Professional Documents
Culture Documents
A primeira idéia que nos ocorre ao falar sobre somatização é pensar na diferença
entre as neuroses transferenciais e as neuroses atuais, tais como teorizadas por Freud entre
1982 e 1985. Tal associação se justifica ainda mais quando se sabe que ao declínio do
conceito de neurose atual nos quadros da nosografia contemporânea, corresponde
igualmente a tendência a incluí-la no rol das concepções modernas a respeito das lesões
psicossomáticas.
Assim, pareceu-me apropriado começar este trabalho fazendo uma rápida
exposição sobre o conceito de neurose atual tal como teorizado por Freud no início de suas
investigações, incluindo aí tanto o aspecto etiológico quanto o mecanismo de sua própria
constituição. Isto ensejará, moto continuo, o confronto com as neuroses transferenciais, cuja
descrição psicodinâmica por si só ajudará a situar os pontos de diferença entre as duas
formas.
Numa segunda parte deste trabalho, tentarei expor as idéias de Lacan, partindo
dos seus próprios textos, o que ensejará a problematização de alguns aspectos da questão,
tanto no que concerne à teoria, quanto à clínica. Para isto me servirei igualmente da
contribuição de alguns autores que, seguindo as pistas abertas por Lacan, têm procurado
uma melhor compreensão do fenômeno psicossomático.
Em 1895 Freud publica um artigo no qual, partindo de uma idéia comum na época,
ele mostra que a neurastenia é o sinal de um esgotamento sexual resultante de uma
atividade sexual anormal, caracterizando-se por uma astenia física e intelectual , sintomas
dolorosos, distúrbios funcionais e depressão.Na verdade, corresponde ao que hoje
chamamos de afecção psicossomática ou lesão de órgão.1
É daí que Freud extrai o que ele chama de neurose de angústia, cujo complexo
sintomático se organiza basicamente em torno de um excesso de excitabilidade geral, de um
quantum de angústia livremente flutuante sempre à procura de qualquer pretexto para uma
fixação, e de acessos de angústia associados a um conteúdo representativo ou a algum
distúrbio funcional. Vemos aqui também a aproximação com a psicossomática.2
Embora a sua especificidade em relação às outras formas de neurose apareça tanto
neste artigo quanto em outros escritos ou publicações da época,3 é somente em 1898 que
vemos aparecer o termo "neurose atual".4
13Cf. A. Vallejo e Lígia C. Magalhães, Lacan. Operadores da Leitura (São Paulo: Ed. Perspectiva, 1981), p.
67.
14Cf . S. Freud, Neurasthenie und Angstneurose, 1895, G.W., I, p. 341s.
15 Segundo uma corrente que teve considerável sucesso sobretudo nos Estados Unidos ( G. GRODDECK, F.
DUNBAR, F. ALEXANDER, A. GARMA), os fenômenos psicossomáticos têm sentido; já os chefes de fila
da Escola Psicossomática da Sociedade Psicanalítica de Paris (R. HELD, P. MARTY, FAIN, G. de M"UZAN,
C. DAVID) situam tais fenômenos fora do sentido, fora de toda simbolização. Há uma posição intermediária
(!) segundo a qual os fenômenos psicossomáticos têm um sentido próximo ao da conversão histérica, "mas
não totalmente" (J.P.VALABREGA). - Sobre isto, cf. Patrick Valas, "Horizontes da psicossomática", in
Roger Wartel e outros, Psicossomática e Psicanálise, (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990) p. 69-86. Isto
demonstra a grande "confusão " em que se move a teorização da psicossomática!
A psicossomática: uma forma de forclusão 5
16Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 2,O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, (Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985), p.127.
17Cf. J. Lacan, “O sintoma” in Intervenciones y textos (Buenos Ayres: Manantial, 1988).
18Segundo o modelo apresentado por Freud para a paranoia em sua carta de 9.XII.1899 a Fliess, e não para
um Eu total, conforme o modelo da paranoia em 1911 [caso Schreber]. Voltarei a este ponto mais adiante.
19Cf. J. Nasio, Psicossomática. As formações do objeto a (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993), p.121s.
A psicossomática: uma forma de forclusão 6
20Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 3, As Psicoses ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985), p.352.
21Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanáli (Rio de Janeiro: Zahar
Ed., 1979) , p.215-216; 224-225.
22Cf. J. Lacan, O Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud (Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1979), p.
257.
23Cf. J. Lacan, Écrits (Paris: Éd. du Seuil, 1966), p.774.
