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Tradução: Eliane Abel de Oliveira

Comunidades de Prática – Etienne Wenger

Capítulo 3 – Aprendizagem

A negociação de significado é um processo fundamentalmente


temporal e em conseqüência, a prática deve ser compreendida em sua
dimensão temporal. Algumas comunidades de prática existem durante
séculos, como as comunidades de artesãos que transmitem seu ofício de
geração em geração. Outras têm uma vida curta, mas intensa o suficiente
para dar origem a uma prática autóctone e transformar as identidades das
pessoas implicadas. Por exemplo, estas comunidades podem se formar
quando as pessoas se reúnem para enfrentar conjuntamente um desastre. O
desenvolvimento de uma prática requer tempo, mas o que define uma
comunidade de prática em sua dimensão temporal não é simplesmente uma
questão de quantidade mínima de tempo, e sim uma questão de manter um
compromisso mútuo na consecução conjunta de um empreendimento para
compartilhar alguma aprendizagem significativa. Nesta perspectiva, as
comunidades de prática podem ser concebidas como histórias de
aprendizagem.

Neste capítulo examinarei a dinâmica interna que constitui estas


histórias de aprendizagem compartilhada. Para este fim, retomarei os temas
introduzidos nos dois últimos capítulos, mas centrando-me no tempo e na
aprendizagem:

1. Em primeiro lugar falarei da participação e a reificação como


formas de memória, como fontes de continuidade e
descontinuidade e como causas pelos quais podemos
influenciar na evolução de uma prática;

2. Depois falarei do desenvolvimento da prática em relação com


as três dimensões introduzidas no capítulo 2. Argumentarei que
a aprendizagem ao longo destas três dimensões é o que produz
uma prática como estrutura emergente;

3. Por último, centrarei na aprendizagem pela aprendizagem


através dos quais os novatos podem se unir a uma prática,
quer dizer, pela aprendizagem as descontinuidades geracionais
também são continuidades.

Neste capítulo falarei principalmente da aprendizagem como uma


característica da prática. A aprendizagem dos participantes como indivíduos
é um tema que desejo abordar de uma maneira mais direta na segunda
parte, quando falarei de questões relacionadas com a identidade em função
de trajetórias de participação.
A constituição dual das histórias

As práticas evoluem como histórias compartilhadas de aprendizagem.


A história neste sentido não é simplesmente uma experiência pessoal ou
coletiva nem um simples conjunto de artefatos e instituições duradouros,
como também uma combinação de participação e reificação entrelaçadas
ao longo do tempo.

A participação e a reificação são formas duais de existência através


do tempo. Interagem entre si, mas existem em âmbitos distintos. Por
exemplo, se uma operadora de pedidos como Ariel tem novas aspirações e
se sente tão alienada pelo seu trabalho que inclusive chega a deixá-lo, o
sistema informacional continuará conservando os dados que ela havia
introduzido, mesmo que em certos casos concretos, ninguém possa
compreender algumas das notas que foram adicionadas aos dados de
alguns clientes. Da mesma forma, se o sistema falha repentinamente, não
será por isso que Ariel deixará de ser uma participante de sua comunidade
mesmo que, na prática, o tempo que o sistema esteja fora de serviço seja
um sério transtorno.

O que tento dizer é que o mundo e nossa experiência estão em


movimento, mas não se movem em sincronia. Interagem mutuamente, mas
não se fundem entre si:

• Quando voltamos depois de muitos anos ao bairro em que crescemos,


o encontramos sem muitas mudanças. No entanto, nosso olhar, hoje
transformado, se surpreende estranhamente ao ver a mesma rua, os
mesmos edifícios, as mesmas árvores, o mesmo sinal distorcido, as
mesmas marcas na calçada, como se sua mesma constância as
tivesse convertido em algo estranho e irreconhecível;

• Suponhamos que ocorra o contrário: que a rua tenha sido asfaltada e


a casa reformada, que o velho carvalho já não esteja lá, que o
armazém seja um supermercado e o parque um estacionamento. E,
no entanto, sentimos que o velho bairro continua vivo, para sempre
sem asfaltar: e não somente em nosso passado, como também em
nosso presente; não somente em nossa recordação como também em
nossas ações; mesmo mudado, continua sendo uma parte indelével
de nossa identidade perdurável.

Em outras palavras, as formas de participação e de reificação convergem


e divergem continuamente. Em momentos de negociação de significado,
entram em contato e se afetam mutuamente. Mas a convergência que se dá
nestas ocasiões indica a medida de sua conexão. Nesses momentos se
afetam mutuamente, mas não se unem entre si. Separados desses
momentos, não estão essencialmente vinculados no tempo. Não se fecham
mutuamente. Separam-se em meios diferentes até que voltem a encontrar-
se em novos momentos de negociação.
Lembrança e esquecimento

Apesar da separação entre participação e reificação ao longo do


tempo ser tão evidente que seja desnecessário falar mais a respeito, é
fundamental para compreender o papel da negociação de significado na
constituição de uma prática. Como modos diferentes de existência no
tempo, a participação e a reificação atuam como formas distintas de
memória e esquecimento. Atuam como fontes distintas de continuidade e
descontinuidade. Podemos destruir documentos, mas não é tão fácil apagar
nossas recordações. Podemos nos esquecer de acontecimentos, mas as
marcas que deixam no mundo podem nos fazer lembrar:

• A reificação é uma fonte de lembrança e de esquecimento porque


produz formas que persistem e mudam de acordo com suas próprias
leis. Em particular, a combinação de maleabilidade e de rigidez,
característica dos objetos físicos, oferece uma memória das formas
que permite que nosso envolvimento em uma prática deixe vestígios
duradouros no mundo. A persistência destas marcas foca o futuro à
sua volta. Desta forma, o processo de reificação nos impede de
renegociar o significado de seus produtos passados, da mesma
maneira que uma cicatriz continua nos remetendo a uma insensatez
ou ato heróico do passado.

