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PRÁXIS, ALIENAÇÃO E CONSCIÊNCIA

Nildo Viana

A teoria marxista da consciência se apresenta como uma crítica de todas as


“teorias” do conhecimento e se caracteriza por possuir três teses básicas que lhe
dão sustentação, a saber: o ser e a consciência são inseparáveis, a vida determina
a consciência e, por fim, a consciência é ativa. No presente artigo, buscaremos
analisar este terceiro e enigmático aspecto da teoria marxista da consciência e
deixaremos de lado os outros dois aspectos, analisados amplamente pela literatura
marxista, retomando-os somente quando eles tiverem importância para esclarecer o
terceiro aspecto.
O ponto de partida para compreender esta característica da consciência humana
se encontra na percepção de que o ser humano se distingue dos outros animais e
por qual razão existe esta distinção.
O conceito fundamental aqui é o de trabalho. É aí que poderemos compreender
a distinção entre ser humano e os demais animais. O que é o trabalho? Em sentido
amplo, trabalho é toda e qualquer atividade. E o que é uma atividade? É todo e
qualquer movimento imanente no tempo ou no espaço. Isto quer dizer que toda
atividade é movimento mas nem todo movimento é atividade. Um movimento para
ser atividade precisa ser imanente, ou seja, precisa ter como fonte o próprio ser que
se movimenta. Neste sentido, os movimentos dos astros não são atividades, pois
somente os seres vivos possuem movimento imanente. Desta forma, percebemos
que a categoria trabalho utilizada pela física é distinta do conceito marxista de
trabalho, já que este só se aplica aos seres vivos.
Até aqui não conseguimos distinguir o ser humano do animal, pois ambos
trabalham, isto é, possuem um movimento imanente e, assim, realizam atividades.
A distinção só aparece quando se descobre a real diferença entre o trabalho
humano e o trabalho animal. Esta diferença reside, tal como demonstrou Marx, no
fato de que o ser humano elabora na sua consciência a finalidade de seu trabalho
antes de executá-lo. É por isso que se diz que o ser humano é um animal
teleológico.
O fato do ser humano imaginar o resultado de seu trabalho antes de executá-lo
tem uma importância fundamental, pois é na consciência que se realiza tal
processo. Por conseguinte, o que caracteriza o trabalho humano é seu caráter
teleológico consciente. O animal age mediante o confronto de duas forças, as forças
internas, que são suas necessidades vitais, e as forças externas, o meio ambiente.
A sua não-consciência de si lhe deixa em desvantagem em sua relação com o meio
ambiente. É por isso que ele deve se adaptar ao meio ambiente. O ser humano
também se adapta ao meio ambiente mas consegue fazer com que o meio ambiente
se adapte a ele. O animal apenas reproduz o mundo enquanto que o ser humano o
reproduz humanamente.
Assim, observamos o que caracteriza o trabalho humano. Esse é o conceito
marxista do trabalho, apesar de muitos insistirem em deformá-lo. Ocorre, porém,
que esta definição ainda é demasiadamente abstrata, pois falta aqui reconhecer que
o ser humano só consegue desenvolver sua consciência e suas atividades no
interior de uma associação com outros seres humanos. Isto é verdade e se observa
isto desde a pré-história, quando os seres humanos viviam em bandos, até as
sociedades complexas que existem atualmente.
No interior desta associação, surge uma distinção entre trabalho socialmente
necessário, voltado para a sobrevivência coletiva, e o conjunto das demais
atividades (lúdicas, artísticas, etc.). Em ambas as formas de trabalho se vê a sua
característica de trabalho humano. Entretanto, com o surgimento das classes
sociais, ocorre uma nova divisão, desta vez no interior do trabalho socialmente
necessário, entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. O primeiro se
caracteriza pela produção de bens necessários (meios de produção e meios de
consumo) para a reprodução da coletividade e o segundo para a reprodução destas
relações de trabalho e das demais relações sociais. É no trabalho produtivo que se
constitui as duas classes fundamentais de um determinado modo de produção e
onde se produz um excedente (já que a produção de bens necessários ultrapassa o
quantum suficiente para a reprodução da força de trabalho) que possibilita a
exploração de uma por outra. É nestas relações de trabalho que uma classe social
realiza a produção e a outra a dirige e, desta forma, se apropria dos bens
produzidos.
É neste momento histórico que surge a distinção entre trabalho alienado e
trabalho autônomo. No primeiro caso, o trabalho perde parcialmente seu caráter

