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Medéia
Transubstanciação de
Millôr Fernandes
ct vtLrzAÇÃo tìRAStLtÌtRA
Rio de Janeiro
-2004
-lôR TERNANDES
TUTOR TUTOR
Mas a desditosa senhora não vai nunca interromper Ali, junto à sagrada fonte de Pirene, onde os mais velhos
esses lamentos? anciáos desta cidade jogam dados para iludir a morte, me
aproximei fingindo náo ouvir nada, e ouvi mais do que
AMA devia. Creonte, rei desta terra, pretende expulsar de
Eu gostaria de ser como tu és. Nem percebes que os in- Corinto Medéia e seus meninos. Se o que dizem é verda-
fortúnios estão mal começando. de, eu náo sei, vamos rogar aos deuses que não seja.
TUTOR AMA
I
ll Que desvairada!, se é que posso me referir assim a mi- E Jasão, Jasão!,permitirá que façam isso com seus fi-
nha senhora. Desvairada nesse pranto, que deveria pre- lhos, só porque está em contenda com Medéia?
servar para novas desgraças.
TUTOR
AMA
Velhos laços se rompem quando se fazem novos laços.
O que queres revelar, fingindo assim que escondesì Con-
Jasáo já não ama esta família.
ta, velho!
AMA
TUTOR
Estamos arruinados, quando novas desgraças se juntam
Náo mais tenho a dizer. E me arrependo do pouco que
já disse. às anteriores antes que o tempo absorva a dor antiga.
AMA TUTOR
Por tuas barbas, não ocultes nada desta antiga compa- Mantém tua calma e cala tua voz, nem uma palavra
nheira-escrava. De tudo que ouvir, guardarei cada pa- daqui deve ser repetida. Ainda não é hora da senhora
lavra em meu silêncio. saber o que sabemos.
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ueoÉte
MITLôR FERNANDES
AMA MEDÉtA
(Dentro da casa)
seus
Ouvis, crianças, como esse pai vos trata? Quais são
e pe-
sentimentos? Que a perdiçáo o alcance! Eu
quero que Ai de mim, desgraçada, miserável com mil chagas
ele morra! Não, não, ainda é meu senhor' Mas,
por am- rrrs. Ai, de mim! Quem me dera morrer!
bi$o, traiu os que lhe eram mais caros e mais próximos'
AMA
TUTOR de vossa
Vcjam aí, ó crianças queridas, como o coração
sua alma'
E quem, entre os mortais, náo age assim? Só agora ,rrá. .rtá perrurbado. Os dedos do ódio sufocam
se aproxi-
aprendes que todo ser humano ama primeiro a si
mes- l'rrra dentro de casa, iá! Longe de suavista!Não
mo e depois quando pode ao seu vizinho? Ou rrrcm dela, fujum do seugênio selvagem, danafrxezafetoz
- - corram!
porque tem o egoísmo nas entranhas ou porque o im- com que foi dotada. Para dentro, mais depressa'
pulsiona uma cobiça. Este deixou de amar aos que ama- É .luro que sua fúria vai crescer enquanto não satis-
que
va, envolvido por nova e diabólica paixão' fcita. Esses gritos são apenas os arautos' trovões
logo
Irnunciam uma reuniáo de nuvens negras de onde
quem' Ela é
AMA ceirão os raios, não importa onde ou sobre
movi-
cf,pazde tudo, essa alma orgulhosa e implacável'
Vamos, crianças, para dentro. Está tudo bem' E tu,
tla por tanta angústia e desespero'
procura mantê-las bem longe, não deixa que se aproxi-
já que
mem da mãe e aumentem sua afliçáo' Pois notei
(Tutor e uianças saem)
a senhora olha pra elas com olhares ferozes, como se
que sua
tencionasse alguma ação funesta' Ah, bem sei
MEDÉIA
fúria só será aplacada quando encontrar alguma vítima'
(Fora de cena)
ouve o que digo. Que pelo menos recaia sobre inimi-
gos, náo sobre os amigos. parataÍfta
Ai de mim!, desgraçada, não tenho lamentos
maldi-
agonia! (Vendo os filhos que entram) Vocês, filhos
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MEDÉIA
-LÔR TERNANDES
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MILTÔR FERNANDES ueoÉra
Escutas, ô Zeus, que és terra e que és luz, Junto com seu palácio,
Reduzidos alama,
O gemer plangente
Eles que ousaram ofender-me
Dessa mulher aflita?
E humilhar-me.
Louca, que deseio insaciável
te faz guardar esse leito de amor? Ó -eu pai, ó minha Pâtria,
Por que invocas a morte? Que para minha vergonha abandonei,
A morte chega sempre, náo é preciso invocá-la. Depois de assassinar meu próprio irmão!
lt E se teu amante prefere um amor novo
Não te tornes, por isso, desgraçada. AMA
|lI'
Zeus te defenderá,
,
Ouçam bem essa voz,
Na hora de decidir entre o que um fez
E o que o outro suportou. Com inaudita força apela a Têmis,
Não gastes mais lágrimas e gritos Guardiã da justiça
Do que um marido vale. E aZeus, que vela o cumprimento das promessas.
Invoca apenas esses deuses
MEDÉTA Pois náo serão forças menores
(De dentro) Que terão o poder de aPlacar
Sua cólera sobre-humana.
Ó grande Zeus e sua amada Têmis,
Deusa das leis eternas,
coRo
Da justiça divina,
Olhem bem o que sofro Como poderemos nós trazê-la até aqui
Por me ter ligado a esse maldito Diante de nossos olhos
Por tantos e táo profundos juramentos. Ao alcance de nossa voz
Ah, se eu pudesse um dia, Para ouvir nossos conselhos
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MEDÉtA
MILtÔR FERNANDES
Mas ninguém jamais criou músicas e cantos soberbas, às vezes com o próximo, algumas até quando
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MILLÔR FERNANDES ueoÉre
estáo sozinhas. Algumas, como eu, podem adquirir fama E ficamos esperando que o primeiro mal náo traga
de indiferentes ou de cruéis apenas pela maneira com que rrrrrl pior. Pois, se erramos na escolha do marido, não
se comportam diante de seus concidadãos. Perdem a ra- podemos jamais repudiá-lo. A separação conjugal é uma
zãotanto os que se exibem mais do que o devido quanto rlcsonra para as mulheres.
