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LENDAS NEGRAS DA IGREJA

VITTORIO MESSORI

PREFÁCIO

Quando um moço, educado cristãmente pela família e a comunidade


paroquial, através das asserções apodícticas de algum professor ou algum
texto começa a sentir vergonha pela história de sua Igreja, encontra-se
objetivamente no grave perigo de perder a fé. É uma observação
lamentável, mas indiscutível; além do mais, mantém sua validez geral
inclusive fora do contexto escolástico.

Aqui temos um problema pastoral dos mais agudos; e surpreende


constatar a pouca atenção que recebe nos ambientes eclesiásticos.

Para salvar nossa alegria e orgulho de pertencer ao “pequeno


rebanho” destinado ao Reino de Deus, não serve a renúncia a aprofundar
nas questões que se expõem. É indispensável, pelo contrário, a aptidão para
examinar tudo com tranqüila equanimidade: em oposição ao que
usualmente se pensa, a cética cultura contemporânea não carece de contos,
mas sim de espírito critico; por isso o Evangelho se encontra tão
freqüentemente em posição desfavorável.

Tal como disse em repetidas ocasiões, o problema mais radical em


conseqüência da descristianização não é, em minha opinião, a perda da fé,
mas a perda da razão: voltar a pensar sem preconceitos já é um grande
passo a frente para descobrir novamente a Cristo e o projeto do Pai.
Por outra parte, também é verdade que a iniciativa de salvação de
Deus tem uma função sanadora integral: salva ao homem em sua
totalidade; incluída, portanto, sua natural capacidade cognitiva.

A alternativa da fé não é, em conseqüência, a razão e a liberdade de


pensamento, tal como nos foi repetido obsessivamente nos últimos séculos;
a não ser, ao menos nos casos de extrema e desventurada coerência, o
suicídio da razão e a resignação ao absurdo.

Com respeito à história da Igreja e às dificuldades pastorais que


provoca, convém recordar a necessidade de uma tripla análise.

O primeiro é de caráter essencialmente teológico tal que pode ser


compartido só por quem possui “os olhos da fé”. Se trata
fundamentalmente de adquirir e levar a nível da consciência uma
eclesiología digna deste nome. Poder-se-á chegar a compreender nela que a
Igreja é, como dizia S. Ambrosio, ex-maculatis immaculata, uma realidade
intrinsecamente Santa constituída por homens todos eles, em grau e medida
diferente, pecadores.

Aqui está precisamente seu prodígio e seu encanto: o Artífice divino,


usando a matéria pobre e defeituosa que a humanidade lhe põe ao seu
dispor, consegue modelar em cada época uma obra mestra, resplandecente
de verdade absoluta e sobre-humana beleza; verdade e beleza que também
são nossas, de cada um de nós, segundo a proporção de nossa efetiva
participação no corpo de Cristo.

Mostra-se assim verdadeiro e agudo teólogo-seja qual seja sua


especialização acadêmica e sua cultura reconhecida -nem tanto o que se
indigna e escandaliza porque há bispos que, em sua opinião, são asnos,
como o que se comove e entusiasma porque admita a irreverência: “há
asnos que são bispos”.

Sob este aspecto, o crente pode aproximar-se das vicissitudes e


acontecimentos da história da Igreja com ânimo muito mais emancipado
que o que não é crente: sua eclesiología lhe permite não considerar a priori
inaceitável nenhum dado que resulte realmente estabelecido e certo, por
desonroso que pareça para o nome cristão; enquanto que o incrédulo se
sentirá obrigado a rechaçar ou banalizar todo heroísmo sobre-humano, os
valores transcendentes, os milagres que encontra sobrenaturalmente
motivados. Mais ou menos o que ocorre no caso do Santo Sudário, por
mencionar um tema que apaixona a Messori.

Formalmente, como sabemos, nossa fé não resulta afetada, qualquer


que seja o modo em que a ciência decida pronunciar-se: inclusive
poderíamos nos permitir o luxo de não acreditar no que ela diga. Aceitar a
autenticidade desse lençol, em troca, é moralmente impossível para quem
não reconhece no Jesus de Nazaré o Cristo, filho do Deus vivente, pelo
inexplicável que é o amontoado de eventos extraordinários que
caracterizam sua origem e sua conservação. A suspeita de preconceito, já
se vê, cai, neste caso, no campo de Agramante mais que no dos Paladinos.

O segundo tipo de análise é de índole filosófica, e podem


compartilhá-lo todos os que disponham de um mínimo de honestidade
intelectual.

Quando se fala de culpas históricas da Igreja, não se pode desprezar o


fato de que esta é a única realidade que permanece idêntica no curso dos
séculos, e portanto acaba sendo também a única chamada para responder
dos erros de todos.
A quem lhe ocorre perguntar-se, por exemplo, qual foi, na época do
caso Galileu, a posição das universidades e outros organismos de
relevância social em relação à hipótese copernicana? Quem lhe pede contas
a atual magistratura pelas idéias e as condutas comuns dos juizes do século
XVII? Ou, para ser ainda mais paradoxal, a quem lhe ocorre reprovar às
autoridades políticas milanesas (prefeito, presidente da região) os delitos
cometidos pelos Visconti e os Sforza?

É importante observar que acusar à Igreja viva de hoje em dia de


sucessos, decisões e ações de épocas passadas, é por si mesmo um
implícito mas patente reconhecimento da efetiva estabilidade da Esposa de
Cristo, de sua intangível identidade que, ao contrário de todos os demais
agrupamentos, nunca fica arrojada pela história; de seu ser “quase-pessoa”
e portanto, só ela, sujeito perpétuo de responsabilidade.

É um estado de ânimo que-precisamente através das atitudes de


vingança e a vivacidade dos rancores -revela quase um initium fidei no
mistério eclesiástico: o que, possivelmente, provoca a hilaridade dos anjos
no Céu.

Mas uma vez assimiladas estas notas, digamos, de “eclesiologia


sobrenatural e natural”, as pessoas não podem eximir-se de analisar com
maior concreção a questão: faz-se portanto necessário examinar a
credibilidade do que usualmente se diz e se escreve sobre a Igreja.

Terá que se averiguar a verdade, salvá-la das alterações, proclamá-la e


honrá-la, qualquer que seja a forma em que se apresenta e a fonte de
informação.
Mais de uma vez S. Tomás de Aquino nos ensina que omne verum, a
quocumque dicatur, a Spiritu Sancto est (“qualquer verdade, quem quer a
diga, vem do Espírito Santo”); e seria suficiente esta citação para observar
a invejável amplitude de espírito que caracterizava aos professores
medievais.

Reciprocamente, também terá que se dizer que as falsidades, as


manipulações e os enganos devem ser desmascarados e condenados,
qualquer que seja a pessoa que os proponha e quão ampla seja sua difusão.

Agora bem, é necessário que nos demos conta de uma vez-diz, entre
outras coisas, Vittorio Messori nestas páginas-do amontoado de opiniões
arbitrárias, deformações substanciais e autênticas mentiras que gravitam
sobretudo ao que historicamente concerne à Igreja. Encontramo-nos
literalmente sitiados pela malícia e o engano: os católicos em sua maioria
não reparam nisso, ou não querem fazê-lo.

Se recebo um golpe na face direita, a perfeição evangélica me propõe


oferecer a esquerda. Mas se se atenta contra a verdade, a mesma perfeição
evangélica me obriga a me consagrar para restabelecê-la: porque lá onde se
extingue o respeito à verdade, começa a fechar-se para o homem qualquer
caminho de salvação.

Desta firme convicção, parece-me, nasceu este livro, que esperamos


se converta imediatamente em um instrumento indispensável para a
moderna ação pastoral.

Algumas vezes imagino que o corpo da cristandade atual padece, por


assim dizê-lo, algum tipo de deficiência imunológica.

A agressão ao Reino de Deus iam praesens in mysterio é fenômeno de


todos os tempos, e disso o Senhor nos avisou repetidamente, embora nas
últimas décadas não se têm escutado muito suas palavras sobre o tema.

Em troca, o que especialmente caracteriza nossa época é o princípio


de que não se deve reagir: a retórica do diálogo a todo custo, um mal-
entendido irenismo, uma estranha espécie de masoquismo eclesiástico
parecem inibir todas as defesas naturais dos cristãos, de maneira que a
virulência dos elementos patogênicos pode realizar sem obstáculos suas
devastações.

Felizmente, o Espírito Santo nunca deixa sem intrínseco amparo à


Esposa de Cristo. Permanece sempre ativo, estimulando as antitoxinas
necessárias sob diferentes formas e a diferentes níveis.
O presente volume-que recolhe grande parte dos apreciados artigos do
“Vivaio” de Vittorio Messori -seção do jornal católico nacional- é
precisamente um destes remédios providenciais para nossos males: sua
aparição é um sinal de que Deus não abandonou a seu povo.

Messori é, graças a Deus, autor original e muito pessoal. E não é


obrigatório compartilhar singularmente todas suas geniais opiniões, mas
não podemos deixar de comparar, todos-e apreciar todos-seu valente
serviço à verdade e seu amor pela Igreja.

Cardeal GIACOMO BIFFI


Arcebispo de Bolonha
INTRODUÇÃO

O presente livro é uma recopilação de artigos que publiquei em


jornais italianos. A origem jornalística dos textos se manifesta no fato de
que, em cada um deles, o argumento se encontra claramente enquadrado.
Isso propicia que uma de suas formas de leitura possa ser a página aberta.

O título que os une, Lendas negras da Igreja, manifesta a triste


realidade daquela frase evangélica: “Crêem que vim a trazer a paz ao
mundo? Digo-lhes que não, mas a divisão”. Entretanto, é necessário
recordar o antigo princípio de que o movimento não se prova com
complexas teorias a não ser, simplesmente, movendo-se. Assim também
ocorre com o cristianismo: fé em um Deus que se tomou tão a sério o
tempo dos homens que participou dele-encarnando-se em um lugar, em um
tempo, em um povo, com um rosto e um nome-; a verdade do Evangelho se
prova na história concreta. É Jesus mesmo quem lança o desafio: a árvore é
julgada por seus frutos. É precisamente a defesa destes frutos o que serve
de elo aos diversos capítulos deste livro.

A paixão com que me enfrento ao conteúdo destes temas convive


sempre com a vigilante auto-ironia de quem sabe bem que acreditar não é
um arrogante, inclusive fanático, “segundo eu”. Em nenhuma página, nem
sequer nas mais polêmicas, esqueci o conselho de S. Agostinho: Interficite
enganos; homines diligite. Acabem com os enganos; amem aos homens.
Não todas as idéias nem todas as ações são respeitáveis. Dignos de todo
respeito são, entretanto, cada um dos homens.

As considerações que desenvolvo nas páginas que seguem unem


convicção e disponibilidade à discussão. E também se acham abertas à
humildade da obediência, ao sacrifício duro mas convencido do saber calar,
o momento em que assim se dita por quem, na Iglesia, ostenta a legítima
autoridade sobre o “depósito da fé”. Graças a Deus não me encontro entre
aqueles (hoje numerosos) que estão convencidos de que a eles lhes
concedeu descobrir no que consista o “verdadeiro” cristianismo, a
“verdadeira” Igreja e que pensam que só a partir dos anos sessenta do
século XX um grupo de teólogos acadêmicos teriam descoberto o que quer
dizer verdadeiramente o Evangelho. Como se, durante tantos séculos, o
Espírito Santo tivesse estado entorpecido ou sádicamente, divertiu-se
inspirando de modo errôneo e abusivo a tantas gerações de crentes, entre os
quais uma multidão de Santos que somente Deus conhece.

Em realidade, não somos mais que anãos sobre as costas de gigantes


E somente a consciência de nosso extraordinário passado onde abundou o
pecado, sim, mas também a graça, pode nos abrir o caminho do futuro.

1. Sentimentos de culpa

Ao cabo de três dias de fatigante viagem em comum, Leo Moulin, de


oitenta e um anos, aparece jovial, elegante, atento e tão cordial como
sempre. Moulin, professor de História e Sociologia na Universidade de
Bruxelas durante meio século, autor de dezenas de livros rigorosos e
fascinantes, é um dos intelectuais mais prestigiosos da Europa. É
possivelmente quem melhor conhece as ordens religiosas medievais, e
poucos sentem tanta admiração pela sabedoria daqueles monges como ele.
Apesar de haver-se afastado das lojas maçônicas nas que militou
(“Freqüentemente - diz-me - filiar-se a elas é condição indispensável para
fazer carreira em universidades, jornais ou editoriais: a ajuda mútua entre
os "irmãos maçons" não é um mito, é uma realidade ainda vigente”), segue
sendo um leigo, um racionalista cujo agnosticismo borda o ateísmo.

Moulin me encomenda que repita aos crentes um de seus princípios,


amadurecido ao longo de uma vida de estudo e experiência: “Façam caso a
este velho incrédulo que sabe o que diz: a obra mestra da propaganda
anticristã é ter conseguido criar nos cristãos, sobretudo nos católicos, uma
má consciência, lhes infundindo a inquietação, quando não a vergonha, por
sua própria história. À força de insistir, da Reforma até nossos dias,
conseguiram lhes convencer de que são os responsáveis por todos ou quase
todos os males do mundo. Paralisaram-lhes na autocrítica masoquista para
neutralizar a crítica do que ocupou seu lugar. “

Feministas, homossexuais, terceiro mundistas, pacifistas,


representantes de todas as minorias, contestatários e descontentes de
qualquer estirpe, cientistas, humanistas, filósofos, ecologistas, defensores
dos animais, moralistas leigos “permitistes que todos lhes passassem
contas, freqüentemente falseadas, quase sem discutir. Não houve problema,
engano ou sofrimento histórico que não lhes tenha imputado. E vós, quase
sempre ignorantes de seu passado, acabastes por acreditá-lo, até o ponto de
respaldá-los. Em troca, eu (agnóstico mas também um historiador que trata
de ser objetivo) lhes digo que devem reagir em nome da verdade. De fato,
freqüentemente não é certo. Mas se em algum caso o é, também é certo
que, depois de um balanço e vinte séculos de cristianismo, as luzes
prevalecem ampliamente sobre as trevas. Logo, por que não pedis conta a
quem lhes pede isso a vós? Acaso foram melhores os resultados do que
veio depois? Desde que púlpitos escutais, contritos, certos sermões?” Fala-
me daquela Idade Média que estudou sempre: “Aquela vergonhosa mentira
dos "séculos escuros", por estar inspirados na fé do Evangelho”, por que,
então tudo o que fica daqueles tempos é de uma beleza e sabedoria tão
fascinantes? Também na história serve a lei de causa e efeito...”

Penso no historiador de Bruxelas enquanto atravesso em carro, a


periferia de Milão numa manhã qualquer. Aqui, como em toda periferia
urbana, um Dante contemporâneo poderia ambientar um dos círculos de
seu inferno: ruídos ensurdecedores, aromas mefíticos, montões de
escombros e refugos, águas envenenadas, calçadas obstruídas por veículos
estacionados, escaravelhos e ratos, cimento enlouquecido, fibras de erva
tóxica. Em qualquer parte adverte a ira e o ódio de uns contra outros:
automobilistas contra caminhoneiros, pedestres contra motorizados,
compradores contra vendedores, setentrionais contra meridionais, italianos
contra estrangeiros, operários contra patrões, filhos contra pais. A
degradação se instala nos corações muito antes que no ambiente.

Ao fim, a meta: o grande mosteiro, a antiga casa religiosa. Aliviado


por me liberar do carro atravesso o portão. De repente, o mundo troca a
meu redor. Um grande pátio de uma antiguedade secular, fechado em todos
seus lados por um soportal, sossega o ânimo com a harmonia de seus arcos.
O silêncio, a beleza dos afrescos, o ritmo das edificações, a frescura das
sombras. Mais à frente do pátio se vê um amplo jardim, último reduto em
cujas árvores se refugiou tudo o que sobrevive ou voa na terra desolada das
imediações. A hospitalidade dos religiosos te faz sentir que essa gente, em
que pese a tudo, tenta fazer o bem e acredita que ainda é possível amar.
Com uma mescla de ironia e angústia, penso na vingança da história
dos últimos dois séculos, povoados por gente diversa mas unida por um
furioso intento de suprimir os sinais cristãos, começando pelas
congregações religiosas; pela necessidade de destruir com estas esses
lugares de paz e beleza, vistos como imundos rincões de obscurantismo,
anacrônicos obstáculos no caminho sobre a que edificar o sonhado “novo
mundo”.

Agora, mais à frente do muro que resguarda o jardim, temos o fruto


do radiante amanhã prometido. Jamais o mundo, em nome da humanidade,
voltou-se mais desumano. truncaram-se as expectativas: a realidade e a
esperança de um mundo mais habitável perduram - mas por quanto
tempo?-nestes resíduos religiosos que sobreviveram (por milagre, por azar,
por obstinação dos cristãos, que ressurgem cada vez que são eliminados) à
fúria dos “iluminados”. Seus filhos e netos se refugiam também aqui para
lamentar-se de tudo que se perdeu. E para alegrar-se de que se salvou algo
da raiva dos destruidores.

Se pelo fruto se reconhece à árvore, possivelmente terei que extrair


alguma conclusão disso, embora seja para prosseguir com a admoestação
de Moulin, o velho historiador agnóstico, aos crentes: “causa e efeito...”.
Também nós temos nossos esqueletos no armário; e olho querendo
dissimulá-lo. A realidade cristã sempre mescla o divino com o humano; a
Igreja é casta et meretrix, conforme sentenciam os Padres. E assim são e
foram sempre seus filhos. Mas olhemos também a nosso redor, já não tão
envergonhados e intimidados. A caridade não é possível sem a verdade;
para nós e para outros.

I. ESPANHA, A INQUISIÇÃO E A LENDA NEGRA

2. Lenda negra I

Dança com lobos, o filme norte-americano que fica do lado dos


índios, ganhou sete Oscars.

A meados dos anos sessenta o western se dispôs a experimentar uma


mudança; as primeiras dúvidas a respeito da bondade da causa dos
pioneiros anglo-saxões provocaram uma crise do esquema “branco-bom-
pele-vermelha-mau”. Desde então, essa crise foi em aumento até a inversão
do esquema: agora, as novas categorias insistem em ver sempre no índio ao
herói puro e no pioneiro ao brutal invasor.

Como é lógico, existe o perigo de que a nova situação se converta em


uma espécie de novo conformismo do homem ocidental pós-cristão,
politically correct, como se denomina a quem respeita os cânones e tabus
da mentalidade corrente.

Enquanto que antes se produzia a excomunhão social de todo aquele


que não visse um mártir da civilização e um campeão do patriotismo
“branco” no coronel George A. Custer, agora mereceria a mesma
excomunhão todo aquele que falasse mal de Touro Sentado e dos dacotas,
que aquela manhã de 25 de junho de 1876, no Little Big Horn, acabaram
com a vida do Custer e com todo o Sétimo de Cavalaria.

Apesar do risco de que apareçam novos slogans conformistas, é


impossível não acolher com satisfação o fato de que se descubram os
papéis “de outra” América, a protestante, que deu (e dá) tantas desdenhosas
lições de moral à América católica. Do século XVI as potências nórdicas
reformadas -Grã-Bretanha e Holanda in primis- iniciaram em seus
domínios de ultramar uma guerra psicológica ao inventar a “lenda negra”
da barbárie e a opressão praticadas pela Espanha, com a que estavam na
luta pelo predomínio marítimo.

Lenda negra que, como ocorre pontualmente com tudo o que não está
de moda no mundo leigo é descoberta agora com avidez por padres, frades
e católicos adultos em geral, quem, ao protestar com tons virulentos contra
as celebrações pelo Quinto Centenário do Descobrimento ignoram que,
com alguns séculos de atraso, erigem-se em seguidores de uma afortunada
campanha dos serviços de propaganda britânicos e holandeses.

Pierre Chaunu, historiador de hoje, fora de toda suspeita por ser


calvinista, escreveu: “A lenda anti-hispânica em sua versão norte-
americana (a européia faz insistência sobretudo na Inquisição)
desempenhou o saudável papel de válvula de escape. A suposta matança
dos índios por parte dos espanhóis no século XVI encobriu a matança
norte-americana da fronteira Oeste, que teve lugar no século XIX. A
América protestante conseguiu livrar-se deste modo de seu crime lançando-
o de novo sobre a América católica.”

Entendamo-nos, antes de nos ocupar de semelhantes temas seria


preciso que nos liberássemos de certos moralismos atuais que são irreais e
que se negam a reconhecer que a história é uma senhora inquietante,
freqüentemente terrível. De uma perspectiva realista que deveria voltar a
impor-se, terei que condenar sem dúvida os enganos e as atrocidades
(venham de onde vierem) mas sem amaldiçoar como se se tratou de uma
coisa monstruosa o fato em si da chegada dos europeus às Américas e de
seu assentamento naquelas terras para organizar um novo hábitat.

Em história resulta impraticável a edificante exortação de “que cada


um fique em sua terra sem invadir a alheia”. Não é viável não só porque
desse modo se negaria todo dinamismo às vicissitudes humanas, mas sim
porque toda civilização é fruto de uma mescla que nunca foi pacífica. Sem
ânimo de incoar à História Sagrada mesma (a terra que Deus prometeu aos
judeus não pertencia, mas sim a arrancaram à força a seus anteriores
habitantes), as almas bondosas que renegam dos malvados usurpadores das
Américas esquecem, entre outras coisas, que a sua chegada, aqueles
europeus se encontraram a sua vez com outros usurpadores. O império dos
astecas e o dos incas se criou com violência e se mantinha graças à
sanguinária opressão dos povos invasores que tinham submetido aos
nativos à escravidão.

Freqüentemente se finge ignorar que as incríveis vitórias de um


punhado de espanhóis contra milhares de guerreiros não estiveram
determinadas nem pelos arcabuzes nem pelos muitos escassos canhões (que
com freqüência resultavam inúteis naqueles climas porque a umidade
neutralizava a pólvora) nem pelos cavalos (que na selva não podiam ser
lançados à carga).

Aqueles triunfos se deveram sobretudo ao apoio dos indígenas


oprimidos pelos incas e os astecas. Portanto, mais que como usurpadores,
os ibéricos foram saudados em muitos lugares como libertadores. E
esperemos agora a que os historiadores iluminados nos expliquem como é
possível que em mais de três séculos de domínio hispânico não se
produzissem revoltas contra os novos dominadores, apesar de seu número
reduzido e apesar de que por este fato estavam expostos ao perigo de ser
eliminados da face do novo continente ao mínimo movimento. A imagem
da invasão da América do Sul desaparece imediatamente em contato com
as cifras: nos cinqüenta anos que vão de 1509 a 1559, quer dizer, no
período da conquista desde a Flórida ao estreito de Magalhães, os
espanhóis que chegaram às Índias Ocidentais foram pouco mais de
quinhentos (sim, quinhentos!) por ano. Em total, 27 787 pessoas nesse
meio século.