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humano (consciente e teleológico), pois passa a ser controlado por outro que não o
trabalhador. A finalidade do trabalho deixa de ser atribuída pelo trabalhador e passa
a ser atributo do não-trabalhador. Assim, o trabalho se manifesta como alienação.
A alienação do trabalho produtivo, por sua vez, se expande para todas as outras
formas de trabalho e o trabalho autônomo praticamente deixa de existir. Esta última
forma de trabalho, o trabalho como objetivação, ou simplesmente práxis, é
ofuscada.
A partir destas observações, podemos ver que o conceito marxista de trabalho
coloca a existência do trabalho humano como objetivação, como práxis, que, nas
sociedades de classes, é substituído pela alienação. A práxis é abolida na
sociedade de classes? Não, mas se torna um fenômeno marginal num mundo onde
reina a alienação.
Na práxis, existe uma unidade entre trabalho manual e trabalho intelectual. O ser
humano desenvolve ativamente suas potencialidades intelectuais e manuais e
através da sua produção manifesta o projeto que o motivou a trabalhar. Neste
sentido, podemos dizer que é assim que o ser humano se realiza.
Na alienação, ao contrário, existe uma separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual. Alguns se especializam em trabalho manual e outros em
trabalho intelectual. É claro que é impossível existir uma separação total entre
trabalho manual e intelectual, pois por mais que um trabalho seja manual é sempre
necessário a atividade intelectual e vice-versa, mas cria-se uma redução na
utilização das capacidades físicas e mentais respectivamente.
Entretanto, a análise do trabalho alienado sempre tomou como “modelo” o
trabalho manual e nunca o trabalho intelectual. A visão de que o trabalho intelectual
pode se manifestar como alienação ou como práxis é fundamental para a teoria
marxista da consciência e para compreender os processos ideológicos
contemporâneos.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que consciência é atividade. Tal como
Marx colocou, “o principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de
Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido
sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível,
como práxis, não subjetivamente. Eis porque, em oposição ao materialismo, o

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aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo, que,
naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal”1.
Onde se revela o caráter ativo da consciência? Se revela, inicialmente, no
querer, o que implica numa finalidade. Essa finalidade, assim como no trabalho
manual, é objetivação, ou seja, é manifestação da natureza humana, onde o ser
humano se realiza e produz um mundo humanizado, transformando o que lhe é
“exterior”, dando-lhe uma forma “interior”. Sendo assim, não existe nenhuma
separação entre consciência e sensibilidade. A consciência age sobre o mundo e
esta ação tem como ponto de partida o interesse do ser consciente sobre ele.
Existem várias fontes para esse interesse, desde as necessidades vitais às
necessidades socialmente produzidas (autênticas ou inautênticas), e isto inclui a
mentalidade, o inconsciente, etc.
O caráter ativo da consciência também se manifesta através de sua capacidade
de criar um conjunto de processos intelectuais que permitem analisar a realidade
social e natural, o que podemos chamar de razão. Além disso, a consciência se
demonstra ativa através de sua capacidade de imaginar o novo, ou seja, negar o
existente e conceber um novo existente. Estes elementos podem não esgotar o
caráter ativo da consciência mas apresentam seus principais aspectos.
A partir da união destes processos, a consciência trabalha os dados da realidade
e os assimila. Desta forma, nenhum fato ou nenhum aspecto da realidade é apenas
“percebido” pela consciência, mas é, principalmente, trabalhado por ela. A
consciência não é uma máquina fotográfica que apenas retrata o que está na sua
frente e sim uma atividade que a partir de seus processos internos assimila tal fato
ou aspecto, que, por assim dizer, lhes são “externos”. Tais processos internos,
porém, são produzidos a partir da relação do ser humano com o mundo, ou seja,
estão impregnados de relações sociais. A forma como a consciência trabalha sobre
a realidade pode ser assim exemplificada: a construção de um objeto exige a
matéria-prima, as ferramentas, a cooperação entre os produtores e o projeto. A
consciência possui, internamente, o projeto (a finalidade), que pode ter tido uma
origem externa mas que se tornou interno, as ferramentas (a razão) e, em parte, a
cooperação (pois a consciência possui um caráter social). O mundo é a “matéria-
prima” sob o qual a consciência irá trabalhar. A transformação do mundo pela