os que se recolhem à sua própria vida e intimidade. O homem, quando aborrece do que vive em casa,
Pois não existe discernimento na visão dos mortais. sc distancia e livra a alma desse peso e tédio na compa-
Antes de conhecerem o que vai no coração do outro, re- rrhia de algum amigo ou companheiro de sua mesma
pelem logo, só pela aparência, aquele que nunca lhes fez idade. Nós, mulheres, temos que manter a vida presa a
nada de mal. Por isso, o estrangeiro, mais do que todos, um único ser o tempo todo.
deve integrar-se aos costumes da terra. Mas também não Argumentam porém que vivemos seguras em nosso
aprovo o cidadão que, por soberba nativa, ofende os que lar, enquanto eles enfrentam as guerras. Lamentável ar-
considera estranhos, só porque vêm de fora. A desgraça gumento: é preferível ir três vezes à guerra do que pa-
que caiu sobre mim fez minha vida em pedaços. Amigas, rir uma só vez.
arruinada que estou, perdida toda a minha alegria, só Mas basta; esta linguagem serve a mim, amiga, não
desejo morrer, ele era tudo para mim, ele era o mundo. serve a ti. Tens aqui tua cidade, a casa de teus pais, a
Agora é apenas o mais vil dos homens, o meu esposo. alegria de viver, a convivência de amigos. Eu, destituída
De todas as coisas que têm vida e razáo, somos nós, e sem pâtría, ultrajada por um marido que me trouxe
as mulheres, as mais desventuradas. Primeiro temos que para câ como presa caçada em terra bârbara, não tenho
comprar, com alto dote, um marido, que assim se torna máe, nem irmão, parente algum em que me ampare ou
senhor, e mais, tirano de nosso corpo. Mas, ainda pior; console, em quem me abrigue do meu infortúnio.
temos que adivinhar como nos comportamos (pois não Às mulheres de Corinto, aqui presentes, peço ape-
nos ensinaram nada em nossa casa) com o companheiro nas se eu encontrar o caminho de fazer Jasáo pagar
-
pelo que fez, e se puder me vingar também desse rei que
que nos coube no leito. Se conseguimos cumprir nos-
sos deveres com sensibilidade e tato, e o esposo sente o lhe entregou a filha, e dessa filha, que agoÍa será a es-
gozo e náo o jugo, podemos ter uma vida digna de in- posa de Jasão repito, peço apenas silêncio. Que se
calem.
-,
veja. Se nâo,é melhor morrer.
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MtLtÔR FERNANDES MEDÉIA
CORIFÉh CREONTE
Silêncio. Isso te prometemos, Medéia. Pois a tua vin- lL'rrho medo de ti. É inútil tentar esconder num véu de
gança é mais que justa. Não surpreende o pranto que l)irlavras meu temor de que faças algum mal irreparável
derramas por teu sofrimento. Mas espera, aí estâ .r rninha filha. Muitas razões contribuem Para este meu
Creonte, rei deste país, na certa para anunciar suas no- r cccio. Tu és feiticeira desde que nasceste, hábil e capaz
i. vas decisões. ,lc rnil malefícios que pretendes usar, por te sentires rou-
l';rrla do teu leito e preterida por teu homem.
CREONTE Ouvi dizer, assim me dizem, que fazes ameaças ao
(Entra, com séquito) da noiva, além de fazeres ao esPoso e à esposa. Por-
1,rri
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LLÔR FERNANDES uroÉrn
serão alvo de invejas e agressões. Pois, se mostrarem co- tlcfcndermos de uma mulher ameaçadora ou de um
nhecimentos novos aos tolos, serão considerados tolos Iromem também assim do que de alguém pérfido, que
pelos tolos. Em resumo; se na cidade tua fama de sábio sc cala e finge. Vai, desaparece daqui! Não me digas mais
ultrapassar a dos que se julgam donos da sabedoria, se- rrrna palavra. Está decretado. Não adianta artimanha
rás um estorvo e um desagrado. l)rìra permanecer aqui, pois sei que me odeias.
Eu multiplico em mim essa má-sorte; para uns, eu
sei demais e por isso me odeiam, outros não me enten- MEDÉTA
dem e me acham fechada, outros que sou exatamente o (Suplicante, abraçada aos joelhos do rei)
oposto. Há os que me acham incapaz de ser satisfeita e
Não, a teus joelhos e pela felicidade de tua filha, a noi-
atê náo muito experta. Ti:, por exemplo, me temes por- v:ì, eu te suplico, deixa-me ficar.
que pensas que tenho o poder de perturbar tua paz. Náo
tenhas esse medo, Creonte, o meu poder náo chega para
CREONTE
que eu possa ameaçar um rei. E por que o faria? Em
que tu me ofendeste? Deste tua filha como esposa a I'rrlavras insinceras. Não vão me convencer.
CREONTE
MEDÉlA
Tüas palavras são humildes, agradáveis de ouvir, mas ('), minha pâtriartua lembrança é tudo que possuo agora.
atrás delas deves estar premeditando alguma coisa ne-
f.anda. Acredito em ti cada vez menos. É mais fácil nos
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MtLLôR IERNANDES MEDÊIA
CREONTE MEDÉIA
Sei o que é isso. Tâmbém para mim, tirando meus fi- lsso não, Creonte, isso náo! Eu te peço apenas.
lhos, só amo a minha cidade.
CREONTE
MEDÉIA (Soberbo)
Porque para os homens o amor é um flagelo. l)rrrece-me, senhora, que deseja conduzir-me a extremos.
CREONTE
MEDÉIA
Nosso amor de homens depende de suas circunstâncias.
lru irei para o exílio. Não é sobre isso que te falo agora.
MEDÉTA
CREONTE
(Maos para o céu)
Mas resistes ainda. Por que não partes logo?
O Zeus, não deixes escapar impune o responsável por
meu infortúnio.
MEDÉIA
(Suplicante. Insinuante)
CREONTE
Concede que eu demore apenas mais um dia. Deixa-me
Parte, mulher tola, não aprofundes a minha aflição.
aqui só hoje, para que planeje meu exílio, arranje os meios
MEDÉTA de amparar meus filhos, pois não posso contar com qual-
quer providência do pai deles. Tem piedade dos meni-
Que é tua afliçáo diante das minhas? nos. Tü também és pai, pensa em tua filha, e trata meus
filhos com mais benevolência. Não falo ou cuido de mim,
CREONTE
pouco me importa, pois já sou uma exilada. Choro por
(Faz sinal aos guardas)
eles, que não conhecem ainda essa desventura.