Voltando para a mescla de povos com os que é preciso fazer as contas


de um modo realista, não devemos esquecer, por exemplo, que os
colonizadores da América do Norte provinham de uma ilha que nos resulta
natural definir como anglo-saxã. Em realidade, era dos bretões, submetidos
primeiro pelos romanos e logo pelos bárbaros germanos - precisamente os
anglos e os saxões-que exterminaram a boa parte dos indígenas e à outra a
fizeram fugir para as costas da Gália onde, depois de expulsar por sua vez
aos habitantes originários, criaram a que se denominou Bretanha. Pelo
resto nenhuma das grandes civilizações (nem a egípcia, nem a romana, nem
a grega, sem esquecer nunca a judia) criou-se sem as correspondentes
invasões e as conseguintes expulsões dos primeiros habitantes.

Portanto, ao julgar a conquista européia das Américas será preciso


que nos cuidemos da utopia moralista a que gostaria de uma história cheia
de reverências, de boas maneiras, e de “faltava mais, você primeiro”.

Esclarecido este ponto, é preciso que digamos também que há


conquistas e conquistas (e em filmes como o muito premiado Dança com
lobos, se começa a entender) e que a católica foi ampliamente preferível a
protestante.

Como escreveu Jean Dumont, outro historiador contemporâneo: “Se,


por desgraça, Espanha (e Portugal) passara à Reforma, tornara-se puritana e
tivesse aplicado os mesmos princípios que a América do Norte ("diz a
Bíblia, o índio é um ser inferior, um filho do Satanás), um imenso
genocídio teria eliminado da América do Sul a todos os povos indígenas.
Hoje em dia, ao visitar as poucas "reservas" do México à Terra do Fogo, os
turistas fariam fotos dos sobreviventes, testemunhas da matança racial,
levada a cabo também sobre a base de motivações "bíblicas" .

Efetivamente, as cifras contam: enquanto que os pele- vermelhas que


sobrevivem na América do Norte são uns quantos milhares, na América ex-
espanhola e ex-portuguesa, a maioria da população ou é de origem índia ou
é fruto da mescla de précolombianos com europeus e (sobretudo no Brasil)
com africanos.

3. Lenda negra II

A questão das distintas colonizações das Américas (a ibérica e a


anglo-saxônica) é tão ampla, e são tantos os preconceitos acumulados, que
só podemos oferecer algumas observações.

Voltemos para a população indígena, tal como assinalamos


virtualmente desaparecida nos Estados Unidos de hoje, onde estão
registradas como “membros de tribos índias” aproximadamente um milhão
e meio de pessoas. Em realidade, esta cifra, de por si exígua, reduziria-se
ainda mais se considerarmos que para aspirar ao chamado registro basta ter
uma quarta parte de sangue índio.

No sul a situação é exatamente a contrária; na zona mexicana, na


andina e em muitos territórios brasileiros, quase noventa por cento da
população ou descende diretamente dos antigos habitantes ou é fruto da
mescla entre os indígenas e os novos habitantes. E mais ainda, enquanto
que a cultura dos Estados Unidos não deve à indigena mais que alguma
palavra, já que se desenvolveu a partir de suas origens européias sem que
se produzisse virtualmente nenhum intercâmbio com a população nativa,
não ocorre o mesmo na América hispano-portuguesa, onde a mescla não só
foi demográfica mas também deu origem a uma cultura e uma sociedade
novas, de características inconfundíveis.

Sem dúvida, isto se deve ao distinto grau de desenvolvimento dos


povos que tanto os anglo-saxões como os ibéricos encontraram naqueles
continentes, mas também se deve a uma idéia religiosa distinta. A diferença
dos católicos espanhóis e portugueses, que não duvidavam em casar-se
com as índias nas que viam seres humanos iguais a eles, aos protestantes
(seguindo a lógica da que já falamos e que tende a fazer retroceder para o
Antigo Testamento ao cristianismo reformado) animava-os uma espécie de
“racismo” ou ao menos, o sentido de superioridade, de “estirpe escolhida”,
que tinha marcado a Israel. Isto, somado à teologia da predestinação (o
índio é subdesenvolvido porque está destinado à condenação, o branco é
desenvolvido como signo de eleição divina) fazia que a mescla étnica e
inclusive a cultural fossem consideradas como uma violação do plano
providencial divino.

Assim ocorreu não só na América e com os ingleses mas em todas as


demais zonas do mundo às que chegaram os europeus de tradição
protestante. O apartheid sul-africano, por citar o exemplo mais clamoroso,
é uma criação típica e teologicamente coerente do calvinismo holandês.
Surpreende, portanto, essa espécie de masoquismo que recentemente
impulsionou à Conferência de bispos católicos sul-africanos a somar-se,
sem maiores distinções nem precisões, à Declaração de arrependimento”
dos cristãos brancos para os negros daquele país. Surpreende porque
embora por parte dos católicos pôde haver algum comportamento
imperdoável, digno comportamento, ao contrário do ocorrido no caso
protestante, ia contra a teoria e a prática católicas. Mas dá igual, hoje por
hoje, parece ser que existem não poucos clericais dispostos a carregar a
Igreja com culpa que não tem.

As formas de conquista das Américas se originam precisamente nas


distintas teologias: os espanhóis não consideraram os habitantes de seus
territórios como uma espécie de lixo que se tem que eliminar para poder
instalar-se neles como donos e senhores. Reflete-se pouco sobre o fato de
que a Espanha (com diferença da Grã-Bretanha) não organizou nunca seu
império americano em colônias, mas em províncias. E que o rei da Espanha
não se ateve nunca a coroa de imperador das Índias, a diferença de quanto
fará, inclusive a princípios do século XX, a monarquia inglesa. Do começo,
e mais tarde, com implacável perseverança, durante toda a história
posterior, os colonos protestantes se consideraram com o direito, baseado
na mesma Bíblia, de possuir sem problemas nem limitações toda a terra
que conseguissem ocupar jogando ou exterminando a seus habitantes. Estes
últimos, como não formavam parte do “novo Israel” e como levavam a
marca de uma predestinação negativa, ficaram submetidos ao domínio total
dos novos amos.

O regime de solos instaurado nas distintas zonas americanas confirma


esta diferença das perspectivas e explica os distintos resultados: no sul se
recorreu ao sistema da encomenda, figura jurídica de inspiração feudal,
pela qual o soberano concedia a um particular um território com sua
população incluída, cujos direitos eram tutelados pela Coroa, que seguia
sendo a verdadeira proprietária. Não ocorreu o mesmo no norte, onde
primeiro os ingleses e depois o governo federal dos Estados Unidos se
declararam proprietários absolutos dos territórios ocupados e por ocupar;
toda a terra era cedida a quem o desejasse ao preço que se fixou
posteriormente em uma média de um dólar por acre. Quanto aos índios
que podiam habitar essas terras, correspondia aos colonos afastá-los ou
melhor ainda, exterminá-los, com a ajuda do exército se fosse preciso.

O termo “extermínio” não é exagerado e respeita a realidade concreta.


Por exemplo, muitos ignoram que a prática de arrancar o couro cabeludo
era conhecida tanto pelos índios do norte como pelos do sul. Mas entre
estes últimos desapareceu logo, proibida pelos espanhóis. Não ocorreu o
mesmo no norte. Por citar um exemplo, a entrada correspondente em uma
enciclopédia nada suspeita como a Larousse diz: “A prática de arrancar o
couro cabeludo se difundiu no território do que hoje é os Estados Unidos a
partir do século XVII, quando os colonos brancos começaram a oferecer
fortes recompensas a quem apresentasse o couro cabeludo de um índio fora
homem, mulher ou menino “

Em 1703 o governo de Massachusetts pagava doze libras esterlinas


por couro cabeludo, quantidade tão atraente que a caça de índios,
organizada com cavalos e matilhas de cães, não demorou para converter-se
em uma espécie de esporte nacional muito rentável. O dito “o melhor índio
é o índio morto”, posto em prática nos Estados Unidos, nasce não só do
fato de que todo índio eliminado constituía uma moléstia menos para os
novos proprietários, mas também do fato de que as autoridades pagavam
bem por seu couro cabeludo. Tratava-se pois de uma prática que na
América católica não só era desconhecida mas também, de ter tratado
alguém de introduzi-la de forma abusiva, teria provocado não só a
indignação dos religiosos, sempre presentes ao lado dos colonizadores, mas
também também as severas penas estabelecidas pelos reis para tutelar o
direito à vida dos índios.

Entretanto, diz-se que milhões de índios morreram também na


América Central e do Sul. Morreram, que dúvida cabe, mas não para estar
ao borde do desaparecimento como no norte. Seu extermínio não se deveu
exclusivamente às espadas de aço de Toledo e às armas de fogo (que, como
já vimos, quase sempre falhavam), a não ser aos invisíveis e letais vírus
procedentes do Velho Mundo.

O choque microbiano e viral que em poucos anos causou a morte da


metade da população nativa da Ibero-América foi estudado pelo grupo de
Berkeley, formado por peritos dessa universidade. O fenômeno é
comparável à peste negra que, procedente da Índia e China, assolou a
Europa no século XIV. As enfermidades que os europeus levaram a
América como a tuberculose, a pneumonia, a gripe, o sarampo ou a varíola
eram desconhecidas no nicho ecológico isolado dos índios, portanto, estes
careciam de defesas imunológicas para lhes fazer frente. Mas resulta
evidente que não se pode responsabilizar disso aos europeus, vítimas das
enfermidades tropicais às que os índios resistiam melhor. É de justiça
recordar aqui, coisa que se faz com pouca freqüência, que a expansão do
homem branco fora da Europa assumiu freqüentemente o aspecto trágico
de uma hecatombe, com uma mortalidade que, no caso de certos navios,
certos climas e certos nativos, alcançou cifras impressionantes.

Ao desconhecer os mecanismos do contágio (faltava muito ainda para


o Pasteur) houve homens como Bartolomeu de las Casas -figura
controvertida que se terá que analisar prescindindo de esquemas
simplificadores- que foram vítimas do equívoco: ao ver que aqueles povos
diminuíam drasticamente, suspeitaram das armas de seus compatriotas,
quando em realidade não eram as armas as assassinas, a não ser os vírus.
Trata-se de um fenômeno de contágio mortífero observado mais
recentemente entre as tribos que permaneceram isoladas na Guiana
Francesa e na região do Amazonas, no Brasil.

O costume espanhol de dizer : Jesus!, a maneira de augúrio a quem


espirra, nasce do fato de que um simples resfriado (do qual o espirro é
sintoma) estava acostumado a ser mortal para os indígenas que o
desconheciam e para os que careciam de defesas biológicas.

4. Lenda negra III

“As pressões dos judeus através dos meios de comunicação e os


protestos dos católicos empenhados no diálogo com o judaísmo tiveram
êxito. A causa da beatificação de Isabel a Católica, rainha de Castela,
recebeu nestes dias um imprevisto breque [...]. A preocupação por não
provocar as reações dos israelenses, irritados pela beatificação da judia
conversa Edith Stein e pela presença de um mosteiro em Auschwitz,
favoreceu que se fizesse uma "pausa para refletir" sobre a conveniência de
continuar com a causa da Serva de Deus, título ao que já tem direito Isabel
I de Castela. “

Assim diz um artigo publicado no IL Nostro Tempo, Orazio


Petrosillo, informador religioso do IL Messagero. Petrosillo recorda que o
freio do Vaticano chegou a pesar do juízo positivo dos historiadores,
apoiado em um trabalho de vinte anos contido em vinte e sete volúmes.
“Nestas quantidades enormes de material-diz o postulador da causa,
Anastasio Gutiérrez-não se encontrou um só ato ou manifestação da rainha,
já fora público ou privado que possa considerar-se contrário à santidade
cristã.” O padre Gutiérrez não duvida em tachar de “covardes aos
eclesiásticos que, atemorizados pelas polêmicas, renunciam a reconhecer a
santidade da rainha”. Entretanto, Petrosillo conclui dizendo, “tem-se a
impressão de que a causa dificilmente chegue a termo”.

Trata-se de uma notícia pouco reconfortante. Entretanto, não é a


primeira vez que ocorre; restringindo-nos à Espanha, recordemos que
Paulo VI bloqueou a beatificação dos mártires da guerra civil, por isso
podemos comprovar que, uma vez mais, considerou-se que as razões da
convivência pacífica contrastavam com as da verdade, que neste caso é
atacada com uma virulência vizinha na difamação, não só por parte dos
judeus (aos que na época da Isabel foi revogado o direito a residir no país),
mas também por parte dos muçulmanos (expulsos de Granada, sua última
posse em terras espanholas), e por todos os protestantes e os anticatólicos
em geral, que sempre vão às nuvens quando se fala daquela velha Espanha
cujos soberanos tinham direito ao título oficial de Reis Católicos. Título
que tomaram tão a sério que uma polêmica secular identificou hispanismo
e catolicismo, Toledo e Madri com Roma.

Quanto à expulsão dos judeus, sempre se esquecem certos feitos,


como por exemplo, que muito antes de Isabel, os soberanos da Inglaterra,
França e Portugal tinham tomado a mesma medida, e muitos outros países
foram tomá-la sem as justificações políticas que explicam o decreto
espanhol que, não obstante, constituiu um drama para ambas as partes.

É preciso recordar que a Espanha muçulmana não era absolutamente


o paraíso de tolerância que quiseram nos descrever e que, naquelas terras,
tanto cristãos como judeus eram vítimas de periódicas matanças.
Entretanto, está mais que provado que se terei que escolher entre dois
males -Cristo ou Maomé-os judeus tomaram partido por este último,
servindo de quinta coluna em prejuízo do elemento católico. Desde aí
surgiu o ódio popular que, unido à suspeita que despertavam quem
formalmente tinha abraçado o cristianismo para continuar praticando em
segredo o judaísmo (los marranos), conduziu a tensões que com freqüência
degeneraram em sanguinárias matanças espontâneas e contínuas às quais as
autoridades tentavam em vão opor-se. O Reino da Castela e Aragão
surgido do casamento dos reis ainda não se afiançava e não estava em
condições de suportar nem de controlar uma situação tão explosiva,
ameaçado como estava por uma contra-ofensiva de árabes que contavam
com os muçulmanos, a sua vez convertidos por compromisso.

Do ponto de vista jurídico, na Espanha, e em todos os reinos daquela


época, os judeus eram considerados estrangeiros e davam-lhes proteção
temporalmente sem direito a cidadania. Os judeus eram perfeitamente
conscientes de sua situação: sua permanência era possível enquanto não
pusessem em perigo ao Estado. Coisa que, segundo o parecer não só dos
soberanos mas também do povo e de seus representantes, produziu-se com
o tempo como resultado das violações da legalidade por parte dos judeus
não-conversos como dos formalmente convertidos, pelos quais Isabel
sentia uma “ternura especial” tal que pôs em suas mãos quase toda a
administração financeira, militar e inclusive eclesiástica. Entretanto, parece
que os casos de “traição” chegaram a ser tantos como para não poder seguir
permitindo semelhante situação.

Em qualquer caso, como mantém a postulação da causa de santidade


de Isabel, “o decreto de revogação da permissão de residência aos judeus
foi estritamente político, de ordem pública e de segurança do Estado, não
se consultou absolutamente ao Papa, nem interessa à Igreja o julgamento
que queira emitir neste sentido. Um eventual engano político pode ser
perfeitamente compatível com a santidade. Portanto, se a comunidade
judaica de hoje queria apresentar alguma queixa, deverá dirigi-la às
autoridades políticas, caso as atuais sejam responsáveis pelo executado por
seus antecessores de faz cinco séculos”.

Acrescenta a postulação (não terá que esquecer que trabalhou com


métodos científicos, com a ajuda de mais de uma dezena de investigadores
que dedicaram vinte anos a examinar mais de cem mil documentos nos
arquivos de meio mundo): “A alternativa, o aut-aut "ou converter-se ou
abandonar o Reino", que teria sido imposta pelos Reis Católicos é uma
fórmula simplista, um slogan vulgar: já não se acreditava nas conversões.
A alternativa proposta durante os muitos anos de violações políticas da
estabilidade do Reino foi: "Ou cessam em seus crimes ou deverão
abandonar o Reino." Como confirmação ulterior temos a atividade anterior
de Isabel em defesa da liberdade de culto dos judeus contra as autoridades
locais, com a promulgação de um seguro real assim como com a ajuda para
a construção de muitas sinagogas.

Não obstante, resulta significativo que a expulsão fora


particularmente aconselhada pelo confessor real, o muito difamado Tomás
de Torquemada, primeiro organizador da Inquisição, que era de origem
judia. Também resulta significativo e demonstrativo da complexidade da
história o fato de que, afastadas dos Reis Católicos, embora fora pelo
clamor popular e por motivos políticos de legítima defesa, as famílias
judias mais ricas e influentes solicitaram e obtiveram hospitalidade da
única autoridade que a concedeu com gosto e a acolheu em seus territórios:
o Papa. Disto só pode surpreender-se todo aquele que ignore que a Roma
pontifícia é a única cidade do Velho continente em que a comunidade judia
viveu desigualdades segundo os papas que lhes tocaram em sorte, mas que
nunca foi expulsa nem sequer por breve tempo. Terá que esperar ao ano
1944 e a que se produza a ocupação alemã para ver, mais de mil e
seiscentos anos depois de Constantino, aos judeus de Roma perseguidos e
obrigados à clandestinidade; quem conseguiu escapar o fizeram em sua
maioria graças à hospitalidade concedida por instituições católicas, com o
Vaticano à cabeça.

O caminho aos altares está proibido a Isabel também por quem


terminou por aceitar sem críticas a lenda negra da que falamos e da que
seguiremos nos ocupando, e que abundam inclusive entre as filas católicas.
Não lhe perdoa à soberana e a seu consorte, Fernando do Aragão, o ter
iniciado o patronato, negociado com o Papa, com o que se comprometiam à
evangelização das terras descobertas pelo Cristóvão Colombo, cuja
expedição tinham financiado. Em uma palavra, seriam os dois Reis
Católicos os iniciadores do genocídio dos índios, levado a cabo com a cruz
em uma mão e a espada na outra. E os que se salvaram da matança teriam
sido submetidos à escravidão. Entretanto, sobre este aspecto, a história
verdadeira oferece outra versão que difere da lenda.
Vejamos, por exemplo, o que diz Jean Dumont: “A escravidão dos
índios existiu, mas por iniciativa pessoal de Colombo, quando teve os
poderes efetivos de vice-rei das terras descobertas; portanto, isto foi assim
só nos primeiros assentamentos que tiveram lugar nas Antilhas antes de
1500. Isabel a Católica reagiu contra esta escravidão dos indígenas (em
1496 Colombo tinha enviado muitos a Espanha) mandando liberar, desde
1478, aos escravos dos colonos nas Canárias. Mandou que se devolvesse às
Antilhas aos índios e ordenou a seu enviado especial, Francisco de
Bobadilla, que os libertasse, e este a sua vez, destituiu a Colombo e o
devolveu a Espanha em qualidade de prisioneiro por seus abusos. A partir
de então a política adotada foi bem clara: os índios são homens livres,
submetidos como outros à Coroa e devem ser respeitados como tais, em
seus bens e em suas pessoas.”

Quem considere este quadro como muito idílico, conviria-lhes ler o


codicilo que Isabel acrescentou a seu testamento três dias antes de morrer,
em novembro de 1504, e que diz assim: “Concedidas que nos foram pela
Santa Sede Apostólica as ilhas e a terra firme do mar Oceano, descobertas e
por descobrir, nossa principal intenção foi tratar de induzir a seus povos
que abraçassem nossa Santa fé católica e enviar a aquelas terras religiosos e
outras pessoas doutas e temerosas de Deus para instruir aos habitantes na fé
e dotá-los de bons costumes pondo nisso o zelo devido; por isso suplico ao
Rei, meu senhor, muito afetuosamente, e recomendo e ordeno a minha filha
a princesa e a seu marido, o príncipe, que assim o façam e cumpram e que
este seja seu fim principal e que nele empreguem muita diligência e que
não consintam que os nativos e os habitantes de ditas terras conquistadas e
por conquistar sofram dano algum em suas pessoas ou bens, mas sim façam
o necessário para que sejam tratados com justiça e humanidade e que se
sofrerem algum dano, repararem-no. “

Trata-se de um documento extraordinário que não tem igual na


história colonial de nenhum país. Entretanto, não existe nenhuma história
tão difamada como a que se inicia com a Isabel a Católica.

5. Lenda negra 4

A Bartolomeu de Las Casas se atribui a responsabilidade da


colonização espanhola das Américas. Um nome que se tira sempre a reluzir
quando se fala das mais afortunadas de suas obras, com um título que em si
constitui um programa: Muito breve relação da destruição das Índias. Uma
destruição; se assim definir um espanhol, a conquista do Novo Mundo,
como encontrar argumentos em defesa dessa empresa? Acaso o processo
não se fechou com um inapelável veredicto contra a colonização ibérica?

Pois não, não se fechou absolutamente. E mais, a verdade e a justiça


impõem que não se aceitem sem críticas as invectivas de Las Casas; para
usar a expressão que utilizam os historiadores mais atualizados, chegou o
momento de submetê-lo a uma espécie de processo, a ele, tão furioso nos
que iniciava contra outros.

Em primeiro lugar, quem era Las Casas? Nasceu em Sevilha em 1474,


filho do rico Francisco Casaus, cujo sobrenome delata orígem judia.
Alguns estudiosos, ao realizar uma análise psicológica da personalidade
complexa, obsessiva, “vociferante”, sempre disposta a assinalar com o
dedo aos “maus”, do Bartolomeu Casaus, convertido logo no padre Las
Casas, chegaram inclusive a falar de um “estado paranóico de alucinação”,
de uma “exaltação mística, com a conseguinte perda do sentido da
realidade”. Julgamentos severos que, entretanto, foram defendidos por
grandes historiadores como Ramón Menéndez Pidal.

Trata-se de um estudioso espanhol, por isso se poderia suspeitar de


parcialidade.

Mas William S. Maltby não é espanhol, mas norte-americano de


origens anglo-saxônicas, professor de História da América do Sul em uma
universidade dos Estados Unidos, e em 1971 publicou um estudo sobre a
“lenda negra”, as origens do mito da crueldade dos “papistas” espanhóis.
Maltby escreveu, entre outras coisas, que (nenhum historiador que se preze
pode hoje tomar a sério as denúncias injustas e desatinadas de Las Casas” e
conclui: “Em resumidas contas, devemos dizer que o amor deste religioso
pela caridade foi ao menos maior que seu respeito pela verdade.”