Mas não se trata de um processo fechado. Está aberto no sentido de que


as formas do mundo mudam e desaparecem e porque – ao não transportar
seu próprio significado – essas formas estão abertas à reinterpretação e a
múltiplas interpretações. Na realidade, a partir do momento que se
produzem, as formas começam a ter vida própria: a palavra da qual nos
arrependemos, a velha carta já esquecida que encontramos no sótão ou o
rápido esboço que, diante de nossa presença, se converte, de repente, em
um embrião de uma obra monumental. A persistência das formas inerente a
reificação não é um simples lembrete do passado; pode reorientar nossa
atenção de novas maneiras, pode nos surpreender e nos obrigar a
estabelecer novas relações com o mundo;

• A participação é uma fonte de lembranças e esquecimento, não


somente por meio de nossas lembranças, como também através da
criação de identidades e, em conseqüência, pela necessidade de nos
reconhecer em nosso passado. Nosso cérebro torna nossas
experiências de participação em lembranças que podemos
rememorar e aplicar estas lembranças e suas interpretações na
criação de uma trajetória que nós mesmos (além dos outros)
podemos interpretar como ser uma pessoa.1 Nossa interpretação da
1
Em seu estudo das histórias vitais, Charlote Linde (1993) mostra em que ponto as
pessoas proporcionam coerência à sua trajetória vital reinterpretando eventos
passados dentro da continuidade de uma narração de identidade. Ao mesmo
tempo, documenta a grande medida em que a construção desta narração coerente
lembrança em função de uma identidade é tão importante como o
são as marcas do cérebro para a criação de uma continuidade em
nossa vida.

Naturalmente, este processo também está aberto e não somente


porque esquecemos ou lembramos parcialmente, como também
porque nossas formas de participação e nossas expectativas mudam
e experimentamos a vida de novas maneiras.

A lembrança e o esquecimento na prática surgem da interação entre


a participação e a reificação e este processo dual nos conecta com nossa
história. O estudo de um antigo utensílio de cerâmica constitui um exemplo.
Por um lado ela foi produzida há muito tempo como parte de uma prática
mantida durante séculos enterrada sob cinzas vulcânicas; por outro lado, a
mudança de nossas identidades com o tempo a tal ponto que hoje estamos
interessados em arqueologia. Estamos conectados com nossa história por
meio das formas de artefatos que foram produzidos, conservados,
desgastados, retomados e modificados ao longo da história e também por
meio de nossa experiência de participação, à medida que nossas
identidades foram formadas, herdadas, rejeitadas, entrelaçadas e
transformadas por meio do compromisso mútuo na prática entre uma
geração e a seguinte. A constituição de histórias de aprendizagem é o
incessante entrelaçamento entre estes dois processos.

Continuidade e descontinuidade

Com o tempo, as comunidades de prática acabam dedicando-se tanto


à participação quanto à reificação:

• No processo de manter uma prática, acabamos nos dedicando ao que


fazemos para os outros e à nossa história compartilhada. Nossa
identidade torna-se ancorada em si e ao que fazemos juntos. Como
resultado, não é fácil converter-se em uma pessoa totalmente nova
na mesma comunidade de prática. Inversamente, não é fácil
transformar a si mesmo sem o apoio de uma comunidade, como
mostram os inumeráveis grupos de apoio propostos pela indústria de
auto-ajuda;

• As comunidades de prática também investem em reificação. Os


instrumentos, os artefatos de representação, os conceitos e os prazos
refletem perspectivas concretas que tendem a reproduzir. A causa
desta dedicação à prática, os artefatos tendem a perpetuar os
repertórios das práticas além das circunstâncias que os moldaram
originalmente. As grafias difíceis podem sobreviver ao longo das
gerações de estudantes consternados porque continua sendo mais

é um processo social interativo em que as pessoas negociam a coerência de sua


vida na ação de contar sua história.
fácil aprender qualquer tipo de grafia que mudar a linguagem inteira
e todas as práticas dedicadas a ela. De modo similar, as polegadas e
os galões americanos podem resistir ao assalto lógico dos metros e
litros. E o teclado “QWERTY”, cuja disposição foi determinada a fim de
evitar o travamento das teclas nas primeiras máquinas de escrever,
ainda sobrevive na era do computador.

A dedicação simultânea da prática e da participação e reificação pode


ser uma fonte de continuidade e de descontinuidade. Na realidade, posto
que tanto a participação como a reificação tenham um alcance
intrinsecamente limitado, é inevitável que acabem criando
descontinuidades na evolução das práticas. Os participantes passam a
ocupar novas posições, mudam de endereço, encontram novas
oportunidades, perdem o interesse, começam uma nova vida. Entre os
operadores de pedidos se dá uma considerável renovação, inclusive nas
comunidades cujos participantes continuam por toda a vida, estes acabam
se aposentando e morrendo, deixando lugar a novas gerações de membros.
De maneira similar, novos artefatos, ideias, termos, conceitos, imagens e
instrumentos são produzidos e adotados, quando os antigos se esgotam,
ficam obsoletos ou acabam descartados.