A psicossomática: uma forma de forclusão 7
Isto significa dizer, então, que inexiste, neste caso, uma abertura para o campo do
Outro, para o desejo? Jacques-Alain Miller diz que o fenômeno psicossomático não põe em
questão o desejo do Outro, mas sim o contorna, na medida mesma em que contorna a
estrutura da linguagem, nisto diferenciando-se da relação ao Outro constitutiva do sintoma
histérico.24
Disto se deduz que há uma diferença entre o fenômeno psicossomático e o
sintoma, pois este é uma formação do inconsciente, com estrutura de linguagem, que supõe
uma substituição (metáfora), passível de deslocamento e de reformulação por efeito de uma
interpretação,e onde a relação ao Outro é parte constitutiva.
Uma outra consequência deste congelamento do par significante é a subversão da
necessidade pelo desejo. Isto é: uma necessidade intervém na função do desejo, e é por isso
que o elo do desejo é conservado, apesar de não haver afânise do sujeito. Lacan tenta
explicar isto apelando para a experiência de Pavlov com o cão, onde o animal é solicitado
por uma necessidade sob a pressão de significantes impostos pelo cientista.25 O animal não
tem nenhuma noção do desejo do experimentador. Ele simplesmente responde aos
estímulos através de uma função fisiológica implicada na necessidade. Mas assim fazendo,
introduz o corte do desejo do Outro (no caso o experimentador) na necessidade. Assim
também o psicossomático responde, dentro do campo da necessidade, a certos significantes
que lhe são impostos. O asmático, por exemplo, tem sua necessidade de respirar perturbada
pelo gozo enigmático do Outro, que lhe retorna no corpo sob a forma de angústia.26
Poder-se-ia, agora, perguntar sobre o porquê deste ataque à metáfora subjetiva.
Qual o mecanismo indutor deste congelamento, desta holofraseação, da cadeia significante,
responsável pela abolição do intervalo entre os significantes e dos mecanismos de
causação do sujeito. Para responder a esta questão é preciso voltar-se agora para o eixo do
simbólico.
Se a holófrase se liga a uma situação limite, lá onde o sujeito está suspenso numa
relação especular ao outro,27 o problema é saber porque isto acontece.
Numa Conferência sobre o sintoma, pronunciada em 04 de outubro de 1975,
Lacan se refere à psicossomática como um domínio mais que inexplorado, concebendo-o
como pertencente à ordem da escrita: como se algo estivesse escrito no corpo,diz ele, algo
que nos é dado como enigma. Utiliza ainda o termo "hieróglifo", e diz que o corpo é
tomado como num cartucho, revelando o nome próprio.28 E prossegue dizendo que o
fenômeno psicossomático tem a ver com um gozo específico e por esta via é que se deve
abordá-lo clinicamente.
29Cf. Maria Anita C.R. Lima Silva, "O Fenômeno Psicossomático" in A Imagem Rainha (Rio de Janeiro: Liv.
Sette Letras, 1995), p. 279.
30O cartucho psicossomático é "o ponto em que o corpo é levado a escrever alguma coisa da ordem do
número". (Lacan, Conf. de Genebra).
31Cf. J. Lacan, Écrits, p. 531-583.
A psicossomática: uma forma de forclusão 9
consequente forclusão seria assim o fator responsável pela organização da estrutura
psicótica.
divulgada através do aforismo, sua marca registrada: "o que não veio à luz no simbólico,
ressurge no real".36
A amplitude do conceito mostra porém a plasticidade dos seus limites. Assim,
todos os autores são unânimes em afirmar que o fato de a forclusão estar na origem dos
fenômenos psicossomáticos não implica numa homogeneidade de estrutura com a psicose.
Pelo que já vimos, a psicossomática nem sequer constitui uma estrutura. O que é necessário
então é tentar apreender a especificidade da forclusão psicossomática, definindo a extensão
do seu alcance.
35Cf. J. Lacan, Seminário 21, Les non-dupes èrrent, 1974-75 (19.3.74) . Seminário inédito.Cit. ap. Neusa
Santos, loc. cit., p. 44.
36Cf. Écrits, p.388; Seminário 3, p.22.
37Cf. Jean Guir, A Psicossomática na clínica lacaniana, p. 174.
38É bem verdade que em outro texto J. Guir afirma que "a metáfora paterna funciona em certos sítios do
discurso e não em outros de forma descontínua" (o grifo é meu). In Wartel, op. cit., loc. cit., p. 48. Permanece
o problema: é preciso saber porque ela não funciona. Aliás, esta afirmação de J. Guir, pese ele não apelar
para a forclusão para explicar esta fenômeno de intermitência, o faz aproximar-se da posição de J. Nasio, para
quem nos fenômenos psicossomáticos existe uma forclusão localizada, como mostrarei mais adiante.
