poluidores, criar água limpa ou dessalinizar a água do mar.
Se é possível fazer re-engenharia de estruturas atômicas, nada
é impossível. Como o fator de risco em tudo isso é tão
impressionate como as idéias, em nosso mundo privatizado
os governos atuarão para obter monopólios para as empresas
que empreendam tais aventuras. As sociedades denomina-
das democráticas renunciarão a boa parte de sua liberdade
em troca do uso “seguro” da nanotecnologia para esses pro-
jetos colossais.
O Século 21 91

Mito ou monstro?

Será que a nanotecnologia vai funcionar?


Ou é simplesmente outra lenda urbana, como a Fusão Fria?
De fato, o senso comum diz que a nanotecnologia funcionará.
A biotecnologia propõe que todas as coisas vivas podem ser re-
duzidas a seqüências de DNA que se auto-reproduzem
(clonagem de mamíferos etc.) e que podemos fabricar uma nova
vida a partir de materiais inertes (como afirma Craig Venter).
Talvez não se consiga fazer essas coisas perfeitamente ou de for-
ma segura. Poderão até ser feitas de forma desastrosa. Mas serão
feitas. Em 1995, a revista Wired interrogou cinco cientistas de
primeira linha sobre suas opiniões acerca da nanotecnologia e
do provável cronograma para sua introdução. O Quadro 4 apre-
senta suas estimativas, feitas há cinco anos . Entre eles, os mais
otimistas eram Storrs Hall, da Rutgers, e Richard Smalley, da
Rice University (que obteve o Prêmio Nobel de Química e con-
tribuiu para fundar o centro de nanotecnologia da Universida-
de), mas todos previam grandes avanços entre 2010 e 2020. Ao
situar a linha de comercialização entre 2010 e 2020, os cientis-
tas indicam três tendências. Dizem que, a persistirem as ten-
dências atuais, o número de átomos necessário para armazenar
uma peça de informação chegará a ser “um” entre 2010 e 2020.
Do mesmo modo, nessa data o número de átomos dopantes
(dopant atoms), necessários para um transistor, também chegará
a “um”. E, finalmente, em algum momento entre 2010 e 2020,
a energia dissipada por uma única operação lógica chegará mui-
to perto da energia de uma única molécula de ar a temperatura
ambiente.25 Se tudo isso parece um pouco abstrato para que
quem não é um “nanomaníaco”, resumidamente significa que,
nesse momento, a nanotecnologia passará a ser científica e eco-
nomicamente viável.
92 Pat Roy Mooney

QUADRO 4 – Cronograma da nanotecnologia segundo


cinco cientistas importantes
Etapa Hall Smalley Birge Drexley Brenner
Leisnanológicas 1995 2000 1998 2015 2036
Comercialização 2005 2000 2002 2015 2000
Montagemmolecular 2010 2000 2005 2015 2025
Reparaçãodecélulas 2050 2010 2030 2018 2035
Nanocomputador 2010 2100 2040 2017 2040
Fonte: Wired Magazine, 1995.

Existem, possivelmente, três métodos dignos de confiança


para medir se a nanotecnologia é um assunto sério ou não.
Primeiro: existe uma massa crítica de interesse científico? Se-
gundo: há suficiente investimento em pesquisa básica relacio-
nada com esse campo? Normalmente, o grosso da pesquisa
básica corresponde ao setor público. Por último: estamos ven-
do o tipo de interesse empresarial que poderia indicar que a
pesquisa básica será acompanhada pela comercialização? Se
esses três elementos forem visíveis, a nova tecnologia está quase
inevitavelmente a caminho do mercado.

Interesse científico
Um bom indicador do interesse e do compromisso cientí-
ficos é o número de referências à nanotecnologia na literatura
científica. Se não há referências, significa que não há interesse.
Em 1988, os títulos que incluíam a nanotecnologia no vene-
rável ISI Citation Index eram menos de 250. Dez anos de-
pois, segundo Michael Cross, autor de Travels to the
Nanoworld, o número de citações nos primeiros oito meses
de 1998 chegou a cerca de quatro mil e já era muito maior
que o total de citações sobre o assunto em 1997.26 Tudo faz
supor que desde o estudo de Cross até agora, a taxa de acelera-
ção do interesse aumentou.
O Século 21 93

Investimento em pesquisa básica


E os governos, estarão destinando recursos econômicos à
nanotecnologia? Sem seu apoio, haverá pouco esforço em pes-
quisa básica. A maioria dos observadores concorda que o Ja-
pão e a União Européia estão gastando – de forma nada carac-
terística – pelo menos o mesmo que os Estados Unidos em
pesquisa em nanotecnologia. A Grã-Bretanha estabeleceu um
Nanotechnology Link Programme e os franceses e os alemães
criaram um “nanovale” no Alto Reno. É possivel que o Japão
esteja ainda mais adiantado.27
GRÁFICO 3 – Citações sobre a Nanociência

4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Fonte: ISI Science Citation Index, e Michael Cross, Travels to Nanoworld.

Não que os Estados Unidos estejam defasados. Em junho


de 1999, a Casa Branca soltou rumores de que queria duplicar
ou até triplicar o investimento em nanotecnologia nos próxi-
mos anos. Em 1992, Al Gore, então senador, dirigiu as pri-
meiras audiências do Congresso sobre nanotecnologia e desde
então tornou-se um de seus maiores admiradores. Em 1997, o
Pentágono classificou a nanotecnologia como área prioritária
para pesquisa estratégica e, em 1999, a Fundação Nacional de
Ciências indicou-a como a mais importante das novas
94 Pat Roy Mooney

tecnologias em desenvolvimento.28 Em meados de 1999, uma


nova rodada de sessões parlamentares elogiou a importância
da nanotecnologia, levando a revista Business Week a anunciar
que a “matéria é software” e a prever que, por volta de 2020, os
consumidores disporão de nanocaixas onde, inserindo folhas
de plástico e cartuchos nanotecnológicos especiais, poderão,
segundo a revista, de seu computador, em sua casa, baixar da
Internet receitas para praticamente qualquer bem manufatu-
rável e depois cozinhar o produto em sua própria nanocaixa
doméstica.29
Os gastos do governo estadunidense em pesquisa sobre
nanotecnologia aumentaram de 116 milhões de dólares em
1998 para 220 milhões em 2000 e mais de 460 milhões no
ano seguinte (ver o Gráfico 4).30 Instituições de primeira linha,
desde a Fundação Nacional de Ciência e os Institutos Nacionais
de Saúde até os Departamentos de Energia e de Defesa, pensam
que vale a pena desenvolver pesquisas em nanotecnologia. À
frente do alvoroço, está a Marinha dos Estados Unidos, com

GRÁFICO 4 – Gastos do governo estadunidense em nanotecnologia


(em milhões de dólares)
600

500

400

300

200

100

0
1198 1999 2000 2001

Fonte: Crawford, Marc, Nre Technology Week, 6.11.99.


O Século 21 95

uma sólida reputação em pesquisas altamente inovadoras e de


sucesso. Prêmios Nobel e grandes universidades dos Estados
Unidos – Harvard, Cornell, MIT, Stanford, Rice e UC Berkeley
– ocupam lugares proeminentes na pesquisa em nanotecno-
logia.

Patrocinadores comerciais
Mas a nanotecnologia não é reserva exclusiva de governos
e acadêmicos. Diferentemente da biotecnologia em seus
primeiros tempos, algumas empresas muito grandes estão
investindo também nesta tecnologia. Como a chave do êxito
da nanotecnologia está em sua capacidade de auto-reprodução,
não deveria nos surpreender que um dos líderes da pesquisa
seja a Xerox, a empresa que encabeçou a indústria global da
fotocópia. Em seus laboratórios de Palo Alto, a Xerox conseguiu
certo êxito no desenvolvimento de robôs modulares que se
auto-ajustam.31 Outra antiga participante do negócio das
máquinas de escritório, a IBM, também está examinando
formas de nanomáquinas se construírem a si mesmas – e
projetar novos computadores. Cientistas da IBM pensam que
poderiam desenvolver máquinas muito mais poderosas do que
os supercomputadores de hoje. Esses computadores poderão
ser postos no bolso, e trabalhar com o calor do corpo. A IBM
especula que seria possível injetar nanocomputadores
superinteligentes na corrente sanguínea, operados por baterias
minúsculas, de vida mais longa que a do paciente, para
possibilitar diagnósticos instantâneos sobre a saúde do cliente.32
Esta pesquisa pioneira, excepcionalmente chegou ao
conhecimento da revista Nature, o que é indício seguro de
que a ciência convencional está levando a sério a nanotecno-
logia. Além das empresas previsíveis, como a Xerox e a IBM,
analistas industriais sugerem que grandes companhias
96 Pat Roy Mooney

aeroespaciais, como a Boeing, empresas de energia, como a


Exxon, gigantes eletrônicos, como a Toshiba, e fabricantes
industriais, como a 3M, estão muito interessadas na
nanotecnologia. É notável que as multinacionais da Fortune
500 tenham se apressado em adotar a nanotecnologia. A
variedade dos entusiastas é também um testemunho sobre o
potencial dessa tecnologia. Não há campo da atividade
econômica que esteja fora do alcance da minúscula Nano.
Tal como ocorreu com a biotecnologia, a nanotecnologia
já inspirou a criação de suas próprias “butiques” empresariais.
Assim como os engenheiros genéticos tiveram suas Genentech
e Biogen, os nanotecnólogos têm Nanogen, nos Estados Uni-
dos, Nanoway Oy, na Finlândia, e Nanofrance, na França.
Uma das melhores maneiras de medir o entusiasmo co-
mercial pela nanotecnologia é monitorar o número de paten-
tes concedidas cuja descrição abreviada inclua referências à
nanotecnologia. O Gráfico no 5 indica a explosão havida nos
Estados Unidos quanto às patentes relacionadas com a
nanotecnologia, a partir dos anos 80. Como cada patente sig-

GRÁFICO 5 – Patentes estadunidenses relacionadas com a


nanotecnologia 1989 – 1999 (número por ano)

140

120

100

80

60

40

20

0
89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
O Século 21 97

nifica um investimento significativo em gastos legais e de soli-


citação, onde há fumaça há fogo.
Resumindo, é uma tecnologia com impulso. Para o bem
ou para o mal, irá adiante.

A nova revolução
De acordo com um estudo patrocinado pela UNESCO,
em 1996, “a nanotecnologia será a base de todas as tecnologias
no próximo século”. O estudo prevê que “em 2010 ou 2020”
a nanotecnologia poderá ter um impacto maior que o da Re-
volução Industrial e afirma com entusiasmo que “a nanotecno-
logia é a conseqüência lógica e o destino final de nossa busca
de domínio e manipulação da matéria.”33

Não-não tecnologia?
Assim como no caso da biotecnologia, não estou querendo
dizer que é preciso abandonar este campo de pesquisa. Mas
agora – antes que o entusiasmo comercial e as pressões
empresariais sejam demasiado grandes – a sociedade deveria
estabelecer as regras e as normas básicas para esta pesquisa. E
seria preciso ter o máximo cuidado para que – diferentemente
do que aconteceu com a biotecnologia – a sociedade não perca
o controle desta tecnologia.
Em 1o de janeiro de 2000, o Wall Street Journal começou o
novo milênio apresentando a seus leitores “o atrativo do
liliputiano”. Em um artigo que resumia o potencial social e
comercial da nanotecnologia, o Journal terminava com uma
reflexão: “e finalmente, devemos perguntar-nos se é desejá-
vel”.34 Em 21 de janeiro de 2000, Bill Clinton respondeu a
esta pergunta, quando foi a Palo Alto, na Califórnia, para anun-
ciar sua National Nanotechnology Initiative, com 497 milhões
de dólares de fundos disponíveis para o ano fiscal de 2001.
98 Pat Roy Mooney

QUADRO 5 – Comparação da biotecnologia em 1987 com


a nanotecnologia em 2001

Biotecnologia Bogève (1987) NanotecnologiaUppsalaII(2001)

Ficçãocientífica:nãofuncionaráforadolaboratório.Estaengenhariadesafiaasleisnaturais.
Nadécadade80,cientistasconvencionais,tantona AlgunscientistaspensamquemanipularaTabelados
agriculturaquantonamedicina,advertiram Elementosprovocariaumchoquecomasteoriasdaenergia
freqüentementequeaengenhariagenéticachocar-se-ia ecomleisnaturaisaindadesconhecidas.Noentanto,os
comainfinitacomplexidadedanatureza;queoque átomossãoopassológicodepoisdosgenes.Épossívelque
funcionanolaboratóriofracassarianavidareal.Talvez ananotecnologianãosejaseguraeaté quenãofuncione
tivessemrazão... mashojehá55milhoesdehectares bem;maschegaráaomercado.
semeadoscomOGMeproliferamasexperiênciascom
biodrogaseterapiagenética.

Progressolento.Estáageraçõesdedistância.Estamosapenascomeçando.
Nadécadade80,amaioriadoscientistaspensavaqueos Construirmáquinasoualimentosátomoporátomoparece
produtosdabiotecnologiaestavammuitodistantes. lentohoje,masasmontadorasmolecularesestãoa
Estavamredondamenteenganadoscomrelaçãoaoavanço caminhoeoscontínuosprogressosdainformáticalevarão
dastecnologiasdoscomputadoresedaseqüenciaçãodos ananotecnologiaaomercadomuitomaisdepressadoque
genes,quereduziramenormementeoscustoseaceleraram levaramabiotecnologia.
muitoapesquisaeodesenvolvimento.

Hipérbole:ÉpropagandadeWallStreet.Empresasdesesperadastentamconvencerpossíveisinvestidores
de que ao dobrar a esquina há novos produtos capazes de resolver todos os problemas do mundo.
Nadécadade80,as“butiques”debiotecnologialutavam Osqueaproveitamo“nicho”dananotecnologiaestão
parasobrevivereprometiamestemundoeooutro.Muitas surgindoagoradamesmaformaqueantessurgiramas
morrerameasdemaisestãodesaparecendo,absorvidas biobutiques.Temosomesmotipodepublicidade
pelosGigantesGenéticos.Depoisdeumcomeçolento,os exageradaestilo“soluçãoparatudo”.Noentanto,
novosprodutos(bonsoumaus)estãosaindorapidamente. diferentementedabiotecnologia,asempresasmaioresa
Noentanto,omundonãopareceestarmaispróximodo estãoadotandodesdeoinício.
Nirvana.

Nicho de mercado: pode funcionar bem em casos especiais, mas não terá grande efeito sobre a forma
comoproduzimosascoisas.
UmdosGigantesGenéticosgarantia,nadécadade80,que Algunsgarantemqueananotecnologiaéumanovidade;
atolerânciaaherbicidasapenasseriaviávelparacombater queapenasseráusadaparapropósitosmuitoespecíficos,
ocapim“Johnson”sgrass”,noTexas.Hoje,trêsquartas devidoaseucustoecomplexidade.Narealidade,oalcance
partesdaáreatransgênicamundialestádedicadaa dananotecnologiaémuitomaiorqueodabiotecnologia.
variedadestolerantesaosherbicidas.Asempresasde Comojásepodeverclaramente,pelavariedadede
genomahumanoestãoseqüenciandoomapadegenomas empresasenvolvidas,ananotecnologiadominarátodosos
deplantas,buscandoapropriar-sedenichosespecíficosde aspectosdaeconomiaglobal.
mercado.Umadascaracterísticasmaisprofundasda
biotecnologiaéoamploespectrodeaplicaçãona
agricultura,indústriafarmacêutica,produtosdehigiene
pessoalemanufaturasindústriais.
O Século 21 99

Nanodólares: São diminutos e frágeis. Não têm o poder necessário nem para a ciência, nem para o
mercado.
Nadécadade80,as“butiques”debiotecnologiaeram Osqueestãohojenananotecnologiatambémsão
pequenas,raraserelativamentepobres.Osgrandes pequenosefrágeiselutampelasobrevivência.Adiferença
gigantesagroquímicosefarmacêuticospareciam équeos500maisricosdarevistaFortune–os
desinteressadosemuitospreviamquetodososque “nanobabos”–estãomuitointeressadosnanova
estavamcomeçandoiriamsefundir. tecnologia.

Patenteseregulamentações:osgovernosnãoconcederãoaspatenteseaflexibilidadenormativa
necessárias.
Conseguiramambas.Nofinaldosanos80,aAgênciade Vãoobtê-las.Hápoucasbarreirasdepatentesparaa
MarcasePatentesdosEstadosUnidosanunciouque nanotecnologia.Abiotecnologiajáestabeleceuprecedentes
autorizariaaspatentessobreplantaseanimais,assim desolicitaçõesmuitoamplas.Aslimitaçõesnormativasao
comosobremicro-organismos.Asregulamentaçõesdo “poderatômico”serãomanipuladasatéquesetornem
DepartamentodaAgricultura,dosInstitutosNacionaisde ineficazes.
SaúdeeaFDA(FoodandDrugAdministration)foram
manipuladaspararesponderàsnecessidadesdaindústria.

Como prova do alcance da nova tecnologia, a iniciativa de


Clinton foi distribuída entre seis departamentos e programas
governamentais: a Fundação Nacional de Ciências, a NASA e
os Departamentos de Energia, Saúde, Defesa e Comércio.35

Outras tecnologias
A maioria das tecnologias resumidas brevemente a seguir
tem relação com a nanotecnologia e com a biotecnologia.
Embora cada uma delas seja importante por si mesma, as
tecnologias “centrais” do próximo século são as que governam
as minúcias da matéria viva e inerte.

Computadores
A sociedade está mais a par das mudanças tecnológicas nas
ciências da computação do que na biotecnologia. A transfor-
mação dos últimos vinte anos é impressionante. Consultado
100 Pat Roy Mooney

pela Casa Branca, Ray Kurzweil, guru informático (já citado


com relação à nanotecnologia), prevê que nos próximos dez
anos um computador de mil dólares será capaz de fazer mais
de um bilhão de cálculos por segundo; que, muito antes de
terminar o primeiro quarto deste século, um computador do
mesmo preço fará o equivalente ao cérebro humano, e poucos
anos depois mil dólares comprarão para as crianças ricas a ca-
pacidade computadora de mil cérebros humanos.36
Já é verdade que o cérebro humano – ou pelo menos algo
de nosso DNA – pode formar parte de um computador. Um
milímetro cúbico de DNA “enxertado” num computador
pode abrigar dados que hoje encheriam um bilhão de CDs.
Estão sendo construídas redes neurais com IA (Inteligência
Artificial) e VA (Vida Artificial) que poderiam monitorar e
manejar as decolagens e aterrissagens de qualquer aeroporto
da América do Norte, ou toda a atividade de telecomunica-
ções do continente, ou todas as conversas do bairro. Há
biocomputadores capazes de manejar emergências policiais ou
indicar as atividades consideradas “subversivas” mediante
identificação de complexos padrões de voz e maneira de falar.
Todas estas tecnologias estão em adiantado processo de
preparação, para serem utilizadas no mundo real em 2015 ou
2020. A revista Scientific American informa que alguns
estudantes conseguiram descobrir o código do Serviço Federal
de Decifração de Informação dos Estados Unidos utilizando
como computador um pedaço de DNA não maior do que um
torrão de açúcar. O biocomputador pode manejar até 10
petabites (dez bilhões de milhões) de dados. Em meados de
1999, cientistas do Instituto Weizman, de Israel, projetaram
um biocomputador com um diâmetro de vinte e cinco
milionésimos de metro.37 Quando a Casa Branca anunciou
sua Iniciativa em Nanotecnologia, a Agência de Imprensa
O Século 21 101

previu uma possibilidade de armazenar toda a Biblioteca do


Congresso em um dispositivo do tamanho de um torrão de
açúcar (não se mencionou a possibilidade de armazenar
deputados).38 Além da vigilância, os usos militares incluem
computadores postos em óculos ou capacetes, que poderão
dar à infantaria acesso quase ilimitado a mapas, traduções e
outros dados, enquanto se movem pelos campos de batalha. A
mesma tecnologia poderá ser utilizada para ajudar os
agricultores a tomar decisões sobre insumos enquanto
percorrem seus campos, ou auxiliar os formuladores de
políticas a tomar decisões informadas enquanto caminham.
Na primeira metade de 1999 foi implantado, no cérebro de
um estadunidense com severas limitações físicas, um “chip” que
lhe permite dirigir o cursor de seu computador sem usar a voz,
nem o tato, nem movimento algum. Quase ao mesmo tempo,
cientistas alemães desenvolveram a mesma capacidade na Euro-
pa e cientistas escoceses formaram uma equipe de pesquisa para
estender essa nova oportunidade aos menos válidos e a outras
máquinas e outros propósitos. Em meados de 1999, pesquisa-
dores mostraram como a atividade cerebral podia ser dirigida
por computadores, fixando-se eletrodos no corpo de roedores e
enviando impulsos que imitavam padrões que os incitavam a
beber. As provas demonstraram que os computadores são capa-
zes de copiar uma onda cerebral normal e depois enviar a men-
sagem ao cérebro a partir de fora.39 Mais recentemente, vários
cientistas desenvolveram um meio potencial para acelerar enor-
memente a Internet, transmitindo dados a 100 gigabites por
segundo, através de impulsos luminosos. A essa velocidade, um
computador pessoal pode baixar um filme de duas horas em
DVD em um quinto de segundo.40 Quase ao mesmo tempo,
outros pesquisadores estadunidenses projetaram um novo ser-
vidor de Internet chamado “Principia Cybernetica Web”, que
102 Pat Roy Mooney

constrói e elimina vínculos com a rede, de acordo com as neces-


sidades do usuário. A estratégia imita cuidadosamente a forma
como funciona o cérebro.41 E se você não confia em seus instin-
tos, está sendo desenvolvido um computador tipo botão que se
pode prender na lapela e que permitirá que indivíduos seme-
lhantes (ou programados da mesma forma) se encontrem, no
meio de multidões ou nos bares de solteiros.42

Com a Morte da Discrepância, o “Direito a Saber” e a “Liber-


dade de Informação” serão interpretados como o direito do
Estado empresarial ter acesso a qualquer informação privada; e
o “Direito à Privacidade” será considerado uma subseção do
Sigilo Comercial.

QUADRO 6 – Empresas líderes nas novas tecnologias da informática


Instituto Bio DNA Nanotecnologia Física
molecular quântica
BellLabs *
BostonUniv. *
CaltechUniv. *
DelftUniv. *
DukeUniv. *
HarvardUniv. * *
Hewlett-Packard *
IBM * *
LawrenceBerkeley *
LosAlamos *
MIT * *
NewYorkUniv. *
NIST *
OxfordUniv. *
PrincetonUniv. *
RiceUniv. *
RockefellerUniv. *
StanfordUniv. *
UCBerkeley *
UCLA
Univ.Colorado *
Univ.Wisconsin *
Univ.SouthernCal. * *
Yale *
Fonte: Technology Review, maio/junho de 2000.
O Século 21 103

Em suma, o trabalho mais entusiasmante e mais ameaça-


dor na tecnologia dos computadores tem a ver com chips de
DNA (esforços para imitar o cérebro humano) e com o traba-
lho em física quântica que se propõe condensar o passado e o
presente (e o futuro?) em uma capacidade instantânea de com-
putar tudo ao mesmo tempo. O quadro 6 desta seção identifica
os principais campos de pesquisa e as maiores instituições que
se ocupam deles.43
Às vezes os computadores desempenham o papel de Gran-
de Denominador Comum. O conhecido programa Java e con-
figurações ainda mais recentes encerram a possibilidade de
muito melhor capacitação técnica a custos extremamente re-
duzidos. Os estudantes não apenas podem ter acesso à infor-
mação e à capacitação mais recentes e reputadas, mas também
podem realizar experiências altamente sofisticadas na tela, em
lugar de um laboratório, que requer equipamentos de ultima
geração e de preço exorbitante. O que é uma boa notícia, mas
obviamente preocupa a SAIC e seus colegas militares. O exér-
cito estadunidense está angustiado com a idéia de que alguns
países pobres e terroristas enlouquecidos possam se conectar à
Internet, iniciar o Java e projetar suas próprias etnobombas.
Toda a experimentação poderá ser feita diante da tela; só o
produto final exigirá manufatura.

Sensores
Alguns dos complexos tecnológicos mais poderosos estão
associados a sensores capazes de detectar e transmitir imagens,
sons, cheiros, composição química e variações de pressão. Na
agricultura seria possível “semear” sensores em campos de cul-
tivo e recuperar a informação obtida por meio de satélites em
órbitas baixas ou por maquinaria agrícola que passe sobre eles.
Isso poderia permitir aos grandes empreendimentos empresa-
104 Pat Roy Mooney

riais manejar grandes extensões de terra por meio de máqui-


nas robô que ajustariam as taxas de sementes e de insumos
químicos a cada variável por metro de solo. Seus partidários
afirmam que os biosensores, combinados com os robôs e com
outras tecnologias, logo poderão ser mais vantajosos do que as
famílias camponesas, no que se refere ao conhecimento da terra
e aos custos.
Na indústria, os biosensores poderão ser utilizados também
para monitorar processos petroquímicos e manufatureiros. Os
militares vêem os biosensores do ponto de vista defensivo, para
monitorar a periferia dos acampamentos e permitir às patrulhas
detectar a posição e o número de soldados inimigos diante
delas. Diz-se que já estão na prancheta sensores olfativos que
podem descobrir concentrações de testosterona, indicando que
há soldados por perto. No entanto, já hoje é possível confundir
os sensores mediante aplicação de outros elementos, como
repelentes contra mosquitos ou perfumes.44 O exército dos
Estados Unidos está pensando em biosensores montados sobre
nanorrobôs que viriam com os biocomputadores e teriam
capacidade de adequar-se a ordens remotas e mudanças de
missão. Os sensores robóticos poderiam ser instalados por trás
das linhas inimigas, praticamente nas salas de comando e nas
cantinas do inimigo, e transmitir informação em tempo real.
Ainda que a nanotecnologia esteja um pouco mais distante,
os sensores microrrobóticos poderiam ser igualmente difíceis
de identificar. Um exemplo recente da interação entre a
biotecnologia e outras tecnologias relacionadas é um dispositivo
de detecção de gás venenoso desenvolvido no laboratório de
física aplicada do Hospital John Hopkins. Este dispositivo,
que utiliza cabos de fibra ótica, laser e um metal raro chamado
europium, pode ser usado em subterrâneos e aeroportos, para
prevenir ataques terroristas.45
O Século 21 105

Os cientistas são sonâmbulos sociais quando garantem que sua


dedicação à ciência os exclui de toda responsabilidade social.
Não têm o direito de enganar-se desta forma.

Às vezes, os biosensores podem ser micróbios ou insetos


vivos. Pesquisadores do Savannah River Technology Center,
da Carolina do Sul, desenvolveram bactérias geneticamente
modificadas para que brilhem quando comem trinitrotolueno
(TNT), gás que escapa de cerca de 90% das minas de terra.
Os cientistas enxertaram nelas um gene de fosforescência, ao
lado do gene que controla a digestão, de modo que, quando
as bactérias comem TNT, brilham, indicando que por perto
há uma mina.
Para não ficar atrás, um professor de biologia da Universi-
dade de Montana está tentando usar as abelhas como detectores
de minas. O TNT do solo é absorvido por plantas cujo pólen
é recolhido por abelhas. Os pesquisadores buscam treinar as
abelhas para associarem o cheiro do TNT a alimento e a guia-
rem os soldados até as minas de terra.46
Há resultados tecnológicos notáveis que já estão a cami-
nho do mercado. Em seu livro The Transparent Society, David
Bain informa que pesquisadores das Universidades de Tó-
quio e de Tsukuba estão enxertando microprocessadores e
microcâmaras em baratas vivas, com o objetivo de buscar
sobreviventes de terremotos. Segundo Bain, Sandia Labs fa-
bricou um robô do tamanho de uma barata mecânica, capaz
de monitorar estações de energia nuclear.47 Um dos proble-
mas dos sensores é a manutenção. Manter milhares de dis-
positivos remotos, que precisam de energia para operar é, no
mínimo, uma tarefa enorme. No entanto, é possível que a
Marinha dos Estados Unidos já a tenha resolvido, aderindo
seus sensores a microrganismos descobertos no fundo do mar,
106 Pat Roy Mooney

que parecem ser capazes de proporcionar-lhes energia eter-


namente.48
Os “sensores” já são de uso comum para fins de segurança.
Há mais de 300.000 câmaras de televisão em circuito fecha-
do, monitorando estradas e vicinais na Grã-Bretanha e seu
uso está se difundindo do mesmo modo em países como o
Japão, os Estados Unidos, Cingapura e Tailândia. Sem chegar
ainda à nanoescala, há microunidades com todas as funções
menores do que um torrão de açúcar, e há lojas em Nova Iorque
que vendem unidades ocultas em qualquer coisa, desde rádio
despertadores até torradeiras e canetas.49 Nem todos os sensores
são necessariamente espiões. Uma empresa japonesa desen-
volveu um sensor que pode ser posto no dedo, como um anel,
e automaticamente ajusta o termostato do quarto à tempera-
tura do corpo de quem o usa.50

Robótica
Pelo menos desde a década de 50, a indústria vem anuncian-
do que os robôs vão se encarregar da maioria das tarefas da
manufatura, excluindo a força de trabalho. Demorou, mas é
possível que esteja chegando. Vinculados a redes neurais e a
biosensores, os robôs poderão funcionar com inteligência
cognitiva. Assim, podemos imaginar um robô agricultor, ca-
paz de realizar todas as tarefas importantes, da semeadura à
colheita, prestando atenção minuciosa ao solo, às pragas e ao
clima. De acordo com a SAIC, existe uma terrível probabili-
dade de que os micro – ou nano – robôs inteligentes cheguem
antes de 2020. O micro-robô, capaz de esgueirar-se sem ser
notado por trás das linhas inimigas, poderá enviar, não neces-
sariamente apenas informes sobre movimentos de tropas e
munições: poderá também acionar as munições. Não apenas
informar sobre as conversas dos generais no salão do estado
O Século 21 107

maior ou no refeitório, mas também matar os generais. Os


militares estadunidenses estão desenvolvendo atualmente “for-
migas militares”: grandes quantidades de robôs inteligentes
idênticos, capazes de agir cooperativamente (ou independen-
temente) e desempenhar o que se descreve como um amplo
espectro de tarefas militares. A SAIC e a IS Robotics (empresa
privada estadunidense) projetaram, separadamente, robôs ca-
pazes de limpar uma zona de minas por controle remoto.
Parte da tecnologia militar já foi transferida para o sistema
de saúde, na forma do Robodoc, um cirurgião que atualmente
está sendo testado em Sacramento, Boston e Pittsburgh, nos
Estados Unidos. Parece ser capaz de trabalhar com cirurgiões
humanos e de realizar operações diminutas que estão além da
destreza dos simples mortais.51
Existem também aplicações na indústria e nos transportes.
Por exemplo, dois aviões robôs voaram da Terranova à Escócia
sem incidentes. E, antes disso, um automóvel robô viajou sem
dificuldades da Pensilvânia, na costa atlântica, até a Califórnia,
no Pacifico, percorrendo milhares de quilômetros de estradas
interestaduais e engarrafamentos de trânsito nas cidades. Não
houve acidentes (embora quando o carro parou em Sacramen-
to, em um engarrafamento, tiraram-lhe as calotas). Durante a
primeira metade do ano 2000, cada número da revista New
Scientist trazia novas informações de robôs como “Flipper”, o
cozinheiro de comida expressa que é capaz de fazer 500 ham-
búrgueres por hora, fritar batatas e quebrar ovos,52 ou enfer-
meiras robôs que sacodem os travesseiros, servem chá, regis-
tram o estado de saúde do paciente e buscam ajuda quando
necessário.53 A polícia e os militares estão desenvolvendo ro-
bôs que possam ir aonde ninguém mais quer ir, para desmon-
tar bombas, detectar toxinas ou limpar depósitos de resíduos
nucleares, e a NASA tem o “Nomad”, um robô inteligente
108 Pat Roy Mooney

destinado a varrer a Antártida Oriental em busca de meteo-


ritos.54 O mais surpreendente de tudo é um computador robô,
projetado como uma cobra, que pode deslizar até locais ina-
cessíveis (por razões de segurança), serpentear escadas acima e
abaixo e deslizar para seu colo quando você se dispõe a usar
seu computador.55 E o mais inquietante é o trabalho de uma
equipe mista da Universidade de Gênova e de duas universi-
dades estadunidenses, que criou um “cyborg”: um robô mecâ-
nico cujos movimentos são controlados pelo cérebro de um
peixe.56 Os pesquisadores acreditam que, se forem devidamente
educados, poderão finalmente ensinar os seres humanos a
manipular robôs do mesmo modo... ou ao contrário? Como
ocorre com todas as coisas elétricas e digitais, o custo dos ro-
bôs está caindo vertiginosamente.

