You are on page 1of 17

A psicossomática: uma forma de forclusão 1

A PSICOSSOMÁTICA: uma forma de forclusão

A primeira idéia que nos ocorre ao falar sobre somatização é pensar na diferença
entre as neuroses transferenciais e as neuroses atuais, tais como teorizadas por Freud entre
1982 e 1985. Tal associação se justifica ainda mais quando se sabe que ao declínio do
conceito de neurose atual nos quadros da nosografia contemporânea, corresponde
igualmente a tendência a incluí-la no rol das concepções modernas a respeito das lesões
psicossomáticas.
Assim, pareceu-me apropriado começar este trabalho fazendo uma rápida
exposição sobre o conceito de neurose atual tal como teorizado por Freud no início de suas
investigações, incluindo aí tanto o aspecto etiológico quanto o mecanismo de sua própria
constituição. Isto ensejará, moto continuo, o confronto com as neuroses transferenciais, cuja
descrição psicodinâmica por si só ajudará a situar os pontos de diferença entre as duas
formas.
Numa segunda parte deste trabalho, tentarei expor as idéias de Lacan, partindo
dos seus próprios textos, o que ensejará a problematização de alguns aspectos da questão,
tanto no que concerne à teoria, quanto à clínica. Para isto me servirei igualmente da
contribuição de alguns autores que, seguindo as pistas abertas por Lacan, têm procurado
uma melhor compreensão do fenômeno psicossomático.

Em 1895 Freud publica um artigo no qual, partindo de uma idéia comum na época,
ele mostra que a neurastenia é o sinal de um esgotamento sexual resultante de uma
atividade sexual anormal, caracterizando-se por uma astenia física e intelectual , sintomas
dolorosos, distúrbios funcionais e depressão.Na verdade, corresponde ao que hoje
chamamos de afecção psicossomática ou lesão de órgão.1
É daí que Freud extrai o que ele chama de neurose de angústia, cujo complexo
sintomático se organiza basicamente em torno de um excesso de excitabilidade geral, de um
quantum de angústia livremente flutuante sempre à procura de qualquer pretexto para uma
fixação, e de acessos de angústia associados a um conteúdo representativo ou a algum
distúrbio funcional. Vemos aqui também a aproximação com a psicossomática.2
Embora a sua especificidade em relação às outras formas de neurose apareça tanto
neste artigo quanto em outros escritos ou publicações da época,3 é somente em 1898 que
vemos aparecer o termo "neurose atual".4

1Por comodidade de linguagem, usarei as expressões lesão de órgão e fenômeno[s] psicossomático[s],


indistintamente, para nomear a afecção psicossomática.
2Cf. S. Freud, Uber die Berechtigung von der Neurasthenie einen Bestimmtem Symptomenkomplex als Ängst-
Neurose" abzutrennen, 1894, G.W., I, p. 315-342.
3Cf. S. Freud, Manuscrit B e Manuscrit E, in La Naissance de la Psychanalyse, 1887-1902, Paris, PUf,
1956, p. 61-66 e 80-85; Zur Psychotherapie der Hysterie in Studien uber Hysterie, 1895, G.W., I, p. 255s.
4Cf. S. Freud, Die Sexualitat in der Atiologie der Neurosen, 1898, G.W. I, p. 491-516.
A psicossomática: uma forma de forclusão 2

Do ponto de vista etiológico e no que concerne ao seu mecanismo interno, a


neurose atual tem a sua origem não em conflitos psíquicos, mas em acontecimentos do
tempo presente. Isto é, seus sintomas resultam diretamente da ausência ou da inadequação
da satisfação sexual atual, e não de eventos importantes da vida passada. Eles não são,
portanto, nem uma expressão simbólica de um desejo recalcado, nem sobredeterminados
por uma motivação inconsciente. Esta especificidade etiológica e patogênica já nos introduz
na diferença entre este tipos de neurose e as psiconeuroses ou neuroses de transferência.
É claro que a causa é sem dúvida de natureza sexual em ambos os casos, mas
enquanto na neurose atual a causa deve ser buscada na desordens da vida sexual atual, nas
psiconeuroses a origem está na vida passada. Por outro lado, enquanto na neurose atual a
etiologia é de natureza somática, na histéria e na obsessão ela se encontra no domínio
psíquico.5 Na neurose de angústia este fator somático seria a ausência de descarga da
excitação sexual, enquanto na neurastenia seria sua satisfação inadequada (pela
masturbação, por exemplo).
O que se quer afirmar quando se diz que o mecanismo de formação dos sintomas,
na neurose atual, é somático, é que existe uma inadequação entre a excitação sexual e a
possibilidade de sua elaboração a nível psíquico.Em outras palavras, há uma ausência de
mediação da representação, ausência de psiquização ou de simbolização da excitação
somática. Portanto, o seu problema é o de uma ausência de simbolização ou mesmo de
fantasmatização.
Disto pode-se facilmente deduzir que esta teoria não é puramente fisiológica. Ou
seja, não se trata apenas de um acúmulo de excitação e de uma concomitante descarga
inadequada. É muito mais que isto. É que a excitação somática não encontra seu fiador no
nível psíquico. Ao excesso de excitação corresponde um deficit de libido, entendida aqui
como o elemento psíquico, isto é, as fantasias associadas à atividade sexual.6 Daí porque,
mesmo para este tipo de neurose, não basta simplesmente uma terapêutica do atual,
baseada na descarga orgásmica, como pretende a abordagem reichiana.7 Em todo caso, o
fato dos sintomas não provirem de uma significação a ser elucidada, do conflito situar-se
num nível

5Cf. S. Freud, L'Hérédité et l'Étiologie des Névroses, loc. cit.


