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As Horas Difíceis
Cada Vez Que é Desafiado Pelo Sofrimento, o
Ser Humano Decide se Prefere Agir com Grandeza
Ninguém está livre de perigos, de perdas ou de sofrimento. Uma questão prática, portanto, é
saber o que fazer diante dos momentos difíceis da vida. Como devemos enfrentá-los? E como
ajudar os outros seres que sofrem?
É nos momentos de dor, e não nas horas agradáveis, que o indivíduo verifica o seu verdadeiro
sistema referencial e examina a solidez do solo em que está colocada a estrutura da sua vida.
Cada vez que é desafiado pelo sofrimento, o ser humano decide se prefere agir com grandeza.
Aquele que se deixa levar pelo desespero está na verdade perdendo uma oportunidade valiosa de
crescer interiormente. E quando alguém amedrontado abandona o bom senso para pedir favores
especiais a alguma divindade, esquece que o Universo é regido por leis imparciais e que cada erro
será corrigido, sem que seja necessário fazer alguma solicitação ou requerimento pessoal neste
sentido.
aprender a distinguir entre o que podemos e o que não podemos controlar é que a tranquilidade
interior e a eficácia exterior tornam-se possíveis.” [1]
Agir corretamente é plantar bom carma. É inútil tentar colher o que não foi plantado, ou colher o
que foi plantado enquanto o carma não estiver maduro. O Universo é regido por uma Lei, e não
por algum deus humanóide, um egoísta todo-poderoso que quebra as regras da natureza e
“desliga a lei do carma” para proteger casuisticamente este ou aquele indivíduo, porque foi feita
esta ou aquela oração.
Estudando os grandes ciclos de tempo em que ocorre a evolução da vida, o teosofista compreende
o funcionamento da Lei e se pergunta pela atitude pessoal mais adequada diante dos momentos
difíceis que todo ser humano deve enfrentar.
Ele sabe que as igrejas frequentemente ensinam o medo, ao estimular pedidos de favores pessoais
a um deus imaginário. Ele afasta de si esta influência negativa, lembrando da dignidade com que
um Sócrates, um Sêneca, um Giordano Bruno e outros filósofos viveram o desapego quando
perseguidos e condenados à morte. Ele sabe que tem algo a aprender de tais exemplos. Ao invés
de pretender dirigir os acontecimentos da vida através de pedidos pessoais a algum deus − ou de
desesperar-se sem saber o que fazer nas horas difíceis − ele age da melhor maneira possível e
planta para o futuro a médio e longo prazo aquilo que lhe parece correto. Ele é capaz de valorizar
estas palavras de Epicteto, que via a vida como se ela fosse um longo banquete oferecido pelos
deuses:
“Quando somos convidados a um banquete, nós tomamos o que nos é servido. Se um hóspede
pedir ao anfitrião que lhe dê peixe ou bolo doce, será considerado um sujeito pouco razoável.