A psicossomática: uma forma de forclusão 11
já me referi, é apresentado como o protótipo de suplência da forclusão do nome do Pai por
algo da ordem do sintoma: a escrita.
O problema agora é como explicar de que forclusão se trata quando o
psicossomático é levado a escrever no próprio corpo uma lesão que, como um nome, uma
marca, desempenha o papel de suplência na falha da função paterna.
39As considerações que seguem se apoiam no ponto de vista desenvolvido por J.-D. Nasio em seu livro
Psicossomática. As formações do objeto a. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edit., 1993).
A psicossomática: uma forma de forclusão 12
deslocamento, uma errância, um enxerto do objeto "afecção" dentro de uma mesma
descendência.
A filiação de objeto substitui assim a filiação do nome do Pai. Ou seja, no lugar do
Pai que falta aparece a lesão como uma nova versão do nome do Pai.
40Cf. A correspondência completa de S. Freud para Wilhelm Fliess. Editado por Jeffrey Moussaieff Masson
( Rio de Janeiro,:Imago, 1986), p. 301.
A psicossomática: uma forma de forclusão 13
Se tomarmos o primeiro modelo de análise, o de 1899, proposto na carta 125, ele
pode nos servir de fundamento para a hipótese de um Eu parcelar nos fenômenos
psicossomáticos (desde que mudemos a expressão "Eu parcelar" por "sujeito"). Isto é: nos
fenômenos psicossomáticos haveria um retorno a uma situação de auto-erotismo, de tal
forma que a posição do sujeito aí corresponderia a uma localização, a um Eu parcelar,
suplementar, porém compacto, que nos permite falar em termos de "sujeito-lesão". A libido
retorna ao Eu, mas de uma maneira parcelar e plural. Secundariamente, tem lugar uma
exacerbação da libido, que termina por invadir e absorver o Eu e sua imagem.Tal
exacerbação e tal invasão libidinal decorre da ruptura de tensão existente entre o Eu o sua
imagem especular, ruptura resultante da forclusão do nome Pai, e da consequente não mais
exclusão da libido, exclusão responsável pela manutenção da tensão entre o Eu e a
imagem.41
Em suma, nos fenômenos psicossomáticos a forclusão do nome do Pai provoca
uma ruptura da tensão libidinal entre o Eu e sua imagem, provocando a invasão da libido
em diferentes lugares do corpo, que correspondem a Eus localizados, plurais, e que
determinam diferentes posições do sujeito e uma forma específica de gozo.
Esta maneira de compreender o fenômeno psicossomático permite definir melhor
seus pontos de semelhança e de diferença em relação à psicose. Nesta, é todo o Eu que é
investido; naquele, é o Eu parcelar, localizado, graças ao retorno ao auto-erotismo. Por
outro lado, a semelhança entre os dois reside num igual grau de tenacidade no que concerne
ao mecanismo da forclusão e ao recrudescimento narcísico. Portanto, a diferença reside na
posição do sujeito, e a semelhança no estilo de relação concernente à forclusão e ao
narcisismo.42 De tal modo que, assim como Freud disse que os paranóicos amam seu
delírio como a si mesmos, nós poderíamos parafraseá-lo dizendo: os doentes
psicossomáticos amam a sua lesão como a si mesmos!
Desta forma, vimos como apesar da forclusão estar presente tanto na psicose
quanto nos fenômenos psicossomáticos, ela não se efetua de forma unívoca. O que permite
estabelecer uma diferença entre os dois. Isto decorre tanto das possibilidades abertas pela
extensão imposta ao conceito pelo próprio Lacan, livrando-o assim das amarras exclusivas
da psicose, quanto por uma análise mais exaustiva e pela sua articulação com o auto-
erotismo. Aqui os dois eixos se encontram: o do imaginário e o do simbólico.
Lacan diz, porém, que é pela especifidade do seu gozo que se deve diferenciar o
fenômeno psicossomático e abordá-lo na clínica.43 Que gozo é este?
O que regula o gozo é o significante fálico.Falar em forclusão do nome do Pai é o
mesmo que dizer que o gozo não é normatizado pelo falo, não é mantido à distância pelo
desejo.
Na psicose, a forclusão do nome do Pai e a consequente ausência de regulação
fálica faz com que o sujeito seja dominado pelo gozo do Outro. É por isso que o gozo do
psicótico fica à deriva. É um gozo de Deus.
