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fundamentos das comunidades políticas têm a sua legitimidade posta em dúvida.
Ademais, se as bases da vida civil são postas em dúvida, a vida civil corre grande
perigo de se conservar.
É certo que Giambattista Vico, na sua Scienza Nuova, argumenta sobre os
perigos da humanidade ante uma nova experiência da barbárie. Conforme já
havia ocorrido em duas épocas anteriores: a primeira em tempos ainda bem
remotos, após o dilúvio narrado na Bíblia1; e a segunda, ocorrida no período
medieval, denominada de barbárie regressada (barbarie ritornata). Nesta barbárie
os homens haviam caído em um embrutecimento do intelecto, pois, mergulhados
em um estado de natureza, retornaram à civilidade mediante uma particularidade
que os havia dotado a Providência: a sociabilidade natural.
(...) e, assim dispersas, para encontrar pasto e água e, por tudo isto, ao
fim de longo tempo, tendo chegado a um estado de animalidade –
então, em certas ocasiões ordenadas pela providência divina (que por
esta Ciência se meditam e se descobrem), abaladas e despertas por um
terrível pavor de uma divindade do Céu e de Júpiter por elas própria
inventadas e crida, finalmente, uns tantos detiveram-se e esconderam-
se em certos lugares; onde, estabelecidos com ce3rtas mulheres, pelo
temor da divindade perseguidora, às escondidas, com ligações carnais
religiosas e pudicas, celebraram os matrimônios e fizeram filhos certos,
e assim fundaram as famílias2.
1
Diz o autor sobre o surgimento desta primeira barbárie: O que se deve entender para a língua
dos povos do Oriente, entre os quais Sem propagou o gênero humano. Mas para as nações de
todo o restante mundo a questão devia se passar de outra maneira. Porquanto as raças de Cão e
Jafeth devem ter se dispersado pela grande selva da terra, num errar ferino de duzentos anos;
desnudadas de toda a fala humana e, portanto, num estado de animais selvagens. E foi
necessário precisamente transcorrer tanto tempo para que a terra, dessecada da humanidade do
dilúvio universal, pudesse mandar para o ar as exalações secas para se poderem gerar os
relâmpagos, devido aos quais os homens, aturdidos e assustados, se abandonaram às falsas
religiões de tantos Júpiteres, (...). Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 65.
2
Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.14.
3
A segunda barbárie, que Vico denomina de “barbárie retornada” (barbarie
ritornata), é a Idade Média, caracterizada pelo feudalismo. Segundo ele, em tal
barbárie tem origem todas as repúblicas, pois o sistema feudal estaria apoiado em
“princípios eternos”, que sempre retornam (Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova,
p. 431.). Tal barbárie teria sido mais obscura do que a primeira: “esclarece-se a
história dos novos reinos da Europa, surgidos nos últimos tempos bárbaros, que
resultaram mais obscuros que os primeiros tempos bárbaros de que falava
Varrão” (Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 27- 431.).
A segunda barbárie teria sido debelada também com uma religião severa,
mas foi importante também o papel da Filosofia. No entender de Vico, esta surge
providencialmente para que os homens já estivessem com o intelecto bem
aguçado pelas artes e ciências e que, quando já não se sentissem persuadidos a
praticar boas ações, fossem ao menos dobrados pela reflexão a se
envergonharem de práticas ilícitas:
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e não os pobres com muitos e desavergonhados vícios, seriam
considerados óptimos para o governo. De república assim referidas – os
povos inteiros, que aspiram em comum à justiça, ordenam leis justas,
porque universalmente boas (...) surgiu a filosofia (...) E das filosofias
permitiu que surgissem a eloqüência, que a partir da mesma forma
dessas repúblicas populares, donde se ordenam boas leis, fosse
apaixonada pelo justo4.
4
Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 838- 839.