Biomimética
A forma é mais barata do que os materiais. Tal é a razão de
ser essencial da biomimética. Nossa compreensão da biologia
e nossa crescente capacidade de miniaturização estão criando
este novo campo cientifico. Os pesquisadores buscam cons-
truir uma réplica da carapaça de um besouro capaz de supor-
tar a força de um automóvel rodando a mais de 100 km por
hora. Outros cientistas estão examinando a concha de um
marisco que consegue sobreviver às esmagadoras profundida-
des do fundo do oceano. Em cada caso, a idéia é imitar a es-
trutura da carapaça viva, molécula por molécula, com mate-
riais inertes.57 Uma mosca que se extinguiu há 45 milhões de
anos agora está sendo usada como modelo para melhorar a
eficiência dos painéis solares em até 10% no decorrer de um
dia. Essa mosca, encontrada incrustrada em um pedaço de
âmbar exposto em um museu de Varsóvia, tem um olho com-
posto com sulcos que traçam retículas sobre os diferentes seg-
O Século 21 109

mentos, de forma que aparentemente capta mais luz, ao mes-


mo tempo em que reduz o efeito do deslumbramento.58 Re-
centemente, cientistas da Marinha estadunidense consegui-
ram transferir o gene que permite fabricar seda das aranhas
tecelãs para bactérias,59 e prevêem que poderão fabricar rou-
pas e capacetes a prova de balas com uma fibra capaz de absor-
ver 100 vezes mais energia do que o aço, muito mais rápido
do que o algodão, e que se estira até 40% de seu comprimen-
to.60 Outros pesquisadores estão explorando a qualidade
camaleônica de alguns líquens e traças como possível cami-
nho para a criação de uniformes de camuflagem que mudem
de cor segundo a luz do sol e outras condições atmosféricas.61
(Corre o boato de que já foram desenhadas roupas deste tipo,
mas o tecido demora três dias para adaptar-se, por exemplo,
de um ambiente urbano a um de selva, o que significa que
camuflar assim os soldados apenas dificultará o encontro de
seus corpos pelos médicos.)

Sistemas microeletromecânicos (MEMs)


Este subconjunto da nanotecnologia miniaturiza e combina
sistemas elétricos e mecânicos em dimensões de microns (da
grossura de um cabelo humano). Para esse fim, a ciência já
inventou engrenagens, válvulas e motores microscópicos.62
Teoricamente, as peles inteligentes MEMbrain podem ser
usadas para melhorar a estabilidade dos helicópteros e a
velocidade dos aviões. Estão sendo desenvolvidos materiais
piezoelétricos, capazes de se expandir ou de se contrair com a
eletricidade e a pressão. Os cientistas estão pensando em pontes
pênseis e arranha-céus capazes de se adaptarem aos ventos fortes
e aos terremotos. Além de seu uso na construção, esta
tecnologia poderá ser usada para desenvolver sensores altamente
sofisticados.63
110 Pat Roy Mooney

Tecnologias multimídia
A optoeletrônica e a fotoeletrônica, junto com os compu-
tadores e os satélites, estão contribuindo para criar um ambi-
ente novo nos meios de comunicação. Os consumidores dos
países industrializados já conhecem bem produtos de
tecnologia multimídia, como o laser empregado pelos equipa-
mentos de disco compacto e a medicina, assim como as telas
dos computadores laptop e a televisão digital de alta resolu-
ção. Só o uso comercial da optoeletrônica está saltando de
cerca de 50 bilhões de dólares anuais em todo o mundo, em
meados dos anos 90, para 200 bilhões de dólares, projetados
para o começo do novo milênio. O governo japonês diz que,
no próximo ano, as tecnologias multimídia (incluindo a
optoeletrônica) vão gerar 6% de seu PNB (cerca de 1,2 bi-
lhões de dólares estadunidenses): o triplo do que produz a
enorme indústria automobilística japonesa.64
Há três décadas, Marshall MacLuhan anunciava que “o
meio é a mensagem”. Naquele momento, suscitou um grande
debate, mas hoje poucos discutiriam a importância esmaga-
dora das comunicações multimídia. Coletivamente, a misce-
lânea de tecnologias oferece uma oportunidade enorme de fa-
cilitar as comunicações efetivas e de melhorar tudo, da enge-
nharia à pesquisa médica. As mesmas tecnologias permitem
também esmaecer as distinções entre ilusão e realidade, e pa-
cificar, adormecer e dirigir o pensamento social. Nos meios
populares de comunicação, muito se falou sobre isso e não
temos muito a acrescentar.

Tecnologias aero-espaciais
Os avanços na exploração do espaço também influirão nas
realidades sócio-econômicas em nossos lares. A General Electric
vem desenvolvendo tecnologias muito precisas de GP (Global
O Século 21 111

Positions = Posicionamento Global) que permitirão a civis


determinar a posição de qualquer pessoa com precisão
milimétrica.65 Ao mesmo tempo, a Motorola requereu paten-
tes que descrevem exatamente como quem quer que possua a
tecnologia (ou uma autorização da Motorola) pode ouvir as
comunicações por satélite,66 e o Departamento de Defesa dos
Estados Unidos desenvolveu várias maneiras de utilizar parte
dessas mesmas tecnologias para criar uma nova geração de
projéteis, capazes de selecionar seus próprios alvos de acordo
com condições preestabelecidas.67 Também em maio de 2000,
os Estados Unidos retiraram os antolhos dos satélites espiões
civis, de modo que agora podem identificar, na Terra, objetos
de até um metro de altura. Atualmente, é possível monitorar
do espaço o movimento de um automóvel no meio do trânsi-
to. Dentro de muito pouco tempo, será possível monitorar
visualmente um individuo, a partir de um satélite.
Recentemente, o MIT anunciou o desenvolvimento de
microfoguetes: motores do tamanho de uma moeda de 10
centavos, com 20 vezes o impulso por unidade dos principais
motores dos “transportadores espaciais” (space shuttle). Cem
dessas máquinas diminutas podem caber na palma da mão e,
no entanto, unidas, podem por na órbita terrestre um satélite
de quase 30 kg de peso.68 Se combinarmos esta descoberta com
outros avanços em detecção remota e tecnologia laser, teremos
o potencial para lançar nuvens de satélites de minivigilância e
de ataque para manipular e ou controlar qualquer coisa, desde a
produção agrícola até os dissidentes. Ao reduzir o peso morto
nos lançamentos para exploração do espaço, as mininaves
espaciais poderão também levar-nos a outros planetas e sistemas
solares a um custo enormemente reduzido.
Recentemente, os filmes de Hollywood chamaram a aten-
ção do público para a possibilidade de que satélites em órbita
112 Pat Roy Mooney

vigiem os movimentos de indivíduos. Embora no cinema se


exagere muito, a possibilidade de rastrear visual ou biologica-
mente um indivíduo será possível nos próximos 20 anos.
No começo de 1999, a revista The Economist relatou o
trabalho tipo nanotecnologia de três institutos de pesquisa,
que buscam desenvolver microveículos aéreos (MAVs) como
elementos de vigilância ou de ataque. Um protótipo conhe-
cido como Viúva Negra, em desenvolvimento na companhia
estadunidense Aerovironment, chegou a decolar do solo.
Mede 15 cm (6 polegadas) de diâmetro, pode penetrar pela
janela de um apartamento a cerca de 45 km/h, manter-se em
vôo durante 15 minutos e levar de volta imagens gravadas.
O MIT e a Geórgia Tech também estão desenvolvendo
miniaparelhos. A estadunidense DARPA (Defense Advanced
Research Projects Agency = Agência para pesquisa de projé-
teis avançados de defesa) que está financiando a maior parte
desta pesquisa, espera que, quando se começar a produção
em massa, o custo será de menos de 1.000 dólares por uni-
dade. Cada microavião terá uma autonomia de vôo de pelo
menos uma hora e poderá transmitir dados visuais, sonoros
e biosensoriais em geral a soldados (ou agentes de seguran-
ça) individuais, em tempo real.69 Nem toda a pesquisa está
sendo feita nos Estados Unidos: em Mainz, na Alemanha, o
Instituto de Microtecnologia desenvolveu um microheli-
cóptero de apenas uma polegada de comprimento, que pesa
menos de um centésimo de onça (cada onça equivale a me-
nos de 30 gramas).70
Esse potencial para monitorar a nós mesmos causa inquie-
tação na maioria dos campos. The Economist expôs vários dos
problemas fundamentais em sua capa de 1o de maio de 1999,
que anunciava “o fim da privacidade”, em sua nota principal:
“A sociedade da vigilância”.71
O Século 21 113

QUADRO 7 – As novas tecnologias: resumo parcial de algumas das novas


tecnologias e suas implicações
114 Pat Roy Mooney
O Século 21 115

Neurociências
A pesquisa nas neurociências vincula a biologia à informatica.
Sua atenção se volta para o sistema nervoso, em nível molecular
e celular. O entusiasmo comercial e militar chega ao máximo
em relação ao potencial de “reconhecimento de padrões” no
desenvolvimento de redes neurais. O interesse do reconheci-
mento de padrões está na possibilidade de automatizar o
monitoramento e o manejo de sistemas complexos. Nos meios
de comunicação populares, isso pode se traduzir por “computa-
dores inteligentes”, mas implica raciocínio cognitivo em má-
quinas; suas aplicações poderiam incluir o controle de grandes
usinas químicas, o cultivo de enormes extensões de terra, ou
algo tão bobo, mas tão útil quanto “ouvir” – e erradicar – o
desenvolvimento do mofo em cereais armazenados.72 As redes
neurais poderão também dirigir o sistema de trânsito de Nova
Iorque, ou ouvir (e entender) todas as conversas telefônicas de
um país inteiro.73 O Canadá, junto com a Grã-Bretanha, os
Estados Unidos, a Nova Zelândia e a Austrália, estabeleceu o
sistema de monitoramento das comunicações por satélite, que
permite a seus órgãos de segurança monitorar simultaneamente
centenas de milhares de conversas telefônicas internacionais e
selecionar as que empregam determinadas palavras e frases.74

Melhoramento do desempenho humano


Embora a Melhoramento do Desempenho Humano (HPE
= Human Performance Enhancement) seja propriamente um
subconjunto das neurociências, este campo chega com uma carga
moral única, que inclui a escravidão e a eugenia. Segundo as
projeções dos analistas da SAIC, nas neurociências haverá “des-
cobertas significativas nos próximos 10 a 15 anos”. Dois impor-
tantes avanços na imaginologia cerebral, a criação de imagens
mediante ressonância magnética funcional e a tomografia de emis-
116 Pat Roy Mooney

são de posição, permitem determinar que parte do cérebro faz o


que, e tornam real a possibilidade de que a ciência seja capaz de
monitorar e manipular as funções cerebrais. A SAIC diz que se
trata de um “salto qualitativo” em nossa capacidade de manipu-
lar seres humanos e afirma que, “uma vez aberta esta porta”, a
ciência estará em condições de manipular e melhorar funções
humanas. Os pesquisadores prevêem que os estudos de melhoria
do desempenho humano poderão conduzir a uma interface sem
obstáculos entre pessoas e máquinas, oferecendo aos indivíduos
a possibilidade de manejar tanques, tratores e equipamentos de
vigilância, de longe, sem utilizar as mãos.75
Mas no coração da pesquisa sobre melhoria do desempe-
nho humano (HPE, sigla em inglês) está a possibilidade de
manipular as emoções, os sentidos e as capacidades dos seres
humanos. Entre as aplicações mais interessantes, segundo a
SAIC, está a possibilidade de reduzir o medo nos soldados, ou
aumentar este sentimento nos combatentes inimigos. “Em
outras palavras, é possível que em futuro próximo sejamos
capazes de melhorar quimicamente a capacidade de atenção e
de vigilância, aumentar a tolerância ao stress, aumentar a tole-
rância à falta de sono, e melhorar a memória.”76 Claro que,
como no caso da guerra biológica, a diferença entre pesquisa
em “melhoria” e pesquisa em “enfraquecimento” está nos
neurônios do pesquisador.
Neste campo, o progresso é vertiginoso. O Hospital da Uni-
versidade Sahlgrenska na Suécia, e o Instituto Salk, dos Estados
Unidos, demonstraram que os seres humanos são capazes de
desenvolver novas células cerebrais – aumentando assim as pos-
sibilidades de remediar doenças e dano cerebral – e de manipu-
lar a estrutura cerebral.77 Enquanto isso, uma empresa britânica
recém chegada ao campo da biotecnologia, a Genostic Pharma,
apresenta um dispositivo capaz de detectar variantes em mais
O Século 21 117

de 2.500 genes, incluindo alguns que afetam o comportamento


e a inteligência.78 Que tipo de comportamento? Na Emory
University, nos Estados Unidos, estiveram fazendo experiências
com a oxitocina para estimular e atenuar o desenvolvimento da
familiaridade entre indivíduos. Criaram roedores socialmente
ineptos (todos não são?), geneticamente modificados para que
não tenham oxitocina: estes roedores parecem ser incapazes de
reconhecer outros roedores que pouco antes conheciam inti-
mamente. Esse mesmo hormônio atua do mesmo modo em
seres humanos, o que significa que neste caso a terapia genética
poderia ser uma seqüela lógica da “pílula do dia seguinte”: a
“pílula da negação plausível”.79
Em resumo, os neurocientistas estão desenvolvendo estra-
tégias que poderão manipular os interesses e as destrezas de
trabalhadores (inclusive soldados), e que também poderão re-
duzir a necessidade de trabalhadores se a chamada “interface
homem/máquina”, com redes neurais cognitivas, tornar pos-
sível o manejo de sistemas industriais e agrícolas complexos.
Se se pode fazer isso, também e possível ganhar eleições,
ou então acabar de vez com toda a “democracia”.

Sobre “Luddistas e “Eli-tistas”

Algumas tecnologias, por sua natureza, contaminam, põem


em risco ou ameaçam de algum modo o meio ambiente, nossa
saúde e nossa segurança. No entanto, mais freqüentemente
do que as novas tecnologias – utilizadas no contexto apropria-
do em um ambiente consciente e socialmente sensível – podem
(pelo menos teoricamente) ser benéficas. Em geral a questão
essencial se relaciona com a propriedade e o controle. A
sociedade tem de discutir cada nova tecnologia. Também
118 Pat Roy Mooney

precisamos discutir a ciência e a tecnologia em geral. Não há


dúvida que algumas tecnologias são intrinsecamente democrati-
zantes, enquanto outras são tirânicas. No entanto, não devemos
confiar demais em nossa capacidade de decidir qual é o que.
Como sempre, a história nos fornece lições...

Por que existe uma palavra para os que são vistos como
opositores das mudanças tecnológicas mas não para os que nos
impõem tecnologias não testadas? Aqueles que, como nós, ques-
tionam a biotecnologia são “vidi-stas”?

Chaves históricas: Revolução Industrial - a outra face.


As máquinas menores estão em mãos dos pobres e as máquinas
patenteadas maiores estão nas mãos dos ricos... o trabalho é melhor
manufaturado pelas máquinas pequenas do que pela grandes.
Protesto de trabalhadores têxteis da Grã-Bretanha, 1779
É possível que no século XX o camponês de Dorsetshire se considere
muito mal pago com 15 shillings por semana; que os diaristas estejam
pouco habituados a comer sem carne, como comem hoje pão de centeio;
que a política sanitária e as descobertas médicas tenham acrescentado
vários anos à duração média da vida humana.
Cit. no Scientific American, julho de 1849
Durante um século e meio, os artesãos da Europa – que é por si um
continente de inventores inovadores – defenderam seus meios de subsistência
contra o caráter destrutivo da “Revolução Industrial”, às vezes ilusória.
Escolhemos recordar apenas a breve e violenta luta havida na região britânica
dos Midlands, em torno de 1811-1815. Trabalhadores têxteis ameaçados
atacaram com machados as fábricas e as máquinas. O primeiro discurso de
Lord Byron na Câmara dos Lordes foi uma apaixonada defesa de sua causa.
Quando a terrível situação dos trabalhadores, apanhados no redemoinho do
tumulto tecnológico, ganhou algumas simpatias, por volta de 1815, a rebelião,
cujo epígono foi um tal Ned Ludd, terminou na forca. Hoje a rebelião de
Ludd é quase universalmente interpretada como um trágico exemplo da
O Século 21 119

incapacidade da sociedade de compreender o progresso técnico, e quem


quer que se oponha a uma tecnologia nova é desqualificado e chamado pelo
epíteto de “luddista”.
Mas, se a Revolução Industrial – representada pela nova maquinaria têxtil
– teve efeitos devastadores para as famílias trabalhadoras dos Midlands, tam-
bém provocou fomes maciças na Índia, onde os plantadores de algodão e os
tecelões perderam tudo. A nova maquinaria, simbolizada pelo famoso “cotton
gin” ou máquina descaroçadora de algodão de Eli Whitney, produzia tecido de
algodão acabado, usurpando o lugar dos tecelões hindus que trabalhavam
com teares manuais. Em 1834, o governador da British East India escreveu:
“A miséria dificilmente encontra igual na história do comércio. Os ossos dos
tecelões de algodão estão branqueando as planícies da Índia.”80
No entanto, nem toda devastação era devida à pressão supostamente
inexorável de “uma boa idéia, cuja hora chegou”. Um fator significativo na
transição para as grandes máquinas têxteis na Grã-Bretanha foi a necessi-
dade, que os vendedores de tecidos sentiam, de controlar seus trabalhado-
res e salvaguardar seus rendimentos. Durante os séculos XVIII e XIX, a
inquietação dos trabalhadores da indústria têxtil foi uma preocupação impor-
tante, e os patrões viam as pesadas máquinas novas como uma forma de
impor disciplina à força de trabalho e, também, de reduzir o número de
trabalhadores. Até Adam Smith admitiu que o sistema de fábricas, criado
pelos empresários têxteis, representava uma forma de “mutilação mental”
da força de trabalho.81 Anos antes das observações do governador britânico
– e para desânimo dos proprietários de fábricas britânicas e dos proprietá-
rios de escravos estadunidenses – a Índia continuara sendo competitiva diante
das novas tecnologias. Seus tecidos eram de melhor qualidade e seu preço
ameaçava a bolsa e a propriedade dos novos industriais. Para salvaguardar
a marcha do progresso, os agentes britânicos impuseram cotas de produ-
ção impossíveis e depois confiscaram os bens dos tecelões hindus que não
as tinham cumprido. Em algumas ocasiões, em protestos desesperados, os
trabalhadores cortavam seus próprios polegares.82 Em 1814, ao mesmo
tempo que os luddistas eram enforcados, a Grã-Bretanha impôs duras res-
trições à exportação de tecidos acabados da Índia, e os soldados usaram
efetivamente seus mosquetões para esmagar os dedos dos tecelões rebel-
des.83
120 Pat Roy Mooney

Há uma ironia poética nesta imagem. A descaroçadora de algodão pa-


tenteada (1793) de Eli Whitney não foi a única arma utilizada contra os
luddistas britânicos e hindus.84 Em 1798, Eli Whitney também patenteou o
primeiro mosquetão com partes intercambiáveis, e esta foi a arma utilizada
pelos soldados britânicos para esmagar os dedos dos trabalhadores tece-
lões da Índia.85 Os herdeiros ideológicos do mosquetão e da maquinaria de
Eli Whitney devem ser considerados hoje, duzentos anos depois, como os
“Eli-tistas” da tecnologia atual.
Mas, quaisquer que fossem seus métodos, estariam certos os elitistas?
Na Grã-Bretanha, a Revolução Indústrial levou a uma riqueza sem prece-
dentes e ampliou a expectativa de vida. Na indústria têxtil, os preços de
tecidos e roupas caíram a níveis que, como se dizia, punham-nos ao alcance
até dos pobres.86 (Os economistas em geral ignoram o fato de que antes
estes faziam suas roupas, a um custo ainda menor).
Mas mesmo tendo havido, na Grã-Bretanha, um “lado positivo”, o império
ultramarinho da Inglaterra na Índia não recebeu nenhum benefício. Mesmo na
Inglaterra, como admitiu recentemente The Economist, em meados do século
XIX, “o impacto inicial enriquecedor da Revolução Industrial cedera lugar às
misérias dickensianas da vida urbana”. Até as companhias de seguros ingle-
sas observaram que os trabalhadores agrícolas no campo viviam melhor que
seus homólogos das fábricas nas cidades. Especialmente afetadas foram as
crianças urbanas. Um indicador bem documentado, a estatura dos soldados
britânicos e estadunidenses, mostra que o constante aumento na estatura
dos novos recrutas, verificado de meados do século XVIII a começo do século
XIX (época dos luddistas), inverteu-se até a década de 1850 e mesmo de-
pois, não voltando aos níveis de 1800 até depois de 1900.87 Embora em geral
a estatura das pessoas na Europa em vias de industrialização tenha aumenta-
do significativamente mais do que em seus vizinhos não industrializados, du-
rante o século XIX, muitos países, inclusive a Grã-Bretanha, a Suécia e a
Hungria, viveram várias décadas de altos e baixos, períodos em que a estatura
média declinou visivelmente.88 Os luddistas teriam dito que, certamente, o
bem-estar social poderia ter sido melhor atendido.

Nossa experiência com a Revolução Industrial não é única.


Sem dúvida, a mudança tecnológica mais profunda na história
O Século 21 121

humana ocorreu há cerca de 12.000 anos, quando as sociedades


antigas abandonaram a caça e a coleta pela agricultura, na
primeira Revolução Agrícola do mundo. A teoria popular diz
que essa revolução literalmente criou a “civilização”, ao permitir
que as pessoas se tornassem sedentárias, desenvolvendo a
arquitetura e a arte. A teoria diz que o abastecimento mais
abundante de alimentos permitiu uma explosão demográfica
e que, em geral, contribuiu para o bem-estar social. No entanto,
o estudo dos restos de esqueletos do período imediatamente
antes e durante a formação local da agricultura – em particular
na bacia do Mediterrâneo e na América do Norte, mas também
na Índia – parece indicar que o advento da agricultura deteve
o crescimento das crianças e reduziu a estatura dos homens
adultos (quase 10 cm, em regiões como a Grécia). Os ossos
recuperados de crianças camponesas entre dois e cinco anos
mostram que, depois do desmame, o desenvolvimento de seus
ossos se atrasou e que houve um aumento das doenças
relacionadas com os ossos, em comparação com as crianças
dos tempos dos caçadores e coletores.89 Em outras palavras, a
introdução imediata da agricultura – uma tecnologia
universalmente aceita como benéfica para toda a humanidade
– pode ter sido prejudicial, pelo menos, para as vidas das
primeiras gerações que a adotaram.
O que não deveria surpreender-nos. Afinal de contas, os
caçadores-coletores conseguiam acompanhar a comida e a água
aonde quer que os levassem as estações e os climas. Os agricul-
tores sedentários estavam muito mais à mercê do clima e do
mau tempo. Os caçadores-coletores podiam escolher entre uma
vastíssima variedade de fontes de alimentos vegetais e animais;
os agricultores dependiam de um punhado de plantas cultiva-
das e de animais domesticados. A formação da agricultura criou
a oportunidade de controlar a terra e a água. Os caçadores-
122 Pat Roy Mooney

coletores tinham necessidade de mais cooperação para a caça e


oportunidade de mais independência na coleta. Possivelmen-
te, essa combinação estimulava um sentimento mais forte de
justiça comunitária da que existe nas sociedades sedentárias,
onde os insumos da agricultura podem ser controlados por
alguns, em detrimento das necessidades de outros.
O que ocorreu com a primeira Revolução Agrícola terá
ocorrido também com a Revolução Verde das décadas de 60 e
70? A teoria dominante concede à Revolução Verde o mesmo
prestígio reclamado pela Revolução Industrial e pelo nasci-
mento da agricultura. Mas, como não foram feitos estudos
preliminares e ainda estão por pesquisar os esqueletos e os ves-
tígios dos pobres urbanos e dos trabalhadores rurais expulsos
naquela época, ninguém pode afirmá-lo com certeza. No en-
tanto, como já vimos, a história costuma se repetir.

Nem bala mágica, nem dardo envenenado


Sem ignorar nenhuma das preocupações já expressas sobre
as novas tecnologias, ainda devemos advertir contra o
tecnofatalismo. Nada está perdido. Ainda é possível tirar mui-
tos beneficios de algumas das novas tecnologias.
Não possuímos os dados empíricos necessários para compa-
rar as sociedades pré-coloniais ou pré-industriais às de hoje. Os
progressos em saúde e nutrição da atualidade serão a recupera-
ção da perda ocasionada pelo colonialismo e pelo Eli-tismo?
Dificilmente. As loas entoadas à Revolução Indústrial não têm
sentido. As quedas reais da mortalidade infantil e as mortes por
doença provêm da água limpa, da melhora do sistema sanitário
e dos programas de imunização. Estes ganhos estão relaciona-
dos, mas não existe conexão direta com nenhuma tecnologia
tipo “bala mágica” (solução universal). Ao contrário, no Sul, o
que houve neste século foi uma visível perda de conexão entre
O Século 21 123

industrialização e desenvolvimento. Desde meados dos anos 40,


a população mundial triplicou. A biologia básica nos ensina
que os números de uma espécie não crescem sem um abasteci-
mento razoável de alimentos. Embora ainda haja cerca de 840
milhões de pessoas que passam fome crônica neste planeta, a
proporção do total que passa fome parece ter declinado. Desde
a década de 60, a expectativa de vida no Sul aumentou de 46
para 63 anos. Nos países menos desenvolvidos (ou seja, os que
apresentam pouco ou nenhum desenvolvimento industrial), se-
gundo a ONU, o aumento foi menos notável, mas ainda signi-
ficativo: de 39 para 50 anos. Países como Sri Lanka e Costa
Rica têm, agora, cifras de expectativa de vida comparáveis às de
muitos países industrializados. Se você estiver com 65 anos na
Tanzânia, hoje, tem probabilidades de sobreviver à maioria de
seus amigos da União Européia. Isso não se deve a sua resistên-
cia maior, mas a um estilo de vida mais sadio e a um país que já
conseguiu afastar as ameaças da mortalidade infantil e as doen-
ças infecciosas mais comuns.
Desde os anos 70, a alfabetização dos adultos no Sul au-
mentou de forma ainda mais espetacular que a expectativa de
vida: de 46% para 69%. Até os países mais pobres apresenta-
ram um aumento na alfabetização de 29 para 46%.90 Apesar
de nossa preocupação com a destruição de conhecimento
provocada pelas campanhas de alfabetização em comunidades
indígenas e rurais, há alguma justificativa para utilizar a alfa-
betização como um indicador de progresso potencial, pelo
menos nas sociedades urbanizadas.
A quem – ou a que – atribuímos essas melhorias? Para os
que vivemos estas décadas, o bom governo não é uma res-
posta confiável. Pelo menos no que se refere à alimentação e
à expectativa de vida, a mudança chegou por meio de práti-
cas de base comunitária ou de saúde pública, em geral de
124 Pat Roy Mooney

QUADRO 8 – Sete pecados/virtudes de comissão/omissão.

AvisãodosEli-tistas ArespostadosLuddistas

1. Concepção (todo tempo passado foi melhor/pior)


Vejacomoascoisasestãomelhoragora.Reconheçaque Nãosetratadosmelhoramentos,massimdequepoderia
trouxemosgrandesmelhoramentos,aindaquedesiguais. terhavidomaismelhoriascommenoscomplicações,sea
ciênciasedesenvolvesseemumcontextosocialmentemais
favorável.