Em uma comunidade de prática, o que se pode considerar uma


“geração” depende de seus ciclos de reprodução. No caso dos operadores
de pedidos da Alinsu, as grandes renovações são modeladas na freqüente
incorporação de novas gerações de membros (normalmente há vários
cursos de formação ao ano), mesmo que um ciclo de reprodução completo
dure muito mais tempo. Demora de dois a quatro anos para passar do nível
de aprendiz ao nível 8 e poder atuar como instrutor, responsável pela
qualidade ou formador auxiliar. Porém, na realidade, a extensão geracional é
um pouco maior porque pode levar de seis a dez anos para poder subir de
operador a um posto técnico ou diretivo.

Como uma comunidade de prática é um sistema de formas de


participação inter relacionadas, as descontinuidades se propagam através
dela. Quando alguns novatos são incorporados a uma comunidade de
prática, as descontinuidades geracionais resultantes se estendem por
múltiplos níveis; as relações mudam em graduações. Os novatos relativos
se tornam veteranos relativos. Os novatos do ano passado ajudam aos
novatos de hoje. Estas promoções normalmente passam despercebidas e
apenas se fala delas, mas podem ter alguns efeitos importantes. Os novatos
formam novas identidades a partir de suas novas perspectivas. Estas
mudanças podem ser confortantes ou perturbadoras, podem revelar
progressos que passaram despercebidos: de repente vemos tudo o que
aprendemos porque nos encontramos na posição de ajudar a alguém. Mas
também podem criar novas exigências de repente, se espera de nós que
saibamos mais do que na realidade sabemos. À medida que estas gerações
sucessivas interagem entre si, parte da história da prática permanece
encarnada nas relações entre as gerações que estruturam a comunidade. O
passado, o presente e o futuro convivem juntos.

A reificação também pode ter gerações que provocam


descontinuidades. A instalação de um sistema no centro de processamento
de pedidos foi uma descontinuidade de grandes proporções. Os poucos
veteranos que já estavam ali naquela época ainda falam da transformação
radical que provocou em sua prática. Falam do passado com tom de
arqueólogos (ainda que sem nostalgia), recordando os enormes arquivos
repletos de fichas de clientes que deviam encontrar para começar a
processar uma solicitação. Riem-se das quantidades de papel que tinham
que usar e de todo aquele agito. Vêem aqueles dias como se fosse uma
época totalmente diferente, com procedimentos mais simples e sem tanto
jargão médico. Uma década depois se fala de uma nova geração de
sistemas que podem receber os dados diretamente do consultório médico e
que podem processar automaticamente os pedidos mais simples. A
implantação de um sistema como este terá amplas ramificações e voltará a
transformar o processamento de pedidos deixando-o praticamente
irreconhecível. Um novo conjunto de instrumentos, conceitos e artefatos
que acabam antiquados em uma onda de substituições. Como a prática está
dedicada à reificação, estas descontinuidades criam níveis de
transformações que se propagam por toda sua extensão.

A política da participação e da reificação

Tenho defendido que a participação e a reificação são modos duais de


existência no tempo, modos duais de lembrar e esquecer e fontes duais de
continuidade e descontinuidade. Em consequência, quando as comunidades
de prática são focadas nelas, a participação e a reificação oferecem vias
duais para exercer influência no que surge de sua prática. Oferecem dois
tipos de alavanca para tentar moldar o futuro: manter o status quo ou, o
inverso, redirecionar a prática:

1. Podemos buscar, cultivar ou evitar algumas relações específicas com


algumas pessoas concretas;

2. Podemos produzir ou promover alguns artefatos específicos para


focar futuras negociações de significado de algumas maneiras
concretas.

Neste sentido, a participação e a reificação são dois canais de poder


distintos que estão disponíveis aos participantes (e aos grupos externos).
Constituem duas formas distintas de política:

1. A política de participação inclui a influência, a autoridade pessoal, o


nepotismo, a discriminação, o carisma, a confiança, a amizade, a
ambição;
2. De uma natureza diferente é a política de reificação, que inclui a
legislação, as diretrizes, a autoridade definida institucionalmente, as
exposições, as demonstrações argumentadas, os dados estatísticos,
os contratos, os planos, os desenhos.

Garantir a coesão de uma equipe por meio da amizade é diferente de


esboçar um conjunto de objetivos, um programa e um plano de trabalho;
apelar ao compromisso moral dos participantes é diferente de apresentar
uma demonstração estatística de uma injustiça sistemática. Mesmo que
recorrer a uma coisa ou outra possa criar atmosferas muito diferentes, as
duas vias podem ser eficazes para influenciar o desenvolvimento de uma
prática.

Devido a complementaridade entre a participação e reificação, estas


duas formas de política podem compensar- se mutuamente. Cada uma pode
ser utilizada para contornar, ou para compensar seus abusos:

1. Convencer as pessoas com poder acerca de um caso especial pode


proporcionar uma maneira de submeter a rigidez burocrática das
políticas quando seu travamento reificador se torna
contraproducente;

2. No entanto a reificação de algumas diretrizes explícitas pode ser


necessária para combater as diversas formas de parcialidade que
podem enviesar a política de participação.

Por exemplo, os operadores de pedidos contam com as relações pessoais


que mantêm com seus supervisores para adaptar as diretrizes da
companhia a circunstâncias específicas. Por outro lado, os agrada a idéia de
que seu rendimento seja calculado automaticamente em função do
expressivo de termos puramente quantitativos. Esta forma de avaliação
reificadora foi uma característica em seu contrato trabalhista que os havia
atraído inicialmente até o trabalho. Dentro desta estrutura rígida - em que
eles não têm nem voz nem vez, mas segundo a qual podem candidatar-se à
promoção – sentem que têm um controle maior sobre seu destino,
protegidos até certo ponto das decisões arbitrárias de quem se encarrega
diretamente de seu posto de trabalho.