6 Quanto ao conceito de libido é bom lembrar que, se por um lado ele implica, na obra de Freud, um aspecto
econômico, susceptível de troca e transformação, de estase e escassez, por outro, implica também um aspecto
qualitativo, que só existe em relação com representações, e que nada mais são senão o desejo. Esta é sua face
psíquica, cuja insuficiência acarreta, de imediato, uma derivação da tensão no plano somático.
7 O termo elaboração implica a noção de um certo trabalho que se efetua sobre uma certa quantidade de
excitação ou sobre a libido, e cuja característica é promover a ligação (Bindung) dessa energia. Ou seja, o
trabalho consiste em ligar a energia indiferenciada a certos conteúdos, de modo a impedir o seu livre fluxo, de
maneira mecânica. O seu correlato seria o desligamento (Entbindung) ou descarga, que consiste, pelo
contrário, na liberação súbita de energia. Neste sentido, a angústia é um desligamento. A ligação, enquanto
freio da energia psíquica, é feita mediante as representações ou quiçá, em nível menos elaborado, através de
certas reações somáticas que assumem, em consequência, um valor significante. Além disso, a ligação implica
também o fato de entre as representações, que por si só já constituem ligações, estabelecer-se toda uma rede
de significações. Há, portanto, diferentes níveis de ligação e de elaboração. - Sobre isto, q.v. J. Laplanche, A
Angústia, São Paulo, Martins Fontes Ed., 1987, p. 29-34.
A psicossomática: uma forma de forclusão 3

exterior à própria neurose e ser incapaz de encontrar sua expressão simbólica, é


isto que tornaria a terapêutica analítica inadequada ao tratamento das neuroses atuais.8
Ora, o que vamos encontrar no registro das psiconeuroses é exatamente o contrário
do que acabamos de ver na neuroses atuais. Com efeito, as psiconeuroses têm a sua causa
num evento passado, o impacto da realidade presente tendo ,antes de tudo, uma função de
ressonância simbólica em relação a acontecimentos pretéritos. Por outro lado, nas
psiconeuroses, o conflito é essencialmente interiorizado, situando-se no nível psíquico e
implicando uma riqueza de vida fantasmática tributária do alto nível de simbolização dos
seus elementos. Enfim, enquanto nas neuroses atuais a formação dos sintomas é somática, a
excitação transformando-se diretamente em angústia ou derivando para certos aparelhos
corporais, com pouca ou nenhuma psiquização, nas psiconeuroses a formação dos sintomas
faz-se pela mediação simbólica, o que faz com que os mesmos tenham um sentido.
Freud postula a existência de correspondências e entrelaçamentos entre esses dois
grandes grupos de neuroses.9 Aqui, o que me interessa mais é o paralelismo existente entre
a histeria de conversão e a lesão de órgão, pois nos dois casos se trata de somatização.
Vejamos então o que acontece na conversão histérica.
Para entender o mecanismo da conversão é preciso apelar para a distinção que
Freud faz entre afeto e representação, enquanto representantes psíquicos da pulsão. A
questão básica é saber o que acontece com estes representantes pulsionais quando do
recalque.A resposta é simples: no recalque, a representação é separada do seu par, o afeto,
que se torna então independente . Assim, enquanto o representante-representação é
recalcado, o representante-afeto toma outro destino, que pode ser, eventualmente, o da
conversão somática, que aparece como formação substituto e como sintoma.10 Como bem
diz Freud: "Na histeria de conversão, o investimento pulsional da representação
recalcada é transposta na inervação do sintoma".11
Vemos aqui, portanto, algo que inexiste no fenômeno psicossomático, cujo
mecanismo obedece, como já vimos, a um modelo totalmente diferente. Além do mais,
enquanto na psicossomatização a lesão de órgão acontece de fato no corpo orgânico, na
conversão histérica não existe lesão real, e se existe ela desempenha uma função
secundária, não sendo parte constituinte do quadro histérico, a não ser como suporte para
aquilo que Freud chamou de "complacência somática". O corpo da histérica é assujeitado à
sua função simbólica, é um corpo imaginário,12 erogeneizado e investido
libidinalmente,inserido numa história e com possibilidade de subjetivação. No fenômeno
psicossomático, pelo contrário, trata-se do puro corpo orgânico, dessexualizado, carente de
representação e de simbolização, como se o órgão afetado não se articulasse a uma história
pessoal e como se não fosse possível uma colocação do sujeito, - uma subjetivação -, a não
ser localizando-se e particularizando-se no próprio órgão doente.

8 Cf. S. Freud, Zur Psychotherapie der Hysterie, loc.cit., p. 259


9 Sobre isto, q. v. J. Laplanche, op. cit., p.36s.
10 Cf. S. Freud, Die Verdrangung, 19l5, G.W. X, p.248-261; `Das Unbewusste, 1915, ib., p. 264-303.
11 Cfr. S. Freud, loc. cit., p. 284: "Bei der Konversionshysterie wird die Tribbesetzung der verdrangten
Vorstellung in die Innervation des Symptoms umgesetzt".
12 Cf. S. Freud, Quelques considérations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et
hystériques, 1893 [1888-1893], G.W., I, p. 39-55.
A psicossomática: uma forma de forclusão 4

O desconhecimento desta diferença explica porque certas abordagens da


psicossomática estabelecem apenas um nível de correlação entre o corporal e o psíquico,
sem atingir, no entanto, o reconhecimento de um esquema corporal orientado por funções
simbólicas. Ou seja, não se diferencia o corpo anatömico da corporeidade libidinal.13
Como quer que seja, Freud reconhece que apesar das diferenças existe uma relação
íntima entre a neurose de angústia e a histeria, considerando aquela como a vertente
somática desta. Em ambas há um acúmulo de excitação e uma insuficiência psíquica
responsável pelo surgimento dos processos somáticos anormais. Em ambas igualmente
assiste-se a uma derivação da excitação a nível do somático, em vez de uma elaboração
psíquica. A diferença é que a excitação, cujo deslocamento é a manifestação da neurose, é
puramente somática na neurose de angústia, enquanto que na histeria ela é psíquica.14
Em suma, enquanto a histérica vivencia o drama de uma realidade traumática a
nível fantasmático, recalcando a representação conflitiva e transpondo o afeto em
inervação, tudo ocorrendo segundo uma ordem significante,o doente psicossomático, quase
sempre confrontado ao drama real de uma perda ou separação, não consegue incluí-la numa
cadeia simbólica, nem fazer seu trabalho de luto. O afeto é desconhecido pelo sujeito, é
suprimido, impossibilitado de ser vivenciado ou transformado. Há como que um
congelamento do trauma, que fica sem a montagem de uma história a ser lembrada, a ser
contada. O problema é saber porque isto acontece. Já veremos como Lacan e seus
seguidores abordam a questão.
Antes seja dito que, apesar das dificuldades levantadas para um tratamento
psicanalítico das afecções psicossomáticas, vários autores se preocuparam em dar conta
psicanaliticamente das questões que estes fenômenos de borda colocam. São autores de
orientações diferentes, mas que se acordam pelo menos em dois pontos: 1) à diferença do
sintoma, nos fenômenos psicossomáticos há uma lesão de órgão; 2) tenha ou não um
sentido - e aqui as discordâncias são grandes! - a lesão de órgão é passível de um tratamento
psicanalítico.15
Vejamos então como a teoria lacaniana explica a lesão de órgão.