Ante este frade que com suas acusações iniciou a difamação da


gigantesca epopéia espanhola no Novo Mundo, houve quem pensou que
talvez suas origens judaicas entrassem em jogo inconscientemente. Como
se se tratasse de um ressurgir da hostilidade ancestral contra o catolicismo,
sobretudo o espanhol, culpado de ter afastado aos judeus da península
Ibérica. Com muita freqüência se escreve a história dando por descontado
que seus protagonistas se comportam pura e exclusivamente de forma
racional e não quer admitir ((precisamente no século da psicanálise!) a
influência escura do irracional, das pulsações ocultas inclusive para os
mesmos protagonistas. Portanto, é muito possível que nem sequer Las
Casas tenha podido substrair-se a um inconsciente que, através da
obsessiva difamação de seus compatriotas, incluídos seus irmãos
religiosos, respondia a uma espécie de vingança oculta.

Seja como for, o pai de Bartolomeu, Francisco Casaus, acompanhou a


Colombo em sua segunda viagem ao outro lado do Atlântico, ficou nas
Antilhas e, confirmando os dotes de habilidade e iniciativa semíticas, criou
uma grande plantação onde se dedicou a escravizar aos índios, prática que,
como vimos, tinha caracterizado o primeiro período da Conquista e, ao
menos oficialmente, só esse período. depois de cursar estudos na
Universidade da Salamanca, o jovem Bartolomeu partiu com destino às
Índias, onde se fez cargo da pingue herança paterna, e até os trinta e cinco
anos ou mais, empregou os mesmos métodos brutais que denunciaria mais
tarde com tanto afinco.

Graças a uma conversão superaria esta fase para converter-se em


intransigente partidário dos índios e de seus direitos. Depois de sua
insistência, as autoridades da mãe pátria atenderam seus conselhos e
aprovaram severas leis de tutela dos indígenas, o que mais tarde ia ter um
perverso efeito: os proprietários espanhóis, necessitados de abundante mão
de obra, deixaram de considerar conveniente o uso das populações nativas
que algum autor define hoje como “demasiado protegidas”, e começaram a
prestar atenção aos holandeses, ingleses, portugueses e franceses que
ofereciam escravos importados da África e capturados pelos árabes
muçulmanos.

O tráfico de negros (colossal negócio virtualmente em mãos de


muçulmanos e protestantes) só afetou de forma marginal às zonas sob
domínio espanhol, em especial e quase em exclusiva, às ilhas do Caribe.
Basta com que viajemos por essas regiões cuja população, na zona central e
andina, é em sua maioria a Índia e, na zona meridional entre o Chile e
Argentina, exclusivamente européia, para que possamos comprovar que é
estranho encontrar a negros, a diferença do sul dos Estados Unidos, Brasil
e as Antilhas francesa e inglesa.

Entretanto, embora em número reduzido em comparação com as


zonas sob domínio de outros povos, os espanhóis começaram a importar
africanos, entre outros motivos porque não se estendeu a eles o amparo
outorgado aos índios, implantado em tempos da Isabel a Católica e
aperfeiçoada posteriormente. Aqueles negros podiam ser explorados (pelo
menos nas primeiras épocas, pois inclusive lhes ia chegar uma lei
espanhola de tutela, coisa que nunca ia ocorrer nos territórios ingleses),
mas fazer o mesmo com os índios era ilegal (e as audiências, os tribunais
dos vice-reis espanhóis, não estavam acostumados a ir com brincadeiras).
Trata-se pois, de um efeito imprevisto e digamos que perverso da
encarniçada luta empreendida por Las Casas que, embora se bateu
nobremente pelos índios, não fez o mesmo pelos negros, aos que não
dedicou uma atenção especial, quando começaram a afluir, depois de ser
capturados nas costas africanas pelos muçulmanos e conduzidos pelos
mercados da Europa do norte.

Mas voltemos para sua conversão, determinada pelos sermões de


denúncia das arbitrariedades dos colonos (entre os que ele mesmo se
encontrava) pronunciados pelos religiosos-o qual confirma a vigilância
evangélica exercida pelo clero regular-. Bartolomeu de Las Casas se
ordenou primeiro padre e logo dominicano e dedicou o resto de sua larga
vida a defender a causa dos indígenas ante as autoridades da Espanha. É
preciso que reflitamos, em primeiro lugar, sobre o fato de que o ardente
religioso tenha podido atacar impunemente e com expressões terríveis não
só o comportamento dos particulares mas também o das autoridades. Por
utilizar a idéia do norte-americano Maltby, a monarquia inglesa não teria
tolerado sequer críticas menos brandas, mas sim teria obrigado ao
imprudente contestatário a guardar silêncio. O historiador diz também que
isso se deveu “além das questões de fé, ao fato de que a liberdade de
expressão era uma prerrogativa dos espanhóis durante o Século de Ouro,
tal como se pode corroborar estudando os arquivos, que registram toda uma
gama de acusações lançadas em público - e não reprimidas - contra as
autoridades”.

Por outra parte, reflete-se muito pouco sobre o fato de que este furioso
contestatário não só não foi neutralizado, mas também se fez amigo íntimo
do imperador Carlos V, e que este lhe outorgou o título oficial de protetor
general de todos os índios, e foi convidado a apresentar projetos que, uma
vez discutidos e aprovados apesar das fortes pressões em contra,
converteram-se em lei nas Américas espanholas.

Nunca antes na história um profeta, tal como Las Casas se


considerava a si mesmo, tinha sido tomado tão a sério por um sistema
político ao que nos apresentam entre os mais obscuros e terríveis.

6. Lenda negra 5

Portanto, as denúncias do Bartolomeu de Las Casas foram tomadas


radicalmente a sério pela Coroa espanhola, o qual a impulsionou a
promulgar severas leis em defesa dos índios e, mais tarde, a abolir a
encomenda, quer dizer, a concessão temporária de terras aos particulares,
com o que causou graves danos aos colonos.

Jean Dumont diz a respeito: “O fenômeno de Las Casas é exemplar


posto que supõe a confirmação do caráter fundamental e sistemático da
política espanhola de amparo dos índios. Desde 1516, quando Jiménez de
Cisneros foi renomado regente, o governo ibérico não se mostra
absolutamente ofendido pelas denúncias, às vezes injustas e quase sempre
desatinadas, do dominicano. O padre Bartolomeu não só não foi objeto de
censura alguma, mas também os monarcas e seus ministros o recebiam
com extraordinária paciência, escutavam-no, mandavam que se formassem
juntas para estudar suas críticas e suas propostas, e também para lançar, por
indicação e recomendação dele, a importante formulação das "Leis Novas".
E mais: a Coroa obriga ao silêncio aos adversários de Las Casas e de suas
idéias.”

Para lhe outorgar maior autoridade a seu protegido que difama a seus
súditos e funcionários, o imperador Carlos V manda que o ordenem bispo.
Por efeito das denúncias do dominicano e de outros religiosos, na
Universidade da Salamanca se cria uma escola de juristas que elaborará o
direito internacional moderno, sobre a base fundamental da “igualdade
natural de todos os povos” e da ajuda recíproca entre o povo.

Tratava-se de uma ajuda que os índios necessitavam de especial


maneira; tal como recordamos (e freqüentemente se esquece) os povos da
América Central tinham cansado sob o terrível domínio dos invasores
astecas, um dos povos mais ferozes da história, com uma religião escura
apoiada nos sacrifícios humanos massivos. Durante as cerimônias que
ainda se celebravam quando chegaram os conquistadores para derrotá-los,
nas grandes pirâmides que serviam de altar se chegaram a sacrificar aos
deuses astecas até 80 000 jovens de uma só vez. As guerras se produziam
pela necessidade de conseguir novas vítimas.

Acusa-se aos espanhóis de ter provocado uma ruína demográfica que,


como vimos, deveu-se em grande parte para choque viral. Em realidade, de
não haver-se produzido sua chegada, a população teria ficado reduzida ao
mínimo como conseqüência da hecatombe provocada pelos dominadores
entre os jovens dos povos subjugados. A intransigência e às vezes o furor
dos primeiros católicos desembarcados encontram uma fácil explicação
ante esta escura idolatria em cujos templos se derramava sangue humano.

Nos últimos anos, a atriz norte-americana Jane Fonda que, desde a


época do Vietnã tenta apresentar-se como “politicamente comprometida”
defendendo causas equivocadas, quis somar-se ao conformismo denegridor
que fez presa de não poucos católicos. Se estes últimos lamentarem (coisa
incrível para quem conhece um pouco o que eram os cultos astecas) o que
chamam “destruição das grandes religiões pré-colombianas”, Fonda foi um
pouco mais à frente ao afirmar que aqueles opressores “tinham uma
religião e um sistema social melhores que o imposto pelos cristãos
mediante a violência”.

Um estudioso, também norte-americano, respondeu-lhe em um dos


principais jornais, e lhe recordou à atriz (talvez também aos católicos que
choram pelo “crime cultural” da destruição do sistema religioso asteca)
como era o ritual das contínuas matanças das pirâmides mexicanas.

Eis aqui o que explicou: “Quatro sacerdotes aferravam à vítima e a


jogavam sobre a pedra de sacrifícios. O Grande Sacerdote lhe cravava
então a faca debaixo do mamilo esquerdo, abria-lhe a caixa torácica e
depois pinçava com as mãos até que conseguia lhe arrancar o coração ainda
palpitante para depositá-lo em uma taça e oferecer-lhe aos deuses. Depois,
os corpos eram lançados pelas escadas da pirâmide. Ao pé, esperavam-nos
outros sacerdotes para praticar em cada corpo uma incisão da nuca aos
talões e lhes arrancar a pele em uma só peça. O corpo esfolado era
carregado por um guerreiro que o levava a sua casa e o partia em partes,
que depois oferecia a seus amigos, ou estes eram convidados à casa para
celebrá-lo com a carne da vítima. Uma vez curtidas, as peles serviam de
vestimentas à casta dos sacerdotes.”

Enquanto que os jovens de ambos os sexos eram sacrificados assim a


dezenas de milhares cada ano, pois o princípio estabelecia que a oferenda
de corações humanos aos deuses devia ser ininterrupta, as crianças eram
lançadas ao abismo do Pantilán, as mulheres não virgens eram decapitadas,
os homens adultos esfolados vivos e rematados com flechas. E assim
poderíamos continuar com a lista de delicadezas que dá vontade de desejar
a Jane Fonda (e a certos frades e clericais vários que hoje em dia se
mostram tão virulentos contra os “fanáticos” espanhóis) que passasse por
elas e que depois nos dissesse se é verdade que “o cristianismo foi pior”.

Um pouco menos sanguinários eram os incas, os outros invasores que


tinham escravizado aos índios do sul, ao longo da cordilheira dos Andes.
Como recorda um historiador: “Os incas praticavam sacrifícios humanos
para afastar um perigo, uma carestia, uma epidemia. As vítimas, às vezes
crianças, homens ou virgens, eram estranguladas ou degoladas, em
algumas ocasiões lhes arrancavam o coração à maneira asteca. “

Entre outras coisas, o regime imposto pelos dominadores incas aos


índios foi um claro precursor do “socialismo real” ao estilo marxista.
Obviamente, como todos os sistemas deste tipo, funcionava tão mal que os
oprimidos colaboraram com os poucos espanhóis que chegaram
providencialmente para acabar com ele. Igual à Europa oriental do século
XX, nos Andes do século XVI estava proibida a propriedade privada, não
existiam o dinheiro nem o comércio, a iniciativa individual estava proibida,
a vida privada se via submetida a uma dura regulamentação por parte do
Estado. E, a maneira de toque ideológico “moderno”, adiantando-se não só
ao marxismo mas também também ao nazismo, o matrimônio era permitido
só se se seguiam as leis eugênicas do Estado para evitar “contaminações
raciais” e assegurar uma “cria humana” racional.

A este terrível cenário social, é preciso acrescentar que na América


pré-colombiana ninguém conhecia o uso da roda (a não ser que fora para
usos religiosos), nem do ferro, nem se sabia utilizar o cavalo que, ao
parecer, já existia à chegada dos espanhóis e vivia em algumas zonas em
estado rebelde, mas os índios não sabiam como domá-lo nem tinham
inventado os arreios. A falta de cavalos significava também a ausência de
mulas e asnos, de modo que se a isso se acrescenta a falta da roda, naquelas
zonas montanhosas todo o transporte, inclusive o necessário para a
construção dos enormes palácios e templos dos dominadores, realizavam-
no as hordas de escravos.

Sobre estas bases os juristas espanhóis, dentro do marco da


“igualdade natural de todos os povos”, reconheceram aos europeus o
direito e o dever de ajudar às pessoas que o necessitassem. E não pode
dizer-se que os indígenas pré-colombianos não estivessem necessitados de
ajuda. Não terá que esquecer-se que pela primeira vez na história, os
europeus se enfrentavam a culturas muito distintas e longínquas. A
diferença de quanto fariam os anglo-saxões, que se limitariam a exterminar
a aqueles “estranhos” que encontraram no Novo Mundo, os ibéricos
aceitaram o desafio cultural e religioso com uma seriedade que constitui
uma de suas glórias.

7. Lenda negra 6

Resulta significativo quanto escreve o protestante Pierre Chaunu


sobre a colonização espanhola das Américas e as denúncias como de Las
Casas: “O que deve nos surpreender não são os abusos iniciais, a não ser o
fato de que esses abusos se encontrassem com uma resistência que
provinha de todos os níveis da Igreja, mas também do Estado mesmo de
uma profunda consciência cristã.”

Deste modo, as obras como a brevíssima relação da destruição das


Índias de frei Bartolomeu foram utilizadas sem escrúpulos pela propaganda
protestante e depois, pela iluminista, quando em realidade são- para utilizar
as mesmas palavras que Chaunu “o mais formoso título de glória da
Espanha”. Estas obras constituem o testemunho da sensibilidade para o
problema do encontro com um mundo absolutamente novo e inesperado,
sensibilidade que faltará durante muito tempo no colonialismo protestante
primeiro e “leigo” depois administrado pela brutal burguesia européia do
século XIX, já secularizada.

Vimos como, da Coroa para abaixo, não só não se tomavam medidas


contra uma denúncia como a de Las Casas, mas sim se tratou de pôr
remédio com leis que tutelassem aos índios do que o “denunciante” mesmo
seria proclamado protetor geral. O frade sulcaria o oceano em doze
ocasiões para falar ante o governo da mãe pátria em favor de seus
protegidos; em todas essas ocasiões ia ser honrado e escutado e seus
cahiers de doléances foram ser transladados a comissões que
posteriormente os utilizariam para redigir leis, e a professores que dariam
vida ao moderno “direito das gentes” .
Encontramo-nos ante um fato inédito, que não tem comparação na
história do Ocidente, e resulta muito mais surpreendente se se acrescentar
que de las Casas não só foi tomado a sério, mas também, provavelmente,
foi tomado muito a sério.

Havemos dito já que existe a suspeita-perfilada por quem estudou sua


psicologia- de que este convertido padecia de um “estado de alucinação”,
de uma “exaltação mística”. Em palavras do norte-americano William S.
Maltby, “os exageros de Las Casas o expõem a um justo e indignado
ridículo”. Ou, por citar ao Jean Dumont: “Nenhum estudioso que se aprecie
pode tomar a sério suas denúncias extremas.” Entre os milhares de
historiadores que existem, citaremos ao leigo Celestino Capasso:
“Miserável por sua tese, o dominicano não duvida em inventar-se notícias e
em cifrar em vinte milhões o número de índios exterminados, ou em dar
por fundadas notícias fantásticas como o costume dos conquistadores de
utilizar aos escravos como comida dos cães de combate. . . “

Como diz Luciano Perena, da Universidade da Salamanca: “Las


Casas se perde sempre em vaguedades e imprecisões. Não diz nunca
quando nem onde se consumaram os horrores que denuncia, tampouco se
ocupa de estabelecer se suas denúncias constituem uma exceção. Ao
contrário, contra toda verdade, dá a entender que as atrocidades eram o
único modo habitual da Conquista.” Para ele, personalidade pessimista e
obsessiva, o mundo é em preto e branco. Por uma parte se encontram seus
malvados compatriotas, que são como feras desenfreadas; pela outra estão
os indígenas, vistos textualmente como “gente que não conhece rebeliões
ou tumultos”, que está “de todo desprovida de rancor, ódio e desejo de
vingança”. Neste sentido, encontra-se entre os predecessores do mito do
“bom selvagem”, tão querido pelos iluministas do século XVIII como
Rousseau, que segue vigente no atual e ingênuo tercermundismo segundo o
qual todos os homens são Santos, sempre que não sejam nem europeus nem
norte-americanos, os únicos que nascem marcados por uma culpa
imperdoável.

Assombra em um frade esta negação do pecado original, esta falta de


realismo e de justiça: teríamos, por uma parte, a uns anjos indefesos, e pela
outra, a uns demônios desumanos. Entre outras coisas, Hernán Cortés que
pôs fim ao grande império dos astecas e ao que Las Casas apresenta de
forma pessimista (coisa que, ao parecer, não merecia de tudo), foi quem viu
baixar das pirâmides o rio de sangue humano das vítimas sacrificadas. Uma
empresa como aquela, de conquistadores como aqueles, não se teria podido
realizar jamais com boas maneiras; além disso, os espanhóis consideravam
a dureza como algo sagrado porque daquelas populações “pacíficas”
segundo Las Casas, também formavam parte os astecas- e também os
incas, dos que se ocuparia Francisco Pizarro- com seu costume de arrancar
o coração a dezenas de milhares de jovens.

Como todos os utópicos, Las Casas não superou a prova da realidade;


entre muitos outros privilégios que o governo lhe concedeu o de tratar de
pôr em prática, em territórios adequados postos ao seu dispor, seu projeto
de evangelização apoiado só no “diálogo” e as desculpas. Em todas as
ocasiões, acabou com a extermínio dos missionários ou com sua fuga,
perseguidos pelos “bons selvagens” providos de temíveis flechas
envenenadas. Como sempre que se tenta fazer realidade um sonho,
converte-se em pesadelo.

Por citar a um de seus mais recentes biógrafos, Pedro Borgés,


professor da Complutense de Madri, Bartolomeu se refugiou outra vez na
irrealidade, “pregando sempre não o que se podia, mas o que se devia ter
feito”. O mesmo Borgés impede que pensemos que Las Casas é o precursor
de uma “teologia da libertação” ao estilo marxista; como todo bom
convertido, o que lhe interessava era a salvação eterna. Sua obsessão pelos
índios não era para proteger seus corpos, a não ser para salvar suas almas.
Só se os tratava de forma adequada foram aceitar o batismo sem o qual
teriam ido ao inferno tanto eles como os espanhóis. Encontramo-nos pois
exatamente no lado contrário de quem hoje não vê mais que a dimensão
horizontal e que, portanto, não tem nada que ver com o místico Las Casas.

De todos os modos, tal como reconhece Maltby, “fossem quais


fossem os defeitos de seu governo, na história não houve nenhuma nação
que igualasse a preocupação da Espanha pela salvação das almas de seus
novos súditos”. Até que a corte de Madri não sofreu a contaminação de
maçons e “iluminados”, não reparou em gastos nem em dificuldades para
cumprir com os acordos com o Papa, que tinha concedido os direitos de
patronato em troca do dever de evangelização. Os resultados falam; graças
ao sacrifício e ao martírio de gerações de religiosos mantidos com folga
pela Coroa, nas Américas se criou uma cristandade que é hoje a mais
numerosa da Igreja católica e que, apesar dos limites próprios de todas as
coisas humanas, deu vida a uma fé “mestiça”, encarnada pelo encontro
vital de distintas culturas. O extraordinário barroco do catolicismo latino-
americano é a amostra mais evidente de que, apesar dos enganos e os
horrores, uma das maiores aventuras religiosas e culturais teve uma feliz
evolução. A diferença do ocorrido na América do Norte, na América do
Sul o cristianismo e as culturas pré-colombianas deram vida a um homem e
a uma sociedade realmente novos em relação à situação pré-colombiana.

Apesar de seus exageros, de suas generalizações ilícitas, de suas


invenções e difamações, Las Casas é testemunha importante de um
Ocidente que não esquece as admoestações evangélicas. Foi um abuso
isolá-lo do debate em curso então na península Ibérica, para
instrumentalizá-lo como arma de guerra contra o “papismo”, fingindo
ignorar que contra Espanha se utilizava a voz de um espanhol (membro de
uma ordem nascida na Espanha) escutado e protegido pelo governo e a
Coroa dessa mesma Espanha.

8. Lenda negra 7

“Arma cínica de uma guerra psicológica”, é como define Pierre


Chaunu o uso que as potências protestantes fizeram da obra de Las Casas.
As rédeas da operação antiespanhola as levou sobre tudo Inglaterra, por
motivos políticos mas também religiosos, pois naquela ilha, a separação de
Roma efetuada por Henrique VIII tinha dado lugar a uma Igreja de Estado
bastante poderosa e estruturada para ficar à frente das demais comunidades
reformadas da Europa. A luta inglesa contra Espanha foi vista assim como
a luta do “Evangelho puro” contra “a superstição papista”.

Os Países Baixos e Flandres desempenharam um papel importante


nesta operação de “guerra psicológica”, pois estavam encetados em uma
luta contra os espanhóis. Foi precisamente um flamengo, Theodor De Bry,
quem desenhou os gravados que acompanhariam uma das tantas edições
realizadas em terras protestantes da Muito breve relação: desenhos
truculentos, nos que os ibéricos aparecem entregues a todo tipo de sádicas
crueldades contra os pobres indígenas. Dado que as imagens de Bry (que,
como é lógico supor, trabalhou apoiando-se em sua imaginação) são
virtualmente as únicas antigas da Conquista, e foram reproduzidas
profusamente e continuam aparecendo inclusive hoje em todos os manuais
escolares, não faz falta precisar em que medida contribuíram à formação
da lenda negra.

Para acrescentar um elemento mais aos muitos que já se citaram, é


preciso observar que nunca se reflete sobre o que ocorreu depois do
domínio espanhol. Já se sabe que a Espanha foi invadida por Napoleão e
que, apesar da resistência tenaz e invencível que constituiu o primeiro
sintoma do fim do império francês, teve que abandonar a si mesmos os
extensos territórios americanos.