Resistes? Meus homens te arrancarão daqui à força.
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MILLÔR FERNANDES MEDÉIA
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--d#*
MILLÔR FERNANDES MEDEIA
algumaforçaterrível apareça em meu caminho, aindaassim lrran-ìentos diante dos deuses não são mais confiáveis. Mas
matarei a ambos, pois estou disposta a morrer junto com ,r voz das praças mudará minha vida, recuperando minha
eles. Minha ousadia sou eu, uma só coisa, é meu destino. r('putação: o amanhecer da honra iluminará a raça das
Pela terrível deusa que venero acima de todas, por Hécata, nrulheres, e as vozes daperfídiase calarão diante dela.
a protetora das feitiçarias, que entronizei no mais íntimo
altar de minha casa, ea quem apelei e apelo para me ampa- As canções dos antigos poetas deixarão de falar da
rar nesta missáo, nenhum deles sobreviverâ, náo voltarâ rninha infidelidade. Febo, o brilhante, o senhor das me-
jamais a atormentar meu coração. Esse casamento será tris- Iodias, não nos dotou, a nós, mulheres, da dádiva celestial
te e amargo. A amargura de todos, que irei pagar com o cla música, senáo eu entoaria um hino devastador sobre a
meu também amargo exílio. Levanta-te então, Medéia, é raça dos machos. Pois o tempo, que corre todo o tempo
a hora da coragem. Náo poupanada dos segredos dessa há tanto tempo, tece temas iguais para homens e mulheres.
Tu, filha do sol, filha de um pai táo nobre, não podes conti- rigosas rochas gêmeas do Helesponto, vieste habitar em
nuar motivo de escárnio paraJasáo e essa descendente de terra estranha, tiveste o leito conjugal abandonado pelo
Sísifo. Tü tens todos os ludíbrios. Conheces todos os ardis. companheiro, ó mulher infeliz. E agora és uma exilada,
E mais que isso. Nasceste mulher. E nós, mulheres, sem pátria, desonrada e perseguida.
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MILLÔR FERNANDES uepÉra
dor, procuraste uma nova esposa, embora já tivéssemos .ros olhos de muitas mulheres; nr eras um esposo fiel e
procriado dois filhos. Se eu náo houvesse te dado des- rr rcsmo impe cârvel.ÍJreu mesma fui a invejada Medéia, aqui
cendência, teria perdoado tua busca de um novo leito. ,rrrlc me vês uma mulher humilhada e expulsa desta ter-
Í.r, sem um amigo a ser solitríria para sem-
Já morreu em mim há muito tempo toda e qualquer -condenada
confiança em tuas juras. Acho até que acreditas que nos- 1'rc, seguida apenas por seus filhos degradados. Belo
sos velhos deuses jâ não reinam. Ou que estabeleceram Irrcsente de bodas para o teu esponsalício; os filhos e eu,
novas leis para os mortais. Se não, como poderias justi- .1rc salvamos tua vida, errando como vagabundos e indi-
ficar tua tremenda vilania? Olha minha mão direita, que g('rìtes mundo afon Ó, Zeus! Por que deste ao ser huma-
tanto cobiçaste. E estes joelhos que abraçaste tantas ve- rro a capacidade de saber se o ouro é falso e não puseste
zes. Como deixei tuas mãos pérfidas me tocarem? Céus, rur fronte do homem um sinal pelo qual reconhecer que
a que coraçáo traiçoeiro confiei minha esperança. ,rlrriga uma alma abjeta?
l)
(Pausa) CORIFEU
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MILTÔR FERNANDTS tr,|eoÉte
Bem, não pretendo insistir sobre esse ponto. Tua .rrnbicionar prole maior. A que tinha me f.aziafeliz e me
ajuda, qualquer que tenha sido, foi feita com amor. Con- l)lÌStava.
tudo, pelo que me fizeste, já recebeste mais do que me Nem me queixo de ti.
deste. Primeiro, vieste morar na Grécia, não vives mais O que fiz e isso é tudo o que importa foi asse-
- -
na terra bárbara em que vivias. E aprendeste o que é a gurar para nós uma vida próspera, habitaçáo segura, sem
justiça, a viver na proteção da lei, não mais sob o medo carência de nada pois a amizade foge ante a necessi-
constante de forças brutais. E logo todos os helenos
-
clade. Para poder dar a meus filhos educação digna de
reconheceram tua sabedoria ganhaste f.ama e Prestí- rninha casa, para gerar irmãos reais para os filhos de teu
-
gio. Se continuasses a viver nos confins da terra, nin- ventre, criar todos iguais, na mais alta condição, todos
guém saberia sequer teu nome. Eu não queria ter uma da mesma estirpe, uma família só, e nós todos felizes
casa de ouro, nem uma voz mais bela do que a de Orfeu, numa união sublime. Tu não tens necessidade de mais
se a minha fama não chegasse ao mundo. filhos. E eu, com os filhos que virão, protegerei os que já
Mas basta de avaliações entre teus feitos e os meus estáo aqui. Diz-me onde é que errei. Tü concordarias que
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MII-LÔR f ERNANDES MEDÉIA
MEDÉIA JASÃO
(Para si mesma)
Nio duvides de mim; náo foi pela mulher, ou pelo po-
Não há dúvida de que em inúmeras coisas sou completa- tk'r, Çü€ me casei com a filha do rei, minha esposa atual.
mente diferente da massa de outros mortais. Vejam Mrrs, repito, foi para garantir tua segurança, me tornan-
para mim, um ser que, além de malvado, êhâbil no es-
- ,kr pai de filhos reais, ligados por sangue a nossos pró-
grimir das palavras, tornando o negro branco ao lidar com prios filhos, um escudo de proteção a nossa casa.
o que fala, merece o castigo pior. Pois, seguro de que
com suas palavras pode ocultar a injustiça, pratica qual- MEDÉIA
quer crime. Mas, olha, Jasão, náo!, no final náo és tão ()ue essa segurança, tão indigna, nunca seja a minha,
hábil assim. Não vais me esmagar com tua eloqüência (lue essa opulência nunca oprima o meu coração.