Como resultado desta complementaridade, o controle sobre a prática


costuma requerer o domínio das duas formas de política; raramente uma é
eficaz sem a outra. Garantir o controle do processamento de pedidos exige
tanto a participação do supervisor como a reificação de um conjunto de
diretrizes. Em uma escala distinta, escrever uma legislação para proteger o
entorno não significa que não devamos incutir em nossos filhos o amor e o
respeito pela natureza:

• Para ser eficaz, a política de reificação exige participação porque ela


por si só não garante nenhum efeito. A reificação tem que ser
adotada por uma comunidade para que possa moldar a prática de
maneira significativa;

• Ao contrário, a política de participação deve incluir a capacidade de


influenciar na reificação porque a ela cria os pontos de enfoque em
torno dos quais se negocia o que é importante.

Como a negociação de significados é a convergência entre


participação e a reificação, controlar a participação e a reificação permite
controlar os tipos de significado que podem criar em um dado contexto e os
tipos de pessoas que podem chegar à categoria de participante. Em
consequência, não é nenhuma surpresa que os regimes totalitários tentem
queimar livros e limitar o direito de associação.

A combinação destas duas formas de política é muito poderosa


quando permite o controle sobre o desenvolvimento de uma prática. Pode
ser uma fonte de estabilidade quando as diferenças de poder favorecem
algumas perspectivas concretas. Pode ser um fator desestabilizador quando
o poder muda. Mesmo assim, como o significado sempre se negocia de
novo, e, como a participação e a reificação não estão fechadas, sempre
existe uma incerteza, uma possibilidade de um “desvio” na prática.
Nenhuma forma de controle do futuro pode ser total e segura. Para manter
a coerência social de participação e reificação dentro da qual se pode
exercer o controle, este se deve reproduzir, reafirmar e renegociar na
prática constantemente.

Histórias de aprendizagem

Agora que falei das formas de memória disponíveis para constituir


uma prática, posso descrever a prática como uma história compartilhada de
aprendizagem. Farei três observações:

1. A prática não é estável, mas combina continuidade e


descontinuidade;

2. A aprendizagem na prática supõe as três dimensões apresentadas no


capítulo 2;

3. A prática não é um objeto, mas uma estrutura emergente que


persiste por ser ao mesmo tempo perturbadora e resiliente.

Continuidades e descontinuidades

A prática do processamento de pedidos é registrada em uma longa


história de controle institucional cada vez mais detalhada, incluindo
ultimamente a informatização. Seria de esperar que esta longa evolução
institucional tivesse criado uma prática muito estável. No entanto, me
surpreendeu muito encontrar uma mistura de adaptação e invenção que
desmentia a etiqueta de trabalho rotineiro que a diretoria – e com
frequência até mesmo os operadores – atribuía a este trabalho. Inclusive em
um contexto tão determinado do ponto histórico e institucional, a
comunidade deve ajustar constantemente sua prática em seu empenho de
realizar seu trabalho.

Como o mundo flui sem cessar e as condições sempre mudam, toda


prática deve ser reinventada constantemente mesmo que continue sendo “a
mesma prática”. Quando perguntado sobre os desafios colocados pelo seu
trabalho, os operadores quase sempre falam das mudanças: mudanças nas
políticas, nos planos de seguro e na prática médica, além das mudanças na
organização e nos procedimentos internos. No escritório, constantemente
chegam memorandos que modificam alguma regra, algum procedimento,
alguma característica do sistema de dados ou ainda outra modificação
recente. Juntamente com esta evolução constante da prática, também se dá
uma renovação considerável do pessoal, que constantemente apresenta
novas caras.

Os operadores de pedidos têm que responder às demandas de um


mundo em constante fluxo, mas seria simplificar em excesso entender sua
aprendizagem estritamente em função de respostas a novas circunstâncias.
O processo de mudança não só reflete uma adaptação a forças externas,
como também uma dedicação de energia ao que as pessoas fazem e suas
relações mútuas. Mesmo que os operadores possam ter boas razões para
não se comprometer profundamente com seu trabalho, existe uma
criatividade incontrolável quando se esforçam para realizá-lo e para manter
uma atmosfera de convivência. Uma pergunta dá lugar a uma discussão,
uma conversa dá origem a uma proposta, novos métodos são colocados a
prova, o escritório é reestruturado, é convocada uma reunião do
departamento para tratar de uma questão, movimenta-se o pessoal, alguém
tem uma ideia que é adotada, as coisas melhoram, as coisas pioram. Na
comunidade, as pessoas renegociam suas relações mútuas e suas formas de
participação. Alcançam seus objetivos ou se tornam insuficientes. Amizades
são iniciadas e outras rompidas. Explodem alguns conflitos ou outros são
resolvidos. Alguns rumores são espalhados e outros negados. Dada a
reputação da rotina do trabalho, a agitação e a criatividade inerentes à
comunidade e geradas por ela mesma são surpreendentes.

A mudança constante é uma parte tão importante do envolvimento


cotidiano na prática que em sua maior parte passa despercebida. Mesmo
quando provoca uma descontinuidade ou uma crise, raramente leva a uma
ruptura. A comunidade não se desintegra. Do mesmo modo, as idas e
vindas não são simples descontinuidades: pessoas são substituídas e os
novos se integram gradativamente na comunidade à medida que vão
contribuindo com sua prática. A continuidade interessa muito, tanto em
nível institucional como em nível da comunidade de prática. Todas as
pessoas e coisas concorrem para manter esta sensação de continuidade em
meio às descontinuidades. Esta combinação de descontinuidade e
continuidade cria um equilíbrio dinâmico em que os participantes e a
instituição que os engloba podem considerar estável e integrante da mesma
prática.