A tese de Lacan, secundado pelos seus discípulos, é de que os fenômenos


psicossomáticos se desenrolam segundo um duplo eixo: o do imaginário ou narcísico e o
do

13Cf. A. Vallejo e Lígia C. Magalhães, Lacan. Operadores da Leitura (São Paulo: Ed. Perspectiva, 1981), p.
67.
14Cf . S. Freud, Neurasthenie und Angstneurose, 1895, G.W., I, p. 341s.
15 Segundo uma corrente que teve considerável sucesso sobretudo nos Estados Unidos ( G. GRODDECK, F.
DUNBAR, F. ALEXANDER, A. GARMA), os fenômenos psicossomáticos têm sentido; já os chefes de fila
da Escola Psicossomática da Sociedade Psicanalítica de Paris (R. HELD, P. MARTY, FAIN, G. de M"UZAN,
C. DAVID) situam tais fenômenos fora do sentido, fora de toda simbolização. Há uma posição intermediária
(!) segundo a qual os fenômenos psicossomáticos têm um sentido próximo ao da conversão histérica, "mas
não totalmente" (J.P.VALABREGA). - Sobre isto, cf. Patrick Valas, "Horizontes da psicossomática", in
Roger Wartel e outros, Psicossomática e Psicanálise, (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990) p. 69-86. Isto
demonstra a grande "confusão " em que se move a teorização da psicossomática!
A psicossomática: uma forma de forclusão 5

simbólico. Em última análise, ele encontra a causa eficiente da lesão de órgão no


mecanismo da forclusão.
Dito isto, tentarei expor as implicações teórico-clínicas dessa tese, partindo dos
textos do próprio Lacan e das interpretações aportadas pelos seus seguidores.

I. Quanto ao eixo imaginário:

Uma primeira aproximação do problema vamos encontrar no Lacan da fase do


espelho. Apoiado ainda nesta teorização e no texto sobre a agressividade (1948), Lacan
considerará o fenômeno psicossomático como uma variante da estagnação formal da
relação do Eu à sua imagem, isto é, uma estagnação da libido. Assim, a hipertensão,
v.g.,resultaria de uma inibição da agressividade, que seria justamente a resultante dessa
estagnação.
Mas é sobretudo no Seminário 2 (1954-55)16 que Lacan vai abordar de uma forma
mais clara esta questão. Aí ele diz que os investimentos auto-eróticos desempenham um
papel muito importante nos fenômenos psicossomáticos. Ele fala de "erotização" de tal ou
qual órgão, afirmando que a distinção entre a neurose e o fenômeno psicossomático está
marcada pela linha divisória do narcisismo. É claro que a neurose está sempre enquadrada
pela estrutura narcísica. Mas, no caso dos fenômenos psicossomáticos o que os distingue
deste enquadre neurótico é que aqui não se trata de uma relação de objeto, justamente
porque em se tratando de investimentos auto-eróticos não podemos distinguir a fonte do
objeto. Que se pense nos lábios que se beijam a si mesmos, onde a fonte e o objeto se
confundem! Trata-se de um investimento sobre o próprio órgão e não sobre o objeto.
Quando Lacan diz, neste Seminário, que "as relações psicossomáticas estão no nível do
real", ele parece estar se referindo a este real do próprio corpo, do biológico.
Em outras palavras, o que está em jogo é a questão da relação narcísica,
imaginária, e de saber quais os órgãos envolvidos nesta relação.
Hoje, a maior parte dos psicanalistas admitem que a lesão de órgão corresponde a
uma satisfação de tipo auto-erótico que tem a ver com uma certa perturbação da
identificação narcísica. Ainda em 1975, o próprio Lacan dirá que "o psicossomático é
alguma coisa que afinal de contas é, em seu fundamento, profundamente enraizado no
imaginário"17.
Nasio, analisando esta dimensão imaginária do fenômeno psicossomático diz que
há como que uma redução da realidade na lesão de órgão, com uma predominância da
libido. A libido retorna ao Eu, mas de uma forma parcelar e plural 18. Há, secundariamente,
uma exarcebação da libido, que faz com que sua invasão transforme o órgão lesado num
amontoado de libido!19

16Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 2,O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, (Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985), p.127.
17Cf. J. Lacan, “O sintoma” in Intervenciones y textos (Buenos Ayres: Manantial, 1988).
18Segundo o modelo apresentado por Freud para a paranoia em sua carta de 9.XII.1899 a Fliess, e não para
um Eu total, conforme o modelo da paranoia em 1911 [caso Schreber]. Voltarei a este ponto mais adiante.
19Cf. J. Nasio, Psicossomática. As formações do objeto a (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993), p.121s.
A psicossomática: uma forma de forclusão 6

Lacan voltará à questão no Seminário 3 (1955-56)20, quando de um comentário a


um caso de psicose, com sintomas hipocondríacos, apresentado por Ida Macalpine. Ele
fala de "algo particular que está no fundo tanto da relação psicótica quanto dos fenômenos
psicossomáticos". Mas, aqui Lacan ainda está tateando. Ao mesmo tempo em que
diferencia os fenômenos psicossomáticos da neurose, chama-os de sintoma. Contudo, na
medida em que os concebe como uma "ïnscrição direta de uma característica, e mesmo, em
certos casos, de um conflito", sobre o ser corpóreo, parece indicar uma antecipação do que
ele dirá vinte anos mais tarde, quando comparará a lesão de órgão a um hieróglifo. É
interessante notar aqui a observação de Lacan sobre a mobilidade dessa "ïnscrição", que
aparece, desaparece e muda de lugar em função de datas, sem dialética alguma e sem que
nenhuma interpretação possa marcar alguma correspondência com algo que seja do
passado do sujeito.