! falsa. Uma palavra minha, uma só, teiogarâpor terra. Se
t
não fosses o traidor que és, só terias contraído esse matri-
JASÃO
mônio depois de me convencer antecipadamente de tudo
que disseste, e não às escondidas de quem tanto te amava. Muda essa tua súplica, abranda essa ladainha, faz como
cu te digo e serás bem mais sábia. Não vistas de negro a
JASÃO felicidade, nem mostres cara funesta à fortuna que te sorri.
(Irônico)
MEDÉIA
É evidente que tu terias me dado logo todo teu generoso
apoio se eu te contasse o que pretendia, ainda que mesmo Tu me espezinhas porque tens um refúgio. Eu estou só
agora não consigas conter o fel que escorre de teu coração. logo serei só e desterrada.
-
MEDÉlA JASAO
Palavras sem conteúdo pensavas apenas que teu ca- A escolha foi tua, a culpa também. Não acuses mais
-
samento com Medéia, uma estrangeira bârbara,te con- ninguém.
denava a uma velhice inglória.
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MILLÔR FERNANDE5 MEDÉIA
MEDÉIA JASÃO
( )s deuses são testemunhas de que estou disposto a servir
Que foi que eu fiz? Fui eu que traí?
:r ti filhos em tudo, mas insistes em recusar meus
e a teus
Íevores. Tua permanente e indestrutível arrogância ofen-
JASÃO
rlc a todos que são teus amigos. Continua, teu sofrimento
Lançaste ao rei terríveis maldições. scrá cada vez mais amargo, até se tornar insuportável.
MEDÉIA MEDÉtA
E amaldiçôo também teu novo lar. Vai embora!Já que náo consegues esconder a impaciên-
cia de voltar ao leito de tua nova mulher. Contas os mi-
JASÁO nutos que passas longe dela. Realiza logo o enlace por
Não pretendo mais discutir contigo sobre o que já é. que anseias, essas bodas de que, se os Deuses me escu-
Mas, se queres receber parte do que possuo para os tam, cedo te arrependerás amargamente.
meninos e parateu exílio, fala; estou disposto a dar com
(lasão sai)
mão generosa. E a pleitear junto a senhores de outras
terras para que te recebam como amiga. Se recusares
esta minha oferta é porque estás louca. Reprime tua CORO
mâgoa ganho será teu. Amor desvairado nâo traz aos mortais glória ou virtude.
Mas quando Cípris se oferece com brandura, não há di-
MEDÉIA vindade mais cheia de graça. Porém, minha deusa sobera-
n4 jamais lances contra mim os dardos de teu arco de ouro
Jamais recorrerei a teus amigos, jamais aceitarei nada
de ti. Não me ofereças nada. O que vem de um velhaco quando embebidos no veneno da paixão sem limites.
é sempre uma velhacaria.
Que a castidade, suprema dâdivados deuses, me en-
volva com seu doce olhar. Que nunca a aterradora Cípris
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MItLÔR FERNANDES MEDÉIA
EGEU
Ó minha pâtria,ó meu perdido e amado lar! Queira
o destino que eu nunca seja expulsa de minha cidade, vi l)o velho templo dedicado a Apolo.
vendo o resto de meus dias consumida numa existência
em que todo dia é sofrimento e miséria. Que me seja MEDÉTA
permitido encerrar logo a minha vida, me entregar à O que te levou em tuas andanças a visitar o umbigo pro-
morte, pois não há miséria maior do que não ter pâtria.
I
I
fótico do mundo?
Não repito, náo falo por ter ouvido alguém dizer
-
sei por meus próprios olhos. Não há cidade que te pro-
EGEU
teja, nem amigo que te ampare em momento de horror
de teu destino. Pereça logo, morra sem piedade aquele O desejo de fertilizar meu sêmen e gerar filhos.
que não ê capazde proteger os seus amigos, abrindo-lhes
as portas de seu coração. Esse jamais será meu amigo. MEDÉTA
EGEU MEDÉlA
Tenho uma esposa, unida a mim em vínculo sagrado. Antes de quê ou de chegar onde?
MEDÉIA EGEU
E que te disse Apolo acerca de ter filhos? Antes de voltar à terra de meus pais.
EGEU MEDÉIA
Palavras sábias demais para a compreensão humana. E que desígnio te trouxe então a esta terra?
MEDÉIA EGEU
ti
Posso saber quais foram essas palavras? O de encontrar Piteu, rei dos trezênios.
EGEU MEDÉTA
Claro que sim; é mesmo o que procuro, tua mente aguda. Filho de Pélope, homem muito devoto, é o que dizem.
MEDÉlA EGEU
Fala então. Qual foi o vaticínio? Se não é sacrilégio me Devo comunicar a ele a mensagem do oráculo.
dizeres.
MEDÉIA
EGEU
É um homem sábio, versado em vaticínios.
"Não abrir muito cedo a boca do odre."
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MILtÔR TERNANDES MEDEIA
EGEU MEDÉlA
ii.Eparamim o mais querido dos companheiros de luta. 'lìomou outra mulher como esposa e senhora
da casa.
MEDÉTA EGEU
Vai entáo, boa sorte! Que sejas feliz no que procuras. Perpetrou, Jasáo, ação táo infame?
MEDÉTA
EGEU Agora o sabes. A mim, a quem ele diziaamar pelos tem-
(Olhando-a com atenção) pos afora, agora me olha com olhar de náusea.
Mas por que essa expressão sofrida, esse olhar aflito?
I
EGEU
MEDÉTA Encontrou amor novo? Ou apenas tem desprezo por teu
Egeu, Jasão, meu marido, se revelou o mais cruel dos leito?
homens.
MEDEIA
EGEU Não, um amor novo. E por ele se transformou em trai-
dor do amor antigo.
Cruel como? Esclarece-me mais sobre teu desespero.
EGEU
MEDÉIA
Basta. É realmente um vilão, como tu dizes.
Jasão me ultrajou sem que eu lhe desse motivo.
MEDÉIA
EGEU
Com a mulher que obteve, uma princesa, ele se
Ultrajou como? Fala mais claramente. um rei.