2.Conexão(tecnologiasemcadeia)
Somososespecialistasemnossaciênciae,portanto, Oscientistasdeumaespecialidadecostumamnãoteridéia
podemosdizerqueavançarámaislentamente/mais deprocessostecnológicosarticuladosaoutros(impactoda
rapidamentedoquepensamosluddistasequenãoteráas microeletromecânicanamicrobiologia,daextraçãode
implicaçõesqueelesmencionam. petróleonaindústriaautomobilística,daindústriade
foguetesnosmateriaisetc.),quepossamafetaroritmoda
mudança.

3.Contexto(otimista/pessimista)
Estatecnologiapodefazermaravilhas.Osluddistasnão Éprecisopelomenosumageraçãoparacompreenderas
vêemasvantagensdeeconomizartrabalhoeenergia/ implicaçõesdequalquertecnologianova(motorde
buscaralimentos/benefíciosparaasaúde/reduçãoda combustãointerna,materiaissintéticos,energianuclear,
contaminação/criaçãoderiqueza. eletricidadeouasnovasbiotecnologias).Oquenão
significaestarcontraaciência,massimrecomendar
humildadeecautela.

4.Controle(propriedadeeosmose)
Ogovernoeaindústriaconhecemseuseleitores/clientes Astecnologiascomerciaispassamrapidamenteaser
edefendemseusinteresses.Alémdisso,existemleis propriedadeprivadaecontribuemparanovas
antimonopólioedeproteçãoaoconsumidor. concentraçõesdepodereconômico(estradas-de-ferro,
petróleo,meiosdecomunicação,biotecnologia).Háum
efeitodeosmoseàmedidaqueaforçairresistíveldolucro
pressionaomóvelobjetodalegislação/regulamentação
governamentalparaadequá-loasuasnecessidades(por
ex.,cercarasáreascomunsnaInglaterra,certificar
sementes,requererpatentessobreavida).

5.Conseqüência(tecnologiaseguraousuicida?)
Osluddistassãoalarmistas.Omundonãovaiacabar. Digamissoaostrabalhadoresferroviáriosdocomeçodo
Sabemoscomocontrolarestatecnologia. séculoXIX,aosmineirosetrabalhadoresdaindústria
químicadaprimeirametadedoséculoXXouaos
trabalhadoresnuclearesdehoje.Éprecisoumageração
paraentenderasconseqüências(positivasenegativas)de
umanovatecnologia.
O Século 21 125

6.Contribuição(subindoougotejando)
Senãobeneficiadiretamentetodaasociedade,pelomenos Qualquertecnologianovaintroduzidanumasociedadeque
teráumefeitodegotejamentodevidoàcriaçãodeuma nãosejajustaaumentaráofossoentrericosepobres.Se
novariqueza,quefinalmentebeneficiaráospobres. nofinalvaibeneficiarospobresdependedemuitosfatores
sociais.(ARevoluçãoagrícolaproduziuocercodosterrenos
comunais,aRevoluçãoindustrialproduziuefeitosnocivos
sobreasaúde,aRevoluçãoVerdeproduziumuitomais
pobrezaruraletc.)

7.Conflito(pugilistasepolemistas)
Osluddistaspintamtudoinexoravelmenteempretoe Oseli-tistasmandam.Osluddistastêmumaoportunidade
branco,simplificandotudo,anunciandoatodososmeios quandoasnovastecnologiasaparecempelaprimeiravez.
que ofimchegouenegando-seafazerconcessões.Por Aoposiçãotravaumalutacontraacorrente,comuma
quenãopodemsermaisrealistaserazoáveis? mídiaacríticaefascinada.Ofórumpolíticoétalque
qualquercompromissoéumpassoemdireçãoaopoder
total.Amensagemtemdeserclaraetodocompromissoé
suspeito.

baixo custo, apoiadas por tecnologias modestas. A contri-


buição da indústria em termos de alimentação e segurança
social foi marginal e até nociva. Os benefícios que a tecnologia
industrial se atribui como obra sua são inexistentes ou só
foram obtidos com um tremendo custo para o meio ambiente
e com risco de um colapso econômico. Não parecem susten-
táveis.

Como é que as mesmas indústrias que atrasaram o progresso


humano agora reclamam para si o mérito dos pequenos bene-
fícios obtidos? Examinando retrospectivamente os fenomenais
avanços da ciência no último século, o que surpreende não é
que a tecnologia tenha feito tanto, mas que tenha feito tão
pouco. Tanto barulho e tão pouco progresso social!

Infelizmente, a prova de insustentabilidade só pode ser


confirmada postumamente. Cada nova tecnologia introduzida
no decorrer deste século chegou proclamando ser uma bala
mágica ou um dardo envenenado. Até agora, as predições de
126 Pat Roy Mooney

ambos os lados foram prematuras. A história não nos oferece


nenhuma razão seja para complacência, seja para desespero.
A verdade não é que até agora evitamos o desastre, mas
que décadas de descobertas científicas e tecnológicas não fize-
ram o que poderiam ter feito facilmente: erradicar a fome e a
pobreza e cuidar do meio ambiente. Não há desculpa para
que, com tanto, tenha se feito tão pouco. Tampouco existe
alguma lei da natureza que garanta que cada nova introdução
tecnológica poderá percorrer com êxito a corda bamba sobre
o abismo. Cada vez a tecnologia é mais potente e as possibili-
dades de catástrofe se tornam maiores. A tecnologia não é mais
que a manifestação do gênio humano acumulado, ruim ou
bom. De maneira que, como sempre, não é a tecnologia que
devemos temer ou confiar, mas a nós mesmos.

Notas
1. A Lei de Mendel foi formulada na década de 1860, mas esteve perdida para a ciência
até seu redescobrimento, em 1900.
2. Tang, Ya-Ping, Shimizu, Eiji, Dube, Gilles R. Rampon, Claire, Kerchner, Geoffrey
A., Zhuo, Min, Guosong, Liu, y Tsien, Joe Z., “Genetic Enhancement of learning
and memory in mice”, http://www.nature.com/server – java/pro-pub/nature/
401063AO.abs frameset
3. Knight, Jonathan, “Junk AND helps females avoid double trouble”, New Scientist,
17 de junho de 2000, p. 21.
4. Chicurel, Marina, “Live and let die”, New Scientist, 29 de janeiro de 2000, p. 7.
(N.E. esta nota não consta indicada no texto no original)
5. Fox, Maggie, “Scientists on Verge of Creating Artificial Life from Genes”, Reuters,
24 de janeiro de 1999.
6. Taylor, Robert, “All Fall Down”, New Scientist, 11 de maio de 1996 (disponível no
site da revista na Internet, como informe especial).
7. Cit. em The British Medical Association, Biotechnology: Weapons and Humanity,
Harwood Academic Publications, 1999, p. 54.
8. Ibid. p. 20.
9. Ibid. p. 53.
10. Schrope, Mark, “Expanding life”s alphabet”, New Scientist, 8 de abril de 2000, p. 12.
11. Rogers, Paul; Simon Whitby e Malcolm Dando, “Biological Warfare Against Crops”,
Scientific American, junho de 1999, p. 70-75.
O Século 21 127

12. The British Medical Association, Biotechnology: Weapons and Humanity, cit., p. 12-
13.
13. Entrevista de Edward Hammond, 6 de agosto de 1999, baseada em sua pesquisa e
em um trabalho em preparação. Este trabalho estará disponível na Internet.
14. Goldstein, Steve, “US could face new terror tactic: Agricultural Warfare”, Inquirer,
Washington Bureau, 22 de junho de 1999.
15. Entrevistas com Simon Whitby e Malcolm Dando, por telefone, na Universidade de
Bradford, 22 e 24 de junho de 1999.
16. Entrevista com Edward Hammond.
17. Landes, David S., The Health and Poverty of Nations, W.W. Norton Como., Nova
Iorque, 1999, p. 181.
18. Mander, Jerry, In the Absence of the Sacred: The Failure of Technology and the Survival
of the Indian Nations, São Francisco, Sierra Club Books, 1991. Mander também
cunhou o termo que utilizamos, “sonâmbulos tecnológicos”.
19. Kurzweil, Ray, The Age of Spiritual Machines – When Computers Exceed Human
Intelligence, Viking Press, 1999, p. 138.
20. Carta convite do Presidente, de 27 de abril de 1999, tal como foi retirada da Internet.
21. Brooks, Michael, “Drawing a fine line”, New Scientist, 26 de junho de 1999, p. 11.
22. Voss, David, “Nanomedicine nears the clinic”, site na Internet do MIT, notícias,
janeiro-fevereiro de 2000.
23. “Biotechnology Future World Parameters”, Science Applications International
Corporation, SAIC, janeiro de 1996, p. 9.
24. Smithll, Richard H., “Molecular nanotechnology: Research Funding”, Science &
Technology Policy, Virginia Tech Graduate School Science and Technologies Studies,
6 de dezembro de 1995.
25. “Nanotechnology”, site na Internet: www.zyvex.com/nanotech/howlong.html
26. Cross, Michael, Travels to the Nanoworld, Nova Iorque, Plenum Trade, 1999, p. 220.
27. Ibidem, p. 219-220.
28. Testemunho prestado no Comitê do Congresso sobre “Nanotechnology - Statement
and Supplemental Material”, de R.E. Smalley , Rice University, 22 de junho de
1999.
29. Business Week, 30 de agosto de 1999.
30. Crawford, Mark, “White House Eyes Major Nanotechnology Initiative”, New
Technology Week, 11 de junho de 1999.
31. Bains, Sunny, “Xerox studies self-assembling modular robots”, in EE Times, 10 de
janeiro de 2000 (edição na Internet).
32. Piller, Charles, “A Glimpse of Atomic-Scale Computing”, in Los Angeles Times, 3 de
fevereiro de 2000 (edição na Internet).
33. Kaoundes, Lakis O., “Materials science and engineering”, World Science Report,
1996, UNESCO, p. 292.
34. Aeppel, Timothy, “Think Small: Imagine changing a chair into a table at the flick of
a switch. Welcome to Nanotechnology – Call it the lure of the Lilliputian”, Wall
Street Journal, 1o. de janeiro de 2000 (edição na Internet).
128 Pat Roy Mooney

35. “National Nanotechnology Initiative: Leading to the Next Industrial Revolution”,


Escritório do Secretario de Imprensa da Casa Branca, 21 de janeiro de 2000.
36. Kurzweil, Ray, op.cit., p. 277-279.
37. “A Cellular Automaton”, The Economist, 26 de junho de 1999, p. 94.
38. “National Nanotechnology Initiative: Leading to the Next Industrial Revolution”,
cit.
39. “Neurology – Mind versus Matter”, The Economist, 26 de junho de 1999, p. 95.
40. “Quick as a flash”, New Scientist, 15 de abril de 2000, p. 11
41. Brooks, Michael, “Global Brain”, New Scientist, 24 de junho de 2000, p. 22-27.
42. McCrone, John, “You buzzing at me”, New Scientist, 15 de janeiro de 2000, p. 20-
23.
43. Para uma discussão útil sobre as diversas estratégias de computação de alta tecnologia,
v. Technology Review, maio/junho de 2000. Todo este número, intitulado “Beyond
Silicon”, é dedicado ao assunto.
44. “Biotechnology – Military Applications”, The Strategic Assessment Center, Science
Applications International Corporation, SAIC, dezembro de 1995, p. 9-11.
45. “An ill-wind detector”, The Economist, 9 de janeiro de 1999, p.74.
46. Bolin, Frederick, “Leveling land mines with biotechnology”, Nature Biotechnology,
vol.17, agosto de 1999, p. 732.
47. Brin, David, The Transparent Society, Perseus Books, 1998, p. 285-286.
48. “Switch on”, New Scientist, 5 de fevereiro de 2000, p. 10.
49. Brin, David, ob.cit., p. 5-6.
50. “Chilling Out”, New Scientist, 5 de fevereiro de 2000, p. 10.
51. Science Applications International Corporation, SAIC, 1998, p. 4-5.
52. “Droids are cooking”, New Scientist, 3 de junho de 2000, p. 5.
53. “Robo carer”, New Scientist, 12 de fevereiro de 2000, p. 15.
54. “Polar Pioneer”, New Scientist, 29 de janeiro de 2000, p. 7.
55. “Slithery computer”, New Scientist, 24 de junho de 2000, p. 7.
56. Graham-Rowe, Duncan, “Half-fish, half-robot”, New Scientist, 10 de junho de 2000,
p. 5.
57. “Biotechnology – Military Applications”, cit., p. 7.
58. “Seeing the Light”, New Scientist, 17 de abril de 1999, p. 21.
59. Jelsma Jaap, “Military Applications of Biotechnology”, cap. 22, p. 291.
60. Fox, Douglas, “The Spinners”, New Scientist, 24 de abril de 1999, p. 39.
61. “Biotechnology – Military Applications”, cit., p. 8.
62. Miser, George, “Taming Maxwell”s Demon”, Scientif American, fevereiro de 1999,
p. 24.
63. “Biotechnology – Military Applications”, cit., p. 4-5.
64. Kaounides, Lakis, op.cit., p. 289.
65. “You are here”, New Scientist, 4 de março de 2000, p. 9.
66. Fox, Barry,”The Spy who bugged me”, New Scientist, 17 de março de 2000, p. 15.
67. Graham-Rowe, Duncan, “Prowling the skies – Missiles that choose their own target
are big money-savers”, New Scientist, 4 de março de 2000, p. 11.
O Século 21 129

68. Andreopa, Nellie, “Wee Rockets That Pack a Big Wallop”, Business Week, 22 de feve-
reiro de 1998, p. 147.
69. “A personal eye in the ski”, The Economist, 9 de janeiro de 1999, p. 73. V. referências
semelhantes e relacionadas em “The Surveillance Society”, The Economist, 1o de maio
de 1999, p. 21-23. Há informação adicional em “A bug”s lift”, Scientific American,
abril de 1999, p. 51 e 54.
70. Brin, David, op. cit., p. 286.
71. The Economist, 1o de maio de 1999, p.1, editorial principal p.15, nota nas p. 21-23.
72. Walker, Matt, “Moaning Mould”, New Scientist, 17 de abril de 19999, p. 11.
73. Science Applications International Corporation, SAIC, p. 16-18.
74. “The Suveillance Society”, The Economist, 1o de maio de 1999, p. 22.
75. “Biotechnology – Projections”, The Strategic Assessment Center, Science Applications
International Corporation, SAIC, novembro de 1995, p. 14-15.
76. Hundley, Richard e Eugene Gritton, “Future Technology – Driven Revolution in
Military Operations, Results of a Workshop”, RAND, 1994, p. 49.
77. Motluk, Alison, “Grow your own”, New Scientist, 12 de fevereiro de 2000, p. 25-28.
78. Coghlan, Andy, “Nowhere to hide”, New Scientist, 11 de março de 2000, p. 12.
79. Cohen, Philip, “Forget me not”, New Scientist, 1o de julho de 2000, p. 12.
80. Cit. por Karl Marx, Capital: A Critical Analysis of Capitalist Production, vol 1, George
Allen & Unwin, Londres, 1949, p. 432.
81. Zerzan, John e Paula, “Industrialism a=nd Domestication”, in Zerzan, John, e Alice
Carnes (eds.), Questioning Technology – Tool, Toy or Tyrant?, Philadelphia, New Society
Publishers, 1991, p. 199-207.
82. Citado em Bolts, William, Consideration on Indian Affairs, Londres, 1772, p. 73, 83,
191-192 e 194 sobre a seda em Bengala, mas as organizações da sociedade civil ingle-
sas falam disso como algo contínuo, com a seda e o algodão, até bem entrado o
século XIX.
83. Em maio de 1967, Roland Michener, Governador Geral do Canadá, deu esta infor-
mação a um público de membros da Igreja Anglicana de Ottawa.
84. Há uma breve descrição dos problemas de Eli Whitney com o sistema de patentes
em Joel Mokyr, The Lever of Riches, Oxford University Press, 1990, p. 249.
85. É impossível confirmar se os mosquetões de Whitney foram usados. Há indicações
de que naquela época os britânicos os estavam utilizando na Índia, mas não há prova
concludente de que estas armas tenham sido empregadas para quebrar dedos.
86. O custo em trabalho e em capital do rolo em linha (40 meadas por libra) caiu de 14
shillings em 1779 para 1 shilling em 1812, segundo S.D.Chapman, The Cotton
Industry and the Industrial Revolution, MacMillan Education, 2a. ed. 1987, tabela V,
p. 37.
87. “Height and Welfare – Bigger is Better”, The Economist, 28 de fevereiro de 1998, p.
83-84. Um estudo recente da Universidade de Oxford, também citado no artigo,
mostra que os salários reais dos trabalhadores manuais no Reino Unido caíram (por
membro da família) entre 1780 e fins da década de 1850. Em troca, os suecos – que
se industrializaram lentamente – perderam altura de 1850 a 1900, mas depois cres-
ceram constantemente, superando tanto a Grã-Bretanha, quanto os Estados Unidos.
130 Pat Roy Mooney

Os europeus continuam crescendo, enquanto que a estatura dos cidadãos


estadunidenses está estagnada desde a década de 1970.
88. “Physical growth during industrialisation”, The Cambridge Encyclopedia of Human
Growth and Development, ed. por Ulijaszek, S.J., F.E. Johnston e M.A. Preese,
Cambridge University Press, 1998, p. 392.
89. “Skeletal growth and time of agricultural intensification”, The Cambridge Encyclopedia
of Human Growth and Development, cit., p. 387-389.
90. The Commission on Global Governance, Our Global Neighbourhood, Oxford
University Press, 1995, p. 19.
O Século 21 131

CONCENTRAÇÃO DO
PODER EMPRESARIAL
A futura República do Binano

“Temos a metade de nossos genes em comum com a banana”.


Robert May, principal cientista da Grã-Bretanha,
falando do Projeto Genoma Humano, junho de 2000.

Chave: Os “papéis” convergem

Exatamente cem anos antes que William Shakespeare apresen-


tasse sua obra épica sobre a natureza corruptora do poder político,
outro drama demonstrava a irmandade corruptora da política e da
ciência. Em 1499, Leonardo da Vinci deixou Milão para encontrar
Nicolas Maquiavel. Juntos, estes dois gênios da arte, da ciência e da
política planejaram construir represas, desviar rios, monopolizar a
agricultura e dominar os recursos econômicos da Itália central. Nos
500 anos que se passaram, terá mudado esta relação entre a tecnologia
e a política?1 À medida que a base de nossa sobrevivência é erodida e
que novas e incertas tecnologias abrem caminho em nossa infra-es-
trutura social, novas configurações empresariais de extraordinária
força vão substituindo os governos e organizando novos sistemas de
controle sobre quase qualquer coisa.
• Por volta de 1990, um terço das 500 empresas, que, 20 anos
antes, estavam na lista da Fortune, haviam desaparecido, ten-
132 Pat Roy Mooney

do sido compradas por outras; em 1995, outras 40% tinham


se fundido. Nos últimos 5 anos, o ritmo de extinções de empre-
sas superou a perda de raças de animais domesticados.
• Em 1980, o UNCTC (Centro para Empresas Transnacio-
nais da ONU) publicou um estudo sobre as indústrias de
alimentos e bebidas de todo o mundo, em que identificou
180 empresas que dominavam os mercados, naquela época
muito segmentados. Hoje, um terço destas empresas tem apro-
ximadamente o mesmo poder no mercado, e o UNCTC já
não existe.
• Há 20 anos, nenhuma das 7.000 empresas de sementes de
maior peso no mundo tinha uma porção identificável do mer-
cado comercial de sementes. Hoje, as 10 principais empresas
de sementes dominam um terço do mercado mundial.
• Há 20 anos, as 20 maiores empresas farmacêuticas tinham
cerca de 5% do comércio mundial de medicamentos receita-
dos. Hoje, as 10 maiores empresas controlam mais de 40%
do mercado.
• Há 20 anos, 65 empresas de química agrícola competiam
no mercado mundial. Hoje, 9 companhias detêm aproxi-
madamente 90% das vendas de pesticidas.
• Há 20 anos, a RAFI não monitorava o mercado mundial de
remédios veterinários. No entanto, hoje, 10 empresas detêm
mais de dois terços das vendas mundiais.
• Há 25 anos, o valor total das fusões empresariais realizadas
nos Estados Unidos em um único ano chegou a 11,4 bilhões
de dólares americanos. Em 1999, o valor total das fusões nos
Estados Unidos chegou a mais de 1,7 trilhões.
• Em 1999, o valor total das fusões e aquisições globais se apro-
ximava de 10% do PIB do mundo todo, mais de 3,4 trihões
de dólares americanos.
O Século 21 133

• Há 20 anos, a propriedade intelectual era em grande parte


um esporte de ricos, limitado a materiais inertes. Hoje, os
monopólios de propriedade intelectual intervêm em mais da
metade de todos os bens e serviços (vivos e inertes) que se
comercializam através das fronteiras nacionais.
• Pelo menos 70% de todos os pagamentos por patentes inter-
nacionais são feitos entre matrizes e filiais.
• O número anual de patentes solicitadas na Europa cresceu
de apenas 3 mil por ano, no início dos anos 70, para mais de
76 mil em 1999.
• Noventa por cento das patentes de tecnologias e produtos no-
vos são controladas por transnacionais.
• A começar o novo milênio, as 200 principais empresas do
mundo representam 28% da atividade econômica global; as
500 maiores representam 70% do comércio mundial e as
1.000 maiores controlam mais de 80% da produção indus-
trial do mundo.2

A Grande Fusão?

Se a biotecnologia e a nanotecnologia se fundirem, também


vão se unir as duas grandes fontes do poder produtivo: minérios
e micróbios. Em 1987, no seminário de Bogéve sobre
biotecnologia, afirmamos que qualquer tecnologia nova
introduzida em uma sociedade que não seja fundamentalmente
justa tenderá, ao menos inicialmente, a exacerbar a diferença entre
ricos e pobres. A conjunção de nano e biotecnologias não apenas
significa, como sugerem os militares dos Estados Unidos, a “morte
da distância”: anuncia a morte da dissidência. Quando chegar-
mos à metade do século (se não muito antes), nossos filhos po-
134 Pat Roy Mooney

derão viver em um mundo controlado por um punhado de


oligopólios empresariais.

Chaves históricas: a política da imprevisibilidade


Entre 1480 e 1700, foram editados na França duas vezes mais livros
sobre o perigo do Império Turco do que sobre as Américas. Nas últimas
décadas do século XX, foram escritos muito mais livros sobre o “Império
Malvado (russo)” do que sobre o perigo das fusões empresariais. A verda-
deira ameaça ainda vem das Américas. Em 1849, a Scientific American
dizia que uma proposta para estender linhas telegráficas de St. Louis, no
Missouri, através do Estreito de Behring, até as capitais da Europa, fracas-
saria porque a “linguagem da liberdade“ que viajaria pelos cabos não seria
bem recebida do outro lado do oceano. Em 1899 foi inventado o “telegráfono”,
uma máquina de gravação em fita magnética, como resposta ao telefone de
Alexander Graham Bell e frente à necessidade de registrar conversas im-
portantes. Sete dias antes da queda da Bolsa de Valores, em 1929, um dos
principais economistas de Yale chegou à conclusão que as ações tinham
alcançado “um nível alto permanente”. E, depois do terceiro dia de queda,
35 empresas de Wall Street emitiram uma nota anunciando: “O pior já pas-
sou”. Em 1936, grandes estudiosos britânicos previram que, em 50 anos,
os alimentos, a moradia, o vestuário e a energia seriam tão acessíveis e
baratos que o desemprego seria universal ou inexistente. Em 1959, o dire-
tor administrativo do Fundo Monetário Internacional anunciou a morte da
inflação. Em 1940, Gandhi pensava que Hitler não era tão ruim assim. Gandhi
estava só um pouco atrasado em relação a sua época. E, em 1932, Winston
Churchill previu que, em 50 anos, o mundo abandonaria “o absurdo” de criar
frangos inteiros para criar apenas peitos e asas “em um meio apropriado”.
Apenas um pouco adiantado em relação a sua época?

Atualmente, as transnacionais controlam um terço dos ati-


vos produtivos do mundo e três quartos do comércio mundial.3
Neste Mundo Novo, os governos funcionarão para manter o mito
da democracia, manter uma rede mínima de segurança social
(para o que necessitam de poder para arrecadar impostos) e im-
O Século 21 135

por a legalidade dos contratos. A nova hegemonia é facilitada


por três estratégias relacionadas.

As alavancas do poder: as fusões


O ritmo e o alcance das fusões multinacionais explodiu, pas-
sando de um recorde de 0,9 trilhões de dólares americanos em
1996, para um impressionante total de 3,4 trilhões em 1999.4
Para muitos de nós estas cifras parecem incompreensíveis. O to-
tal de fusões mundiais em 1999 equivale a uma soma que
corresponde a aproximadamente 10% do produto interno mun-
dial total (a soma do PIB de todos os países).5 Nos últimos anos
da década passada, as fusões globais superaram o total dos 8 anos
anteriores.
Estamos falando de concentrações de poder súbitas e enor-
mes. Um sinal do ritmo da mudança é que recentemente as
indústrias de títulos e investimentos começaram a monitorar
as fusões mundiais. No entanto, a RAFI vem monitorando as
fusões e aquisições nos Estados Unidos desde 1974 e, portan-
to, nossos dados históricos sobre as empresas estadunidenses
proporcionam um panorama mais completo. Em 1974, o va-
lor anual das aquisições nos Estados Unidos era de menos de
12 bilhões de dólares estadunidenses. Em 1988 esse montante
chegou a 330 bilhões, antes de cair ligeiramente nos anos de
recessão imediatamente posteriores. Em 1999, a cifra das fu-
sões nos Estados Unidos superava em muito os 1,7 trilhões de
dólares americanos.6
Toda essa atividade não foi alimentada exclusivamente pela
nanotecnologia e pela indústria biotecnológica em sua prefe-
rência pelo carbono. Na vanguarda disso estiveram as fusões
das indústrias petrolífera e automobilística, assim como as in-
dústrias financeira e de informática (telecomunicações e meios
136 Pat Roy Mooney

de comunicação). Na segunda metade do ano 2000, as fusões


transnacionais aumentaram 26% em relação ao ano anterior
– que tinha quebrado todos os recordes – com um montante
de mais de 1,9 trilhões de dólares americanos. Meio bilhão
(sic – trilhões?) desse montante correspondia ao setor de
informática.7
Mas a “indústria da vida” (incluindo alimentos e saúde, as-
sim como outros produtos baseados na biotecnologia) não fi-
cou de fora. Segundo um estudo do PNUD, o valor das fusões
na indústria biotecnológica global (sem incluir a farmacêutica,
por exemplo), cresceu de 9,3 bilhões de dólares desde 1988 –
quando há dez anos a RAFI escreveu As leis da vida – a mais de
172 bilhões de dólares em 1998.8 Num cálculo aproximado, os
“casamentos”, no subsetor farmacêutico, que chegaram a 80
bilhões de dólares no período 1994-1997, provavelmente já
superaram hoje os 400 bilhões de dólares (entre compromissos
e matrimônios consumados). Nos primeiros 6 meses de 2000,
as fusões de empresas farmacêuticas chegaram a um valor pró-
ximo dos 100 bilhões de dólares.9 Enquanto um milênio ter-
minava e outro começava, a Glaxo Wellcome e a Smithkline
Beecham (duas empresas farmacêuticas britânicas) acertaram
aquilo que por um momento foi a maior fusão do mundo na
indústria farmacêutica (76 bilhões de dólares). Dias mais tar-
de, a Pfizer apoderou-se da Warner-Lambert (duas das princi-
pais empresas farmacêuticas dos Estados Unidos), numa tran-
sação ainda maior que as anteriores, calculada em 90 bilhões
de dólares.10 Entre as dez maiores companhias farmacêuticas
do mundo, só a Merck não é considerada, no momento,
vendedora ou compradora potencial. Na agro-indústria (in-
cluindo os processadores de alimentos, distribuidores e empre-
sas de insumos agrícolas), as fusões deram um salto espetacular
O Século 21 137

em 1999, quando a DuPont comprou a maior empresa de se-


mentes do mundo, a Pioneer Hi-Breed, por 7,7 bilhões de dó-
lares. No entanto, em agrobiotecnologia, a líder em fusões é a
Monsanto, com suas compras de quase 8,5 bilhões de dólares
em ações de empresas de sementes, em meados da década. Agora,
a própria Monsanto foi adquirida pela Pharmacia & Upjohn (a
nova empresa chama-se Pharmacia), numa operação de 37 bi-
lhões de dólares. Na primeira metade do ano 2000, o ritmo
assombroso das fusões no setor de alimentos cresceu além de
qualquer expectativa, com quase 150 bilhões de dólares em
aquisições.11

GRÁFICO 6 – Valor estimado das fusões de empresas em nível global


1996-1999 (em bilhões (sic – trilhões?) de dólares americanos)

3,5

2,5

1,5

0,5

0
1996 1997 1998 1999
Fonte: Financial Times e material da RAFI

As alavancas do poder: alianças


As fusões empresariais são apenas uma das formas como as
empresas se apropriam de maiores territórios e tecnologias. No
entanto, fusão ou não, sempre há lugar para a promiscuidade
empresarial. Para evitar as leis antimonopolistas ou as políticas
nacionalistas, as empresas se aliam cada vez mais para comparti-
138 Pat Roy Mooney

lhar patentes, know-how e espaços, de forma menos regulamen-


tada. Entre 1996 e 1998, as maiores transnacionais do mundo
realizaram mais de 20.000 alianças desse tipo. Por exemplo, em
1998, as 20 principais firmas farmacêuticas tinham 375 alianças
com “butiques” biotecnológicas, enquanto 10 anos antes conta-
vam com apenas 152 alianças. Quase todos eram acordos
“transnacionais”. Desde o começo de 1990, a renda empresarial
derivada dessas alianças duplicou, representando agora cerca de
20% das rendas das empresas na Europa e 21% das 500 mais
importantes empresas estadunidenses, as “US Fortune 500”.12
Este tipo de aliança é uma cartada que dissimula o alcance do
monopólio global na indústria farmacêutica ou na agro-indús-
tria, o qual parece modesto de acordo com as regras antimono-
polistas aplicadas convencionalmente na maioria dos países. Mas,
quais eram as implicações, e qual foi o trato, quando a Monsanto
acertou com a Pfizer comercializar seu medicamento, de extra-
ordinário êxito, contra a artrite? O novo tratamento contra a
artrite vende mais do que o famoso Viagra, também da Pfizer.
Afirmar que as 10 principais firmas farmacêuticas detêm 43%
do mercado global não impressiona uma comissão antimonopólio
concentrada obtusamente nos submercados da asma ou das doen-
ças cardiovasculares. E os policiais anticartéis tampouco estão
interessados em monitorar toda a indústria de sementes ou de
agrotóxicos, quando percebem que a concorrência se dá entre
fitomelhoradores do milho ou fabricantes de pesticidas, e não
entre tecnologias. Os governos mostraram pouco interesse – ou
pouca capacidade – na análise tecnológica transetorial. Mono-
pólios estão surgindo no contexto de uma Indústria da Vida, de
cuja existência os governos nem sequer suspeitam. Está além de
sua compreensão que uma biotecnologia comum possa vincular
o genoma humano à indústria farmacêutica, aos remédios vete-
O Século 21 139

rinários, aos agroquímicos, às sementes, aos cosméticos, aos pro-


dutos para limpeza da casa. A indústria da biotecnologia deixou
muito para trás a polícia empresarial. A indústria da nanotecno-
logia fará o mesmo. As organizações da sociedade civil devem
trabalhar – como alta prioridade – para aumentar a capacidade
dos governos de perceber, monitorar e opor-se aos monopólios
tecnológicos.