Mas é no Seminário 11 (1964)21 que vamos encontrar as coordenadas de um


avanço teórico talvez mais significativo. Nos capítulos XVI e XVII, em que trata das
operações de causação sujeito, isto é, a alienação e a separação, Lacan diz que a
psicossomática não é um significante, mas que mesmo assim ela só é concebível na medida
em que a indução significante, ao nível do sujeito, se passa de maneira que não põe em jogo
a afânise do sujeito. O sujeito aí não está em causa, portanto. E por que? Porque dá-se
uma compactação, um engessamento, do par significante S1/S2. É o que ele chama de
holófrase do par significante. Sabemos que a holófrase se define como uma frase inteira
que é expressa por uma única palavra ou palavra frase. São expressões que não são
decoponíveis e que dizem respeito a uma situação tomada no seu conjunto. Segundo Lacan
, trata-se de algo em que o que é do registro da composição simbólica é definido na
periferia.22
Pois bem, a holofraseação de S1/S2 implica na falta de articulação significante, e o
sujeito cessa de ser representado para outro significante. Como um significante só toma
sentido quando articulado a outro significante, no caso dos fenômenos psicossomáticos,
onde um significante se aglutina ao outro significante, o resultado é o efeito patógeno sobre
o corpo. Em consequência, também não há afânise do sujeito, o que faz com que,
estritamente falando, não exista sujeito psicossomático particularizável segundo uma
estrutura quadripartita.23 Isto significa, portanto, que os fenômenos psicossomáticos dão
testemunho do fracasso da metáfora subjetiva que constitui o sujeito, e que, embora ligados
a efeitos de linguagem, permanecem fora da subjetivação. Em outras palavras: não
funcionando o vel da alienação, não há afânise, e não havendo afânise também não haverá
separação. Deve-se concluir então pelo não aparecimento da falta que, via de regra, deve
ocorrer no intervalo que liga o par significante.

20Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 3, As Psicoses ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985), p.352.
21Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanáli (Rio de Janeiro: Zahar
Ed., 1979) , p.215-216; 224-225.
22Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud (Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1979), p.
257.
23Cf. J. Lacan, Écrits (Paris: Éd. du Seuil, 1966), p.774.
A psicossomática: uma forma de forclusão 7
Isto significa dizer, então, que inexiste, neste caso, uma abertura para o campo do
Outro, para o desejo? Jacques-Alain Miller diz que o fenômeno psicossomático não põe em

questão o desejo do Outro, mas sim o contorna, na medida mesma em que contorna a
estrutura da linguagem, nisto diferenciando-se da relação ao Outro constitutiva do sintoma
histérico.24
Disto se deduz que há uma diferença entre o fenômeno psicossomático e o
sintoma, pois este é uma formação do inconsciente, com estrutura de linguagem, que supõe
uma substituição (metáfora), passível de deslocamento e de reformulação por efeito de uma
interpretação,e onde a relação ao Outro é parte constitutiva.
Uma outra consequência deste congelamento do par significante é a subversão da
necessidade pelo desejo. Isto é: uma necessidade intervém na função do desejo, e é por isso
que o elo do desejo é conservado, apesar de não haver afânise do sujeito. Lacan tenta
explicar isto apelando para a experiência de Pavlov com o cão, onde o animal é solicitado
por uma necessidade sob a pressão de significantes impostos pelo cientista.25 O animal não
tem nenhuma noção do desejo do experimentador. Ele simplesmente responde aos
estímulos através de uma função fisiológica implicada na necessidade. Mas assim fazendo,
introduz o corte do desejo do Outro (no caso o experimentador) na necessidade. Assim
também o psicossomático responde, dentro do campo da necessidade, a certos significantes
que lhe são impostos. O asmático, por exemplo, tem sua necessidade de respirar perturbada
pelo gozo enigmático do Outro, que lhe retorna no corpo sob a forma de angústia.26
Poder-se-ia, agora, perguntar sobre o porquê deste ataque à metáfora subjetiva.
Qual o mecanismo indutor deste congelamento, desta holofraseação, da cadeia significante,
responsável pela abolição do intervalo entre os significantes e dos mecanismos de
causação do sujeito. Para responder a esta questão é preciso voltar-se agora para o eixo do
simbólico.

II. Quanto ao eixo simbólico:

Se a holófrase se liga a uma situação limite, lá onde o sujeito está suspenso numa
relação especular ao outro,27 o problema é saber porque isto acontece.
Numa Conferência sobre o sintoma, pronunciada em 04 de outubro de 1975,
Lacan se refere à psicossomática como um domínio mais que inexplorado, concebendo-o
como pertencente à ordem da escrita: como se algo estivesse escrito no corpo,diz ele, algo
que nos é dado como enigma. Utiliza ainda o termo "hieróglifo", e diz que o corpo é
tomado como num cartucho, revelando o nome próprio.28 E prossegue dizendo que o
fenômeno psicossomático tem a ver com um gozo específico e por esta via é que se deve
abordá-lo clinicamente.

24Cf. Jacques-Alain Miller, loc. cit., p. 88s.


25Cf. J. Lacan, Seminário 11, p. 215 e 224.
26Cf. P. Valas, loc. cit., p. 83.
27Cf. J. Guir, op. cit., p. 178.
28Cartucho: traços, de forma oval ou retangular, que envolviam os nomes dos Faraós, destacando-os do resto
da escrita, e que ajudaram Champollion na decifração dos hieróglifos.
A psicossomática: uma forma de forclusão 8

Estas colocações de Lacan, tomadas no seu contexto histórico,29 permitem avançar


sobre a elaboração teórica proposta no Seminário 11.
Quando Lacan fala do fenômeno psicossomático como sendo algo da ordem da
escrita, é de se perguntar o que é que aí se inscreve. Ora, quando ele se refere ao "cartucho"
é como para dizer que aí se inscreve algo da ordem de um nome próprio, que por ser
intraduzível está relacionado a uma marca. E mais: Lacan diz também que o fenômeno
psicossomático escreve algo que é da ordem do número.30 Acontece que no seu Seminário
18 (1970-71) - De um discurso que não será semblante - ele afirma que o pai real é o que
permite a numeração e introduz a nomeação, cabendo-lhe assim o lugar do número. Em
outras palavras, é o pai que introduz uma ordem e que dá um nome.
A questão que se põe então é a seguinte: seria o fenômeno psicossomático um dos
nomes do Pai? Seria o caso de falarmos de uma suplência? Seria, ainda, como se o próprio
sujeito se deixasse fazer um nome para si? Isto é, um nome que se faria sem o nome do Pai,
tal qual Joyce que, segundo Lacan (Seminário Le sinthome, 1975-76), teria suprido essa
carência (do Nome do Pai) dando-se um nome através de sua própria escrita?
Assim, o indivíduo psicossomático, destituído de seu nome próprio, dar-se-ia a si
mesmo uma filiação através de uma nova identidade corporal.
Como se depreende facilmente, isto implica em dizer que houve aí uma florclusão
do nome do Pai. O que nos conduz, então, a examinar a questão por este prima. Para isto,
porém, é necessário abordarmos previamente a questão da função paterna.
Sabemos que a importância da função paterna começa a ser gestada por Lacan no
Seminário 3, As Psicoses, (1955-56), para revelar-se plenamente no Seminário 4, A relação
de objeto, (1956-57), e no seu texto sobre o tratamento possível da psicose.31
A função paterna intevem justamente como elemento essencial na substituição de
um significante por outro significante. É o pai que autoriza, por assim dizer, o sistema
significante; é ele quem suporta a cadeia significante enquanto elemento e lugar exterior à
cadeia. Esta é a condição de filiação ao nome do Pai.
Esta função paterna se faz presente através da metáfora paterna, pela qual se dá a
substituição significante, que possibilita ao sujeito o acesso ao próprio desejo, livrando-o da
voracidade materna. Por outro lado, o inscreve na cadeia das gerações, conferindo-lhe um
lugar e um nome, permitindo-lhe igualmente o reconhecimento da diferença dos sexos e a
assunção de sua própria sexualidade mercê à dinâmica identificatória.
O nome do Pai é, portanto, o grande conceito operador da castração e da própria
constituição do sujeito enquanto ser de desejo, portador de um nome próprio.
Ora, sabemos que Lacan, para explicar a psicose, introduz o conceito de forclusão,
mecanismo que pretende dar conta, justamente, do não advento da metáfora paterna e de
suas consequências adversas à ordem significante. A carência do nome do Pai e sua