Aprender na prática

Os operadores de pedidos e os gestores raras vezes falam do trabalho


como se fosse uma aprendizagem. Falam das mudanças, de novas ideias,
de níveis de rendimento, dos velhos tempos. O conceito de “aprendizagem”
não está ausente do escritório de processamento, mas é utilizado
principalmente para os novatos. Mesmo assim, quando coloquei a pergunta
diretamente a eles, todos os operadores concordaram que estavam
aprendendo continuamente. Uma razão para não considerar seu trabalho
como aprendizagem é que o que aprendem é sua prática. Aprender não se
reifica como um objetivo extrínseco ou como uma categoria especial de
atividade ou adesão. Sua prática não é meramente um contexto para
aprender algo mais. O engajamento na prática – na implantação de sua
complexidade multidimensional – é ao mesmo tempo o contexto e o objeto,
o caminho e o destino. O que aprendem não é algo estático, mas o próprio
processo de participar de uma prática permanente e de envolver-se em seu
desenvolvimento.

Se, em função da caracterização do último capítulo, as práticas são


histórias de compromisso mútuo, de negociação de uma empresa e de
desenvolvimento de um repertório compartilhado, então a aprendizagem na
prática inclui os seguintes processos para as comunidades envolvidas:

• Envolvimento de formas de compromisso mútuo: descobrir como


participar, o que contribui e o que dificulta; desenvolver relações
mútuas, definir identidades, estabelecer quem é quem, quem é bom
fazendo o que, quem sabe o que, com quem é fácil ou difícil dar-se
bem;

• Compreender sua empresa e ajudá-la: alinhar seu compromisso com


ela e aprender a ser responsável por ela no plano individual e
coletivo; esforçar-se para definir a empresa e conciliar as
interpretações conflitantes da natureza da empresa;

• Desenvolver seu repertório, seus estilos e seus discursos: renegociar


o significado de diversos elementos; produzir ou adotar instrumentos,
artefatos, representações, registrar e recordar eventos, inventar
novos termos e redefinir ou abandonar os antigos, contar e voltar a
contar histórias, criar e quebrar rotinas.

Embora esta perspectiva suponha que a aprendizagem seja contínua,


não banaliza o conceito dizendo que tudo o que fazemos é
aprendizagem. A aprendizagem significativa afeta estas dimensões da
prática. É o que muda nossa capacidade de participar dela, a
compreensão do porque o fazemos e os recursos que temos a nossa
disposição para fazê-lo. Este tipo de aprendizagem não é simplesmente
um processo mental – como a memória neurológica, o processamento de
informação no cérebro ou a habituação mecânica - 2, apesar dos
processos mentais. Esta aprendizagem tem a ver com o
desenvolvimento de nossas práticas e com nossa capacidade de
negociar significado. Não é simplesmente a aquisição de lembranças,
hábitos e capacidades, mas a formação de uma identidade. Nossa
experiência e nossa adesão se instruem, se arrastam e se transformam
mutuamente. Criamos maneiras de participar em uma prática no
processo de ajudar a fazer com que esta prática seja como é.

Estrutura emergente

A aprendizagem é o motor da prática e a prática é a história dessa


aprendizagem. Em consequência, as comunidades de prática têm ciclos
de vida que refletem este processo. Agrupam-se, se desenvolvem,
evoluem ou se dispersam em função do momento, da lógica, dos ritmos e
da energia social de sua aprendizagem. Assim, ao contrário de outros
tipos mais formais de estruturas de organização, não está tão claro onde
começam e onde terminam. Não têm datas de início e de expiração.
Neste sentido, uma comunidade de prática é um tipo de entidade
diferente, por exemplo, de um grupo de trabalho ou de uma equipe.
Enquanto que um grupo de trabalho ou uma equipe começam com uma
tarefa e acabam com ela, pode ser que uma comunidade de prática não
chegue a materializar durante algum tempo depois de haver iniciado uma
tarefa e pode continuar de uma maneira extra-oficial muito depois de
haver terminado a missão inicial. Ao estar mais focadas na aprendizagem
conjunta que em algumas tarefas reificadas que começam e acabam, as
comunidades de prática demoram algum tempo para chegar a ser
formada e podem durar muito tempo depois de haver dissolvido o grupo
oficial.

Dizer que a aprendizagem é o que dá origem às comunidades de


prática é o mesmo que afirmar que a aprendizagem é uma fonte de
estrutura social. Entretanto, este tipo de estrutura não é um objetivo que

2
O filósofo Stephen Turner (1994) propõe que a habituação individual é um conceito
melhor que a prática como fundamento para uma teoria social porque pode ser
situada e, em consequência, pode ser considerada causal em relação às ações
humanas. Desconfio que esteja interessado em uma explicação mecanicista e que,
em consequência, fala de uma empresa diferente. Existem poucas dúvidas de que
os hábitos desempenham uma função essencial na aprendizagem que dá lugar às
práticas. Entretanto esta observação ou é evidente, mas em nível errôneo da
explicação, ou se aplica ao nível correto, mas não aporta nenhuma informação: eu
afirmei que o nível em que o conceito de “prática” desempenha alguma função
interessante é o da negociação de significado.
existe em si mesmo e por si mesmo e que se possa ser separada do
processo que a origina. Pelo contrário, é uma estrutura emergente.3

Com efeito, a última instância da prática é produzida por seus


membros mediante a negociação de significado. A negociação de
significado é um processo aberto, com o potencial permanente de incluir
novos elementos. Também é um processo de recuperação, com o
potencial constante de continuar, redescobrir ou reproduzir o antigo no
novo. O resultado é que, como estrutura emergente, a prática é ao
mesmo tempo altamente perturbadora e altamente resistente:

