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CURIOSIDADE DE JORNALISTA

No dia 14 de Novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, um homem saiu


cedo de casa e já não voltou. Nesse dia e nos que se seguiram. Também não o
viram mais no emprego. Chamava-se, ou chama-se (pois há quem pense que o
caso não foi suficientemente deslindado), Rodrigo dos Santos Abrantes. (…)

Os jornais não pegaram no caso às primeiras. Por desconhecimento dos


factos e, mesmo que assim não fosse, porque Rodrigo não era ninguém. Nessas
circunstâncias, seria preciso que a própria imprensa criasse a notícia e criasse o
herói. A partir daí, sim, já tudo poderia suceder. (...) Calhou um repórter d’A
Tribuna (diga-se, desde, já, que foi o Ferreirinha) entrar num café, correr ao balcão
para não perder tempo a ser servido e sentir uma espécie de ferroada na sua
curiosidade sempre em alerta ao captar frases de dois parceiros que lhe ficavam à
ilharga. O diálogo decorria mais ou menos assim:

– Pois é, mas um homem, quando desaparece, é para ser encontrado. Nem


que seja num buraco. E ele não tinha razões para se pôr na alheta.

– Então foi assaltado.

– E depois, volatilizou-se?

– Ou raptado. Crime, houve. Cheira-me a crime – e ajustou a samarra aos


ombros.

O outro pareceu reticente e, enquanto media aquelas hipóteses, foi


adiantando:

– Isso é no cinema que acontece. (…)

– Os senhores desculpem, mas de quem estão a falar? – assentou logo o


antebraço no balcão, inclinando a cabeça para o mesmo lado, que era o seu modo
de estar atento.

Sondado o homem, um deles retorquiu:

– De uma pessoa nossa amiga que desapareceu.

– E isso já é conhecido?

– Conhecido de quem? – desafiou o outro, o da samarra, avaliando com


relutância o intrometido.

– Dos jornais, por exemplo.

– Isso creio que não. Pelo menos, não ouvi dizer.


– Bom, eu sou jornalista.

Era jornalista e, a partir da reverenciosa surpresa alastrada no rosto dos


sujeitos, não duvidou de que ganhara o dia. Aqueles iriam fosse aonde fosse para
lhe recolher os ingredientes necessários a uma boa reportagem. Nem daria ao
chefe tempo para abrir a boca quando lhe entrasse na redacção com uma «caixa»
no bolso. Se os tipos tinham falado num desaparecido, em morgues, etc., não iria
ficar de mãos vazias, por muito que a realidade estivesse longe daquela excitação.
(…)

Mais tarde, no café, o Ferreirinha, que se agradava muito mais do André


Bernardes do que do resto da malta, disse-lhe discretamente:

– Leia n’A Tribuna uma pequena notícia sobre um tipo que desapareceu. A
notícia é minha. Fiz uma visita à mulher, o caso interessou-me. E também o há-de
interessar a si.

Eis A Tribuna, eis duas belas colunas de alto a baixo, na terceira página –
«texto de Luís Manuel Ferreira». Com autoria e tudo, embora o chefe costumasse
advertir: «Nada de nomes, nada de fulanismos, um jornal é um trabalho colectivo,
não quero exibições.» Título: «O mistério da gabardina». Um prelúdio biográfico de
Rodrigo dos Santos Abrantes, muito pela rama (nem, aliás, haveria que dizer),
pormenores do seu quotidiano, com uma ou outra insinuação matreira,
apontamentos sobre o ambiente familiar, umas coisas acerca da Novilectra, onde
a a estima por Rodrigo era de sublinhar, e, por fim, a versão, confessadamente
insegura, do achado da gabardina, das diligências da Judiciária e dos telefonemas
anónimos (…).

Ferreirinha abriu e folheou o jornal de várias maneiras, tentando enfiar-se na


pele dos leitores, tanto os de sete-olhos como os distraídos: não havia dúvida de
que a sua reportagem tinha desde logo um impacte visual.

Fernando Namora, in Rio Triste (texto com supressões)

Após uma leitura atenta do texto, responde de forma cuidada ao questionário que se segue:

1. “Os jornais não pegaram no caso às primeiras.”

1.1. De que caso se trata?

1.2. Por que razão é que os jornais o ignoraram no primeiro momento?

2. “(…) seria preciso que a própria imprensa criasse a notícia e criasse o herói.”

2.1. De que forma é que o caso saiu do anonimato e se transformou em notícia?


2.2. Traça o perfil do repórter
responsável pelo facto.

3. Qual o título da notícia elaborada pelo repórter Luís Manuel Ferreira?

Comenta-o, tendo em conta os efeitos que suscita nos leitores.

4. Atenta no segundo parágrafo do texto. Classifica todas as formas verbais, quanto ao modo e
quanto ao tempo.

5. Encontra um sinónimo para cada uma das seguintes palavras do texto:


– deslindado (linha 4) – reverenciosa (linha 32)
– volatilizou-se (linha 16) – discretamente (linha 39)
– reticente (linha 19) – prelúdio (linha 46)
– relutância (linhas 27/28)

6. Imagina e escreve a notícia que o Ferreirinha redigiu para as páginas de A Tribuna,


relatando o desaparecimento de Rodrigo dos Santos Abrantes.
Aplica a técnica da pirâmide invertida.

A professora,
Paula Cruz

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