1
MARX, K. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã
(Feuerbach). 8a edição, SP, Hucitec, 1991, p. 11.
4
consciência significa que ela re-elabora esta matéria-prima de acordo com aquilo
que ela possui. Por isso se pode dizer que se trata de uma apropriação do mundo.
Isto significa que a consciência não “retrata” o mundo tal como ele é e sim a relação
que o ser consciente mantém com ele. Daí seu caráter ativo.
Este processo mental é diferente do que ocorre quando o trabalho intelectual
deixa de ser objetivação para se tornar alienação. A fonte desta transformação se
encontra, como foi dito anteriormente, no trabalho produtivo submetido ao processo
de alienação. O surgimento da sociedade de classes produz a separação entre
trabalho manual e trabalho intelectual e, ao submeter o primeiro ao processo de
alienação, acaba por fazer o mesmo com o segundo. Por conseguinte, o trabalho
intelectual como objetivação também é marginalizado na sociedade de classes.
A compreensão do desenvolvimento da consciência em um indivíduo reflete o
processo de formação do trabalho intelectual alienado. Neste sentido, as reflexões
de Jean Piaget e de Sigmund Freud são extremamente importantes. A grande
contribuição de Piaget está presente no seu estudo sobre o desenvolvimento
intelectual da criança.
Segundo Piaget, a criança desenvolve sua inteligência em diversos estágios que
apresentam, cada um, características próprias. O que nos interessa aqui é alguns
dos termos que ele utiliza para expressar os estágios principais que ele encontra no
desenvolvimento intelectual da criança. Tais termos são a assimilação e a
acomodação.
Para Piaget, a assimilação significa a integração de novos elementos em
“esquemas de ação”, o que significa, ao mesmo tempo, operação e transformação
da realidade de acordo com tais esquemas. A acomodação, por sua vez, significa
uma modificação nos “esquemas de ação”, devido a influência de elementos
exteriores. Os “esquemas de ação” expressam um tipo de ação que pode ser
transposta, generalizada e diferenciada para outra ação.
Em certas situações existe um equilíbrio entre assimilação e acomodação,
embora exista o predomínio de um processo sobre o outro dependendo da idade da
criança. Isto começa a ocorrer quando a criança alcança um desenvolvimento
intelectual onde passa a utilizar o pensamento formal. A partir dos 7 anos o
desenvolvimento intelectual da criança começa a ocorrer neste sentido e ele se
concretiza quando ela alcança 11-12 anos.