Ao eclipsar a estrela napoleônica, a Espanha reconquistou seu


governo mas já era muito tarde para restabelecer o statu quo nas terras de
ultramar. Resultaram inúteis os intentos de domar a revolução dos
“crioulos”, quer dizer, da burguesia branca que tinha conseguido radicar-se
naquelas zonas. Esses burgueses acomodados eram os que sempre tinham
mantido tensas relações com a Coroa e o governo da mãe pátria, acusados
de “defender muito” aos indígenas e de impedir sua exploração. A
hostilidade dos crioulos ia dirigida sobretudo contra a Igreja, e em
particular, contra as ordens religiosas não só porque velavam para que se
respeitassem as leis de Madri que tutelavam aos índios mas também porque
(inclusive antes de Las Casas, a primeira denúncia contra os conquistadores
se fez no ano 1511 em uma igreja com teto de palha de Santo Domingo e a
pronunciou o padre Antonio de Montesinos) sempre tinham lutado para
que dita legislação fosse melhorada continuamente. )Esquece-se por acaso
que as expedições armadas para destruir as reduções dos jesuítas tinham
sido organizadas pelos latifundiários espanhóis e portugueses, os mesmos
que exerceram fortes pressões sobre suas respectivas Cortes e governos
para que a Companhia de Jesus fosse eliminada definitivamente?

Devido a esta oposição à Igreja, vista como aliada dos indígenas, a


elite crioula que conduziu a revolução contra a mãe pátria estava
profundamente poluída pelo credo maçônico que deu aos movimentos de
independência um caráter de duro anticlericalismo -por não dizer de
anticristianismo-, que se manteve até nossos dias: Até o martírio dos
católicos no México, por exemplo, ocorrido na primeira metade de nosso
século. Os libertadores, os chefes da insurreição contra Espanha foram
todos altos expoentes das lojas maçônicas; pelo resto, naquelas terras se
formou na ideologia franco-maçônica Giuseppe Garibaldi, destinado a
converter-se em Grande Mestre de todas as maçonarias. Uma análise das
bandeiras e os símbolos estatais da América Latina permite comprovar a
abundância de estrelas de cinco pontas, triângulos, pirâmides, esquadros e
todos os elementos da simbologia dos “irmãos” .

Resulta inegável o fato de que assim que se liberaram das autoridades


espanholas e da Igreja, os crioulos invocaram os princípios de irmandade
universal maçônica e dos “direitos do homem” de jacobina memória para
liberar-se das leis de tutela dos índios. Quase ninguém diz a amarga
verdade: passado o primeiro período da colonização ibérica fatalmente
duro pelo encontro-desencontro de culturas tão distintas, não houve
nenhum outro período tão desastroso para os nativos sul-americanos como
o que se inicia nos começos do século XIX, quando sobe ao poder a
burguesia supostamente “iluminada” .

Ao contrário do que quer fazer acreditar, a lenda negra protestante e


iluminista, a opressão sem limites e o intento de destruição das culturas
indígenas começam quando a Igreja e a Coroa abandonam a cena. Após se
inicia uma obra sistemática de destruição das línguas locais, para as
substituir pelo castelhano, idioma dos novos dominadores que
proclamavam ter assumido o poder “em nome do povo”. Mas era um
“povo” constituído só pela exígua classe dos latifundiários de origem
européia.

A partir de então aparecem as medidas que nunca se implantaram no


período colonial para impedir a mestiçagem, a mescla racial e cultural.
Enquanto a Igreja aprovava e apoiava e alentava os matrimônios mistos, os
governos liberais se opuseram a eles e, com freqüência, proibiram-nos.
Começou-se assim a seguir o exemplo pouco evangélico das colônias
anglo-saxônicas do Norte, onde também, e não por acaso, foi a maçonaria a
que guiou a luta pela independência. Criou-se então uma frente comum
entre as lojas maçônicas da América setentrional e a meridional, primeiro
para vencer à Coroa da Espanha e depois, à Igreja católica. Deste modo
nasceu a dependência-que marcará toda a história e que continua até hoje-
do Sul com respeito ao norte. Resulta curioso ver como os progressistas
que assinalam as culpas da colonização católica espanhola denunciam, ao
mesmo tempo, a dependência dos Estados Unidos da América Latina; é
evidente que não se dão conta de que seu duplo protesto encerra uma
contradição: enquanto puderam, os reis da Espanha e os papas foram os
grandes defensores da identidade religiosa, social e econômica das zonas
“católicas”. O “protetorado” norte-americano ficou determinado pelos
crioulos, “os ricos colonos que quiseram desfazer-se das autoridades
espanholas e religiosas para poder levar a cabo sem impedimentos seus
negócios”. Assim diz Franco Cardini a propósito dos norte-americanos cuja
ajuda, freqüentemente oculta, solicitaram os “irmãos” em luta contra a
Coroa e a Igreja: “Baste recordar os desmandos que acompanharam a
hegemonização da zona panamenha e a guerra de Cuba a finais do século
XIX; baste recordar o constante apoio norte-americano ao governo leigo
mexicano que há décadas mantém uma Constituição que, com seu contexto
mais que anticlerical, anticatólico humilha e ofende os sentimentos da
maioria do povo mexicano, e quando se perfilava a possibilidade de que
algo trocasse, Os EUA apoiou a bandidos como Venustiano Carranza. E
não moveram um só dedo durante a sanguinária perseguição anticatólica
dos anos vinte.” Já se sabe que hoje em dia o governo norte-americano
favorece e financia o proselitismo de seitas protestantes que tem o efeito de
apartar ao povo de suas tradições de quase meio milênio, o qual constitui
uma grave violação da cultura.

Os esforços “racistas” realizados depois da saída da Espanha ficaram


plasmados simbolicamente na arte; enquanto que antes as duas culturas se
entrelaçaram maravilhosamente, dando vida às obras mestras do barroco
mestiço, com a chegada ao poder dos iluministas voltaram a separar-se. A
extraordinária arquitetura das cidades coloniais e das missões foi
substituída pela arquitetura de imitação européia das novas cidades
burguesas, nas que já não havia lugar para os pobres índios.

9. A morte de um inquisidor

O verão propícia as releituras, sobretudo as de textos clássicos. Como


tal se considera A civilização do Ocidente medieval de Jacques Le Goff,
que li quando se publicou em francês e que agora, depois de muitas edições
em várias coleções, Einaudi volta a apresentar em edição de bolso.
Aproveito este dia do verão para dar uma repassada.

Entre os medievalistas leigos, Le Goff é um dos santões mas não é


alheio às gaffes, a mais clamorosa das quais é a do acessoramento histórico
para a adaptação cinematográfica de O Nome da Rosa de Umberto Eco,
quem teve que admitir que “sua” Idade Média, a do livro, era
historicamente mais exata que a refletida em imagens com o conselho
“científico” deste tão homenageado professor francês. Mas Le Goff
também é autor do Nascimento do Purgatório, obra que, apesar de sua
aparência severamente acadêmica, está infestada de um desejo iconoclasta
(embora habilmente mascarado) para a pastoral e, sobretudo, o dogma
católico.

Voltemos para A civilização do Ocidente medieval, onde tampouco


faltam perspectivas sectárias, ou antes, falsidades propriamente ditas. Por
exemplo, nas páginas 102 e 103 da última edição italiana, diz assim: “Os
dominicanos e os franciscanos se convertem para muitos em símbolo de
hipocrisia; os primeiros inspiram ainda mais ódio pela forma em que se
puseram à frente das repressões da heresia, que pelo papel assumido na
Inquisição. Uma revolta popular em Verona acaba cruelmente com o
primeiro mártir dominicano: são Pedro, chamado precisamente, Mártir, e a
propaganda da ordem difunde sua imagem com uma faca cravada no
crânio.”

Em relação aos franciscanos, a afirmação é dificilmente sustentável,


sobretudo se se têm em conta os limites que o mesmo Le Goff pôs a seu
trabalho: o centro mesmo da Idade Média, os séculos que vão do X ao XIII.
Agora bem, Francisco de Assis morreu em 1226 e no que resta do século,
entre o movimento criado por ele e as camadas populares se produz uma
espécie de idílio que durará bastante, e irá além da Idade Média e chegará
em certo modo até nossos dias. Não é casualidade que a publicidade
mesma recorra com freqüência à imagem de um frade franciscano para
algum anúncio quando faz falta inspirar confiança e cativar.Acaso não era
franciscano o padre Pio da Pietrelcina, protagonista do que provavelmente
foi um dos movimentos devocionales “interclassistas” mais amplos,
intensos e duradouros, nos que participaram ricos e pobres, cultos e
ignorantes?

Mas o que na frase de Goff não só é sectário mas também falso é a


alusão a um “ódio” que acompanharia aos dominicanos por haver ficado à
frente das repressões da heresia” e “pelo papel que assumiram na
Inquisição”. Resulta surpreendente além disso, que um medievalista de tão
considerado nível internacional tergiverse literalmente a verdade em
relação a são Pedro de Verona.
Mas vamos por ordem. Em primeiro lugar, a Inquisição não nasce
contra o povo a não ser para responder a uma petição deste. Em uma
sociedade preocupada sobretudo pela salvação eterna, o herege é recebido
pela gente (começando pela gente corrente e analfabeta) como um perigo,
do mesmo modo que em culturas como a nossa, que não pensam mais que
na saúde física, se consideraria perigoso a quem propagasse enfermidades
contagiosas mortais ou envenenasse o ambiente.

Para o homem medieval, o herege é o Grande Contaminador, o


inimigo da salvação da alma, a pessoa que atrai o castigo divino sobre a
comunidade. Portanto, e tal como confirmam todas as fontes, o dominicano
que chega para isolá-lo e neutralizá-lo, não se vê rodeado de “ódio”, mas
sim é recebido com alívio e acompanhado pela solidariedade popular.

Entre as deformações mais vistosas de certa historiografia está a


imagem de um “povo” que geme sob a opressão da Inquisição e espera
com ânsia a ocasião de liberar-se dela. Mas ocorre justamente o contrário;
se às vezes a gente se mostrar intolerante com o tribunal, não é porque seja
opressivo mas justamente o contrário, porque é muito tolerante com
pessoas como os hereges que, se tivermos que atender a vox populi, não
merecem as garantias e a clemência da que os dominicanos fazem gala. O
que em realidade quereria a gente é acabar com o assunto depressa,
desfazer-se sem muitos preâmbulos daquelas pessoas para as que os juízes
de roupa folgada multiplicam as garantias legais.

Antes da propagação protestante do século XVI, entre a proliferação


de movimentos hereges medievais, existe um só que parece afetar a amplas
capas populares de algumas zonas; trata-se dos cátaros albigenses cuja
erradicação exigiu uma “cruzada” especial na Provença. Mas, tal como
recorda o mesmo Le Goff, a liderança albigense não foi assumida pelo
povo, mas sim pela nobreza da França meridional que, mediante a
propaganda ou a coação, contribuiu a que a heresia se estendesse ao povo.
E foi por um motivo bem pouco religioso, conforme confirma o
historiador: “A nobreza ansiava rebelar-se contra a Igreja, porque
aumentavam os casos de impossibilidade de matrimônio por
consangüinidade, provocando a conseguinte subdivisão dos domínios
territoriais da aristocracia.” Em uma palavra, o que queriam era casar-se
em família para não desprender-se de seus bens.

Mas voltemos para um parágrafo tirado da Civilização do Ocidente


medieval: “Uma revolta popular em Verona acaba cruelmente com o
primeiro "mártir" dominicano: são Pedro, ‘chamado precisamente, Mártir,
e a propaganda da ordem difunde sua imagem com uma faca parecida no
crânio”, diz textualmente Le Goff.

Resulta surpreendente; o futuro santo nasce, efetivamente, em


Verona, mas o matam em 6 de abril de 1252 em Brianza, perto de Meda,
exatamente em um lugar boscoso denominado Farga, quando viajava de
Como a Milão em companhia de outro religioso, ao que também
assassinaram. Portanto, Verona não tem nada que ver, porque não foi ali
onde morreu.

Tampouco tem nada a ver uma presunta “revolta popular”. Renomado


inquisidor pelo Papa mesmo, para lutar contra a heresia “patarina” ou
“cátara”, Pedro foi assassinado em uma emboscada que lhe tenderam no
bosque dois desses hereges, longa manus de uma conjuração secreta
tramada contra ele. Os dois assassinos se arrependeram espontaneamente
de sua ação e acabaram entrando na ordem dos dominicanos.

Esta conversão foi determinada, entre outras coisas, pela reação


popular ao homicídio; precisamente o povo que, segundo Le Goff, haveria
se amotinado para acabar cruelmente com o “malvado inquisidor”, coleta-
lhe imediatamente um dos mais extraordinários triunfos de devoção que
recorde a história da santidade. Milão, que ia em massa a escutar seus
sermões, foi à rua ao inteirar-se de que chegava seu corpo e ato seguido se
entrega a um culto de tal alcance que são as mesmas autoridades leigas da
cidade as que enviam uma delegação ao Papa para que seja reconhecida a
santidade de Pedro.

À comissão criada pelo Inocêncio IV para indagar sobre a vox populi


lhe basta muito pouco para tomar uma decisão porque em 9 de março de
1253, quer dizer, apenas onze meses depois de sua morte, Pedro, o
inquisidor, é inscrito no catálogo de mártires e logo no dos Santos. É tal o
reconhecimento dos milaneses que, graças a uma assinatura popular, no
Sant'Eustorgio se constrói um monumento sepulcral que se encontra entre
uma das obras primas do gótico italiano.

Quanto à imagem “com uma faca fincada no crânio”, como diz-lhe


Goff, pode-se dizer que todas as crônicas contemporâneas referem que
Pedro foi assassinado precisamente com um golpe de falcastro, nome que
lhe dão os documentos antigos à arma parecida com uma foice, que lhe
encontram cravada em metade da cabeça. Nada tem que ver pois “a
propaganda”, trata-se simplesmente do respeito a uma realidade histórica.

Vladimir J. Koudelka, historiador dominicano contemporâneo,


escreveu: “Não devemos nos maravilhar se nos historiadores modernos
encontram afirmações falsas sobre este santo.” Não, não nos maravilhamos,
sabemos muito bem que são Pedro mártir está ligado à palavra inquisidor,
que parece justificar todo tipo de imprecisões históricas.”

10. Inquisidores
Em um artigo de fundo de Indro Montanelli lemos: “A do bode
expiatório era a técnica utilizada pela Inquisição nos séculos obscurantistas,
quando ao povo exasperado por alguma peste ou carestia lhe indicava
alguma bruxa ou algum curandeiro, ou presumido culpado de estender a
peste, para que sobre eles desafogasse sua raiva enviando-os à fogueira.”

Montanelli tem muitos méritos, todos estamos em dívida com ele


porque cultiva com lealdade e, freqüentemente, com valentia, a arte do
inconformismo. Mas por desgraça, neste caso ele também cai em um
conformismo de manual “leigo, democrático e progressista”.

Em efeito, todo aquele que conheça a verdadeira história sabe que


ocorria exatamente o contrário; a Inquisição não intervinha para excitar ao
povo a não ser, ao contrário, para defender de suas fúrias irracionais aos
supostos curandeiros ou às supostas bruxas. Em caso de agitações, o
inquisidor se apresentava no lugar seguido pelos membros de seu tribunal
e, com freqüência, por uma equipe de seus guardas armados. O primeiro
que faziam estes últimos era restabelecer a ordem e mandar a suas casas a
chusma sedenta de sangue.

Ato seguido, e tomando-se todo o tempo necessário, praticando todas


as averiguações, aplicando um direito processual de cujo rigor e de cuja
eqüidade deveríamos tomar exemplo, iniciava-se o processo. Na grande
maioria dos casos e tal como provam todas as investigações históricas, dito
processo não terminava com a fogueira mas com a absolvição ou com a
advertência ou imposição de uma penitência religiosa. Quem se arriscava a
acabar mal eram aqueles que, depois das sentenças, voltavam a gritar:
“(Abaixo a bruxa!” ou “(Abaixo o curandeiro!”. E falando de curandeiros,
a lembrança da leitura de Os noivos deveria bastar para que soubéssemos
que a caça foi iniciada e sustentada pelas autoridades laicas, enquanto que a
Igreja desempenhou um papel pelo menos moderado, quando não cético.

Como se vê, neste caso a verdade histórica tampouco conta para nada
quando se trata de difamar o presente ou o passado católicos.

11. Manzoni e a Espanha

Acredito que têm razão quem, desde seu ponto de vista, deseja que
por decreto ministerial se elimine a novela Os noivos dos programas de
estudo.

Remonto a minha pequena experiência de estudante afastado então de


todo tipo de Igrejas e de toda identificação religiosa, aluno de um liceu de
Turim que, há mais de um século, é possivelmente o maior santuário do
laicismo italiano intransigente. Fazia tempo tinha feito outra leitura privada
da História milanesa do século XVII, quando tive que estudá-la, capítulo
por capítulo, durante nove meses, na sala-de-aula vazia do “Massimo
d'Azeglio”. Essas páginas funcionaram inclusive com o adolescente de
quinto curso do bacharelado clássico que se acreditava alheio às
preocupações fideístas. Embora não imediatamente e de forma explícita,
tudo terá que dizê-lo, a não ser com efeito retardado, depositando-se
tenazes no fundo da memória e da consciência para voltar a aparecer um
bom dia, de repente e com uma força inesperada.

Para exorcizar a edição de Os noivos aparecida em sua coleção de


Clássicos, o editor Giulio Einaudi a publicou precedida por uma larga
introdução de Alberto Moravia, que tentou rebaixar de categoria ao grande
livro passando-o da literatura ao ensaio confessional, da poesia à
propaganda devocional, dizendo que nele não podia haver verdadeira arte
porque não era mais que um catecismo mascarado de relato. Com muita
mais dignidade, Francesco de Sanctis havia dito que a humanidade das
páginas do Manzoni não estava coberta pelo céu mas sim pelas abóbadas
sempre mesquinhas, por mais altas e solenes que fossem, de uma catedral.
E Benedetto Croce disse: “É um relato de exortação moral dos pés à
cabeça, medido e guiado com pulso firme para esse único fim; entretanto,
parece espontâneo e natural, por mais que os críticos se empenhem em
analisá-lo e discuti-lo como uma novela de inspiração e de fatura poética,
entrando assim em contradições inextricables e tornando escura uma obra
que por si só é muito clara.”

O mesmo Manzoni havia dito que era clara, ao assinalar que o


estímulo que o tinha impulsionado a escrever era “a esperança de algum
bem”. Em seu caso não lhe aplicava aquilo da “arte pela arte”, a não ser a
arte ao serviço da caridade, a maior de todas as quais é a caridade da
verdade.

Dado que, a meu parecer, minha experiência privada de leitor


coincide com a de tantos outros que estavam “afastados”: só Deus sabe
quantos entre os que descobriram a fé tiveram ocasião de recitar as páginas
de Os noivos, de experimentar os dramas espirituais de Lodovico, que se
converte em padre Cristíforo e do Inominável que, ao final de seu
angustiosa noite, ouve qual longínqua chamada a uma vida nova, o tanger
de uns sinos.

Portanto, é certo, este livro é perigoso, e se compreende por que há


gente que quer tirar-lhe dos estudantes. Com a sabedoria de sua arte
submissa, a cada geração sugere uma possibilidade do Eterno, propõe-lhe
uma ocasião inaudita, faz resplandecer a esperança de uma existência
distinta e mais humana em que encontrar a frescura da manhã.
Parafraseando o décimo capítulo: “É uma das faculdades singulares e
incomunicáveis da religião cristã o poder guiar e consolar a quem quer que,
em qualquer conjuntura, em qualquer termo vai a ela... É um caminho tão
recorrido, que seja qual for o labirinto, o precipício de onde o homem
chegue a ele, uma vez que por ele dá um passo, pode a partir de então
caminhar com segurança e boa vontade, e chegar gratamente a um grato
fim.”

Esta “faculdade singular”, este “caminho tão recorrido” são postos


ante quem lê e fazem do livro um dos instrumentos de evangelização mais
eficazes, de maneira que, deixando de lado injustas desmitificaciones
artísticas, não parece que lhes falte razão aos De Sanctis, aos Croce, aos
Moravia, temerosos de propagandas cristãs.

A propósito de razões ou falta delas, não a teve Manzoni ao oferecer


uma imagem sem luzes da Itália “espanhola”, imagem que condiciona para
sempre o julgamento do leitor.

Já sabemos como as forças mais poderosas e ativas do mundo


moderno se uniram para criar a lenda negra de uma Espanha pátria da
tirania, do fanatismo, da cobiça, da ignorância política, da jactância
arrogante e estéril.

Para os protestantes, sobretudo para os anglicanos, foi questão de vida


ou morte manter com uma guerrilha psicológica a guerra contra o Grande
Projeto dos Habsburgo da Espanha: uma Europa unida por uma cultura
latina e católica. A difamação sistemática da colonização espanhola
acompanhou muitos dos tenazes intentos ingleses por apropriar o império
sul-americano.

Para os iluministas, os libertins do século XVIII e mais tarde, para


todos os “progressistas” e todas as maçonarias dos séculos XIX e XX,
Espanha foi a terra aborrecida do catolicismo como religião de Estado, da
Inquisição, dos monges e os místicos. Para os comunistas, Espanha
significava a derrota dos anos trinta. O judaísmo tampouco esqueceu nunca
não só a antiga expulsão mas também as leis que, até tempos recentes,
impediram que retornassem ao outro lado dos Pirineos.

Fica o fato de que uma campanha tenaz e secular se encarregou de


projetar a luz mais negativa possível sobre este povo que, lá onde chegou,
deixou sempre a seu passo terras católicas. Inclusive na Ásia, onde os
espanhóis conseguiram o que ninguém tinha conseguido antes, fora
católico ou protestante: a conversão ao cristianismo, duradoura e em massa,
de toda uma região, a das Filipinas, com a exceção de Mindanao, que
seguiu sendo muçulmana. São coisas que certa cultura não pode perdoar.
Voltaremos sobre o tema para o final deste livro.
Os leitores ignoram freqüentemente que ao falar da Espanha e dos
espanhóis, Manzoni se deixou levar por um certo iluminismo (do que se
desvinculou de todo só em sua última obra, a implacável e inacabada
arenga contra a Revolução francesa) que o induziu a carregar as tintas em
excesso.

Por exemplo, uns estudos minuciosos e insuspeitáveis demonstraram


que o vigário de fornecimentos por conta do vice-rei espanhol na carestia
de 1629, que na novela aparece como um patife e um covarde, foi em
realidade Ludovico Melzi, um jovem e culto milanês, homem estudioso e
enérgico, que se prodigou ao máximo para assegurar que a cidade tivesse
pão.