29Cf. Maria Anita C.R. Lima Silva, "O Fenômeno Psicossomático" in A Imagem Rainha (Rio de Janeiro: Liv.
Sette Letras, 1995), p. 279.
30O cartucho psicossomático é "o ponto em que o corpo é levado a escrever alguma coisa da ordem do
número". (Lacan, Conf. de Genebra).
31Cf. J. Lacan, Écrits, p. 531-583.
A psicossomática: uma forma de forclusão 9
consequente forclusão seria assim o fator responsável pela organização da estrutura
psicótica.

Pois bem, este mesmo mecanismo explicativo da psicose, na teoria e na clínica


lacaniana, é igualmente utilizado para explicar o fenômeno psicossomático. A forclusão do
nome do Pai seria assim o mecanismo formador do fenômeno psicossomático, origem do
congelamento significante que atrapalha o processo integral da operação de causação do
sujeito. Neste sentido, é oportuno lembrar que o próprio Lacan, no seu Seminário 1132
considera como sendo da mesma ordem o que se passa na psicose e na lesão de órgão, a
saber: a holofraseação da cadeia significante.
Surge aqui uma primeira questão: se o mecanismo indutor da psicose é o mesmo
que se encontra à raiz do fenômeno psicossomático, isto é, a foclusão, onde estaria então a
diferença entre os dois? Haveria aí uma identidade de estrutura? Já vimos que Lacan os
coloca numa mesma série, embora faça uma ressalva quanto à posição ocupada pelo sujeito,
que não seria idêntica nos dois casos. O que aliás já coloca outro problema, pois se a
holófrase elide a afânise, como falar aí de posição do sujeito? Como quer que seja, uma
coisa é certa: os autores se acordam em afirmar um parentesco entre a psicose e os
fenômenos psicossomáticos, devendo-se, portanto, investigar onde residem as diferenças,
uma vez que parece estar no mecanismo da forclusão e no engessamento do par significante
o seu ponto de aproximação.
Isto nos leva, num primeiro momento, a questionar a extensão do conceito de
forclusão e suas consequências, para ver até que ponto é plausível sua aplicação aos
fenômenos psicossomáticos, sem que isto implique necessariamente numa redutibilidade à
estrutura psicótica.
A forclusão do nome do Pai, gestada, como dissemos, no Seminário 3 e nomeada
explicitamente no texto sobre o tratamento da psicose33, reaparece ao longo dos escritos e
do ensino de Lacan como um conceito equívoco, que se presta a mal-entendidos e
ambiguidades, embora conserve sempre um lugar de destaque na teoria. Aparecendo ora
como um simples termo, ora como conceito que vem substantivado em função de
diferentes genitivos, 34 a forclusão conserva sua força como um operador eficiente para
explicar a psicose mediante o seu caráter de potência ordenadora dessa estrutura. De
quando em vez, porém, Lacan amplia a extensão do conceito, outorgando-lhe o estatuto de
mecanismo estruturante na constitituição de todo e qualquer sujeito, como quando fala, por
exemplo, de forclusão da castração. Por vezes, ainda, o utiliza sem nenhuma referência à
causalidade da psicose, como, por exempo, no caso da forclusão do sentido orientada pelo
real, que encontra na suplência do nome do Pai - caso particular das neuroses - a forma de
compensar a ausência de sentido imposta pelo real.

32Cf. J. Lacan, Seminário 11, p. 225.


33Cf. J. Lacan, Écrits, p. 558.
34Lacan fala, em diferentes momentos, de forclusão do nome do Pai, forclusão da Coisa, forclusão do sujeito,
forclusão do dizer, forclusão da castração. - Sobre isto q.v. Neusa Santos Souza, "A Foraclusão, um caso de
grandeza negativa" in Boletim de Novidades Pulsional, ano VII, número 59, março 1994, p.42-53.
A psicossomática: uma forma de forclusão 10
Como quer que seja, a partir de Lacan a forclusão ficou conhecida sobretudo como
o mecanismo específico à estrutura psicótica. Esta forclusão do nome do Pai é princípio da
própria loucura, diz ele ainda em seu Seminário de 1974.35 A sua invenção foi amplamente

divulgada através do aforismo, sua marca registrada: "o que não veio à luz no simbólico,
ressurge no real".36
A amplitude do conceito mostra porém a plasticidade dos seus limites. Assim,
todos os autores são unânimes em afirmar que o fato de a forclusão estar na origem dos
fenômenos psicossomáticos não implica numa homogeneidade de estrutura com a psicose.
Pelo que já vimos, a psicossomática nem sequer constitui uma estrutura. O que é necessário
então é tentar apreender a especificidade da forclusão psicossomática, definindo a extensão
do seu alcance.