5
Vico reforça a necessidade de refletirmos sobre tal problema. Posteriormente outros pensadores
se dedicaram a estudá-lo, por exemplo, Nietzsche, Walter Benjamin, Horkheimer, Adorno e
Levinas. Tis autores se mostraram, conforme Mattei, preocupados com a escalada de uma nova
barbárie. Jean-Francois Mattei nos esclarece que desde épocas remotas vinha sendo percebido
por diversos autores sob as mais diversas perspectivas o problema da barbárie. Em determinados
momentos e circunstâncias tal problema era visto como algo externo, como particularidade de
determinados povos. Segundo Mattei, a barbárie seria, porém, algo interno ao próprio ser humano:
a barbárie não remete a uma invasão da violência que viria do exterior revirar nossa intimidade, e
sim a essa própria intimidade a partir do momento em que ela se apresenta como autônoma e
arrogante. Cf. MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno
[1999]. Trad. br. Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p.12.
5
fundamento da sociabilidade e os sepultamentos, fundamentos da preservação de
uma humanidade já conquistada 6:
6
Segundo o autor da Scienza Nuova, o curso que fazem as nações manifesta-se na própria
personalidade dos indivíduos que o vivenciam. Envolvendo na própria existência deles um caráter
da Providência que se utiliza de seus vícios e virtudes. Vico escreve: No gênero humano, primeiro
surgem imanes e desajeitados, como os Polifemos; magnânimos e orgulhosos, como os Aquiles;
logo, valorosos e justos, como os Aristides, os Cipiões Africanos; mais próximos de nós, os que
aparecem com grandes imagens de virtudes acompanhadas de grandes vícios, que junto do Vulgo
fazem o estrépito de verdadeira glória, como os Alexandres e os Césares; mais adiante, os tristes
e reflexivos, como os Tibérios; finalmente, os furiosos, dissolutos e desavergonhados, como os
Calígulas, os Neros, os Domicianos. Cf.VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.142.
7
Cf.VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 190-191.
8
Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 379.
6
Segundo Vico, todos os povos em seus inícios foram bárbaros, e da
barbárie só foram libertados ou “domesticados pelas leis” 9. A seguinte passagem
diz:
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austros furiosos o mar, agitando guerras civis nas suas repúblicas
conduziram-nas a uma desordem total e, assim, de uma perfeita
durabilidade, fizeram-nas cair debaixo de uma perfeita tirania ( que é o
pior de todas), que é a anarquia, ou seja, a desenfreada liberdade dos
povos livres11.
8
obstinadíssimas facções e desesperadas guerras civis, passam a fazer
das cidades selvas e das selvas covis de homens; e, desse modo, ao
longo de vários séculos de barbárie, vão se enferrujar as grosseiras
subtilezas dos engenho e maliciosos, que tinham feito deles feras mais
imanes com a barbárie de reflexão do que tinham sido com a primeira
barbárie dos sentidos12.
12
Cf.VICO, Giambattista, pp. 841-842.
13
Vico não imaginou o potencial criador do homem para armas de destruição em massa.
9
7. Referências bibliográficas
BURKE, Peter. Vico. [1985]. Trad. br. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: UNESP,
1997.
GUIDO, Humberto A. de Oliveira. Giambattista Vico: a filosofia e a evolução da
humanidade. Petrópolis: Vozes, 2004.
BERLIN, Isaiah. Vico e Herder [1976]. Trad. br. Juan Antônio Gili Sobrinho,
Brasília, 1982.
GUIDO, H. Aparecido de O. La niñez de Vico y la niñez en la filosofia de Vico, In:
Cuadernos Sobre Vico. Sevilla: Universidad de Sevilla. 2000, pp.149-162..
MOONEY, Michael. “La primacia del lenguaje en Vico”; in. TAGLIACOZZO,
Giorgio. et al. Vico y el pensamiento contemporáneo [1976]. Trad. esp. Maria
Aurora Ruiz. Canedo y Stella Mastrongelo, México: Fondo de Cultura Ecuménica,
1987 pp.184 -201.
Outros autores
MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. Trad. br.
Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos [1969]. Trad. br. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. 1985.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza, in: Magia e técnica, arte e política;
Obras escolhidas: Brasiliense, São Paulo, 1985.
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