• As três dimensões da aprendizagem acabadas de ser descritas são


independentes e formam um sistema firmemente entrelaçado.
Cada dimensão pode confundir as demais. Por exemplo, como
descrevi anteriormente, a inclusão de novos membros pode criar
uma onda de novas oportunidades para o compromisso mútuo;
estas novas relações podem despertar novos interesses que se
traduzem em uma renegociação da empresa e este processo pode
produzir toda uma geração de novos elementos no repertório.
Devido a esta combinação de um processo aberto (a negociação de
significado) e de um sistema rigoroso de inter relações, um
pequeno incômodo em algum lugar pode ter rápidas repercussões
em todo o sistema.4 Por exemplo, entre os operadores de pedidos,
um rumor interessante se espalhará com grande rapidez e todo
mundo falará dele. O mesmo ocorrerá com uma boa ideia
procedente de uma fonte respeitada;

• Em uma comunidade de prática, o compromisso mútuo, uma


empresa cuidadosamente entendia e um repertório bem afinado
são elementos que têm sentido em sua relação. Esta relação
interessa aos participantes porque se torna parte de quem são.
Deste ponto de vista, a prática é baseada na aprendizagem. Logo a
comunidade tenderá a reorganizar-se em torno da novidade para
que esta possa ser aplicada. Como diz o provérbio, se temos um
martelo, todo o mundo parece um prego. Contudo, para uma
3
A respeito disso, não é somente um caso de uma estrutura subjacente. Por
exemplo, Pierre Bordieu (1972, 1980) afirma que as práticas são geradas a partir de
uma estrutura subjacente a qual denomina habitus. Em meu argumento, os habitus
seriam uma propriedade emergente das práticas em interação em lugar de sua
infraestrutura geradora, com uma existência própria. Esta postura se aproxima mais
da noção de estruturação de Giddens (Giddens, 1984; ver a nota 4 da Introdução),
porém com as práticas como contextos específicos para o conhecimento dos atores.
4
Neste sentido poder-se-ia dizer que a prática mostra algumas características
“caóticas” (Goener, 1994). Entretanto, como argumentarei daqui a pouco, existem
limites para a pertinência das analogias físicas porque as pessoas não se limitam a
reagir localmente aos eventos. E sim, interpretam estes eventos em função de sua
compreensão da história, de sua visão de mundo e de sua identidade.
comunidade, isto não é simplesmente uma questão de hábitos que
se reproduzem mecanicamente, apesar de também levar os
hábitos em conta por terem seu próprio lugar na prática. Em um
plano mais essencial, é uma questão de compromisso da própria
identidade e, em consequência, de negociar uma continuidade
suficiente para manter essa identidade. Desta perspectiva, a
prática é diferente de um sistema físico porque as pessoas não se
limitam a atuar de uma maneira individual ou mecânica, mas
negociam mutuamente seu compromisso com sua prática
compartilhada e com suas identidades entrelaçadas.5

A combinação de incômodo e resistência é uma característica da


capacidade de adaptação. A aprendizagem implica uma estreita
interação entre a ordem e o caos.6 A continuidade de uma estrutura
emergente não se deriva de sua estabilidade, mas de sua capacidade
de adaptação. Com efeito, como estrutura emergente, a prática não é
intrinsecamente estável nem intrinsecamente instável. Não é uma
estrutura que continue sendo a mesma mesmo que não se fizesse
algo para provocar mudança. Tampouco está simplesmente
“desordenada”, mudando de uma maneira aleatória e imprescindível a
menos que se imponha alguma estruturação externa em sua
implantação.7

A estabilidade e a desestabilização podem aparecer, mas não


devem ser presumidas, devem ser explicadas:

• É evidente que pode haver fatores de estabilidade que


influenciam na evolução de uma prática. A Alinsu construiu todo
um aparato de estabilidade para garantir que os pedidos
tramitassem estritamente de acordo com suas diretrizes.

5
Fish (1989) argumenta que a continuidade na prática surge porque nem tudo
muda ao mesmo tempo. Trata-se de uma boa observação, mas não basta como
explicação. A continuidade não é um processo totalmente passivo; também é uma
questão de construir identidades.
6
Os estudiosos dos sistemas auto-organizados têm destacado a natureza geradora
da “beira do caos” (Kauffman, 1993; Wheatley, 1995). A capacidade de incluir ao
mesmo tempo estrutura e dinamismo, de andar na beira entre caos e ordem, é uma
característica que faz das comunidades de prática um lugar propício à criatividade.
Neste sentido, uma comunidade de prática tem suas características do que o
teórico das organizações Dee Hock (1995) chama de organização “caórdica”
(mistura de caos e ordem, grifo meu).
7
Trata-se de duas suposições que encontrei com frequência e com diversas formas
em minhas conversas, sobretudo com pessoas que trabalham com práticas
diferentes da sua por questões de gestão ou por questões teóricas. Por exemplo, a
resistência inerente à mudança é um pressuposto comum na literatura voltada à
transformação das organizações. Asseguro que as comunidades de prática são mais
resistentes às noções de sua evolução que não estejam embasadas em uma
compreensão profunda de sua prática que à mudança per se.
Quanto aos operadores, eles próprios construíram políticas
locais para coordenar o tratamento específico de clientes.
Também argumentei que um participante com uma quantidade
desproporcional de poder e influência pode criar um tipo de
estabilidade à custa de desencorajar a negociação. Todavia, a
estabilidade exige trabalho; não é um caso por omissão que
sustenta a si mesmo a menos que o perturbe. Requer tanto
trabalho quanto transformação.