Mas no mundo nós pedimos aos Deuses aquilo que eles não dão; e fazemos isso embora sejam
muitas as coisas que eles nos deram.” [2]
Como chaves de interpretação para uma leitura esotérica dessa obra, devemos lembrar que
expressões como “Jesus”, “Senhor”, ou “Senhor Cristo” são símbolos do Eu Superior de cada
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indivíduo. Ambientado na cultura medieval, o livro é um diálogo entre a Alma Mortal e o seu Eu
Superior. Em determinado momento, Jesus diz à alma mortal ou discípulo:
“Filho, se puseres tua paz em alguma pessoa, por ser de teu parecer e por conviver contigo,
achar-te-ás inconstante e embaraçado. Se, porém, recorreres à verdade, sempre viva e
permanente, não te entristecerás pela ausência e morte de um amigo. Em mim [alma imortal,
amor impessoal] se deve fundar o amor do amigo; por mim se deve amar todo aquele que, nesta
vida, te parecer bom e amável.” [3]
Esta ideia é similar a algo que está presente nos Upanixades hindus. Ali, o sábio Yajnavalkya
explica à sua esposa Maitreyi:
“Não é pelo marido em si que o marido é amado, mas é pela presença do Ser [a inteligência
universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa em si que a esposa é amada, mas
é pela presença do Ser [a inteligência universal] na esposa, que a esposa é amada. Não é pelos
filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser [a inteligência
universal] nos filhos, que os filhos são amados. Não é pelos animais em si, que os animais são
amados, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] nos animais, que os animais são
amados.” [4]
Quando o estudante de teosofia percebe a unidade dinâmica da vida e vê que a durabilidade dela
está na essência interior, mas não na forma externa, ele é capaz de compreender que tanto as
perdas quanto as aquisições − emocionais ou materiais − fazem parte de um processo maior de
reciclagem e de renovação. Não há motivo para lamentar demasiado as perdas. Nem é sábio
apegar-se indevidamente às vitórias obtidas. Em determinado trecho da obra “Imitação de
Cristo”, a alma mortal ou discípulo desabafa e diz o seguinte ao “Senhor”, símbolo da alma
imortal ou mestre interno:
“Ah, Senhor, a que chegamos? Eis que choramos uma perda temporal, trabalhamos e corremos
para ganhar lucro mesquinho, mas do dano espiritual esquecemos, e mal nos lembramos, ou
tarde. Olha-se muito pelo que pouco ou nada vale, e não se faz caso do que é sumamente
necessário, porque o homem se entrega inteiramente a coisas exteriores, e, se prontamente não se
recolher, nelas descansa com prazer.” [5]
“Jesus [a alma imortal] encontra muitos agora [que são] apreciadores do seu reino celestial; mas
poucos que queiram levar a sua cruz [carma]. Tem muitos sequiosos de consolação, mas poucos
da tribulação; muitos companheiros à sua mesa; mas poucos da sua abstinência. Todos querem
gozar com ele; poucos querem sofrer por ele alguma coisa. Muitos seguem Jesus até o partir do
pão, poucos até o beber do cálice da paixão. Muitos veneram seus milagres, mas poucos abraçam
a ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus enquanto não enfrentam adversidades. Muitos o
louvam e bendizem, enquanto recebem d’Ele algumas consolações; se, porém, Jesus [a alma
imortal] se oculta e por um pouco os deixa, caem logo em queixumes e desânimo excessivo.
Aqueles, porém, que amam a Jesus por Jesus mesmo, e não por própria satisfação, tanto O
louvam nas tribulações e angústias como na maior consolação. (.....) Não se amam mais a si do
que a Cristo os que estão sempre cuidando de seus cômodos e interesses?” [6]
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“A muitos parece dura esta palavra: ‘Renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz [o carma] e segue a
Jesus Cristo [a alma imortal] (Mt. 16:24) ’. ” [7]
Esta ideia básica faz parte do que há de melhor na sabedoria de todos os tempos, e coincide com
a Raja Ioga. As filosofias clássicas do Oriente e do Ocidente ensinam a renúncia ao eu inferior:
“E se tiver grande virtude de devoção ardente, muito ainda lhe falta, a saber: uma coisa que lhe é
sumamente necessária. Que coisa será esta? Que, [tendo] deixado tudo, deixe a si mesmo e saia
totalmente de si, sem reservar amor-próprio algum, e, depois de feito tudo o que soube fazer,
reconheça que nada fez.” [8]
“A Voz do Silêncio”, o clássico da filosofia esotérica do Oriente, aponta para o mesmo princípio
universal:
“Se tua Alma sorri enquanto se banha na luz do Sol da tua Vida; se tua Alma canta dentro da sua
crisálida de carne e matéria; se tua Alma chora dentro do seu castelo de ilusão; se tua Alma luta
para romper o cordão de prata que a liga ao MESTRE (Eu Superior), então fica sabendo, ó
Discípulo, que a tua Alma é da terra.” [9]
Há, de fato, uma essência comum compartilhada pelo cristianismo místico, pelo budismo e por
outras filosofias e religiões. Essa essência interior constitui a verdadeira Theo-sophia. Assim, “A
Voz do Silêncio” coincide com todas as tradições autênticas, ao aconselhar:
“Não desejes coisa alguma. Não te irrites com o Carma, nem com as leis imutáveis da Natureza.