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Segundo Piaget, “chamaremos acomodação, essa diferenciação em resposta à
ação dos objetos sobre os esquemas, sincronizando com a assimilação dos objetos
aos esquemas, pode então haver um equilíbrio entre a assimilação e a
acomodação, tal sendo o resultado de um ato de inteligência. Mas pode também
ocorrer uma primazia da acomodação, e, nesse caso, a ação se modela sobre o
objeto mesmo, por exemplo porque esse objeto se torna mais interessante que a
utilização assimiladora que o sujeito poderia tirar dele”2.
Esse desenvolvimento intelectual possui um desenvolvimento paralelo no que diz
respeito ao julgamento moral da criança, que a partir dos 8 anos transforma este de
heterônomo em autônomo3.
A obra de Piaget é, sem dúvida, comandada por um positivismo nefasto. A sua
separação entre o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento afetivo da
criança é o seu primeiro grande equívoco. A partir desta separação ele pode dizer
que a assimilação é feita pela integração de novos elementos ao que ele chama de
“esquemas de ação”. Assim, ele apaga da análise o interesse, o querer, a
finalidade, ou seja, uma das características fundamentais da consciência e que
comanda o processo de assimilação.
Desta forma, Piaget reproduz a separação positivista entre razão e sentimentos,
que tem, como uma de suas conseqüências a possibilidade de se postular uma
fictícia “neutralidade” e “objetividade” do saber. É desta forma que ele pode também,
apesar de ter consciência da obra de Freud, considerar que o julgamento moral da
criança a partir dos 12 anos é autônomo e considerar que o processo de
acomodação significa um desenvolvimento da inteligência da criança.
Segundo Freud, não existe apenas a consciência mas também o inconsciente,
que é povoado pelos desejos reprimidos. A consciência é o agente responsável por
esta repressão. Neste sentido, numa sociedade de classes, que é uma sociedade
repressiva, o desenvolvimento da consciência é equivalente ao desenvolvimento da
auto-repressão, ou seja, da introjeção da repressão. Isto é idêntico ao que Piaget
chama de “desenvolvimento da inteligência” e do “julgamento moral autônomo”.
Este último significa apenas que a moral externa e repressora é internalizada pela
criança4. Em outras palavras, a criança nasce numa sociedade repressiva que, por

2
PIAGET, Jean. Problemas de Psicologia Genética. In: Col. Os Pensadores. SP, Abril Cultural, 1978, p.
251.
3
PIAGET, Jean. Psicologia da Criança. 11a edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.
4
Cf. FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Col. Os Pensadores, SP, Abril Cultural, 1978.
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conseguinte, lhe impõe uma moral repressiva, que faz sanções, realiza coerções,
etc., com o objetivo de controlar o seu comportamento e a sua mente. Até certa
idade, isto deve ser imposto de fora para dentro, mas a partir de um certo tempo, a
criança introjeta tal moral e passa a reproduzi-la por conta própria. Daí se pode
confundir este “por conta própria” com autonomia. Na verdade, o que ocorre é que a
heteronomia anterior deixa de ser uma imposição exterior para se tornar interior.
Não se trata, portanto, de uma autonomia autêntica. O julgamento moral autônomo
da criança não é outra coisa senão o julgamento moral da sociedade que a criança
introjetou.
A concepção piagetiana do desenvolvimento intelectual da criança parte do
pressuposto de que, quanto maior se for “objetivo” e se desenvolve o pensamento
formal, mais desenvolvido é o seu estágio intelectual. A “acomodação”, a palavra
em si mesma já é sugestiva, significa um processo da adaptação da mente humana
ao mundo “objetivo”, o que significa que o querer, a finalidade, é substituído pela
adaptação. A consciência perde seu atributo humano que é o seu caráter ativo e
teleológico e torna-se contemplativo, reprodutivo. Isto foi possibilitado pela
separação entre o afetivo e o intelectual realizada por Piaget. As conseqüências
disto para o lado “intelectual” é bastante evidente: os processos mentais elaborados
para analisar a realidade tornam-se esquemas de adaptação e ela, buscando
reproduzi-la como uma fotografia. Outra conseqüência reside na dificuldade de que
esta forma de pensamento encontra para pensar o novo. Por fim, o querer é abolido
e em seu lugar surge a “neutralidade” e a “objetividade” e assim aparece a
identificação entre “inteligência” e o desinteresse, a adaptação, a passividade,
enfim, com a acomodação. Aliás, a “epistemologia genética” de Piaget executa os
mesmos procedimentos de todas as epistemologias positivistas que focalizam o
desenvolvimento da ciência e não o da criança. Piaget, ao aplicar o esquema
positivista em outra esfera da realidade, acaba “confirmando-o” nesta esfera. Desta
forma, o positivismo clássico é confirmado pela “epistemologia genética” e esta, por
sua vez, é confirmada pelo positivismo clássico. Assim, uma forma de positivismo
confirma a outra.
Desde Marx, em sua clássica análise do fetichismo da mercadoria, sabemos que
os produtos do trabalho humano (incluindo o trabalho mental) podem, quando o ser
humano perde o seu controle, se tornar autônomos e independentes dos seres
humanos, mas isto não na realidade e sim na consciência coisificada (fetichista) dos