As alavancas do poder: velhos e novos confinamentos


A monopolização direta do conhecimento continua sendo o
“veículo preferido” da maioria das transnacionais. A propriedade
intelectual (patentes e “proteção” quanto a variedades de plan-
tas) é uma força crescente (mas transitória?). Entre 1980 e 1994
– período que se iniciou com a decisão da Suprema Corte de
Justiça dos Estados Unidos de permitir as “patentes sobre a vida”
e terminou com a Rodada do Uruguai do GATT –, o valor glo-
bal do mercado de produtos feitos com alta tecnologia (patente-
ados) cresceu de 12 para 24% e agora representa mais da metade
do Produto Nacional Bruto dos países da OCDE (União Euro-
péia).13 Isto sem levar em conta que a esmagadora maioria das
mercadorias agrícolas produzidas e comercializadas pelos países
da OCDE também está “protegida” por patentes ou por Direi-
tos de Obtentor (patentes para plantas). Talvez o que melhor
ilustre o fato seja o número de requerimentos anuais de patentes
por intemédio do Tratado de Cooperação sobre Patentes, que
disparou, de apenas 3.000 solicitações em meados dos anos 70,
para mais de 76.000 em 1999 (Gráfico 7). A metade dos direitos
e dos pagamentos a título de autorizações recebidos pelos inven-
tores em meados dos anos 90 ia para empresas dos Estados Uni-
dos. Nada ilustra melhor o fato de os monopólios de patentes
constituírem uma estratégia para negar a outros o acesso aos
140 Pat Roy Mooney

mercados que os cálculos da Organização Mundial da Proprie-


dade Intelectual, que indicam que 90% de todos os pagamentos
por licenças transnacionais – e 70% dos pagamentos por licen-
ças – se dão entre subsidiárias das mesmas multinacionais.14 Em
seu Relatório de Desenvolvimento Humano 2000, o PNUD calcu-
lou que 90% das patentes relacionadas com altas tecnologias são
propriedade de empresas globais.15

GRÁFICO 7 – Requerimentos de patentes por ano sob o


Tratado de Cooperação em Patentes

80000

70000

60000

50000

40000

30000

20000

10000
1979 1985 1990 1997 1999

Fonte: estatísticas do Relatório sobre Desenvolvimento Humano 1999, PNUD – Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento e OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

O campo de batalha “contra o patentear da vida”


A campanha da indústria a favor do monopólio da proprie-
dade intelectual sobre formas de vida, que já leva um quarto de
século, enfrentou sua maior batalha em 2000-2001. A vitória da
indústria somente poderá ser impedida pela oposição popular
organizada. O campo de batalha será o Tribunal Europeu, na
próxima rodada da Organização Mundial do Comércio (com a
possível revisão dos Aspectos de Propriedade Intelectual relacio-
O Século 21 141

nados com o Comércio – ADPIC), governos do Sul e organiza-


ções da ONU, como a FAO, a OMPI e a Convenção sobre
Biodiversidade. Apesar de ser uma “luta contra a corrente”, esta
batalha deve ser nosso objetivo principal e urgente. Se conse-
guirmos pelo menos definir os termos de participação, a experiên-
cia do ano 2000 poderá capacitar as organizações para a luta a
mais longo prazo.
Se perdermos a batalha da ADPIC sobre as variedades vege-
tais, de que futura batalha poderemos participar? A resposta é: a
batalha para negar à indústria patentes monopolistas sobre as subs-
tâncias da natureza. Muitas organizações já tomaram uma posição
clara e decidida contra patentear a vida, mas as maiores iniqüida-
des de todo o sistema de patentes ainda não foram questionadas; e
não afetam apenas formas de vida. As novas patentes em
nanotecnologia – “patentes atômicas” – nos fazem pensar que po-
deríamos ganhar a batalha sobre as patentes da vida e, no entanto,
permitir que a indústria nanotecnológica obtenha o controle
monopolista sobre a agricultura e a saúde. A indústria procura

GRÁFICO 8 – Renda dos Estados por autorizações de patentes


(em bilhões de dólares americanos)

600

500

400

300

200

100

0
1990 1998 2005

Fonte: Rivette, Kevin G. e David Kline, Rembrandts in the Attic, Boston, 2000.
142 Pat Roy Mooney

obter patentes muito amplas que cubram todas estas formas de


tecnologia. Em alguns casos, os requerimentos não incluem for-
mas vivas. Em muitos casos, referem-se apenas à matéria biônica.
É necessário repensar urgentemente o quadro do debate sobre pro-
priedade intelectual, a fim de desafiar, desde já, as novas tecnologias.

Pirataria intelectual
No final de 1992, a RAFI uniu-se a uma série de indivíduos,
membros de governos, indústrias e ciências, em um processo de
diálogo sobre recursos fitogenéticos e propriedade intelectual. O
Grupo Crucible, como se deu a conhecer, horrorizou-se quando
foram aprovadas duas patentes sobre “espécies” (soja e algodão),
que dariam o monopólio do desenvolvimento biotecnológico
destas culturas à empresa Monsanto. Além do mais, o grupo viu-
se obrigado a organizar consultas para questionar a concessão,
aparentemente sem controle, de patentes sobre genes e conheci-
mento indígena. Ao insistir para que se travasse o diálogo, a RAFI
advertia que os regimes de propriedade intelectual haviam se tor-
nado cruéis e incontroláveis, e que já não havia “regras do jogo”.
Afirmamos que as patentes já não eram incentivo para a inova-
ção, e sim fichas de troca que as grandes empresas estavam utili-
zando para negociar espaços entre si, excluindo as empresas me-
nores. O custo de um litígio sobre patentes – calculado então em
US$ 225.000 por reclamante – convertera a propriedade inte-
lectual em uma barreira (não alfandegária) para impedir a entra-
da no mercado dos inovadores menores. Especulamos que, se
essas tendências continuassem, chegaríamos a ver as patentes
convertidas em ativos negociáveis na bolsa – capazes até de de-
senvolver sua própria “plataforma de intercâmbio” – e que os
embargos, considerados sagrados, contra patentes para ciência
pura, métodos para fazer negócios e matemáticas, perderiam seu
O Século 21 143

poder. Os participantes do Grupo Crucible, de orientação cien-


tífica, pensaram que nossas preocupações eram fantasiosas.
Já não o são. Em 1998, os tribunais dos Estados Unidos confir-
maram que os métodos de fazer negócios – especificamente as
práticas comerciais e as estratégias de investimento – são patenteá-
veis. De fato, hoje é possível patentear Wall Street. Em 1999, um
banco de investimentos com base em São Francisco anunciou seus
planos de criar um mercado de futuros de patentes, “assegurando” as
carteiras de patentes empresariais e vendendo bilhetes de compra
para os investidores. Ao mesmo tempo, foi criado um site de
intercâmbio virtual com yet2.com, para que empresas como 3M,
Allied Signal, Boeing, Dow, DuPont, Ford, Honeywell, Polaroid e
Rockwell pudessem “intercambiar” tecnologias patenteadas.
Rompendo a tradição de que todos os inventores são iguais diante
da Agência de Patentes, o governo japonês anunciou seu plano de
conceder aos capitalistas de risco e aos grandes investidores em
propriedade intelectual “vários tratamentos preferenciais”.16
Os meios de comunicação ficaram fascinados com as
extravagâncias de empresas “ponto com”, como a Amazon, que
buscou patentear pedaços de Internet e de suas funções, mas os
requerimentos de propriedade intelectual mais surpreendentes e
inquietantes continuam vindo da Indústria da Vida. Em
dezembro de 1999, a Agência de Patentes dos Estados Unidos
concedeu a patente número 6 milhões desde sua criação, há mais
de 200 anos. Ainda não secara a tinta com que foi assinada esta
concessão e já três empresas de genoma admitiram, ao mesmo
tempo, que tinham pendentes requerimentos de patentes sobre
cerca de 3 milhões de partes do DNA humano, assim como sobre
fragmentos de genes. Já foram concedidas patentes sobre genes
humanos e SNPs (Single Nucleotide Polymorphisms, ou
Polimorfismos de Nucleótido Único), cuja utilidade é totalmente
144 Pat Roy Mooney

desconhecida. Quando Tony Blair e Bill Clinton anunciaram


que o mapa do genoma humano estava completo, não havia nem
mais um pedacinho de nossa “humanidade” de que a Indústria
da Vida não tivesse se apropriado.
Trata-se de pirataria e também de um patenteamento arrasa-
dor. Não apenas em nosso DNA, como também nas selvas, nos
campos e praias do Sul, as empresas de biotecnologia andam
buscando diversidade nova (não patenteada) e apresentando re-
querimentos de patentes sobre essas “novidades” sem ter ao me-
nos idéia de como podem ser úteis, ou como foram utilizadas
por milhares de anos. No final dos anos 90, a Heritage Seed
Curators, da Austrália, e a RAFI uniram suas forças para identi-
ficar 147 casos em que patentes ou Direitos de Obtenção sobre
material botânico haviam sido solicitados sem justificativa sufi-
ciente. Foi possível identificar quase todos os possíveis abusos
revistando os registros australianos na matéria e descobriu-se que
se tratava de, pelo menos, 6% de todos os requerimentos sobre
variedades de plantas neste país, desde que existe a legislação
pertinente. Talvez, se forem realizados estudos similares, sobre
requerimentos de patentes para plantas em outros países, – em
particular na Nova Zelândia, Israel, África do Sul e o lado euro-
peu do Mediterrâneo – escândalos semelhantes virão à tona.

Será patenteável a Tabela periódica dos elementos? Assim como


em outros tempos parecia impossível – e hoje é tristemente
possível – patentear genes, espécies, SNP e processos vitais, a
indústria nanotecnológica utilizará esse precedente biológico
para patentear as permutações e os processos associados aos
elementos básicos. As “nanobutiques”, e depois seus proprie-
tários, tomarão posse dos elementos conhecidos de variações
patenteadas e assim obterão o monopólio de fato dos blocos
fundamentais de construção da matéria.
O Século 21 145

Alguns quiseram pensar que o sistema de patentes é um globo


a ponto de explodir; que se expandiu tão rápido e de forma tão
irracional que vai se romper. É possível. Certamente, seu tamanho
e sua força atrairão cada vez mais julgamento público e – espere-
mos – oposição. Em 1990, a renda derivada de licenças de paten-
tes chegou, ao todo, a 15 bilhões de dólares. Em 1998, os paga-
mentos a título de licenças geraram 100 bilhões de dólares, e al-
guns especialistas predizem justificadamente que por volta de 2005
produzirão renda de meio trilhão de dólares anuais. Enquanto isso,
o custo mínimo de um processo judicial chegou a cerca de meio
milhão de dólares por litigante. Se outrora as patentes constituíam
um canto escuro e empoeirado do sistema legal, hoje já não o são.
Estão no centro da Nova Ordem Mundial.
Além disso, as patentes poderão ter problemas simplesmente
porque os escritórios de patentes cometerão cada vez mais erros,
à medida que as solicitações se tornem mais difíceis. Enquanto
esses escritórios se afadigam, contratando e capacitando mais
analistas, tanto o número de solicitações quanto a complexidade
das tecnologias está tornando seu trabalho cada vez mais dificil.
O resultado é que está sendo concedida uma onda gigantesca de
patentes “estúpidas”. Nos Estados Unidos, desde 1995, o núme-
ro de processos por propriedade intelectual que chegam aos tri-
bunais federais aumentou 10 vezes mais rápido que outras ações
legais. Só em 1999 houve 8.200 casos.17 Os litígios resultantes –
públicos e privados – são tão ridículos que geram dúvidas sobre
todo o sistema.

Novos confinamentos
Em meio ao alvoroço sobre as patentes da vida, é essencial
que não percamos de vista o propósito principal da indústria, ou
seja: a propriedade intelectual não é um fim, mas um meio. A
146 Pat Roy Mooney

indústria tem dois objetivos: primeiro, obter consentimento da


sociedade para uma cultura global “proprietarista”, praticamen-
te ilimitada; segundo, afirmar a propriedade intelectual como
trincheira, ao constituir uma barreira não alfandegária contra o
ingresso no mercado de todos aqueles que não são membros pri-
vilegiados da elite empresarial. As megafusões – freqüentemente
estimuladas por temores ou oportunidades relacionadas com
patentes e tecnologias18 – já estão transformando a outrora bas-
tante diversa Indústria da Vida em um punhado homogêneo de
Gigantes Genéticos. Os gigantes trocam patentes e espaço in-
dustrial e geográfico entre eles, excluindo o público e as empre-
sas privadas menores. A pesquisa pública independente está de-
saparecendo. A ciência empresarial está se cotizando a partir do
“pôquer” das patentes.
Como as patentes sobre mais tecnologias não são inteiramente
dignas de confiança e como os processos judiciais são tão caros
como incertos seus resultados, as transnacionais ficariam muito
felizes se encontrassem sistemas mais confiáveis de controle
monopolista. Para tanto, estão sendo desenvolvidos novos me-
canismos de “confinamentos”, ou seja, terrenos privativos. Entre
eles, as tecnologias negativas (como a tecnologia Traitor) são
atraentes porque a exclusividade é parte de sua própria constitui-
ção e devido ao amplo espectro de controles que pode exercer. As
patentes agrícolas Terminator são as primeiras (e possivelmente
as piores) da geração da tecnologia Traitor. Estas têm a caracte-
rística peculiar de que, ao proibir as patentes, proíbe-se também
a tecnologia. O governo dos Estados Unidos garante, com certa
lógica, que as nações não podem proibir patentes argumentando
que são contrárias à moral pública e depois utilizar a tecnologia;
pelo menos não sem que o assunto seja discutido na Organiza-
ção Mundial do Comércio, em Genebra. A luta contra
O Século 21 147

Terminator, embora seja apenas um elemento das iniciativas con-


tra a tecnologia negativa, coloca em primeiro plano todo o deba-
te sobre o patenteamento das formas de vida, ao mesmo tempo
em que dá o alarme sobre a estratégia da tecnologia Traitor que a
Terminator anuncia.
Além das estratégias biológicas, há outros “novos confina-
mentos”. Em 1o de maio de 2000, o governo dos Estados Unidos
anulou a lei que impedia as empresas de satélites comerciais de
examinar a Terra com resolução de um metro. Antes dessa mu-
dança de política, os militares impediam que os satélites civis
tivessem exatidão fotográfica efetiva a menos de 10 metros. A
diferença é considerável. A um metro é possível distinguir a marca
de um automóvel. A 10 metros, mal se pode distinguir a estrada.
Os avanços anunciados no monitoramento por satélite permiti-
rão monitorar indivíduos, assim como a composição genética de
uma plantação no campo. De fato, na Tasmânia, já está sendo
feita uma experiência em que há satélites examinando cada metro
quadrado de terra cultivada, para vigiar o crescimento das plan-
tas, as pragas e as condições do solo. Com a administração do
sistema de alimentos nas mãos de algumas poucas companhias,
as agroempresas não precisarão de patentes para manter submis-
sos os agricultores; os tradicionais contratos serão suficientes
(muito mais baratos e fáceis de impor em todo o mundo), junto
com “seu olho no céu”.
Outra estratégia que os Novos Confinamentos utilizam é a
imposição de requisitos de saúde pública, por parte dos governos.
Os protocolos de Biossegurança e de Nanossegurança podem ser
utilizados para impor o monopólio com o pretexto de que a neces-
sidade de alimentar o mundo ou de salvaguardar o meio ambiente
compensa o risco das soluções de alta tecnologia e, pelas mesmas
razões, as soluções de alta tecnologia só podem ser confiadas a
148 Pat Roy Mooney

empresas individuais. Não seria a primeira vez que o Estado ga-


rantiria lucros privados em nome do bem público.
Para onde isso tudo estará nos levando? Na seqüência, uma
breve projeção do caminho que nos estão forçando a trilhar em
quatro amplos setores industriais e um panorama da nova Repú-
blica do Binano, que nos espera se não agirmos.

Alimentos futuros: a indústria dos biomateriais

Do controle de características genéticas como insumos ao


controle de características genéticas pós-colheita.

A Geração X se encontra com a Geração Três


Por fim, o mundo recusará o enfoque empresarial da
agrobiotecnologia? Do Rio Grande do Sul a Tamil Nadu e Seattle
está em marcha uma mobilização social impressionante, mas a
indústria continua prevendo que os produtos trangênicos domi-
narão nada menos que 80% do mercado de sementes comerciais
nos próximos dez anos. Em vista da hostilidade que cresce em
todo o mundo, é fácil pôr de lado as afirmações das empresas,
como se fossem bravatas nascidas do desespero. No entanto, o
Protocolo de Biossegurança adotado em 29 de janeiro de 2000
(tão astutamente respaldado pela Novartis e tão absurdamente
apoiado pelo Greenpeace) bem poderia acalmar o mundo, fa-
zendo todos acreditarem que, na trincheira dos alimentos
transgênicos está tudo resolvido. Se fosse assim, praticamente
toda a agricultura que não seja de subsistência (e uma trágica
parte da de subsistência também) obedecerá aos ditames da
bioindústria, seja pelo engano, ou pela força. Os agricultores
perderão o controle de seus insumos agrícolas, à medida que os
O Século 21 149

progressos dos fitomelhoradores passem a integrar a plataforma


Terminator. E, no outro extremo da linha de produção – na co-
lheita – a estratégia Traitor (controle de outros caracteres de pro-
dução e qualidade da planta), sempre vinculada a herbicidas e a
pesticidas patenteados, assegurará que o produtor só possa ven-
der a um determinado processador. A Novartis tem patentes que
descrevem com exatidão esse tipo de conexão entre Terminator e
o herbicida. O mesmo vale para outras patentes novas que incluem
invertebrados, animais domesticados e, óbvio, seres humanos.
As ações da BASF, da Universidade do Texas e da Universidade
da Califórnia, em Berkeley, deixam abertas todas essas possibili-
dades. Também nós podemos ser “Terminados”.
A combinação da tecnologia Terminator com a tecnologia
Traitor leva os agricultores a um vício de que não podem escapar.
Mas se os consumidores continuarem recusando os produtos da
biotecnologia de primeira geração (insumos agrícolas imbricados,
tal como sementes dependentes de um pesticida), poderemos
ver o mundo empresarial atropelando-se para dissociar-se de uma
tecnologia “perdedora”. Na realidade, antes do Protocolo de
Biossegurança, a imprensa financeira previa para os Estados
Unidos uma redução de 20% ou mais da área cultivável semeada
com transgênicos de primeira geração. Por outro lado, se o
Protocolo sobreviver ao processo de ratificação, a tática de perfil
baixo da indústria será substituída por um impulso renovado
nos mercados e na mídia. Neste caso, haverá nova onda de
megafusões, vinculando a agrobiotecnologia aos processadores
de alimentos e aos distribuidores. Esta segunda onda prenunciará
a segunda geração: produtos biotecnológicos com particularidades
genéticas que poderão reduzir os custos de processamento,
aumentando, por exemplo, o conteúdo de matéria seca de
matérias-primas agrícolas, aumentando a vida comercial do
150 Pat Roy Mooney

produto, reduzindo os custos de transporte ou utilizando resíduos


para fazer alimentos ou para outros fins. Como nenhum desses
elementos trará benefícios reais aos agricultores ou aos
consumidores, é provável que encontrem a mesma resistência.
No entanto, antes que termine a primeira década do milênio, a
biotecnologia lançará a terceira geração – os chamados produtos
nutracêuticos ou farmacêuticos que, pelo menos, simularão
beneficiar os consumidores ricos. Quando se chegar a esse ponto,
os supermercados entrarão em cena, assim como as empresas
gigantes, que suportaram os piores efeitos do rechaço dos
consumidores à primeira geração e provavelmente suportarão
também o desprezo pela segunda geração.
Mas não nos enganemos. A Geração Três tem potencial para
o bem e para o mal. As organizações da sociedade civil devem
refletir mais cuidadosamente e analisar a biotecnologia com mais
rigor do que o fizeram até agora.

A indústria da vida, morta?


Existe a teoria de que a Indústria da Vida nunca existiu – ou
morreu prematuramente. Os que defendem esta teoria indicam
o movimento feito pela Novartis e pela AstraZeneca para unir
seus departamentos de agricultura em uma nova empresa, co-
nhecida como Syngenta, da qual é preciso manter prudente dis-
tância. Se o mau cheiro da primeira geração da agrobiotecnologia
ameaçar o bem-estar das principais seções das empresas matrizes
– de produtos para a saúde – estas poderão tranqüilamente abrir
mão da Syngenta. Outro exemplo citado é a surpreendente união
de Pharmacia & Upjohn com a Monsanto. Os céticos afirma-
ram que a empresa conjunta se chamaria Pharmacia (e tiveram
razão), mas que as empresas deixariam que as divisões agrícolas
unidas continuassem funcionando com o nome de Monsanto,
O Século 21 151

com a idéia de desfazerem-se da parte agrícola no futuro, caso


fosse conveniente. O que poderia também vir a ser uma prote-
ção ou um “seguro” para o ramo farmacêutico das empresas fun-
didas. Será possível que a Indústria da Vida – tão recentemente
unificada – esteja se preparando para voltar a segmentar-se?

A primeira geração da biotecnologia: uma juventude perdida


Revisão da RAFI sobre os desastres científicos, políticos e de relações
públicas que assolaram a indústria da agrobiotecnologia desde a adoção do
Protocolo de Biossegurança, em janeiro de 2000.

Janeiro de 2000
Reputação no chão: Enquanto as delegações se preparavam para a
reunião de biossegurança a realizar-se em Montreal, pesquisadores
estadunidenses e venezuelanos confirmavam (contrariamente às pro-
messas da indústria) que a toxina Bt no milho transgênico pode disper-
sar-se no solo, matando larvas até 25 dias depois de ter sido libera-
da...19

Fevereiro de 2000
Irresistível? Cientistas canadenses reconheceram que os herbicidas
Roundup (da Monsanto), Pursuit (da Cyanamid) e Liberty (da Aventis)
perderam sua efetividade para exterminar o mato apenas dois ou três
anos depois que um agricultor de Alberta semeou pela primeira vez as
sementes de canola que essas empresas modificaram geneticamente.20

Março de 2000
Vocalizando: Um memorando do governo dos Estados Unidos, censu-
rado por muito tempo, com data de 1993, revela uma experiência em
que 4 de 20 roedores alimentados com FlavSavr (um tomate genetica-
mente modificado que, atualmente, é propriedade da Monsanto) sofre-
ram lesões sérias no estômago.21
Conspiração contra a sariguéia. Cientistas da Nova Zelândia propu-
seram o desenvolvimento de uma cenoura geneticamente modificada
para esterilizar a sariguéia. Estes mamíferos ameaçam os cultivos da-
152 Pat Roy Mooney

quele país.22 Os cientistas desprezaram os sinais de alerta sobre o efei-


to similar que as cenouras poderão ter sobre os seres humanos e insis-
tem em que esta hortaliça geneticamente modificada poderia ser sepa-
rada da cadeia alimentar humana, se necessário.
O “Projeto da Bruxa de Blair”: Tony Blair retratou-se da posição que
manteve há um ano (“o Primeiro Ministro está convencido que os pro-
dutos – geneticamente modificados – são seguros”.) e comentou, para
os leitores de The Independent que “não há dúvida que os alimentos
geneticamente modificados representam um risco potencial.”23 Mais
mudanças de opinião são esperadas.

Abril de 2000
A guerra dos gorgulhos: Descobriu-se que algodão geneticamente
modificado chegou “voluntariamente” a campos semeados com soja
geneticamente modificada e que pode ser a causa do temível gorgulho
algodoeiro ter se tornado novamente uma das maiores pragas dos Es-
tados Unidos.24
Uma batata quente: Os produtores de milho estadunidenses evitam o
uso de semente geneticamente modificada, já que suas exportações
para a Europa caíram estrepitosamente, de 2 milhões de toneladas em
um ano, a 137 mil toneladas no ano seguinte.25 O anúncio tornou-se
público quando meios importantes informaram que as principais em-
presas dedicadas a processar batata e as principais cadeias de fast
food notificaram os plantadores do tubérculo para que evitassem o uso
de batatas geneticamente modificadas.

Maio de 2000
“Seguras”... onde quer que estejam? Rotineiramente – ainda que
acidentalmente – empresas forrageiras estadunidenses e canadenses
embarcaram sementes geneticamente modificadas para a Europa. Pa-
rece que essas empresas não conseguiram manter separadas as se-
mentes convencionais das geneticamente modificadas.26 Nos meses
seguintes, este descuido no manejo de estoques se espalhou por toda
a Europa Ocidental, pois um país atrás do outro viu seus campos conta-
minados com culturas geneticamente modificadas proibidas e indesejadas
O Século 21 153

(por outro lado, garantiu-se aos neozelandeses que esse problema de


manejo de estoques nunca poderia ocorrer com a cenoura).
“Seguras”... não importa o que sejam: A Monsanto informou a re-
presentantes do governo estadunidense sobre uma conformação de
DNA não identificado que “aparece misteriosamente” em suas semen-
tes de soja geneticamente modificadas. A Monsanto assegurou àque-
les representantes que o DNA desconhecido é perfeitamente seguro (e
que não se tratava de um vírus querendo “passar por morto”).
Barriguinha de abelha alemã: Na Saxônia, um pesquisador desco-
briu que um gene da semente de colza geneticamente modificada se
transferira para uma bactéria e um fungo descobertos no intestino das
abelhas produtores de mel. Antes, a indústria afirmara que esta transfe-
rência era muito pouco provável ou mesmo impossível.

Junho de 2000
Homem aranha: Um “gene saltador” utilizado na engenharia genética
rompeu a barreira entre as espécies pelo menos sete vezes, inclusive
uma entre as moscas e os seres humanos. Se forem liberados organis-
mos modificados que contenham este gene promíscuo, corre-se o pe-
rigo de outros saltos inesperados27 (foi assegurado aos neozelandeses
que o gene não seria utilizado para desenvolver a cenoura transgênica).
“Seguras”... seja lá o que forem: O governo neozelandês admitiu
que em seu país há pelo menos 100 culturas geneticamente modifica-
das em ensaios de campo ilegais...28 Depois de revistar a metade dos
campos experimentais, o governo anunciou (assim como a Monsanto)
que tudo vai bem (e que nenhuma das experiências envolvia sariguéias
nem cenouras).

Julho de 2000
Não existe refúgio seguro: As plantações “refúgio” de milho conven-
cional, que os agricultores semearam perto dos campos com milho ge-
neticamente modificado, com o objetivo de diminuir a resistência destes
campos a uma toxina bacteriana, simplesmente fracassaram. Os inse-
tos vulneráveis das plantações “refúgio” recusaram-se a cruzar com os
insetos resistentes, provenientes dos campos geneticamente modifica-
154 Pat Roy Mooney

dos (no entanto, a sariguéia encontrou nos campos modificados um


lugar ideal para reproduzir-se).
Paixão perdida? No Reino Unido, um estudo em grande escala, sobre
campos semeados com sementes de colza para produção de óleo e
sobre seus parentes silvestres considerados “mato”, comprovou que é
possível que ocorram cruzamentos entre eles, e que característica como
a tolerância aos herbicidas, incorporada às sementes geneticamente
modificadas de colza se transferiram ao capim que queriam combater.29
A coisa continua louca: Autoridades do Reino Unido informaram so-
bre um novo caso de doença da vaca louca em uma ovelha nascida
depois do estabelecimento das mais severas restrições, em 1996.30 Os
governos e cientistas tornaram pública sua desconfiança em relação
aos cultivos geneticamente modificados quando não puderam controlar
a doença da vaca louca.