Nas cenas de tumultos de São Martino, o capitão de Justiça aparece


descrito com um ar caricato, ou algo pior; em realidade se tratava também
de um milanês, um tal Giambattista Visconti, magistrado temido e
apreciado por seu valor, seu rigor e sua eqüidade e, entre outras coisas, por
escritor e poeta.

Devemos a Fausto Nicolini, o grande historiador, amigo e discípulo


favorito de Croce (e portanto nestes temas, nada suspeito de parcialidade)
uns estudos decisivos sobre Milão, Nápoles e, em geral toda a Itália sob o
domínio espanhol. É preciso analisar o julgamento global de uma época
sobre a qual se abatem nossos preconceitos, dos que é culpado Manzoni.

Assim escreve Nicolini, seguidor de Croce e devoto exclusivamente


da “religião da liberdade”: “Não foi ignorante uma dominação estrangeira
como a espanhola que, apesar das insídias internas e externas de todo tipo,
soube consolidar-se e durar dois séculos. Não foi fraca uma dominação
estrangeira que, ao arrancar de suas províncias itálicas a má erva da
anarquia feudal, conseguiu proteger nossa Península do iminente perigo
turco e, ao mesmo tempo, manter intacta a unidade religiosa sem a qual
essa política lhe teria resultado muito mais difícil em outro momento. Foi
muito menos tirânica do que usualmente se crê uma dominação estrangeira
habitualmente respeitosa das instituições políticas e administrativas locais e
rígida impartidora de justiça. Foi curiosamente exploradora uma
dominação estrangeira a qual, apesar das pessoais gestas rufianescas de
certos vice-reis e governadores, e uma vez feitas as contas, as províncias
italianas lhe custavam mais do que lhe rendiam. Em certo sentido, atrevo-
me a dizer que foi inclusive benéfica esta dominação estrangeira que,
apesar de sua culpa fundamental de ser, precisamente, estrangeira,
conseguiu certa gratidão dos italianos embora não fora mais que por estes
dois motivos: por haver evitado a grande parte da Itália, no momento em
que era incapaz de uma vida autônoma, o mal maior de passar a ser
província francesa, ou diretamente franco-turca, e ao proclamar-se a
independência das Sicílias reconquistadas, por ter dado a toda a Itália o
primeiro e mais forte impulso para liberar-se de qualquer outro
estrangeiro.”

Assim escrevia Nicolini em meados dos anos trinta. Após outros


estudos, evidentemente desconhecidos pela vulgata de muitos livros de
texto, confirmaram-nas. Portanto, parece que fica claro que sem os dois
séculos de presença espanhola que foram do XVI ao XVII, a Sicília teria
se tornado muçulmana e a Sardenha e parte do sul italiano a teriam
seguido. Quanto à Itália do norte, quase sem lugar a dúvidas teria ficado
devastada pelas guerras de religião entre católicos e reformados que se
instalaram em outras partes da Europa. O Piemonte, e inclusive a Ligúria,
teriam sido anexadas ao reino da França.

Surpreende que esse patriota que foi Manzoni, até a risco de ser
excomungado, membro do primeiro Senado da Itália unida, não tenha
compreendido este papel histórico de um grande país, condenado
obstinadamente com a expressão convertida em canônica, o desgoverno
espanhol.

12. Os iberos

Jules Michelet, historiador progressista e anticlerical do século XIX,


profeta da laica “religião da humanidade”, observa que a ordem dos
dominicanos, fundada pelo castelhano Domingo de Guzmán na Idade
Média, foi a principal coluna ao serviço do papado romano. Mais tarde,
com a mudança de era, este papel de tropa fiel passou à ordem dos jesuítas
fundada pelo basco Ignacio de Loyola.

Passou um século desde que Michelet escreveu suas obras,


encontramo-nos na soleira de uma nova época e pareceria que essa função
esteja passando a outra instituição religiosa, a Opus Dei, criada pelo
aragonês José María Escrivá do Balaguer. Portanto, parece ser que da
península Ibérica saem sempre os homens que têm como singular carisma
sua fidelidade a Roma.
Pelo resto, não se trata de um papel iniciado com o cristianismo; os
imperadores romanos procuravam na Espanha aos soldados de absoluta
confiança que formavam sua guarda pessoal, e que eram os únicos pelos
que não temiam ser traídos. A península Ibérica não só foi para Roma a
primeira posse fora da Itália, mas também se integrou com tal profundidade
e espontaneidade à cultura latina que virtualmente fez desaparecer todo
rastro da língua e a religião existentes antes da chegada das legiões. É
muito pouco o que se sabe dos iberos pré-romanos. Entretanto, resulta
interessante notar que alguns dos melhores imperadores e escritores latinos
vinham dali.

Em uma palavra, Espanha parece ter na história um papel (ao que nos
referimos já) oposto ao que desempenhou a Alemanha; nesta última existiu
a tentação constante da revolta contra Roma; na primeira, uma tendência de
mais de dois mil anos de servir a Roma com fidelidade, já fora que em
Roma reinassem césares ou papas.

Acaso não será esta uma das enigmáticas constantes da história,


algumas das quais analisamos já?

13. Mártires na Espanha

O Papa beatificou como mártires pela fé a onze vítimas da guerra civil


espanhola. Não faz muito, correspondeu o turno a outras vinte e seis. A
série de beatificações começou em 22 de março de 1986, com o decreto de
aprovação do martírio de três carmelitas de Guadalajara. Durará muito tudo
isto, dado que os processos em curso são mais de cem, muitos deles de
grupo, e se referem em seu conjunto a 1206 vítimas da perseguição anarco-
socialista-comunista dos anos trinta.

Já se sabe que um dos marcos que distinguem ao mundo é o de dividir


não só aos vivos mas também aos mortos; não todos os mortos, e muito
menos todos os mártires, são iguais; estão os que devem ser venerados e
recordados e os que terá que esquecer.

Por desgraça, esta perspectiva tão mundana, porque está ligada ao


poder político e cultural vigente em cada momento, parecia ter poluído a
uma parte da instituição eclesiástica. Em efeito, houve uns anos nos que
uma espécie de silêncio incômodo (quando não um distanciamento
manifesto por parte de certa publicidade católica) precipitou-se sobre a
terrível matança da que foram vítimas na Espanha da Guerra Civil mais de
6 832 pessoas entre padres, religiosas, monjas e milhares de leigos, que
morreram pelo solo feito de ser crentes. Assim, a partir dos anos sessenta, e
tal como escreve D. Justo Fernández Alonzo, diretor do Centro Espanhol
de Estudos Eclesiásticos, “motivos de oportunidade aconselharam moderar
o curso dos processos de beatificação já iniciados; só a partir de princípios
dos anos oitenta voltaram a ter via livre”.

Fizeram falta o valor e o amor pela verdade de João Paulo II para


reabrir uma página da história que muitos, inclusive certas forças poderosas
da mesma Igreja, tivessem preferido que continuasse fechada para sempre.

Atualmente, o final do comunismo por autodissolução e a conseguinte


relaxação da pressão exercida por uma historiografia marxista tendenciosa
que impunha um temor reverencial deveriam favorecer uma releitura
objetiva do papel da Igreja na Espanha, devastada primeiro pela guerra
civil e subjugada depois pelo autoritarismo franquista. Esse regime,
apressadamente definido como ofascista” e equiparado inclusive com o
nazismo, quando em realidade estava muito longe do paganismo racial que
distingue a este último, e da idolatria ao Estado de hegelismo caseiro, que
aflora no fascismo italiano, esse regime dizíamos, conseguiu manter a
Espanha fora da Segunda Guerra Mundial apesar das pressões de Hitler e
Mussolini, e não se distinguiu por uma atitude belicosa para o exterior. O
final de Francisco Franco e de seu regime não é não comparável ao
sangrento do Ceaucescu na Romênia nem à quebra econômica e social da
Europa comunista. O rei Juan Carlos do Borbón, ao que o socialista e
fanático republicano Sandro Pertini considerava como um dos melhores
chefes de Estado, foi eleito para a sucessão e preparado
conscienciosamente para ocupar o trono pelo velho caudilho. Sucessão que
se produziu sem traumas, em um clima de pacificação e sobre bases
econômicas que permitiram a Espanha situar-se nestes anos entre os países
do mundo de crescimento mais rápido; todas estas coisas estiveram
espetacularmente ausentes nos países do Leste, onde tudo está por
reconstruir tanto no plano da economia como no plano moral, enquanto que
os ânimos se encontram ainda divididos.

Não se trata mais que de umas idéias para uma reflexão futura que
julgue com serenidade uma azeda polêmica que tem quase meio século,
contra uma Igreja que teria favorecido a um presumido “Anticristo”, sobre
o que o historiador inglês contemporâneo Paul Johnson, de estrita
tendência democrata-liberal, escreve: “Franco sempre esteve decidido a
manter-se à margem da guerra, que considerava uma terrível calamidade e,
sobretudo, uma guerra que para ele, católico convencido, representava a
fonte de todos os males do século, ao ser conduzida por Hitler e Stalin. Em
setembro de 1939, declarou a absoluta neutralidade da Espanha e
aconselhou a Mussolini que fizesse o mesmo. Em 23 de outubro de 1940,
quando se reuniu com o Hitler em Hendaya, recebeu-o com frieza, por não
dizer com desprezo. Falaram até as duas da madrugada e não ficaram de
acordo em nada.”

Sejam quais forem as conclusões às que cheguem sobre o franquismo


os historiadores do futuro, sempre está claro que os processos canônicos
bloqueados por Roma e reiniciados agora por um Papa que “não se amolda
ao mundo”, vão além de toda consideração política. O que conduz a incluir
a essas vítimas na lista de mártires, que logo se proporão para a veneração
e a imitação dos crentes, é um motivo exclusivamente religioso; o que se
deve valorar não são umas motivações políticas, mas sim se a matança se
realizou por ódio à fé e se foi aceita pacientemente por amor a Cristo e por
fidelidade a ele, talvez com o explícito perdão dos assassinos.
O que é certo é que na Espanha republicana a matança de católicos (e
só de católicos, porque as Iglesias e pastores protestantes não foram
tocados) não teve por finalidade castigar a homens específicos e seus
supostos culpados. Constituiu um intento de fazer desaparecer à Igreja
mesma. Como escreve o historiador de esquerda Hugh Thomas: “Nunca na
história da Europa e possivelmente na do mundo, viu-se um ódio tão
encarniçado para a religião e seus homens.” E, para citar a outro estudioso
fora de suspeita e, além disso, testemunha direta, como Salvador de
Madariaga (antifranquista convencido, partidário do governo republicano e
exilado depois da derrota): “Ninguém que tenha boa fé e boa informação
pode negar os horrores daquela perseguição: durante anos, bastou
unicamente o fato de ser católico para merecer a pena de morte, infligida
freqüentemente nas formas mais atrozes.”

Houve casos como o do pároco de Navalmoral, submetido ao mesmo


suplício que Jesus, começando pela flagelação e a coroa de espinhos até
chegar à crucificação, no que o martirizado também se comportou como
Cristo, benzendo e perdoando aos milicianos anarquistas e comunistas que
o atormentavam. Houve casos de religiosos aos que encerraram na praça de
touros e lhes cortaram as orelhas como nas corridas. Houve casos de
centenas de padres e freiras aos que queimaram vivos. A uma mulher
“culpada” de ser mãe de dois jesuítas a afogaram fazendo-lhe tragar um
crucifixo. Em um momento dado, no fronte chegou a faltar gasolina,
utilizada com profusão para queimar não só aos homens, mas também as
obras de arte e as antigas bibliotecas da Igreja, um desastre cultural
provocado por um ódio cego para a fé. Mas não era a primeira vez que se
produziam feitos similares; o mesmo ocorreu com o vandalismo francês
jacobino e com o do Ressurgimento italiano.

Os partidos e movimentos republicanos (anarquistas, comunistas, mas


em sua maioria socialistas que se distinguiriam mais tarde na guerra como
ferozes demagogos) que subiram ao poder em 1931 favoreceram
imediatamente o clima de ódio religioso que, em só dez dias da insurreição
de Asturias de 1934, deu como resultado a matança de 12 sacerdotes, 7
seminaristas, 18 religiosos e o incêndio de 58 Iglesias. A partir de julho de
1936, a matança se generalizou: deu-se morte nas formas mais atrozes a
4184 sacerdotes diocesanos (incluindo seminaristas), 2 365 frades, 283
monjas, 11 bispos, um total de 6 832 vítimas “clericais”. Se contam por
dezenas de milhares os leigos assassinados pelo solo fato de levar uma
medalha religiosa com a imagem de um santo. Em certas diocese como a
do Barbastro, em Aragón, em um só ano foi eliminado o 88 % do clero
diocesano.

A casa das salesianas de Madri foi assaltada e incendiada e as


religiosas foram violadas e espancadas depois de ser acusadas de dar
caramelos envenenados às crianças. Os corpos das monjas de clausura
foram exumados e expostos em público como escárnio. chegou-se ao
extremo de recuperar barbáries cartaginesas como a de atar a uma pessoa
viva a um cadáver e deixá-la ao sol, até que ambos se apodrecessem. Nas
praças se fuzilava inclusive às estátuas dos santos e as hóstias consagradas
eram utilizadas de forma obscena.

Entretanto, durante décadas, inclusive um certo setor católico


considerou que na tragédia espanhola quem devia perdoar e esquecê-lo
tudo era a Igreja e não os anarquistas, os socialistas e os comunistas.
Rechaçava-se com um certo desgosto a idéia do martírio desses inocentes,
até o ponto de bloquear os processos.

Entretanto, embora neste mundo a verdade pareça débil, à larga


resulta invencível. E as liturgias de beatificação e canonização como as que
proliferam em São Pedro começam a fazer que surja plenamente.

II. ESPANHA E AMÉRICA: MAIS LENDA NEGRA

14. América: línguas cortadas?

Como exemplo clamoroso e atual do esquecimento (ou manipulação)


da história, como sinal de uma verdade cada vez mais em perigo, pensemos
no que ocorreu à vista de 1992, o ano do Quinto CentenÁrio do
desembarque do Cristóvão Colombo nas Américas Já se têm falado
amplamente disso. Aqui nos limitamos a examinar um aspecto concreto do
acontecimento.

Antecipemos já que o descobrimento, a conquista e a colonização da


América Latina - central e meridional - viram o trono e o altar, o Estado a
Igreja estreitamente unidos. De fato, já desde o princípio (com o Alexandre
VI), a Santa Sede reconheceu aos reis da Espanha e de Portugal os direitos
sobre as novas terras, descobertas e a descobrir, em troca do “Patronato”:
quer dizer, a monarquia reconhecia como uma de suas tarefas principais a
evangelização dos indígenas, e se encarregava da organização e os gastos
da missão. Um sistema que também apresentava seus inconvenientes,
limitando por exemplo, em muitas ocasiões, a liberdade de Roma; mas que
entretanto resultou muito eficaz -pelo menos até o século XVIII, quando
nas Cortes de Madri e Lisboa começaram a exercer influência os
“filósofos” ilustrados, os ministros maçons - porque a monarquia se tomou
muito a sério a tarefa de difusão do Evangelho.

Portanto, as polêmicas que já nasceram sobre este passado implicam


também à Igreja, por seu estreito vínculo com o Estado, na acusação de
“genocídio cultural”. Que, já se sabe, sempre começa pelo “corte da
língua”: ou seja a imposição aos mais fracos do idioma do conquistador.

Mas tal acusação surpreenderá a quem tem conhecimento do que


realmente passou. A propósito disto escreveu coisas importantes o grande
historiador (e filósofo da história) Arnold Toynbee, não católico e portanto
fora de toda suspeita. Este célebre estudioso observava que, atendendo seu
fim sincero e desinteressado de converter aos indígenas ao Evangelho
(objetivo pelo qual milhares deles deram a vida, muitas vezes no martírio),
os missionários em todo o império espanhol (não só nas Américas Central
e do Sul, mas também nas Filipinas), em lugar de pretender e esperar que
os nativos aprendessem o castelhano, começaram a estudar as línguas
indígenas.

E o fizeram com tanto vigor e decisão (é Toynbee quem o recorda)


que deram gramática, sintaxe e transcrição a idiomas que, em muitos casos,
não tinham tido até então nem sequer forma escrita. No vice-reinado mais
importante, o do Peru, em 1596 na Universidade de Lima se criou uma
cadeira de quéchua, a “língua franca” dos Andes, falada pelos incas. Mais
ou menos a partir desta época ninguém podia ser ordenado sacerdote
católico no vice-reinado se não demonstrava que conhecia bem o quéchua,
ao que os religiosos tinham dado forma escrita E o mesmo passou com
outras línguas: o náhuatl, o guarani, o tarasco...

Isto era acorde com o que se praticava não só na América, mas


também no mundo inteiro, lá onde chegava a missão católica: é seu o
mérito indiscutível de ter convertido inumeráveis e escuros dialetos
exóticos em línguas escritas, dotadas de gramática, dicionário e literatura
(ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a missão anglicana, dura
difusora somente do inglês). Último exemplo, o somalí, que era língua só
falada e adquiriu forma escrita (oficial para o novo Estado depois da
descolonização) graças aos franciscanos italianos.

Mas, como dizíamos, são coisas que já deveria saber qualquer que
tenha um pouco de conhecimento da história desses países (embora
pareciam ignorá-lo os polemistas que começaram a gritar à vista de 1992).

Mas nestes anos um professor universitário espanhol, membro da


Real Academia da Língua, Gregorio Salvador, verteu mais luz sobre o
assunto. demonstrou que em 1596 o Conselho de Índias (uma espécie de
ministério espanhol das colônias), frente à atitude respeitosa dos
missionários para as línguas locais, solicitou ao imperador uma ordem para
a castelhanização dos indígenas, ou seja uma política adequada para a
imposição do castelhano. O Conselho de Índias tinha suas razões a nível
administrativo, vistas as dificuldades de governar um território tão extenso
fragmentado em uma série de idiomas sem relação o um com o outro. Mas
o imperador, que era Felipe II, respondeu textualmente: “Não parece
conveniente forçá-los a abandonar sua língua natural: só terá que dispor de
uns professores para os que queriam aprender, voluntariamente, nosso
idioma. O professor Salvador observou que detrás desta resposta imperial
estavam, precisamente, as pressões dos religiosos, contrários à
uniformidade solicitada pelos políticos.

Tanto é assim, precisamente por causa deste freio eclesiástico, a


princípios do século XIX, quando começou o processo de separação da
América espanhola de sua mãe pátria, só três milhões de pessoas em todo o
continente falavam habitualmente o castelhano.

E aqui vem a surpresa do professor Salvador. “Surpresa”,


evidentemente, só para os que não conhecem a política dessa Revolução
francesa que tanta influência exerceu (sobretudo através das seitas
maçônicas) na América Latina: é suficiente observar as bandeiras e os
timbres estatais deste continente, cheios de estrelas de cinco pontas,
triângulos, esquadros e compassos.

Foi, de fato, a Revolução francesa a que estruturou um plano


sistemático de extirpação dos dialetos e línguas locais, considerados
incompatíveis com a unidade estatal e a uniformidade administrativa.
Opunha-se, nisto também, ao Ancien Régime, que era, em troca, o reino das
autonomias também culturais e não impunha uma “cultura de Estado” que
despojasse às pessoas de suas raízes para obrigá-las à perspectiva dos
políticos e intelectuais da capital.

Foram pois os representantes das novas repúblicas - cujos governantes


eram quase todos homens das lojas maçônicas - os que na América Latina,
inspirando-se nos revolucionários franceses, dedicaram-se à luta
sistemática contra as línguas dos índios. Foi desmontado todo o sistema de
amparo dos idiomas pré-colombianos, construído pela Igreja. Os índios que
não falavam castelhano ficaram fora de qualquer relação civil; nas escolas
e no exército se impôs a língua da Península.

A conclusão paradoxal, observa ironicamente Salvador, é esta: o


verdadeiro “imperialismo cultural” foi praticado pela “cultura nova”, que
substituiu a da antiga a Espanha imperial e católica. E portanto, as
acusações atuais de “genocídio cultural” que apontam à Igreja se devem
dirigir aos “ilustrados”.

15. O ouro de Colombo

Mais sobre o ouro; mas não negro: amarelo. Encontrá-lo era o sonho
supremo de Cristóvão Colombo e de seus patrocinadores, Fernando e
Isabel, os “Reis Católicos”. Gente de fé sincera, verdadeiros crentes além
das debilidades humanas - em Jesus, o pobre por antonomásia. Então por
que este afã? Os historiadores não nos dizem isso. Em seu misticismo,
Colombo (para quem se falou inclusive de um processo de beatificação)
não estava motivado absolutamente por razões comerciais, mas religiosas:
não só queria levar o Evangelho a outros povos, mas também também
encontrar nas Índias ocidentais o ouro para financiar uma nova grande
cruzada, que levaria aos espanhóis a cruzar o estreito de Gibraltar,
invadindo o África muçulmana, e de ali avançar para Jerusalém, para
reconquistar o Sepulcro perdido trezentos anos antes.

Até recordou aos reis em seu testamento o compromisso para esta


cruzada, que não se realizou sobretudo pela explosão da Reforma
protestante, que dividiu para sempre a comunidade cristã. É um elemento
mais que poucos conhecem e que deve corroborar as motivações religiosas,
frente às econômicas e políticas (tal como quer a história laicista), da
marcha para o Ocidente da catolicíssima e difamada Espanha.

16. Entre a América do Sul e a Europa do Norte

Na América Latina, dizem-nos, a Igreja católica “está com os pobres”.


Mas os pobres não estão com a Igreja: milhões deles passaram-e seguem
passando, milhares e milhares cada dia-às seitas anticatólicas que vêm dos
Estados Unidos; ou, como no Brasil, aos cultos animistas e sincretistas. No
continente que antes era “o mais católico do mundo”, o protestantismo (em
suas versões “oficiais” ou nas versões enlouquecidas do fundamentalismo
americano) está em caminho de converter-se estatisticamente em maioria,
se se mantiver o ritmo atual de abandono da Igreja romana.

Encontraríamo-nos frente a um desses “resultados catastróficos da


catequese e a pastoral” dos que muitas vezes falou o cardeal Ratzinger. Em
efeito, os que analisaram as causas da “grande fuga” - e que o têm feito no
território enfrentando-se à realidade, mais que a esquemas teóricos -
constataram que a “demanda” religiosa sul-americana se dirige a outra
parte porque a “oferta” católica não a satisfaz. Brevemente: o povo
(mitificado povo) já não está em sintonia com uma Igreja que acentuou
tanto seu compromisso político, social, de justiça e bem-estar terrestres,
que chegou a ofuscar sua dimensão diretamente religiosa.