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produtores. Essa consciência coisificada é exatamente a acomodação descoberta
por Piaget. Acomodação, contemplação, coisificação. Tais são os resultados a que
chega o trabalho intelectual alienado.
Os termos piagetianos de assimilação e acomodação são equivalentes aos
termos objetivação e alienação (Marx). A objetivação é um processo de assimilação
do mundo não por um pobre e restrito “esquema de ação” e sim pelos interesses,
atividades e processos mentais de um indivíduo. A concepção de Piaget reflete a
concepção burguesa (coisificada) de ciência e inteligência. A acomodação
realmente existe, mas como trabalho intelectual alienado e não como objetivação,
como práxis.
Esta concepção, aliás, também penetrou nas concepções “ditas” marxistas, tal
como se vê nas obras de Lênin, Stálin, Mao Tsé-Tung, entre outros. O que é a
ideologia leninista do reflexo senão um elogio da acomodação? O que é a
concepção de Mao Tsé-Tung segundo a qual o caráter ativo do pensamento se
revela apenas em duas oportunidades: a da passagem do “conhecimento sensível”
ao “conhecimento racional” e a aplicação deste à prática revolucionária?
A partir destas considerações, podemos dizer que Piaget descreveu o processo
de desenvolvimento intelectual da criança mas não o compreendeu. Realmente, há
uma passagem do processo de assimilação para o processo de acomodação
enquanto forma predominante de processo mental. Mas, ao contrário do que ele
pensava, isto não significa um desenvolvimento das capacidades mentais da
criança e sim um emperramento de tal desenvolvimento. É claro que a acomodação
(mesmo porque não é acomodação “pura”, pois o processo de assimilação, mesmo
subordinado, continua existindo) não significa um emperramento total do
desenvolvimento das capacidades mentais do indivíduo mas um emperramento
parcial. É evidente que ele permite o desenvolvimento de algumas capacidades
mentais, principalmente aquelas que colaboram com o desenvolvimento de um
saber funcional5.
Talvez fosse interessante tomar alguns exemplos para deixar mais claro a real
distinção entre o processo de assimilação e o processo de acomodação. O
processo de assimilação ocorre tendo como ponto de partida um indivíduo que