MILtÔR FERNANDES MEDÉIA
EGEU MEDÉIA
Que rei é esse que assim lhe entrega a filha? Não consentiu com palavras, mas não ficarâ no cami-
rrho do rei. Oh, eu te imploro; ergue tuas mãos e dobra
MEDÉIA rcus joelhos ante os poderes, pede por mim. Tem com-
paixão da minha desdita. Náo consinta que me aban-
Creonte, o senhor de Corinto.
donem e me desterrem. Acolhe-me em teu país, no calor
EGEU dc teu coração e de teu lar. E farei com que os deuses te
rctribuam, te dêem todos os filhos que desejas, e que
Ah, senhora, nla aflição bem que se explica. vivas feliz todos teus dias, até o último dia em que vive-
res. Nem imaginas a sorte que tiveste vindo encontrar-
MEDÉTA
me aqui, pois farei com que cesse tua esterilidade e
Antes me degradaram. Agora me expulsam de Co- possas gerar filhos e filhas, tantos quanto desejes. Bem
rinto. sabes o poder dos filtros e poções que controlo.
EGEU EGEU
Expulsa por quem? Falas de uma desgraça atrás de outra. Por inúmeras razões, senhora, sou obrigado a favorecer a
graça que me pede. Primeiro por respeito aos deuses; de-
MEDÉIA pois, pelos filhos que prometes me tazer gerar e que eu já
Por Creonte, o rei, agora protetor de Jasão. tinha perdid o aÍé de conseguir. Eu te prometo; se em qual-
quer tempo alcançares minha terra, te darei abrigo e pro-
EGEU teção. De uma coisa apenas te previno, senhora; náo farei
nada para tiráìa deste reino. Só lhe darei a proteçáo e não
E Jasáo consentiu? Mal posso acreditar.
a entregarei seja a quem for, desde que chegue à minha
terra por seus próprios meios. Tem que escapar sozinha.
Não pretendo entrar em conflito com meus aliados.
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l
MILtÔR FERNANDES
MEDÉIA
Pois, sendo assim, que assim seja. Mas quero a certeza Jura pelo chão da Terra, pelo Sol, pai de meu pai, e,
de que empenhas nisso tua palavra, para que eu possa transformando tudo numa jura, jura por todos os deuses.
agir com segurança. Quero teu juramento.
EGEU
EGEU
Mas o que devo jurar que vou tazer, o que devo jurar
Náo confias em mim? Qualé teu medo? que não? Fala.
MEDÉTA MEDEIA
I Confio em ti, mas a casa de Pélias e o poderoso Creonte Jura que nunca me expulsarás de tua terra, por tua pró-
i pria vontade, nem, enquanto fores vivo, me entrega-
são meus inimigos. Preso a mim por juramento não
poderás me abandonar quando quiserem arrancar-me rás a qualquer inimigo ou deixarás que me arrastem
daqui. Só o juramento dianre dos deuses te impedirá de lá.
de ceder às ameaças. Toda a proteção que me pro-
EGEU
metes ê fraca diante da riqueza e poderio de meus
inimigos. Pela Terra eu juro, eu juro pela brilhante
e sagrada luz
do Sol. E por todos os deuses te prometo que morrerei
EGEU agarrado a estes juramentos que te faço.
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MItLÔR FERNANDES ueoÉta
migos. Ponho o pé, dou o primeiro Passo no caminho bém qualquer um que a toque, tão fortes e maléficos os
da minha vingança sobre aqueles que odeio. Pois quan- venenos untados nos presentes.
do estava no mais fundo da mâgoa me apareceu este E aqui eu mudo meu discurso e tremo pelas ações
porto seguro para onde dirigir meu destino. que vou praticar em seguida. Eu vou matar meus filhos.
É, ninguém poderá livrá-los da minha decisão. Aí, de-
pois de destruir totalmente a casa deJasáo, deixarei esta
55
MILLOR FERNANDES tvtgoÉte
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MILLÔR FERNANDES MEDEIA
coração, a dureza para executar o projeto sinistro de Como permanecer possessa, se os deuses dispõem tanto a
tua mente execrável? Como olharás para teu filhos e meu favor? Não tenho meus filhos a considerar? Ignoro
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I
que somos fugitivos de nossa própria terra, necessitando Com que facilidade eu choro, tremendo cheia de medo.
de amigos? Pensei sobre tudo isso e vi como tenho sido l'ois agora, que estabeleci uma trégua com seu pai, posso
imprudente. Percebi a loucura do meu ressentimento. cleixar meus olhos descansarem lavando-se em lágrimas.
Então, Jasão, sabe que agora aprovo o que fizeste. Foste
bastante sábio ao estabelecer para nós tais ligações, eu é CORIFEU
que fui insensata. Pois deveria ter apoiado logo teus desíg-
De meus olhos também desce um copioso pranto. Ó,
nios, ajudado em teus planos, servido tua nova união em
que não surja mal c paz de provocar pranto ainda maior.
tudo que pudesse, mostrando meu orgulho em acompa-
nhar e servir tua esposa. Mas somos o que somos, nós, mu-
lheres. Não direi que más. Só te peço que não desças ao JASÃO
nosso triste nível combatendo estupidez com insensatez. Senhora, louvo tua conduta e não reprovo o que já é
Concedo e confesso que estava loucamente errada e passado. Pois é natural ao sexo feminino agredir com
que só agora recupero arazão. Venham cá, meus filhos, furor um marido que procura secretamente outro enla-
venham aqui fora e, junto comigo, alegremente, cumpri- ce, outra boda. Mas teu coração abriu-se agoragenero-
mentem seu pai, esquecendo um rancor que jamais de- so e sensato, embora tardiamente, a melhores razões.
veria ter existido entre pessoas que se amam. Estamos Assim agem as mulheres de juízo. Quanto a vós, meus
reconciliados, desapareceu entre nós toda a amargura. filhos, pela graça de Deus, vosso pai providenciou com
preciso cuidado um refúgio tranqüilo nesta terra. Jun-
(A Ama sai da casa corn os meninos)
to com vossos irmãos, tereis posição nobre e segura nos
:l
mais altos escalões do reino de Corinto. Basta cresce-
Peguem a mão direita de seu pai...
rem, que do resto cuidará vosso pai e algum deus gene-
(Àparte, enquanto os filhos seguram a rnão de Jasão) roso. Que eu possa ver um dia atingirem o ponto mais
alto da masculinidade, sempre superiores aos mais for-
Ah, triste de mim!ïliste de mim quando vejo meu triste tes entre aqueles que odeio. Mas por que, senhora, tem
destino. Filhos meus, por quanto tempo ainda poderáo os olhos cheios de lágrimas raface escondida, como evi-
estender os braços para um terno abraço? Pobre de mim. tando ouvir estas palavras de alegria?