Enfim, o padre comicial, sindicalista e politizado já não basta para


satisfazer a necessidade de uma esfera sagrada, transcendente e de
esperança eterna: daqui a busca alternativa em seitas que se excedem no
contrário, rechaçando qualquer compromisso com a realidade social, para
anunciar uma salvação que chegará só ao final da história, no momento da
volta gloriosa de Cristo, ou em um paraíso ao que só se pode acessar pela
porta estreita da morte.

Como sempre, pois, os efeitos concretos se revelaram o exato


contrário das previsões de muitos. Transformar o Evangelho em um
manual para a “libertação” sócio-política, certamente gratifica aos teólogos,
mas não convence aos que queriam “libertar-se”, que portanto se dirigem a
outro lado, onde possam encontrar satisfação a sua necessidade de adorar,
rezar e esperar em algo mais duradouro e profundo que as reformas
econômicas de sempre.

Não faz falta tampouco, para conservar aos “pobres”, certo


masoquismo católico atual. Há frades, e inclusive bispos, que encabeçaram
movimentos de protesto contra as celebrações do Quinto Centenário da
Conquista ibérica do 1492: escutando-os, parece que teria sido muito
melhor deixar aos indígenas das Américas com seus sangrentos cultos
idolátricos tradicionais, sem “incomodá-los” com o anúncio do Evangelho.

Estamos assim ante o espetáculo de homens de Igreja empenhados em


difamar quanto possam o que sua própria Igreja fez no passado, sem lhe
conceder atenuantes históricos e nem sequer tentar discernir a verdade da
calúnia, a “lenda negra” dos fatos concretos.

E enquanto os católicos assim se flagelam, os índios passam aos


cultos dos missionários norte-americanos: esses que mais motivos teriam
para auto-acusarse, já que (falamos muito disso), a diferença da
colonização ibérica, que apesar de seus enganos e horrores levou a
compenetração das culturas, a anglo-saxã levou ao genocídio, ao índio
aceitável só uma vez morto.

Mas os pastores protestantes não fazem nenhuma autocrítica:


anunciam (a sua maneira) a Cristo, o perdão, a salvação e a vida eterna; e
isto é o que importa aos descendentes dos índios. Assim na América
Central e do Sul já abandonaram o catolicismo uns quarenta milhões de
pessoas. E muitos mais escolhem cada dia o mesmo caminho.

É um adeus pronunciado já, por outra parte, por muitas pessoas que
vivem em um contexto socioeconômico completamente diferente: na
Holanda, por exemplo.

Testemunho do clima que reina entre os restos e o deserto da que foi


uma das religiões mais exemplares, valentes e fervorosas do mundo, é
também a carta que tenho em cima de meu escritório, que me enviou por
fax um leitor desde Amsterdam. É um professor italiano, empenhado há
meses em um solitário duelo com a KRO, a rádio e televisão “católica”
(onde o adjetivo, precisa o amigo terá que pô-lo, faz tempo, entre aspas).
Os “ex” e as “ex”, que (segundo a pessoa que me tem escrito) compõem a
quase totalidade do plantel da KRO, tinham decidido celebrar o Natal
transmitindo o filme O nome da rosa, adaptação da novela do Umberto
Eco.

Agora bem: tal como me confirmou o mesmo Eco em uma entrevista,


a novela queria ser um ajuste de contas com seu passado católico, uma
maneira de expressar mediante uma sugestiva forma narrativa os “venenos”
(palavras do próprio escritor) da dúvida agnóstica e atéia. Disse-me, entre
outras coisas, como uma confissão aberta: “Este é o germe do livro: por
volta de anos que tinha vontades de matar a um frade...” E acrescentou que
a novela era uma espécie de “manifesto” da “meditada apostasia” do
catolicismo em sua juventude.

Esta intenção anticristã, filtrada-na página escrita-pela habilidade


artística de Eco, converteu-se em mera propaganda anticlerical em sua
transcrição cinematográfica, cujo resultado não convenceu nem ao mesmo
escritor. Marco Tangheroni, bom conhecedor daquela época, professor de
história medieval na Universidade de Pisa, escreveu: “A descrição da Igreja
da época que se faz no filme é completamente falsa. O filme acolhe e leva a
seus extremos a antiga, enganosa visão da Idade Média, criada por ódio
anticatólico entre os séculos XVIII e XIX, para deformar deliberadamente
um período glorioso e luminoso da história da humanidade.”

Este, pois, era o filme que a televisão “católica” holandesa propunha


para “edificar” a seus espectadores no dia de Natal. Frente aos protestos
obstinados e públicos de meu leitor-e de algum sobrevivente mais no
naufrágio de uma Igreja que queria ser mestra de “modernidade” e acabou
na catástrofe atual, entre outras coisas com a metade das crianças sem
batizar-decidiu-se postergar a emissão do 25 ao 29 de dezembro. Mas o
filme se emitirá igualmente pela cadeia “católica”. O professor italiano me
comenta que de todas formas não pensa renunciar a sua batalha.

Não quereríamos desanimá-lo revelando que no grupo de empresas de


rádio e televisão que asseguraram a produção do filme, destacava, como
cabeça de lista, a rede Uno da RAI, o canal democrata-cristão, segundo a
partilha política. E revelando, além disso, que a primeira laurea honoris
causa que Eco recebeu por O nome da rosa, foi concedida pela
Universidade de Lovaina, que, por língua e história, tem estreitos vínculos
com a próxima Holanda. A Universidade de Lovaina, se por acaso alguém
o esqueceu, é uma das universidades “católicas” mais antigas e
prestigiosas. Por duas vezes, neste século, o povo crente desses países se
entregou com sacrifício a sua reconstrução, depois da primeira e a segunda
guerra mundiais. Às vezes, alguém se pergunta se estes padres, professores
e notáveis sabem quem entre os católicos - e com que fim - seguem lhes
assegurando (talvez com a pobre oferenda dos fiéis) pão, status social,
poder...

Outra laurea chegou para nosso professor Eco: a da Universidade


Jesuíta americana. E o Centro Católico Cinematográfico Italiano deu
julgamento positivo ao filme que meu leitor não queria ver nas telas
“católicas” holandesas. Estamos com ele. Mas não deveríamos nos sentir
ridículos dom-quixotes lutando em semelhante batalha?

1 7. Cristeros

Lê-se (e se escuta) todo tipo de coisas sobre o Quinto Centenário do


descobrimento da América.

O aniversário gerou um rio de palavras, no que se mesclam verdades e


lendas, intuições profundas e palavras de ordem superficiais. O que mais
entristece é a atitude de certos religiosos - sobretudo do hemisfério norte,
europeu e americano - que apesar da queda repentina daquele marxismo
que tinham abraçado com entusiasmo de conversos, seguem aplicando suas
falaciosas e desastrosas categorias interpretativas. Até há frades e monjas
que publicamente criticam aos missionários cristãos por ter destruído as
idolatrias pré-colombianas, esses fetichismos ferozes que - é o caso dos
astecas - tinham como base indispensável o sacrifício humano coletivo. Em
sua opinião, possivelmente, teria sido muito melhor que estes povos não
tivessem entrado nunca em contato com essa mania perigosa de seus
irmãos de então de considerar importante o anúncio de Cristo e do
Evangelho.

Mas no conjunto do insosso, falso e não-cristão (embora defendido


por quem se apresenta como “cristão”, e mais que qualquer outro, pois se
chama a si mesmo “defensor dos oprimidos”), destacam algumas
publicações que merecem nossa atenção.

Entre outras, a tradução, publicada por Are, da obra do Alberto


Caturelli, eminente professor da Filosofia na universidade argentina de
Córdoba. O livro - com o título O novo mundo redescoberto - é uma
extraordinária mescla de metafísica, história e teologia: o resultado é uma
esclarecedora reflexão, porque analisa o que aconteceu às Américas em
linha com uma “teologia da história”, da qual carecem os crentes há muito
tempo com o resultado de fazê-los insignificantes.

É um destino frente ao qual Jean Dumont também tenta reagir, com


seu pequeno, denso e nervoso livro, provocativamente “católico” já do
título: O Evangelho nas Américas. Da barbárie à civilização. A tradução
italiana é das Edições Edieffe, a mesma editorial que publicou a atrevida
tradução do panfleto sobre a Revolução Francesa do mesmo Dumont (de
que falaremos mais adiante), e o implacável Le génocide franco-français
de Reynald Secher.

É Jean Dumont quem recorda o caso do México, muitas vezes


esquecido, aos “novos” católicos em veia masoquista, a esses crentes que
julgam a epopéia do anúncio da fé em terras americanas só como uma
guerra de massacre e conquista, disfarçada de pseudoevangelização.

Trata-se de acontecimentos recentes, de faz uns decênios, que


entretanto parecem enterrados sob uma cortina de esquecimento e silêncio.
Aqui estão padres e frades nos contando por enésima vez as atrocidades,
certas ou supostas, dos conquistadores do século XVI, e discretamente, ao
mesmo tempo, de maneira obstinada, o dos cristeros do século XX. Um
silêncio não casual, porque precisamente os cristeros, com sua multidão de
mártires indígenas, desmontam o esquema que dá por forçada e superficial
a evangelização da América Latina.

Tratemos, pois, de refrescar um pouco a memória. Como já


recordamos em capítulos dedicados à “lenda negra” antiespanhola, a
princípios do Século XIX a burguesia crioula, quer dizer de origem
européia, lutou para liberar-se da Coroa espanhola e da Igreja, e ter assim
as mãos livres para explorar os índios, já sem o estorvo dos governadores
de Madri e os religiosos. É um “movimento de libertação” (mas só para os
brancos privilegiados) reunido ao redor das lojas maçônicas locais,
sustentadas pelos “irmãos franco-maçons” da América anglo-saxônica do
Norte, que precisamente a partir de agora começa seu desumano processo
de colonização do Sul “latino”.

As novas castas no poder nas antigas províncias espanholas levam a


cabo uma legislação anticatólica, enfrentando-se com a resistência popular
constituída em sua maioria por aqueles índios ou mestiços que-segundo o
esquema atual-teriam sido batizados à força e desejariam voltar para seus
cultos sangrentos. No México as leis “jacobinas” e a primeira insurreição
“católica” são do período entre princípios de nosso século. O jacobinismo
liberal se faz aliado do socialismo e o marxismo locais, de maneira que
“entre 1914 e 1915 os bispos foram detidos ou expulsos, todos os
sacerdotes encarcerados, as monjas expulsas de seus conventos, o culto
religioso proibido, as escolas religiosas fechadas, as propriedades
eclesiásticas confiscadas. A Constituição de 1917 legalizou o ataque à
Igreja e o radicalizou de maneira intolerável” (Félix Zubillaga).

Cabe assinalar que aquela Constituição (ainda em vigor, ao menos


formalmente: em suas viagens ao México as autoridades chamaram João
Paulo II sempre e só senhor Woityla) não foi submetida à aprovação do
povo. Que não somente não a teria aprovado mas que em seguida deu a
conhecer sua posição: primeiro mediante a resistência passiva e logo com
as armas, em nome da doutrina católica tradicional segundo a qual é lícito
resistir com a força a uma tirania insuportável.

Começava assim a epopéia dos cristeros, assim chamados,


despectivamente, porque diante do pelotão de fuzilamento morriam
gritando: (Viva Cristo Rei! Viva Cristo e Nossa Senhora de Guadalupe! Os
insurretos, que (igual a seus irmãos de La Vendée) militavam sob as
bandeiras com o Sagrado Coração, chegaram a desdobrar 200000 homens
armados, apoiados pelas Brigadas Bonitas, as brigadas femininas para a
sanidade, a subsistência e as comunicações.

A guerra eclodiu entre 1926 e 1929. E se ao final o governo se viu


obrigado a aceitar um compromisso (e os bandoleiros católicos, não
obstante os êxitos, tiveram que obedecer, contra sua vontade, à ordem da
Santa Sé e depor as armas), foi porque a resistência à descristianização
tinha penetrado até o fundo em todas as classes sociais: estudantes e
operários, amas de casa e camponeses. Melhor dizendo, em palavras de um
historiador imparcial, “não houve nem um só camponês que, direta ou
indiretamente, não desse apoio aos cristeros”.

Ao contrário das revoluções marxistas, que em nenhuma parte do


mundo e nunca nem sequer na América Latina puderam realmente chegar
ao povo (isto foi evidente, por exemplo, na Nicarágua, quando se deu voz
ao povo), a Cristiada mexicana foi um movimento popular, profundo e
autêntico. Centenas de homens e mulheres de todas as classes sociais se
deixaram massacrar para não ter que renunciar a Cristo Rei e à devoção
pela gloriosa Virgem de Guadalupe, mãe de toda a América Latina. Morreu
fuzilado, entre outros, o padre Miguel Agustín Pró, ao que o Papa
beatificou em 1988.

A resistência mais heróica se deu precisamente entre os índios do


México central, que tinha sido berço dos astecas e de seus cultos negros;
enquanto que a casta dos “sem Deus”, no governo, vinha das regiões do
norte, escassamente cristianizadas por causa da supressão, no século XVIII,
das missões jesuítas.

A luta dos cristeros em defesa da fé foi uma das mais heróicas da


história, e chegou, embora em formas não tão cruentas, até nossos dias.
Apesar da Constituição “atéia” vigente no México desde 1917,
possivelmente em nenhum outro lugar João Paulo II teve uma acolhida de
massas mais sincera e festiva. E nenhum santuário do mundo é tão visitado
como o do Guadalupe.

Como explicam esta fidelidade os que nos querem convencer de que


houve uma evangelização forçada que se impôs a fé usando o crucifixo
como um garrote?

III. A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA

18. Direitos do homem l

Olhando a televisão francesa (vê-se bem em Milão), vou topar com o


mesmo debate de sempre sobre os “direitos humanos”.

Participa também um sacerdote, um teólogo. Em realidade,


escutando-o, parece um desses intelectuais transalpinos mais preocupados
com sua imagem de pessoas inteligentes e ao dia, que solidários (ou pelo
menos coerentes) com sua Igreja. Um desses que correm o risco de fazer da
“ciência de Deus” - a que Tomás do Aquino praticava colocando, para
inspirar-se, sua grande cabeça em um tabernáculo- uma ideologia a plasmar
segundo os gostos da época, como se tivesse acima de tudo um fim: obter a
aprovação (“Bravo! Muito Bem!”) daquele Constantino de hoje que é o
tirano mediático, sem a qual negam lugar nas mesas redondas.

O guia é o de sempre: o clérigo exibindo-se em desculpas contritas


por uma Igreja tão grosseira e míope que não celebrou desde o primeiro
momento e sem reservas os “imortais princípios” proclamados pela
Revolução francesa em 1789 e logo confirmados na “Declaração universal”
aprovada pelas Nações Unidas em 1948. Igual a um pobre arrependido, o
reverendo jura que isto não acontecerá mais: agora os católicos são
“adultos” e compreenderam quão equivocados estavam eles e quanta razão
tinham outros. “Os democratas” podem estar tranqüilos: a seu lado terão
padres como este, conscientes de que o Evangelho não é mais que “a
primeira, a mais solene declaração de direitos humanos”. Diz exatamente
isso.

Vivi um tempo suficiente para não me deixar impressionar muito.


Tinha eu a idade da razão, já desde fazia muito tempo, quando o marxismo
parecia triunfador e se acreditava que o nascimento do homem novo e da
história nova teria que fixá-los deferentemente em 1917, em São
Petersburgo. Naqueles tempos não se organizavam mesas redondas sobre a
“liberdade” burguesa nascida da Revolução francesa (ou, se se preferir, da
americana), a não ser sobre a “justiça” proletária. Lembro muito bem a
teólogos como o desta noite -e os intelectuais junto a ele- ironizando sobre
os “direitos puramente formais”, a “liberdade ilusória”, aquele “vender
ilusões em benefício da classe burguesa” que foi, em palavras do Marx, a
Declaração de 1789. (Quantos católicos “modernos” teorizavam, ante a
complacência dos meios de comunicação, que a Igreja trairia a humanidade
e o encontro decisivo com a história se não se transformava em uma
espécie de “Seção católica da Internacional comunista”! Cada paróquia,
cada diocese tinha que converter-se em um soviete!

Mas o vento muda, e os intelectuais com ele, inclusive os


eclesiásticos. Eis aqui então os mesmos nomes, as mesmas caras, com os
mesmos tons peremptórios, reclamando uma reorganização da Igreja como
“ Seção católica da Internacional liberal-maçônica”. De fato (documentos
na mão), antes de ser proclamada pela Assembléia Naclonal francesa, a
“Declaração dos direitos do homem” foi elaborada nas lojas maçônicas e
nas “sociedades do pensar”, onde-entre aventais, paletas e triângulos-
reunia-se a burguesia européia “ilustrada”.

Enquanto que até muito recentemente se considerava a Bíblia inteira


como o manifesto da justiça social e o “manual do proletário” (até houve
estudiosos especializados em “novas leituras do Evangelho do enfoque do
materialismo dialético”), agora essa mesma Bíblia não seria outra coisa que
o manual do liberal o motivo de inspiração para os que acreditam em uma
sociedade democrática de tipo norte-europeo.

O modelo ao que a Igreja deveria adequarse, já não é o soviete, mas o


Parlamento eleito por sufrágio universal. Antes, segundo a opinião de
alguns eclesiásticos, toda a obra de Marx-Engels tinha que ser a base de
uma nova religião universal ao serviço da justiça. Agora-em opinião de
seus seguidores - a nova religião capaz de unir aos homens é unicamente a
dos direitos humanos, do lema liberté, égalité, fraternité. Portanto, profetas
do Verbo já não são os bolcheviques, mas esses jacobinos e girondinos
para quem o marxismo dirigiu, durante mais de um século, duras injúrias,
tratando-os como às moscas no carro da burguesia.

Vantagens da idade: como já conheci as intransigências “proletárias”,


não me deixo comover pelos atuais entusiasmos “liberais”. Ouvi-os
quando arremetiam contra os iniciadores-franceses ou americanos-da
“democracia formal” do 1700. Como poderia me impressionar seu amor
atual pelos réprobos de ontem, seu renegar de 1917 para “voltar a
descobrir” o 1789?

Não sou (desgraçadamente) cartuxo, mas aqui, em meu escritório,


tenho o emblema daquela ordem gloriosa, que em mil anos nunca quis
revisar suas regras (Cartusa numquam reformata, quia numquam
deformata, por dizê-lo a sua maneira, humildemente orgulhosa: a Cartuxa
nunca reformada, já que nunca foi deformada). Debaixo do emblema, o
famoso lema: Stat crux, dum volvitur orbis, a cruz permanece firme,
enquanto o mundo dá voltas. Não todos, certamente, estão chamados a esta
aprazível imperturbabilidade, vocação de uma elite que recebeu “a boa
parte, que não lhe será tirada” (Lc. 10, 42). Mas incumbe sobre todos os
cristãos o dever de ser conscientes de que “o mundo dá voltas”, que a
indulgente ironia de quem sabe que os tempos mudam enquanto o
Evangelho permanece igual deve combinar-se-em difícil síntese-com a
atenção pela atualidade.

E como hoje formam parte da atualidade aqueles “direitos do homem”


que os maçons do século XVIII e os funcionários da ONU do século XX
quiseram proclamar, terá que interrogar-se sobre o tema. Por que a Igreja
desconfiou deles durante tanto tempo? Por que a primeira encíclica que
parece aceitá-los-a Pacem in terris de 1963-preocupa-se de advertir: “Em
algum ponto estes direitos provocaram objeções e foram objeto de reservas
Justificadas ” ?

Tentaremos esboçar uma resposta nos parágrafos que seguem.

19. Direitos de hombre 2

Vamos tratar então de esclarecer o tema, tão inflado há algum tempo,


dos “direitos do homem”, tal como se entendem na Declaração de 1789 e
na das Nações Unidas de 1948.

Em seu significado atual, a palavra “direito” que não existe no latim


clássico (o jus é outra coisa) é bastante recente. Alguns afirmam que sua
origem não se remonta além dos séculos XVI-XVII.

A perspectiva anterior, apoiada em uma visão religiosa, preferia falar


de “deveres”. Em efeito, toda a tradição judeo-cristã também se apóia em
uma “Declaração”, mas que concerne aos deveres do homem”: é o
Decálogo, a lei que Deus entregou a Moisés.

O mesmo Jesus não fala de “direitos”: ao contrário, protagonista


positivo de suas parábolas é o servidor, que obedece fielmente a seu amo
sem discussões. E um de seus maiores elogios o recebe o centurião de
Cafarnaum, que expõe uma visão da vida e do mundo apoiada totalmente
na obediência - portanto, nos “deveres”-e não nas reivindicações-os
“direitos”-: “Porque também eu, que sou um subordinado, tenho soldados a
minhas ordens, e digo a este: "Vai, e ele vai; a aquele: "Vem", e vem; e a
meu criado: "Faz isto", e o faz.” “Jesus se admirou ao ouvi-lo...” (Mt. 8, 9-
10).

Inútil recordar as palavras de Paulo aos Romanos: “Todos têm que


submeter-se às potestades superiores; porque não há potestade que não
esteja sob Deus, e estão as que foram ordenadas por Deus. Assim o que
resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem se fazem
réus de julgamento” (Rom.13,1-2). Segundo Paulo, de maneira coerente
com toda a estrutura bíblica, a mulher tem obrigações com o homem, o
escravo com seu amo, o crente com os responsáveis pela Igreja, os jovens
com os anciões; e todos as têm um com o outro e com Deus.

“Eu, por minha parte, não me aproveitei de nada disso; nem escrevo
isto para que se faça assim comigo; porque melhor me fora morrer antes
que ninguém me prive desta minha glória.” Isto diz o apóstolo na Primeira
Carta aos Coríntios (1 Cor. 9, 15): portanto, se alguém puder legitimamente
reconhecer-se a si mesmo algum “direito”, renunciar a este será uma
“glória”. Em 1910, voltando a afirmar a doutrina católica, S.Pio X escrevia
em uma carta aos bispos da França: “ preguem arduamente suas obrigações
tanto aos potentes como aos fracos. A questão social estará mais perto de
sua solução quando uns e outros, menos exigentes em seus direitos
respectivos, cumpram seus deveres com maior precisão. “

Nesta mesma perspectiva, como cristão, encontrava-se Aleksandr


Soljenitsin quando-no discurso que pronunciou em Harvard em 1978, que
converteria em desconfiança a simpatia que até então lhe tinha outorgado a
inteligência ocidental - pedia a todo mundo que “renunciasse ao que nos
corresponde de direito”, e aconselhava “a autolimitação livremente aceita”.
E seguia assim: “chegou o momento, para o Ocidente, de afirmar os
deveres dos povos mais que seus direitos.” E até mais: “Não vejo nenhuma
salvação para a humanidade fora da autorrestrição dos direitos de cada
indivíduo e de cada povo.” Fonte de toda a tradição cristã, Soljenitsin pedia
a “um mundo que só pensa em seus direitos” que “voltasse a descobrir o
espírito de sacrifício e a honra de servir”.