Agosto de 2000
E continua a loucura: Segundo um relatório do Reino Unido, durante
o ano 2000 aumentou significativamente o número de mortes em con-
seqüência da doença da vaca louca. Até agosto daquele ano já haviam
sido detectadas 15 mortes, em contraste com as 19 durante todo o ano
de 1999.31
O verdadeiro arroz dourado: Um estudo realizado por uma universi-
dade dos Estados Unidos, que compreende diversas variedades de ar-
roz, na China e nas Filipinas, mostrou que se forem cultivadas paralela-
mente diversas variedades de arroz, o rendimento aumenta 89%, en-
quanto que as doenças reduzem-se 98%. O estudo conclui que: a
diversidade ultrapassa amplamente o desempenho das variedades ge-
neticamente modificadas e homogêneas.32
Muda de ramo, borboleta! Pesquisadores do Estado de Iowa, nos
Estados Unidos, confirmaram os resultados de um controvertido estudo
feito em Cornell. Segundo este estudo, o milho geneticamente modifi-
cado é uma ameaça para determinada espécie de borboleta. A indústria
questionara os resultados do estudo feito em Cornell.33
Sariguéias etiquetadas? Devido à pressão pública, a Nova Zelândia
e a Austrália anunciaram que ambas exigirão que todo o material gene-
O Século 21 155

ticamente modificado seja etiquetado. Isto aproximou estes países da


Europa, deixando os Estados Unidos e o Canadá cada vez mais isola-
dos, uma vez que resistem a adotar essa política.34

Setembro de 2000
Corridas de “tacos”: Uma variedade de milho geneticamente modifi-
cado (Starlink), proibida para consumo humano, mas permitida como
forragem nos Estados Unidos, apareceu nas panquecas com que pre-
param comida rápida nos restaurantesTaco Bell. Esta situação fez com
que surgissem novas preocupações com relação à capacidade da in-
dústria e dos governos de controlar os produtos geneticamente modifi-
cados.
O velocino de ouro: No mês de maio, a tecnologia do arroz dourado,
propriedade do setor público, foi cedida à gigante AstraZeneca; dizia-se
que este arroz, modificado geneticamente para conter vitamina A, viola-
va 105 acordos de propriedade intelectual. No entanto, tratava-se de
uma informação falsa. Havia no máximo 11 patentes implicadas e, ao
que parece, os donos destas patentes estariam dispostos a cedê-las
caso fossem solicitadas.
“Segura”... não importa em que parte? Pesquisadores estaduni-
denses fizeram um alerta ante um possível vácuo nas normas para a
biossegurança de plantios geneticamente modificados. Consideraram
os casos do tomate e da batata, em que a regra de “equivalência subs-
tancial” só é válida para a parte comestível da planta, fazendo caso
omisso das mudanças que possam ocorrer nas raízes e folhas. Adverti-
ram que as alterações genéticas da parte não comestível poderiam re-
presentar riscos para o meio ambiente.35

Outubro de 2000
Hipodérmicas com a cara de Power Ranger: O escândalo da ca-
deia Taco Bell se estendeu aos corn flakes da Kellogs. Com efeito, a
gigante produtora do cereal fechou uma fábrica, com medo de que um
tipo de milho não permitido e geneticamente modificado (Starlink) tives-
se infectado os cereais produzidos. Devido ao pânico gerado, a Casa
Branca se apressou em enviar emissários ao Japão e à Europa, para
156 Pat Roy Mooney

tentar acalmar a preocupação de que o Starlink, da Aventis, tivesse


ingressado naqueles países. Entre os consumidores contava-se a piada
que a empresa teria que distribuir, dentro das caixas de cereais, serin-
gas para tratar os ataques alérgicos, em vez de bonecos dos Power
Rangers ou da Guerra das Galáxias, devido às possíveis reações das
crianças que os consumissem.36
Supercapim: Pesquisadores alemães informaram que uma beterraba
geneticamente modificada, projetada para resistir a um herbicida, ad-
quiriu por acidente resistência a um segundo herbicida. As normas de
biossegurança da União Européia não permitem a dupla resistência
porque esta aumenta as possibilidades de difusão dos genes no capim,
criando assim um supercapim.37
De lenta aprendizagem: A doença da vaca louca = crise alimentar,
que detonou a desconfiança quanto ao critério científico e à competên-
cia governamental para regulamentar, apareceu também na França,
quando veio a público a existência de novos casos de animais enfer-
mos.38
A política de patentes da sariguéia: Uma mudança de política que
permitiria que a maior rede de pesquisa agrícola do mundo, dedicada à
segurança alimentar do Terceiro Mundo, patenteasse genes e seqüên-
cias genéticas, foi rechaçada durante a reunião do Grupo Consultivo
sobre Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR), em Washington. Esta
mudança teria favorecido os plantios geneticamente modificados.39

Novembro de 2000
Monopolizar não é ético: A primeira reunião da mesa redonda sobre
ética (um grupo de respeitados agrônomos e especialistas em ética),
dependente da FAO, concluiu que os plantios geneticamente modifica-
dos são perigosos, que a tecnologia Terminator (de esterilização de se-
mentes) é imoral, e que a patente sobre genes e outros materiais gené-
ticos conduz à erosão genética dos plantios e a monopólios
incaceitáveis.40
O erro biotecnológico de um bilhão de dólares: Tendo-se compro-
vado que o escândalo do milho Starlink se estendera a centenas de
produtos alimentícios e empresas, a Aventis calculou que os custos de
O Século 21 157

reparação dos danos estariam próximos de um bilhão de dólares. Pos-


teriormente, o milho geneticamente modificado apareceu no Japão e na
Coréia do Sul...41

Dezembro de 2000
A Montpellier tenta resgatar a Monsanto: A “biocracia” mundial se
reuniu na França para debater a normatização da biossegurança e
resgatar a Monsanto. Nunca antes tantas pessoas se reuniram para
debater algo tão importante como a biossegurança, em benefício de
tão poucos! Basicamente, o mercado de sementes geneticamente
modificadas, com operações de 2,5 bilhões de dólares americanos,
envolve quatro grandes culturas industriais (soja, milho, algodão e colza-
canola), que crescem em 3 países (Estados Unidos, Argentina e Ca-
nadá possuem, no ano 2000, 98% da área total de culturas genetica-
mente modificadas). Em 1999, as sementes da Monsanto represen-
taram mais de 4/5 da área cultivada em todo o mundo, com produtos
geneticamente modificados.42 A demanda por sementes geneticamente
modificadas aumentou apenas 8%, o que significa uma brusca que-
da, depois de anos em que duplicou ou quadruplicou. Os analistas
prevêem que pelo menos até 2003 a demanda permanecerá igual ou
até menor. Em outras palavras, a reunião de Montpellier aconteceu
para resgatar de seu próprio engano a Monsanto, os Estados Unidos,
a Argentina e o Canadá!

Oxalá fosse isso mesmo! No entanto, trata-se de uma medida


tática para, a curto prazo, permitir à indústria uma “negativa
plausível” caso a primeira geração continue se autodestruindo.
Outros processos menos divulgados do mercado estadunidense
indicam uma direção muito diferente. Quase ao mesmo tempo
em que foi adotado o Protocolo de Biossegurança – talvez
pressentindo a vitória – a ADM (Archer Daniels Midland)
abandonou em silêncio seus planos de exigir a manipulação
separada dos grãos (transgênicos e não transgênicos) em seus silos,
elevadores e processadoras. Ao mesmo tempo, a DuPont fez um
158 Pat Roy Mooney

pacto com a General Mills (um dos maiores processadores de


alimentos dos Estados Unidos) para desenvolver “alimentos
funcionais”. “Alimentos funcionais” é o eufemismo mais recente
da indústria para designar as culturas transgênicas que
supostamente fornecerão os nutracêuticos da terceira geração.
Dias depois, a DuPont fez outro acordo com a Affymax,
subsidiária da Glaxo, para colaborar na descoberta de novos
compostos pesticidas. Esses acordos, poucos dias depois do
Protocolo, mostravam uma fé renovada na primeira geração.
Também depois do Protocolo, a Novartis anunciou um grande
contrato com a Quaker Oats, outro grande processador de
alimentos, para criar uma empresa conjunta na América do Norte
(incluindo o México), chamada Altus. A Altus também
desenvolverá “alimentos funcionais”. Ao registrar este acordo em
seu site na Internet, a Inverizon International Inc. comentou:
“Isso significa outro passo no caminho da fusão dos aspectos de
manutenção e saúde que estarão presentes nos alimentos do
futuro”.43

Genealogia da agrobiotecnologia
A primeira geração se refere a sistemas de controle de caracteres
relacionados a insumos, muito rentáveis para a indústria de sementes e de
agroquímicos. Trata-se de cultivos geneticamente manipulados para tolerar
herbicidas químicos ou para expressar genes inseticidas. O objetivo é modi-
ficar o uso dos insumos químicos aplicados aos cultivos e ampliar ou prolon-
gar as vendas de herbicidas e inseticidas das empresas.
A segunda geração se refere a sistemas de modificação de caracteres
do produto pós-colheita, orientados pelo interesse dos processadores de
alimentos. Isso implica na manipulação das plantas, a fim de reduzir a ener-
gia e os custos associados ao processamento, ao transporte e ao
armazenamento. Um exemplo clássico é o tomate de decomposição lenta
da Calgene, modificado para que dure mais, depois de colhido. A segunda
O Século 21 159

geração está apenas entrando no mercado, mas já se suspeita que sofre da


mesma falta de credibilidade a que sucumbiu a primeira geração.
A terceira geração é a próxima geração de produtos agrobiotecno-
lógicos, projetados para os distribuidores de alimentos e de remédios, in-
cluindo vacinas comestíveis, verduras anticâncer, grãos que reduzem o
colesterol, plantas enriquecidas com micronutrientes e cravos azuis. O des-
tino da agrobiotecnologia depende da aceitação da terceira geração pelos
consumidores.

Quem está no cume da cadeia da alimentação?


Que empresas predominarão? Há pelo menos quatro grandes
grupos na contenda; possivelmente, cinco. Se os processadores e
comerciantes varejistas (dois dos grupos) desfrutam de maiores
rendimentos, a Indústria da Vida tem lucros muito maiores e é
muito mais hábil no manejo de novas tecnologias. Existe, ade-
mais, uma grande possibilidade de que os processadores de ali-
mentos cometam o mesmo erro que as empresas da primeira
geração (que investiram nos caracteres dos insumos) e se lancem
alegremente a investimentos na segunda geração. Qualquer ten-
tativa de impor ao mercado produtos GM que reduzam os custos
de produção em vez de oferecer aos consumidores nutracêuticos
com valor agregado, pode facilmente fracassar e causar sérios
danos (políticos e financeiros) às empresas envolvidas. Se as em-
presas de insumos foram vítimas da primeira geração, e as que
estão comprometidas com o processamento de comestíveis vão a
nocaute pela segunda, é muito possível que varejistas de alimen-
tos, utilizando a vantagem da marca e sua íntima conexão com
os consumidores, busquem controlar toda a cadeia alimentar e
introduzir a terceira geração.
Claro que também os varejistas de alimentos estão se unindo.
Diz-se, por exemplo, que o gigantesco conglomerado holandês
Ahold está interessado em comprar até 10 cadeias de supermerca-
160 Pat Roy Mooney

dos, com um total de vendas de mais de 35 bilhões de dólares.


Três dessas cadeias estão na América do Norte, três na América
Latina e quatro na Europa.44 Como são as empresas mais próximas
dos consumidores, os varejistas poderão unificar a venda de
alimentos e de remédios, buscando apoderar-se dos sistemas de
agricultura e de saúde.
Ainda veremos se os processadores, comerciantes ou varejis-
tas têm a inteligência ou o dinheiro necessário para superar a
Indústria da Vida, com seu domínio tecnológico e seus imensos
recursos. O lucro dos principais processadores de alimentos do
mundo equivale apenas a cerca de 3% de sua receita. Os lucros
dos principais varejistas de alimentos, os supermercados, do
mundo equivalem a menos de 3% das vendas. No entanto, na
primeira metade do ano 2000 ocorreu uma erupção sem prece-
dentes de fusões na indústria tradicional de alimentos, evocando
fusões e aquisições na indústria dos insumos para produção de
alimentos há um quarto de século. Em um período de seis meses
houve combinações empresariais no valor de mais de 150 bi-
lhões de dólares, cifra superada unicamente pelos estúdios de
cinema e pela indústria de telecomunicações de alta tecnologia.45
Entre os maiores negócios, a Unilever engoliu a Bestfoods, a Ben
and Jerry”s e a Slimfoods por quase 24 bilhões de dólares, e a
Philip Morris se apropriou da Nabisco e de uma empresa de
hambúrgueres por mais de 15 bilhões de dólares. Em julho de
2000, a General Mills e a Pillsbury (até então subsidiária da
Diageo na Grã-Bretanha) começaram a negociar um acordo no
valor de 11 bilhões de dólares, visando unir as duas processa-
doras.46 Ninguém acredita que o festival de aquisições tenha ter-
minado e abundam os rumores de que Cadbury-Schweppes,
Hershey”s e outras empresas de doces também poderão ser assu-
midas por outras, maiores.
O Século 21 161

Poder global de mercado


Embora seja certo que a atual taxa de fusões ao longo da cadeia
alimentícia é algo sem precedentes, o processo de concentração
não é nada novo. Em 1980, o desafortunado Centro de Empresas
Transnacionais da ONU (UNCTC) publicou uma análise sem
igual das 180 empresas de alimentos e bebidas mais importantes
do mundo. O estudo identificou níveis assombrosamente altos de
concentração do mercado em determinados segmentos como
produtos lácteos, carne, frutas tropicais, cereais e bebidas tropicais.
Vinte anos depois, Hope Shand, da RAFI, está tentando fazer outro
estudo semelhante. No momento em que este texto é escrito, ele
ainda não terminara seu trabalho, mas os estudos iniciais parecem
indicar que apenas um terço daquelas 180 empresas originais
sobrevive hoje. Quase todas as empresas que desapareceram foram
absorvidas pelo terço sobrevivente. Hoje, as 5 maiores empresas
comercializadoras de cereais controlam mais de 75% do mercado
mundial de grãos,47 e há níveis de concentração semelhantes na
maioria dos produtos comercializados em nível internacional. De
acordo com um estudo recente, um punhado de transnacionais
controla cerca de 90% do comércio global de trigo, milho, café,
cacau e abacaxi; cerca de 80% do comércio de chá; 70% dos
mercados globais de banana e arroz, e mais de 60% do comércio
mundial de açúcar.48 Uma multinacional com sede no México
(Pulsar) domina 40% do mercado estadunidense e 25% do
comércio de sementes de vegetais em todo o mundo. Também
estão se desenvolvendo níveis impressionantes de concentração no
outro extremo da cadeia alimentar, o ramo de distribuidores de
comestíveis, tanto nos países da União Européia quanto nos países
do Sul. A metade da indústria nacional de verduras da Costa Rica
está em mãos de uma única empresa. Uma companhia controla
49% do mesmo mercado em Honduras. Cinco distribuidoras
162 Pat Roy Mooney

controlam 50% ou mais de todas as compras de alimentos na


França, Alemanha e Grã-Bretanha.49

Se, como diz uma canção, “os compradores e os vendedores são


os mesmos tios”, então a comida já “não será o que deveria ser”.

Seja quem for o vencedor, as implicações para agricultores e


consumidores continuam sendo as mesmas. A tendência, a mé-
dio prazo, é que as empresas se afastem da ênfase taticamente
estúpida que a biotecnologia põe nos caracteres relacionados aos
insumos para agregar peculiaridades aos produtos. O ritmo fe-
nomenal de fusões na indústria de sementes na agroquímica/
farmacêutica, como se disse, será seguido por um impulso seme-
lhante que vinculará os Gigantes Genéticos a transnacionais do
processamento, do comércio e (possivelmente) à venda varejista
de alimentos (Nestlé, Unilever, Philip Morris, Cargill e Safeway
ou J. Sainsbury). Os agricultores entrarão em uma era de
bioservidão, em que terão que alugar germoplasma das subsidiá-
rias genéticas dos processadores de alimentos. Esses processadores
serão, além disso, os únicos compradores dos produtos
transgênicos (os quais conterão as características exigidas pelo
processador). Companhias como a DuPont e a Archer-Daniels-
Midland já estão avançando nesta direção.50 Mas este livro ne-
cessariamente não situa os processadores no cume da cadeia ali-
mentar. A esta altura, a possibilidade da produção “orgânica”,
“sustentável”, ou “agroecológica” de alimentos passa para o mundo
mítico dos bons tempos idos e das lendas.

Seguros para a Indústria da Vida?


No reino das Indústrias da Vida tradicionais há um entrela-
çamento quase perfeito entre os interesses e as tecnologias agrícolas
O Século 21 163

e os produtos farmacêuticos. Haverá uma luta entre empresas de


alimentos e bebidas (os fabricantes de cerveja têm capacidade de
biofermentação ou produção agrícola industrializada em grande
escala) por um lado, e as empresas farmacêuticas do outro. Mas
também é possível que as Indústrias da Vida que gerarem o
genoma já tenham sido patenteadas.51

“Alimentos não funcionais?”


A mais longo prazo (2010-2020), no cenário industrial, ve-
remos a comercialização da nanotecnologia e seu encontro com
a biotecnologia. O matrimônio entre as microformas de ciências
biológicas e materiais oferecerá novas dimensões à “agricultura
de precisão” e à produção de alimentos. Este fenômeno é descri-
to com freqüência como transferência de tecnologia militar
(“transformar espadas em arados”), mas o mais provável é que
deixe os agricultores sem terra. As dimensões mais amplas da
união da biotecnologia e da nanotecnologia (binanos?)52 pode-
rão eliminar os agricultores e a agricultura tal como os conhece-
mos. Os teóricos da nanotecnologia dizem que, antes da metade
do século, estaremos construindo nossos alimentos átomo por
átomo, em um aparelho caseiro não muito diferente do atual
forno de microondas. Cozinhar átomo por átomo talvez não soe
exatamente como fast food, mas, como já dissemos, a auto-repro-
dução poderá nos situar diante de um Big Mac com suas batatas
fritas em um nanosegundo.
O Quadro 9, dos setores industriais relacionados com a agri-
cultura, deriva da lista das 500 (empresas) globais publicada pela
Fortune Magazine em meados de 2000. Este quadro apresenta as
principais indústrias biológicas/agrícolas, incluindo bebidas, ali-
mentos, lojas de alimentos e de produtos farmacêuticos, produ-
tos da selva e do papel, e também fumo. O quadro indica o nú-
164 Pat Roy Mooney

mero de empresas globais em cada ramo que forma parte das


500 globais da Fortune e oferece para cada ramo os dados básicos
de renda, lucros e empregos. Sob o “total” de cada ramo aparece
a empresa com maiores rendimentos que, com freqüência, é tam-
bém a que tem maiores lucros. Se não, menciona-se uma segun-
da empresa, que é a que tem maiores rendimentos. O objetivo
do quadro é dar uma idéia do tamanho e do poder dos principais
competidores na luta pela porção da economia que depende di-
retamente de recursos agrícolas e florestais.
QUADRO 9 – Alimento do futuro: a indústria dos
biomateriais no ano 2000.
O Século 21 165

Há 20 anos, Wes Jackson do Land Institute, de Nebraska,


recordou, brincando, que, na Europa, os servos usavam túnicas
com o escudo de seu senhor feudal. Hoje, os agricultores usam
bonés com o logotipo de seus amos empresariais. A mudança
não foi muito grande.
É muito conveniente que a aspirina venha sendo comercia-
lizada há 100 anos. A Novartis, que em 1999 era possivelmente
a mais poderosa Indústria da Vida, utiliza um parente próximo
deste medicamento para controlar caracteres em sua versão atual
da tecnologia Terminator. O que a Novartis faz é debilitar a ca-
pacidade normal de resistência da planta e fazer com que o culti-
vo dependa de um apoio químico externo. Se tudo isso faz você
sentir-se ligeiramente enfermo, tome duas daquelas que você sabe,
e chame o seu governo pela manhã!

Saúde futura: a indústria bioquímica

Dos remédios para “enfermos” aos produtos para “sadios”


A indústria farmacêutica é um dos setores mais rentáveis e de
crescimento mais rápido da economia mundial. Há poucas
décadas, as 20 maiores empresas farmacêuticas controlavam
apenas 5% do mercado mundial de remédios patenteados. Hoje,
as 10 maiores empresas têm 47% do mercado e espera-se que
nos próximos dois ou três anos esse mercado duplique seu atual
volume de vendas, que é de 297 bilhões de dólares.53 Como já se
disse, desde meados dos anos 90, a indústria sofreu fusões da
ordem de 400 bilhões de dólares, entre elas algumas das maiores
da história. Assim como no item anterior, sobre os alimentos, o
Quadro 10 mostra os diferentes ramos da indústria do setor saúde.
O quadro se limita às “500 Globais da Fortune”, ou seja, as 500
166 Pat Roy Mooney

QUADRO 10 – A saúde do futuro: a indústria


da bioquímica no ano 2000.

maiores empresas do mundo, e inclui os ramos farmacêutico, de


atendimento à saúde, sabões e cosméticos e produtos químicos.
Novamente, na primeira coluna aparece o nome de uma só
empresa, a que tem a maior renda e também os maiores lucros
nesse campo em todo o mundo. Quando aparecem duas
empresas, a primeira tem a maior renda e a segunda os maiores
lucros. A intenção é dar aos leitores uma idéia do tamanho e do
poder das empresas em questão.
No que se refere ao atendimento à saúde humana, a indústria
está atuando em várias frentes. Primeiro, está se integrando ver-
ticalmente, em companhias e outros serviços de “administração
O Século 21 167

de serviços médicos”. Segundo, está estendendo sua pesquisa aos


“medicamentos para pessoas sadias”. Terceiro, está ampliando o
alcance de seu mercado ao longo da vida, desde a fase embrioná-
ria até o túmulo, com o objetivo de dominar todas as etapas da
atividade humana.

Manipulações genéticas
A tendência à privatização do sistema de saúde deveria pro-
vocar alarme público. A Merck, por exemplo, comprou a Medco,
o maior fornecedor de remédios de venda com receita dos Esta-
dos Unidos. Em menos de um ano, o número de clientes da
Medco aumentara 14% e o número de receitas escritas da em-
presa crescera 30%. Podemos imaginar que proporção deste au-
mento se converteu em vendas da Merck.
As companhias farmacêuticas estão entrando também em
certos tipos de serviços clínicos associados a suas principais
tecnologias e medicamentos patenteados. Por exemplo, em 1997,
a Zeneca (agora Astra-Zeneca, depois de sua fusão com a sueca
Astra), segundo fabricante do mundo de drogas contra o câncer,
assumiu o controle de 11 centros de tratamento de câncer nos
Estados Unidos.54 E informa-se que outras indústrias farmacêu-
ticas estão seguindo seu exemplo.
Nesse processo, as companhias farmacêuticas e do sistema de
saúde dos Estados Unidos estão “espremendo” os idosos para
tirar-lhes tudo o que têm. Os preços dos 50 principais remédios
utilizados pelos idosos aumentaram em média 3,9% em 1999,
enquanto a inflação foi de apenas 2,2%.55 Os consumidores
estadunidenses viram duplicar seu gasto anual com remédios
vendidos com receita, desde 1995, de uma média de menos de
250 dólares por pessoa para quase 500 em 2000, e existem pro-
jeções de quase 700 dólares para 2002.56 Enquanto isso, as com-
168 Pat Roy Mooney

panhias que trabalham com planos de saúde, em um esforço para


reduzir seus custos, expulsaram de seus programas milhões de
aposentados pobres, numa medida política para obrigar a Casa
Branca a pagar-lhes mais pelo atendimento aos idosos.

Produtos farmacêuticos de “estilo de vida”


O segundo tipo de movimento da indústria bioquímica é o
projeto de remédios para pessoas que não precisam deles, que
estão essencialmente “bem”. Isso foi previsto pelo principal exe-
cutivo da Hoffman-La Roche desde meados dos anos 70, quan-
do observou que as pessoas sadias continuam trabalhando e não
morrem (com tanta facilidade) e, portanto, constituem um mer-
cado mais seguro para os pesquisadores de produtos farmacêuti-
cos e de suas aplicações em medicamentos. A partir desta obser-
vação, as empresas farmacêuticas inevitavelmente dirigiram sua
atenção para o que se chama de produtos de estilo de vida, não
exatamente remédios, mas, por exemplo, produtos que modifi-
cam o estado de ânimo ou reduzem a tensão; medicamentos para
as dietas relacionadas à diabete (preocupação muito séria e fre-
qüente); produtos farmacêuticos que melhoram o desempenho
(que facilitam – ou impedem – o sono, por exemplo), incluindo
o célebre Viagra; e produtos farmacêuticos para a população ge-
riátrica dos países industrializados, que cresce enormemente e
dispõe de grandes recursos econômicos.
Não é difícil afirmar que este enfoque nas pessoas sadias é
muito lucrativo. A criatividade mercadotécnica converte esses
produtos em “medicina preventiva” e permite às companhias far-
macêuticas apresentar dados que anunciam economias nos cus-
tos com saúde no futuro. Por exemplo, as pessoas têm de ganhar
a vida. Mantê-las em boa forma significa “proteger os membros
mais débeis (mais jovens ou mais velhos) da família”. Quando a
O Século 21 169

pesquisa se orienta para os “nutracêuticos” ou “agrocêuticos”,


tais como pastéis sem gordura ou hambúrgueres vegetarianos, é
difícil criticá-la, porque o público a quem se dirige consome es-
ses produtos porque quer, não porque deles necessite. Pela pri-
meira vez, em 1999, alguns agricultores plantaram milho e soja
com características que, teoricamente, poderiam melhorar a qua-
lidade dos alimentos para o consumidor. O mercado dos
nutracêuticos é quase ilimitado e as estimativas, a médio prazo,
são de modestos 29 bilhões de dólares: 10% do mercado farma-
cêutico global atualmente.
O lado obscuro dos produtos farmacêuticos para pessoas sa-
dias tem a ver com os interesses na guerra biológica e com o uso
da neurociência para estimular a HPE (Human Performance
Enhancement, ou Melhora do Desempenho Humano). Volta-
mos a Krishnamurti: aqueles que, como nós, caminham ao rit-
mo de tambores que não concordam com um mundo enlouque-
cido, estão tensos e com freqüência deprimidos. Mas a solução
não é drogar a pessoa, mas mudar a sociedade. As pessoas que
realizam trabalhos monótonos ou pouco saudáveis deveriam en-
contrar alívio na melhoria das condições de trabalho e não em
drogas que adormecem ou alteram a mente. No futuro, os traba-
lhadores pagarão a conta, mas os verdadeiros “clientes” das em-
presas farmacêuticas serão seus patrões, as empresas que buscam
(e insistem em encontrar) drogas que por um lado reduzam o
aborrecimento e a tensão e, por outro, aumentem a memória, a
vigília e a destreza dos empregados. Os remédios que mante-
nham os trabalhadores alertas e contentes, que melhorem seu
sentido da visão, da audição ou do olfato (ou os atenuem), que
melhorem a memória de curto prazo, todas têm alto potencial
comercial para os fabricantes. Em algumas áreas, as HPE pode-
rão representar uma alternativa para a custosa capacitação no
170 Pat Roy Mooney

local de trabalho. Os trabalhadores que quiserem progredir sen-


tir-se-ão pressionados a entrar em um regime de remédios com o
objetivo de passar em provas de qualificação para um trabalho
de dificuldade muito maior que o natural. Essa abordagem po-
derá permitir aos patrões deixar de lado as controvérsias relacio-
nadas com a discriminação genética, posto que os possíveis tra-
balhadores não apenas tomarão – e pagarão – voluntariamente
os remédios HPE, mas também proporcionarão seus dados pes-
soais aos médicos da empresa.

Do berço ao túmulo
A terceira área de expansão da indústria está mais relacionada
à seleção genética e à eugenesia. Já desde 1999, era possível dis-
tinguir uma corrente de patentes de genoma humano que come-
ça antes da concepção (patentes relacionadas com óvulos e
espermatozóides humanos), passa pelo cordão umbilical e pelas
patentes de células T, pelas patentes de genes de doenças, pelos
kits de diagnóstico de DNA e pela terapia genética. Há uma
série de empresas que já oferecem aos futuros pais a “oportuni-
dade” de armazenar criogenicamente células troncais do feto em
gestação, para que o futuro filho ou filha possa dispor de tecidos
e órgãos que seriam reconstruídos para serem usados durante a
vida. Há empresas farmacêuticas que se preparam para oferecer
aos pais a possibilidade de conhecer as principais propensões
genéticas e patológicas da criança por nascer e proporcionar à
família, desde o nascimento, um estudo do possível destino ge-
nético do filho. Com base nesse conhecimento, as empresas po-
derão proporcionar às famílias seu potencial para fabricar “dro-
gas de projetista”, derivadas da informação celular da criança,
que poderão ser manufaturadas em levedura, estômago de inse-
tos, trigo ou leite de vaca, como for necessário. Além disso, as
O Século 21 171

empresas oferecerão nutracêuticos e outros “medicamentos para


sadios”, feitos sob medida para cada indivíduo, a fim de apoiar a
HPE (desempenho humano) e contribuir para que a criança
“maximize seu potencial”. Este contrato, que vai “do berço ao
túmulo”, exigirá um pagamento inicial para coleta da linha celu-
lar, pagamentos anuais pelo armazenamento anual (da linha ce-
lular), pagamentos pela manutenção da saúde (renováveis em
intervalos diversos) e acertos financeiros especiais (incluindo
“bônus por descoberta”) para as drogas de projetista do tipo HPE
e também para doenças. Além de todos estes pagamentos pro-
gramados e especiais, as empresas reservar-se-ão o direito de uti-
lizar as linhas celulares armazenadas para outros fins de pesquisa
e terão direito de patentear qualquer coisa que descubram. Que-
rem ainda conservar o cadáver do indivíduo, pelo menos para
fazer sua autópsia, se é que não vão tirar-lhe órgãos e tecidos. E,
claro, se os pais não confiarem em que tudo isso dará a seus
descendentes longevidade, amor e emprego, sempre poderão
comprar uma apólice de seguro da companhia subsidiária da
mesma empresa farmacêutica.

Se seu médico for também seu corretor de seguros, a luta pela


privacidade genética vai parecer uma bobagem.