5
Saber funcional é o tipo de saber que possui uma funcionalidade em relação à sociedade no qual ele é
produzido. O saber acadêmico, por exemplo, é um saber funcional. O mesmo se pode dizer do saber
burocrático. Estes tipos de saber são funcionais em relação à sociedade na qual são produzidos, ou
seja, possuem uma utilidade neste contexto e possibilita a quem o adquiriu se movimentar com
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possui um determinado processo histórico de vida, um conjunto de valores e
interesses, um modo de refletir e pensar o mundo, uma visão de mundo. Este
indivíduo, portando este conjunto de características que dão forma a sua
consciência, geralmente se encontra com idéias, concepções, experiências, etc.,
opostas à dele. A tendência deste indivíduo é rejeitar o que é oposto ou integrar
elementos parciais transformando-os no sentido de lhes adaptar e fornecer-lhes
coerência na sua consciência.
Dito de outro modo, um anarquista pode muito bem rejeitar a totalidade da obra
de Lênin, mas outro anarquista pode assimilá-lo. Como seria isto? Ora, um
anarquista pode se manter muito bem no interior de sua doutrina e aproveitar
elementos parciais da ideologia leninista. Por exemplo, a concepção leninista do
imperialismo pode ser aceita por um anarquista e que, no entanto, poderá rejeitar
todos os demais aspectos da ideologia leninista. Entretanto, ao acatar a concepção
leninista de imperialismo, o referido anarquista realiza, simultaneamente, sua
transformação, pois ela passa a ter como núcleo uma determinada doutrina
anarquista e isso lhe provoca alterações. Só desta forma se manteria a coerência
no interior da doutrina a partir da absorção deste elemento da obra de Lênin. Quais
alterações ocorreriam? Talvez o referido anarquista acrescenta-se um papel mais
importante para o estado para explicar o imperialismo e conclui-se, a partir disto,
que não basta destruir a produção capitalista e os monopólios internacionais mas
também o estado para se superar o imperialismo. Outras alterações podem ocorrer
através de alguns termos e expressões, que são abandonados, acrescentados ou
substituídos. Desta forma, ocorre um processo de assimilação, pois o núcleo central
do pensamento anarquista permanece e elementos parciais de outro tipo de
pensamento são integrados nesta concepção central.
O processo de acomodação ocorre quando um determinado indivíduo não possui
uma concepção de mundo articulada, onde os valores, interesses, etc., não
possuem um núcleo articulado que lhe forneça uma direção. Daí sua eterna
flutuação, que pode provocar o ecletismo, o relativismo, o acompanhamento a-
crítico dos modismos. Portanto, no processo de acomodação o que ocorre é que
dificilmente existe uma concepção de mundo que seja o ponto de partida para o
diálogo com as demais ideologias, teorias ou concepções de mundo. Quando isto
ocorre, pode tanto haver a rejeição das outras ideologias como sua aceitação

eficácia no lugar onde se encontra. Tal saber funcional, porém, não possui valor para além destas
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parcial. Mas tal aceitação, ao contrário do que ocorre com o processo de
assimilação, não provoca nenhuma alteração. Isto tem como conseqüência a
incoerência instalada no discurso, que, obviamente, se apresenta como coerente e
o é aparentemente.
Tal processo pode ser exemplificado no caso de um economista que quer
analisar a “economia capitalista” e utiliza conceitos marxistas mesclados com
termos do tipo setor primário, secundário e terciário da “economia” (que, como
sabemos, foram criados pelo economista não-marxista Colin Clark) sem lhe produzir
nenhuma alteração, criando uma espécie de justaposição incoerente de termos. O
ecletismo é outro exemplo deste tipo de trabalho intelectual.
Uma coisa que está muito presente neste tipo de consciência é o culto à
autoridade e, concomitantemente, a falta de criatividade, que produz sempre uma
colcha de retalhos ao invés de uma visão crítica da realidade. O culto à autoridade
retira das pessoas o senso crítico e a criatividade, produz insegurança, faz com que
o pensamento produzido não tenha como centro o próprio produtor dele e sim algo
que lhe é exterior, o “conhecimento objetivo” produzido pelas autoridades, ou seja,
os especialistas, os escritores de renome, etc., e desta forma o indivíduo se adapta
a cultura existente ao invés de a trabalhar em sua mente. A falta de criatividade6
tem outras raízes mas está mais presente quando há o culto à autoridade e se
manifesta com mais freqüência no mundo acadêmico, onde as exigências de
objetividade, cientificidade, etc., entre outros fatores, reforça a mera reprodução do
“saber” institucionalizado.
Qual é o fundamento do processo de acomodação? É, sem dúvida, a consciência
coisificada. O trabalho intelectual como objetivação, como práxis, é a assimilação e