Em efeito, todos os autores espirituais nos dizem que o non serviam!,


(não servirei! (e portanto “não reconheço obrigações, só reivindico meus
direitos”) é o grito de rebelião de Satanás contra Deus.

Tão profunda era a consciência disso entre os crentes, que o abbé


Grégoiré, que entretanto foi fiel à Revolução desde o começo e votou a
“Declaração dos direitos” na Assembléia Nacional pediu - mas em balde-
que se elaborasse uma “declaração de deveres” paralela. De espírito
religioso, inclusive em sua luta contra a Igreja, o mesmo Giuseppe Mazzini
titulou assim seu “catecismo”: Os deveres do homem. Para ele tampouco
podia existir liberdade, nem organização social firme e duradoura, sem
passar antes pelo cumprimento do dever, de que derivavam (mas em um
segundo momento) os direitos.

Por outra parte, para dar complemento à doutrina cristã, não terá que
esquecer (ao contrário, sse terá que ter sempre presente) que os deveres do
homem têm um enfoque preciso: e é que ao homem - a cada homem,
qualquer que seja seu sexo, raça e condição social-lhe reconhece um direito
fundamental. É o direito a reconhecer-se filho de Deus, criado e salvo por
ele, por amor gratuito; o direito inaudito de chamar Deus não só “pai”, mas
também inclusive “papaizinho”, abba. Isto muda tudo, radicalmente. Tal
como se observou: “trata-se de direitos do homem que se terá que respeitar,
porque todos os homens são filhos de Deus, meus irmãos, antes que
direitos do homem por reivindicar.”

Ou, tal como dirá um grande estudioso do pensamento católico da


tradição medieval, Étienne Gilson: “Aos cristãos importam os direitos do
homem muito mais que aos incrédulos, porque para estes só têm
fundamento no homem, quem os esquece, enquanto que para os cristãos
têm fundamento nos direitos de Deus, quem não nos permite esquecê-los.”

Quanto havemos dito até aqui (e muitíssimo mais se poderia


acrescentar) ajuda a entender a atitude da Igreja ante a “Declaração” de
1789. Quando, por exemplo, condena-se com facilidade o que seria uma
atitude “míope” e “fechada” do Magistério frente à irrupção de novas
formas de organização humana, obra-se uma censura, quer esquecer-se o
que, na Bíblia, soa hoje a escândalo: recordávamo-lo citando as palavras de
Paulo sobre a autoridade.

Se, em palavras de Clemenceau, “a Revolução francesa é um bloco


unitário: toma ou se deixa”, a Bíblia também é um “bloco unitário” e terá
que ter em conta todas suas palavras. Ante o giro revolucionário de finais
do século XVIII, terá que enfrentar-se a uma perspectiva que, pela primeira
vez na história não só do cristianismo, mas também de toda a humanidade-
sendo as demais religiões concordes, neste aspecto, com a perspectiva
cristã-afirmava que a origem e a legitimidade do poder não derivava de
Deus mas sim do povo e de sua vontade, expressa por maioria em eleições.
Terei que aceitar que a radical igualdade de natureza entre os homens (que
é um dos aspectos fundamentais da Boa Nova) levava consigo a igualdade
prática dos direitos sociais: o que não era plausível em uma perspectiva
essencialmente “hierárquica” (ou, melhor, “orgânica”) como a cristã.
Paulo, enquanto anunciava a grande mensagem segundo o qual já não há
“nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”,
também ensinava-sendo a sociedade dos filhos do Pai um só corpo no que
cada membro tem sua função-que há membros subordinados a outros; e
todos estão subordinados a Cristo.

O problema era (possivelmente é) muito mais complexo do que


querem acreditar hoje alguns católicos. A Igreja não é proprietária, a não
ser guardiã e servidora de uma mensagem com a que deve confrontar-se
continuamente, para adequar-se a ela. E essa mensagem lhes parecia, a
esses nossos irmãos na fé, em contradição com o que o “mundo” (pelo
menos, o de uns intelectuais) começava a afirmar.

Mas também havia outras objeções que atuavam, e que possivelmente


seguem atuando, embora muitos não parecem ser muito conscientes disso.
É um tema ao que voltaremos em outro apartado.

20. Direitos de hombre 3

Aos problemas gerais (dos que falamos) expostos pela “Declaração


dos direitos do homem” de 1789 e a de 1948, outros se acrescentavam - e
se acrescentam - quando se examinam concretamente os textos.

O texto de 1789 diz: “A Assembléia Nacional reconhece e declara,


em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do
homem e do cidadão. Artigo 1: Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos.”

Esse “Ser Supremo” (o Deus sem cara e inacessível no Céu do deísmo


dos ilustrados, o “Grande Relojoeiro” de Voltaire, o “Grande Arquiteto do
Universo” dos maçons) é a única referência “religiosa”. Mas é uma
reverência puramente ritual a Algo (mais que a Alguém) que está sobre as
nuvens, que não tem nada que ver com o que os homens estabelecem
autonomamente, apoiando-se só naquele livre “pacto social” que, para o
Rousseau, é a única base da convivência humana.

Outra coisa é o Bill of Rights, aquela “Patente de direitos” proclamada


doze anos antes, em 1776, pelos constituintes americanos. A Constituição
dos Estados Unidos declara: “Todos os homens foram criados iguais e têm
uns direitos inalienáveis que o Criador lhes outorga...”. Pese à origem
estritamente maçônica dos Estados Unidos (todos os pais fundadores, como
Franklin ou Washington, estiveram abertamente filiados às lojas
maçônicas, e a grande maioria de seus presidentes esteve e está), o
documento americano não estabelece o fundamento dos direitos do homem
na vontade deste, mas no projeto de um Deus Criador. Não é casualidade
que nem a proclamação de independência americana nem sua Constituição
provocaram reações nos ambientes católicos. E sempre foi reconhecida a
lealdade patriótica dos católicos da Federação.

A diferente atitude de Roma ante a “Declaração” francesa obedeceu a


que, enquanto para os americanos é o Criador quem faz aos homens iguais
e livres, para os franceses os homens nascem livres e iguais porque assim o
estabelece a Razão, por que eles o querem e o proclamam. Irmãos: mas
sem pai. O paradoxo é ainda mais evidente na “Declaração” da ONU: aqui,
para conseguir o maior consenso (mas ainda assim os países muçulmanos
não quiseram aderir-se: mulheres e escravos, para o Corão, não são e não
podem ser “iguais” a quem é homem e livre) eliminou-se qualquer
referência a esse inóquo “Ser Supremo”. Diz o texto das Nações Unidas em
seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais por
dignidade e direitos.” Eles estão dotados de razão e consciência e devem
atuar uns para os outros com espírito de fraternidade .”

Aqui também nos encontramos ante o “dever” de uma fraternidade


sem paternidade comum. Não se diz portanto, onde estriba este “dever”,
por que terá que respeitá-lo, nem quer dizer. É o drama de toda moral
“laica”: um “por que escolher o bem em lugar do mal?” que fica sem
nenhuma resposta razoável.

Em efeito, a “Declaração” das Nações Unidas é possivelmente o


documento internacional mais violado e ludibriado de toda a história,
inclusive por parte de governos que, enquanto pisam em todos os direitos
do homem, que solenemente votaram e aceitaram se sentam e pontificam
naquela mesma Assembléia de Nova Iorque. É suficiente dar uma olhada
ao relatório anual da Anistia Internacional: leitura aterradora que nos
ensina a eficácia dos “compromissos morais” e das declarações de
liberdade igualdade e fraternidade que só se apóiam na “razão” e não
derivam de Alguém cuja lei transcenda ao homem.

Que este resultado fora inevitável já o tinha previsto a Igreja,


confirmando de fato uma desconfiança secular. antes de ser proclamada a
“Declaração” da ONU, o Osservatore Romano (15 de outubro de 1948)
publicava um comunicado oficial, hoje completamente esquecido, escrito,
segundo uma atribuição nunca desmentida, por Pio XII. Observava-se nele,
entre outras coisas: “Não é portanto Deus, mas o homem, quem anuncia
aos homens que são livres e iguais, dotados de consciência e inteligência, e
que devem considerar-se irmãos. São os mesmos homens que se investem
de prerrogativas das que também poderão arbitrariamente despojar-se.”
Uma crítica na linha da tradição. Já recordamos como a formulava Étienne
Gilson em 1934.

Confirmando a negativa de levar a sério uma “Declaração” cujo efeito


principal parecia o aumento da hipocrisia, mais que da fraternidade entre os
homens, o Papa Pacelli nunca mencionou o documento da ONU nos dez
anos que restavam. E quando João XXIII, em 1963, publicou a Pacem in
terris, citou aquele texto, mas (o recordávamos) preocupando-se de advertir
que “em algum ponto esta Declaração provocou objeções e foi objeto de
reservas justificadas”. Interrogado a propósito disto, o Papa Roncalli disse
que de todas as “reservas” e “objeções” a principal era precisamente “a
falta de fundamento ontológico”: ou seja, os direitos humanos apoiados
exclusivamente no terreno brando e falacioso da boa vontade do homem.

Olhando o presente, já se sabe com quanta energia e paixão João


Paulo II proclama esses “direitos” no mundo, mas sua adesão-confirmada
abertamente em ocasião de 40 anos da ONU - não está falta de críticas.
Só dois exemplos. O primeiro, a carta de 10 de dezembro de 1980 aos
bispos do Brasil: “Os direitos do homem só têm vigor lá onde sejam
respeitados os direitos imprescritíveis de Deus. O compromisso para
aqueles é ilusório, ineficaz e pouco duradouro se se realizar à margem ou
no esquecimento destes. “

Outro exemplo: o discurso em Munique, em 3 de maio de 1987:


“Hoje em dia se fala muito sobre direitos do homem. Mas não se fala dos
direitos de Deus.” E seguia: “Os dois direitos estão estreitamente
vinculados. Lá onde não se respeite a Deus e sua lei, o homem tampouco
pode fazer que se respeitem seus direitos. Terá que dar a Deus o que é de
Deus. Assim só será dado ao homem o que é do homem.” Como falava em
ocasião da beatificação de um jesuíta vítima do nazismo, João Paulo II
continuava: “Nós já comprovamos claramente, também na conduta dos
dirigentes do nacional-socialismo que sem Deus não existem sólidos
direitos para o homem. Eles desprezaram a Deus e perseguiram a seus
servidores; é assim trataram inhumanamente aos homens. “

A propósito do nazismo, terá que dizer (sem tirar nada ao horror


hitleriano) que em seu caso, os mesmos Estados que quiseram a
“Declaração” de 1948 e que hoje celebram o segundo centenário da de
1789 passaram por cima o artigo 11 da primeira lei e do artigo 8 da
segunda. Diz o texto da ONU “Ninguém será condenado por ações ou
omissões que, no momento que se cometeram, não constituíam ato delitivo
segundo o direito nacional e internacional.” E o texto da Revolução:
“Ninguém pode ser condenado se não é em virtude de uma lei estabelecida
e promulgada com antecedência ao delito. “ Eminentes Juristas de todo o
mundo, com garantias de objetividade, assinalaram que, à luz da proibição
absoluta de uma lei retroativa, os processos contra os líderes alemães
(começando pelo processo do Nuremberg) e do Japão derrotado violam
aquelas “Declarações”. Em efeito, uma vez terminada a guerra - e
expressamente, para estes processos - definiram-se as figuras
(desconhecidas até então) do “crime contra a humanidade” e do “crime
contra a paz”, por cuja violação-cometida quando as figuras jurídicas ainda
não existiam- aqueles líderes foram condenados à pena capital ou a cadeia
perpétua. Que fique claro: do ponto de vista moral, estes tipos mereciam
semelhante fim. Mas a nível jurídico é outro assunto (sem esquecer que,
uma vez mais passando por cima do direito, os juízes - representantes dos
vencedores - eram parte em causa e não magistrados imparciais).

É um exemplo mais de que João Paulo II, como seus predecessores,


recorda: apoiado exclusivamente no homem, todo “direito do homem” está
em poder do homem, sofre impunemente violações e exceções e pode ser
manipulado segundo a conveniência política.

21. Direitos do homem 4


Temos a cabeça, diz Pascal, para que “procuremos as razões dos
efeitos”. Sem ficar, portanto, no que acontece, mas nos interrogando a
respeito das causas, freqüentemente não tão evidentes. Um dever de
lucidez-acrescenta esse grande-que incumbe especialmente aos cristãos, a
quem em efeito lhes disse: “Vós sois o sal da terra...Vós sois a luz do
mundo” (Mt. 5, 13-14).

Agora bem, deveria estar claro que as “razões” de muitos “efeitos”


que ocorrem fora e dentro da Igreja estão em poucas, mas decisivas,
palavras. A “Declaração dos direitos do homem” de 1789 proclama no
artigo 3: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação.
Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer uma autoridade que não
derive expressamente dela.” E, no artigo 6: “A lei é a expressão da vontade
geral. ”

A “Declaração universal de direitos humanos” das Nações Unidas, em


1948, confirma e faz explícito no artigo 21: “A vontade do povo é o
fundamento da autoridade dos poderes públicos. Esta vontade tem sua
expressão em eleições honestas que devem realizar-se periodicamente, com
sufrágio universal igual e voto secreto.”

Conforme vimos já em três “capítulos”, estas duas “Declarações”


representam quase a Bíblia de uma nova religião: a religião do homem,
onde todos poderiam-melhor, deveriam-convergir. Uma base comum para
crentes e não crentes, para construir juntos uma sociedade diferente e
melhor.

Mas ainda não falamos - salvo algumas antecipações - do motivo


principal pelo qual o pensamento cristão (e especialmente católico)
resistiu-se durante tanto tempo a aceitar em seu conjunto e sem reservas
“Declarações” como as da Revolução francesa e das Nações Unidas. Nelas,
em efeito, considera-se ilegítima e arbitrária qualquer autoridade que não
derive expressamente do povo através do voto. A lógica dos artigos citados
(que são o ponto central desses textos, o princípio unificador de todo
moderno “direito do homem”) rechaça qualquer autoridade que não seja
legitimada por eleições livres, periódicas, universais. Terá que opor-se,
portanto, ao que não é “democrático” neste sentido.

Mas em todas as sociedades humanas, de qualquer época e qualquer


país, existem autoridades “naturais” que não derivam do artifício de
eleições: a família, por exemplo, onde os pais não são escolhidos pelos
filhos, e, entretanto, legitimamente pretendem autoridade sobre eles. A
escola, onde o professor exerce uma autoridade que não deriva do sufrágio
dos alunos. A mesma pátria, que não é fruto de livre eleição, mas sim de
um “destino” (nascer aqui e não lá); e, entretanto, inclusive as constituições
mais avançadas lhe outorgam tal autoridade, que nos pode pedir até o
sacrifício da vida em sua defesa. De fato, a partir de 1789-e de maneira
cada vez mais acelerada desde 1948-a lógica da “democratização” de tudo
e a todo custo chegou a afetar a estas realidades, provocando atitudes de
oposição à autoridade da família, da escola, da pátria e de tudo o que não
deriva de sufrágio universal.

Mas entre estas realidades “não-democráticas” estava e está sobretudo


a Igreja, com sua pretensão fundamental: uma autoridade, a sua, que não
vem de abaixo, do “corpo eleitoral”, mas sim de cima, de Deus, da
Revelação em carne e palavras, que é Cristo. Tanto é assim, que um ano
depois de proclamar os “direitos do homem”, a Revolução, com a
“Constituição civil do clero” de 1790, reorganizava a Igreja segundo os
princípios “democráticos”, os únicos princípios legítimos: supressão das
ordens religiosas (consideradas contrárias aos direitos humanos) e eleição
de párocos e bispos, feita por todo o corpo eleitoral, incluídos, portanto,
não-católicos e ateus. Logo, quando as tropas francesas ocuparam Roma,
em seguida aboliram o papado, que era “um poder arbitrário, por não
derivar do sufrágio universal”.

Nenhuma religião é “democrática”, obviamente (não há votação sobre


Deus, se existir ou não; sobre as obrigações e deveres que, segundo a fé,
Ele impõe aos homens). Menos “democrático” ainda o cristianismo,
segundo o qual o homem foi criado por indiscutível vontade de Deus. O
qual, logo, escolheu a um povo para lhe impor uma lei que não tinha sido
concordada nem legitimada por eleições: não era uma “Declaração de
direitos”, a não ser aquela “Declaração de deveres do homem” que é o
Decálogo. Jesus é justo o contrário de um “eleito pelo povo”: “Por Ele o
mundo tinha sido feito, e o mundo não o conheceu”; “Ele veio ao seu, e os
seus não o receberam” (Jn. 1, 10-11). Pilatos propôs uma espécie de
referendum “democrático” a uma representação do povo, reunido com seus
chefes: o resultado foi negativo para o candidato, eliminado por maioria em
benefício de Barrabás. Jesus, submetido a livres eleições, não teria
aprovado os “exames de Messias” nem sequer entre seus discípulos, tão
contrários a seu destino que o “porta-voz da base”, Pedro, é duramente
reprovado “porque não sente as coisas de Deus, mas as dos homens” (Mt.
16, 23). A “Constituição” do cristão, o “sermão da montanha” não o pede o
povo-que, ao contrário, desconcerta-se frente a ele-, mas sim lhe propõe
com um ato unilateral.

E tampouco é democrática a estrutura da Igreja, que não se apóia em


eleições, a não ser nos Apóstolos, a quem lhes recorda: “Vós não me
escolhestes ; mas Eu vos escolhi” (Jn. 15, 16). O qual é justo o contrário do
princípio que legitima a autoridade segundo todas as modernas declarações
dos direitos do homem. Que, aceitos sem as necessárias reservas e
objeções, levam por necessidade lógica, na Igreja, a aquelas mesmas
conseqüências às que chegaram os revolucionários. É difícil negar
coerência a esses teólogos que pedem a “democratização” da Igreja; onde
não somente todas as autoridades (do vice-pároco ao papa) deveriam ser
legitimadas por eleições do “povo de Deus” mas também o dogma,
expressão de uma intolerável mentalidade hierárquica, deveria ceder o
passo à livre opinião e a moral deveria ser submetida a periódicos
referenduns. Terão que ser conscientes de que a aceitação de uma
determinada mentalidade por parte católica leva longe da estrutura da fé,
que entretanto se diz querer seguir praticando.

Fazem falta lucidez e coerência: existe, em todas as coisas (repetimo-


lo), uma relação de causa e efeito que parece ignorar, em troca, quem com
superficialidade pensa poder abraçá-lo tudo e o contrário de tudo.

22. Justiça para o passado

Preocupamo-nos muito pela justiça no presente, aqui e agora. Mas


muito menos pela justiça no futuro e no passado.

Justiça para o futuro é respeitar os direitos dos que virão depois de


nós, sentir a responsabilidade de lhes entregar um mundo que não esteja
completamente devastado e envenenado, que ainda conserve alguns de seus
dons originários de beleza e fecundidade.

Mas também existe uma justiça para o passado, para os que viveram
antes de nós: uma justiça que nem sequer os crentes respeitam de todo.

No ano do segundo centenário da Revolução francesa, por exemplo,


muitos católicos - entre eles algum bispo - esqueceram-se com embaraçoso
si1êncio, dos três mil padres assassinados, da multidão de religiosas
violadas e freqüentemente torturadas até a morte das dezenas de
camponeses esquartejados em províncias que se revoltavam em nome de
uma religião a que não queriam renunciar.

Não só existem os horrores de La Vendée, de cujo extermínio


sistemático os historiadores falam como o primeiro genocídio da história
moderna, onde os jacobinos anteciparam, contra aqueles camponeses
firmes em sua fé, os intentos de “solução final” dos nazistas contra os
judeus. Em todas partes houve massacres e perseguições de crentes:
primeiro na França, e depois em outros países, inclusive na Itália, lá onde
chegou a Revolução. Mas que La Vendée resultasse tão indômita também
se deve a que tinha sido teatro de pregações de um dos Santos mais
apreciados por João Paulo II, que, dizem, considera a possibilidade de
proclamá-lo doutor da Igreja: Louis-Marie Grignon de Montfort.

Segundo o esquema usualmente aceito, o oeste da França se revoltaria


contra a Paris dos jacobinos, empurrado pelos aristocratas e o clero que
queriam manter seus privilégios. É uma mistificação, desmascarada já há
algum tempo mas ainda apresentada nos manuais de escola frente à
evidência dos documentos: estes demonstram, sem que possa haver
dúvidas, que a sublevação começou de baixo, do povo, que
freqüentemente, com sua iniciativa, arrojou as hesitações do clero e dos
nobres (muitos dos quais preferiram fugir ao estrangeiro em lugar de
assumir suas responsabilidades). Insurreição popular, pois, e não “política”
-embora acompanhada de contradições e enganos, como todo o humano-, e
nem sequer “social”, mas fundamentalmente religiosa, contra os intentos de
descristianização que uma minoria de ferozes ideólogos realizava na
capital.

Nenhuma das ideologias modernas teve uma base popular: o


marxismo nunca chegou ao poder através de eleições livres e, lá onde
estava no poder, caiu sem que ninguém movesse um dedo para defendê-lo;
em 25 de julho de 1943, para acabar com o fascismo bastou um anúncio na
rádio e um pôster nas esquinas das ruas; com a queda de Berlim, o nazismo
desapareceu. Por outro lado (isto tampouco terá que esquecê-lo, apesar das
retóricas), o povo tampouco se levantou para defender o liberalismo
quando Mussolini e Hitler acabaram com ele. E, para ficar na Revolução
francesa o povo acolheu sem reclamos o autoritarismo napoleônico que
sufocou os “imortais” princípios de 1789.

A insurreição das massas em defesa do cristianismo no oeste da


França (e mais tarde na Itália, no Tirol e na Espanha invadida por
Napoleão) é portanto um fato único e surpreendente para os historiadores.
Em todo caso é justo não esquecê-lo como ao contrário se fez durante
muito tempo em nome do conformismo de alguns, que temem estar na
parte “equivocada” da história. Além disso, hoje em dia, inclusive os leigos
mais honestos estão cada vez menos seguros de que fora realmente
“equivocada”.

23. La Vendée

Já temos aqui o livro desmancha-prazeres, a implacável obra de um


jovem historiador que provocou as iras da inteligência francesa, que -
suntuosamente patrocinada por François Mitterrand - celebrou em 1989
“glórias” e “faustos” da Grande Révolution que cumpria então duzentos
anos.