Esses processos podem estar mais próximos do que muitos


pensam. O hospital Mount Sinai, de Toronto, coletou com êxito
óvulos humanos conservados nos músculos traseiros de roedores.
Os cientistas prognosticam que em 2001 poderão oferecer esse
serviço de armazenamento de óvulos às mulheres que corram perigo
de ver seus ovários danificados durante algum tratamento médico.57
E, no outro extremo da vida, uma empresa funerária de Nagoyo,
Japão, está oferecendo aos familiares pesarosos um cartão de
172 Pat Roy Mooney

lembrança, com o DNA do morto. Por menos de 300 dólares, a


família pode obter um cartão que, como diz a empresa, poderá ser
utilizado para clonar o morto ou como prova judicial post-mortem
sobre a paternidade (ou não) do desaparecido.58 A Advanced Cell
Technology, uma empresa biotecnológica estadunidense, que está
trabalhando com as premissas da recente descoberta de que é
possível fazer com que células adultas “mudem de função” e
desenvolvam órgãos de reposição, propõe-se a enxertar DNA
humano em óvulos de bovinos. Depois, as células humanas serão
coletadas dos óvulos e manipuladas para desenvolver partes do
corpo. Assim será possível oferecer transplantes de órgãos às pessoas
– que serão “clones” delas mesmas, sendo tais órgãos totalmente
compatíveis com seu sistema imunológico.59 Em abril de 1999, 10
grandes empresas farmacêuticas uniram seus esforços para criar o
que o New Scientist chama de “a era da medicina personalizada”,
concordando em cooperar em um estudo sobre a variação genética
humana que poderia permitir às companhias fabricar produtos
farmacêuticos de projetista, vinculados à estrutura genética exata
de cada paciente.60

O debate sobre a rotulagem dos Organismos Geneticamente


Modificados poderá estar a ponto de dar uma volta
paradigmática. Talvez no futuro o que se tenha que garantir
seja a integridade genética das pessoas. Quem sabe se os que
tenham de usar rótulo sejam trabalhadores e consumidores,
em vez dos OMM (objetos materialmente modificados)?

Será prudente tudo isso? Uma vez mais é preciso ter presente
que os gigantes farmacêuticos são também os gigantes genéticos
da agricultura, os “gênios” que inventaram a primeira geração de
transgênicos. E são também as mesmas empresas, com a mesma
filosofia científica e lógica empresarial, que inventaram as indús-
O Século 21 173

trias químicas e plásticas dos anos 60. A “primeira geração” do de-


senvolvimento de terapia genética já apresenta problemas. Os
Estados Unidos autorizaram a experimentação com terapia gené-
tica em seres humanos há mais de 7 anos. Qualquer “evento adver-
so” deve ser informado a um comitê especial, estabelecido pelos
Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health,
NIH). Foi preciso que, no final de 1999, morresse um rapaz de 18
anos para que se soubesse que, nos 7 anos transcorridos, apenas 55
desses eventos adversos haviam sido registrados (39 em 691 ca-
sos).61 Não pode haver melhor prova de que não devemos confiar
nossas vidas a essa indústria.
Será a informação genética, em mãos das empresas, tratada
como confidencial? Ou os empregados terão de renunciar a seus
direitos frente aos patrões e aceitar o direito das companhias a
um novo tipo de “liberdade de informação”? Uma família que
compra os serviços do determinismo genético provavelmente
também se submeterá ao determinismo dos patrões, com a espe-
rança de garantir empregos para seus filhos. Essa erosão dos di-
reitos coletivos e a criação de direitos empresariais são algumas
das grandes tendências de nosso tempo.

Jogando lenha na fogueira? Algumas empresas de genoma hu-


mano sustentam que agora o envelhecimento e a morte não
são mais do que uma série de doenças que podem ser preveni-
das. Já não existe um ciclo de vida natural. Se esse ponto de
vista se tornar realidade, os que puderem pagar viverão muito
mais tempo e se descobrirá que a Bíblia estava equivocada: os
pobres não estarão entre eles!

Na realidade, estes prognósticos são tão lógicos, comercial e


cientificamente, que sua realização parece quase inevitável. O único
problema comercial que permanece é se nesse panorama os reis
174 Pat Roy Mooney

empresariais serão os Gigantes Genéticos ou as companhias de


seguros que poderão vir a comprá-los. Afinal: quem pode ganhar
mais com uma previsão exata da duração de sua vida?

Informação futura: a indústria do silicone

Da integração e do controle do “conteúdo” à integração e


ao controle do “canal”
Os fios que atam o sistema alimentar ao sistema de saúde são
fibras de DNA modificadas por tecnologias que entrelaçam o
mundo dos micróbios ao dos mamíferos. Os vínculos entre as
indústrias de telecomunicações e a mídia são faixas de electrons
que passam por chips de computadores, movem-se por cabos de
fibra ótica e ziguezagueiam entre satélites. Assim como, na ali-
mentação, as tecnologias dos insumos e dos produtos finais es-
tão se confundindo, na saúde os sadios se confundem com os
enfermos e na Nova Ordem da Informação também estão se fun-
dindo o canal (o hardware da comunicação) e o conteúdo (o
software da imagem, texto e áudio).
A Sony, o gigante japonês da eletrônica, é um bom exemplo.
Como disse The Economist, “pode haver sinergia entre fabricar
aparelhos de televisão e produzir as imagens que mostram”. Com
base nessa proposta, a Sony entrou no mercado dos meios de
comunicação, comprando estações de televisão, cadeias e insta-
lações de produção em todos os grandes mercados da Ásia, Amé-
rica Latina e, agora, da Europa. Para deleite da UNESCO (ex-
presso prematuramente) e de outros positivistas da mídia, a Sony
parece estar – pelo menos no começo – criando um nicho no
mercado não inglês. Por exemplo, em 1999, produziu 4.000 horas
de programas regionais em línguas diferentes do inglês, por meio
O Século 21 175

de todas as suas empresas de televisão. Até agora, a Sony não está


entre as empresas de informação mais importantes do mundo,
mas é uma das inovadoras mais observadas da indústria. Possui
24 canais em 62 países e está competindo com a rede de TV
comercial mais importante da Índia. Além disso, produz música
(é a número três no mundo) e filmes, além de possuir subsidiá-
rias que distribuem filmes na Índia e na América Latina.62

Plataforma transversal de fusões nos Estados Unidos: os


conteúdos
Este tipo de sinergia não deveria ser uma revelação para as
indústrias eletrônicas e de telecomunicações. Há 80 anos, a
Westinghouse, pioneira na então jovem indústria eletrônica, uniu-
se à AT&T, recém-chegada às telecomunicações, e à United Fruit,
para formar a RCA que, por sua vez, lançou a ABC, a primeira
rede transmissora dos Estados Unidos. Sete anos depois, a RCA
criou também o segundo gigante da transmissão dos Estados
Unidos, a NBC. No entanto, em 1932, o Departamento de Jus-
tiça obrigou-a a abrir mão das duas empresas. Para não ficar atrás,
em 1953, a ABC forjou uma das primeiras plataformas transver-
sais de fusões, com a Paramount Pictures. No entanto, durante a
era Reagan, mais permissiva (ou verdadeiramente promíscua), a
velha rival da Westinghouse em eletrônica, a General Electric,
comprou a ABC e, um ano depois, a NBC. A Westinghouse, por
sua vez, comprou a CBS (a única rede de televisão estadunidense
que chegou a possuir) em 1995. Naquele mesmo ano, a Disney
comprou a Capital Cities e, depois, se apropriou da tão discuti-
da rede ABC. Só faltava decidir o destino da CNN, a dissidente
dos meios de comunicação. O que foi considerado naquele mo-
mento como uma enorme fusão transversal ocorreu em 1998,
quando a Time Life (responsável pela maioria das revistas impor-
176 Pat Roy Mooney

tantes dos Estados Unidos, incluindo Time e Life e várias edito-


ras de livros) devorou a Warner Brothers (estúdios cinematográ-
ficos e empresas distribuidoras de filmes), para criar a Time
Warner. Em 1996, o monolito dos meios de comunicação agre-
gou a seus domínios a Turner Broadcasting e todo o império da
CNN a cabo.63 Este parecia ser o limite do crescimento para uma
empresa, até que a própria Time Warner, em 2000, foi seduzida
por um acordo ainda maior. Não percam o próximo capítulo.
Em março de 1999, a empresa que começou tudo isso, a
Westinghouse, vendeu seu vasto negócio de indústria de defesa e
poder nuclear e decidiu dedicar-se inteiramente à mídia e às co-
municações. Ao fazê-lo, abandonou o nome com que começou,
em 1896, e optou pelo nome que criara em 1919, CBS. O que
não durou muito. Em setembro de 1999, a Viacom, uma relíquia
que sobrara da aplicação da lei antimonopólio dos anos 70, voltou
a fundir-se com a nova CBS, em uma transação de valor próximo
a 36 bilhões de dólares, criando um novo gigante da informação.
Se 1999 foi um ano extraordinário para as fusões na mídia,
os primeiros dias de 2000 marcaram um novo recorde de con-
centração nos meios de comunicação. Em 10 de janeiro, a Time
Warner anunciou que concordara em fundir-se com uma em-
presa que ainda é demasiado jovem para andar sozinha. Por 156
bilhões de dólares, a América Online, nascida em 1985, como o
rebento esplendoroso do comércio eletrônico pela Internet, absor-
veu a Time Warner, nascida em 1923 – o que naquele momento
foi a maior fusão da história do mundo. O anúncio desencadeou
uma nova e inacreditável onda de fusões na indústria da infor-
mação.
A AOL Time Warner (como será conhecida a nova mons-
truosidade mediática), a General Elecric, a Viacom e a Disney
estão hoje entre as 10 empresas de informação mais poderosas
O Século 21 177

do mundo.Seu conteúdo se viabiliza a partir de seus jornais,


revistas e livros, até o rádio, a televisão e o cinema. Seus siste-
mas de canais vão desde cabos até satélites e Internet. Estão no
controle.
Entre outros jogadores importantes do lado do conteúdo se
destaca (além da incontrolável Sony) a News Corp, o império de
Rupert Murdock, que inclui a rede intercontinental Fox com
seus satélites Star (na Ásia), Sky (na América Latina) e BskyB (na
Europa). Também está entre eles a Bertelsmann AG, na Alema-
nha, que é hoje a maior editora do mundo de livros em inglês e
um dos quatro titãs da música. A essas empresas é preciso acres-
centar uma série de rivais novos e não tão novos no âmbito dos
canais. Os principais entre eles são a Microsoft, a AT&T, a
Vodaphone e outros demiurgos da Internet, como a Yahoo. O
Quadro 11 resume as posições ocupadas pelos principais mons-
tros dos meios de comunicação de massa.

Teatro do adquirido
A pressão para atravessar as plataformas de informação é tre-
menda. Em 1996, os membros do bloco não eram apenas as
principais redes de televisão e de rádio dos Estados Unidos. As
transações em todo o negócio dos meios de comunicação e da
telecomunicação chegaram a quase 140 bilhões de dólares. Em
1997 houve nos Estados Unidos 24 fusões, no valor de mais de
um bilhão de dólares cada uma. Entre os maiores acordos de
1997 ficou a compra pela Westinghouse (agora Viacom) da
American Radio Systems, por 2,6 bilhões de dólares.64 De fato, a
Viacom entrou num frenesi de compras e agora é dona da
Paramount Pictures, da Blockbuster Vídeo e de redes a cabo que
incluem a MTV, a ShowTime e a Nickelodeon.65
178 Pat Roy Mooney

QUADRO 11 – Impérios da mente

* O nível de sua fortuna e seus rendimentos, em todo caso, está significativamente desatualizado e
subestimado devido às fusões ocorridas em 1999 e 2000.
Nota: os nomes das empresas constam apenas como exemplo.
Fontes: Numerosos documentos incluindo “How AOL Time Warner deal may affect other players”, in Wall
Street Journal, 11 de janeiro de 2000, p. B12.

Chaves históricas: Você diz “banana” e eu digo “binano”


Naquela época tínhamos tratados com quase todos os demais
países, salvo a Bélgica e essa república bananeira, a Anchúria.
O.Henry, Cabbages and Kings (c.1899)
Foi há cerca de 100 anos (depois de 1896, mas antes de 1904) que
William Sydney Porter (O.Henry), escritor famoso e infame estafador, cunhou
a frase “república bananeira”, ao escrever sobre a vida em Honduras. Des-
creveu o país como um governo criado pela United Fruit Company, cujo
único propósito era manter um ambiente empresarial cômodo para a expor-
tação de bananas. Foi a United Fruit Company que se uniu à Westinghouse
e à AT&T para criar o primeiro império de mídia eletrônica do mundo. O que
O Século 21 179

O. Henry disse de Honduras e da United Fruit Company há um século po-


deria ser dito agora sobre todos os países da nova República do Binano que
vem por aí.

O que está ocorrendo nas telas de televisão já ocorreu nas


salas de cinema. Em 1998, calculava-se que cinco empresas con-
trolavam 40% das salas de cinema do mundo. No total, o valor
de todas as fusões em rádio e televisão em 1999 foi de 245 bi-
lhões de dólares.66 Só na indústria cinematográfica as fusões rea-
lizadas na primeira metade de 2000 chegaram muito perto dos
200 milhões (sic – bilhões?) de dólares.67

Não muita música


A enormidade da fusão AOL Time Warner quase conseguiu
fazer passar desapercebida outra integração que ocorreu em ja-
neiro de 2000. A Warner Music e a seção de discos da EMI se
uniram sob a bandeira da AOL Time Warner para assumir o
comando de 27,5% da indústria global de gravações. O que fez
com que o controle da indústria ficasse em mãos de quatro em-
presas, que dominam 78% do mercado. Recentemente, a em-
presa francesa Vivendi (que começou sendo uma companhia de
serviços de água) comprou todos os negócios de lazer da Seagram”s
(Universal Studios, incluindo filmes, televisão e música), o que a
situou entre as quatro maiores. Depois vêm a Sony e a
Bertelsmann (BMG). É possível que agora as outras três estejam
buscando novas aquisições a fim de enfrentar o potencial de dis-
tribuição da Warner Music na Internet.68 O Gráfico 9 mostra
como está repartido hoje o bolo musical.

Como se pode marchar ao ritmo de um tambor diferente se


todos os bateiristas foram contratados pela Warner Music?
180 Pat Roy Mooney

GRÁFICO 9 – O mercado global da música

Fonte: “The Record industry takes fright”, in The Economist, 30 de janeiro de 2000.

Notícias com jingle?


Se no campo do lazer a concentração é impressionante, no
campo das notícias eletrônicas o oligopólio parece ser quase ab-
soluto. Não nos surpreende que quase todas as empresas que
dominam o entretenimento são as mesmas que dominam as
notícias que vemos na televisão, ouvimos pelo rádio ou lemos
em revistas e jornais. A única surpresa é que as notícias são con-
troladas mais de Londres do que de Hollywood, e que as empre-
sas dominantes parecem não ter plena consciência de seu pró-
prio e recente poder. Segundo o analista estadunidense de mídia,
Christopher Paterson, “a Disney ainda está por descobrir que é
dona do segundo maior provedor internacional de notícias pela
televisão”.
As notícias do mundo inteiro são determinadas por um pu-
nhado de atacadistas e varejistas da televisão. A maior dos ataca-
distas, a Reuters, tem 70 agências de notícias com 260 clientes
que as transmitem em 85 países. Em 1992, a Reuters fundiu sua
agência com a Visnews e com alguns serviços noticiosos britâni-
O Século 21 181

cos e, agora, fornece a maior parte das notícias internacionais


filmadas para a NBC e a CBS nos Estados Unidos, assim como
para a ITN e a cadeia Fox, da News Corp. A ABC, da Disney,
obtém a maior parte de suas notícias internacionais da subsidiá-
ria que parcialmente lhe pertence, a WTN (Worldwide Television
News, resultado da união, em 1985, da UPI e de velhas empre-
sas de filmagem de notícias da Europa e da América do Norte).
O terceiro maior atacadista do mundo foi criado pela Associated
Press, em 1994: é a APTV, que atende boa parte das necessida-
des globais da BBC. Além de tudo isso, a CNN, da AOL Time
Warner, fornece a maior parte de seus próprios serviços a ataca-
distas. A maioria dos varejistas de notícias europeus recebe suas
imagens internacionais por meio da Eurovisão que, por sua vez,
depende muito da WTN (pertencente, em parte, à Disney).
A cobertura de notícias internacionais no mundo que não
fala inglês é controlada de forma igualmente fechada. A rede
alemã VOX, por exemplo, é propriedade da News Corp e recebe
suas imagens internacionais da Reuters, assim como sua concor-
rente alemã N-TV, propriedade da AOL Time Warner. ATF e o
Canal Um da França têm um novo vínculo com a ABC (Disney)
e obtêm suas imagens de notícias internacionais da Reuters.69
O controle que as grandes agências de notícias exercem sobre
o Sul é particularmente inquietante, em vista dos grandes esforços
feitos nos anos 80 para criar agências de notícias favoráveis ao Sul.
Um estudo feito em 1998 por Mohammed Musa revelou que a
NAN, Agência de Notícias da Nigéria, obtinha mais de 37% de
suas notícias estrangeiras da APU, da UPI e da Reuters; e só a
Reuters era responsável por mais de um terço do total de notícias
internacionais. Além disso, a Reuters também dirigia 90% das
notícias estrangeiras distribuídas pela Caribbean News Agency
(CANA).70 Na Ásia, a maior empresa dos meios de comunicação é
182 Pat Roy Mooney

a News Corp,71 e há consenso de que a Sony domina as telas de


televisão na América Latina. Isso não é pluralismo.

Pluralismo privado
Tão irritante quanto tudo o mais é a homogeneização maciça
e a monopolização global dos instrumentos de informação, que
está ocorrendo sob a bandeira do pluralismo dos meios de co-
municação e da democratização da informação. Até a década de
1990, as empresas que agora se fundem sob a pressão da
globalização e da privatização, e atravessando fronteiras nacio-
nais, eram (na maioria dos casos) redes de telefone, de rádio ou
de televisão financiadas ou administradas pelo Estado. O nítido
resultado dessa liberalização comercial foi a apropriação barata,
por monolitos multimídia transnacionais, de meios de comuni-
cação de tendência nacionalista e culturalmente sensíveis. En-
quanto em outros tempos, na Europa Ocidental, por exemplo,
havia dezenas de fontes de transmissão pública (notoriamente
independentes), agora a tendência é sua absorção por um peque-
no grupo de empresas globais mundiais. Isto está muito longe
do pluralismo, ou da Nova Ordem Mundial da Informação e da
Comunicação do começo dos anos 80, ou ainda da Nova (e per-
missiva) Estratégia de Comunicações da UNESCO, criada mais
recentemente.72

Fusões dos “canais”

Telecomunicações
A maioria das pressões em favor das fusões na indústria da
informação teve origem do lado dos canais, ainda que a
transformação ocorrida do lado dos conteúdos tenha sido muito
O Século 21 183

importante. Desde 1996, houve, na indústria global, fusões no


valor de mais de um bilhão (sic – trilhão?) de dólares, e mais da
metade desta soma (569 bilhões) corresponde apenas a 1999.
As companhias de telefones (fixo e móvel) e de hardware por
satélite, junto com gigantes do software, como a Microsoft,
estão construindo pontes entre elas e em direção às companhias
que dominam os conteúdos. Em 1999, a AT&T comprou a
Media One73 por 68 bilhões de dólares e depois se apropriou
de Telecommunications Inc., por outros 37 bilhões. Na
seqüência, a Seagram, do Canadá, comprou a Polygram da
Philips Electronics por 10,4 bilhões de dólares. Somada à
Universal Music Group da Seagram, esta fusão converteu a
outrora humilde e, por um momento, independente empresa
em um titã do negócio da música.74 Depois, em meados de
2000, a Vivendi adquiriu os negócios de entretenimento da
Seagram, em seu caminho para tornar-se um poderoso gigante
dos meios de comunicação, depois de ser durante décadas uma
das empresas de serviços de água menos interessante da França.75
A British Telecom fracassou em sua tentativa de comprar a MCI,
dos Estados Unidos, mas a Vodaphone, da Grã-Bretanha,
comprou a AirTouch, num negócio de 62 bilhões de dólares.76
Quase sem respirar, a Vodaphone AirTouch apoderou-se, nos
primeiros dias do ano 2000, da Manesmann, da Alemanha,
para formar a maior empresa de comunicações do mundo, na
maior fusão de toda a história (182 bilhões de dólares).
As aquisições da Vodaphone e da AT&T eclipsaram outras
negociações recentes, como a planejada em 1999 pela Global
Crossing – companhia de telecomunicações com sede nas Ber-
mudas, que tem a única (até agora) rede submarina de fibra ótica
transatlântica. Esta empresa pagou 11,2 bilhões de dólares pelo
operador de telefone de longa distância Frontier e depois outros
184 Pat Roy Mooney

800 milhões de dólares pelo negócio de cabos submarinos da


venerável Cable and Wireless, da Grã-Bretanha. Em maio, a
USWest (uma “babybell” com base em Denver) concordou em
fundir-se com a Global Crossing com o nome da firma das Ber-
mudas.77 Um mês depois, a Qwest Communications fez uma
oferta pelo conjunto todo.78 Também na primavera de 1999, a
Deutsche Telekom (a maior companhia telefônica da Alemanha)
e a Telecom Itália (sua homóloga italiana) decidiram fundir-se.
A Deutsche Telekom é parte de uma empresa mista, chamada
Global One, com a France Telecom e a Sprint. A Global One
controla companhias de telefone na Itália e na Europa Oriental.
Além disso, a Global One compete com a AT&T e a British
Telecom que, juntas, adquiriram 15% da Japão Telecom e tam-
bém têm aspirações globais. Em terceiro lugar – depois das ten-
tativas da Vodaphone e da união da AOL à Time Warner – mas
também na categoria das fusões mundiais, situa-se a megafusão,
em 1999, da Sprint com a MCI Worldcom, num montante esti-
mado de 126 bilhões de dólares. Os efeitos secundários, ramifi-
cações e manobras semelhantes, buscando imitar os efeitos dos
acoplamentos corporativos, dominarão as telecomunicações nos
próximos anos.79
No fim de 1999 e nos primeiros dias de 2000, era impossível
acompanhar as fusões reais e potenciais dessa indústria. Não se
passava um dia sem que houvesse notas nos jornais sobre gran-
des fusões ou aquisições. Existia também a possibilidade de que
alguma autoridade proibisse algumas dessas associações. Em no-
vembro, quando um tribunal estadunidense a acusou de mono-
pólio, a Microsoft parecia estar a ponto de desmembrar-se (em
“baby bills”, disse o Wall Street Journal, referindo-se a seu dono,
Bill Gates). No fundo, estamos presenciando uma transforma-
ção em massa.
O Século 21 185

Monopolizando o meio e a mensagem


Por que acontece tudo isso? Porque nós (os que vivemos na
parte rica do mundo) nos dirigimos a toda velocidade para as
comunicações de tela única. Muito em breve os jornais não
serão impressos nem distribuídos: aparecerão em uma tela sem
fios, da grossura de um papel, podendo ser transportada, do-
brada e lida em um ônibus. Do mesmo modo os livros e as
revistas poderão ser baixados da Internet para serem lidos onde
se desejar. A música, incluindo as novas gravações, os filmes, as
telenovelas e o prognóstico do tempo também estarão acessí-
veis na tela única (talvez conectada ao estéreo doméstico ou a
uma tela familiar ainda maior). Não haverá custos insuportá-
veis de produção, distribuição ou venda no varejo para os de-
tentores da propriedade intelectual. Os consumidores pagarão
por canal, filme ou assinatura. As funções do telefone (e da
televisão), do correio eletrônico e da Internet também serão
realizadas em uma única tela, assim como uma grande varieda-
de de comércio eletrônico, incluindo bancos e pagamentos. Não
se trata de um distante “paraíso”: é algo que está no futuro
imediato – e a indústria da informação está em guerra pelo
controle da tela.
Atuam nisso, várias forças financeiras e políticas, muito gran-
des. Em 1995 – e o ritmo das fusões se acelerou muito desde
então – as 20 primeiras companhias de informação / comuni-
cação tinham rendimentos anuais maiores que o PIB da Grã-
Bretanha (um bilhão (sic – trilhão?) de dólares).80 No mundo
comercial real já não é possível segmentar a constelação de
tecnologias novas que criam e transmitem informação. Está sur-
gindo uma sinergia evidente entre as empresas que produzem
semicondutores (ou “chips”), as que desenvolvem software, ins-
talam cabos de fibra ótica e torres de telefone móvel, e quem
186 Pat Roy Mooney

cria entretenimento multimídia ou diz que dá notícias. “O meio


é a mensagem”. Em poucos anos, os consumidores de classe
média dos países industrializados receberão toda a sua infor-
mação e seu lazer – e realizarão suas próprias comunicações –
por meio de um único sistema. Tal sistema será controlado por
um oligopólio.
A convergência está clara para todos. O montante total das
fusões no ramo das telecomunicações da indústria da informa-
ção era de cerca de 6,8 bilhões de dólares, quando a direção da
RAFI considerou pela primeira vez o século ETC, em 1988. Em
1988, as fusões na indústria chegaram a um total de quase 266
bilhões de dólares. Em 1988, as fusões no ramo de computado-
res alcançaram a impressionante soma de 21,4 bilhões de dóla-
res.81 Essa tendência deve continuar, até que exista apenas uma
indústria da informação estreitamente interligada. Quando está-
vamos preparando este documento para publicação, a Deutsche
Telekom fez uma oferta para comprar a Qwest e havia boatos de
que a Microsoft e a AT&T poderiam vir a fundir-se. Seguindo o
modelo da AOL Time Warner, também havia rumores de que a
Disney tentaria unir-se à Yahoo!, ou a algum outro dos princi-
pais portais da Internet.
Nada disso é realmente uma novidade. A imprensa científica
e popular está cheia de artigos sobre a unificação das novas
tecnologias das comunicações. A imprensa financeira está cheia
de informação sobre as fusões na indústria. Como já se disse, a
Telecom e outras empresas de equipamentos de comunicação
totalizaram quase 300 bilhões de dólares nos primeiros seis me-
ses de 2000.82 No entanto, quase não há informação sobre como
as tecnologias e as companhias (as “T” e as “C”) se relacionam
entre si, ou com nossa democracia em rápido processo de erosão
(a “E”).
O Século 21 187

Matéria do futuro: a indústria de macromateriais

Do “material” ao “imaterial”
Em 1972, o Clube de Roma publicou Os limites do cresci-
mento, que marcou um tento na avaliação (com ajuda dos com-
putadores!) da existência finita de matérias-primas no mundo.
De acordo com o informe, em 1975, as conseqüências combina-
das do crescimento da população, da degradação ambiental, da
escassez de alimentos e do desaparecimento de recursos não
renováveis de energia e metais levariam ao colapso, a menos que
medidas fossem tomadas imediatamente. Um quarto de século
depois de expirado o prazo, o mundo ainda está muito longe de
tomar medidas políticas, conforme recomendado pelo Clube de
Roma. Também parece ter-se complicado nossa relação com os
recursos renováveis e não renováveis. A RAFI – e muitas outras
organizações da sociedade civil – pensam que, embora os pressu-
postos básicos da análise do Clube estejam corretos, se a
nanotecnologia for comercializada com êxito, é possível que seja
preciso rever as previsões.
Embora esta possa ser uma boa notícia para os que dominam
o PIB planetário, poderá ser uma má notícia para as empresas de
energia e mineração, a menos que elas próprias consigam con-
trolar as novas tecnologias. A nanotecnologia poderá marcar o
fim da era de milhares de anos de escavações na terra e dos terrí-
veis riscos que correm os mineiros para trazer-nos pedras precio-
sas e metais. Da agilidade e da energia das empresas dependerá
que isso represente o fim das companhias mineradoras ou que
estas passem a ocupar um lugar central na nova economia.
Uma razão que deteve o colapso prognosticado pelo Clube
é que, há três décadas, a pesquisa científica dos materiais e da
biomimética modificou radicalmente a demanda mundial de
188 Pat Roy Mooney

metais básicos. A ciência dos materiais criou uma demanda de


metais especiais, desconhecidos antes do Sputnik e dos aviões a
jato. A indústria de mineração, talvez lentamente, adaptou-se:
enquanto antes havia companhias mineradoras de ouro,
estanho, níquel e ferro, agora existe um único setor de “matérias-
primas” não combustíveis (diferentes do carvão, do urânio, do
petróleo e do gás). Este processo levou ao tipo de concentração
empresarial que vimos entre as indústrias de sementes e de
produtos químicos. Hoje, as dez principais companhias de
matérias-primas possuem quase um terço da indústria global
de minérios não combustíveis. Em 1998, a indústria sofreu
fusões e aquisições no valor de 25 bilhões de dólares e existem
em todo o mundo previsões de que ocorrerão mais fusões. De
fato, em 1999, o principal fabricante de alumínio do Canadá,
a Alcan, propôs uma fusão com seus principais competidores
europeus e a Alcoa, dos Estados Unidos, respondeu com outra
proposta de fusão com a Reynolds Aluminum. Se forem
permitidas estas duas combinações, as cinco maiores empresas
de produção de alumínio reduzir-se-ão a duas. Não há dúvida
de que o entusiasmo pela “globalização” impulsionou o ritmo
das fusões. No entanto, os analistas da indústria mencionam
também, como motivo das fusões, a pressão para que se
destinem volumosos recursos financeiros à pesquisa. Uma
indústria, desacostumada a gastar quantias importantes na
pesquisa, vê-se obrigada a fazer grandes investimentos para
cumprir as normas ambientais, beneficiar-se das oportunidades
de cortar custos que a biorreciclagem oferece (por exemplo,
refinação de rochas já extraídas) e para produzir as novas ligas
de que as indústrias aeroespacial e microeletrônica necessitam.
As fusões chegaram também às famosas Sete Irmãs petrolífe-
ras. Só permanecem quatro; as outras três se mudaram para a
O Século 21 189

casa de suas irmãs mais poderosas. Como sempre, mais mudan-


ças são anunciadas.
A linha de fogo nesta batalha está entre os fornecedores de
matérias-primas (de novo, empresas de insumos) e os fornecedo-
res de produtos finais para consumo (empresas de produtos).
Será a General Electric, a General Motors, a Exxon ou a Anglo-
american? O Quadro 12 mostra os principais grupos que parti-
cipam do patenteamento de tecnologias relacionadas com as
nanotécnicas. Os nano-oportunistas vêm de todos os rincões da
indústria. Neste momento, é impossível prever o resultado.
Quem ganha e quem perde no mundo empresarial é algo
que só interessa aos acionistas. O destino das minas, dos minei-
ros e dos países do mundo que dependem deles é outra história.
Desde a bauxita da Jamaica ao cobre do Peru, ao estanho da
Bolívia e ao níquel da Indonésia, milhões de pessoas dependem
da extração de matérias-primas não renováveis para sobreviver.
O Quadro 13 mostra as principais empresas de mineração tradi-
cional em 1998.