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MILLÔR FERNANDES ueoÉrn
MEDÉTA JASÁO
Não é nada; meu pensamento estava em nossos filhos. Vou tentar. Mas duvido que consiga convencê-lo.
JASÁO MEDEIA
Pois não pense, providenciarei para que rudo esteja bem Pede então a tua esposa que o faça.
com eles. Fica tranqüila.
JASÁO
MEDÉtA
Sim, está bem, a ela sei que posso convencer; é uma mu-
Ficarei. Não duvido mais de tua palavra nem do que podes.
lher como as outras.
Mas a mulher é criatura fraca, um ser desfeito em lágrimas.
MEDÉIA
JASÁO
Mas por que, infeliz, chorar pelos meninos? Vou tentar facilitar rua tarefa. Mandarei a ela, pelas mãos
de meus filhos, alguns adornos que, garanto, são mais belos
MEDÉIA do que tudo que existe entre os mortais. Um manto sunruo-
so, do mais fino tecido, e uma coroa de ouro cinzelada.
Fui eu quem os gerou. E quando tu falavas sobre sua gló-
ria futura, me veio o pavor de que não fosse assim. Mas Que um dos servos imediatamente traga aqui os presentes.
agora que a razáo de te chamar aqui foi em parte dita,
vou te falar de outras razões ainda não ditas. Já que é (Um dos seruos entra na casa)
vontade do rei banir-me daqui, e sei muito bem que o
melhor a fazer é não me tornar empecilho aos que go- Ela será feliz, náo só uma vez, mas milhares de vezes,
vernam, nem colocar obstáculos em teu caminho, pois pois em ti ela ganha a alma mais nobre com que com-
sou considerada inimiga de todos, devo partir logo para partilhar teu amor. E recebe também estas dádivas iguais
o exílio. Mas essas crianças, para que fiquem protegidas àquelas com que um dia o Deus-Sol, pai de meu pai,
por tuas mãos de pai, pede a Creonte que não as desterre. premiou seus descendentes.
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MILLÔR FERNANDES uroÉta
(O seruo entrega os presentes às crianças) não os expulse desta terra. Mas é importante que os
ornamentos
-
ela os receba em sua próprias mãos. Va-
Meus filhos, peguem estes regalos nupciais e entreguem- -
rnos, depressa; sejam bem-sucedidos e tragam logo para
nos como oferenda minha nas máos dafeliz princesa, e
sua máe a notícia feliz por que ela tanto anseia.
esposa ainda mais feliz; a ela oferecemos estas dádivas,
para sempre inesquecíveis. (Saem lasão, a Ama. e os meninos)
JASÁO coRo
Mas por que tanta pressa em se desprender de bens tão Perdidas são nossas esperanças pela vida dessas crianças.
preciosos? Achas que o palácio real tem escassez de man- Já se encaminham a seu destino nefasto. A infortunada
tos ou de ouro? Guarda-os, guarda esses bens contigo, esposa logo receberâ, coitadal, a calamidade cinzelada
não te desfaças deles. Pois acredito que, se minha nova em ouro. E ela mesma, com suas próprias mãos, colo-
esposa realmente me estima, o meu preço para ela esta- carâ em suas madeixas douradas o ornamento fatal.
râ acima de qualquer riqueza. Abeleza e o fulgor divino dos presentes a levarão a
usar logo a coroa e o manto, sem saber que está se ves-
MEDÉIA
tindo como noiva da morte. Essa é a armadilha na qual
Não afirme tal coisa. A Grécia inteira sabe que dádivas vai se emaranhar a desditada princesa, essa a maldição
generosas tentam até os deuses. O ouro tem, sobre o espí- da qual não vai escapar.
rito humano, mais poder do que mil palavras de convicção. E tu, pobre infeliz, que, para tua desgraça, casas com
A fornrna sorri à tua noiva, e o céu se abre em luz para a filha de um rei, também mal sabias que isso traria a
saudar seu triunfo. É d.h a juventude. São dela a glória e ruína de teus filhos e a morte cruel dessa tua nova es-
o poder do Reino. Para salvar meus filhos do desterro, dou posa. Quão mísero és tu, caindo de tão alto nessa que-
mais do que o ouro, dou minha vida. Meus filhos, quan- da sem fim.
do chegarem ao ricopalácio, nomesmo momento em que
entregam a ela estes presentes, peçam à nova esposa de E logo eu pranteio por ti, mãe que morres também
seu pai e minha nova senhora, com voz suplicante, que com teus filhos, esses que matas para destruir tua rival,
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F
MILtÔR FERNANDES MEDÉIA
esses que teu marido desertou sem piedade por um novo MEDÉ6
himeneu' Mais uma vez repito, ai de mim!
MEDÉIA
AMA
Ai! Ai de mim! Então por que a cabeça baixa, a torrente de lágrimas?
AMA l
MEDÉ1A
Por que te lamentas em hora táo generosa? Por que vi- ;
Velha amiga, choro porque devo chorar. Os deuses e eu
ras a face às esplêndidas notícias que te trago? i
própria, desvairada, tramamos o que vai acontecer e
Ai de mim! AMA
AMA Tem ânimo, senhora. Com amparo de teus filhos, mais
dia menos dia voltarás a Corinto.
Esses gemidos náo estão de acordo com o que te anuncio.
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MITLÔR TTRNANDES MEoÉtA
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,rG-q@4{@l*4ÉFGüE6qd*,,íd, .