• Ao contrário, pode haver eventos desestabilizadores. Quando a


Alinsu decidiu levar algumas de suas operações a uma pequena
cidade com um mercado de trabalho mais favorável ou quando
instalou seu sistema de informação, provocou sérias rupturas
na prática dos operadores. Uma ofensiva de contratações por
parte de um competidor que provocou a marcha dos veteranos
também seria uma grave ruptura. Um capricho de alguém com
poder também poderia causar confusão. Sem dúvida ocorrem
sucessos desestabilizadores, mas as comunidades de prática
reorganizam sua história em torno de si desenvolvendo
respostas concretas que conduzem a continuidade de sua
aprendizagem.

Em comparação, a mudança e a aprendizagem se encontram na


própria natureza da prática; sua presença pode ser pressuposta,
apesar de sempre supor continuidade e descontinuidade. Por isso, no
tratamento de comunidades de prática – vivendo no seio de alguma
ou sendo responsável por uma – sempre é essencial pressupor a
aprendizagem. Caso contrário, a prática pode parecer
obstinadamente estável ou aleatoriamente transformável:

• Alguém que pressuponha a estabilidade, mas compreenda a


necessidade de mudança considerará que as comunidades de
prática são uma fonte de resistência;

• Alguém que pressuponha a instabilidade acreditará que as


coisas, abandonadas à sua sorte, cairão em caos e poderá
sentir-se tentado a conceber medidas demasiadamente
detalhadas para manter a ordem. Sob esta perspectiva, a
prática é instável, necessita de estrutura e, por conseguinte, é
maleável.

Partindo destes pressupostos, buscar algumas descontinuidades


concretas ou esforçar-se por manter algumas formas específicas de
estabilidade pode ir contra, e não a favor, da mudança que já esteja
sendo produzida e da continuidade que já esteja garantida. A
negociação de significado nunca é simples continuidade ou
descontinuidade. Um exame detalhado quase sempre revelará boas
razões – funcionais ou disfuncionais – para que uma prática seja como
é sem ter que recorrer a conjecturas indiscriminadas de estabilidade
ou instabilidade intrínsecas. Em outras palavras: é um erro pressupor
que a prática é uma força intrinsecamente conservadora e também
supor que seja imprevisível ou possa ser modificada por decreto.

Descontinuidades de gerações

A existência de uma comunidade de prática não depende de


alguns membros fixos. As pessoas vão e vêm. Um aspecto essencial de
qualquer prática duradoura é a chegada de novas gerações de membros.
Enquanto que a adesão muda de uma maneira suficiente o bastante para
permitir alguns encontros de gerações, os novatos podem ser integrados à
comunidade, participar de sua prática e, mais adiante – à sua própria
maneira -, perpetuá-la. Estes encontros entre gerações são o aspecto da
prática que com maior frequência é considerada aprendizagem. Aqui
argumentarei que é possível compartilhar a prática entre as
descontinuidades de gerações justamente porque em essência, a prática já
é um processo social de aprendizagem compartilhado.

Encontro de gerações

No centro de processamento de pedidos, a aprendizagem dos novatos


é uma necessidade reconhecida. Ser um novato é uma categoria
reconhecida tanto durante os cursos de formação como mais adiante,
durante o período inicial na comunidade. Como a empresa possui interesse
em manter a prática, instaurou um processo oficial de seleção e formação
para garantir que os novatos desempenhem suas funções como os
veteranos. No entanto, a formação oficial não é o locus principal dos
encontros de gerações. Embora os novatos recebam formação em
dependências separadas, se encontram no mesmo escritório que seus
colegas mais experientes, fazem as pausas para descanso na mesma sala,
usam os mesmos elevadores e utilizam os mesmos banheiros. Rapidamente
tornam-se parte do lugar. E quando terminam a formação e começam a
trabalhar “a sério”, começa realmente sua integração na comunidade de
prática.

ETIENNE: Como você acha que chegou a entendê-lo (o processamento


de pedidos)? Com o curso de formação?

SHEILA: Acredito que trabalhando. Processando pedidos.

MARY: Sim, repetindo o mesmo muitas vezes.

MAUREEN: Nos cursos te dão, não sei, uma ideia geral, não? E logo
quando começa de verdade, quanto mais processos você
faz, mais entende. Não te contam os detalhes.

ETIENNE: Trata-se de fazê-lo ou a partir conversas com os demais?


SHEILA: Fazendo-o, mas se você não entender, você pode conversar
com alguém sobre isso e eles podem explicar. Então você o
faz e diz: “Puxa, funciona, agora eu entendi” ou algo assim.

Para os operadores, passar das aulas ao trabalho real é difícil. Esta


dificuldade deu lugar a comentários de que a formação é demasiadamente
curta. Acredito que o verdadeiro problema resida na dificuldade de integrar-
se na nova comunidade de prática. Separados de seus companheiros de
classe, têm que atrair a atenção dos veteranos e estabelecer com eles
relações o suficiente para poder ter acesso à comunidade e à sua prática.
Somente então podem começar a ser considerados participantes plenos. Os
veteranos dedicam energia para iniciar estes novatos na prática real de sua
comunidade, mas não existe muito reconhecimento oficial de seus esforços
e se encontram pressionados por suas próprias metas de produção. Por isso,
é possível que reconhecer estes esforços, fomentá-los e facilitar este
processo seja, de alguma maneira, mais eficaz que prorrogar o treinamento.