Estamos vivendo há tanto tempo de acordo com os pressupos-


tos de Os limites do crescimento, que é difícil contemplar outras
possibilidades. Se a nanotecnologia funcionar, poderemos con-
solar-nos pensando que não é que tenhamos estado realmente
equivocados todo esse tempo, e sim que Os limites do cresci-
mento foram adiados por vários milhões de anos.

Uma mudança gradual é controlável. Uma mudança súbita


significa a ruína. O Quadro 14, tomado do estudo original Os
limites do crescimento, mais que estabelecer os limites dos recur-
sos não renováveis, descreve com muita precisão os limites da
sobrevivência dos países que podem sair perdendo se as novas
tecnologias tiverem êxito.
190 Pat Roy Mooney

QUADRO 12 – Nanooportunistas: exemplos das principais instituições que


patentearam tecnologias relacionadas com as nanotecnologias
O Século 21 191

QUADRO 13 – Às vésperas da nanotecnologia: os 10 maiores


fornecedores de matérias-primas não combustíveis

A futura República do Binano

Quando “bio” e “nano” convergem


É possível que as gerações futuras vejam os séculos XIX e XX,
ou o breve período compreendido entre as sublevações da época
pós-napoleônica e o ascenso da “globalização”, no último quartel
do século XX (período de notável experimentação em democracia
popular), como algo mais do que uma luta de classes enquanto o
poder transitava dos senhores feudais aos barões industriais.
Afinal, nas sociedades sedentárias, a democracia foi a exceção,
não a regra.
As muitas tecnologias novas que vislumbramos claramente
no horizonte nos conduzem muito além da monopolização dos
192 Pat Roy Mooney

QUADRO 14 – Os limites do crescimento ou os limites da sobrevivência?

sistemas de alimentação e de saúde: indicam o controle de uma


nova sociedade global. Tal controle assume três formas.
Primeiro, as tecnologias na informática, reforçadas pela
robótica, pelos sensores, pelas tecnologias aero-espaciais e a
miniaturização destas por meio da nanotecnologia, tornam pos-
sível monitorar e controlar a dissidência e impor um Estado
policial.
Segundo, a biotecnologia, junto com o trabalho das
neurociências, está tornando possível o controle do comporta-
O Século 21 193

mento humano. Os chamados HPE, que podem intensificar ou


atenuar as respostas e funções cerebrais humanas – e a manipula-
ção médica dos empregados – poderão chegar a ser um pré-re-
quisito “voluntário” para o emprego – e a sobrevivência – no
novo mundo que nos espera.
Terceiro, a futura fusão dos “micros” – microbiologia e
nanotecnologia – expõe uma transformação dos agentes de
produção incerta e sem precedentes. O futuro mundo “biônico”
abrigará híbridos de materiais vivos e inanimados entrelaçados.
Como as próprias biotecnologias vinculam agora a produção
de culturas alimentícias ao cuidado de humanos e animais,
estamos presenciando a fusão dos ramos da Indústria da Vida
em um oligopólio muito poderoso. Pelas mesmas razões é
possível que vejamos a fusão da Indústria da Vida com indústrias
manufatureiras tradicionais. O resultado será um mundo em
que os sistemas de produção e de distribuição cheguem a estar
dominados por um oligopólio ainda mais poderoso. Em um
mundo como esse, as instituições “estatais” – as chamadas
instituições democráticas – estarão a serviço do oligopólio. O
governo existirá para manter a aparência de democracia e
também para arrecadar impostos a fim de manter uma rede de
segurança social rudimentar (para impedir níveis inaceitáveis
de perturbação do comércio) e impor os desejos do oligopólio
por meio de força policial. Robert Kaplan, da revista Atlantic
Monthly, fala do “momento democrático” e sustenta que o
mundo verá o surgimento de estados híbridos: estados
aparentemente democráticos a serviço de elites militares ou
empresariais. Kaplan supõe que esses estados serão mais comuns
no Sul e na ex-URSS,83 mas considerando os fatores ETC, é
igualmente provável que a tendência se repita nos países da
União Européia.
194 Pat Roy Mooney

A nanotecnologia prestar-se-á a usos mais sutis do que as ar-


mas nucleares. Uma bomba só pode destruir coisas, mas as
nanomáquinas podem ser utilizadas para infiltrar, tomar, tro-
car e governar (o sublinhado não é do original) territórios. Nem
sequer a polícia mais desapiedada pode usar armas nucleares,
mas pode, sim, utilizar aparelhinhos para grampear telefones,
intervir em assuntos de drogas, assassinatos etc.
- C. Shipbaugh, 1991 (cit. pela SAIC)

O grande GATTman dos oligopólios galopantes!


Que oligopólio ganhará a corrida pelo domínio da Econo-
mia Atômica? Há talvez demasiadas variáveis para poder fazer
uma predição inteligente. Se utilizarmos como guia a lista das
500 empresas globais da Fortune, o setor que aparece como mais
forte é o financeiro (bancos e seguros), com seus 3,2 trilhões de
dólares de rendimentos em 1999 (em conjunto, as 500 da Fortune
obtiveram 12,7 trilhões). Além disso, o setor de bancos e seguros
teve em conjunto lucros de pouco mais de 201 milhões (sic –
bilhões?) de dólares, equivalentes a 6,2% de seus rendimentos.
(Mais claramente: em 1999, o setor financeiro recebeu cerca de
um quarto da renda total das 500 e quase 40% de seus lucros).
O setor financeiro tem o dinheiro em espécie e o setor de seguros
entraria com o incentivo. Parece pouco provável que os tradicio-
nais guardiões da concorrência e os monopólios permitam que a
indústria avance nessa direção em circunstâncias normais. No
entanto, atualmente, essa força tão poderosa poderia derrotar
qualquer autoridade normatizadora. Esse problema poderá fazer
com que as finanças decolem mais lentamente e não sejam capa-
zes de igualar o acervo científico de outros grupos.
Se a rentabilidade determina a vitória (como porcentagem
dos rendimentos), a indústria da informática (baseada no silício)
tem uma ligeira vantagem, de 6,4% sobre as finanças. No entanto,
O Século 21 195

os rendimentos do grupo são menores. A informática (incluindo


computadores, telecomunicações e entretenimento) obteve pouco
menos de 2 bilhões (sic – trilhões?) de dólares de rendimentos e
126 bilhões de dólares de lucro. Diferentemente do setor
financeiro, este é um grupo estimulado pela tecnologia, que
investe seriamente em ciência e pesquisa, e entende delas.
O setor de alimentação e agricultura (biomateriais, incluindo
alimentos e produtos silvícolas da produção vendidos no varejo)
tem o 6o lugar no que se refere aos rendimentos, com recuperações
de mais de 1 bilhão de dólares, mas com lucros que são uma
pequena fração dos obtidos pelo setor financeiro ou da informática:
este lucro é da ordem de 44,1 milhões de dólares, humildes 4,1%
de seus rendimentos. A indústria bioquímica (saúde e produtos
químicos, a indústria “irmã” da agricultura) se sai melhor. O setor
inclui produtos farmacêuticos, produtos de higiene pessoal, de
cuidados com a saúde e produtos químicos industriais e, com
rendimentos de apenas 653 bilhões de dólares, consegue obter um
lucro de 60 bilhões – 9,2% da renda – a proporção mais alta de
todos os setores. No entanto, o conjunto dos dois setores industriais,
baseados na biotecnologia, exerce um poder significativamente
maior. E cada vez mais se convertem em um só!

O que deve nos preocupar no futuro não são as Empresas


Multinacionais, mas as Empresas Multisetoriais. Se as
supertecnologias governam todo o cenário e as Empresas
Multisetoriais escrevem o roteiro, como podem manter a pers-
pectiva as organizações da sociedade civil, definidas de manei-
ra limitada com relação ao “meio ambiente”, à “saúde”, ou à
“agricultura”? Se não houver alguém que compreenda o pano-
rama total, o desempenho geral, os programas e as políticas
das organizações sempre estarão defasados e poderão vir a ser
contraproducentes.
196 Pat Roy Mooney

A nanotecnologia e seus sócios poderão afetar negativamente


outros três setores industriais, caso não tentem controlar estas
tecnologias em benefício próprio. Trata-se dos setores de trans-
porte, macro-materiais (incluindo mineração, construção e in-
dústria pesada) e combustão (energia), que tendem a obter taxas
de lucro mais baixas (e, portanto, finanças menos flexíveis). Pelo
menos a combustão e o transporte se beneficiam com a pesquisa
em alta tecnologia. O único setor que poderia estar fora da cor-
rida é o de serviços, formado por empresas atacadistas e varejistas
não associadas diretamente aos demais setores.
Mas nem mesmo estas previsões são seguras. No campo da
produção, estão ocorrendo convergências que sugerem a con-
centração do mercado em mãos de um grande fabricante e de
um grande distribuidor. Se continuarem as convergências, sua
união seria inevitável. Muito depende da medida em que a
nanotecnologia invada a manufatura – e da velocidade com que
o faça. “O Wal Mart não é necessário se muros não forem neces-
sários” (Jogo de palavras em inglês: There is no need for Wal Mart
if there is no need for walls). Por outro lado, o Wal Mart está
fundindo armazém de comestíveis e produtos para o lar, bens de
consumo, remédios e serviços financeiros em seus “supercentros”
e, com vendas no varejo no valor de 156 bilhões de dólares, em
1999, já controla assombrosos 5% do mercado varejista dos Es-
tados Unidos, que totaliza 3 bilhões (sic – trilhões?) de dólares.
Estará o Wal Mart superado ou é a onda do futuro? Se a
nanotecnologia penetrar gradualmente nos bens de consumo,
então as companhias mais próximas ao consumidor, os varejis-
tas, são os que têm mais probabilidades de se beneficiar. Se seus
próprios inventores conseguirem impor a nanotecnologia ao
mercado, os revendedores, que operam de seus armazéns, perde-
rão frente ao comércio eletrônico pela Internet.
O Século 21 197

QUADRO 15 – Indústria elementar

Fonte: "Fortune Global 500" in Fortune Magazine, 1999

Um exame superficial da lista das 500 empresas globais da


Fortune está longe de ser um estudo das principais forças inova-
doras na economia global. Na melhor das hipóteses, sugere o
“peso” que pode ser atribuído a algumas configurações de poder
financeiro. O número de empresas em cada setor da lista das 500
Globais da Fortune vai desde um mínimo de 84 nos transportes,
até quase o dobro no setor geral. No entanto, esta lista indica os
principais atores da economia mundial e sugere o poder econô-
mico que estes atores poderiam usar para obter o domínio de
uma sociedade transformada pela tecnologia.

Nosso Futuro não Comum


Muitas organizações da sociedade civil, que trabalham para
que a segurança alimentar seja fruto do progresso da agricultura,
estão sendo levadas, pela tecnologia, a campos nunca imaginados.
Faz 20 anos que a RAFI publicou Seeds of the Earth, a primeira
análise política da indústria de materiais genéticos e de regimes
de patentes sobre a vida. Naquela época, ninguém tinha
consciência da bioteconologia – que nem mesmo tinha nome –
e ninguém previa o mundo em que vivemos agora. Hoje estamos
198 Pat Roy Mooney

além do ponto em que é possível enfrentar as crises ou as


tecnologias que se sucedem umas às outras. Estamos além do
ponto em que é possível isolar setores especiais, como a
agricultura, a indústria farmacêutica ou a da segurança. Sempre
entendemos os vínculos teóricos (e, claro, as conexões são sempre
visíveis nas culturas rurais), mas agora esses vínculos estão se
tornando universais. As organizações da sociedade civil devem
perceber e começar a pensar de outra forma, acompanhando os
novos tempos. Estamos às vésperas da nova República do Binano,
global e empresarial.

Notas
1. Masters, Roger D., Fortune is a River, Plume Books, 1998. O tema deste livro é a
relação entre Da Vinci e Maquiavel e sua conspiração para controlar a Itália central
2. Kaplan, Robert D., “Was Democracy Just a Moment?”, in Atlantic Monthly, dezem-
bro de 1997, p. 71.
3. Bridgstock, Martin, et al., Science, Technology, and Society: An Introduction, Cambridge
University Press, 1998, p. 227.
4. Corrigan, Tracy, “Cross-border M&A deals at record levels”, in Financial Times, 5 de
abril de 1999, p.16. O artigo situa a cifra, para os primeiros três meses de 1999, em
855 bilhões de dólares – um pouco menos do recorde global de 1996 – mas há razões
para crer que esta cifra aumentará um pouco nos ajustes finais. O mesmo artigo situa
o total global de F&A em 1998 em 2,5 trilhões de dólares. Tanto o artigo da Financial
Times quanto a RAFI utilizam como fonte principal o site de Securities Data na
Internet.
5. Our Creativity Diversity, UNESCO, 1995, p. 138.
6. Para um exame mais completo do ambiente estadunidense e global no que se refere
às fusões, no período 1974-1997, v. Development Dialogue, Número especial de 1996,
da revista da Fundação Dag Hammarsjöld, “The Parts of Life”, capítulo 7, “Private
Parts”, p. 134-137, de Pat Mooney, da RAFI.
7. “Business this Week”, in The Economist, 8 de julho de 2000, p. 5.
8. Human Development Report 1999, PNUD, p. 67.
9. “Business this Week”, cit., p. 5.
10. Pilling, David, e Adrian Michael, “Pfizer seals Warner-Lambert deal”, in Financial
Times, 8 de fevereiro de 2000 (a nota sobre o negócio está em ft.com, na Internet).
11. “Business this Week”, cit., p. 5.
12. “Mergers and Alliances hold my Hand”, in The Economist, 15 de maio de 1999 (da
biblioteca de The Economist na Internet).
13. Human Development Report 1999, PNUD, p. 67 e 57, respectivamente.
O Século 21 199

14. Ibid., p. 68.


15. Human Development Report 1999, PNUD, destaque 49, p. 84.
16. Rivette, Kevin G., e David Kline, Rembrandts in the Attic: Unlocking the Hidden
Values of Patents, Boston, Harvard Business School Press, 2000, p. 8-10.
17. Mullaney, Timothy J., e Spencer E. Ante, “Information Wars”, in Business Week, 5 de
junho de 2000, p. 107.
18. “Fear of the Unknown”, in The Economist, 4 de dezembro de 1999, p. 61.
19. “Toxic Leak”, in New Scientist, 4 de dezembro de 1999, p. 21.
20. “Resistance is Useless”, in New Scientist, 19 de fevereiro de 2000, p. 21.
21. Edwards, Rob, “Is it or isn’t it?” in New Scientist, 4 de março de 2000, p. 5.
22. Graham-Rowe, Duncan, “Possums on the Pill”, in New Scientist, 4 de março de
2000, p. 18.
23. “Just give us the facts”, Editorial, New Scientist, 15 de abril de 2000, p. 17.
24. Coghlan, Andy, “Pockets of Resistance”, in New Scientist, 15 de abril de 2000, p. 5.
25. “Maize malaise”, in New Scientist, 27 de maio de 2000, p. 4.
26. Coghlan, Andy, “Sowing Dissent”, in New Scientist, 27 de maio de 2000, p. 4.
27. Edwards, Rob, “Look before it leaps”, in New Scientist, 24 de junho de 2000, p. 5.
28. “Red faces all around”, in New Scientist, 10 de junho de 2000, p. 5.
29. Sample, Ian, “Modified crops could corrupt weedy cousins”, in New Scientist, 15 de
julho de 2000, p. 6.
30. “Young, but mad”, New Scientist, 8 de julho de 2000, p. 5.
31. “CID creeps up”, New Scientist, 12 de agosto de 2000, p. 19.
32. “Triumph for Diversity”, New Scientist, 19 de agosto de 2000, p. 21.
33. Kilman, Scott, “Modified Corn a Threat to Butterfly, Study Says”, Wall Street Journal,
22 de agosto de 2000.
34. “Stick a Label on it”, New Scientist, 5 de agosto de 2000, p. 5.
35. Coghlan, Andy, “Killer Tomatoes”, New Scientist, 23 de setembro de 2000, p. 9.
36. “Shells off the shelves”, New Scientist, 30 de setembro de 2000, e Mennella, Noelle,
Paris, 9 de novembro de 2000 (Reuters).
37. MacKensie, Debora, “Stray genes highlight superweed danger”, New Scientist, 21 de
outubro de 2000, p. 6.
38. MacKensie, Debora, “La folie française”, New Scientist, 28 de outubro de 2000, p. 6.
39. A RAFI participou da reunião do CGIAR, em Washington, de 23 a 27 de outubro,
e participou ativamente na oposição ao rascunho “New IPR Guiding Principles”.
40. FAO, Mesa Redonda de Especialistas Eminentes sobre Ética na Alimentação e na
Agricultura, primeira sessão, Roma, 26-28 de setembro de 2000.
41. Mennella, Noelle, Paris, 9 de novembro de 2000 (Reuters).
42. Comunicado à imprensa da Monsanto, 10 de fevereiro de 2000.
43. As referências à ADM, DuPont e Novartis, com relação aos alimentos funcionais, se
baseiam em notícias publicadas em Inverfield News, 12 de fevereiro de 2000, no site
Inverizon International Inc, na Internet.
44. Cramb, Gordon, “Ahold Eyes 10 Takeovers Targets”, in Financial Times, 1o de no-
vembro de 1999, p. 16.
200 Pat Roy Mooney

45. The Economist, 8 de julho de 2000, p. 5.


46. Calian, Sara, “Diageo has discussions on Pillsbury”, Wall Street Journal, 14 de julho
de 2000, p. B8.
47. Torres, Filemón, Martin Piñeiro, Eduardo Trigo e Roberto Martinez Nogueira,
Agriculture in the Early XXI Century: Agrodiversity and Pluralism as a Contribution to
Address ssues o ood (sic) Security, Poverty, and Natural Resource Conservation, DRAFT,
GFAR, Roma, abril de 2000, p. 14.
48. Ibid., fig. 1.
49. Ibid., p. 14-15.
50. Ver o Communiqué da RAFI, “The Gene Giants”, março/abril de 1999.
51. Ver o Communiqué da RAFI, “Phase II for the Human Genome Project”, janeiro-
fevereiro de 2000.
52. Em 1998, a RAFI conseguiu obter do Exército dos Estados Unidos, por meio da Lei
de Liberdade de Informação estadunidense, documentos de um seminário sobre ar-
mas biológicas e novas tecnologias associadas. Como o Exército dos Estados Unidos
envolvera em seu seminário vários civis (cientistas e empresas de biotecnologia), os
documentos tinham de ser apresentados ao público, se alguém os solicitasse. Duran-
te os meses seguintes, a RAFI utilizou esses documentos, combinados com outras
fontes de informação, para desenvolver o quadro geral sobre as tecnologias associa-
das, apresentado neste livro.
53. Ver o Communiqué da RAFI, “The Gene Giants”, março/abril de 1999.
54. Rosenthal, Elizabeth, “Maker of Cancer Drugs to Oversee Prescriptions at 11 Cancer
Clinics”, in New York Times, 15 de abril de 1997.
55. “Clinton vs. the Drugmakers, Part 2”, in Business Week, 8 de maio de 2000, p. 62.
56. “Prescription Drug Spending Soars”, in Wall Street Journal, 27 de junho de 2000, p.
A6.
57. Day, Michael, “Mice to the Rescue”, in New Scientist, 1o de julho de 2000, p. 7.
58. Fitzpatrick, Michael, “Life after Death”, New Scientist, 24 de junho de 2000, p. 7.
59. Cohen, Philip, “Supercell”, in New Scientist, 24 de abril de 1999, p. 32-37, e desta-
que da p. 35 referente à Tecnologia Celular Avançada.
60. Walker, Matt, “Vive la Différence”, in New Scientist, 17 de abril de 1999, p. 12.
61. Boyes, Neil, “Inquiry discovers hidden gene trial casualties”, in New Scientist, 12 de
fevereiro de 2000, p. 12.
62. “Entertainment – The weakling kicks back”, in The Economist, 3 de julho de 1999
(Economist Internet Library).
63. Barber, Benjamin, “Signifiant Mergers in the Telecommunications Industry”, New
York Times, publicado na Internet pelo CEP, em 26 de junho de 1997.
64. Veronis, Suhler & Associates, “Communications Industry Transactions Report –
Highlights”, do site da empresa na Internet, publicado em 1999.
65. “Viacom Redstone says era of big media mergers is over for now”, Fox News Release,
28 de outubro de 1998.
66. “The World is not Enough”, Securities Data Corp., 5 de janeiro de 2000, publicado
em http://www.securitiesdata.com
O Século 21 201

67. The Economist, 8 de julho de 2000, p. 8.


68. “The Record industry takes fright”, The Economist, 30 de janeiro de 2000, em http:/
/www.economist.com
69. Paterson, Christopher, “Global Television News Services”, in Sreberny-Mohammadi,
Annabelle, et al. (eds.), Media in Global Context – A Reader, Londres, Arnold, 1997,
p. 145-154.
70. Musa, Mohammed, “From Optimism to Reality: An Overview of Third World News
Agencies”, in Golding, Peter e Phil Harris (eds.), Beyond Cultural Imperialism, Lon-
dres, Sage Publications, 1997, p. 128 e 139.
71. Margolis, Mac, “In the Company of Giants”, in Woodbull, Nancy e Robert W. Snyder
(eds.), Media Mergers, New Brunswick e Londres, Transaction Publications, 1998, p.
148.
72. Our Creativity Diversity, UNESCO, 1995, p. 106-107.
73. “Mergers and Alliances Hold my Hand”, in The Economist, 15 de maio de 1999.
74. Veronis, Suhler & Associates, “Communications Industry Transactions Report –
Highlights”, do site da empresa na Internet, publicado em 1999.
75. “Going Hollywood”, in Business Week, 3 de julho de 2000, p. 124-129.
76. “Telecommunications: Look no wires”, in The Economist, 3 de janeiro de 1999, Bi-
blioteca de The Economist na Internet.
77. “Telecoms gold from fibre”, in The Economist, 22 de maio de 1999, Biblioteca de The
Economist na Internet.
78. Securities Data Corporation, junho de 1999, de seu site na Internet.
79. “European Telecoms in a Table”, The Economist, 22 de maio de 1999, Biblioteca de
The Economist na Internet.
80. Human Development Report 1999, PNUD, p. 67.
81. Ibidem.
82. The Economist, 8 de julho de 2000, p. 8.
83. Comunicado pessoal, 3 de março de 1999. V. também Kaplan, Robert D., “Was
Democracy just a Moment?”, Atlantic Monthly, dezembro de 1997, p. 55-80.
ETC: BUSCANDO SOLUÇÕES PARA
UMA NOVA ERA
De Binano a Platão?

Para escapar à interminável profusão, fragmentação e


complicação da ciência moderna e recuperar o elemento
da simplicidade, devemos perguntar-nos sempre:
como Platão teria abordado uma natureza que é ao
mesmo tempo simples na essência e múltipla na aparência?
Goethe1

A democracia se converte em despotismo.


Platão, A República, Livro VIII

Chave: Os “heróis” esquecem seus parlamentos

• Há cinco décadas as organizações não governamentais (ONG)


estavam preocupadas principalmente em aliviar a fome e os
desastres. Poucas estavam interessadas no que mais tarde che-
gou a ser conhecido como “desenvolvimento”; menos ainda eram
as que tinham ouvido falar em meio ambiente.
• Há quatro décadas, a palavra-chave era “desenvolvimento” e
o foco estava na agricultura, na saúde e na educação.
• Há três décadas, como o “desenvolvimento” não fazia maiores
progressos, as ONG ampliaram seu horizonte para incluir o
comércio e a mudança política.
• Há duas décadas, as ONG descobriram o “meio ambiente” e o
“gênero” e algumas começaram a estabelecer vínculos entre o
desenvolvimento, o meio ambiente e a inclusão política.
• Há uma década, as organizações da sociedade civil (OSC)
tomaram consciência da “globalização” e começaram a se mover
204 Pat Roy Mooney

além dos problemas do momento, em busca de um programa


mais geral.
• Hoje, temos ainda à nossa frente um longo caminho, no as-
pecto institucional, programático e intelectual, antes de estar-
mos preparados para enfrentar os desafios do Século ETC.

Nas primeiras semanas de 1999, apresentamos as primeiras


versões deste documento em duas reuniões muito diferentes. A
primeira, em Cuernavaca, México, convocada pelo IATP (Institute
for Agriculture and Trade Policy) para o Fórum Global sobre Agri-
cultura, reuniu ativistas agrícolas de todas as partes do mundo.
Seu objetivo principal era a biotecnologia agrícola e a concentra-
ção empresarial dos agronegócios. A segunda aconteceu em Luleâ,
Suécia, organizada entre outros pela Fundação Dag Hammarskjöld,
e reuniu pessoas com pontos de vista diferentes, para discutir as
implicações mais amplas de todas as formas de biotecnologia. Em
ambos os casos, o documento provocou, aparentemente, mais cons-
ternação e depressão do que energia ou ação. No começo de abril
de 2000, tive a oportunidade de apresentar um rascunho mais
extenso a um grupo de acadêmicos interessados, no Centro Dag
Hammarskjöld de Uppsala, Suécia. A última revisão do texto, quase
pronto, foi compartilhada com cerca de 25 ativistas de biotecnologia
de todos os rincões do mundo, que se reuniram em um bosque
nas Blue Mountain, no Estado de Nova Iorque, na primeira meta-
de de outubro. De novo, o efeito do documento sobre as organiza-
ções da sociedade civil foi similar ao de Terminator nas sementes:
estimular o suicídio.
Esta não era a minha intenção. Não me falta otimismo. Até
agora só estou sugerindo o que acontecerá se a sociedade não
responder, e se não responder rapidamente. Creio que é possível
atuar em várias frentes. Aqui apresentarei um breve resumo.
O Século 21 205

Erosão

A erosão de liberdades e de direitos culturais deve ser enfati-


camente vinculada à erosão do ecossistema e ao declínio geral
dos direitos humanos, em fóruns nacionais e internacionais. Claro
que é mais fácil dizer do que fazer, mas já existe um grande mo-
vimento nesta direção. No excelente trabalho da Comissão de
Direitos Humanos da ONU sobre o direito à alimentação e seus
contínuos esforços em prol dos direitos dos povos indígenas, há
amplo espaço para estabelecer o vínculo com a Declaração Uni-
versal e começar a elaborar modelos operativos e organizativos
capazes de salvaguardar o meio ambiente e também as pessoas
que vivem nele. O trabalho pioneiro da FAO sobre os direitos
dos agricultores e o importante trabalho da ONU sobre direitos
culturais fazem parte desse esforço. E o mais significativo, o Re-
latório sobre Desenvolvimento Humano 2000, do PNUD, Direi-
tos Humanos e Desenvolvimento Humano, abre a porta para uma
discussão muito mais completa sobre os vínculos entre erosões e
direitos humanos.

As organizações ambientais da velha guarda não conseguiram


reconhecer a conexão entre o conhecimento indígena e a so-
brevivência do ecossistema, entre a eqüidade e a erosão. Deve-
riam “fechar suas portas”, ou então buscar transformar suas
organizações em um novo movimento pela diversidade, capaz
de vincular a eqüidade e a erosão aos direitos humanos.

A tarefa central, aqui, consiste em entrelaçar os problemas de


erosão e direitos humanos. No entanto, também é urgente e ne-
cessário estender isso à análise das convenções e protocolos que
poderão contribuir para salvaguardar a dissidência e regulamen-
tar a introdução de tecnologias não experimentadas.
206 Pat Roy Mooney

Algumas medidas que poderiam ser tomadas imediatamente:

• As organizações da sociedade civil (OSC) e os orga-


nismos multilaterais e bilaterais deveriam avaliar seus
programas de alfabetização, a fim de se certificar de que
estão contribuindo para a conservação e o avanço dos
saberes indígenas e locais e não os estão destruindo sem
perceber.
• Organismos da ONU, como a UNESCO, o PNUD, a
OMS e a FAO, deveriam empreender uma avaliação de
seus próprios programas de conservação genética e do
ecossistema, para assegurar que haja reconhecimento, res-
peito e proteção ao papel do saber indígena e tradicional.
• O CGIAR, as associações de jardins botânicos e as associa-
ções acadêmicas relacionadas à conservação e ao melhora-
mento de recursos biológicos deveriam agir para integrar,
de forma respeitosa, o papel do conhecimento indígena a
suas atividades, sem piratear esse conhecimento.
• As comunidades e os países deveriam considerar a
criminalização da pirataria cultural e da biopirataria (in-
cluindo material genético ou conhecimento local) por meio
de legislação local, nacional e internacional.
• As organizações profissionais que representam agrônomos,
fitomelhoradores, médicos, antropólogos, etnobotânicos
etc., deveriam rever e atualizar seus códigos éticos a fim de
incorporar a necessidade de conservar e estimular a diver-
sidade em todas as suas manifestações.
• Os organismos governamentais e as organizações da socie-
dade civil dedicadas ao meio ambiente deveriam rever suas
prioridades para enfrentar a erosão ambiental também do
ponto de vista dos direitos humanos e da justiça social, e
O Século 21 207

prestar a devida atenção à desproporcional carga de des-


truição ambiental que recai sobre grupos marginalizados.
• As organizações da sociedade civil e os consumidores de-
veriam exigir indicadores ambientais e de justiça social nas
etiquetas dos produtos, e evitar as “marcas monopólicas”,
que marginalizam ainda mais os agricultores pobres.
• Deveria ser criado um Inventário de Erosão / Direitos
Humanos da ONU, para monitorar e assegurar que o tema
dos direitos humanos seja integrado a todos os programas
e atividades relacionadas com a erosão cultural e ambiental.