Mas luta apenas com o que é pessoal, com o transitório, o evanescente e o perecível.” [10]
A Lei está no centro da Roda da Vida, e nela não há oscilações, mas paz e bem-aventurança.
“Imitação de Cristo” complementa:
“É bom passarmos algumas vezes por aflições e contrariedades. Porque elas frequentemente
fazem o homem refletir, lembrando-lhe que vive no desterro e, portanto, não deve pôr a sua
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esperança em coisa alguma do mundo. É bom encontrarmos às vezes contradições, e que de nós
façam conceito mau ou pouco favorável, ainda quando nossas obras e intenções sejam boas. Isso
normalmente nos conduz à humildade e nos preserva da vanglória. Porque recorremos mais
depressa ao testemunho interior de Deus [da Lei Universal], quando de fora somos vilipendiados
e desacreditados pelos homens. Por isso o homem deve firmar-se de tal modo em Deus [na Lei
Universal] que não lhe seja mais necessário mendigar consolações das criaturas.” [12]
“A perfeição moral consiste em viver cada dia como se fosse o último, evitando a agitação
excessiva, a indiferença e a hipocrisia.”[13]
E ainda:
“Pensa firmemente a cada instante (...) em fazer o que estiver em tuas mãos com uma seriedade
total e sincera, com sentimento, independência e justiça; e trata de livrar-te de quaisquer outras
preocupações. Livrar-te-ás delas se praticares cada ação de toda a vida como se fosse a última,
evitando a negligência, a aversão doentia ao domínio da razão, a hipocrisia, o egoísmo e o
inconformismo diante do que te foi destinado. Vês como são poucos os requisitos que basta
dominar para viver uma vida correta e agradável aos deuses, pois os deuses não reclamarão nada
mais a quem observar estes preceitos.”[14]
Estes preceitos da sabedoria universal são úteis para todo ser humano, e o protegem tanto da
euforia − na vitória − quanto do desânimo, na derrota. É também recomendável falar deles a
amigos e pessoas próximas: deste modo, um número crescente de pessoas será capaz de receber
com desapego os momentos agradáveis da vida, e de enfrentar com coragem as horas difíceis.
NOTAS:
[1] “A Arte de Viver”, Epicteto, uma nova interpretação de Sharon Lebell, Ed. Sextante, RJ,
2000, 159 pp., ver p. 20.
[2] “Enchiridion”, Epictetus, Dover Publications, Mineola, New York, copyright 2004, 56 pp.,
ver p. 26.
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[3] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2000, edição de bolso,
278 pp., ver Livro Terceiro, início do Capítulo 42.
[4] “Brihadaraniaka Upanixade”, em “The Principal Upanishads”, Edited With Introduction, etc.,
by S. Radhakrishnan, Muirhead Library of Philosophy, London: George Allen & Unwin Ltd,
New York: Humanities Press, Inc., fourth impression, 1974, 958 pp., ver pp. 282-283.
[5] “Imitação de Cristo”, obra citada, Petrópolis, RJ, 2000, p. 176, Livro III, Capítulo 44.
[9] “The Voice of the Silence”, tradução do Senzar e notas de H.P. Blavatsky, Theosophy
Company, Los Angeles, EUA, 1987, 110 pp., ver Fragmento I, p. 3.
[11] “The Voice of the Silence”, tradução do Senzar e notas de H.P. Blavatsky, obra citada,
Fragmento I, pp. 4-5.
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