Digamos que os fenômenos psicossomáticos são manifestações especiais do


simbólico, situadas nos limites da estrutura da linguagem, embora se coloquem dentro do
campo da linguagem e obedeçam , no seu surgimento, a uma indução significante.São
fenômenos de borda, para aquém das construções neuróticas e da psicose. Enquanto
manifestação de uma ruptura específica da estrutura do nome próprio, eles representam a
solução encontrada para um defeito de filiação simbólica.
Jean Guir37 considera que nos fenômenos psicossomáticos não há forclusão, pois
não se trata de um caso de psicose. Ele simplesmente diz que a metáfora paterna não
funcionou para fazer o corte ente S1 e S2. Ora, mas este é justamente o problema que se
procura resolver: por que não funcionou? Qual a causa eficiente da holófrase e do não
advento da afânise do sujeito? Não basta dizer que não há forclusão porque senão seria uma
psicose. Isto apenas elide o problema, confundindo o ataque à metáfora subjetiva, da ordem
da causação do sujeito, com um ataque à metáfora paterna , que põe em questão o nome do
Pai, como se esta decorresse daquela, quando parece ser o contrário.38
Parece-me que a exploração das possibilidades oferecidas pelo próprio conceito de
forclusão, em sua relação com o nome do Pai, pode revelar-se mais fecunda na busca de
uma resposta.
Sabemos que Lacan, na reelaboração de sua teoria, passa do conceito de Nome-do-
Pai, no singular - [Seminário 3, 1956-57]-, para o de Nomes-do-Pai, no plural - [Seminário
21, 1973-74 e Seminário 22, l974-75]. vindo assim a estender seu uso para além do
domínio exclusivo da psicose, ao tempo em que admite a possibilidade de outros
significantes virem a ocupar, a título de suplência, a mesma função. O caso Joyce, ao qual

35Cf. J. Lacan, Seminário 21, Les non-dupes èrrent, 1974-75 (19.3.74) . Seminário inédito.Cit. ap. Neusa
Santos, loc. cit., p. 44.
36Cf. Écrits, p.388; Seminário 3, p.22.
37Cf. Jean Guir, A Psicossomática na clínica lacaniana, p. 174.
38É bem verdade que em outro texto J. Guir afirma que "a metáfora paterna funciona em certos sítios do
discurso e não em outros de forma descontínua" (o grifo é meu). In Wartel, op. cit., loc. cit., p. 48. Permanece
o problema: é preciso saber porque ela não funciona. Aliás, esta afirmação de J. Guir, pese ele não apelar
para a forclusão para explicar esta fenômeno de intermitência, o faz aproximar-se da posição de J. Nasio, para
quem nos fenômenos psicossomáticos existe uma forclusão localizada, como mostrarei mais adiante.
A psicossomática: uma forma de forclusão 11
já me referi, é apresentado como o protótipo de suplência da forclusão do nome do Pai por
algo da ordem do sintoma: a escrita.
O problema agora é como explicar de que forclusão se trata quando o
psicossomático é levado a escrever no próprio corpo uma lesão que, como um nome, uma
marca, desempenha o papel de suplência na falha da função paterna.

Comumente se pensa a forclusão como a rejeição de um significante simbólico que


reaparece no real . Considerando-se porém que o simbólico não é somente uma rede de
unidades discretas ligadas entre si, mas que exige, como condição de possibilidade de sua
consistência, a presença de um elemento fora da cadeia, funcionando como lugar do
sucessor nesta cadeia, poder-se-ia dizer que a forclusão seria exatamente a falta deste
elemento exterior. Isto não impede que a forclusão seja um mecanismo do domínio do
simbólico.39
Este lugar exterior à cadeia é próprio ao nome do Pai, podendo ser ocupado por um
significante qualquer. Nos fenômenos psicossomáticos, a forclusão do nome do Pai implica
no não aparecimento deste significante exterior, havendo portanto a falta de um significante
ao qual o sujeito possa se fixar, o que elimina a possibilidade da distância entre um
significante e a cadeia na qual ele desaparece.Em outras palavras, o sujeito psicossomático
não se afanisa porque não há distâncias entre o par significante. Assim, ele não desaparece.
Ele é. Ele está todo na lesão, de forma compacta, local, parcial. Não há significante fálico
que regule o gozo. O gozo dominante é um gozo local, auto-erótico. Isto se coaduna bem
com a fenomenologia clínica, na qual o psicossomático parece condensar sua existência e
sua fala em função de sua lesão. O seu discurso é pobre, opaco, e não raro marcado por
holófrases.
Desta forma, quando dizemos que nos fenômenos psicossomáticos há forclusão do
nome do Pai, é como se disséssemos, parafraseando Lacan: o que não veio à luz no
simbólico retorna no real sob a forma de uma lesão de órgão. O que não significa dizer que
o psicossomático seja um psicótico. É que no seu caso a forclusão é localizada, refere-se a
uma falta local, não excluindo, portanto, a existência de recalque.
Por outro lado, considerar a forclusão como um mecanismo local equivale a dizer
que o fenômeno psicossomático é uma realidade local, que pode conviver simultaneamente
com outras realidades, sejam elas de tipo neurótico, psicótico ou perverso. Esta realidade
local, que supre uma carência da função paterna, é induzida através de eventos de natureza
traumática que funcionam, num primeiro momento, como um apelo circunstancial feito
pelo desejo do Outro e, num segundo tempo, como conjunturas desencadeadoras da lesão
de órgão. Do ponto de vista clínico, tais eventos traumáticos frequentemente têm a ver com
datas e doenças ligadas a membros ou acontecimentos familiares. Ou seja, tal ou qual data
serve de pretexto para o sujeito fazer uma lesão psicossomática, que repete e imita uma
afecção de um certo membro da família,de preferência pais, avós ou cônjuge. Ou seja, numa
mesma linha de filiação, a zona corporal remanejada pela lesão evoca mimeticamente, no
mesmo lugar, um outro corpo com idêntica marca observável. Há como que um

39As considerações que seguem se apoiam no ponto de vista desenvolvido por J.-D. Nasio em seu livro
Psicossomática. As formações do objeto a. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edit., 1993).
A psicossomática: uma forma de forclusão 12
deslocamento, uma errância, um enxerto do objeto "afecção" dentro de uma mesma
descendência.
A filiação de objeto substitui assim a filiação do nome do Pai. Ou seja, no lugar do
Pai que falta aparece a lesão como uma nova versão do nome do Pai.