relações, a não ser em caso de sua funcionalidade permanecer válida em outra sociedade.
6
Existe, no interior do mundo acadêmico, uma variante do academicismo que busca valorizar a
“originalidade” (que não significa a mesma coisa que criatividade). Esta variante do academicismo
geralmente demonstra um excesso de preocupação com o chamado “estilo” e recomenda a leitura de
textos literários para que cada um crie o seu próprio “estilo”. Isto expressa apenas uma preocupação
formal derivada da necessidade de dizer coisas já ditas de forma “disfarçada”, ou seja, somente a
linguagem é “original” (na verdade, nem esta, que é mera transposição de um tipo de escrita para
outro). Isto é produto de uma consciência coisificada que se acomoda ao que existe e se julga
“original” por utilizar palavras diferentes para dizer o já dito. Na nossa opinião, “o estilo é o homem”
e o conteúdo determina a forma e, por isso, o conteúdo é que é o fundamental. Alguns acadêmicos
buscam criar “idéias originais” para conseguir reconhecimento institucional, embora no Brasil isto
seja muito raro, pois o “conhecimento objetivo”, segundo as cabeças colonizadas daqui, é produzido
na Europa Ocidental ou nos EUA. Mas aqui não se trata disso. A criatividade do qual falamos se
refere ao ato de criar, trabalhar, realizar uma apropriação do que existe. Do ponto de vista marxista,
não há o menor sentido em se fazer o elogio da originalidade (a não ser em obras artísticas), pois o
importante não é ter “idéias originais” e sim desenvolver uma consciência correta da realidade, que
caso já exista sobre algum aspecto da realidade, não há mais nada a fazer do que reproduzi-la.
Ocorre, porém, que tal consciência correta da realidade não é produto da visão objetiva e sim de suas
condições de possibilidade, que são determinadas pelo contexto histórico e pelos interesses daqueles
que se debruçam sobre a realidade buscando dar-lhe expressão intelectual.
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o trabalho intelectual como alienação, é acomodação, coisificação. Isto vale para os
que se especializam tanto no trabalho manual quanto no trabalho intelectual.
Se a assimilação significa objetivação, então ela expressa a forma de
consciência ideal. Ocorre, porém, que a assimilação pode ser feita pelos mais
diversos pontos de vista, tal como o de uma religião, doutrina política, concepção
filosófica, etc., embora o processo de assimilação ocorra com mais facilidade no
interior de uma consciência correta da realidade, ela também pode ocorrer no
interior de uma ideologia burguesa. Aliás, os melhores representantes ideológicos
da burguesia utilizam o processo de assimilação, embora mesclado como o
processo de acomodação, que geralmente tem o predomínio.
Disto decorre também a necessidade de esclarecer que o processo de
assimilação e o processo e acomodação podem se mesclar, provocando o equilíbrio
ou o predomínio de um dos dois. Mas, dependendo do indivíduo, é possível a
manifestação de apenas um destes dois processos, o que no caso da acomodação
significaria uma consciência totalmente coisificada e, no segundo caso, de uma
consciência produtiva, que, caso seja, expressão do proletariado, significaria, ao
mesmo tempo, a expressão da realidade.
Neste sentido, podemos dizer que o trabalho manual e o trabalho intelectual
quando não são alienados, quando se expressam como objetivação, são o que
chamamos práxis. Quando esta práxis mantém uma unidade com os interesses de
classe do proletariado, ela é uma práxis revolucionária. Ela significa, em outras
palavras, a autogestão da lutas e atividades pelos próprios indivíduos
revolucionários.
Portanto, entre a assimilação e a acomodação existe mais do que uma simples
disputa entre processos mentais, pois também se revela aí uma oposição entre
concepções de mundo que expressam interesses de classe opostos e
irreconciliáveis, onde, dependendo de qual processo se usa, se torna mais ou
menos eficaz em seu resultado. Compreende-se, então, que, para a classe
dominante, o processo de acomodação é o mais adequado para as classes
exploradas, pois assim elas se tornam menos perigosas e o processo de
assimilação deve ser utilizado apenas por seus grandes ideólogos. Do outro lado da
barricada, o processo de assimilação é necessário para todos, pois somente assim
se poderá manifestar uma verdadeira práxis revolucionária.
VIANA, Nildo. Práxis, Alienação e Consciência. In: A Filosofia
e Sua Sombra. Goiânia, Edições Germinal, 2000. Pp. 161-172
11

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