F
MEDÉIA
MITtôR FERNANDES
mais. Não pouparei minha mão. Oh, não, náo, meu cora- coRo
ção, não permitas que eu o faça. Deixa ir as crianças, mu- Quantas vezes temos refletido sobre temas sutis, muito mais
lher infeliz. Deixa-as, desditada, poupa-as do sacrifício. graves do que esses que o sexo feminino ê capazde enten-
Pois, vivos, sua alegria alegrarâteu exflio. Não. Pelos de- der. Mas cultivamos também uma musa mulher, que co-
mônios dos abismos do inferno, iamais entregarei meus nosco busca a sabedoria. Náo me refiro a todas, são poucas
filhos ao insulto e ao escárnio de meus inimigos. Morrer, uma entre inúmeras na classe feminina que percebem
eles iráo morrer, e, sendo assim, que seja eu, que os trou- -o saber. E posso também afirmar que os mortais que não
xe àvida, que lhes desfira o golpe fatal. E, como está fixa- passaram pela experiência de gerarem filhos são muito mais
do, seja assim consumado. Neste momento, com a coroa felizes do que os que geraram. Os que não geraram sáo
na cabeça, envolvida no manto, a princesinha morre, eu poupados de muitos inforúnios. Mas os que pensam ter
bem o sei. Pois seja, jâque tenho pela frente um caminho em casa um florido jardim de herdeiros, gastam, corroem
penoso, e ainda mais penoso é o caminho a que conduzo a existência inteira, primeiro em como instruíìos no ca-
meus filhos. Preciso despedir-me deles. minho do bem, depois em como lhes garantir meios de
sobrevivência. Sem saber se todo esse cuidado redundará
(Os meninos entrlm nouamente)
em resultados bons ou perversos. Mas devo falar também
do pior que pode acontecer ao homem mortal: suponham
Venham, venham, queridos filhos meus, dêem-me as
que aos filhos ele tenha dado todos os meios de existên-
mãos para que eu as beije. Ah, mãos que amo tanto, ó
cia, que eles tenham crescido como homens de bem. Aí o
lábios queridos, ó nobres feições dos que sáo meus.
destino se interpõe, a morte chega inesperada e leva os
Que reconquistem aalegria,sejam felizes nesse outro
corpos paÍa o Hades. Que lucram os deuses ao lançar as-
lugar, pois aqui vosso pai lhes roubou o lar. Oh, o doce
sim sobre os mortais, além de todos os outros sofrimen-
aconchego de um abraço, a carne terna desses rostos, esse
tos, este sofrimento maior, que é a perda dos filhos?
hálitosuave demeusfilhos. Andem. Vão. Deixem-me. Não
consigo mais olhálos; a angústia me domina. Finalmente
MEDÉIA
compreendo toda a extensão do ato terrível que vou prati-
car, mas a paixão, causa das mais profundas desgraças Bons amigos, esperei longamente, ansiosa, para saber co-
humanas, triunfou sobre tudo que tenho de ternura. mo as coisas acontecem no Palácio Real. Mas, ah!, agora
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F
MILLOR FERNANDES MEDÊIA
gos. Desfaz esse ar de revolta e desprezo, olha novamen- transforma numa algaraviade soluços, berros, ordens e
te para eles, trata como amigos os que me são caros. Aceita lamentos, a casa inteira ressoando a passos indo e vin-
esses presentes e,por consideração a mim, pede a teu pai do. No breve tempo em que um corredor teria percor-
que transforme o cruel exílio deles em generoso asilo." rido os duzentos metros de um estádio, a princesa voltou
Logo que ela olhou abeleza dos mimos ofertados, a si, abriu os olhos e saiu do seu transe de mudez com
náo resistiu mais e cedeu em tudo a seu senhor. E mal um gemido longo e angustiado. Duas calamidades a ata-
este se afastou, saindo do palácio com seus filhos, ela cavam ao mesmo temPo; a coroa em sua cabeça se trans-
vestiu o manto bordado, colocou na cabeça a coroa de formara numa torrente de chamas corrosivas, e o manto
ouro e pôs-se aajeitâ-lanos cabelos, em frente ao enor- colara nas carnes brancas da infeliz. Ela se ergueu do
me espelho, sorrindo feliz diante de sua brilhante simu- trono, uma fogueira humana, tentando escapar de si
lação sem vida. Levantando-se do trono, atravessou o mesma, sacudindo a cabeça em todos os sentidos, Pro-
aposento em passos delicados, na ponta de seus belos curando em vão se livrar da coroa de fogo. Mas o ador-
pés, uma vez ou outra olhando para trás, deslumbrada no flamejante enterrava-se cada vez mais na cabeça
com a própria imagem assim adornada. E foi aí que agitada, e as chamas cresciam com redobrada fúria a
começou a cena de indescritível horror. Ela ficou mais cada movimento. Por fim ela caiu no chão, aniquilada,
branca, se inclinou para trás, o corpo inteiro tremen- desfigurada, irreconhecível, exceto ao olhar de um pai.
do, e se jogou sobre o trono para não cair ao chão. Uma Não se distinguia nem a forma dos olhos, do rosto táo
velha serva, pensando que a ama estava sendo atacada belo nada se presenara; do alto da cabeça, um caldo de
pelo furor de Pan ou algum outro mal enviado pelos fogo e sangue fluía sem cessar, as carnes' roídas pelos
deuses, elevou aos berros uma oração, até que viu es- dentes de tuas drogas malditas, desprendiam-se dos os-
correr da boca da princesa uma espuma gosmenta, en- sos, como pinheiros feridos desprendem lágrimas de re-
quanto seus olhos davam voltas nas órbitas e todo o sina, uma visão horrenda! E todos tínhamos medo de
sangue lhe abandonava o rosto. Logo a princesinha tocar no cadáver, pois sabíamos bem o que estava acon-
emitiu um grito diferente de tudo quanto é grito. Uma tecendo. O pai, porém, ainda inocente, entra alheado
criada se precipita paraacasa do pai, outra vai em bus- na câmara de horror, tropeça na tragédia, se atira em
ca do seu novo esposo, e toda a pompa do palácio se prantos e lamentos sobre o corpo da morta, envolve-a
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MItLÔR FERNANDES rueoÉre
(Saì de cena)
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UT
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MItLÔR FERNANDES MEDÉIA
çou ao mar e com ela arrastou os dois filhos para a mor- JAsÁo
te. Existe alguma espécie de horror maior que este? Ah, O que dizes? Acaso ela pretende matar a mim também?
leitos conjugais, quantas loucuras provocastes nas mu-
lheres, com tão tristes conseqüências para os homens. CORIFEU
(Entram lasão e seu séquito) Teus filhos já estão mortos. Foram mortos pela pró-
pria mãe.