Em nosso livro sobre este tema, Jean Lave e eu, utilizamos o termo
participação periférica legítima para caracterizar o processo pelo qual os
novatos são incorporados a uma comunidade de prática. Mesmo se tratando
de um termo um pouco pomposo, expressa as condições importantes sob as
quais alguém pode tornar-se membro de uma comunidade de prática.
Queríamos destacar que a aprendizagem necessária não se realiza apenas
pela reificação de um currículo como pelo estabelecimento de formas
modificadas de participação que estejam estruturadas para abrir a prática a
pessoas alheias à comunidade. Argumentávamos que a periferia e a
legitimidade são dois tipos de modificação necessária para permitir uma
verdadeira participação:8

• A periferia oferece uma aproximação da plena participação que


possibilita uma exposição à prática efetiva. Ela pode ser alcançada de
várias formas, incluindo diminuir a intensidade, diminuir o risco, uma
ajuda especial, diminuir o custo dos erros, uma estreita supervisão ou
rebaixar as pressões de produção. Pode supor explicações e relatos,
mesmo que exista uma grande diferença entre uma lição acerca da
prática, mas que tem lugar fora dela e as explicações e relatos que
formam parte da prática e têm lugar dentro dela. A observação pode
ser útil, mas não somente como prelúdio ao compromisso real. Para
abrir uma prática, a participação periférica deve proporcionar acesso
às três dimensões desta: ao compromisso mútuo com outros
membros, a suas ações e sua negociação da empresa e dar uma ideia
da atuação da comunidade. Note que o currículo é a comunidade de
prática em si. Os professores, mestres e modelos de papéis
específicos podem ser importantes, mas podem desempenhar seu
papel em virtude de sua adesão à comunidade em seu conjunto;

8
Ver Lave e Wenger (1991).
• Para poder seguir uma trajetória de entrada, os novatos devem
adquirir uma legitimidade suficiente para ser tratados como membros
em potencial. Se uma comunidade como a dos operadores recusasse
um novato por algum motivo, essa pessoa teria uma aprendizagem
muito difícil. Lembre-se que a legitimidade pode adotar muitas
formas, ser útil, ser recomendada, ser temida, ser o tipo correto de
pessoa, ser de boa família. Pode ser que um escudeiro novato apenas
se dedique a limpar as armaduras e alimentar aos cavalos, mas a
legitimidade que lhe outorgaram em seu nascimento, foi suficiente
para que o caráter periférico destas atividades de baixa categoria
justifiquem a possibilidade de chegar a ser um cavaleiro. Na
aprendizagem tradicional, normalmente faz falta o patrocínio ou a
recomendação de um professor para que os aprendizes possam ter
acesso à prática. Por isso, o lugar que ocupa o professor na
comunidade é fundamental. Hoje em dia, os estudantes de medicina
têm professores que lhes dão acesso às comunidades acadêmicas.
Conceder legitimidade aos novatos é importante porque é provável
que não cheguem a cumprir o que a comunidade considera que seja
um compromisso competente. Somente uma legitimidade suficiente
poderá fazer com que tropeços inevitáveis e erros se transformem em
oportunidades para aprender ao invés de ser motivo de demissão,
negligência ou exclusão.

Note que a periferia e a legitimidade são conquistas que envolvem


tanto uma comunidade como seus recém-chegados e que não
pressupõem um encontro de gerações sem conflitos; pelo contrário, esta
perspectiva integra o encontro de gerações nos processos de negociação
por meio dos quais evolui uma prática. Tenho defendido que as
comunidades de prática não são remansos de paz e que sua evolução
envolve políticas de participação e reificação. As diferenças entre
gerações agregam a estas políticas as perspectivas que as diferentes
gerações forneceram à história de uma prática. A continuidade que
impulsiona o avanço da prática. No capítulo 6 aprofundarei esta questão
e discutirei o encontro de gerações em função das trajetórias e das
identidades.

A prática como aprendizagem

Há um aspecto sutil subjacente à discussão anterior. Nesta


perspectiva, os processos educativos baseados na participação real
(como no caso dos aprendizes) não somente são eficazes para estimular
a aprendizagem porque são ideias pedagógicas melhores, mas,
sobretudo porque são “epistemologicamente corretas”, por assim dizer.
Existe uma correspondência entre conhecer e aprender, entre a natureza
da competência e o processo pelo qual esta é adquirida, compartilhada e
ampliada.
A prática é uma história compartilhada de aprendizagem que
exige uma espécie de “colocar em dia” (grifo meu) para poder ser
incorporada. Não é um objeto que passe de uma geração para a
seguinte. A prática é um processo contínuo, social e interativo e a
introdução de novos operadores é simplesmente uma versão daquilo que
consiste a prática. O fato de que os membros interagem, façam coisas
conjuntamente, negociem novos significados e aprendam uns com os
outros já é inerente à prática: que é a forma como estas evoluem. Em
outras palavras, as comunidades de prática reproduzem sua filiação da
mesma maneira que elas se originam, compartilham sua competência
com as novas gerações através de uma versão do mesmo processo pelo
qual se desenvolvem. Podem ser tomadas medidas especiais para abrir a
prática aos recém-chegados, mas o processo não é fundamentalmente
diferente.9

9
Esta é uma questão sutil. Por exemplo, Stephen Turner acredita que a prática é um
objeto tácito que transmite e afirma que a impossibilidade de transmissão deste
objeto invalida o conceito de “prática” (Turner, 1994). Em minha definição da
prática não é necessário explicar a reprodução desta por meio de um mecanismo
separado, como o processamento da prática. Como a prática já é desde o início um
processo social de negociação e renegociação, o que torna possível a transição
entre gerações se encontra na mesma natureza da prática. Sob esta ótica, os
encontros de gerações nunca são uma simples continuidade ou uma simples
descontinuidade, mas sempre são uma interação entre as duas. Estes encontros
tampouco são uma simples transmissão de um patrimônio, nem uma mera
substituição do antigo pelo novo: sempre são a reconstituição de uma comunidade
de prática em torno de uma descontinuidade.

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