Estamos falando do genocídio franco francês:


La Vendée ve1lgée, de Reynald Secher.

Estas terríveis páginas tiveram em seu momento algum eco em nossos


jornais, mas a indústria “oficial” do livro, que entretanto vai saqueando de
tudo, até o irrelevante, especialmente do francês, não tinha encontrado
lugar para elas. Supriu isto uma nova e pequena editorial que - ( avis rara!
- não só não esconde sua orientação católica, mas também desta inspiração
quer fazer a única base, sem compromissos, de sua produção.

Seu programa editorial, portanto, prevê a publicação de obras novas,


originais ou traduções, mas “malditas”, ou seja rechaçadas pela ideologia
dominante nas editoriais, incluída alguma que já foi, ou ainda se declara,
“católica”. Mas também prevê a recuperação de obras do pensamento
cristão dos séculos XIX e XX impossíveis de encontrar, muitas vezes não
por falta de mercado, mas sim por falta de “simpatia” por parte de certa
cultura que se declara “pluralista”, “paladina da tolerância”, enquanto está
realizando uma dura censura ideológica.

Esta nova editorial, na fase inicial de sua atividade - antes do livro


sobre La Vendée, que mencionamos e de que falaremos mais adiante
publicou outro ensaio contra-revolucionário. É o panfleto, também
desmancha-prazeres, Pourquoi nous ne célébrons pas 1789, escrito por
Jean Dumont, que em poucas páginas, acompanhadas por ilustrações raras
da época, mostra com vigor e informação extraordinários “os falsos mitos
da Revolução francesa”, tal como diz o título da tradução italiana. Em um
tamanho e a um preço reduzidos aqui temos a obra de síntese que muitos
leitores procuravam para esclarecer idéias (em uma perspectiva que quer
ser explicitamente católica) a respeito daquela revolução cujos efeitos
ainda perduram.

Mas vamos ver agora Le génocide franc-français, esse livro de Secher


que, pese ao obstrucionismo realizado pelo conformismo “politicamente
correto”, provocou na França uma profunda comoção.

Reynald Secher, o jovem autor (nascido em 1955) originário de La


Vendée, foi procurar uma documentação que muitos consideravam já
perdida. De fato, os arquivos públicos foram diligentemente depurados, na
esperança de que desaparecessem todas as provas do massacre realizado
em La Vendée pelos exércitos revolucionários enviados de Paris.

Mas a história, como se sabe, tem suas astúcias assim Secher


descobriu que muito material estava a salvo, conservado, às escondidas,
por particulares. Além disso pôde chegar à documentação cadastral oficial
das destruições materiais sofridas pela La Vendée camponesa e católica,
levantada em armas contra os “sem Deus” jacobinos.
Nos mapas dos geômetras estatais da época está a prova de uma
tragédia inimaginável: dez mil de cinqüenta mil casas, o 20 % das
construções de La Vendée, foram completamente destruídas segundo um
frio plano sistemático, nos meses em que se desencadeou a fúria dos
jacobinos governamentais com seu lema aterrador: “liberdade, igualdade,
fraternidade ou morte”. Praticamente todo o gado foi massacrado. Todos os
cultivos foram devastados.

Tudo isto, segundo um programa de extermínio estabelecido em Paris


e realizado pelos oficiais revolucionários: deixar morrer de fome a quem,
escondendo-se, tivesse sobrevivido. O general Carrier, responsável em
chefe da operação, arengava assim a seus soldados: “Não nos falem de
humanidade para estas feras de La Vendée: todas serão exterminadas. Não
terá que deixar vivo a um só rebelde.”

Depois da grande batalha campal em que foram exterminadas as


intrépidas mas mal armadas massas camponesas da “Armada Católica”,
que foram ao assalto detrás dos estandartes com o Sagrado Coração e ainda
por cima a cruz e o lema “Dieu et le Roy”, o general jacobino Westermann
escrevia triunfalmente a Paris, ao Comitê de Saúde Pública, aos adoradores
da deusa Razão, a deusa Liberdade e a deusa Humanidade: “La Vendée já
não existe, cidadãos republicanos! Morreu sob nossa livre espada, com
suas mulheres e meninos. Acabo de enterrar a um povo inteiro nos
pântanos e nos bosques do Savenay. Executando as ordens que me destes,
esmaguei aos meninos sob os cascos dos cavalos e massacrando às
mulheres, que assim não parirão mais bandoleiros. Não tenho que lamentar
nenhum prisioneiro. Exterminei-os a todos.”

De Paris responderam elogiando a diligência posta em “purgar


completamente o chão da liberdade desta raça maldita”.

O termo “genocídio”, aplicado por Secher a Vendée, desatou


polêmicas, por considerar-se excessivo. Em realidade o livro mostra, com a
força terrível dos documentos, que essa palavra é absolutamente adequada:
“destruição de um povo”, segundo a etimologia. Isto queriam “os amigos
da humanidade” em Paris: a ordem era a de matar sobretudo as mulheres,
por ser o “sulco reprodutor” de uma raça que tinha que morrer, porque não
aceitava a “Declaração dos direitos do homem”.

A destruição sistemática de casas e cultivos ia na mesma direção:


deixar que os sobreviventes desaparecessem por escassez e fome.

Mas quantos foram os mortos? Secher dá pela primeira vez as cifras


exatas: em dezoito meses, em um território de só 10 000 quilômetros
quadrados, desapareceram 120 000 pessoas, pelo menos o 15 % da
população total. Em proporção, como se na França atual fossem
assassinadas mais de oito milhões de pessoas. A mais sangrenta das guerras
modernas - a de 1914-1918 - custou algo mais de um milhão de mortos
franceses.

Genocídio, pois; verdadeiro holocausto, e, como comenta Secher, tais


termos remetem ao nazismo tudo o que puseram em prática as SS foi
antecipado pelos “democratas” enviados de Paris com as peles curtidas dos
habitantes de La Vendée se fizeram botas para os oficiais (a pele das
mulheres, mais suave, era utilizada para as luvas). Centenares de cadáveres
foram fervidos para extrair graxa e Sabão (e aqui se superou até a Hitler:
no processo de Nuremberg se documentou-e as mesmas organizações
judias o confirmaram-que o sabão produzido nos campos de concentração
alemães com os cadáveres dos prisioneiros é uma “lenda negra”, sem
correspondência com os fatos). Experimentou-se pela primeira vez a guerra
química, com gases asfixiantes e envenenamento das águas. As câmaras de
gás da época foram navios carregados de camponeses e padres, levados no
meio do rio e afundados.

São páginas, disponíveis agora, que provocam sofrimento. Mas a


busca de uma verdade escondida e apagada bem vale o trauma da leitura.

24. Vinganças

Dizem que “cristianismo” é viver com plenitude o presente,


projetados para o futuro e mantendo firmes as raízes no passado. Hoje
parecemos carecer precisamente deste último aspecto: como uma perda da
memória histórica, já seja por falta de conhecimento do que nos precedeu,
já seja por uma espécie de esquecimento, tão vacilantes como somos em
nos reconhecer herdeiros de um passado que acreditam cheio só de
infâmias e grandes traições ao Evangelho.

É preciso reagir, em nome daquela verdade e aquele respeito que hoje


invocamos para todos. De fato, difamar o passado é lhe faltar o respeito -
como se tivesse sido formado só por hipócritas preguiçosos ou brutos
incapazes de entender o que só nós entenderíamos-àquela Igreja militante
que nos trouxe a fé. Acaso o devido respeito só é para os “distantes” e não
para nossos pais, que certamente fizeram das suas (como nós, por outra
parte), mas que também escreveram uma história que João XXIII, no
discurso de abertura do Concílio, definiu, em seu conjunto, como
“luminosa”, fazendo um balanço do passado antes de que os padres
conciliares construíssem o futuro?

Para dar um exemplo, partimos de um acontecimento: a morte, em


Berlim, de Rudolf Hess, o líder nazista fugido na Inglaterra, por razões
ainda obscuras, ao princípio da guerra, e em seguida encarcerado. Um
tribunal tão desconcertante como o de Nuremberg o condenou à cadeia
perpétua: com leis retroativas aplicadas por juízes tais como a URSS de
Stalin, fiel aliado de Hitler até que o amigo o traiu; os EE. UU. de
Hiroshima e Nagasaki e de crimes contra a cultura, tal como a inútil
destruição de Montecassino; a Grã-Bretanha dos 250000 mortos inermes de
Dresden; França, falsa ganhadora, que nos quatro anos do Vichy destacou
por seu esmero antijudaísmo, que depois, em poucos meses de guerra,
cobriu-se de infâmia com suas tropas coloniais e que finalmente, na espiral
de vinganças posterior à libertação, conheceu mais de cem mil execuções
sumárias e impunes.

Aquela cadeia perpétua a Hess, interrompida só por sua morte na


prisão de Berlim-Spandau reabriu o eterno debate sobre a relação entre
vencedores e vencidos. Seguindo um pouco essas polêmicas, pensava no
que tinha acontecido na Igreja quando seu inimigo mais implacável
mordera finalmente o pó.

Possivelmente nenhum déspota prejudicou tanto à comunidade


eclesiástica como Bonaparte, nem mais obstinadamente tratou de apagá-la
ou, não conseguindo, quis fazer dela uma larva, um dócil instrumentum
regni. Pio VI, despojado de todos seus bens, morreu prisioneiro na França
em 1799, e parecia impossível lhe encontrar um sucessor (“Pio Sexto e
último!”, gritava a canaille). Pio VII, eleito tempestuosamente por um
grupo de cardeais que puderam reunir-se em Veneza, passou a maior parte
de seu pontificado de uma prisão a outra: ameaçado, isolado, enganado,
testemunha impotente da destruição de sua Igreja, em uma espiral de
violências e humilhações que terminou somente com a caída do tirano.

A hora da vingança chegou no fim de maio de 1814, quando o Papa


banido voltou para Roma no que foi um triunfo do povo. Encontrou a
novecentos presos, entre franceses e colaboracionistas nativos, encerrados
no Castel Sant'Angelo. Apesar dos protestos dos romanos-que tinham
sofrido os vexames, a arrogância e o despojo (arquivos e pinacotecas
levadas a Paris), a mobilização de jovens no exército e os altos impostos-
em seguida liberou seiscentos deles, e menos de dois meses depois liberou
a outros mediante uma anistia. Também lhe chegaram protestos, mais
potentes e ameaçadores, do restaurado no trono, rei da França, quando
acolheu, visitando-a freqüentemente, à mãe de Napoleão, rechaçada por sua
própria filha, a grande duquesa de Toscana, quem esperava assim ganhar o
favor dos vencedores. Ao redor da Madame Mere acabou reunindo-se em
Roma, única cidade que a tinha aceito, a numerosa parentela do imperador
caído.

O prefeito napoleônico, que tinha sido seu carcereiro em Savona,


recebeu uma carta paterna de Pio VII para que se livrasse dos remorsos que
o afligiam. Esse Papa, realmente “estranho” ante os olhos do mundo (e de
fato a diplomacia européia estava escandalizada), chegou a enviar uma
mensagem ao príncipe regente de Grã-Bretanha para que liberasse o
detento de Santa Helena, ou ao menos mitigasse sua prisão. Escrevia: “Já
não pode ser um perigo para ninguém, queremos que não se converta em
um remorso para alguém.” E quando lhe recordavam sua fúria contra a
Igreja e sua pessoa, o velho beneditino exortava a pensar em seus lados
positivos: “Há que esforçar-se para entender e perdoar.” Finalmente,
quando lhe comunicaram que o detento, doente, queria um confessor, ele
mesmo escolheu um padre córsico que pudesse entender melhor a seu
conterrâneo em Santa Helena. E chorou com sua mãe e seus irmãos, e
organizou sufrágios, quando chegou a Roma a notícia de sua morte. Tudo
isto ocorria quando ainda ficavam abertas as feridas da perseguição, e a
Igreja pagava o preço de desastres cujas conseqüências duraram ao menos
um século; segundo alguns historiadores, até nossos dias.

É sempre tão perigoso e difícil, portanto - como pretende certa


vulgata que se difunde em jornais e textos de escola, e como asseguram
inclusive alguns católicos, afetados por um curioso masoquismo -, remover
em nosso passado? Às vezes; mas não sempre. Seguindo a um desses
teólogos que tanto influíram no Concílio Vaticano II, o santo e senha do
católico de hoje em dia teria que ser “enjamber seize siecles (saltar
dezesseis séculos),” apagar até sua lembrança, para voltar à Igreja pré-
constantiniana; a única, em sua opinião, realmente evangélica e
apresentável à sociedade. Além de impossível, tal propósito mostra
desconhecimento da história, muito mitificada, da comunidade primitiva -
um olhar às epístolas de Paulo, aos cronistas eclesiásticos primitivos e aos
Padres recorda que o bem vai acompanhado pelo mal-e da história que
seguiu. Cortar as raízes sempre é a melhor maneira de fazer morrer uma
árvore. Procuremos, pelo menos ser conscientes disso.

25. Os regicidas

É a Noite entre o 16 e 17 de maio de 1793: a Convenção Nacional


vota a condenação à morte do rei Luis XVI. Os votantes (com chamada
nominal, portanto de forma manifesta) são 721. Deles, 361 dizem “sim” à
guilhotina, 360 dizem “não”. A diferença é de um só voto, mas para o rei e
a monarquia é o fim.

Ilustram bem o clima em que se desenvolveram a discussão e o voto,


declarações como a do deputado jacobino Legendre, quem disse estar
convencido da necessidade de “degolar ao porco” e enviar logo uma parte a
cada departamento, como advertência aos reacionários e exortação para os
revolucionários. Danton recorda na Convenção: “Não queremos julgar ao
rei, queremos matá-lo.” E Robespierre: “Vocês não são juizes, não terá que
fazer nenhum processo. Decapitar ao rei é uma medida indispensável para a
saúde pública.” O abbé Grégoire, o bispo líder da Igreja cortesã, quem
jurou fidelidade ao novo regime, diz: “Os reis são, na ordem espiritual, o
que a gangrena é na ordem material. ”

Mas às vezes os historiadores são indiscretos. E alguém se incomodou


em olhar o que ocorreu com os 361 que votaram a guilhotina para o que
chamavam, despectivamente, “o cidadão Luis Capeto”. Deles 74 morreram
de forma violenta: quase todos, a sua vez, degolados. É a revolução que,
como se sabe, sempre devora a seus próprios pais e filhos. Outros
morreram por outras causas. Mas dos sobreviventes, 121 procuraram e
obtiveram cargos públicos, às vezes de muita responsabilidade, sob o
império de Napoleão.

Chamaram-se a si mesmos, com orgulho, “regicidas”; e na petição de


condenação à morte para Luis XVI tinham visto (isso disseram) o fim de
todos os privilégios, os direitos divinos, as desigualdades, as autoridades
que não derivavam do povo. Mataram pois a um rei talvez inepto, mas
pacífico; e poucos anos mais tarde ficaram ao serviço de um imperador
feroz que tinha querido ser coroado pelo Papa (o que nunca pretendeu a
antiga dinastia), e tentava restaurar os faustos monárquicos do Roi Soleil
(Rei Sol).

Coisas que é preciso recordar. Mas que não surpreendem a quem


conhece um pouco aos homens. Apartir, obviamente, de si mesmo.

26. Vandalismo

Vandalismo: (Tendência a devastar e destruir algo com obtusa


maldade, especialmente se for bonito ou útil.” Assim o define o Dicionário
Zingarelli, que não recorda a origem do substantivo, limitando-se a
mencionar a tribo bárbara que saqueou Roma no ano 455.

“Vândalos” era o antigo nome desses terríveis germanos. Mas só em


1794 nasceu a palavra “vandalismo”, por obra do Henri-Baptiste Grégoire,
o padre que, desde o começo até o final, esteve com a Revolução francesa;
que foi um dos promotores daquela Constituição Civil do clero que
provocou morte, deportação ou desterro a milhares de seus irmãos que se
negaram a jurá-la (os “refratários”); que quis ser eleito bispo “democrático
e constitucional” de Bois; que foi um dos mais intransigentes em pedir a
guilhotina para Luis XVI (“Os reis-disse-são na ordem moral o que os
monstros são na ordem material”); que morreu muitos anos depois, em
1831, declarando-se ainda e sempre católico, mas negando-se a reconciliar-
se com Roma. E ao que em ocasião das celebrações de 1989 o presidente
Mitterrand fez transladar a uma tumba do Panteão, entre as glórias da
França.
A história ensina que sempre há “capelães” ao lado de qualquer
personagem e qualquer movimento sócio-político que chega ao poder ou
que de alguma forma consegue atenção e prestígio. Para seguir em nosso
século, vimos padres propondo um certo “modernismo” religioso, também
em complacente resposta ao liberalismo político, e portanto como maneira
de alistar-se nas filas da burguesia triunfante antes da Grande Guerra.
Vieram depois os padres fascistas, que desfilavam em formação frente a
Mussolini na via do Império, levantando o braço na saudação romana e
luzindo medalhas de guerra na batina. Até o fascismo agonizante da
república de Salo teve seus “assistentes espirituais” virulentos e anti-
semitas, às vezes, como aquele dom Calcagno com sua Cruzada itálica, que
acabou fuzilado em uma praça de Milão. Logo foi o turno dos padres
comunistas ou pelo menos simpatizantes e eleitores, quando não
escolhidos. Sopram agora outros ventos, e aqui aparecem novos capelães
para os novos astros: os socialistas da máxima eficiência produtiva no
público e o hedonismo no privado, ou os democratas-liberais, que voltaram
com grande potência e glória.

Sempre foi assim, desde a época de Constantino (possivelmente


inclusive antes), e assim será sempre: o importante é ser conscientes disso e
não deixar-se impressionar por tanto revoar de batinas-metafóricas, já se
sabe, pois se abandonaram os hábitos eclesiásticos - ao redor de homens e
ideologias beijados pela fortuna, o poder ou simplesmente a moda.

Mas sem esquecer nunca que a decisão de estar no bando que parece
“justo” em um momento dado não sempre se apóia no oportunismo, ou no
desejo de ser aceitos, arrebatar um pouco de aplausos, livrar-se dos perigos
e a solidão de quem vai a contra a corrente.

Muitas vezes se apóia na boa fé de quem trata de evitar maiores


problemas à Igreja e aos crentes, atuando do interior do palácio. Apóia-se
na consciência, embora deformada, de que o cristianismo não é uma
doutrina fora do tempo, flutuante no ar, por cima da história, mas o anúncio
de um Deus que tomou tão a sério esta história para comprometer-se com
ela até o final, assumindo não somente o aspecto físico de homem, mas a
própria natureza humana.

“O décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio


Pilatos governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, Filipo seu irmão
tetrarca da Ituréia e da Traconítide...” (Lc. 3, 1): mensagem histórica como
nenhuma outra religião, o Evangelho pede que junto à tensão vertical, para
o Céu, haja também um empenho horizontal, no pó (que freqüentemente se
converte em lodo) da Terra.

Desta necessidade de “comprometer-se”, de “sujar as mãos” com a


história, também derivam, indevidamente, o que poderiam parecer, e
freqüentemente são, enganos, debilidades inaceitáveis, amizades daninhas
ou inoportunas. E quem sabe se isto não forma parte do plano de um Deus
providente, que para chegar a realizar seus fins necessita também de
enganos e divisões entre os que acreditam servi-lo; quem sabe, sobretudo, o
que há nos rins e e no coração” de quem toma determinadas decisões, que
não podemos “esquadrinhar” nós, a não ser só o “que julga com Justiça”.

Mas voltemos para nosso abbé Grégoire, o capelão da Revolução, o


chefe moral da Igreja patriótica, e a sua invenção linguística, “le
vandalisme”. Figura complexa, enigmática, mas em primeiro plano, que
não podemos encerrar no esquema do padre servil por medo ou afã de
honras, o bispo “constitucional” de Blois ousou selar com este termo - no
salão da Convenção dizimada pela guilhotina - a fúria infernal que se
desatou sobre o patrimônio artístico francês.

“Neste aspecto, as perdas foram irremediáveis. Depois da tormenta, a


França ficou mais pobre. Os tesouros mais nobres da arte cristã foram
afetados ou destruídos para sempre. Hoje ao visitante lhe falam de
"restaurações". Mas em realidade em muitos casos se trata de
reproduções.” Assim escreve em La Chiesa e la Rivoluzione francese
(Edições Paulinas) o historiador Luigi Mezzadri. Quem além da perda dos
tesouros de muitas bibliotecas eclesiásticas, recorda a completa destruição
(e, precisamente, por puro “vandalismo”) dos mosteiros de Cluny e
Longchamp, a abadia de Lys, os conventos do Saint-Germain-dê-Prés,
Montmartre, Marmoutiers, a catedral de Macon, a de Boulogne-sur-Mer, a
Sainte Chapelle de Arras, o castelo dos Templários no Montmorency, os
claustros de Conques e outras infinitas obras de grande antiguidade e
beleza.

Em uma cidade como Troyes houve quinze Igrejas destruídas, em


Beauvais doze, em Chalons sete; e a triste contagem poderia seguir páginas
e páginas, sem esquecer que virtualmente não houve lugar de culto, em
cada aldeia, que não fora invadido e saqueado. Em Avinhão não se
limitaram a devastar o palácio dos Papas mas sim, cegados pelo ódio,
alimentaram durante dias uma grande fogueira com os móveis preciosos e,
sobre tudo, com as maravilhosas obras da pinacoteca.

Daqui, o veemente protesto do bispo Grégoire, que entretanto era pai


e filho daquela revolução iconoclasta.

Resulta difícil, além disso, justificar esta destruição atribuindo à


excitação dos ânimos rebeldes. O pior, de fato, ainda tinha que chegar. E
chegará com Bonaparte. Quem completou o desastre suprimindo ordens e
congregações religiosas lá onde chegava e expulsando padres e monjas de
seus conventos, mosteiros e Igrejas. Em 1815, vinte e seis anos depois
daquele funesto 1789, não só a França, mas também a Europa inteira, era
um campo desolado, uma extensão de ruínas amontoadas lá onde os
homens tinham trabalhado durante séculos para criar beleza. Mas que tinha
a grave culpa de ter sido promocionada para finalidades religiosas, para dar
glória a Deus e resplendor visível ao culto e a oração.

Remeter assim com uma palavra - vandalismo - a uma população


Bárbara-os vândalos-não parece absolutamente casual: nunca, da época das
invasões e a decadência do Império romano do Ocidente, o continente tinha
conhecido tão parecida e inútil destruição de belezas.

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