JAsÁo JAsÃo
Senhoras que fazeis vigília em volta desta casa, ainda está
Ó deus! Que dizes? Este é o golpe mais fatal' Matou a
lá dentro Medéia, a autora de todas essas atrocidades,
mim também.
ou já fugiu daqui? Ela tem que se esconder no buraco mais
fundo da terra ou criar asas e desaparecer no infinito do CORIFEU
céu, se quiser escapar à vingança da casa real. Ou acredi-
Têus filhos iânão existem; aceita o teu destino'
ta poder sair impunemente desta casa depois de assassi-
nar os soberanos da cidade? Mas basta com isso! Só me
JASÁO
angustia a vida de meus filhos. Não me importa o que
aconteça a ela. Certamente receberá de suas vítimas pu- Onde ela os matou? Dentro ou fora da casa?
nição igual ou pior do que o mal que lhes fez. Eu vim
CORIFEU
para salvar meus filhos, para que descendentes da casa
real, através deles, náo lancem seu ódio contra mim em Abre essas portas e terás a resposta no corPo de teus
vingança pelo crime infame perpetrado pela mãe. filhos.
CORIFEU JASÃO
Homem inf.eliz, ainda não sabes o total de tua desven- Corram, miseráveis criados, levantem as trancas' soltem
tura, ou nunca terias pronunciado essas palavras. os ferrolhos' para que eu veja essa dupla desgraça, os
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F
cadáveres de meus filhos assassinados por ela, com cujo são de meu erro no malsinado dia em que te trouxe de
sangue imediatamente eu a farei pagar o crime. tua terra bârbara para esta terra grega, ru que traíste o
pai que te gerou e apâtriaque te alimentou. Os deuses te
(Medéia aparece sobre a casa, nurn carro de lançaram contra mim como uma maldição, demônio
fogo puxado por dragoes alados, onde estão maligno sedento de sangue. Em teu próprio lar já tinhas
também os caüueres dos filhos) matado teu irmão para poderes subir na Argo, minha bela
nau de bela proa. Aí começou tua vida de crimes. Casa-
MEDÉIA da então comigo, geraste dois filhos apenas para aplacar
tua desmedida lascívia. Filhos que agora destróis sem
Por que tentas forçar essas portas arrebentando suas
piedade por ciúme de leito. Nenhuma mulher grega ou-
ferragens, procurando os mortos e a mim que os matei?
saria tal feito, e, contudo, eu, insensato, te preferi a elas
Poupa-te tantafadiga. Se queres me ver, olha, estou aqui.
numa união odiosa e funesta. Tu, não mulher, leoa de
Se ainda pretendes algo de mim, fala, mas jamais me
natureza, mais feroz do que a tirrena Cila. Sei que nem
tocarás com tuas mãos traidoras, tão rápidos são estes
mil maldiçóes abalarão tua natureza de granito. Mas eu
corcéis do Sol, pai de meu pai, que os enviou para me
te maldigo: que sejas danada para sempre, ser hediondo,
livrar de qualquer fúria inimiga.
feiticeira, assassina de teus filhos. A mim só me resta cur-
var-me ao meu destino, sem nem poder desfrutar minhas
JASÁO
novas núpcias. Nem aos filhos que gerei e criei poderei
MaÌdita! Abominável! Odiada pelos deuses, por mim e dirigir a última palavra, o último adeus. Eu perdi tudo.
por toda a raça dos seres humanos. Execrada como ja-
mais o foi outra qualquer mulher. Tua crueldade pene- MEDÉIA
trou com a espada o corpo dos seres que geraste, assim A todas essas tuas palavras eu poderia responder com
me destruindo e me deixando sem prole. E ainda ousas muitas mais, mas Zeus, o pai, bem sabe tudo o que fiz
fitar a Terra e o Sol depois desse ato ímpio e sangrento. por ti, e a paga que me deste. Tu não podias querer, de-
Maldição sobre ti! Todas as maldições sobre ti! Tens que pois de desonrar meu leito, levar vida tranqüila, escarne-
desaparecer da f.ace do mundo. Agora percebo a exten- cendo de mim e de meu amor tresloucado. Nem poderia
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MILLÔR FERNANDES MEDÉIA
tua noiva real, nem Creonte, que te ofereceu essa se- JAsÁo
gunda esposa, expulsar-me da terra e não pagarem por
Um leito abandonado justifica teus crimes?
isso. Chama-me leoa feroz, Cila, monstro tirreno, o
nome que bem queiras. Apenas devolvi ao teu coração MEDÉIA
os golpes que me deste.
Se tu fosses mulher, saberias que sim.
JAsÁo
JAsÁo
Mas feriste também a ti própria, estás condenada a par-
tilhar essa dor. Para a mulher que és, tudo é ofensa intolerável.
MEDÉIA
MEDÉIA
(Assinalando os mortos)
Certo que sim. Mas é uma dor que me alivia a alma,
Eles já não existem. Mas teu tormento é imortal.
pois não podes mais rir de mim.
JASÁO
JAsÃo
Viverão sempre, também, como uma praga sobre tua
Filhos meus, que mãe perversa!
cabeça.
MEDÉIA
MEDÉIA
Ó meus filhos, a lascívia desse pai causou vossa ruína.
Os deuses sabem quem começou esta espiral de horrores.
JASÃO JASÃO
Mas não foi minha mão que os destruiu. Conhecem melhor teu negro coração.
MEDÉIA MEDÉTA
Foi o ultraje de tuas novas núpcias. Odeio-te. E cada palavrarua me é igualmente odiosa.
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MILLôR FERNANDES MEDÉIA
JASÁo JAsÃO
É. tacil te livrares delas. A maldição de nossos filhos, clamando por vingança e
iustiça, exige teu sangue.
MEDÉTA
MEDÉlA
Como? Que devo f.azer?
te ouvirá ain-
Que deus ou qualquer outra força divina
JAsÁO da, perjuro, traidor de todas as leis da hospitalidade?
Idolatrados filhos!
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MItLôR f ERNANDES MEOÉIA
JASÁO
nar meus filhos, me impedes agora de enterrá-los ou
sequer tocá-los após a morte. Ah, eu náo devia jamais
Ai de mim, queria apenas que me deixasses imprimir
tê-los gerado para náo vê-los morrer sob teus golpes.
um último beijo de carinho nesses lábios amados.
(Sai)
MEDÉI.A
MEDÉlA