Afirmei, há pouco, que o fenômeno psicossomático é uma realidade localizada,


resultante de uma forclusão localizada. Para que se entenda melhor o alcance de tal
afirmação é preciso tentar uma articulação entre o conceito lacaniano de forclusão e a teoria
freudiana do auto-erotismo, o que permitirá apreender, pelo menos num primeiro nível, a
diferença entre o fenômeno psicossomático e a psicose.
Falar de forclusão do nome do Pai equivale a dizer que o gozo não é mais
normatizado pelo falo. Em termos freudianos, diríamos que houve uma retirada de libido
para o Eu. Na lesão de órgão, a retirada da libido para o Eu se faz em termos do que Lacan
chamou de estagnação formal, referindo-se à agressividade intrínseca à fase especular.
Pois bem, um retorno da libido para o Eu faz-se ao preço de uma identificação do
objeto com o Eu, vale dizer, no caso do fenômeno psicossomático, do sujeito-Eu com o
objeto-lesão, o excesso de gozo e o Eu constituindo uma única formação, uma lesão local.
Temos aí um sujeito-lesão, a lesão sendo vista como um caso de auto-erotismo. Podemos
dizer então que o fenômeno psicossomático é uma forma de auto-erotismo, momento em
que a pulsão parcial obtém prazer sobre o próprio órgão, fonte e objeto da pulsão a um só
tempo.
A diferença com a paranóia é que nesta, dado o retorno da libido, a identificação se
faz com todo o Eu, enquanto que no fenômeno psicossomático o processo é localizado em
um determinado órgão.
Em uma carta a Fliess, datada de 09.XI.1899 [carta 125], na qual trata do problema
da escolha da neurose, Freud escreve:
"Entre as camadas sexuais, a mais profunda é a do auto-
erotismo, que não tem nenhuma meta psicossexual e não exige mais
que uma sensação capaz de satisfazê-lo localmente. [o grifo é meu]... a
paranóia desfaz as identificações, restaura as pessoas que foram
amadas durante a infância (...) e cinde o eu em várias pessoas
estranhas.[idem] Eis porque fui levado a considerar a paranóia como
uma irrupção de uma corrente auto-erótica, como um retorno à
situação de outrora".40
Portanto, a rejeição da representação inconciliável (= forclusão do nome do Pai)
provoca uma perturbação da identificação, de tal forma que o Eu se ama em vários lugares
diferentes e assim se divide em várias pessoas, em vários Eus, numa forma de satisfação
auto-erótica. É como se neste retorno da libido ao auto-erotismo houvesse agora um Eu
parcelar, plural. Um Eu estilhaçado!
Em 1911, na análise do caso Schreber, Freud adotará um outro ponto de vista,
segundo o qual na paranóia o Eu destaca a libido do objeto, fazendo-a retornar ao Eu. Mas
agora é todo o Eu que é objeto de investimento libidinal.

40Cf. A correspondência completa de S. Freud para Wilhelm Fliess. Editado por Jeffrey Moussaieff Masson
( Rio de Janeiro,:Imago, 1986), p. 301.
A psicossomática: uma forma de forclusão 13
Se tomarmos o primeiro modelo de análise, o de 1899, proposto na carta 125, ele
pode nos servir de fundamento para a hipótese de um Eu parcelar nos fenômenos
psicossomáticos (desde que mudemos a expressão "Eu parcelar" por "sujeito"). Isto é: nos
fenômenos psicossomáticos haveria um retorno a uma situação de auto-erotismo, de tal
forma que a posição do sujeito aí corresponderia a uma localização, a um Eu parcelar,
suplementar, porém compacto, que nos permite falar em termos de "sujeito-lesão". A libido

retorna ao Eu, mas de uma maneira parcelar e plural. Secundariamente, tem lugar uma
exacerbação da libido, que termina por invadir e absorver o Eu e sua imagem.Tal
exacerbação e tal invasão libidinal decorre da ruptura de tensão existente entre o Eu o sua
imagem especular, ruptura resultante da forclusão do nome Pai, e da consequente não mais
exclusão da libido, exclusão responsável pela manutenção da tensão entre o Eu e a
imagem.41
Em suma, nos fenômenos psicossomáticos a forclusão do nome do Pai provoca
uma ruptura da tensão libidinal entre o Eu e sua imagem, provocando a invasão da libido
em diferentes lugares do corpo, que correspondem a Eus localizados, plurais, e que
determinam diferentes posições do sujeito e uma forma específica de gozo.
Esta maneira de compreender o fenômeno psicossomático permite definir melhor
seus pontos de semelhança e de diferença em relação à psicose. Nesta, é todo o Eu que é
investido; naquele, é o Eu parcelar, localizado, graças ao retorno ao auto-erotismo. Por
outro lado, a semelhança entre os dois reside num igual grau de tenacidade no que concerne
ao mecanismo da forclusão e ao recrudescimento narcísico. Portanto, a diferença reside na
posição do sujeito, e a semelhança no estilo de relação concernente à forclusão e ao
narcisismo.42 De tal modo que, assim como Freud disse que os paranóicos amam seu
delírio como a si mesmos, nós poderíamos parafraseá-lo dizendo: os doentes
psicossomáticos amam a sua lesão como a si mesmos!
Desta forma, vimos como apesar da forclusão estar presente tanto na psicose
quanto nos fenômenos psicossomáticos, ela não se efetua de forma unívoca. O que permite
estabelecer uma diferença entre os dois. Isto decorre tanto das possibilidades abertas pela
extensão imposta ao conceito pelo próprio Lacan, livrando-o assim das amarras exclusivas
da psicose, quanto por uma análise mais exaustiva e pela sua articulação com o auto-
erotismo. Aqui os dois eixos se encontram: o do imaginário e o do simbólico.
Lacan diz, porém, que é pela especifidade do seu gozo que se deve diferenciar o
fenômeno psicossomático e abordá-lo na clínica.43 Que gozo é este?
O que regula o gozo é o significante fálico.Falar em forclusão do nome do Pai é o
mesmo que dizer que o gozo não é normatizado pelo falo, não é mantido à distância pelo
desejo.
Na psicose, a forclusão do nome do Pai e a consequente ausência de regulação
fálica faz com que o sujeito seja dominado pelo gozo do Outro. É por isso que o gozo do
psicótico fica à deriva. É um gozo de Deus.