As organizações da sociedade civil que poderão, se quiserem,


desempenhar um papel de liderança aqui, são obviamente as or-
ganizações de povos indígenas e de agricultores. Também o mo-
vimento de mulheres e o movimento ambientalista deverão de-
sempenhar papéis importantes.

Proposta de Inventário da Erosão / Direitos Humanos da ONU


Justificativa: as iniciativas intergovernamentais relacionadas com o
ecossistema – os pontos programáticos do CNUMAD (Rio 92) sobre
biodiversidade, florestas, desertificação e mudanças climáticas – estabele-
cem conexões muito limitadas com a erosão cultural e menos ainda com a
destruição das relações eqüitativas. Outros trabalhos intergovernamentais
de apoio à diversidade cultural – por exemplo, os da UNESCO e da OIT –
possivelmente subestimam os vínculos com a erosão ambiental. Torna-se
necessário um inventário do que se está fazendo para integrar os direitos e
as erosões ao sistema da ONU e desenvolver a capacidade para integrar
esses elementos em um programa de trabalho conjunto entre organismos
da ONU e em nível nacional.
Elementos do inventário: O inventário deveria identificar e destacar ca-
sos de erosão simultaneamente cultural e ambiental de grupos vulneráveis
(que são os que geralmente sofrem mais abusos em termos de direitos
humanos). Com base nesses resultados, o inventário deveria examinar os
208 Pat Roy Mooney

compromissos já assumidos no marco da ONU. Alguns exemplos de áreas


de inventário com relação às distintas formas de erosão seriam:
• A situação dos Povos Indígenas no fim de sua década.
• A situação dos Direitos dos Agricultores e do Direito à Alimentação a
partir da UNCED e da Cúpula Mundial da Alimentação.
• O papel das mulheres desde a primeira grande Conferência sobre as
Mulheres, da ONU.
• Os mecanismos intergovernamentais utilizados e necessários para
conservar e integrar esses elementos.
Processo político: Esta iniciativa poderia ser tomada pelo Alto
Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, como contribuição à Con-
ferência UNCED + 10, programada para 2002, na África do Sul.

Tecnologia

Nós, que temos lutado durante a história da biotecnologia,


aprendemos, entre muitas outras coisas, a enfrentar politicamente
a complexidade de uma ciência em rápida evolução. É uma lição
importante. Deveria permitir-nos formular o marco legislativo,
regulador e social necessário para guiar a avaliação – e (quando
for o caso) a introdução – de novas tecnologias. Ao considerar a
nanotecnologia e seus parentes próximos, deveríamos ser capa-
zes, desde logo, de postular o seguinte:

• Os negociadores que fazem as revisões finais da Conven-


ção sobre Armas Biológicas e Tóxicas deverão levar plena-
mente em conta os perigos das etnobombas e do
agroterrorismo de Estado e aceitar as propostas feitas por
grupos como a British Medical Association e os excelentes
acadêmicos da Universidade de Norwich.
• Os mesmos negociadores deverão também condenar a
tecnologia Terminator como exemplo de arma biológica.
O Século 21 209

• De acordo com as preocupações expressas pelo Projeto


Sunshine, as experiências dos Estados Unidos com
agroterrorismo (e seus possíveis usos) com relação aos cul-
tivos de narcóticos deverão ser condenadas pelos governos
em todos os fóruns intergovernamentais apropriados.
• A Convenção sobre Diversidade Biológica e sobre a
Conferência da FAO deve sair de “cima do muro” e pedir
a proibição total da tecnologia Terminator.
• Os governos deverão impor uma moratória ao desenvolvimento
de nanomaquinaria auto-reprodutora a menos e até que possam
ser adotados acordos intergovernamentais que estabeleçam
normas e garantam a segurança das nanotecnologias.
• É necessário estabelecer, em nível nacional e internacional,
as regulamentações e os recursos necessários para assegurar
uma verdadeira compreensão social e um discurso
informado sobre os objetivos sociais adequados a uma nova
tecnologia e à possiblidade de sua introdução.
• É necessário fazer e discutir avaliações do impacto de qual-
quer possível “erosão” (ambiental, ética, cultural ou de di-
reitos humanos) antes de se introduzir qualquer tecnologia
nova.
• É preciso dispor dos estudos de referência e dos instru-
mentos de monitoramento necessários para rastrear e con-
trolar a proposta de introdução de uma tecnologia nova.
• É preciso que os mecanismos legais necessários para rever
efetivamente e/ou retirar uma tecnologia já introduzida que
se torne destrutiva estejam disponíveis e em condições de
funcionar.
• No processo de CNUMAD + 10 (Rio + 10) deverá ser
negociada uma Convenção Internacional para Avaliação
das Novas Tecnologias.
210 Pat Roy Mooney

A atual e crescente preocupação social com a biotecnologia,


junto com as implicações – às vezes impactantes – de outras novas
tecnologias, deveriam permitir à sociedade civil pressionar os go-
vernos, os cientistas responsáveis e os consumidores, a fim de que
enfrentem esses problemas agora, antes que seja tarde demais.
Este é um terreno em que os participantes do debate sobre a
biotecnologia podem unir forças com os movimentos de traba-
lhadores e consumidores para apoiar ações legislativas.

CIENT
Proposta para uma Convenção Internacional de Avaliação de
Novas Tecnologias

Justificativa: Todos os que participaram da elaboração do Protocolo de


Biosegurança de Cartagena (inclusive a indústria) deveriam estar de acordo
em que o protocolo é “demasiadamente pouco, demasiadamente tardio”.
Devido em parte a que a biotecnologia agrícola teve uso comercial muitos
anos antes do protocolo, as pressões políticas exercidas pela indústria da
biotecnologia e organizações da sociedade civil distorceram a avaliação cien-
tífica e social da tecnologia e os riscos e oportunidades a esta associados.
Todos concordam quanto a alguns pontos básicos importantes, que deveriam
levar os governos a negociar uma convenção sobre tecnologia:
• Quanto mais cedo uma tecnologia for avaliada, mais probabilidades
existem de que a avaliação fique livre de distorções.
• Quanto mais cedo a avaliação for realizada, mais probabilidades exis-
tem de que as tecnologias inaceitáveis para uso público possam ser
detidas ou retardadas enquanto não estiverem prontas para uso pú-
blico, o que significa menos custos e riscos para os proponentes e
para os beneficiários.
• É necessária uma convenção sobre tecnologia. Existem poderosas
tecnologias novas no horizonte – e muitas outras além do horizonte,
com impacto igual ou maior do que o da biotecnologia.
Elementos de uma convenção: Como é compreensível, cada tecnologia
nova exigirá formas especializadas de avaliação, de forma semelhante ao pro-
O Século 21 211

cedimento que seguem os escritórios de patentes, ou seja, o desenvolvimen-


to de habilidades específicas para cada tecnologia, a fim de determinar a
aceitabilidade das invenções. No entanto, uma convenção global poderia forne-
cer um “modelo básico” que determine a participação social, os prazos e outros
pontos do processo. As Nações Unidas poderiam convocar uma convenção in-
ternacional legalmente obrigatória, incluindo os seguintes elementos:
• Instaurar mecanismos acessíveis e transparentes, capazes de identi-
ficar tecnologias novas potencialmente significativas, que requeiram
avaliação nos termos da convenção.
• Determinar os estudos de referência e os sinais de desenvolvimento
necessários para permitir a avaliação da tecnologia e o acompanha-
mento de sua evolução.
• Assegurar a plena e efetiva participação na avaliação de todos os
setores da sociedade, especialmente aqueles que os responsáveis
pela nova tecnologia identifiquem como possíveis afetados (positiva
ou negativamente), mas incluindo também todos os setores sociais
habitualmente excluídos, como os pobres, as mulheres, as associa-
ções de deficientes físicos, os povos indígenas, os trabalhadores, os
consumidores e os cientistas do setor público.
• Estabelecer processos consultivos acessíveis e transparentes, assim
como prazos para avaliação de cada tecnologia.
• Por meio de processos de estudo e de consulta, estabelecer os ter-
mos e as condições em que uma tecnologia nova poderá ser introduzida
na sociedade e no meio ambiente e os termos e condições em que a
tecnologia deve ser retirada se, depois, mostrar-se ameaçadora.
• Monitorar o impacto de uma nova tecnologia depois de sua introdução.

Processo político: O 10o aniversário da “Cúpula da Terra”, de 1992


(CNUMAD, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e De-
senvolvimento), em 2002, será a ocasião para uma revisão completa da
Agenda 21. O processo preparatório desta conferência de revisão é o mo-
mento perfeito para que governos e organizações da sociedade civil pressio-
nem pela realização de uma Convenção Internacional. Na CNUMAD + 10, a
comunidade internacional deveria acertar a realização desta convenção e
fixar o prazo e o processo para sua negociação e aplicação.
212 Pat Roy Mooney

A CNUMAD + 10 não terá muito que celebrar. Em lugar de limitar-nos


a examinar seus fracassos, deveríamos adotar programas para revertê-los.

Concentração
O Fórum Internacional sobre Globalização e todos os orga-
nismos que lutaram tão bem contra o Acordo Multilateral sobre
Investimentos (AMI) parecem perceber claramente que têm uma
oportunidade e um papel importante na oposição às empresas
transnacionais. Mas precisarão de mais aliados, de mais dados e
de mais recursos. Também necessitarão da participação enérgica
do movimento sindical. Uma vez mais, iniciativas nacionais e
internacionais poderão ajudar em muito a definir o marco ne-
cessário para defender a sociedade contra a concentração do po-
der empresarial. Entre as possíveis ações concretas estão:
• Maior desenvolvimento dos pontos de referência e dos
mecanismos legais necessários para monitorar a democra-
cia e as instituições democráticas, com especial ênfase na
inclusão e na informação.
• Maior desenvolvimento legal do direito à dissidência e dos
mecanismos de monitoramento e imposição necessários
para salvaguardar este direito.
• Em uma iniciativa relacionada com a anterior, moderniza-
ção da legislação que protege o indivíduo e a comunidade,
não apenas de novas invasões tecnológicas, mas também
de novas demandas empresariais e estatais.
• Desenvolvimento de leis sobre monopólios e sobre con-
corrência com base nas novas tecnologias que facilitem o
monitoramento da tecnoconcentração e assegurem a ca-
pacidade reguladora para impedi-la.
• Ressurreição de políticas e leis sobre a concorrência, assim
como códigos de conduta.
O Século 21 213

• Restabelecimento pela ONU de seu Centro sobre Empre-


sas Transnacionais e abandono de seu desonroso Pacto
Global com as empresas transnacionais.
• Intensificação dos esforços pela reforma do sistema finan-
ceiro global dominante, a fim de conter a destrutiva espe-
culação financeira e as megafusões de empresas.
• Análise, pela Assembléia Geral da ONU, da possibilidade
de convocar uma Sessão Especial da Assembléia sobre
“genoma e tecnologias associadas”, uma “Cúpula do
Genoma” (ver o destaque).

Os três dogmas dos ativistas da biotecnologia têm sido: os


transgênicos são antinaturais; patentear a vida é imoral; a
tecnologia é uma armadilha empresarial. Que faremos quando
as espécies se modificarem geneticamente a si próprias, os
oligopólios empresariais já não necessitarem de patentes e as
erosões forem tão completas que teremos de depender das no-
vas tecnologias para sobreviver?

Esta lista não pretende excluir outras iniciativas para recusar


ou redefinir a situação das empresas ou das instituições “de
responsabilidade limitada” (Cia. Ltda.). São objetivos úteis e
válidos, embora a RAFI lamente que só seja possível alcançá-los
depois de uma transformação social em grande escala.

Proposta para uma Cúpula do Genoma:


Uma Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU sobre Novas
Tecnologias para o Genoma – Conservação, Controle e Uso
Justificativa: Embora a ciência e as tecnologias sejam similares e muitos
de seus usos se entrelacem, os mecanismos reguladores governamentais e
as instituições intergovernamentais tratam o problema da conservação, do
controle e do uso de recursos genéticos de forma muito diferente, dependen-
do se seu uso final é agrícola, médico, ambiental ou em outras indústrias. O
214 Pat Roy Mooney

desenvolvimento dos nutracêuticos e de produtos farmacêuticos e a fusão da


biotecnologia com outras tecnologias novas, como a nanotecnologia, mos-
tram claramente que essa separação é artificial. E tão similares quanto os
instrumentos de manipulação são os instrumentos de propriedade e de con-
trole do genoma e das tecnologias associadas. Nesta situação vital e em
rápida transformação, é necessário que a ONU estude todo o problema rela-
cionado com o genoma na sociedade.

Elementos da Sessão Especial: entre os elementos-chave que a As-


sembléia Geral deveria rever estão:
• Problemas de propriedade, incluindo a propriedade intelectual e ou-
tros mecanismos biológicos, mecânicos e legais que podem outorgar
controle monopolista.
• Problemas éticos, incluindo normas e diretrizes para pesquisadores,
coletores e os que comercializam produtos e processos relacionados
aos genomas.
• Problemas de armamento, incluindo a possibilidade de armas biológi-
cas contra populações e sua subsistência.
• Problemas setoriais, incluindo a análise específica dos usos agrícolas,
médicos, ambientais e outros das tecnologias dos genomas.
• Problemas de novas ameaças, incluindo o exame de possíveis efeitos
negativos de tecnologias dos genomas em desenvolvimento.

Processo político: Uma sessão especial da Assembléia Geral da ONU


permitirá aos governos e organismos da ONU enfrentar as complexidades
do genoma e suas implicações para as sociedades humanas nos anos que
estão por vir. A iniciativa contribuirá para os esforços das organizações da
sociedade civil para ampliar a compreensão dos problemas e estimulará
uma avaliação mais cuidadosa e completa das tecnologias.

Quem decide?

Quando analisamos as possíveis soluções, voltamos sempre


ao problema do governo e da inclusão. Quem toma as decisões
O Século 21 215

sobre a ciência futura? Quem são os que negociam as políticas?


Na realidade, as pessoas que “decidem” são muito poucas, e os
que estão nos cargos de poder provêm precisamente de um pu-
nhado de empresas, de um número ainda menor de países, e
tendem a ser homens, brancos, de meia idade e de classe média.
(Muito semelhantes a este autor...)
No entanto, há pelo menos três fóruns onde seria politica-
mente possível melhorar (embora talvez não resolver) os proble-
mas de participação na formulação da política e da ciência: as
negociações no sistema da ONU; as comunidades religiosas; e,
por meio dos esforços das organizações da sociedade civil, a in-
clusão das populações marginalizadas (mulheres, povos indíge-
nas e os tão esquecidos grupos de deficientes).

GRÁFICO 10 – Quem decide a ciência futura?


Comparação entre países do Norte e do Sul
140
120
100
80
60
40
20
0
Cientistas Fundos Artigos Patentes

Sul Norte

Negociações no sistema da ONU


Embora nunca tenha sido maior o ceticismo quanto à ONU,
esta nunca foi tão necessária, e raras vezes mostrou maior poten-
cial para a ação como agora. Na Comissão de Direitos Humanos,
na OIT, na FAO e na OMS há dirigentes experientes, enérgicos e
216 Pat Roy Mooney

independentes que, separadamente e em conjunto, podem fazer


uma diferença enorme. A nova Corte Internacional de Justiça e a
Corte Penal Internacional oferecem novas possibilidades de ação
legal global. A ONU tem muitos profissionais altamente qualifi-
cados e politicamente capazes, de orientação progressista. Eles de-
vem compreender que neste momento é preciso correr riscos. Se
para a tecnologia esta é a Época de Lilliput, por parte dos dirigen-
tes, necessitamos de grandeza.
As próprias secretarias da ONU devem enfrentar as grandes
injustiças que existem nas negociações intergovernamentais. Os
estudos em curso na Agência Sueca para o Desenvolvimento Inter-
nacional (ASDI) e no Banco Mundial explicitaram dolorosa falta de
conexão na formulação de políticas governamentais, enquanto os
ministros de comércio, meio ambiente ou agricultura correm de
uma reunião da ONU para outra reunião da ONU. Isso não é um
problema exclusivo do Sul, mas as conseqüências costumam ser
graves para os países do G 77.2 Esta iniqüidade se exacerba ainda
mais pelas diferenças quanto a acesso às comunicações e à informa-
ção. No início dos anos 90, por exemplo, quando o mundo nego-
ciava problemas vitais de comércio, meio ambiente, patentes e re-
cursos genéticos, mais de 90% das bases de dados sobre a África só
podiam ser encontradas na Europa.3 Não só a informação não estava
ao alcance dos formuladores de políticas que mais precisavam dela,
como a capacidade de comunicar-se também era desigual. Em
Tóquio ou Manhattan há mais telefones do que na África inteira;4
custa 75 dólares para os negociadores que estejam em Madagascar
ou na Costa do Marfim trocar, através de portador, um texto de 40
páginas (o que demora 5 dias), enquanto o mesmo texto pode ir (em
dois minutos) de Camberra para Genebra por 20 centavos, além do
mais com cópias para todos os demais negociadores da União Eu-
ropéia, por muito pouco tempo e custo adicional.5 O custo das via-
O Século 21 217

gens também age contra a justiça das negociações. Recentemente,


Kate Harrison, do IDRC (International Development Research
Centre, Ottawa), examinou a participação de governos no
subcomitê científico da Convenção sobre Biodiversidade em suas
quatro reuniões em meados de 1999. Utilizando como medida o
Índice de Desenvolvimento Humano em três níveis do PNUD,
Harrison descobriu que a participação de governos das nações mais
pobres do planeta era não só muito menor que a de seus vizinhos
mais ricos, mas também fora diminuindo perceptivelmente à me-
dida que os doadores dos países ricos foram perdendo interesse em
financiar a participação de Estados paupérrimos. E a situação é ape-
nas marginalmente melhor nas 4 “COPs” analisadas (Conferênci-
as das Partes). O Gráfico 11 mostra que, se bem a assistência tenha
aumentado, a participação que cabe aos países mais pobres não o fez.
Um voluntário da RAFI, Kevan Bowkett, descobriu, além disso que
a participação dos países do terceiro nível nas negociações sobre
germoplasma na FAO (para um acordo legalmente obrigatório do
Sul, sobre intercâmbio de germoplasma) também era absurdamente
GRÁFICO 11 – Quem decide a política sobre biodiversidade
no Convênio de Diversidade Biológica?

700

600

500

400

300

200

100

Número de delegados segundo as categorias do relatório sobre Desenvolvimento


Humano do PNUD
218 Pat Roy Mooney

GRÁFICO 12 – Quem decide sobre o germoplasma nos plantios?

300

250

200

150

100

50

baixa (ver Gráfico 12). Organismos da ONU que têm recursos e de-
dicação podem fazer muito, pressionando os governos para acabar
com essa desigualdade. E também as organizações da sociedade ci-
vil têm um papel a desempenhar neste caso.
Entre as medidas concretas que poderiam ser tomadas pelas
Secretarias da ONU estão:

• Os organismos deveriam documentar e informar a partici-


pação dos Estados em cada reunião, segundo as categorias
geopolíticas e do Índice de Desenvolvimento Humano,
além de documentar cuidadosamente e publicar o número
de participantes de cada país.
• Ao descrever a participação dos governos nas negociações,
os organismos deveriam identificar quais indivíduos vêm
das capitais e quais da missão local.
• Os organismos deveriam garantir que o número de sessões
paralelas em qualquer reunião não seja maior do que o
número de delegados de nenhum dos países participantes,
a menos que os países afetados renunciem unanimemente
a seu direito de participar de todas as sessões.
O Século 21 219

• No início de cada reunião, os organismos deveriam infor-


mar publicamente as datas de distribuição de cada docu-
mento da reunião, por idioma, com uma resposta formal
das delegações dizendo quando receberam efetivamente
estes documentos.
• Os organismos deveriam informar também o número de
delegações (incluindo indivíduos) capazes de participar em
sua língua materna de cada reunião de negociações.
• Toda a informação descrita deveria ser entregue em um
modelo que permitisse a comparação no tempo, e em forma
acessível aos governos e ao público imediatamente antes
ou depois de cada reunião.

As organizações da sociedade civil que costumam monitorar


as reuniões da ONU deveriam pressionar pela adoção desses pro-
cedimentos e, se as secretarias não acedessem imediatamente,
deveriam comprometer-se a fazer suas próprias análises de dados
de cada reunião, assim como um exame completo da negativa do
organismo em colaborar.

A participação moral e a comunidade da fé


Há 20 anos, o Conselho Mundial das Igrejas realizou sua
histórica conferência sobre Fé, Ciência e Sociedade. É hora de
fazer outra reunião. Apesar de muitas exceções efetivas e
inspiradoras, nos últimos 20 anos a comunidade religiosa esteve
longe de funcionar como uma “voz profética”. Em geral, tem
faltado à “comunidade da fé” coragem, competência e convic-
ção. Está entrando em uma época em que a natureza da vida e as
dimensões do viver possivelmente mudarão a ponto de tornar-se
irreconhecíveis. Deve preparar-se, e não apenas com orações. A
comunidade religiosa fez alianças diplomáticas desonrosas. Se
220 Pat Roy Mooney

perdeu a fé em sua própria capacidade de participar do discurso


moral, há outros que ainda acreditam que esses assuntos deveriam
ser expostos à sociedade.

A inclusão da política científica – povos marginalizados


Além da negociação política, a participação do Sul na ciência
convencional também é pobre. No Sul estão 28% dos cientistas
do mundo (“ocidental”), mas apenas têm acesso a 12% dos fun-
dos para pesquisa, produzem 6% dos trabalhos analisados por seus
colegas e recebem menos de 2% de todas as patentes. O que não
reflete a qualidade da ciência do Sul, e sim os sestros do
establishment cientista dominante. Aqui o problema central não é
a correção dos trabalhos ou as patentes, mas a inclusão das neces-
sidades do Sul na política e no planejamento sobre a ciência.
Ainda mais sério é o problema da participação das mulheres
e de outras populações marginais. A maioria dos observadores
concorda que as mulheres rurais e indígenas tendem a ser as
maiores depositárias do conhecimento científico local, assim
como as principais inovadoras nos sistemas de pesquisa de base
comunitária. Portanto, a perspectiva e a participação das mulhe-
res na reversão da erosão e na avaliação de tecnologias é vital.
Igualmente essencial é sua análise sobre os efeitos da concentra-
ção. A sociedade civil deveria ter uma capacidade substancial de
fazer crescer a participação das mulheres e dos povos indígenas
na formulação das políticas. Até agora fracassamos quanto a isto.
Em meados dos anos 90, a proporção de mulheres que parti-
cipava de organismos governamentais de assessoria científica era
assombrosamente pequena. Por exemplo, na Comissão para o
Desenvolvimento Europeu de Ciência e Tecnologia da União
Européia, em 30 membros, havia uma única mulher. Dos 40
membros do Conselho Superior de Ciência e Tecnologia da Fran-
O Século 21 221

ça, apenas dois são mulheres. As principais mesas redondas de


assessoria científica da Holanda e da Grã-Bretanha – 12 mem-
bros cada uma – só dispõem de um lugar para as mulheres. O
maior número corresponde ao conselho do presidente dos Esta-
dos Unidos, onde 6 dos 18 assessores são mulheres.
Caberia esperar que os países da União Européia fossem par-
ticularmente sensíveis à participação de mulheres em mesas re-
dondas científicas de alto perfil. Mas, de fato, sua participação
política nessas mesas redondas é inferior à sua participação na
educação científica. Em meados dos anos 90, o analfabetismo
entre as mulheres do Sul era quase o dobro do que entre os ho-
mens (557 milhões em comparação com 315 milhões). A pro-
porção de mulheres inscritas em cursos de ciência e tecnologia
aumentou até quase 40% na América Latina e cerca de 35% na
Ásia e no Pacífico. No entanto, na África, onde as mulheres ocu-
pam apenas 10% dos lugares nas aulas de ciência e tecnologia,
sua participação se mantém igual ou diminuiu desde o começo
dos anos 70. O papel das mulheres nas ciências relacionadas com
a nanotecnologia, como a física, é particularmente pobre. De
todos os que estudavam física nas universidades, em 1990, as
mulheres eram menos de 5% em países de alta tecnologia, como
Estados Unidos, Alemanha, Canadá e Suíça, e pouco mais de
5% na Grã-Bretanha e na Holanda. A maior porcentagem de
mulheres estudantes de física está em países como as Filipinas e
Portugal, onde, ainda assim, apenas chegam a 30%.6
Especialmente inquietante é a participação das mulheres na
pesquisa agrícola, área da qual sua perícia está ausente há muito
tempo e onde é urgentemente necessária. Em países como Burkina
Faso, Etiópia, Nigéria e Zâmbia, as mulheres não chegam a ser
nem 10% dos estudantes. No Brasil, um em cada 5 estudantes
de ciências agrícolas é mulher e, no México, um em cada três.
222 Pat Roy Mooney

Entre os estudantes de medicina, a porcentagem de mulheres


oscila entre o quinto e o quarto lugares na África, mas na América
Latina está próxima dos dois terços.7
E a participação de outros grupos marginalizados? Não dis-
pomos de estatísticas sobre esse assunto. Ninguém pensa sequer
em contá-los. Poderá haver coisa pior?

Das sementes a ETCétera

Estas propostas deveriam tornar-se possíveis e alentadoras por


três razões. Primeiro, é possível que tenhamos alguns anos, antes
que a nanotecnologia e seus sócios estejam em condições de exer-
cer o tipo de força política de que precisariam para impedir essas
leis. Segundo, as organizações da sociedade civil têm uma expe-
riência cada vez maior em enfrentar problemas sócio-científicos
complexos e estas são coisas que poderíamos muito bem conse-
guir. Terceiro, temos a nosso favor a crescente preocupação social
quanto à direção que toma a ciência privatizada.
Estas possíveis áreas de ação não pretendem ser as únicas.
Falta ainda muito debate e estudo por parte das pessoas afetadas.
É preciso aprofundar as análises. Além do mais, esta breve lista
de algumas possibilidades de ação refere-se à legislação nacional
e internacional, e aos interesses de legisladores e advogados. Aqui
não se fala da capacidade cada vez maior da sociedade civil de
desenvolver comunidades alternativas e estratégias em nível co-
munitário e familiar que, no entanto, certamente é um recurso
da maior importância e, sobretudo, um ideal.
Uma mensagem subjacente a toda esta análise é que, para
que o mundo enfrente os graves desafios que propõe o século
ETC, a sociedade civil deve por-se à frente em todos os níveis. É
O Século 21 223

certo que precisamos trabalhar em associação com os pesquisa-


dores progressistas, com os que tomam as decisões e com muitos
outros, mas a sociedade civil está em uma posição única para
tomar iniciativas e pressionar por mudanças reais.
Com grande parte de nossa energia – e, mais ainda, de nosso
coração – ainda no combate pela “Lei da Semente”, a via que nos
conduziu a ETC não está tão distante como poderíamos pensar
e o caminho a percorrer continua cheio de incertezas com as
quais aprendemos a lidar e que aprendemos a desafiar.

Equação da introdução de tecnologia proposta pela RAFI


E=TC2. A Erosão é criada pela Tecnologia introduzida no contexto da
Concentração do poder empresarial e de classe. Por cada “Luddista” que
busca estabelecer controles sociais na introdução de novas tecnologias in-
suficientemente experimentadas, há um “Eli-tista” que utiliza controles sociais
para impor novas tecnologias. Qualquer tecnologia importante introduzida
em uma sociedade que, por sua natureza, não seja uma sociedade “justa”
exacerbará o abismo entre ricos e pobres.
224 Pat Roy Mooney

Em nossa tecnologia do silicone, as sementes, até certo ponto,


atuam como máscaras... É necessário achar a maneira
de substituir as sementes por algum objeto manufaturado. Esta
substituição é fisicamente concebível (...) poderiam ser utilizadas
substâncias micromodeladas como sementes, para criar elementos
ativos, auto-organizados, como nanoestruturas e moléculas...
D.Bois, France Telecom9

Estou convencido de que o próximo século fará com que este,


em comparação, pareça tranqüilo.
Dr. Richard Smalley, guru da nanotecnologia e
Prêmio Nobel de Química, in Christian Science Monitor

Notas
1. Naydler, Jeremy, Goethe in Science – An Anthology of Goethe”s Scientific Writings, Floris
Books, 1997, p. 44.
2. Bengtsson, Bo, e Carl-Gustaf Thornström, “Biodiversity and Future Genetic Policy:
A Study of Sweden”, ESDAR, Special Report no 5, The World Bank and Sida, abril
de 1998. V. também: Collins, Wanda, e Michel Peit, “Strategic Issues for National
Policy Decisions in Managing Genetic Resources”, ESDAR, Special Report no 4,
The World Bank, abril de 1998.
3. PNUD, Human Development Report 1999, p. 60.
4. Our Creativity Diversity, Relatório da Comissão Mundial sobre Cultura e Desenvol-
vimento, UNESCO, 1996, p. 107.
5. PNUD, Human Development Report 1999, p. 58.
6. Harding, Sandra, e Elizabeth McGregor, “The Conceptual Framework”, World Science
Report 1996, UNESCO, Quadros das p. 305, 312 e 319.
7. Makhubu, Lydia, “Global Perspectives” World Science Report 1996, UNESCO, p.
330.
8. Cohn, David, “Combustion on Wheels – An Informal History of the Automobile
Age”, Boston, Houghton Mifflin, 1944, p. 58. Esta pesquisa foi feita por Kevan
Bowkett, voluntário da RAFI.
9. Bois, D., “The 1980’s and 1990’s Microelectronics Logbook: Guidelines for the Future”,
in Luryi, Serge, Jimmy Zu e Alex Zaslavsky (eds.), Future Trends in Microelectronics –
The Road Ahead, Nova Iorque, John Wiley and Sons Inc., 1999, p. 10.

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