41Para isto q.v. no Esquema R, da constituição do sujeito, o triângulo imaginário. Écrits, p.553.
42Assim parece se responder à questão levantada mais acima sobre as diferentes posições do sujeito, tais
como preconizadas por Lacan no Seminário 11, p. 225.
43Ver a conferência de Genebra “O Sintoma”. Loc. cit.
A psicossomática: uma forma de forclusão 14
Já a lesão de órgão é uma maneira particular de gozar. Mas que espécie de gozo é
este? Um gozo localizado no corpo mas deslocado das zonas erógenas típicas; um gozo
sobre o corpo, sem a mediação da metáfora paterna. Na medida em que carece a função
paterna e a incidência da lei que interdita, parece-me que não há como falar de gozo fálico.
Seria então o gozo do corpo, enquanto inscrito entre o imaginário e o real, e portanto fora
do sentido? Seria a materialização de um gozar de uma parte do corpo do outro?44 Seria um
distúrbio do gozo ou a função do gozo estaria em falta, como opina Jean Guir?45 Estas
questões e a variedade de respostas que se propõem mostram a complexidade do problema.
Põe-se agora, para terminar, o problema do tratamento.
Todos os autores são concordes em reconhecer a dificuldade do tratamento
psicanalítico com pacientes psicossomáticos. Há até quem se pergunte se o fenômeno
psicossomático não seria uma maneira de apostar no pior, e que o melhor seria não fazer
nada, esperando que a cura venha com o tempo.46
Do ponto de vista estritamente psicanalítico, a lesão de órgão é um fenômeno que
não remete a nada, fechando-se sobre si mesma, tal como uma holófrase. Ora, a
interpretação é, pelo contrário, um corte que remete a outro significante, abrindo cadeias.
Qual é então o lugar do analista frente ao paciente psicossomático? Dar um nome à lesão,
diz J.-D. Nasio, dar-lhe uma história, restituir-lhe uma descendência, relançá-la para algo,
afim de encontrar no lugar da lesão um sintoma novo.47
De fato, por não se tratar de um sintoma, de pouco adianta valer-se da
interpretação, pois não somente ela não produz efeitos, mas pode mesmo ter resultados
desastrosos.
Por outro lado, o ataque à metáfora subjetiva, a forma específica de gozo, o elo do
desejo pelo viés da necessidade, o auto-erotismo atípico e exacerbado, a posição muito
particular do sujeito frente à sua lesão, tudo isto dificulta enormemente o manejo da
transferência e a transformação, preconizada por alguns autores, do fenômeno
psicossomático em sintoma.
Jean Guir considera, apesar de tudo, que a persistência da afecção pode estar ligada
à resistência do analista, que falha na condução do processo de castração simbólica a ser
promovida na cura. Só que ele não mostra como fazer para conseguir tal intento,
contentando-se em afirmar que, uma vez debelada a afecção, o analista dispõe de todos os
elementos para terminar o tratamento.48
Seja como for, não é por ser difícil que deveremos recuar ante os problemas que a
clínica dos fenômenos psicossomáticos nos coloca. Ao contrário. Uma posição ética exige
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen Bestimmtem
Symptomenkomplex als “Angst-Neurose”abzutrennen. G.W., I.
GUIR, Jean. A Psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1988.
. . . .......
RESUMO - Depois de uma rápida apresentação da teoria de Freud sobre as neuroses atuais,
comparando-as com as neuroses de transferência, o autor se propõe buscar uma compreensão dos
fenômenos psicossomáticos à luz da teoria lacaniana. Para isto, expõe as diferentes passagens da
obra de Lacan onde ele se refere ã psicossomática, ordenando-as segundo as categorias do
imaginário e do simbólico. Finalmente, apoiando-se nos próprios textos de Lacan, o autor propõe o
mecanismo da forclusão como hipótese explicativa para o fenômeno psicossomático.
SOMMAIRE - Après une présentation de la théorie de Freud sur les névroses actuelles, l’auteur
cherche une compréhension des phénomènes psychosomatiques dans la théorie lacanianne. Ainsi,
A psicossomática: uma forma de forclusão 17
fait un parcours tout au long de l’oeuvre de Lacan, le mécanisme de la forclusion est proposé
comme étant celui à l’oeuvre dans les phénomènes psychosomatiques.
Luís F. G. de Andrade.
João Pessoa, novembro de 1995.
Este trabalho, com algumas modificações, foi apresentado na 2ª Jornada Norte Nordeste do Círculo Brasileiro
de Psicanálise, realizada em Aracaju [Sergipe], de 15 a 18 de novembro de 1995.