41Para isto q.v. no Esquema R, da constituição do sujeito, o triângulo imaginário. Écrits, p.553.
42Assim parece se responder à questão levantada mais acima sobre as diferentes posições do sujeito, tais
como preconizadas por Lacan no Seminário 11, p. 225.
43Ver a conferência de Genebra “O Sintoma”. Loc. cit.
A psicossomática: uma forma de forclusão 14
Já a lesão de órgão é uma maneira particular de gozar. Mas que espécie de gozo é
este? Um gozo localizado no corpo mas deslocado das zonas erógenas típicas; um gozo
sobre o corpo, sem a mediação da metáfora paterna. Na medida em que carece a função
paterna e a incidência da lei que interdita, parece-me que não há como falar de gozo fálico.
Seria então o gozo do corpo, enquanto inscrito entre o imaginário e o real, e portanto fora
do sentido? Seria a materialização de um gozar de uma parte do corpo do outro?44 Seria um

distúrbio do gozo ou a função do gozo estaria em falta, como opina Jean Guir?45 Estas
questões e a variedade de respostas que se propõem mostram a complexidade do problema.
Põe-se agora, para terminar, o problema do tratamento.
Todos os autores são concordes em reconhecer a dificuldade do tratamento
psicanalítico com pacientes psicossomáticos. Há até quem se pergunte se o fenômeno
psicossomático não seria uma maneira de apostar no pior, e que o melhor seria não fazer
nada, esperando que a cura venha com o tempo.46
Do ponto de vista estritamente psicanalítico, a lesão de órgão é um fenômeno que
não remete a nada, fechando-se sobre si mesma, tal como uma holófrase. Ora, a
interpretação é, pelo contrário, um corte que remete a outro significante, abrindo cadeias.
Qual é então o lugar do analista frente ao paciente psicossomático? Dar um nome à lesão,
diz J.-D. Nasio, dar-lhe uma história, restituir-lhe uma descendência, relançá-la para algo,
afim de encontrar no lugar da lesão um sintoma novo.47
De fato, por não se tratar de um sintoma, de pouco adianta valer-se da
interpretação, pois não somente ela não produz efeitos, mas pode mesmo ter resultados
desastrosos.
Por outro lado, o ataque à metáfora subjetiva, a forma específica de gozo, o elo do
desejo pelo viés da necessidade, o auto-erotismo atípico e exacerbado, a posição muito
particular do sujeito frente à sua lesão, tudo isto dificulta enormemente o manejo da
transferência e a transformação, preconizada por alguns autores, do fenômeno
psicossomático em sintoma.
Jean Guir considera, apesar de tudo, que a persistência da afecção pode estar ligada
à resistência do analista, que falha na condução do processo de castração simbólica a ser
promovida na cura. Só que ele não mostra como fazer para conseguir tal intento,
contentando-se em afirmar que, uma vez debelada a afecção, o analista dispõe de todos os
elementos para terminar o tratamento.48
Seja como for, não é por ser difícil que deveremos recuar ante os problemas que a
clínica dos fenômenos psicossomáticos nos coloca. Ao contrário. Uma posição ética exige

44Cf. Jean Guir, A Psicossomática..., p.139; p. 184.


45Ib., p. 185.
46Patrick Valas, cit. ap. Maria Anita C.R. Lima Silva, op. cit., p.284.
47cf. J.-D. Nasio, op. cit., p.70:71 e 88.
48Cf. Jean Guir, A Psicossomática na clínica lacaniana, p. 172.
A psicossomática: uma forma de forclusão 15
do analista a coragem de, contra toda ilusão de certeza e contra o ceticismo da impotência,
apostar no desafio do impossível.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen Bestimmtem
Symptomenkomplex als “Angst-Neurose”abzutrennen. G.W., I.

- Studien über Hysterie. G.W. , I.

- Die Sexualitat in der Atiologie der Neurosen. G.W., I.

- La Naissance de la Psychanalyse. Paris, PUF, 1965.

- L’Hérédité et l’Étiologie des Névroses. G.W., I.

- Zur Psychotherapie der Hysterie. G.W., I.

- Die Verdrängung. G.W., X.

- Das Unbewusste. G.W., X.

- Quelques considérations pur une étude comparative des paralysies motrices


organiques et hystériques. G.W., I.

- Neurasthenie und Angstneurose. G.W., I.

- A correspondência completa de S. Freud para Wilhelm Fliess. Editado por Jeffrey


Moussaief Masson. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

GUIR, Jean. A Psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1988.

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2. O Eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

- “O Sintoma”. Intervenciones y textos. Buenos Ayres: Manantial, 1988.

- O Seminário. Livro 3. As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.


A psicossomática: uma forma de forclusão 16

- O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio


de Janeiro, Zahar Ed., 1979.

- O Seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,


1979.

- Écrits. Paris: Éd. du Seuil, 1966.

LAPLANCHE, Jean. A Angústia. São Paulo: Martins Fontes Ed., 1987.

NASIO, J.D. Psicossomática. As formações do objeto a. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 1993.

SILVA, Mª Anita Lima. “O Fenômeno Psicossomático” in A Imagem Rainha. Rio de


Janeiro: Liv. Sette Letras, 1995.

SOUZA, Neusa Santos. “A Foraclusão, um caso de grandeza negativa” in Boletim de


Novidades Pulsional, Ano VII, número 59, março 1994.

VALLEJO A. e MAGALHÃES, L.C. Lacan. Operadores de Leitura. São Paulo: Ed.


Perspectiva, 1981.

WARTEL, R. et alii. Psicossomática e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,


1990.

. . . .......

UNITERMOS - Psicossomática - Forclusão - Psicose - Neurose - Gozo.

RESUMO - Depois de uma rápida apresentação da teoria de Freud sobre as neuroses atuais,
comparando-as com as neuroses de transferência, o autor se propõe buscar uma compreensão dos
fenômenos psicossomáticos à luz da teoria lacaniana. Para isto, expõe as diferentes passagens da
obra de Lacan onde ele se refere ã psicossomática, ordenando-as segundo as categorias do
imaginário e do simbólico. Finalmente, apoiando-se nos próprios textos de Lacan, o autor propõe o
mecanismo da forclusão como hipótese explicativa para o fenômeno psicossomático.

UNITERMES - Psychosomatique - Forclusion - Psychose - Névrose - Jouissance.

SOMMAIRE - Après une présentation de la théorie de Freud sur les névroses actuelles, l’auteur
cherche une compréhension des phénomènes psychosomatiques dans la théorie lacanianne. Ainsi,
A psicossomática: uma forma de forclusão 17
fait un parcours tout au long de l’oeuvre de Lacan, le mécanisme de la forclusion est proposé
comme étant celui à l’oeuvre dans les phénomènes psychosomatiques.

Luís F. G. de Andrade.
João Pessoa, novembro de 1995.

Este trabalho, com algumas modificações, foi apresentado na 2ª Jornada Norte Nordeste do Círculo Brasileiro
de Psicanálise, realizada em Aracaju [Sergipe], de 15 a 18 de novembro de 1995.

You might also like